Água (Necessidade de uma nova abordagem)

Share Embed


Descrição do Produto





Universidade da Beira Interior - FCSHUniversidade da Beira Interior - FCSH
Universidade da Beira Interior - FCSH
Universidade da Beira Interior - FCSH



Ciência Política e Relações Internacionais
Estruturas e Dinâmicas da Sociedade Internacional
Docente: Professor Doutor João Dias Neves


ÁGUA
(A necessidade de uma nova abordagem)


Alunos: Débora Morais nº32811
Hugo Duarte nº 33151
João Vidal nº 34005
Paulo Fazenda nº 34270

Indíce




Introdução 3
Definição de Bem comum Publico 4
A água como Direito Humano 8
A globalização e a água 12
Antigos conflitos, novas abordagens 14
O interesse dos privados na água 17
Remunicipalização 19
Conclusão 24
Bibliografia 25
Webgrafia 26
Anexo 27




Introdução

O presente trabalho é sobre a temática da água, mais concretamente, o impacto no desenvolvimento da vida dos seres humanos. Optámos por definir a água como bem, enquadrando-a na legislação vigente, tentando concluir sobre a dicotomia publico/privado. A assunção da água como um direito incontornável à condição humana é outro dos quesitos que pretendemos aprofundar. Tentámos estabelecer uma ligação entre o fenómeno da globalização e a gestão da problemática da água ao nível da geopolítica nacional e internacional. Tentámos auferir sobre o interesse dos privados na água , torna-los inteligíveis e, auscultar o seu impacto na vida quotidiana. Por último, este trabalho foca numa nova tendência a nível de gestão e administração da água, que é a remunicipalização.
A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, a Webgrafia e uma entrevista realizada pelo nosso grupo com um sociólogo estudioso da matéria em apreço, defensor da água como um bem comum público.
Esperemos desta forma contribuir para um maior estudo sobre o assunto em questão, tendo levantado questões e mantendo questões em aberto sobre o futuro do Homem e da água.



Definição de Bem comum Publico

Poderemos definir o bem público em relação ao bem comum? Se o direito natural nos remete para uma esfera de discussão axiológica, procurando sínteses entre valores espirituais e valores vitais, já o direito público (ramo particular do direito que procura tornar positivos esses valores e regular de forma justa as relações entre entidades em contexto público dando- lhes expressão material, associando esses valores a uma ideia de comunidade organizada segundo normas e leis) procura de acordo com o princípio da justiça, as melhores formas de materializar. Além disso no contexto do direito público, o conceito de bem público pode ser entendido como um meio para alcançar um fim.
Além do Direito também a economia nos dá um contributo considerável para o que se pode entende por "bem comum" Ao distinguir os bens públicos dos bens privados pela atribuição aos primeiros de uma especial aptidão para satisfazer necessidades coletivas como meio da atividade administrativa, a doutrina jurídica está a assumir a existência de necessidades de caráter colectivo, cuja satisfação deve ser garantida a todos os indivíduos que pertencem a uma comunidade. No entanto, na doutrina económica as necessidades colectivas são exceções às necessidades individuais, que só se verificam quando "conscientemente afirmadas por toda a comunidade. Os meios de satisfação de tais necessidades são valorizados não pelos indivíduos, que simplesmente interatuam, mas sim por estes, actuando conjunta e conscientemente como uma comunidade" (Schumpeter, [1996 (1909)]:3)
Mas como se distinguem os bens públicos dos bens privados? Do ponto de vista do direito, há dois elementos fundamentais a considerar na identificação da coisa pública. Um primeiro, de carácter formal, funciona como índice ou sinal indicativo de que as coisas possuem utilidade pública. Um segundo, de carácter valorativo, corresponde às razões que levam a que se considere que essa coisa subscreve a utilidade: mais do que identificar as coisas propriamente ditas, com recurso a índices próprios, o que "interessa saber é a razão por que a lei submete certas coisas ao regime do Direito público, qual o motivo por que confere à Administração poderes especiais sobre elas" (Caetano, 1983:886).
Relativamente aos critérios formais, diz-nos Marcello Caetano, podemos identificar dois tipos fundamentais: o do destino da coisa pública; o dos caracteres que a definem. Para a definição do destino, são utilizados três critérios: o uso público – distingue com base na ideia que devem ser públicas as coisas destinadas ao uso de todos; o serviço público – estabelece a afetação ao serviço público como principal critério de atribuição do carácter público; o fim administrativo – define como coisas públicas as coisas afetas a uma pessoa coletiva de direito público que satisfaçam a um dos fins desta pela sua aplicação direta. No que diz respeito aos caracteres apresentam-se dois: o critério da afetação – da coisa à utilidade pública, constituindo-se como um critério prático (quando uma coisa está afeta à utilidade pública passa a ser pública em si mesma); o critério positivista – refere-se à propriedade, e diz-nos que serão dominiais as coisas que a lei submete ao regime integral da propriedade pública.
Mas se estes critérios funcionam como índices de identificação da coisa pública, essenciais para a prática jurídica, no domínio do político torna-se fundamental definir a qualidade que distingue o bem público de outros bens. E, neste caso, o direito procura definir essa qualidade em função da noção de utilidade pública: "consiste na aptidão das coisas para satisfazerem necessidades coletivas".
Relativamente a esta síntese interessa-nos aprofundar três questões que se manifestam centrais na definição do conceito. Em primeiro lugar, saliente-se que o bem público, apesar de meio, contém em si mesmo um valor relativo a uma necessidade humana que o distingue de outros bens, não possuidores dessa qualidade. Daqui resulta que os segundos podem ser substituídos, mas os primeiros não. Em segundo lugar, e assumindo a variabilidade das necessidades coletivas, pressupõe-se que o bem público subscreve, pelo menos em parte, esse carácter variável, dependendo essa variabilidade não só de uma natureza eventualmente mutável de algumas coisas, mas também da forma como se modificam o comportamento e as necessidades humanas. Por fim, dificilmente se poderá definir a coisa pública exclusivamente num sentido material. O bem público, sendo uma coisa jurídica surge associado a todo um conjunto de direitos que sobre ele recaem e que constituem o domínio público.
A noção de domínio público encontra na definição jurídica de universalidades um suporte para a atribuição de uma unidade própria a um conjunto plural de elementos. De acordo com o Código Civil, as coisas podem ser simples ou compostas, formando universalidades. E as universalidades públicas são, segundo Marcello Caetano, os "complexos de coisas pertencentes ao mesmo sujeito de direito público e afetadas ao mesmo fim de utilidade pública que a Ordem Jurídica submete ao regime administrativo como se se tratasse de coisas públicas simples."
Daqui resulta, essencialmente, que o domínio público é constituído por um conjunto de coisas tidas pelo seu conjunto. E assim se entende que os bens dominiais são "tudo aquilo que forma objeto dos direitos de domínio público em sentido estrito"
Mas o que é então o domínio público? "Domínio público" significa quer a categoria das coisas públicas, quer os poderes da Administração sobre os bens apropriados, sobre certos espaços sujeitos à mera soberania do Estado e, em sentido lato, sobre as próprias coisas particulares (servidões administrativas) sendo composto por bens naturais e por coisas devidas à ação do homem: os primeiros formam o domínio público natural, os outros o domínio público artificial.
Marcello Caetano enumera o domínio público da seguinte forma: ao domínio público do Estado correspondem três domínios naturais – o domínio hídrico, o domínio aéreo e o domínio mineiro – e três domínios artificiais – domínio da circulação, domínio monumental, cultural e artístico e domínio militar.
Relativamente ao domínio público do Concelho e da Freguesia são identificados pelo mesmo autor: o domínio hídrico e o domínio da circulação. No entanto, o princípio da enumeração das coisas públicas na lei sujeita as coisas do domínio público a explicitação clara, e é na Lei Fundamental que se deve procurar essa enumeração em primeiro lugar.
A constituição de 1933, no artigo 49º, enumerava de forma directa e indirecta alguns dos bens que o integravam. Não obstante, a categoria do domínio público não apareceu na versão inicial da Constituição de 1976, voltando a constar na Lei Fundamental Portuguesa após a revisão de 1989. E aí são enumerados alguns dos bens do domínio público (Artigo 84º): "a) As águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos; b) As camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário; c) Os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedicinais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com exceção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente usados na construção; d) As estradas; e) As linhas férreas nacionais; f) Outros bens como tal classificados por lei.". Mas para além da enumeração, determina o referido artigo 84º que "a lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites."
Perante o supracitado podemos então apresentar uma síntese do conceito de bem comum público com base nos seguintes critérios:

1. Assim está classificado na lei;
2.Essa qualidade assiste-lhe porque demonstra ser portador de uma utilidade pública;
3.Os direitos da Administração Pública que sobre ele recaem, constituem o domínio público;
4. São submetidos ao domínio de uma pessoa coletiva de direito público;
5. O critério final para a definição da utilidade pública conferida a um bem define-se pela não possibilidade de substituição dessa coisa sem prejuízo.


A água como Direito Humano

"A Água potável e o saneamento adequado são fundamentais para a redução da pobreza, para o desenvolvimento sustentável e para a persecução de todos e cada um dos objectivos de desenvolvimento do milénio." – Ban Kin-moon, Secretário Geral da ONU

Em Março de 1977 foi realizada uma Conferência da ONU na Argentina, Mar de Prata, da qual é resultante um Plano de Ação, onde pela primeira vez a água é reconhecida como um direito ao declararem que "Todos os povos, seja qual for o seu estádio de desenvolvimento e as suas condições sociais e económicas têm direito a ter acesso a água potável em quantidade e qualidade igual às suas necessidades básicas" (ONU).
Posteriormente em Dezembro de 1979, na Convenção sobre a eliminação de Todas as formas de discriminação contra as mulheres (CEDAW), embora a convenção seja sobre direitos das mulheres, no seu texto é claramente referida a água e o saneamento, passando a citar: "Os Estados signatários deverão tomar todas as medidas apropriadas para acabar com a discriminação contras as mulheres nas zonas rurais de forma a assegurar, numa base de igualdade entre homens e mulheres, que elas participam e beneficiam do desenvolvimento rural e, nomeadamente, deverão assegurar a essas mulheres o direito: ...(h) A usufruir de condições de vida adequadas, particularmente no que respeita à habitação, saneamento, abastecimento de água e eletricidade, transportes e comunicações" (CEDAW, Artigo 14(2)(h).
Mais tarde, em Novembro de 1989, desta vez na convenção sobre os direitos das crianças, vemos mais uma vez a água como referencia de direito, "Os Estados signatários deverão assegurar a implementação integral deste direito e, nomeadamente, deverão tomar medidas apropriadas: ....c) para combater a doença e a subnutrição, incluindo no âmbito dos cuidados de saúde primários, através de, entre outras medidas, a aplicação de tecnologias já disponíveis e através da disponibilização de alimentos nutritivos adequados e água potável, tendo em conta os perigos e os riscos da poluição ambienta; ...(e) para assegurar que todos os extratos da sociedade, nomeadamente os pais e as crianças, estão informados, têm acesso à educação e são apoiados no uso dos conhecimentos básicos sobre saúde e nutrição infantil, vantagens da amamentação, higiene e saneamento ambiental e prevenção de acidentes" (Convenção sobre os Direitos das crianças, Artigo 24(2))
Em Janeiro de 1992, surge então a primeira conferência Internacional sobre a Água e o Desenvolvimento Sustentável, em Dublin, onde o 4º principio consiste em "...é vital reconhecer o direito básico de todos os seres humanos a terem acesso a água limpa e saneamento a um preço acessível". Ainda no mesmo ano decorreu também a conferencia das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, onde no capítulo 18 da Agenda 21 é referida a 1º conferencia no Mar de Prata segundo a qual todos os povos têm direito a ter acesso a água potável, chamando-lhe assim "a premissa acordada em comum".

"O Direito humano à água prevê que todos tenham água suficiente, segura, aceitável, fisicamente acessível e a preços razoáveis para usos pessoais e domésticos." (ONU, Resolução 16/2)

Em Novembro de 2002, O comité das Nações Unidas para os direitos económicos, sociais e culturais adotou o seu comentário Geral Nº15, citado anteriormente.
Estas são as primeiras de muitas conferencias, convenções, cimeiras, comentários e resoluções onde a água é apontada como um direito inalienável ao cumprimento do direito à vida dos Homens.
É em 2006, que temos a Decisão do Conselho dos Direitos Humanos 2/104, Onde o Conselho pede ao alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, de dentro das possibilidades, inicie um estudo aprofundado sobre a abrangência e o teor das obrigações relevantes em termos de direitos humanos relacionados com o acesso à água potável segura e ao saneamento. No ano seguinte, 2007, é então apresentado o Relatório, onde o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos diz que "é chegada a altura de considerar o acesso a água potável segura e ao saneamento como um direito humano, definido como o direito a acesso igual e não-discriminatório a uma quantidade suficiente de água potável por pessoas e para os usos domésticos... de forma a assegurar a vida e a saúde".
Apresentando os factos, é a 28 de Julho de 2010, que a assembleia geral da ONU reconhece, finalmente, o acesso à água potável e a instalações sanitárias como um Direito Humano. Após 15 anos de debate, 122 países finalmente votaram a favor de uma resolução de compromisso redigida pela Bolívia que consagra este direito, enquanto 41 países de abstiveram. "Declara que o direito a uma água potável e de qualidade e a instalações sanitárias é um direito do homem, indispensável para o pleno gozo do direito à vida" (DN Globo, 29 de Julho de 2010).
No ano de 2010, 884 milhões de pessoas no Mundo, não tinham acesso a água potável de qualidade e mais de 2.6 mil milhões não dispunham de instalações sanitárias básicas (40% da população mundial). Cerca de 2 milhões de pessoas, morrem, por ano, na sequências de doenças causadas por uma água imprópria para consumo e por ausência de instalações sanitárias, "O ser humano bebe 80% das suas doenças." (adágio médico).
A verdade é que as relações entre os seres humanos e a água/ seres humanos devido à água sempre foi difícil, tumultuada e fascinante e, mesmo que seja direito será um muito difícil de aplicar numa escala global, por mais conscientes estejamos em relação ás condições de água do planeta. Como compromisso a ONU através da Resolução A/RES/64/292 declarou a água limpa e segura e o saneamento um direito humano essencial para gozar do direito à vida e por consequente de todos os outros direitos.
A água ser um Direito é essencial para a condição humana, mas não menos importante é o facto de se realmente for aplicado por cada estado individual, dará aos seus cidadãos mais vulneráveis capacidade de evolução aprendizagem e posteriormente participação no poder de futuras decisões. Nunca deve ser visto como um bem de serviço providenciado a titulo de caridade e, a ONU deve utilizar todos os meios disponíveis para acompanhar o progresso das nações na concretização do direito à água e ao saneamento, de forma a responsabilizar os governos.
O abastecimento de água e a disponibilidade de saneamento para cada pessoa deve ser continuo e suficiente para usos pessoais e domésticos, no que se interpreta como domésticos: beber, saneamento pessoal, lavagens de roupa, preparação de refeições e higiene pessoal e do lar. Segundo dados da OMS, em média uma pessoa necessita por dia de 50 a 100 litros de água, no entanto grande percentagem das pessoas caracterizadas como em carência de água dispõem apenas de 5 litros por dia, se pensarmos bem 5 litros de água é uma descarga de autoclismo, um garrafão de água que em qualquer supermercado custa alguns cêntimos, é aquilo que muitos têm para sobreviver um dia inteiro em países onde muitas vezes as temperaturas são altas e a desidratação é algo vulgar.
As medidas para o desenvolvimento e abastecimento de água potável a toda a população deve ser de autoria local ao nacional supervisionada pela Organização das Nações Unidas. Os países devem fornecer às suas populações fontes de água que se situem a menos de 1000 metros das habitações e que não prolonguem o período de tempo necessário para recolha da mesma por mais de 30 minutos, no entanto em 2015 ainda assistimos, em África, a comunidades onde as mulheres percorrem diariamente 6 quilómetros a pé, para recolherem água para toda a família.
Infelizmente, no nosso querido planeta azul, onde a água potável será capaz de abastecer dez vezes a população mundial atual, parece-nos impossível de garantir que tal direito seja cumprido e, que as medidas da ONU e da OMS consigam ser realizáveis. Hoje em dia a água não é só um bem essencial à condição humana, mas também um bispo num grande tabuleiro de xadrez que são jogos de poder e geoestratégia dos países do séc. XXI. Nos dias de hoje a água é uma arma valiosíssima, onde o sortudo que por legado tem a terra com melhor parte da bacia hidrográfica conquista o Mundo e subjuga todos em seu redor, para mesmo assim no final, ser o herói da banda desenhada que dividia com todos aquilo que por sorte ganhou sem ter de na verdade dividir com mais ninguém.



