Afrânio Coutinho e as mudanças de rumos na crítica literária, na história literária e no ensino de literatura no Brasil

June 6, 2017 | Autor: F. Filho | Categoria: Crítica literária
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Afrânio Coutinho e as mudanças de rumos na crítica literária, na história
literária e no ensino de literatura no Brasil


Cunha e Silva Filho


Ao concluir a leitura de Correntes cruzadas (Rio de
Janeiro: Editora A Noite, 1953, 1953, 383 p.), fico a pensar na ação
dinâmica de um intelectual determinado que, com o tempo, resultou em
efetivas mudanças no domínio dos estudos literários no país, se não
imediatas, mudanças a médio e longo prazo
Obra polêmica, às vezes com traços de paixão exagerada
pelo desfecho de suas aspirações e planos, não deixa de constituir um
panorama, como era do feitio do crítico Afrânio Coutinho (1911-2000), do
que o maior estudioso do Barroco entre nós pôde escrever sobre o que
presenciara na vida literária brasileira, sobretudo no domínio da crítica
literária, da historiografia literária e no ensino de literatura brasileira
e de Literatura em geral
Personalidade polêmica, por vezes contraditória, mas
sempre corajosa, meteu o dedo na ferida do que via no Brasil como grandes
mazelas e atrasos culturais que vigoravam nos anos 1948 e 1953, que são os
intervalos de tempo compreendido na reunião de alguns textos recolhidos de
sua coluna dominical no Diário de Notícias do Rio de Janeiro. Esclarece
Coutinho, na sua longa introdução ao volume, que neste havia incluído
outros textos saídos em diferentes épocas e publicações.
Percebe-se nitidamente nos textos compilados e selecionados,
sem rigor cronológico, que o estudioso conhecido como o introdutor do new
criticism no país, ao ter saído da Bahia, estava decidido a abrir caminhos
na vida literária carioca, sobretudo após a sua permanência nos Estados
Unidos de 1942 a 1947, período em que lá trabalhou como redator-secretário
do Reader's Digest (Seleções) e, como estava nos seus planos de
intelectual, aproveitou para realizar cursos na Universidade de Colúmbia e
em outras instituições universitárias americanas.
Essa temporada nos Estados Unidos foi-lhe utilíssima à
formação literária nas áreas da crítica, na teoria literária, na
historiografia literária, na literatura comparada e na atualização das
áreas do ensino de letras, história e filosofia, tendo sido naquele período
aluno de Jacques Maritain (de quem traduziu duas obras) e de eminentes
professores universitários, grandes scholars, tais como René Wellek,
Austin Warrren, Roman Jakobson entre outros grandes estudioso da literatura
e da linguística de renome universal.
Foi com essa formação sólida e renovada que, de volta ao
país, deu continuidade aos seus planos e ambições intelectuais. O então
jovem intelectual baiano não sossegou nas suas pretensões de galgar
posições de relevo na história da crítica literária brasileira e na
transformação radical de novos hábitos de estudos da sua área, tendo como
meta tanto o ensino médio quanto sobretudo o universitário, onde firmou seu
nome e conseguiu respeitabilidade de seus pares. Mas, tudo conquistado a
duras penas, arrostando os obstáculos do meio literario e cultural do Rio
de Janeiro, já com as suas lideranças e grupos dominantes, ou, conforme
Coutinho gostava de assinalar, com as suas "igrejinhas, "suas "futricas",
seus parti-pris, suas lideranças no jornal, no ensino, na produção
editorial, na vida literária em geral. 
