Águas ardentes: o nascimento da Cachaça no Brasil (co-autoria de Renato Venâncio)

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ABRE, ABRE-BONDADE, ABRE-CORAÇÃO, ABRIDEIRA , ABRIDORA , ACA , ÁCIDO, AÇO, ACUICUI, A-DO-Ó, ÁGUA , ÁGUA-BENTA, ÁGUA-BÓRICA , ÁGUA-BRANCA , ÁGUA-BRUTA, ÁGUA-DE-BRIGA , ÁGUA-DE-CANA, ÁGUA-DE-SETEMBRO, ÁGUA-LISA, ÁGUA-

PÉ, ÁGUA-PRA-TUDO, ÁGUA-QUE-GATO-NÃO-BEBE, ÁGUA-QUE-PASSARINHO-NÃO-BEBE, AGUARDENTE, AGUARRÁS, AGUNDU, ALICATE, ALPISTA, ALPISTE, AMARELINHA, AMOROSA , ANACUÍTA, ANGICO, ANINHA , APAGA-TRISTEZA, A-QUE-INCHA , AQUELA-QUE-MATOU-O-GUARDA, A-QUE-MATOU-O-GUARDA, AQUIQUI, ARAPARI, ARDOSA , ARDOSE, ARIRANHA , ARREBENTA-PEITO, ASSINA-PONTO, ASSOVIO-DE-COBRA, AZEITE, AZOUGUE, AZULADA , AZULADINHA, AZULINA, AZULZINHA, BAFODE-TIGRE, BAGA, BAGACEIRA , BARONESA , BATACLÃ, BICARBONATO-DE-SODA , BICHA , BICHINHA, BICHO, BICO, BIRINAITE, BIRINATA, BIRITA, BIRRADA , BITRUCA , BOA, BOA-PRA-TUDO, BOM-PRA-TUDO, BORBULHANTE, BORESCA , BRABA , BRAN-

CA , BRANDE, BRANQUINHA , BRASA , BRASEIRA , BRASEIRO, BRASILEIRA, BRASILEIRINHA, BRAVA, BRIBA, CACHORRO-DE-ENGENHEIRO, CAEBA , CAFÉ-BRANCO, CAIANA , CAIANARANA , CAIANINHA , CALIBRINA, CAMARADA , CAMBRAIA , CAMBRAINHA ,

CAMULAIA , CANA, CANA-CAPIM, CÂNDIDA , CANGUARA, CANHA , CANICILINA, CANINHA , CANINHA-VERDE, CANJEBRINA, CANJICA , CAPOTE-DE-POBRE, CASCABULHO, CASCAROBIL, CASCAVEL, CATINGUENTA, CATRAU, CATRAU-CAMPECHE, CATUTA, CAUIM, CAÚNA, CAXARAMBA , CAXIRI, CAXIRIM, CAXIXI, CEM-VIRTUDES, CHÁ-DE-CANA, CHAMBIRRA , CHAMPANHA-DA-TERRA , CHATÔ, CHICA , CHICA-BOA, CHORA-MENINA, CHORINHO, CHORO, CHUCHU, CIDRÃO, CIPINHINHA, CIPÓ, COBERTOR-

DE-POBRE, COBREIA , COBREIRA , COCO, CONCENTRADA , CONGONHA , CONGURUTI, CORTA-BAINHA, COTRÉIA , CRISLOTIQUE, CRUA , CRUACA, CUMBE, CUMBECA , CUMBICA , CUMULAIA , CURA-TUDO, DANADA , DANADINHA, DANADONA , DANGUÁ , DELAS-FRIAS, DELEGADO-DE-LARANJEIRAS, DENGOSA , DESMANCHADA, DESMANCHADEIRA, DESMANCHA-SAMBA, DINDINHA, DOIDINHA , DONA-BRANCA , DORMIDEIRA , ELA, ELIXIR, ENGENHOCA , ENGASGA-GATO, ESPANTA-MOLEQUE, ESPIRIDINA , ESPRIDINA, ESPÍRITO, ESQUENTA-AQUI-DENTRO, ESQUENTA-CORPO, ESQUENTA-DENTRO, ESQUENTA-POR-DENTRO, ESTRICNINA, EXTRATO-HEPÁTICO, FAZ-XODÓ, FERRO, FILHA-DE-SENHOR-DE-ENGENHO, FILHA-DO-ENGENHO, FILHA-DOSENHOR-DO-ENGENHO, FOGO, FOGOSA, FORRA-PEITO, FRAGADÔ, FRIINHA, FRUTA, GARAPA-DOIDA , GÁS, GASOLINA , GASPA, GENGIBIRRA , GIRGOLINA , GIRUMBA , GLOSTORA, GORÓ, GOROROBA, GOROROBINHA , GRAMÁTICA, GRANZOSA , GRAVANJI, GROGUE, GUAMPA, GUARUPADA, HOMEOPATIA, IAIÁ-ME-SACODE, IGARAPÉ-MIRIM, IMACULADA , IMBIRIBA, INCHA , INSQUENTO, ISBELIQUE, ISCA , JÁ-COMEÇA, JAMAICA , JANUÁRIA , JERIBA, JERIBITA, JINJIBIRRA, JUÇARA , JUNÇA , JURA , JURUBI-