A globalização e a água


A discussão em volta da temática da água tem sido recorrente na agenda internacional da maioria dos países no planeta Terra. Este fenómeno acontece porque a importância que é atribuída a este bem essencial, por parte dos atores internacionais, é cada vez mais maior. Esta centralidade traz consigo elementos de natureza conflituosa incontornáveis, cada estado ou nação age de acordo com os seus interesses, embora os sistemas hidrográficos não sejam balizados em termos de geografia, pois os mesmos além de terem na sua natureza uma característica dinâmica intrínseca, normalmente existem num espaço multi-estatal, inclusive as vezes continental.

"A água é, frequentemente, o catalisador de rivalidades económicas, étnicas, religiosas, históricas…É verdade que o potencial para os conflitos sobre a água é considerável, pois contam-se ao menos 200 bacias de água divididas entre estados: as do Congo e do Nilo interessam, cada uma a nove países, a do Zambeze a oito, a do Amazonas a sete, a do Mékong a seis, a do Tigre-Eufrates a quatro…" Mohamed Bouguerra.

O estabelecimento de limites e fronteiras formais, por parte das nações, é enfraquecido ou no mínimo aligeirado. A questão fronteiriça é suspensa, porque o alcance da problemática da água é sempre maior que um só povo ou um só estado, quando se trata de analisar o impacto de redes e sistemas aquíferos temos sempre de considerar a escala regional, talvez continental, quiçá global.
Este elemento da falta de territorialidade encontra paralelismo no fenómeno da globalização, inclusive numa tentativa de construir uma definição de globalização.

"Globalização, pode considerar-se que ela designa a crescente amplitude, profundidade e celeridade das interações mundiais em todos os aspetos da vida social contemporânea, desde o âmbito cultural ao âmbito criminal, do financeiro ao espiritual ou, ainda, o aumento contínuo das interações económicas, sociais e culturais transnacionais que ultrapassam as fronteiras dos Estados, com a ajuda de avanços tecnológicos" Enciclopédia da Relações Internacionais.

Partindo do pressuposto que atualmente a profundidade dos problemas do ser humano é sempre de amplitude global, onde a interação a nível socioeconómico é transversal à espécie humana, levanta-se uma interrogação latente, será que a globalização contribui para o aparecimento e fomento do chamado fenómeno da "crise da água"?
A resposta será no mínimo ambígua, porque se por um lado os processos intensivos de exploração agrícola, com cargas químicas e pesticidas relevantes, criam novos problemas para o ambiente, condicionando de forma estrutural o acesso à água potável, por outro lado o intercâmbio de avanços tecnológicos podem resolver questões relacionadas com a escassez da água. No entanto o modelo no qual assenta este processo de globalização é baseado no pensamento económico neoliberal, cuja estrutura reproduz claramente os seus objetivos ideológicos.
Vivemos uma crise que mais não é do que uma manifestação, entre outras, da insustentabilidade da globalização neoliberal, baseada numa lógica mercantilista e predadora dos bens naturais cujas principais vítimas são os mais pobres." (Jorge Fael, 2015)
Esta associação tem toda a relevância de se fazer, o cruzamento do impacto da política da globalização tem na gestão e governança do bem água. De que forma o pensamento neoliberal, expresso em políticas de âmbito mundial, transforma a abordagem e o entendimento sobre o ser humano e a água. A forma como o chamado pensamento hegemónico influência e condiciona o relacionamento da espécie humana com os bens essências estruturais à sua existência.
A Globalização não demonstra preocupações sobre a democracia, nem tão pouco por problemas como liberdade, saúde, ecologia, educação, direitos humanos, segurança social, distribuição da riqueza, ação social do estado, etc… Apenas prioriza o elemento financeiro, em prol detrimento do bem-estar das populações. A chamada «crise da água» não é um problema de escassez, mas de justiça social. (Jorge Fael, 2015)


Antigos conflitos, novas abordagens

As "batalhas da água" existem desde que se faz história, são conflitos para os quais nunca se arranjou uma solução e, muitas das batalhas que travamos mundialmente hoje tiveram origem já em séculos passados.

"Desde tempos primórdios, a água sempre foi um dos reguladores sociais mais importantes. As estruturas das sociedades camponesas e das comunidades aldeãs, onde as condições de vida estão intimamente ligadas ao solo, eram organizadas ao redor da água. E, na grande maioria dos casos, mesmo quando era considerada um bem comum, a água tornava-se uma fonte de poder, tanto material quanto imaterial. Eram raros os casos em que todos os membros de uma comunidade estivessem em um mesmo nível com relação à água; o acesso a ela quase sempre envolveu desigualdade."(Riccardo Petrella)

