Agentes sociais e organização político-institucional do poder concelhio português na Idade Média: o caso da Lisboa do século XIII

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IX Semana de História Política

Política, Conflitos e Identidades na Modernidade

VI Seminário Nacional de História Política, Cultura e Sociedade

ISSN 2175-831X

2014

Anais 2014 Programa de Pós-Graduação em História da UERJ

ISSN 2175-831X

IX Semana de História Política Política, Conflitos e Identidades na Modernidade

VI Seminário Nacional de História Política, Cultura e Sociedade

ANAIS

Rio de Janeiro 2014

Semana de História Política | Seminário Nacional de História: política, cultura e sociedade (x:2014:Rio de Janeiro) Anais/IX Semana de História Política/VI Seminário Nacional de História: Cultura & Sociedade; organização: Eduardo Nunes Alvares Pavão, Layli Oliveira Rosado, Mariana Albuquerque Gomes, Oscar José de Paula Neto e Rafael Cupello Peixoto – Rio de Janeiro: UERJ, PPGH, 2014. 4083p. Texto em português ISSN – 2175-831X 1. História Política – Congresso. 2. Cultura – Sociedade. 3.Relações Internacionais.

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitora: Maria Christina Paixão Maioli Sub-reitora de Graduação – SR1: Lená Medeiros de Menezes Sub-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa - SR2: Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron Sub-reitora de Extensão e Cultura - SR3: Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do Centro de Ciências Sociais: Domenico Mandarino Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humans (IFCH): José Augusto de Souza Rodrigues

Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) Coordenadora geral: Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira Coordenadora adjunta: Marilene Rosa Nogueira da Silva Coordenadora do Doutorado: Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves Coordenadora do Mestrado: Maria Regina Candido

IX Semana de História Política Política, Conflitos e Identidades na Modernidade

VI Seminário Nacional de História Política, Cultura e Sociedade

COMISSÃO ORGANIZADORA Eduardo Nunes Alvares Pavão, Layli Oliveira Rosado, Mariana Albuquerque Gomes, Oscar José de Paula Neto e Rafael Cupello Peixoto.

REALIZAÇÃO Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PPGH/UERJ

APOIO CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro IFCH - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ SR-2 - Sub-Reitoria de Pós Graduação REDES - Redes de Poder e Relações Culturais NUCLEAS - Núcleo de Estudos das Américas NEA - Núcleo de Estudos da Antiguidade LEDDES - Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais NUBHES - Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividade NIBRAHAC - Núcleo de Identidade Brasileira e Historiografia Contemporânea LABIMI - Laboratório de Estudos de Imigração IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro Revista de História da Biblioteca Nacional Faculdade de Comunicação Social - UERJ Instituto de Letras da UERJ

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Agentes sociais e organização político-institucional do poder concelhio português na Idade Média: o caso da Lisboa do século XIII Bruno Marconi da Costa1 Resumo: O presente artigo objetiva analisar os agentes sociais que participaram da organização da assembleia concelhia de Lisboa no decorrer do século XIII. Identificamos uma pluralização do concilium na referida centúria que, durante os seus períodos formativos nos séculos anteriores, era monopolizado pelos "homens bons": cavaleiros-vilãos, donos de terra e grandes mercadores. Analisaremos a complexificação dessa instituição a partir de dois casos: uma assembleia magna de 1285 e uma carta régia de 1298, que marcaram a presença de mesteirais nas reuniões do concelho. Palavras chave: Lisboa, concelho, Idade Média.

Abstract: The current paper aims to analyze the social agents who participated in the assemblies of the Lisbon council during the 13th century. It is possible to identify a pluralization of the concilium during that century, opposing the monopolization we observe in its formative times - in the 11th and 12th centuries, when it was dominated by the groups called "homens bons" and "cavaleiros-vilãos", landowners and great merchants. We seek to analyze the complexification of this institution through the study of two cases: a great assembly in 1285 and a king's letter from 1298 - that show the presence of craftsmen at the council reunions. Keywords: Lisbon, council, Middle Ages.

