África num Portugal sem referências artísticas no curriculum do 3º Ciclo

June 13, 2017 | Autor: Marta Ornelas | Categoria: African Studies, Curriculum, Educacao Visual
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Para citar este artigo: Bahia, S., Gomes, N. & Ornelas, M. (2008). “África num Portugal sem referências artísticas no curriculum do 3º Ciclo”. In Actas do Congresso Ibero-Americano de Educação Artística. DVD. Associação de Professores de Expressão e Comunicação Visual.

África num Portugal sem referências artísticas no curriculum do 3º Ciclo Marta Ornelas, Nuno Gomes & Sara Bahia

Resumo A identidade cultural das sociedades deverá ser formada a partir das diversas identidades culturais individualizadas. Ao lidarmos com a crescente diversidade cultural de hoje é importante que os vários elementos da sociedade construam as suas identidades pessoais com base nas diferentes referências das suas culturas de origem. Contudo, algumas não são incluídas nos modos de ver e entender a arte, como é o caso da recorrente dissimulação das referências artísticas africanas por parte da cultura europeia. Na medida em que a educação é reflexo da sociedade, perpetuando-a e moldando-a, as experiências e projectos de âmbito escolar são indissociáveis da vivência anterior, quer do professor e do aluno, quer do contexto sociológico, cultural e económico do meio. O curriculum escolar nacional, no que respeita à educação básica do 3º ciclo, pressupõe a aprendizagem da arte, a exploração plástica e a sensibilização para a preservação do património cultural por intermédio da disciplina de Educação Visual. No entanto, enquanto professores de Educação Visual verificamos que existe uma falta de referências da cultura africana no curriculum da disciplina e que os alunos africanos e de ascendência africana encontram mais referências na música e na dança do que nas artes visuais. A falta de referências pode conduzir a um comportamento menos ajustado e ao défice de elementos estruturantes, em detrimento do desenvolvimento de uma identidade pessoal e cultural mais integrada. Um estudo efectuado em 2006 por Gomes, Lopes, Melo, Máximo e Ornelas, procurou investigar o modo como os alunos analisam e interpretam referências artísticas europeias e africanas e o modo como se expressam graficamente. Paralelamente, analisou as fontes de acesso e as variáveis sócio-culturais que influenciam o conhecimento artístico, bem como a relação das preferências artísticas com a realidade individual. O estudo não verificou diferenças significativas entre alunos portugueses de origem europeia e africana. Apesar dos diferentes meios de origem, das diferentes atitudes face à vida e dos diferentes comportamentos face ao saber, quando se lhes avalia algo tão subjectivo ou tão provido de saber imediato, como os gostos considerados inatos ou a capacidade de exprimir o que se pensa em dado momento, tudo é muito idêntico. Mais determinante parece ser a fase do

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desenvolvimento em que se "imitam" ou “modelam” os gostos porque se quer pertencer a determinado grupo ou à cultura "dominante". O papel da escola é fundamental no sentido de proporcionar novas referências para a construção da identidade pessoal e cultural. Estarão os alunos preparados, qualquer que seja a sua naturalidade ou ascendência, para receberem e valorizarem a pintura de influência africana? Ou será que os alunos se encontram já de tal forma moldados pela cultura europeia e sejam incapazes de apreender diferentes estímulos visuais, inviabilizando o diálogo com a obra de arte proveniente de outras culturas, nomeadamente a arte africana? A inclusão dessas referências no curriculum de Educação Visual contribuiria, por um lado, para o aumento do sucesso escolar em ambos os grupos, e por outro, para uma maior amplitude de conhecimentos que se reflectiria num alargamento dos horizontes culturais dos alunos? Palavras-Chave: Arte africana; conhecimento artístico; expressão gráfica; curriculum; identidade cultural. Objectivo O objectivo do presente trabalho consiste em mostrar a necessidade de inclusão de referências artísticas africanas no currículo de Educação Visual do 3º Ciclo na medida em que os alunos africanos ou portugueses de origem africana não possuem conhecimentos acerca dessas referências e precisam de ter oportunidades para criarem raízes com a cultura artística africana. Na base deste trabalho encontram-se as respostas de quase duas centenas de alunos do 7º ano de escolaridade de três escolas do distrito de Lisboa frequentadas por alunos portugueses de origem europeia e africana e por alunos africanos. Contextualização teórica da necessidade universal de referências culturais O modo de vida e a mobilidade social, fruto das transformações científicas e tecnológicas que caracterizaram o último século, conduziram a uma crescente mobilidade cultural e étnica (e.g. Riehl, 2000) e, inevitavelmente, a uma maior diversidade cultural e linguística em todos os cantos do mundo e a novos “problemas” inerentes ao modo de vida actual. Mas como refere Banks (2001), as características culturais dos diversos membros de grupos são extremamente complexas e em mudança. Embora não haja uma identidade cultural comum a todos os membros de um determinado grupo étnico, a diferença cultural impede que muitos alunos pertencentes a culturas minoritárias atinjam os objectivos propostos pela escola, pelo que a percentagem de insucesso destes alunos é maior do que a dos alunos que pertencem à cultura maioritária (Ogbu, 1982). Este dado universal justifica, por si só, uma maior atenção às diferenças culturais na sala de aula. A crescente diversidade cultural traduz-se muitas vezes numa construção da identidade cultural mais lenta ou difícil, que se repercute na construção da identidade pessoal e no pleno exercício da cidadania. Na base desta dificuldade encontra-se a noção de “ameaça do estereótipo” que leva algumas crianças e jovens de culturas minoritárias a acreditarem nos estereótipos negativos que lhes são, muitas vezes injustamente, atribuídos