Afeito ao desenvolvimento alcançado nos meios culturais
americanos, Coutinho estava pronto para aqui desbravar horizontes novos nos
campos da crítica literária através da divulgação e doutrinação do new
cirtricism, ou como ele, preferia rotular, "nova crítica", que, de resto,
não era estritamente a corrente de procedência anglo-americana, mas que na
verdade seria um movimento de ruptura de métodos e approaches que, em
diversas partes do mundo desenvolvido, estava se consolidando em novos
princípios teóricos lastreados pelas descobertas dos estudos da literatura
com fundamentos científicos que fariam a passagem da corrente crítica
impressionista para a crítica formalista, ou estilística, ou poética,
valorizando a obra nos seus componentes estéticos, intrínsecos, i.e., dando
valor capital à autonomia do aspecto literário, da análise e interpretação
da obra literária, alterações estas que vieram colocar o historicismo, o
determinismo, de orientação tainiana, ou anatoliana, ou saintbeuviana, em
segundo plano.
O que se desejava, com a nova visão teórica da Literatura era
distinguir na obra as características formais, e específicas da linguagem,
sua literariedade, seus artifícios e estratégias de composição, sua
retórica, que a tornassem um produto da técnica, um artefato, resultante
não só do talento individual, do preparo e estudos sérios, mas sem 
amadorismo e aventureirismo intelectual ao lidar com as questões de
Literatura, sem laivos subjetivistas de fundo romântico, sem mais a ideia
de "gênio criador" tão forte no século 19.
Em segundo plano, ficariam os elementos extrínsecos, como a
biografia do autor, a sua situação social, a sua época, o seu espaço de
atuação. Quer dizer, os estudos literários deslocaram o eixo de interesse
do autor para a obra em si Esta é que importava para o entendimento do que
fosse a obra literária, nos seus diversos gêneros. São estas questões de
que se ocupa Coutinho em grande parte de seus artigos em Correntes
cruzadas.
Evidente que um crítico ainda desconhecido nos meios
intelectuais do Rio de Janeiro e surgindo com um instrumental de renovação
do establishment literário que encontrava diante dele, não encontrou
facilidade de nele penetrar com as suas novidades trazidas dos centros
americanos de Letras.
Encontraria resistências, desconfianças nos hábitos já
enraizados de cultura predominantemente francesa, que tinha no seu bojo a
prática dominante do impressionismo crítico com seus reflexos no ensino
médio e superior, no jornal através da crítica de rodapé com seus nomes
estabelecidos, alguns dos quais desfrutando de real reconhecimento como foi
o exemplo do notável crítico Álvaro Lins acompanhando, nos rodapés
do Correio da Manhã, a segunda fase da produção do Modernismo, tanto na
ficção, quanto na poesia e no teatro. Ao lado de Álvaro Lins, se achavam
outros ilustres críticos como Tristão de Athayde, Temístocles Linhares,
Olívio Montenegro, Sérgio Buarque de Holanda, Wilson Martins e, mais tarde,
Antonio Candido, entre outros. Cada um desses seguia sua própria orientação
crítica, ora de cunho impressionista e humanístico, ora de abordagem
sociológica, mas já se servindo de princípios renovadores teóricos visando
a componentes estéticos no julgamento do fenômeno literário. Seria, um
pouco mais adiante, o caso de Antonio Candido e outros. Ou seja, havia
críticos e críticos.
Entretanto, Coutinho vinha para realizar rupturas radicais, tanto
no domínio da crítica, da teoria literária, da historiografia literária
quanto da pedagogia da literatura, que deveria oxigenar-se dos seus sólidos
conhecimentos assimilados nos Estados Unidos e implantados no ensino médio
(Colégio Pedro II) e na universidade. Primeiro, em 1950, no Instituto La
Fayette da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Estado da
Guanabara, hoje Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na qual viu
triunfante o seu projeto de criação da disciplina teoria literária, depois,
na cátedra de literatura brasileira da Universidade do Brasil, hoje
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"Correntes cruzadas," a seção que sustentou, segundo já 
assinalei, no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, se torna, assim, o seu
espaço de combate sem trégua contra a crítica impressionista, não poupando
nem seus maiores e mais acatados cultores, tendo à frente o crítico Álvaro
Lins com o qual encetou uma polêmica declarada com seus artigos na coluna
do Suplemento Literário do Diário de Notícias. Afrânio Coutinho, no volume
que estou comentando, tem páginas em que se pode ver bem a quem se
destinavam os seus ataques, que, por terem o sinete da polêmica desabrida,
extrapolam em suas invectivas muitas vezes de forma injusta. 