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Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ), orientado pelo Prof. Dr. Álvaro Bragança Júnior e Profª Drª Gracilda Alves. Pesquisador do Grupo de Estudos Medievais Portugueses (GEMPO) e Bolsista CAPES. [email protected]

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Introdução O presente artigo objetiva analisar o complexo conjunto de relações sociais que constituía o aparato concelhio de Lisboa durante o século XIII. Foi nesse período que a cidade se destacou frente ao conjunto do reino de Portugal como a "capital", com um multifacetado conjunto de agentes sociais convivendo e disputando os mesmos espaços. Intentamos observar, dentro do processo histórico, quais grupos participavam, de forma dominante ou não, nas diversas instâncias institucionais que expressam o poder local em solo olisiponense de forma legitimada pelos habitantes e poder régio. Em um primeiro momento, trataremos de nossa definição de poder concelhio, indicando como esta instituição se construiu na Península Ibérica e, especificamente, em Portugal. A seguir, elaboraremos uma contextualização socio-econômica da cidade de Lisboa no século XIII, apontando as principais transformações ocorridas após a chamada "virada dos anos 1250". Por fim, analisaremos os grupos sociais que lançaram mão dessa instituição como estratégia política durante o referido recorte temporal, com destaque para a atuação dos cavaleiros-vilãos e dos mesteirais. Os concelhos ibéricos: um ponto de partida Diversos autores da historiografia portuguesa medievista dedicaram-se a debater a natureza da instituição concelhia medieval e sua importância na constituição do que viria a ser o Portugal moderno. Desde, pelo menos, Alexandre Herculano e sua tese municipalista da origem românica dos concelhos portugueses, o debate sobre as origens concelhias manteve-se vivo durante todo o decorrer dos séculos XIX e XX. Uma quantidade expressiva de autores debruçaram-se no assunto, entre os quais destacamos, além de Herculano, Henrique de Gama Barros, Torquato de Sousa Soares, Paulo Merêa, Antonio Borges Coelho, José Mattoso, Humberto Baquero Moreno e Maria Helena da Cruz Coelho. Partimos nossa análise definindo concelho como uma instituição política do terceiro estado (os laboratore), a qual sua primeira composição remete-se ao contexto de Reconquista. Os concelhos da região da Estremadura portuguesa e castelhana organizaram-se a partir do vazio político causado pelo recuo cristão após a conquista muçulmana, devido à fuga de bispos e nobres da região para as Astúrias.1 Assim, os concelhos formados nessas terras de domínio islâmico são fruto da necessidade

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daquelas comunidades de se organizar em conjunto para administrar suas terras comuns, acesso a reservas de água, gados e pastagens. Com o avançar do processo de Reconquista dos séculos X a XII, houve o encontro do Norte senhorial-cristão e o Sul urbano-islâmico, e os nobres, ao lado do rei, avançavam sobre terras nas quais a tradição de administração local já existia. A presença do poder senhorial nessas comunidades era, então, apenas ocasional, e aquele era regido por uma relação de reciprocidade: a população ali estabelecida garantia uma proteção contra razias muçulmanas e, em compensação, beneficiava-se de um estatuto jurídico distinto das relações dominantes feudais.2 Os novos senhores, assim, negociavam com as populações locais, e viam-se obrigados a reconhecer essa forma autônoma de governo através da outorga de cartas de foral. De acordo com Antonio Borges Coelho, cartas de foral são documentos complexos que desenvolvem o que designamos hoje como direito constitucional, fiscal, administrativo, civil, penal e processual.3 Doravante, as cartas de foral buscavam normatizar todo o cotidiano político, social e econômico daquelas comunidades. Envolviam-se em um projeto político dos poderes régio e senhoriais de fixar populações em áreas de fronteira, de maneira a garantir a proteção de áreas que perigavam receber avanços militares muçulmanos. Os concelhos instituíam-se na esfera de relações sociais de força entre populações locais, muitas vezes de origem muçulmana, e grupos dominantes da aristocracia ibérica. Com o decorrer dos séculos XI e XII, os concelhos complexificaram-se, criando diversos cargos funcionais para a organização e manutenção da ordem interna daquelas comunidades. As cartas de foral legitimavam esses funcionários concelhios, muitas vezes precisando suas formas de atuação. A origem muçulmana é facilmente identificável quando atentamos à própria terminologia de alguns desses cargos: o alcaide representava o rei ou o senhor naquela região; os alvazis eram os juízes, que julgavam e puniam os que infringiam os costumes; os almotacés encarregavam-se da "polícia econômica", regulavam os pesos e medidas daquela região. Além dos cargos acima referidos, outra instância constitutiva dos concelhos medievais portugueses era a assembleia de vizinhos - chamada de concilium. Definia-se como uma reunião dos vizinhos, ocorrida semanalmente e em espaço público, onde se discutia e se deliberava sobre o governo daquela população. É importante salientar que