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e que tornam as suas profecias negativas sobre a escola ou a própria sociedade auto-realizáveis

(Steele & Aronson, 1995). Assim, as experiências vividas por estes grupos

podem criar um desânimo aprendido e expectativas negativas sobre a sua falta de controlo da situação, levando-os a estagnarem num dos primeiros níveis de desenvolvimento da identidade cultural que se caracterizam pela absorção de crenças negativas socialmente institucionalizadas acerca do grupo cultural e pelo separatismo voluntário etnocêntrico (Banks, 1994). Consequentemente, esses jovens podem não conseguir progredir até ao estádio da clarificação da identidade qualificado pela auto-aceitação cultural e resposta positiva à diferença. Da origem à apropriação cultural vai um grande passo e quando os alunos não se apropriam de uma cultura que tomam como sua sentem-se estrangeiros, diferentes e excluídos (Santos, 2004). No entanto, quando existem referências culturais sólidas e apoios da comunidade envolvente, é possível atingir níveis de identidade cultural mais avançados que se caracterizam pela participação activa na comunidade a que se pertence e a valorização de diversas culturas até chegar ao globalismo e competência global em que o equilíbrio entre as identidades culturais, nacionais e globais, se torna um ideal pelo qual se luta. No entanto, a determinação de um «papel de vida» que inclua a interculturalidade depende das experiências sociais e culturais que reforçam esse papel ou, pelo contrário, o orientam numa direcção menos adaptada (Adler, 1927). O processo de desenvolvimento é um jogo de orquestração entre percepções, cognições, afectos, atitudes, crenças, motivações, valores e conhecimentos (Eckhaus, 1996), que resulta de múltiplas forças e factores e visa a satisfação das três necessidades universais: autonomia, competência, estabelecimento de relações sociais (Ryan & Deci, 2000). Quanto mais equilibrado e harmonioso for esse jogo de orquestração mais provável é a obtenção do futuro bem-estar pessoal e da adaptação face à nova complexidade da estrutura cultural e social. O papel da educação na transmissão de referências culturais O desenvolvimento humano é também desenvolvimento-em-contexto (Bronfenbrenner, 1979), produto da interacção entre o indivíduo e os seus contextos de vida, como a família, a escola ou a vizinhança. A partir dos vários contextos educativos a criança e o jovem vão extraindo conhecimentos e competências que lhes permitem a construção de uma identidade pessoal e cultural, a adaptação ao mundo em mudança e o exercício pleno da cidadania. Consequentemente, as experiências educativas contribuem para o desenvolvimento a todos os níveis e deverão necessariamente ter como finalidade máxima auxiliar a construção de um «papel de vida» único, porque o bem-estar e o equilíbrio dependem do interesse social e da capacidade para cooperar que se desenvolve através do encorajamento de modelos relevantes (Adler, 1927). Deste modo, a construção da identidade e da adaptação pessoal, cultural e social dependem da promoção de factores protectores do desenvolvimento nos quais se incluem as competências sociais, as competências de resolução de problemas, a consciência crítica, a autonomia, a crença no futuro (Benard, 1995) e a aquisição de