TA, JURUPINGA , LÁGRIMA-DE-VIRGEM, LAMPARINA, LANTERNETA, LAPINGA , LAPRINJA, LEBREA, LEBRÉIA, LEGUME, LEVANTA-VELHO, LIMPA, LIMPA-GOELA , LIMPA-OLHO, LIMPINHA, LINDA, LINDINHA, LINHA-BRANCA , LISA, LISINHA, MAÇANGANA ,

MAÇARANDUBA , MACIÇA , MALAFA, MALAFO, MALAVO, MALUNGA, MALVADA, MAMADEIRA, MAMÃE-DE-ALUANA (OU ALUANDA OU ARUANA OU ARUANDA OU LUANA OU LUANDA), MAMÃE-SACODE, MANDURABA , MANDUREBA, MANGABA ,

MANGABINHA, MARAFA, MARAFO, MARIA-BRANCA , MARIA-MEU-BEM, MARIA-TEIMOSA, MARIQUINHAS, MARTELO, MARUMBIS, MARVADA, MARVADINHA, MATA-BICHO, MATA-PAIXÃO, MATEUS, MELÉ, MELEIRA, MEROPÉIA , MEU-CONSOLO, MIANA ,

MIJO-DE-CÃO, MINDORRA , MINDUBA, MINDUBINHA, MISCORETE, MISTRIA, MOÇA-BRANCA , MOÇA-LOURA, MOLHADURA , MONJOPINA , MONTUAVA, MORRÃO, MORRETIANA , MUAMBA, MULATA, MULATINHA, MUNCADINHO, MUNDUREBA,

MUNGANGO, NÃO-SEI-QUÊ, NEGRITA, NÓ-CEGO, NORDÍGENA , NÚMERO-UM, ÓLEO, ÓLEO-DE-CANA, OMIM-FUM-FUM, ORANGANJE, OROGANJE, ORONTANJE, OTI, OTIM, OTIM-FIFUM, OTIM-FIM-FIM, PANETE, PARATI, PARDA, PARNAÍBA, PATRÍCIA,

PAU-DE-URUBU, PAU-NO-BURRO, PAU-SELADO, PÉ-DE-BRIGA , PÉLA-GOELA , PELECOPÁ, PENICILINA, PERIGOSA , PETRÓLEO, PEVIDE, PÍLCIA, PILÓIA, PILORA, PINDAÍBA, PINDAÍVA, PINDONGA , PINGA , PINGADA , PINGA-MANSA, PINGUINHA ,

PIRAÇUNUNGA , PIRIBITA, PIRITA, PITIANGA , PITULA, PORCO, PORONGO, PRECIOSA , PREGO, PRESEPE, PRINGOMÉIA , PURA, PURINHA , PURONA, QUEBRA-GOELA , QUEBRA-JEJUM, QUEBRA-MUNHECA , QUINDIM, RAMA , REMÉDIO, RESTILO, RETRÓS, RIJA , RIPA, ROXO-FORTE, SALSAPARRILHA-DE-BRÍSTOL, SAMBA, SANTA-BRANCA , SANTAMARENSE, SANTA-MARIA , SANTINHA, SANTO-ONOFRE-DE-BODEGA , SEMENTE-DE-ARENGA , SEMENTE-DE-ARRENGA , SETE-VIRTUDES, SINHANINHA, SINHAZINHA , SIPIA , SIÚBA, SORNA , SUMO-DA-CANA, SUMO-DE-CANA-TORTA, SUOR-DE-ALAMBIQUE, SUOR-DE-CANA-TORTA, SUPUPARA, SURUCA , TAFIÁ, TANGUARA, TEIMOSA, TEIMOSINHA, TEMPERO, TEREBINTINA, TIGUARA , TINDOLA, TÍNER, TIN-