Temos hoje acesso a dados que nos séculos passados seriam impensáveis, dados esses que nos conseguem mostrar a superficialidade e ignorância de tais batalhas, sabemos hoje que distribuída uniformemente, a quantidade de água potável existente no planeta terra conseguiria abastecer uma população dez vezes maior do que a atual. No entanto, assim não assistimos a um Mundo onde todos os seres humanos têm igual direito a satisfazerem as suas necessidades básicas no que diz respeito ao uso da água. Mais do que má repartição a água torna-se assim numa arma pronta a ser usada por qualquer um que queira um pouco mais de poder, ou que tenha um ponto a provar.
Passando aos dados, 2/3 da água Mundial está repartida pelos países mais desenvolvidos do Mundo: Estados Unidos da América, Canadá, Rússia e Europa; e pelos novos países desenvolvidos: Brasil e Índia.
A Ásia tem 60% da população mundial e apenas 36% da água potável do planeta. Já nas Américas do Norte e Central existe 15% de água potável para apenas 8% dos seus habitantes. A Índia apenas tem 4% das águas potáveis, quanto aos países árabes, que correspondem a 10,3% da superfície terrestre e 4.5% da população mundial dispõem exclusivamente de 0,43% dos recursos hídricos recuperáveis e 2% das águas das chuvas do planeta. Quanto ao Conselho de Cooperação do Golfo o deficit de água em relação às necessidades é de 15 biliões de metros cúbicos.
A má gestão dos recursos disponíveis nos territórios por si só já provoca tensões entre governantes e governados, como no caso da Índia, onde devido à má gestão dos recursos existe uma perda de 70% da água antes de chegar ao consumidor final. Ou o caso da China que detém 22% da população mundial, mas apenas 8% da água potável do planeta, estima-se que a falta de água atinja cerca de 60 milhões de chineses, desesperados por água para sobreviverem e cultivarem, este camponeses formam revoltas que são chamadas de "invasões", revoltas estas que consistem em elevados números de pessoas desesperadas invadirem terras que não lhes pertencem, terras cultiváveis onde a água seja mais abundante que na sua terra natal.
Infelizmente o problema da água não é só visto a nível nacional, mas também entre países na corrida pelo poder. Talvez o caso mais conhecido seja mesmo o da barragem de Assuão. Os Estados Unidos fazem pressão ao banco internacional para que desista do acordo de ajuda na construção da barragem de Assuão no Egito. Em Julho de 1956 o banco internacional cede à pressão e desfaz o acordo para o financiamento da barragem, no entanto a barragem é inaugurada em 1970 devido à ajuda da União Soviética. Mantendo assim o Egito na liderança, contra a vontade dos Estados Unidos que pretendiam ajudar os seus aliados israelitas.
Madeleine Albright, secretária de Estado americano, divulgará a sua vontade de colocar em especial destaque as questões da água acabando decididamente por as colocar no campo da geoestratégia, propondo uma "aliança global de segurança para a água".
Também existem conflitos que pensamos serem religiosos, mas que muitos acreditam que acarretam com eles segundas intensões, como o conflito entre cristãos e muçulmanos no Sudão, onde alguns analistas árabes acreditam que os Estados Unidos intervieram para conseguirem controlar as águas do Nilo, com o objectivo de favorecer Israel e consequentemente impor-se ao Egito que é o líder dos países árabes.
A nível nacional, sucedeu-se em 2000, no México, durante o período de campanha eleitoral, na cidade de Chimalhuacan, onde habitam cerca de 1 milhão de pessoas. "La Loba" membro do PRI (partido no poder à 70 anos), que por um acaso era também dirigente da antena local de distribuição água potável. Sem segundos pensamentos não houve qualquer hesitação no corte da antena que fornecia a cidade. Durante os seguintes dias de campanha forma enviados camiões cisternas com água para abastecer as pessoas que desidratavam nas ruas da cidade. Esta medida garantiu que o partido mantivesse o seu poder democrático.
Voltamo-nos para África e o poder sobre a água demonstra uma vez mais os danos que é capaz de provocar. No Botswana uma das últimas tribos nómadas foi tirada à "força" do seu espaço, os Bochimans. O Presidente do Botswana declarou que não havia condições monetárias para transportar água para estas tribos e de que a solução era saírem da reserva onde habitam à centenas de anos e mudarem-se para a "civilização". O grave da situação é que a Europa disponibilizou-se a pagar qualquer custo de transporte de água que estas tribos precisassem. Neste momento os Bochimans já não vivem na reserva mas sim em bairros onde se tornaram como que mendigos numa sociedade que deles não é.
Estes problemas têm vindo a piorar, talvez até pela escala que atingem nos dias de hoje as populações mais desfavorecidas e, quanto a soluções estas não nos são diretamente apresentadas. No Mundo dos dias de hoje, tudo é um "jogo de poder" e, sem alguma exceção, a água é, provavelmente, o maior de todos.


O interesse dos privados na água

A água constitui um bem essencial e cujo acesso é já um direito consagrado. Contudo desde há muito que as entidades privadas perceberam o grande potencial da água como um ativo com grande potencial lucrativo. Mesmo organizações internacionais não eleitas, como o Banco Mundial ou o FMI têm vindo defendendo a privatização dos serviços de água como condição para conceder ajuda aos Estados em situações de dificuldades económicas. Um claro exemplo é o caso português, onde no memorando da troika o FMI traduz esta vontade:

'..Também esperamos, no primeiro trimestre de 2013, a privatização das operações de gestão de resíduos da companhia de água Águas de Portugal, e estamos a desenvolver um plano estratégico até ao fim de 2012 com outros acionistas - nomeadamente a administração local - para reestruturar todo o sector da água..'.

Assim, os cidadãos passam de utentes beneficiários dos serviços para clientes, cujas faturas passam a ser em média 20% a 25% mais elevadas do que quando em domínio público, havendo casos onde a diferença é ainda maior. Com os maus resultados obtidos por parte dos operadores privados as sociedades tiveram que tomar medidas para reverter a situação Na Bolívia as revoltas de Cochabamba obrigaram o trust/Bechtel a abandonar o país, no Uruguai, que instituiu a água na Constituição como um bem comum que não pode ser privatizado. No Brasil, a Lyonnaise de Eaux teve de abandonar a sua concessão. Em Março de 2006 a Grande Buenos Aires rompeu o contrato com a Águas Argentinas, filial da Lyonnaise.
Como exemplo dos desequilíbrios criados pela política do 'laisser faire' aplicada ao sector da água temos as companhias Suez e Veolia, que sozinhas administravam a distribuição da água a mais de 250 milhões de pessoas em 2007, sem contar com aquelas servidas por empresas nas quais estas possuíam participações. O último caso significativo é o da Thames Water, maior empresa hídrica do Reino Unido e a número três no mundo (atrás das duas francesas citadas), comprada pela australiana Macquarie à alemã RWE. A RWE, gigante energético europeu, havia adquirido a Thames Water em 2000 por 7,1 bilhão de euros como concretização de sua estratégia para se converter na empresa número um das europeias multiusos (companhias que operam simultaneamente nos sectores de energia, transportes, lixo, água, comunicações etc)
França foi o caso mais paradigmático do domínio do modelo de gestão privada da água durante muitos anos, onde três grandes multinacionais da água, -a Véolia/Ondéo, a Suez (Lionnaise des Eaux) e a Saur-Bouygues- partilhavam mais de 80% do mercado interno, um uma situação de exceção que assentava numa parceria do tipo "delegação dos serviços públicos", também chamada de "escola francesa da água'. Em 25 anos de gestão privada (1985-2010) a factura da água subiu 260%. Por outro lado, durante os anos destes operadores com lucros progressivamente mais altos, o investimento foi quase inexistente, tendo-se registado uma degradação da qualidade dos serviços
Em Inglaterra, quando Margareth Thatcher deu inicio das privatizações da água em 1989, afirmou aos britânicos que não importava saber quem distribuí a água mas beneficiar de serviços de alta qualidade e a preços convenientes. Contudo a privatização da água não deu bom resultado nem em relação aos preços (os aumentos foram consideráveis) nem quanto à qualidade ( a Thames Water foi severamente criticada por não ter reduzido os níveis de perda de água, de acordo com as obrigações ligadas à tarifa).
A própria união europeia tem tentado coagir os governantes a privatizarem a água, por exemplo em Itália, onde após ter existido um referendo que proibia a privatização do sector da água, após a saída do primeiro ministro (Berlusconi), o governo de banqueiros e tecnocratas (não eleito) que se seguiu reverteu a decisão e adotou as recomendações da união no sentido de privatizar (contra a vontade do povo).



Remunicipalização

Em Portugal, competia aos municípios gerir os serviços de saneamento e distribuição de água até 1993, data da primeira alteração à lei da delimitação dos sectores pelo XII governo constitucional (Cavaco Silva) que passou a permitir a existência de concessões. Segundo o decreto-Lei 147/95, de 21 de Junho: Art. 5.°: -

'(..) f) Assegurar o equilíbrio económico-financeiro da concessão, com uma adequada remuneração dos capitais próprios da concessionária; (..) - Art. 7.° - 1 - Quando se alterarem significativamente as condições de exploração do sistema ou sistemas concessionados, por determinação do concedente ou por modificação das normas legais e regulamentares em vigor à data da concessão, o concedente compromete-se a promover a reposição do equilíbrio económico-financeiro do contrato (..)'.