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sentimentos de valor próprio e de auto-eficácia (e.g. Masten, Best & Garmezy, 1990), competências estas que a escola deve procurar estimular. Contudo, vários estudos no domínio da educação têm mostrado que muitas das dificuldades dos alunos pertencentes a minorias étnicas se devem ao facto de muitos professores subestimarem a sua cultura de origem e as escolas não conseguirem desenvolver ambientes que valorizem e promovam a diversidade cultural (e.g. Meece, 2001). Assim, nutrir, cuidar, ensinar, orientar, conduzir, são os sentidos etimológicos de ‘educare’ e ‘educĕre’ que salientam a ideia de que os contextos educativos, formais e não-formais, têm como principal missão amparar o desenvolvimento dos seus educandos. À escola, em particular, cabem duas grandes finalidades: a transmissão de conhecimentos, nomeadamente o património natural e cultural da humanidade, e a transmissão de valores e de padrões sociais (e.g. Style, 1988), numa sociedade cada vez mais diversificada face à crescente e inevitável mobilidade cultural e ao incremento do número de casos de insucesso. De referir ainda, que num país como o nosso, com uma herança histórica intimamente ligada ao continente africano, as referências patrimoniais africanas devem fazer parte da construção da identidade cultural de todos os cidadãos, quer sejam portugueses, quer tenham ascendência directa africana. A escola é reflexo da sociedade, perpetuando-a e moldando-a. As experiências e projectos de âmbito escolar são indissociáveis da vivência anterior, quer do professor e do aluno, quer do contexto sociológico, cultural e económico do meio. Muitas das experiências educativas não incluem os modos de ver e entender a arte, como é o caso da recorrente dissimulação das referências artísticas africanas por parte da cultura europeia. Desde sempre que a vida social, económica e política se tem centrado em redor dos chamados “centros urbanos”, ou pelo menos em áreas geográficas por estes influenciadas. Numa sociedade, ninguém vive isolado e por mais abstraído que o cidadão queira estar do que o rodeia, há sempre factores que irão contribuir para que não possa afirmar que está completamente desligado. Consequentemente, todos os cidadãos, nomeadamente alunos e professores, influenciam e são influenciados pelos mais diversos factores presentes na estrutura social, com particular destaque para as referências da sua cultura de origem. O esplendor da arte nas suas diferentes expressões teve uma considerável evolução movida pela actividade dos centros urbanos e pelas facilidades que o progresso ia revelando e descobrindo. Na pintura, os grandes nomes que aparecem são em grande parte europeus, contextualizados numa época em que verdadeiramente a Europa era o centro do mundo. É natural que a arte evolua num ambiente em que tudo o resto também evolui, sendo bastante mais difícil que tal aconteça numa sociedade estagnada. Os países africanos apresentam uma evolução que teve início mais tardiamente, muito influenciada pelo que vinha dos outros países. Mais depressa assimilavam o que já tinha sido descoberto do que partiam para descobertas, o que denota, por parte da cultura africana, uma nítida aceitação dos valores culturais de uma outra sociedade amplamente

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díspar, como é o caso da europeia. Por seu turno, na cultura europeia, ainda existe uma 1