O livro, porém, dedica a maior parte de seus artigos a
difundir suas ideias teóricas sobre crítica, teoria literária, valorização
dos estudos de literatura comparada, parte do volume que na verdade
valoriza o todo dos seus textos e onde se nota a sua grande contribuição
para a divulgação de todas as questões fundamentais atinentes aos estudos
literários
A melhor parte de Correntes cruzadas encontra-se na defesa
intransigente de mudanças nos estudos literários no país, os quais,
segundo o autor, devima ser feitos em bases renovadas. O que, de fato
ocorreu, pois até hoje, estão dando frutos mesmo se considerarmos todos os
avanços por que passaram os estudos de literatura entre nós, com novas
correntes do pensamento crítico, elevando ainda mais o nível de qualidade
do ensino superior de Letras no país quanto a orientações teóricas e sua
produção na crítica, no ensaio, nas novas disciplinas que deram seus
primeiros sinais de vitalidade na ainda na época de Coutinho, como a
ciência da literatura, a teoria literária, a literatura comparada, a
poética, os estudos de literaturas modernas e antigas. O fermento dado por
Coutinho teve frutos, amadureceu e cresceu.
Em Correntes cruzadas, há passagens notáveis em que o critico
sai do estritamente literário e envereda pela crítica de natureza social, e
política, quando descreve, com grande sensibilidade, a vida capitalista
americana, com seus erros e acertos. A obra traz artigos, comentários,
fragmentos de citações de grandes autores, sobretudo ingleses e americanos,
o que demonstra a sua constante preocupação por se mostrar atualizado, ao
corrente do que se produzia então nos Estados Unidos, na Europa. Os
fragmentos de textos são lições indiretas de sua finalidade precípua, pondo
o nosso país a par do que de melhor se produzia nos país adiantados do
mundo, nos dominós da literatura e do pensamento crítico universal.
Por vezes, se nota alguma redundância na focalização de temas
e ideias no campo da crítica e da história literária Mas, este defeito é
ofuscado pelas páginas originais e sensíveis que dedica à Literatura, como
aquelas páginas que, com descortino e argúcia, fala da importância da
descentralização da vida literária e cultural brasileira, ou daquele artigo
em que mostra todo o seu respeito e admiração pela literatura produzida na
Bahia, ressaltando suas qualidades e sua força lírica, seus intelectuais,
sua produção de peso, uas grandes figuras de nível nacional.
Em Correntes cruzadas, o leitor está sempre tomando lições de
Literatura, ampliando seus repertório e vendo o quanto um crítico sério
consegue imbuir-se de invejável capacidade de leitura de autores, temas e
obras sem fronteiras de nacionalidades.
Não poderia afirmar que Coutinho, em seus artigos desta obra 
tenha acertado sempre, nos seus juízos e julgamentos, como no excessivo
plano superior em que coloca Sílvio Romero e, em menor posição, José
Veríssimo, sobretudo tendo em vista que o último foi sempre tido como o
crítico que maior relevância deu ao elemento estético na análise de obras,
ao passo que o primeiro, inegavelmente um primoroso historiador literário e
de grande capacidade produtiva, trabalhou a literatura mais em bases
sociológicas do que estéticas.
Contudo, o ponto alto de Correntes Cruzadas é a sua constante
afirmação de que a leitura dos princípios aristotélicos que estão
consubstanciados na Poética de Aristóteles é o maior contributo do filósofo
grego para rastrear as raízes primordiais do elemento estético-literário
nos estudos da crítica literária e da teoria literária de todos os tempos
como foram também determinantes ao desenvolvimento da crítica literária
moderna a obra Biographia Literaria (1717) de Coleridge, a Mímesis de
Auebach, os ensaios de T.S.Elliot
Definindo-se como crítico, Coutinho rebatia os que lhe
negavam essa condição, pois para ele, a crítica literária não somente se
apresentava nos rodapés da imprensa, ou mesmo na militância de julgamentos
de obras, mas no papel que o teórico, o professor universitário exercem na
cátedra, nos livros, nos congressos, e em revistas. Da mesma sorte, o
historiador literário exerce o ato crítico no seu próprio papel de estudar
as obras, os gêneros e de lhes dar interpretação fundadas em critérios de
avaliação e valorização das obras, dos períodos literários, dos temas
gerais ou específicos de crítica e teoria literária, de apresentação de
grandes panoramas enfocando obras, gêneros e autores.