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essa instância não poderia ser definida enquanto uma democracia, ao contrário do que teóricos do princípio do liberalismo costumavam considerar. As clivagens econômicas e sociais definiam quem participava e quem era marginalizado do processo decisório: em territórios mais urbanizados e complexos, como era o caso de Lisboa, o elitismo era maior do que em sociedades rurais mais simples.4 Mesmo assim, os concilia ainda eram um espaço no qual interesses gerais poderiam superar projetos particulares de alguns grupos poderosos. É sobre a composição dessas assembleias de vizinhos que nos debruçaremos no presente artigo. Para tanto, precisamos traçar um perfil geral do processo histórico de que a cidade de Lisboa foi palco no decorrer do século XIII. A cidade de Lisboa no século XIII: de praça militar a entreposto comercial À época do cerco a Al-Lishbuna em 1147, esta poderia ser definida como uma praça militar. Possuía uma função estratégica na linha do Tejo, e portanto servia como um posto avançado de tropas tanto para os muçulmanos quanto para os cristãos após o cerco. Tinha pequenas proporções para a época, quando comparada a outras cidades do Ocidente Medieval: 5000 habitantes distribuídos por 20ha de terra.5 Sua economia restringia-se à produção de gêneros agrícolas em seu "cinturão verde", que sustentava as elites muçulmanas que viviam na parte interior da chamada "cerca moura". Um cenário substancialmente diferente pode ser observado ao fim da centúria seguinte. Sua população praticamente triplicou, chegando a aproximadamente 14.000 pessoas. O espaço ocupado pela cidade também se expandiu para 60ha, inclusive levando à construção de uma nova muralha para proteção da área da ribeira. 6 As atividades econômicas foram dinamizadas, com o binômio urbano medieval do comércio-artesanato crescendo aceleradamente ao lado das já tradicionais atividades agrícolas. Tal crescimento ocorreu devido ao que Gerard Pradalié chamou de "viragem dos anos 1250".7 O autor identifica, para o caso de Lisboa, que a conquista de Alcácer do Sal em 1217 e, mais importante, o fim da Reconquista Portuguesa em 1249, levaram a um ambiente de paz na cidade. Esse clima propiciou uma transformação quantitativa e qualitativa no âmbito econômico, aumentando o número de bairros através do incentivo

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dado por D. Afonso III (1248-1279) à expansão das atividades tipicamente burguesas: o comércio e o artesanato. Com esse crescimento, Lisboa passou a se destacar no contexto do reino aos olhares do monarca. Tornou-se sede da chancelaria régia, que antes se fixava em Coimbra, o que pode ser considerada a promoção da cidade ao status de "capital". O bispado cresceu de importância, chegando próximo à autoridade do arcebispado de Braga no final do século. D. Dinis fundou em terras olisiponenses a primeira universidade de Portugal, antes desta ser transferida para Coimbra. Lisboa tornou-se entreposto comercial importante tanto para cidades do Mediterrâneo quanto do Norte da Europa. Enfim, a cidade estava cada vez mais evidente no contexto português, com atuação direta do poder régio sobre seu espaço constitutivo. Destacamos aqui a política econômica do poder régio na cidade, que D. Afonso III inaugurou e foi continuada por D. Dinis: a compra expressiva de tendas. Com o objetivo de diversificar a renda da coroa, ambos os monarcas efetivaram uma política de compra e aforamento de unidades produtivas e de comércio na cidade, tendo seu auge entre os anos de 1276 e 1285. De acordo com um rol de propriedades de 1299 8 e um levantamento feito por Carlos Guardado da Silva da documentação da chancelaria9, essa política concentrou-se nas freguesias de São Nicolau, São Julião e Santa Maria Madalena, na "Cidade Baixa" de Lisboa: precisamente o centro econômico dinamizador que se desenvolveu durante o decorrer do século XIII, e onde concentravam-se as tendas pertencentes aos agentes sociais que mais ganharam espaço no concelho de Lisboa durante o mesmo período. Como veremos a seguir, foi exatamente o grupo dos produtores urbanos que galgou posições institucionais na assembleia do concelho lisboeta durante o decorrer do século XIII. Os agentes sociais de Lisboa e o poder concelhio: uma relação de forças? Lisboa foi conquistada dos muçulmanos pelos exércitos cruzados cristãos no ano de 1147. Todavia, apenas em 1179 sua carta de foral foi oficialmente outorgada por D. Afonso Henriques, o novo senhor da cidade. Na ocasião, foi concedida simultaneamente uma carta de foral a outras duas proeminentes cidades da região central do reino: Santarém e Coimbra. Torquato de Sousa Soares, em sua tipologia dos concelhos