certa relutância em aceitar e assumir influências externas (e.g. Brassai, 1964) . Será que, numa época em que se condena veementemente a discriminação, ainda continuamos a discriminar determinados cidadãos pelo facto de não valorizarmos os seus referenciais artísticos? Até que ponto só mostramos como referencial da cultura africana determinado tipo de música ou dança em detrimento de toda a riqueza patrimonial da arte africana que em tanto influenciou a arte ocidental do século XX? Se a distância entre as raízes de uma linguagem artística e o tempo presente for demasiado extensa e os caminhos não forem lineares, torna-se complicado compreender e valorizar essa mesma linguagem. Não será importante passar a mensagem de que o que aprendemos tem como base o que já foi criado e mostrar a sua origem? Todos somos influência do meio em que vivemos e dos meios com que contactamos, quer pessoalmente, quer por meio da informação que nos possa ser veiculada nos mais diversos suportes. Assim, a educação artística deve almejar a compreensão da arte e dos mecanismos que a despoletam, mostrando os diferentes universos em que ela se move porque todos têm pontos em comum. Muitos jovens que hoje vivem em Portugal são de origem africana e já nasceram em território português. No entanto, a geração imediatamente anterior ainda tem uma forte componente que a liga aos seus países de origem. A próxima geração corre o risco de ficar completamente desligada das suas raízes e, nas gerações seguintes, se a escola não assegurar essa ligação, os países africanos deixarão de ser uma referência para a aprendizagem dessas camadas jovens. Deste modo, assumindo o seu papel de transmissora de novas ferramentas para a construção da identidade pessoal e cultural, a escola deverá mostrar as diferentes raízes que nos fizeram chegar ao que somos enquanto cidadãos portugueses, europeus e do mundo, tanto a nível de informação geral, como a nível de inclusão de diferentes indivíduos de diferentes culturas, promovendo, assim, o acesso a níveis de desenvolvimento intercultural mais elevados. O ensino da Educação Visual e o (não) acolhimento da cultura africana A escola é hoje um dos veículos mais importantes da cultura e, no que respeita à educação básica do 3º ciclo, o curriculum escolar nacional pressupõe a aprendizagem da arte, a exploração plástica e a sensibilização para a preservação do património natural e cultural por intermédio da disciplina de Educação Visual. O ensino desta disciplina consiste numa das formas possíveis de abordar o mundo e de interagir com ele, mas, tal como qualquer outra ferramenta essencialmente orientadora da criação, se for mal utilizada não conduzirá a qualquer resultado profícuo. Se o desafio de qualquer tipo de pedagogia é, efectivamente, a produção dos resultados pretendidos, a obtenção dos objectivos delineados a priori, o programa da disciplina de Educação Visual possibilita uma série de experiências e

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Picasso negou a influência africana na sua arte até 1937, quando publicamente confessou a Malraux a presença africana na sua obra. esta revelação só viria a ser publicada três décadas mais tarde por Brassai nas suas conversas com Picasso.

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de interacções, cujo resultado final é muitas vezes positivamente inesperado, dada a possibilidade de diversificação de estratégias passíveis de serem utilizadas. A inclusão do nosso passado histórico (como valor patrimonial e de pertença) na educação artística é essencial, no sentido de proporcionar aos alunos ferramentas para um melhor entendimento, apreciação e crítica da realidade artística portuguesa e internacional de forma contextualizada. Uma vez que em grande parte das escolas existem cada vez mais alunos africanos ou de ascendência africana, julgamos relevante que o curriculum da Educação Visual contemple, pelo menos, parte da arte africana nos seus conteúdos e na sua implementação, de modo a que estes alunos encontrem referências também nas artes visuais e não apenas na música e na dança, como acontece actualmente. O conceito de “arte africana” é próprio da nossa visão ocidentalizada, já que, tradicionalmente, os artistas africanos não procuravam realizar conscientemente peças de arte, apenas pretendiam que as peças que produziam tivessem uma função, que tanto poderia ser funcional, como mágica ou religiosa. Todavia, a “arte africana” renovou a arte europeia e inspirou artistas consagrados como Picasso, Dubuffet ou Modigliani, entre tantos outros. Hoje, a arte africana tem uma expressão muito mais próxima dos padrões estéticos do mundo ocidental, muito embora as suas raízes, a sua história, tenham uma natureza diferente. Esta diferença, que deveria ter sido considerada desde sempre um factor de enriquecimento estético para a cultura europeia, foi durante muito tempo ignorada, marginalizando a arte africana por sair dos padrões vigentes. Hoje o conceito de arte é amplo e os artistas africanos são reconhecidos e valorizados nos circuitos comerciais. No entanto, a escola não transmite esse reconhecimento e continua a desvalorizar a arte proveniente de culturas não europeias. A compreensão das características históricas e estéticas da arte africana, uma referência para os artistas europeus e para a história da arte europeia, conduz-nos ao seu reconhecimento e valorização, que julgamos fundamental transmitir aos alunos do ensino básico. A falta de referências pode conduzir a um comportamento menos ajustado e ao défice de elementos estruturantes, em detrimento do desenvolvimento de uma identidade pessoal e cultural mais integrada (Ogbu, 1982). Apercebemo-nos com frequência de que alguns problemas de adaptação por parte de determinados alunos de origem africana pode ter origem no não reconhecimento das suas próprias raízes, factor que dificulta a aceitação social de ambas as culturas. Se os alunos não encontram pontos de contacto entre a cultura em que estão inseridos e a sua, é provável que surjam situações de desconforto e de instabilidade que se transformem em indisciplina. O fosso entre as duas culturas acaba por ser motivo de um crescente desinteresse, devido à incompreensão e à intolerância de parte a parte. Assistimos a uma prática educatica a nível nacional em que existe um mundo economicamente dominante, que sabe proteger e disseminar a sua cultura, e um outro mundo que se limita quase a absorver influências e a aprender a ler a vida de forma alienada, e que acaba por não oferecer aos membros mais jovens as devidas condições para