GUACIBA , TIGUARA , TIQUARA, TIRA-CALOR, TIRA-JUÍZO, TIRA-TEIMA, TIRA-VERGONHA, TITARA, TIÚBA, TOME-JUÍZO, TRÊS-MARTELOS, TRÊS-TOMBOS, UCA, UMA-AÍ, UNGANJO, UPA, URINA-DE-SANTO, VELA, VENENO, VENENOSA,3 |VIRGE, VIRGEM, |2 XAROPE-DE-GRINDÉLIA, XAROPE-DOS-BEBOS, XAROPE-GALENO, XIMBICA , XIMBIRA, XINABRE, XINAPRE, ZUNINGA .

"Meu verso é minha consolação. Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça. Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres, folha de taioba, pouco importa: tudo serve." Carlos Drummond de Andrade (Alguma Poesia,1930)

CACHAÇA , ALQUIMIA BRASILEIRA

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CACHAÇA , ALQUIMIA BRASILEIRA

LU CI A NO F I G U E I RE D O E RE NAT O P I NT O V E NÂ NC I O | M A RY D E L P RI O RE | F E RNA ND O VA L A D A RE S

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Consciente de sua responsabilidade ambiental e mantendo o compromisso de incentivar a produção editorial no Brasil, a Repsol YPF tem a satisfação de apresentar Zona de Contato, livro que lança um olhar agudo sobre pontos fundamentais da relação homem / natureza. Conhecendo a multiplicidade dos recursos de nossa costa e a riqueza do oceano que a banha, tomamos a iniciativa de difundir esse conjunto de informações a partir de uma perspectiva na qual história, oceanografia e desenvolvimento sustentável se completam no traçado de uma visão original sobre o tema. Para nós, homem, costa e mar, em sua harmonia ancestral, continuam sendo os vetores da ação, os objetivos básicos das atividades atuais da empresa e o estímulo para o planejamento de seu futuro.

Cordiais saudações,

JOÃO CARLOS DE LUCA P res id en te d a R E P S O L Y P F B ras il

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Indice

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A AGUARDENTE É BEBIDA DE HERÓIS. SIR RICHARD BURTON

AGUAS ARDIENTES: el nacimiento de la cachaza

ÁGUAS ARDENTES: O NASCIMENTO DA CACHAÇA

LUCIANO FIGUEIREDO E RENATO PINTO VENÂNCIO

A primeira cachaça perturba. E não é estritamente por seu grau etílico. Nos idos de 1700 um padre jesuíta a define como “imundíssima”, servida às cabras, ovelhas, porcos e bois. E arrematava: “porque tudo o que é doce, ainda que imundo, deleita”. João Antônio Andreoni, o célebre Antonil, descrevia uma das etapas da produção de açúcar nos engenhos do Brasil, capturando com toda a riqueza de detalhes o momento que o caldo de cana, depois de escorrer da moenda, era colocado para ferver nas caldeiras, soltava uma primeira espuma que caia pelas bordas e descia ralo abaixo para o deleite das bestas no cocho. “O fogo faz neste tempo o seu ofício, escrevia, e o caldo bota fora a primeira escuma, a que chamam cachaça” . Nota-se logo que esta bebida, ainda que homônima, pouco tem a ver com a cachaça que se consome nos nossos dias. Até aqui foi uma longa travessia. Tortuosa às vezes. Em um mar de águas ardentes digladiam-se nomes diversos, bebidas de variadas origens, interesses de mercadores e de reis, tradições culturais e as metamorfoses da técnica. Ao mesmo tempo girou a história de uma terra que se transformou e assistiu, entre o século XVI e o século XIX, de um lado, o nascimento e a difusão de uma bebida, de outro, a afirmação de uma nação.