Isto na prática garantiu o rendimento da parte privada independentemente das circunstâncias. Em 1997, com governo de António Guterres confirmou esta iniciativa, revogando por completo a lei da delimitação dos sectores que dava prioridade à gestão pública. Já em 2002 Durão Barroso constituiu um grupo técnico para estudar a privatização da holding Águas de Portugal. Em 2014 o Tribunal de Contas fez sair um relatório onde indica que as concessões do serviço de distribuição de água a privados mantém o risco do lado do estado, de forma abusiva, garantindo lucros aos privados, contudo, poucos meses depois o consórcio SUMA, liderado pela Mota-Engil, venceu o concurso para a privatização de 95% do capital da Empresa Geral de Fomento (EGF), a sub-holding do grupo Águas de Portugal responsável pelo tratamento de resíduos sólidos urbanos. Atualmente o processo está em andamento de forma pouco transparente apesar do ministro (Jorge Moreira da Silva) garantir que não equaciona a privatização da maioria da operadora.
Cidades regiões e países por todo o mundo têm manifestado a intenção de não privatizar e/ou remunicipalizar os recursos aquíferos. Isto acontece na maior parte dos casos como resposta ao falhanço dos operadores privados na promessa de dar prioridade às necessidades das comunidades e não à maximização dos lucros. Experiências claras de problemas na gestão privada das águas, como falta de investimento em infraestruturas, subida preços e a ocorrência de danos ambientais graves levou as comunidades e as autoridades políticas a concluir que o sector público é mais vocacionado para proporcionar aos cidadãos serviços de qualidade e proteger o direito humano à água.
Nos últimos 15 anos verificaram-se mais de 180 casos de remunicipalização em 35 Países, tanto nos Países do Norte como do Sul, incluindo casos de relevo na Europa, nas Américas, Ásia e África. Grandes cidades optaram por esta via incluindo Accra, Berlim, Buenos Aires, Budapeste, Kuala Lumpur, La Paz, Maputo e Paris. Esta crescente tendência indica que após mais de 3 décadas de privatizações e parcerias publico privadas (PPP's) por todo o mundo a remunicipalização da água como opção política esteja para ficar.
O termo remunicipalização consiste assim na transferência da gestão dos recursos de água e dos serviços sanitários previamente privatizados para entidades locais e/ou públicas. Estes casos tendem a ocorrer devido ao cancelamento dos contratos com as entidades privadas pelas autoridades locais ou quando estas decidem não renovar. Qualquer que seja a sua forma ou escala, o processo de remunicipalização surge em grande medida como um protesto coletivo contra a insustentabilidade das privatizações da água e PPP's. Devido à impopularidade do termo privatização, as empresas privadas do sector têm apostado no marketing e outras formas de propaganda para convencer a sociedade e a classe política de que outros tipos de parcerias e concessões são diferentes de privatizar, contudo no fundo todos estes termos têm como base a transferência do controlo e gestão para o sector privado.
Dos mais de 180 casos ocorridos durante a ultima década e meia, 136 registaram-se nos países ricos.81 aconteceram entre 2010 e 2014, enquanto que entre 2005 e 2009 apenas se registaram 41, o que demonstra que no espaço de 5 anos esta tendência acelerou drasticamente. Esta tendência revela-se ainda mais visível nalguns países, sendo o caso mais emblemático o de França, onde 50 municípios (33 desde 2010) terminaram ou não renovaram os contratos por opção.
As razões para remunicipalizar são similares por todo o mundo, das quais se podem destacar: o fraco desempenho dos operadores (ex. Maputo), a falta de investimento e inovação (ex. Berlim, Buenos Aires), crescente aumento de preços (ex. Almaty, Berlim, Kuala Lumpur, Maputo), cortes na mão de obra e serviços de fraca qualidade (ex. Atlanta, Indianapolis).
Grenoble (França) – Um contrato controverso de cedência dos direitos de exploração das águas ganho pela Suez em 1989, na sequência de favorecimentos e corrupção foi avaliado pelos auditores como economicamente desastroso, tendo sido renegociado em 1996, contudo também este se provou inapropriado e limitativo sendo que obrigava o operador a subcontratar serviços de gestão e outros à Suez bem como garantia o aumento de remunerações de operadores mesmo na ausência de operações de risco elevado. Em resposta, tendo-se vindo a provar que o contrato tinha sido concebido por meios ilegais, o tribunal competente decidiu anular as decisões municipais e terminar o contrato. A decisão de remunicipalizar surge pouco depois, em 2000, e implementada em 2001. Este novo organismo, Régie des Eaux de Grenoble aumentou o investimento em manutenção e renovação de infraestruturas três vezes o valor aplicado pelo anterior operador privado, tendo também baixado e estabilizado o nível das tarifas. Esta empresa adotou uma forma inovadora de participação publica no processo de decisão, onde um terço dos membros votantes são representantes da sociedade civil e os outros dois terços são membros do conselho municipal.
Paris – Em 1984, dois contratos de cedência com a duração de 25 anos foram assinados com as empresas Veolia e Suez (cada uma cobrindo metade da cidade). Já em 2000 estes contratos foram alvo de avaliação pelos auditores locais que detetaram falta de transparência e em 2002 vieram a descobrir que as subidas de preços registadas eram 25% a 30% superiores ao economicamente justo em relação aos custos. Em 2003 os auditores nacionais depararam-se com uma diferença colossal entre a alocação de financiamentos destinados a serviços de manutenção e outros e o trabalho efetivamente feito, inclusive registaram-se pagamentos a operadores da companhia por dicas de 'know how'. Mesmo tendo havido uma renegociação em 2003, a situação continuou a ser danosa, o que levou à decisão de não renovar os contratos com a Suez e Veolia após terem terminado, o que acontece em Janeiro de 2010. Logo no primeiro ano de atuação, a Eaux de Paris conseguiu poupanças de eficiência no valor de €35 milhões, permitindo baixar as tarifas em 8%. Até hoje os preços mantiveram-se bem abaixo da média de França apesar dos custos relacionados com a dificuldade em distribuir água com boa qualidade numa grande metrópole. Desde políticas de caridade e solidariedade, a participação publica também está bem patente, onde dos membros votantes cinco são representantes da sociedade civil, dois são representantes dos trabalhadores e 11 são membros do conselho municipal.
Arenys de Munt (Espanha) - Uma pequena cidade na Catalunha ilustra bem como a tentativa de acabar um contrato com os privados pode resultar em pressões coercivas. Após mais de duas décadas de sucessivos contratos com a empresa Sorea, as autoridades locais decidiram não renovar a concessão. Durante o período de debate e após a decisão ter sido tomada, a empresa apresentou múltiplas queixas com vista a reverter a decisão, exigindo reparações que cobrissem investimentos não recuperados e o pagamento de indeminizações por lucros futuros perdidos, tentando reverter a decisão. Apesar desta pressão por parte dos operadores privados o município começou a gerir os serviços diretamente em 2011, criando a Aigues de Arenys como operador publico. Este operador ajudou a melhorar substancialmente a qualidade e a provisão dos serviços. Um desconto nos primeiros 100 lt por pessoa foi introduzido e as tarifas resultantes em Arenys de Munt são agora 31% mais baixas que na província de Barcelona. Foram ainda implementadas políticas sociais para permitir o acesso a este bem essencial às famílias com mais dificuldades. Isto resultou numa subida da eficiência da gestão dos recursos de 57% a 67% o que traduz que a gestão pública considera primeiro o interesse público e a qualidade dos serviços.