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descobrirem quem são e quais os sentidos da sua existência e da dos outros, de forma a agirem pró-activamente sobre o que as rodeia (e.g. Santos, 2004). Assistimos igualmente a uma falta de preocupação com a inclusão de referências africanas nos curricula do ensino em Portugal, facto que abre caminho a uma “escola” diferente em casa com a família e que leva, muitas vezes, os alunos a juntarem-se a grupos de jovens do seu meio, com os quais se identificam em termos de valores e cultura, mesmo que esses valores sejam contrários aos valores dominantes (Fontoura & Bahia, 2003). O conhecimento visual dos alunos e a sua capacidade de expressão gráfica Um estudo efectuado em 2006 por Gomes, Lopes, Melo, Máximo e Ornelas

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procurou investigar o modo como os alunos analisam e interpretam referências artísticas europeias e africanas e o modo como se expressam graficamente. Paralelamente, analisou as fontes de acesso e as variáveis sócio-culturais que influenciam o conhecimento artístico, bem como a relação das preferências artísticas com a realidade individual. Mais concretamente, este estudo pretendeu verificar o conhecimento que alunos do 7º ano de escolaridade possuem sobre a pintura moderna e contemporânea, de origem africana e europeia, e foi operacionalizado tendo em conta o seguintes objectivos específicos: determinar até que ponto as variáveis sócio-culturais influenciam o conhecimento e o desempenho artístico; caracterizar o reconhecimento e a capacidade de análise de diferentes obras de pintura; verificar se os alunos distinguem a pintura moderna e contemporânea africana da europeia; analisar as fontes de acesso ao conhecimento da pintura moderna e contemporânea; relacionar análises e preferências artísticas com a realidade/meio artístico apresentado; analisar o eventual diálogo que as obras de pintura moderna e contemporânea africana e europeia podem suscitar. Para atingir estes objectivos, foi elaborado um questionário que permitisse verificar a situação de 185 alunos (provenientes de duas culturas diferentes: a europeia e a africana) no que se refere ao seu conhecimento e reconhecimento da arte de influência africana e à valorização intuitiva de determinadas dimensões artísticas. Os alunos questionados frequentavam três escolas diferentes do distrito de Lisboa. O questionário aplicado era constituído, maioritariamente, por questões fechadas, embora com recurso a algumas perguntas de resposta aberta, de maneira a respeitar a riqueza de pensamento dos inquiridos e de recolher material mais complexo (Ghiglione & Matalon, 1997). As questões colocadas direccionaram-se para objectivos específicos, designadamente: perceber o contexto socio-familiar em que os alunos se enquadram; aferir as suas capacidades de utilização da motricidade fina; compreender a sua relação com a arte através do conhecimento de artistas e obras artísticas; conhecer os resultados das suas experiências estéticas em matéria de gosto; verificar as suas preferências ao nível da utilização da cor; inferir quais as características que, na sua perspectiva, são valorizadoras

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O estudo em análise foi realizado por dois dos autores do presente artigo no âmbito das Actividades de Integração da Profissionalização em Serviço da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