OUTROS TEMPOS DA PALAVRA | Nesse longo percurso as palavras e as expressões navegaram em águas traiçoeiras. Acomodados nos dias de hoje ao conforto de certos termos do vocabulário bem demarcado para as bebidas, como vinho (de uva), aguardente (de cana de açúcar), licor (de fruta), cachaça (sinônimo de aguardente), soa estranho que na época colonial quaisquer bebidas alcoólicas merecessem a designação de licor, que a aguardente pudesse ser indistintamente de uva, milho, mandioca ou, até mesmo, de cana de açúcar, que o vinho fosse feito do mel

A primeira cachaça perturba. E não é estritamente por seu grau etílico. Nos idos de 1700 um padre jesuíta a define como “imundíssima”, servida às cabras, ovelhas, porcos e bois. E arrematava: “porque tudo o que é doce, ainda que imundo, deleita”. João Antônio Andreoni, o célebre Antonil, descrevia uma das etapas da produção de açúcar nos engenhos do Brasil, capturando com toda a riqueza de detalhes o momento que o caldo de cana, depois de escorrer da moenda, era colocado para ferver nas caldeiras, soltava uma primeira espuma que caia pelas bordas e descia ralo abaixo para o deleite

< ARAÚJO, JOSÉ THEODORO DE. CARTA A JOÃO RODRIGUES DE MACEDO INFORMANDO TER RECEBIDO AS ORDENS PARA A PRODUÇÃO DE MILHO, AÇÚCAR E AGUARDENTE

E

NOTIFICANDO

POSSUIR

POUCOS

ESCRAVOS PARA A EMPRESA. ENGENHO DOS PINHEIROS,

das bestas no cocho. “O fogo faz neste tempo o seu ofício, escrevia, e o caldo bota fora a primeira escuma, a que chamam cachaça” .

05/05/1798. CASA MANUSCRITO.

DOS

CONTOS.

ORIGINAL .

Nota-se logo que esta bebida, ainda que homônima, pouco tem a ver com a cachaça que se consome nos nossos dias. Até aqui foi uma longa travessia. Tortuosa às vezes. Em um mar de águas ardentes digladiam-se nomes diversos, bebidas de variadas origens, interesses de mercadores e de reis, tradições culturais e as metamorfoses da técnica. Ao mesmo tempo girou a história de uma terra que se transformou e assis-

> "PERNAMBUCO", IN REYS-BOECK VAN HET RICKE BRASILIEN..., 1624, REPRESENTANDO O TRABALHO NUM ENGENHO DE AÇÚCAR.

tiu, entre o século XVI e o século XIX, de um lado, o nascimento e a difusão de uma bebida, de outro, a afirmação de uma nação.

OUTROS TEMPOS DA PALAVRA | Nesse longo percurso as palavras e as expressões navegaram em águas traiçoeiras. Acomodados nos dias de hoje ao conforto de certos termos do vocabulário bem demarcado para as bebidas, como vinho (de uva), aguardente (de cana de açúcar), licor (de fruta), cachaça (sinônimo de aguardente), soa estranho que na época colonial quaisquer bebidas alcoólicas merecessem a designação de licor, que a aguardente pudesse ser indistintamente de uva, milho, mandioca ou, até mesmo, de cana de açúcar, que o vinho fosse feito do mel

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THEVET. LES SINGULARITÉS DE LA FRANCE ANTARTIQUE NOMMÉE AMERIQUE. ANTUERPIA , CRISTOPHE PLANTIN, 1558 CAHOUIM BEVERAGE DES AMERIQUES, XILOGRAVURA, 4,8 X 6,6 MULHERES TUPINAMBÁS PREPARANDO O CAUIM, BEBIDA

AUTREMENT

do açúcar, ou de uva, e a cachaça designasse o líquido azedo em que se transfor-

do açúcar, ou de uva, e a cachaça designasse o líquido azedo em que se transfor-

mava a espuma da garapa fervida.

mava a espuma da garapa fervida.

Provemos da cachaça. Quem consultar os dicionários observará que para

Provemos da cachaça. Quem consultar os dicionários observará que para

alguns estudiosos, a palavra deriva de cacho, grupamento de frutas, para outros

alguns estudiosos, a palavra deriva de cacho, grupamento de frutas, para outros

seria a versão feminina de cachaço, parte grossa do pescoço do porco; há ainda

seria a versão feminina de cachaço, parte grossa do pescoço do porco; há ainda

quem acredite que o termo tenha origem no latim coquère, cozinhar, ou caccùlus,

quem acredite que o termo tenha origem no latim coquère, cozinhar, ou caccùlus,

que também deu origem ao vocábulo caldeirão.

que também deu origem ao vocábulo caldeirão.