Berlim – Em 1999, 49.9% das ações da empresa que detinha a operadora de água de Berlim foram vendidas a um consorcio que incluía a RWE e a Veolia. O contrato assinado garantia que o retorno para os investidores privados era no mínimo de 8% durante 28 anos. Este contrato levou a quase inexistência de investimento e preços galopantes. Esta situação fez com que existisse um referendo popular em 2011 que obrigou a publicação dos termos do contrato. Este tornou se tão impopulares que nas eleições seguinte 3 dos 4 partidos defenderam a remunicipalização nos seus programas eleitorais. O fim do contrato deu-se com a recompra das ações pelo Estado de Berlim, custando aos contribuintes cerca de €1.3 biliões, que vão ser pagos ao longo de 30 anos através do aumento das tarifas.
Buenos Aires (Argentina) – Em 1993 deu-se o inicio de uma concessão de 30 anos por um consorcio Suez-lionnais des Eaux. Neste caso, entre 1993 e 1998 as empresas falharam no cumprimento de 57.9% dos investimentos originalmente acordados que se traduzem em US$746.39milhões. Em 2002 o governo entrou no processo de negociação do contrato o que demorou anos sem surtir grandes efeitos. Só em 2006 o governo criou a companhia pública AySA, que tem traçado um caminho bastante positivo, tendo aumentado o investimento em mão de obra qualificada, (de 21.870 horas de formação em 2006 para cerca de 60.000 em 2009) desenvolvendo melhores condições de higiene e segurança. Tendo como expansão uma prioridade criou ainda um plano de cooperativas locais para fazer chegar água com boas condições aos bairros de mais baixos rendimentos, conseguindo abranger mais de 700.000 utilizadores previamente sem acesso aos serviços.
Jacarta (Indonesia) - Em 1997 duas concessões de 25 anos foram atribuídas à Suez e Thames water. Estas concessões foram alvo de muita controvérsia, devido à falta de transparências na atribuição dos contratos e ao fraco desempenho das operadoras. O operador publico e o Estado acumularam mais de US$48 milhões de dívidas em 16 anos de operações. Esta divida deveu-se aos mecanismos de pagamentos acordados com o governo, incluindo uma taxa paga pelo operador publico( Pam Jaya) ao privado que aumentava a cada seis meses, pois os preços cobrados já tinham atingido o máximo. Isto criou enormes deficits por parte da Pam Jaya, o que mobilizou a sociedade civil no sentido de defender o retorno das águas para mãos públicas. O que aconteceu em 2013 quando joko widodo (agora presidente da indonesia) anunciou que a cidade ira comprar as ações. O processo está em andamento contudo as ações não foram compradas pois o contrato permaneceria em vigor o que seria duplamente danoso.
Moçambique - A partir do fim dos anos 80 e durante toda a década de 90 Moçambique foi privatizando a gestão das águas detida por entidades públicas. Em 1999 o governo aderiu a uma PPP com a Águas de Moçambique (AdM). Pouco tempo depois, em 2000, após grandes inundações a (AdM) aumentou unilateralmente as tarifas para cobrir os danos causados. O que se seguiu foi um defraudar das expectativas a vários níveis, tendo mesmo a capital Maputo acabado o contrato antes do tempo, adquirindo 73% da totalidade através duma holding pública. Os restantes contratos das 4 maiores cidades terminaram em 2008 e não foram renovados. Ainda em 2005 O governo criou parceria para a gestão de água (entidade não lucrativa) com o objetivo de criar infraestruturas adequadas para providenciar serviços acessíveis e de qualidade às comunidades. Desde então pelo menos 8 regiões do País adotaram também este tipo de parcerias ao nível local, tendo obtido bons resultados, e com capacidade para fortalecer a capacidade local de proporcionar bons serviços de água.


Conclusão

A água é de forma inquestionável um bem público e património da humanidade o que a transforma num bem comum inclusive no âmbito dos direitos humanos. Legalmente não pode ser objeto de mecanismos de rivalidade nem de exclusão. Falamos de propriedade comum, uma vez que ninguém pode ser dono de um curso de água e, no entanto, coletivamente todos somos responsáveis por este tipo de bens. A água é um bem público essencial. Mais do que isso: é um direito que deve ser garantido universalmente e com qualidade, o que só pode acontecer no âmbito de uma gestão pública. Por isso, os serviços de captação e distribuição de água devem ser geridos pelos municípios e estar sob o mais rígido controlo público, sob pena de a respetiva missão social ser entregue a quem procura exclusivamente o lucro.
A definição de água como bem publico têm lógicas consequências na forma como o ser humano interage com este recurso natural. O reconhecimento legal, no sistema internacional, do direito à água e o saneamento deverá ser entendido como um claro incentivo ao desenvolvimento global. A assunção de que a água é indissociável a existência do ser humano é um axioma incontornável.
Quando a água é um negócio, as receitas são exclusivamente as tarifas praticadas junto dos consumidores, graças às quais se deve recuperar integralmente os custos, o que significa que, para os acionistas dos consórcios privados que adquirem serviços como estes, só há dividendos, e que os consumidores têm de enfrentar aumentos fortíssimos do preço da água.
As multinacionais do sector da água bem como as organizações internacionais de carácter económico esforçaram-se para exportar o modelo privado neoliberal para o resto do mundo, mas tendo em conta que recentemente existem novas tendências, como a da remunicipalização, podemos dizer que o modelo privado falhou em todas as frentes, tanto na gestão, quer a nível de eficácia, quer a nível de eficiência, como na procura por reformular as prioridades e politicas defendidas. O paradigma modificou-se, e isto é um exemplo caracterizador que as soluções para a questão da água não pode ser especulativas-financeiras, só podem ser politicas. E a política é para servir os cidadãos.
"Wiskey is for driking, water is for fighting over" (Mark Twain). Não achamos que esta frase explane na sua totalidade a realidade, mas tememos ter de aceitar que esta sentença é uma boa caracterização do atual estado do nosso planeta azul, infelizmente.


Bibliografia

Amaral, D. Freitas, Curso de Direito Administrativo, Vol. I. Coimbra:
Almedina, 2003.

Bouguerra, Mohamed Larbi, As batalhas da água, Lisboa, Campo das Letras, 2005.

Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Tomo II. Coimbra:
Almedina, 2013.

Coutinho, Francisco Pereira, Mendes, Nuno Canas, Enciclopédia das Relações Internacionais, Don Quixote, Lisboa, 2014.

Lobina, Emanuele, Kishimoto, Satoko, Petitjean, Olivier, Here to stay: water remunicipalisation as a global trend, PSIRU, 2014

Menezes Cordeiro, A.,Tratado de Direito Civil, Parte Geral, Tomo I.
Coimbra: Almedina, 2005

Pato,J, Schmidt,L,Gonçalves, M.Eduarda, Bem Comum Publico e /ou Privado, ICS, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2003.

Petrella, Ricca, O Manifesto da água, São Paulo, Vozes editoras, 2002.

Sá,Luis, Introdução ao Direito Administrativo (caderno de apoio), Universidade Aberta, Lisboa, 1999.
Webgrafia

http://www.homepagejuridica.net/attachments/article/721/Constitui%C3%A7%C3%A3o%20da%20Rep%C3%BAblica%20Portuguesa%20agosto%202011.pdf

http://www.un.org/waterforlifedecade/pdf/human_right_to_water_and_sanitation_media_brief_por.pdf

http://www.un.org/waterforlifedecade/pdf/human_right_to_water_and_sanitation_milestones_por.pdf

www.epsu.org/a/5161

www.futurepolicy.org/food-and-water/remunicipalisation-of-water-services-paris

www.greensavers.sapo.pt/2015/03/16/privatizacao-da-aguas-de-portugal-nao-esta-em-cima-da-mesa/


Toda a Webgrafia foi consultada a 10 de Maio de 2015.