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de uma obra de arte; compreender de que forma conseguem relacionar-se emotivamente com uma obra artística; testar a sensibilidade dos alunos para relacionarem as formas e as cores de uma obra com as influências culturais que lhes deram origem; observar semelhanças e diferenças na criatividade de alunos de ascendência portuguesa e alunos de ascendência africana. Os parâmetros fundamentais para a estruturação da análise das respostas dadas pelos alunos, diziam respeito a três itens: Cor (contrastes de claro-escuro, quente-frio, complementaridade e qualidade); Forma (relação forma-fundo, existência ou não de contorno, utilização dos elementos básicos - ponto, linha, plano -, volume e planos de visão); Significado figurativo (figuração e abstracção). Resultados do estudo em análise Em termos muitos gerais constatou-se que os alunos africanos ou portugueses de origem africana dão mais respostas em branco do que os seus colegas, possivelmente pela barreira linguística que os impede de compreenderem o que é solicitado ou talvez por insegurança. No entanto, os que respondem dão respostas muito semelhantes às dos seus colegas portugueses de origem europeia, havendo poucas diferenças estatisticamente significativas. Essas diferenças agruparam-se em três grandes parâmetros: o acesso à cultura, as preferências artísticas e a expressão criativa e artística. Relativamente ao acesso a referenciais culturais artísticos, os alunos portugueses de origem europeia visitam mais museus de arte com a família do que os alunos africanos ou portugueses de origem africana. Estes últimos visitam museus através da escola. Os alunos portugueses de origem europeia conhecem mais pintores mediáticos e as suas obras através da televisão ou dos livros, enquanto que os seus colegas de origem africana conhecem menos mas através da escola, pela pessoa do professor. Quanto às preferências artísticas, a cor que todos os alunos preferem é a azul. No entanto, no que concerne as outras cores, os alunos de origem africana preferem um leque mais vasto de cores do que os seus colegas de origem europeia que reduzem a sua escolha apenas ao encarnado. Em relação à preferência por uma de três obras de pintura africana apresentadas a preto e branco, os alunos de origem europeia identificam-se mais com a obra que representa uma cena de dança e música, enquanto que os seus colegas de origem africana mostram apreciar mais a obra que representa a maternidade, assunto passível de ser relacionado com qualquer cultura. Talvez se possa depreender destas respostas que os alunos de origem europeia associam a cultura africana apenas à música e à dança, enquanto que os outros parecem associá-la a outros temas, ou seja, parecem reparar em algo mais do que uma simples associação imediata de uma cultura a um única referencial cultural. Quando solicitados a escolherem cores para colorirem essas obras, a escolha de ambos os grupos incide sobre o castanho e o branco não surgindo diferenças, a não ser uma ligeira incidência numa escolha mais frequente do preto por parte dos alunos de origem africana e do azul por parte dos seus colegas de origem europeia. Os alunos portugueses de origem europeia preferem a arte abstracta à figurativa enquanto que os seus colegas

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preferem a figurativa. Quando solicitados a escolherem uma obra de entre um conjunto de nove pinturas de autores africanos e europeus, embora de autoria oculta, os alunos africanos ou portugueses de origem africana demonstram uma clara preferência pela obra de tonalidades mais quentes e mais figurativa do que a obra abstracta de cores mais frias, preferida pelos alunos portugueses de origem europeia, sendo esta preferência pela arte abstracta reflectida por este grupo noutras situações de escolha. Esta diferença parece ser resultado do desconhecimento da arte em geral no grupo de alunos africanos ou portugueses de origem africana, factor que se reflecte nas apreciações estéticas, uma vez que o gosto pela arte abstracta pressupõe um certo conhecimento e uma relação mais ou menos próxima com obras de arte. Assim, os alunos menos expostos a referenciais artísticos podem ter tido menos oportunidades para “educar o olhar” de modo a retirar informação, apreciar e fruir de uma forma de expressão artística. Outra explicação possível para este dado é o facto de os alunos ainda não terem acedido plenamente a um nível de desenvolvimento cognitivo que lhes permite a abstracção. Quando questionados sobre eventuais alterações a realizar nas obras preteridas, a maioria das respostas dos alunos de origem europeia incidia sobre a alteração total (forma, cores, pormenores...), enquanto que os de origem africana concretizavam mais as alterações. Em termos da expressão criativa e artística também não se encontraram diferenças acentuadas entre os grupos estudados. Mais especificamente, no que concerne à originalidade dos títulos atribuídos às obras, existe uma tendência para os alunos africanos ou portugueses de origem africana, quando respondem, darem respostas ligeiramente mais originais do que os seus colegas portugueses de origem europeia. Ambos os grupos revelam maior criatividade na atribuição de títulos à obra mais figurativa possivelmente por ser mais simples enquadrar uma imagem mais figurativa num determinado contexto. O facto de os alunos nestas idades ainda não terem acedido ao pensamento abstracto, também pode ser um

motivo

pelo

qual

conseguem

ser

mais

criativos

em

relação

a

imagens

“realistas”/concretas. Quanto às respostas a um teste estandardizado de criatividade – Teste 3