Conforme é possível perceber, a etimologia do termo é vaga. Em algumas

Conforme é possível perceber, a etimologia do termo é vaga. Em algumas

regiões de Espanha e Portugal, empregava-se a palavra desde o século XV, e ao

regiões de Espanha e Portugal, empregava-se a palavra desde o século XV, e ao

tempo da colonização no Brasil, para caracterizar vinho de má qualidade ou resí-

tempo da colonização no Brasil, para caracterizar vinho de má qualidade ou resídu-

duos destilados de bagaços de uva . Este parece ser o significado que mais se

os destilados de bagaços de uva . Este parece ser o significado que mais se aproxi-

aproxima do uso que se fez então da palavra cachaça na América portuguesa.

ma do uso que se fez então da palavra cachaça na América portuguesa.

Ela não esteve presente no primeiro contato dos portugueses com o Novo

Ela não esteve presente no primeiro contato dos portugueses com o Novo

Mundo. Na Carta de Pero Vaz de Caminha consta que os navegantes ofereceram

Mundo. Na Carta de Pero Vaz de Caminha consta que os navegantes ofereceram

vinho aos índios:

vinho aos índios:

Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passa-

Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passa-

dos. (...)

dos. (...)

Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram

Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele

dele nada, nem quiseram mais.(...)

nada, nem quiseram mais.(...)

Andariam [os índios] na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco

Andariam [os índios] na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco

começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou qua-

começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou qua-

trocentos e cinqüenta. (...) Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns

trocentos e cinqüenta. (...) Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns

deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me

deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me

parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade!

parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade!

Desta vez o escrivão se enganaria: os nativos não se acostumariam ao vinho dos

Desta vez o escrivão se enganaria: os nativos não se acostumariam ao vinho dos

portugueses. E vice-versa, pois tampouco os portugueses apreciariam a enorme

portugueses. E vice-versa, pois tampouco os portugueses apreciariam a enorme var-

variedade dos vinhos nativos que decerto os índios teriam oferecido àqueles home-

iedade dos vinhos nativos que decerto os índios teriam oferecido àqueles homens

ns estranhos. Nas décadas subsequentes, não é registrado o escambo feito a partir

estranhos. Nas décadas subsequentes, não é registrado o escambo feito a partir

dessa bebida ou da cachaça. Nas missões jesuíticas, que começam a se espalhar por

dessa bebida ou da cachaça. Nas missões jesuíticas, que começam a se espalhar por

volta de 1555, é do abuso cauim – tradicional fermentado indígena feito a partir da

volta de 1555, é do abuso cauim – tradicional fermentado indígena feito a partir da

mandioca – que os religiosos reclamam . Os raros destilados aí presentes – de uva,

mandioca – que os religiosos reclamam . Os raros destilados aí presentes – de uva,

cereais ou cana-de-açúcar - não eram denominados como “cachaça”, mas sim

cereais ou cana-de-açúcar - não eram denominados como “cachaça”, mas sim

cauim-tatá , cuja tradução aproximada seria a de “vinho duro, firme”.

cauim-tatá , cuja tradução aproximada seria a de “vinho duro, firme”.

Como todo processo histórico, o que deu origem à produção e ao consumo da

Como todo processo histórico, o que deu origem à produção e ao consumo da

aguardente é complexo. Até o início da Época Moderna na Europa, as técnicas de

aguardente é complexo. Até o início da Época Moderna na Europa, as técnicas de

destilação – nascidas ou difundidas no Ocidente por volta do século XIII - per-

destilação – nascidas ou difundidas no Ocidente por volta do século XIII - per-

FERMENTADA A BASE DE MANDIOCA

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ALBERNAZ, JOÃO TEIXEIRA, O VELHO. CAPITANIA DE SÃO VICENTE, 1631. REPRESENTA A COSTA DESDE A BARRA DE S. VICENTE ATÉ A BARRA DE BERTIOGA INCLUINDO AS VILAS DE S. VICENTE E SANTO AMARO. ASSINALA OS ENGENHOS DE LEITÃO, DO DIOGO AIRES, DOS ERASMOS E IRMÃO ADORNO QUE FORAM OS MAIS RENDOSOS DA ECONOMIA AÇUCAREIRA VICENTINA. NO INTERIOR VILA DE SÃO PAULO A 9 LEGOAS DA BARRA. BRASÕES DOS DONATARIOS DA CAPITANIAS DE S. VICENTE E SANTO AMARO.