Anexo

Entrevista com o sociólogo Dr. Jorge Fael:
Dirigente da Associação Água Pública e membro da campanha «Água é de todos»


Atualmente existem muitas discussões em volta da posse da água, como caracteriza o bem água: público ou privado?
A água é indiscutivelmente um bem público e um património comum da humanidade e de todos os seres vivos, sendo por isso mesmo, um bem comum. Como refere Ricardo Petrella, os bens comuns são essenciais e insubstituíveis para a vida humana (sem água não há vida; não se pode substituir a água…); integram o domínio dos direitos humanos fundamentais; não podem ser objecto de mecanismos de rivalidade nem de exclusão (é impossível submeter o acesso à água à concorrência; beber água potável não impede que outros façam o mesmo). Por consequência, eles são, propriedade comum (ninguém pode ser proprietário de um rio, de um lenço freático, de uma bacia hidrográfica). A sociedade é responsável colectivamente pelos bens comuns, numa lógica de solidariedade (o encargo de proteger, salvaguardar, valorizar a água para a vida dos seres humanos e outros seres vivos regressa à comunidade. Os custos associados devem também ser partilhados pela comunidade). Os bens comuns públicos são a expressão da autoridade pública e da soberania partilhada dos povos (a segurança hídrica de um povo é a garantia de uma soberania partilhada com os outros povos). É por isso que sendo a água um bem comum, as suas funções ecológicas, sociais e económicas são essenciais e têm de ser protegidas e asseguradas pelo Estado, garantindo a sua fruição comum e equitativa à população presente e às gerações futuras.

A 29 de Julho de 2010 a ONU reconheceu o direito à água potável como um direito humano. Considera o uso fruto da água um direito incontornável da condição humana?
Sem dúvida. Sem água não há vida. E sem acesso quotidiano à água não há liberdade, nem dignidade. O acesso à água e ao saneamento não é uma mera necessidade, como defendem os promotores da privatização, mas um direito, uma questão de justiça. Todas as pessoas têm de ter acesso ao abastecimento de água e saneamento no seu local de residência, trabalho e permanência habitual, com a proximidade, quantidade e qualidade adequadas à sua segurança sanitária e ao seu conforto. O reconhecimento legal do direito à água é um passo muito importante, mas por si só, não é suficiente. Para realizarmos verdadeiramente as dimensões do direito à água e ao saneamento é necessário romper com um sistema económico que exclui milhões de seres humanos.
Na Islândia um ser humano dispõe de 600 mil metros cúbicos de água doce, no Kuwait o mesmo ser humano dispõe apenas de 75 metros cúbicos de água doce. Existe realmente uma crise global no acesso à água? É uma questão de distribuição deste recurso?
A água é um dos bens menos finitos no mundo, no entanto a sua distribuição, fruto do processo natural, cada vez mais ameaçado pela acção humana, é obviamente diversa. Há abundância nuns locais e escassez noutros. Mas a chamada «crise da água» não é um problema de escassez, mas de justiça social. O próprio consumo da água apresenta disparidades enormes e imorais. Vivemos uma crise que mais não é do que uma manifestação, entre outras, da insustentabilidade da globalização neoliberal, baseada numa lógica mercantilista e predadora dos bens naturais cujas principais vítimas são os mais pobres. Segundo o estudo da UNICEF e da OMS, pelo menos 1,8 mil milhões de pessoas bebem água contaminada com fezes. Além disso, 2,5 mil milhões não têm acesso a saneamento básico. São excluídas porque são pobres, porque os lagos e rios foram destruídos, contaminados e privatizados sob as mais diversas formas. Em El Salvador 98 % das fontes de água estão impróprias para consumo humano, resultado em grande medida da exploração mineira.
A chamada «pobreza hídrica» também atinge os países desenvolvidos. Na europa dos 27, estima-se que 1 milhão de pessoas não tem acesso à água. As políticas de austeridade têm provocado um aumento do número de cortes de água, como em Portugal.
Hoje, regiões tão diferentes como a Califórnia, São Paulo, ou Taiwan, experimentam crises hídricas sem precedentes, consequência de secas prolongadas, extracção descontrolada, desinvestimento nas infraestruturas e políticas privatizadoras.
Sabemos que em 2030 quase metade da população mundial poderá enfrentar escassez de água, com a procura a ultrapassar a oferta em 40 por cento. É indispensável e urgente inverter este rumo de destruição e de desigualdade.

Ao longo da história da humanidade o acesso à água tem sido causa de vários conflitos e guerras. A solução para esta problemática terá de ser exclusivamente política? Qual tem sido o posicionamento da comunidade internacional sobre esta temática?
A solução só pode ser política. Além de imoral, a realidade actual é insustentável. Contudo, perante isto, o posicionamento da comunidade internacional e dos países mais poderosos tem sido o de proteger os seus interesses e de utilizar a água como arma política.
Muitas das resistências colocadas à consagração legal do direito à água e ao saneamento por exemplo, vieram de países europeus, dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. No fundo, estes países preferem o modelo da Organização Mundial do Comércio ao da Organização das Nações Unidas, ou seja, a água mercadoria, à água direito.
Outro exemplo são os chamados programas de ajustamento aplicados à Grécia e a Portugal que impunham, claro está, com a conivência dos governos de turno, a privatização das empresas e serviços públicos de água e saneamento.
No plano global, o que se constata é que o Fórum Mundial da Água, liderado pelas multinacionais, continua a influenciar fortemente as políticas públicas da água.
A caracterização da água como um bem essencial finito leva-nos para um campo de escassez. Acha que existe alguma estratégia a nível global, para a apropriação deste bem por parte do poder económico?
Ressalvando os aspectos pedagógicos e os alertas genuínos associados a essa caracterização, a verdade é que o "discurso da escassez" tornou-se uma parte importante da estratégia de mercantilização e privatização da água. Como refere Eric Swyngedow «sem a escassez, soluções ou mecanismos de mercado simplesmente não funcionariam». É por isso diz ele, que «os mercados vibram com a "escassez" real ou imaginada. Se necessário, portanto, a escassez será eficientemente produzida, socialmente projectada». Pois quanto mais escasso é um bem maior é o seu valor económico. É por isto que os governos, como o nosso, as multinacionais, as instituições financeiras internacionais, Banco Mundial, FMI, a própria União Europeia, abraçam o discurso da escassez e afirmam ao mesmo tempo que "a única alternativa para essa escassez é a apropriação privada desse recurso estratégico". Mas o que a experiência tem demonstrado é que a política de conservação da água é melhor assegurada pela gestão pública do que por um serviço com gestão privada, cuja lógica de maximização do lucro implica um fomento das vendas e por conseguinte, dos consumos.
Apesar disso, as pressões para liberalizar e privatizar continuam, como agora, com a tentativa de incluir os serviços de água em acordos comerciais que a União Europeia está a negociar como o Acordo de Comércio com o Canadá (CETA); o Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento com os Estados Unidos (TTIP) e o Acordo de Comércio de Serviços (TISA), procurando uma vez mais incorporar a água na lógica de acumulação capitalista.