3 do TTCT –, apenas se encontraram diferenças significativas em termos de originalidade a favor dos alunos portugueses de origem europeia, não se encontrando diferenças em termos de fluência, elaboração ou flexibilidade, que constituem dimensões relevantes da caracterização da criatividade. Estes dados indiciam que os alunos de origem africana reproduzem os padrões sociais vigentes, arriscando menos nas respostas. Um outro dado relevante deste estudo foi o facto de os alunos de origem europeia terem uma maior incidência de respostas inadequadas e como tal não cotadas, o que reforça a ideia anterior: os alunos de origem africana interiorizaram e reproduzem os padrões dominantes da cultura que os absorveu e por isso não fogem ao que é adequado. Relativamente à expressão gráfica das pessoas presentes no espaço da sala de aula, também não se verificaram 3

O Torrance Test of Creative Thinking (TTCT) é, de acordo com a maior parte dos estudiosos, o indicador credível de criatividade que ao longo de quatro décadas tem servido a investigação e intervenção em todo o mundo por apresentar os estudos de validação mais consistentes.

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diferenças em termos do número de figuras registadas, da representação parcial da figura humana, da pouca riqueza em termos de pormenorização e da qualidade global, indiciando, mais uma vez que o contexto sócio-cultural parece não afectar o desempenho artístico. Ainda em termos de expressão, numa questão que pedia para os alunos atribuírem sentimentos às obras apresentadas, as respostas de ambos os grupos aproximam-se no que respeita aos sentimentos extremos, surgindo apenas algumas diferenças ténues na atribuição dos sentimentos menos efusivos. Em suma, não foram encontradas muitas diferenças entre o grupo de alunos de origem europeia e o grupo de alunos de origem africana. No entanto, assinala-se que este último grupo parece não ter tantas oportunidades para visitar museus, ou frequentar exposições e outras manifestações artísticas como os seus colegas de origem europeia. Consequentemente, estes alunos acabam por ficar penalizados no acesso à cultura visual. Um outro dado interessante foi a presença de algumas diferenças ou tendências para uma maior interiorização de estereótipos culturais por parte dos alunos africanos ou portugueses de origem africana. Estes resultados indiciam que a falta de referenciais culturais artísticos africanos poderão penalizar os alunos de origem africana, na medida em que, por não terem modelos de referência, não os podem reproduzir e consequentemente serem originais no sentido de produzir manifestações criativas. Por outro lado, estes alunos parecem ter necessidade de reproduzir estereótipos da cultura europeia em vez de referências da sua cultura de origem, perpetuando a ideia assimilacionista da abdicação do seu património cultural e artístico, dificultando a progressão em termos dos estádios de construção da identidade cultural (Banks, 1994). Aspectos finais O estudo não verificou diferenças significativas entre alunos portugueses de origem europeia e africana. Apesar dos diversos meios de origem, das diferentes atitudes face à vida e dos variados comportamentos face ao saber, quando se lhes avalia algo tão subjectivo ou tão provido de saber imediato, como os gostos considerados inatos ou a capacidade de exprimir o que se pensa em dado momento, tudo é muito idêntico. Mais determinante parece ser a fase do desenvolvimento em que se "imitam" ou "modelam" os gostos porque se quer pertencer a determinado grupo ou à cultura "dominante". O papel da escola é fundamental no sentido de proporcionar novas referências para a construção da identidade pessoal e cultural. Muitas das produções criativas recentes resultam da interiorização de referências culturais distintas das que dominaram o século passado. Numa fase de procura de novas referências e novas formas de linguagem, quer pelo prazer em si da procura, quer por se observar uma falta de novos caminhos e de novas referências, quer pela necessidade de transformação, muitos artistas viraram as suas atenções para uma cultura que era de alguma forma bastante diversificada e acima de tudo diferente nas suas abordagens da vida em si e dos costumes. Deste modo, com novo material é possível e aliciante descobrir e ver os