maneceram como um monopólio do saber médico. Na fabricação da bebida, o uso

maneceram como um monopólio do saber médico. Na fabricação da bebida, o uso

da cana-de-açúcar foi relativamente tardio; cem anos antes da colonização do

da cana-de-açúcar foi relativamente tardio; cem anos antes da colonização do

Novo Mundo, quando os portugueses degustavam aguardente, tratava-se de uma

Novo Mundo, quando os portugueses degustavam aguardente, tratava-se de uma

bebida produzida a partir de uvas.

bebida produzida a partir de uvas.

A etimologia da palavra, aparentemente simples (água + ardente), guarda sur-

A etimologia da palavra, aparentemente simples (água + ardente), guarda sur-

presas. O termo “ardente” não traduzia apenas a sensação de calor produzida pela

presas. O termo “ardente” não traduzia apenas a sensação de calor produzida pela

ingestão do destilado, ou então o fato de ele fazer “arder a garganta”, mas sim

ingestão do destilado, ou então o fato de ele fazer “arder a garganta”, mas sim

encarnava seu próprio espírito, sua propriedade invisível. A aguardente era classi-

encarnava seu próprio espírito, sua propriedade invisível. A aguardente era classi-

ficada, adaptando-se preceitos dos tratados médicos da antigüidade, junto às

ficada, adaptando-se preceitos dos tratados médicos da antigüidade, junto às

especiarias, principalmente a pimenta, por supostamente conter humores

especiarias, principalmente a pimenta, por supostamente conter humores

quentes, benéficos a saúde e capazes de combater o envelhecimento. Daí também

quentes, benéficos a saúde e capazes de combater o envelhecimento. Daí também

sua designação como “água da vida” (até hoje, em francês, l’eau-de-vie), remédio do

sua designação como “água da vida” (até hoje, em francês, l’eau-de-vie), remédio do

espírito, capaz de alegrar os tristes, de corar os pálidos, de fazer pulsar o coração

espírito, capaz de alegrar os tristes, de corar os pálidos, de fazer pulsar o coração

dos fracos, além de atender a fins bem mais corriqueiros, como o de acalmar as

dos fracos, além de atender a fins bem mais corriqueiros, como o de acalmar as

dores de dentes .

dores de dentes .

OS RÚSTICOS LICORES DOS ENGENHOS DE AÇÚCAR | No Brasil dos primeiros dias de

OS RÚSTICOS LICORES DOS ENGENHOS DE AÇÚCAR | No Brasil dos primeiros dias de

colonização, os destilados então existentes são apenas aqueles que os povoadores

colonização, os destilados então existentes são apenas aqueles que os povoadores

importam com seus velhos hábitos. Consomem aguardente de uvas ou vinhos de

importam com seus velhos hábitos. Consomem aguardente de uvas ou vinhos de

diversas procedências, das Canárias e dos Açores no Quinhentos, e da Madeira no

diversas procedências, das Canárias e dos Açores no Quinhentos, e da Madeira no

Seiscentos. Nem assim deixam de plantar mudas de parreiras na Bahia tão logo

Seiscentos. Nem assim deixam de plantar mudas de parreiras na Bahia tão logo

fixam as bases de instituições e governo, nos anos 40 do século XVI. Animados,

fixam as bases de instituições e governo, nos anos 40 do século XVI. Animados,

chegam a produzir uva em abundância até que as vorazes formigas dão cabo das

chegam a produzir uva em abundância até que as vorazes formigas dão cabo das

plantas. Em São Paulo planta-se também parreiras e fabrica-se vinho no primeiro

plantas. Em São Paulo planta-se também parreiras e fabrica-se vinho no primeiro

século porém o Brasil abandona essa fugaz experiência vinicultora e se submete à

século porém o Brasil abandona essa fugaz experiência vinicultora e se submete à

pressão das companhias de comércio que cuidariam de importar o vinho ampara-

pressão das companhias de comércio que cuidariam de importar o vinho ampara-

das pelo monopólio.

das pelo monopólio.