Num passado recente existiram diversas conferências mundiais subordinadas à temática da água. Será que existe a necessidade de uma legislação a nível mundial para a administração deste recurso tão valioso? A ideia de um contrato mundial da água será exequível?
Não creio que essa necessidade exista e a sua concretização dependerá sempre da correlação de forças, que continua dominada pela lógica neoliberal. Contudo, é possível abrir brechas e conquistar avanços, como aconteceu com a consagração legal do direito à água e ao saneamento. Este foi um avanço importante que é preciso consolidar e inscrever em muitas realidades nacionais, como em Portugal. Acho que este deve ser o fio condutor, a par do combate a todas as formas de privatização e da exigência de uma gestão pública de qualidade, democrática e transparente.
Hoje, grande parte dos movimentos sociais que estiveram na luta pelo direito à água exigem a inscrição deste direito na Declaração da Agenda de Desenvolvimento Pós-2015 das Nações Unidas.
O que não podemos permitir é que seja a OMC (Organização Mundial do Comércio) ou o Fórum Mundial da Água e as multinacionais a ditarem as políticas. Se assim for, só poderemos esperar mais divisões e conflitos.
Um mundo de paz, progresso e justiça social depende seguramente do respeito e partilha solidária da água.

Será que existe em Portugal uma política estratégica para a água? Qual é a sua opinião sobre este sistema público e privado da gestão e administração da água em Portugal?
Em Portugal, a política de água seguida nas últimas décadas tem sido orientada por um único objectivo: transformar este bem público num negócio privado. Foi nesse sentido que foram removidas as barreiras constitucionais e legais à privatização. A privatização verifica-se simultaneamente em várias frentes, que vão da captação da água na natureza, passando pelas margens e os leitos dos rios, pelas infraestruturas públicas como portos e barragens, até aos apetitosos serviços públicos de abastecimento de água e saneamento de águas residuais. Esta ofensiva, iniciada em 1993 com os governos de PSD/Cavaco Silva que abriu o sector aos privados, foi confirmada em 1997 com a revogação da lei de delimitação de sectores pelo executivo PS de Guterres, aprofundou-se com a criação do mercado da água pelo PS de Sócrates, objectivo que o actual governo PSD/CDS-PP pretende concluir com a denominada «reestruturação do sector das águas».
O governo diz que não quer privatizar a água, mas chumbou a iniciativa legislativa de cidadãos da campanha «Água é de todos», designada «Proteção dos direitos individuais e comuns à água», apoiada por mais de 44 mil cidadãos eleitores, em defesa do direito à água e contra a privatização. E mais recentemente chumbou os projectos de lei apresentados pelo PCP, BE e "Os Verdes" contra a privatização.
Ora, como a realidade nacional e internacional demonstram, a privatização é sinónimo de exclusão, desigualdade, injustiça, corrupção e desperdício.

Houve municípios que optaram pela privatização. A entrada do privado na gestão da água trouxe benefícios à população?
Claramente não. Veja-se o exemplo da Covilhã, que privatizou 49% do capital. Aliás, tal como a Auditoria do Tribunal Contas a 19 das 27 concessões no sector das águas confirmou, a verdadeira natureza destes negócios é só uma: os privados embolsam chorudos lucros, as populações e os municípios pagam a factura. Os preços privados são 30% superiores à gestão pública (nos consumos de 10m3/mês); as taxas de rentabilidade dos capitais privados são verdadeiramente obscenas, variando entre 9,5% até aos 15,50%; os riscos dos contratos são suportados quase na totalidade pelas autarquias; os concedentes públicos, isto é, os municípios, sem meios e recursos, tornaram-se presa fácil dos concessionários em regra, poderosos grupos económicos nacionais e internacionais. Tudo isto comprova que é urgente por fim às privatizações/concessões, criar as condições para a remunicipalização dos serviços de água e saneamento privatizados terminando com contratos abusivos e ilegais que lesam gravemente as populações.
Qual a sua opinião sobre a nova ideia do governo de fundir em apenas cinco os 19 sistemas multimunicipais de abastecimento de água e de saneamento que hoje são geridos por empresas detidas pela holding estatal Águas de Portugal (AdP) e pelos municípios?
Trata-se de mais um passo para a privatização da água, por via da criação de megaempresas capazes de gerar superlucros. Uma decisão que passou por cima dos acordos assumidos com os municípios e afasta ainda mais as populações das decisões sobre a gestão deste bem estratégico.
O Governo alega que este processo permitirá ganhos de eficiência, corrigir desigualdades entre litoral e o interior, mas a verdade é que tudo se resume à ideia de concentração de capital, de clientes e de volume de negócios para entregar a exploração deste sector estratégico aos grandes grupos privados, tal como pretende fazer com a EGF, empresa pública de tratamento de resíduos.
Por outro lado, e sob o pretexto da equidade e solidariedade, o Governo obriga as populações do litoral a pagar mais para, alegadamente, permitir uma descida de preços no interior. Além de ser inaceitável penalizar as populações com base no critério de residência (basta pensar que os mais pobres do litoral seriam chamados a financiar os mais ricos do interior ou vice-versa), o resultado será um aumento generalizado das tarifas em todo o País. No litoral, como resultado da concentração. No interior, como consequência das imposições do regulador, a ERSAR, sobre os municípios visando a recuperação total de custos e do facto de a maioria dos sistemas do interior serem deficitários, o que levará a que a maioria dos municípios tenha de subir brutalmente os preços, em alguns casos, bem mais do que no litoral.
Num quadro em que milhares de pessoas já não conseguem pagar a factura da água, novos aumentos, com a agravante de não terem em conta as realidades locais, contribuirão fortemente para a deterioração das condições de vida.
Não se ignora que integração de sistemas pode trazer vantagens, mas o que é evidente é que a proposta governamental não visa melhores serviços nem mais direitos laborais e sociais.
Em todo o Mundo em 2014, 180 municípios readquiriram a gestão e a administração da água no seu espaço geográfico. Considera isto uma tendência? E em Portugal, será que isto pode acontecer?
De facto, e conforme relata um estudo recente de três organizações não governamentais, a tendência na maior parte dos países - com excepção de um ou outro, como é o caso de Espanha - é para a recuperação dos sistemas privatizados. As razões são semelhantes por todo o mundo: desempenho medíocre das empresas privadas, subinvestimento, disputas sobre custos operacionais, aumento de preços, dificuldade em fiscalizar os operadores privados, falta de transparência financeira, despedimentos e deficiente qualidade de serviço. Em regra, a remunicipalização tem-se traduzido em ganhos efectivos para as populações e os municípios. Eliminando a lógica de maximização do lucro, imperativa na gestão privada, a gestão pública melhora o acesso e a qualidade dos serviços de água, como demonstram exemplos tão diversos como o de Paris, Arenys de Munt (Espanha) e Almaty. A gestão pública também permitiu aumentar significativamente o investimento, como é o caso de Grenoble (França), Buenos Aires e Arenys de Munt (Catalunha). Vários das remunicipalizações ocorreram por rescisão dos contratos privados, antes de o prazo expirar, implicando duros contenciosos com os privados e o pagamento de avultadas indemnizações.
Em Portugal também não faltam razões para a remunicipalização dos serviços. Em alguns casos, como Barcelos ou Paços de Ferreira, cujos contratos lesam gravemente as pessoas e os municípios, isso adquire sentido de urgência. Apesar disso, e a não ser que os contratos sejam declarados nulos, o mais provável é que estes municípios, sendo que Barcelos foi já condenado em tribunal arbitral a pagar 172 milhões de euros (!) ao concessionário privado a título de reposição do reequilíbrio económico-financeiro da concessão, procurem ir negociando, restando-lhes aguardar pelo fim dos contratos, pois uma rescisão antecipada implicaria pesadas indemnizações que só poderiam ser pagas com o apoio do Estado central, que por enquanto, de resgates, só se for dos banqueiros. Do que não tenho dúvidas é que esta será uma exigência que se intensificará nos próximos anos e que a luta das populações será determinante para conseguir que nesses casos, a água volte a ser de todos e para todos.

Jorge Fael
Sociólogo



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.