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medievais portugueses a partir de suas cartas de foral, fez uma descrição geral do teor do documento, vinculando-o ao contexto socio-econômico e militar do reino no final do século XII: "Foi este regime, cujo principal objetivo parece ter sido favorecer a cavalaria-vilã, que a investida dos Almóadas punha novamente em relevo, sucessivamente adoptado por várias povoações entremenhas, alentejanas e algarvias".10 Parte também dessa perspectiva Marcelo Caetano, ao contrastar a carta outorgada a Lisboa em 1179 com o foral de Coimbra de 1111 (conquistado a partir de uma revolta popular moçárabe): "o espírito de um e de outro é diferente: em 1111 prevalecem os interesses populares, em 1179 estamos perante uma concessão régia que não abdica das prerrogativas e vantagens essenciais e que favorece sobretudo as classes privilegiadas".11 O foral fazia parte da estratégia do poder régio de defesa territorial dos limites fronteiriços do reino, visto que Lisboa, como observamos, era vista como uma praça militar avançada. Nesse sentido, partindo do processo de constituição dos concelhos medievais portugueses apresentado anteriormente, identificamos que o principal agente social envolvido na negociação com D. Afonso Henriques eram os grupos dominantes socioeconomicamente vinculados a uma hierarquia político-militar, ou seja, os cavaleirosvilãos. Estes "homens bons" decidiam os rumos do governo concelhio, elegendo anualmente os magistrados nas assembleias de vizinhos e ocupando das questões que diziam respeito à cidade e seus moradores.12 O cavaleiro-vilão era o membro do terceiro estado que mais se aproximava da nobreza e, por vezes, formava-se como um grupo social intermediário entre os bellatores (a nobreza guerreira) e os laboratores. Diferenciava-se do cavaleiro nobre principalmente pelo fato de não possuir uma família tradicional e aristocrática. Sua forma de ascensão à cavalaria era a partir de suas posses, geralmente manifestada em grandes e médias propriedades de terra na periferia dos concelhos, assim como, no final do século XIII, pela sua atuação em grandes negócios mercantis para o exterior. Mesmo assim, no âmbito da cultura e dos costumes, buscava refletir seus valores nos da nobreza tradicional, reproduzindo-os em uma escala própria, sem, porém, abandonar os bens que o sustentava economicamente. Durante todo o período medieval, esses cavaleiros dominaram a política local, constituindo-se como uma verdadeira elite que ditava os rumos do governo concelhio.

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Contudo, com a complexificação social advinda da "viragem dos anos 1250", novos grupos sociais ascenderam economica e politicamente, levando a uma disputa interna pelas instâncias do concelho - principalmente na esfera pública da assembleia dos vizinhos. Destacam-se, entre esses grupos sociais, os mesteirais. De acordo com A. H. Oliveira Marques, a terminologia "mesteiral" referia-se a um conjunto de trabalhadores significativamente heterogêneo. A denominação medieval incluía trabalhadores de ofícios mecânicos de artesanato ou de indústria, e também alguns pequenos comerciantes, alguns trabalhadores rurais como os almoinheiros e pescadores.13 Dentro dessa extensa categoria, algumas experiências sociais comuns levavam a agências sociais em conjunto: viver no ambiente urbano, a organização similar do trabalho e da produção e a criação de instituições de solidariedade - as confrarias. Essas experiências conferiam alguns pontos de unidade às diversas especialidades profissionais que faziam parte dessa categoria. No final do século XII, os grupos políticos envolvidos na escrita do foral da cidade não regulamentaram a produção mesteiral, com exceção de três atividades: ferreiros, sapateiros e peliteiros. ferreyro, ou çapateyro, ou piliteyro, que em lixbõa casa ouuer, e em ella laurar, nom dê dela nenhuum foro. E quem mouro ferreyro ou çapateyro ouuer, e en sa casa laurar, nom dê por el foro. Outrossi aqueles que meesteyraaes fferreyros ou çapateyros forem, e per este offiçio uiuerem, e casas nom ouuerem, venham aas minhas tendas, e façam a mim meu foro.14