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resultados, sendo natural que se consigam atingir novos patamares de entendimento da arte, criar novas abordagens e até novas regras. No entanto, essa capacidade de transformação criativa não é um começo de algo novo, mas uma continuação do que está para trás, embora esta oportunidade pareça estar vedada a determinados cidadãos que não interiorizaram as ferramentas culturais necessárias para reproduzirem a sua cultura e produzirem novos objectos. Cada vez mais é necessário produzir modos originais de lidar com as mudanças a todos os níveis. No entanto, assistimos a uma escassez de novas soluções para os problemas que tais mudanças acarretam, quer em termos de novas produções, quer em termos de aperfeiçoamento do que já existe, pois a leitura e a compreensão da sua adequação pode ser um motor de transformação. A História ensinou-nos, porém, que alguns povos da Antiguidade, numa tentativa de glorificar a sua cultura, apagaram por completo a existência de culturas anteriores, sem se aperceberem que poderiam tirar partido do que já existia, e evoluir mais, do que iniciar o processo todo de novo, e talvez até cair em erros desnecessários. Esperemos que a não inclusão de referências da cultura artística africana não seja um sinal de que ignoramos esse legado tão forte. Questões levantadas pela presente reflexão Estarão os alunos preparados, qualquer que seja a sua naturalidade ou ascendência, para receberem e valorizarem a pintura de influência africana? Ou será que os alunos se encontram já de tal forma moldados pela cultura europeia e sejam incapazes de apreender diferentes estímulos visuais, inviabilizando o diálogo com a obra de arte proveniente de outras culturas, nomeadamente a arte africana? A inclusão dessas referências no curriculum de Educação Visual contribuiria, por um lado, para o aumento do sucesso escolar em ambos os grupos, e por outro, para uma maior amplitude de conhecimentos que se reflectiria num alargamento dos horizontes culturais dos alunos? Referências bibliográficas Adler, A. (1927, 1946). Understanding Human Nature. New York: Greenberg. Banks, J. A. (1994). An introduction to multicultural education. Boston:. Allyn and Bacon Benard, B. (1991, August). Fostering Resiliency in Kids: Protective Factors in the Family,School and Community. Portland: Northwest Regional Educational Laboratory. Brassai, G. (1964). Conversations avec Picasso. Paris: Gallimard Bronfenbrenner, U. (1979). The ecology of human development. Harvard: Harvard Press. Eckhaus, P. (1996). Communication: its impact on self-esteem and underachievement in the gifted child. Proceedings from the 1996 National Conference of the Australian Association for the Education of the Gifted and Talented, Adelaide, South Australia. Accessed 3 December 2000 www.nexus.edu.au/TeachStud/gat/eckhaus1.htm. Fontoura, M. & Bahia, S. (2003). Uns e outros: da educação multicultural à construção da cidadania. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional.

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Ghiglione, R. & Matalon, B. (1997). O inquérito, teoria e prática (3ª ed.). Oeiras: Celta Editora. (versão original, 1977) Gomes, N., Lopes, R., Melo, A., Máximo, R., & Ornelas, M. (2006). África em Portugal; a necessidade de inclusão de referências culturais africanas no Curriculum de Educação Visual do 3º Ciclo. Lisboa: Universidade de Lisboa. Masten, A.S., Best, K.M., & Garmezy, N. (1990) Resilience and development: Contributions from the study of children who overcome adversity. Development and Psychopathology, 2, 425-444. Meece, J (2002). Child and Adolescent Development for Educators. New York. NY: McGrawHill. Ogbu, J. U. (1982). Cultural discontinuities and schooling. Anthropology and Education Quarterly 13, 290-307. Riehl, C. (2000). The principal's role in creating inclusive schools for diverse students: A review of normative, empirical, and critical literature on the practice of educational administration. Review of Educational Research, 70(1), 55-82 Ryan, R. M. & Deci, E.L. (2000). Self-determination theory and the facilitation of intrinsic motivation, social development and well-being. American Psychologist, 55, 68-78. Santos, I. (2004). Quem habita os alunos? A socialização de crianças de origem africana. Lisboa: Educa. Steele, C. M., & Aronson, J. (1995). Stereotype threat and the intellectual test performance of African-Americans. Journal of Personality and Social Psychology, 69, 797-811. Style, E. (1988). Listening for All Voices: Gender Balancing the School Curriculum. NJ: Oak Knoll

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