Um último aspecto focalizado no seu livro diz respeito à
orientação do ensino de literatura brasileira, de sua pedagogia, de seus
critérios modernos e de cunho científico, mobilizando todos os instrumentos
de trabalho de exegese, como a valorização da bibliografia, a abordagem
crítica nos trabalhos de monografias e teses, nas suas diferenças e
finalidade sem os exageros de erudição e desnecessárias minúcias de notas
de pé de página, em detrimento, pois, do desenvolvimento e originalidade do
estudo que se faz.
Correntes Cruzadas ainda apresenta uma valiosa bibliografia
de obras de vulto nos campos da crítica literária, da teoria literária, da
história literária, de literatura comparada, obras gerais, antologias de
textos críticos, revistas, história da crítica, antologias e coleções de
textos críticos cobrindo literaturas das principais línguas modernas, do
passado até de produção da década de 50 do século 20.
Para o pesquisador interessado nas questões polêmicas em que
Coutinho se viu envolvido intensamente, o volume acrescenta, em forma de
apêndice, "12 perguntas a Afrânio Coutinho" (p.355-361) a propósito de
sua Tese Aspectos da literatura barroca e do concurso para a cátedra de
literatura do Colégio Pedro II. As perguntas, que trazem as resposta de
Coutinho não "simetricamente" expostas, fazem parte de uma sequência de
depoimentos que professores deram ao Tribuna das Letras(22-23 de dezembro
de 1951, tendo sido anteriormente entrevistados o crítico Álvaro Lins e o
filólogo Celso Cunha. As resposta de Coutinho valem como síntese
enriquecedora de suas preocupações de analista literário e de docente.
Finalmente, o volume insere cinco páginas extraídas, em forma de
entrevista, do Jornal de Letras(fevereiro de 1951) concernentes à
repercussão que teve um artigo de Coutinho acerca da vida literária
brasileira publicado na seção "Correntes Cruzadas," referida aqui mais de
uma vez,, do Suplemento literário do Diário de Notícias do Rio de Janeiro.
O artigo de Coutinho causou "celeuma" e reações "veementes" da parte de
muitos escritores.
Coutinho reafirmou a sua posição sustentada no artigo sobre a os
males de nossa vida literária naquela época, sobre comportamentos éticos de
escritores e sobre a situação da crítica e da teoria literária para as
quais reivindicava novos formas de abordagem do fenômeno literário, ou
seja, substituir o impressionismo crítico e a orientação teórica em bases
estéticas, objetivas, científicas, visando a dar ênfase aos aspectos
intrínsecos da obra literária, na valorização desta como fundamento para a
análise e julgamento crítico, na defesa da autonomia do fenômeno estético,
no tratamento da linguagem literária, na autotelicidade de base
aristotélica do texto, refugando, assim, a continuidade do impressionismo
de viés romântico, que valorizava a personalidade do crítico e o primado do
autor.
O depoimento de Coutinho, embora muitas vezes contundente, se
afirma como um comovente gesto de amor aos estudos literários, de exercer a
crítica, a teoria literária, a história literária como um "destino," uma
forma voluntária de opção e de crença nos valores estéticos que a
literatura propicia àqueles que por ela se decidiram a dedicar sua vida
profissional por vocação e sem nenhum arrependimento ou possibilidade de
não a ter substituído por atividades mais rendosas, econômica e
socialmente. Para facilitar o pesquisador, o volume finaliza com um índice
onomástico.
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