A importância dada a essas três profissões é coerente com a percepção de Lisboa como uma praça militar à época da outorga do foral, como vimos anteriormente. Elas são fundamentais para armar e proteger cavaleiros-vilãos e peões da cidade, além de garantir a confecção de ferraduras e selas para montarias que seriam utilizadas em batalhas. Era estratégico tanto para os grupos dominantes quanto para o projeto político do poder régio que essas profissões fossem incentivadas a se instalar em seus muros. Após a passagem para o século XIII, os três ofícios vislumbrados no foral continuavam mantendo sua importância na produção artesanal de Lisboa. Ferreiros, por exemplo, possuíam uma confraria na cidade, datada pelo menos de 1229, que pode ser identificada em um documento que consiste na venda, por parte dessa organização, de uma casa na freguesia de São Nicolau, contando com o testemunho de dez ferreiros.15 Com o passar desse século, como vimos, isso transformou-se aceleradamente. A política de compras efetuada por D. Afonso III e D. Dinis expressa essa transformação

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no perfil e na percepção do poder régio em relação aos mesteirais lisboetas. Em estudo recente, Carlos Guardado da Silva analisou, entre outras características, os contratantes que vendiam suas tendas ou aforavam seus rendimentos aos monarcas. Figuravam majoritariamente nomes e atividades vinculados aos mesteirais, destacando-se, em ordem quantitativa, os sapateiros, seguidos de alfaiates, cuteleiros, alfagemes, carpinteiros, correeiros, carniceiros, hasteeiros, peliteiros, tanoeiros, ferreiros, fiveleiros, trombeiros e adegueiros.16 A complexificação do poder econômico interrelacionava-se com o aumento do prestígio político, o que garantia aos mesteirais uma crescente participação nas assembleias de vizinhos do concelho, dominadas tradicionalmente por cavaleiros-vilãos. De acordo com Gerard Pradalié, a primeira menção a um mesteiral como "homem bom", ou seja, participante da assembleia de vizinhos, fazia referência ao alfaiate Vicente Pelagio, no ano de 1244.17 Como veremos a seguir, a representatividade dos artesãos somente cresceu nas décadas seguintes, até ter sua participação proibida por D. Dinis em 1298. Um evento exemplar foi a assembleia magna ocorrida em 7 de agosto de 1285 no adro da Sé, organizada pelo concelho da cidade e que contou com a participação de D. Dinis. Após divulgação feita por pregoeiros e porteiros a mando do alcaide e dos alvazis da cidade, estavam presentes, nomeados pelo tabelião Ioanne Mendes, além dos donos dos cargos acima citados, oito cavaleiros, cinco mercadores, dezesseis peliteiros, dezesseis alfaiates, dez pescadores. E constavam entre os participantes "outros muitos caualeiros, escudeiros, crerigos, cidadãos, mercadores, alfayates, peliteyros, çapateiros, correiros, & ferreiros, que forom chamados, & juntados a esta cousa".18 A pauta dessa ampla e plural reunião de vizinhos com a autoridade maior do reino dizia respeito a uma série de agravos que D. Afonso III, pai de D. Dinis, havia feito à cidade. Lourenço Escola, o alcaide da cidade, entregou um documento produzido pela assembleia de vizinhos do concelho, envolvendo a cobrança indevida de impostos por parte dos oficiais régios, a intervenção régia sobre a justiça ministrada pelos alvazis e alcaide da cidade e a apropriação de terrenos comunais pelo rei. Marcelo Caetano considera que Ioanne Mendes, o tabelião concelhio encarregado de registrar o acontecimento, teria dado ênfase à presença dos mesteirais devido ao seu caráter "insólito".19 Já Miguel Gomes Martins apresenta-nos uma

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diferente interpretação, afirmando que a evidência depositada nessa categoria social diria respeito a uma necessidade de sublinhar a pluralidade dos agentes envolvidos naquelas questões, apresentando a legitimidade e a importância que aquele evento tinha para a vida concelhia.20 Aproximamo-nos mais desta posição, e acrescentamos a hipótese que os mesteirais estavam presentes e foram evidenciados pelo documento devido ao fato desses agentes sociais serem os protagonistas do conteúdo da reunião, o qual atingia diretamente seu trabalho cotidiano. A participação de múltiplos agentes sociais de origens socio-econômicas distintas continuou até os últimos anos do referido século. As assembleias de vizinhos, porém, não levavam sempre ao consenso entre os habitantes de Lisboa. Uma carta de D. Dinis, datada do ano de 1298 e endereçada às autoridades do concelho (alcaide e alvazis) discorre sobre essa relação conflituosa que despontava nas reuniões periódicas. O referido documento régio versava sobre a forma de pagamento que os cavaleiros e peões lisboetas deveriam receber, recorrentes a uma guerra contra Castela ocorrida em 1295. Essa guerra, que teve ampla participação de hostes concelhias convocadas por D. Dinis, principalmente de Santarém e Lisboa, resultou em acordos políticos entre Castela e Portugal, delimitando as fronteiras com o Tratado de Alcañizes de 1297. Após voltarem a Lisboa, os peões (formados principalmente por mesteirais e pequenos produtores rurais) e cavaleiros-vilãos (grandes e médios proprietários e mercadores) reuniram-se no concelho e, de acordo com a própria carta enviada por D. Dinis, houve dissenso sobre a forma de pagamento. Esse mesmo documento mostra-nos que a assembleia de vizinhos não era monopolizada pelos homens bons, até aquele dado momento: já participavam do concilium "os homees boos da vila" e "doos homees boons de cada mester"21, ou seja, que cavaleiros e representantes de mestres compartilhavam o mesmo espaço político de governo urbano. A polêmica dividia os cavaleiros e os peões: àqueles, interessava o pagamento por status socio-militar, e estes preferiam "às valias", ou seja, por renda. D. Dinis, atentando ao fato desse conflito não aparentar resolução a curto prazo, interfere duplamente na autonomia do concelho. Primeiro, delibera sobre o conteúdo da questão específico: "tenho per bem que o cavaleyro pague como cavaleyro e o peon como peon".22

Assim,

D.

Dinis

colocava-se

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ao

lado

dos

grupos

dominantes

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socioeconomicamente, reforçando a hierarquia militar envolvida na divisão social formal da cidade. A segunda intervenção diz respeito à própria organização da assembleia concelhia, sobre a qual D. Dinis interfere em prol de uma oligarquização. Concluindo que as contendas surgiam devido ao fato de todos quererem ser chamados, o monarca decide que apenas " o alcayde e os alvazys com gran peça dos homees boons da vila que ajan acordo en Conselho sobre todolos feytos que na vila naçeren em tal guisa que seja o serviço de Deos e ao meu e a prol da terra"23, excluindo os representantes mesteirais da participação institucional política. No decorrer do século XIV, sua presença no concelho dar-se-ia apenas de forma esporádica, e a oligarquização da instância firmouse a partir da criação da Câmara dos Vereadores. Considerações finais Diferentemente do século XII, as mudanças socioeconômicas e políticas do século XIII levaram a uma pluralização da instituição concelhia em Lisboa. Junto aos tradicionais cavaleiros "homens bons", representantes de mestres ganharam crescente agência sobre o poder local. Assim, podemos considerar que nas últimas décadas do século XIII o concelho não era dominado por um grupo específico, o que levava a uma tensão e conflitos políticos derivados de interesses distintos na cidade. O resultado foi a oligarquização do aparato institucional concelhio por parte do poder régio, que apenas cresceu durante o século XIV. Alijados da participação política, grupos de mesteirais participaram apenas de algumas atividades concelhias, documentalmente referidas aos anos de 1304, 1333, 1336, 1352, 1355 e 1364, sem reverter tal participação em nenhum peso político significativo.24 As tensões sociais, porém, não deixaram de existir devido ao fato dos mesteirais não possuírem mais representatividade substantiva na assembleia dos vizinhos ou na Câmara dos Vereadores. Os conflitos continuaram, principalmente devido ao contexto de Crise do século XIV e os mesteirais tiveram participação ativa nas revoltas que garantiriam a independência de Portugal frente a Castela, durante a Crise Dinástica de Avis. Entre suas reivindicações ao Mestre de Avis, encontrava-se a garantia da participação de dois representantes de cada mester no concelho - o que levou à criação da "Casa dos Vinte e Quatro". Sem a pretensão de uma análise conclusiva sobre o tema,

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podemos inferir que essa participação expressiva no movimento de 1383 remonta a uma experiência social comum que esses agentes sociais tiveram ao participar do aparato concelhio lisboeta, nos últimas décadas do Duzentos.

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COELHO, Maria Helena da Cruz et MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio - das origens às cortes constituintes. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986. p. 2. 2 ASTARITA, Carlos. "El Estado Feudal." In: Del Feudalismo al Capitalismo: Cambio social y político en Castilla y Europa Occidental, 1250-1520. PUV: Valencia, 2005. p. 52 3 COELHO, António Borges. Comunas ou Concelhos. Lisboa: Caminho, 1986. p. 159. 4 COELHO, Maria Helena et MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio... p. 6. 5 OLIVEIRA MARQUES, A. H. "Lisboa Medieval: uma visão de conjunto." In: Novos Ensaios de História Medieval Portuguesa. Lisboa: Presença, 1988. p. 82. 6 Idem, p. 84. 7 PRADALIÉ, Gerard. Lisboa - da Reconquista ao fim do século XIII. Lisboa: Palas, 1975. p. 60. 8 Documentos para a história da cidade de Lisboa. Livro dos bens próprios dos reis e rainhas. Lisboa: Câmara municipal, 1954. p. 333-353. 9 SILVA, Carlos Guardado da. Lisboa Medieval - A organização e estruturação do espaço urbano. Lisboa: Colibri, 2008. p. 271-282. 10 SOARES, Torquato de Sousa. "Concelhos." In: SERRÃO, Joel. Dicionário de História de Portugal, Volume I /A-D. Lisboa: Iniciativas. 1971. p. 652. 11 CAETANO, Marcelo. A administração municipal de Lisboa durante a 1ª dinastia. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1981. p. 8 12 MARTINS, Miguel Gomes. "O concelho de Lisboa durante a Idade Média. Homens e organização municipal (1179-1383)." In: Cadernos do Arquivo Municipal, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa. Vol 7, (2005) p. 68. 13 OLIVEIRA MARQUES, A. H. "O trabalho." In: A sociedade medieval portuguesa. Lisboa: Sá da Costa, 1976. p. 137. 14 COELHO, Maria Helena da Cruz et MAGALHÃES, Joaquim Romero. "Anexo 1 - Foral de Lisboa, outorgado por D. Afonso Henriques e confirmado por D. Sancho I e D. Afonso II." In: O poder concelhio... p. 94. 15 PRADALIE, Gerard. "Documento nº 2" In: Lisboa - Da Reconquista ao fim do século XIII... p. 148. 16 SILVA, Carlos Guardado da. Lisboa Medieval... p. 281 17 PRADALIÉ, Gerard. Lisboa - Da Reconquista ao fim do século XIII... p. 91. 18 BRANDÃO, Frei Francisco. "ESCRITVRA XVIII." In: Monarchia Lusitana. Lisboa: Craeesbeck, 1650. Quinta Parte, p. 314v-315v. 19 CAETANO, Marcelo. A administração municipal de Lisboa durante a 1ª dinastia... p. 37. 20 MARTINS, Miguel Gomes. "O concelho de Lisboa durante a Idade Média..." p. 71. 21 Documentos Para a História da Cidade de Lisboa. Livro I de Místicos de Reis. Livro II dos Reis D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro I. Lisboa: Câmara Municipal, 1947; Documento 3: 113. 22 Idem, p. 114 23 Idem, ibdem. 24 FARELO, Mário Sérgio da Silva. A oligarquia camarária de Lisboa (1325-1433). Tese de Doutoramento em História Medieval pela Universidade de Lisboa, 2008. p. 67.

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