Mas as canas de açúcar não decepcionam no solo generoso da América. O

Mas as canas de açúcar não decepcionam no solo generoso da América. O

sucesso dos engenhos pontilhados ao longo da costa, rios, baías e enseadas, fabri-

sucesso dos engenhos pontilhados ao longo da costa, rios, baías e enseadas, fabri-

cando uma das mais desejadas drogas européias rende toneladas de pães de açú-

cando uma das mais desejadas drogas européias rende toneladas de pães de açú-

car para adoçar as mesas e tratar da saúde dos consumidores europeus. Enquanto

car para adoçar as mesas e tratar da saúde dos consumidores europeus. Enquanto

isto, silenciosa e discretamente o engenho convertia-se em uma verdadeira fábri-

isto, silenciosa e discretamente o engenho convertia-se em uma verdadeira fábri-

ca de bebidas, fermentadas e destiladas.

ca de bebidas, fermentadas e destiladas.

Muitas bebidas rústicas nasciam da primeira transformação da cana. As suces-

Muitas bebidas rústicas nasciam da primeira transformação da cana. As suces-

sivas fervuras que seu caldo sofria, na busca da adequada purificação, fornecia

sivas fervuras que seu caldo sofria, na busca da adequada purificação, fornecia

apreciados licores. Se a primeira fervura eliminava, como vimos, uma espuma

apreciados licores. Se a primeira fervura eliminava, como vimos, uma espuma

grossa que se convertia na cachaça servida aos animais, da segunda caldeira a

grossa que se convertia na cachaça servida aos animais, da segunda caldeira a

espuma era recolhida pelos escravos do engenho para, conforme Antonil, “fazerem

espuma era recolhida pelos escravos do engenho para, conforme Antonil, “fazerem

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a sua garapa, que é a bebida de que mais gostam”, e muito disputada, pois tro-

a sua garapa, que é a bebida de que mais gostam”, e muito disputada, pois tro-

cavam por “farinha, bananas, aipins e feijões”. Juntavam a garapa em um pote “até

cavam por “farinha, bananas, aipins e feijões”. Juntavam a garapa em um pote “até

perder a doçura e azedar-se, porque então dizem que está em seu ponto para se

perder a doçura e azedar-se, porque então dizem que está em seu ponto para se

beber”. A última espuma liberada deste processo de purificação do caldo, designa-

beber”. A última espuma liberada deste processo de purificação do caldo, designa-

da “claros”, era misturada com água fria e produzia uma “regalada bebida”, muito

da “claros”, era misturada com água fria e produzia uma “regalada bebida”, muito

refrescante e excelente para matar a sede, segundo dizia o jesuíta. Esse “desejado

refrescante e excelente para matar a sede, segundo dizia o jesuíta. Esse “desejado

néctar e ambrosia” era também servido aos cativos do engenho sob uma rígida e

néctar e ambrosia” era também servido aos cativos do engenho sob uma rígida e

curiosa distribuição hierárquica: primeiro recebem as escravas que trabalham na

curiosa distribuição hierárquica: primeiro recebem as escravas que trabalham na

moenda, depois aos que pescam mariscos e carangueijos e finalmente aos bar-

moenda, depois aos que pescam mariscos e carangueijos e finalmente aos bar-

queiros que transportam a cana e a lenha para o engenho .

queiros que transportam a cana e a lenha para o engenho .

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Pyrard de Laval já mencionara um século antes, em 1610, este “vinho feito com

Pyrard de Laval já mencionara um século antes, em 1610, este “vinho feito com

o suco da cana, que é barato, mas só para escravos e filhos da terra” . O médico

o suco da cana, que é barato, mas só para escravos e filhos da terra” . O médico

holandês Guilherme Piso confirma que a garapa era o nome de uma espécie de

holandês Guilherme Piso confirma que a garapa era o nome de uma espécie de

vinho, que outros chamam de “vinho de mel”. "Fabricam também daí um vinho,

vinho, que outros chamam de “vinho de mel”. "Fabricam também daí um vinho,

misturando água, vulgarmente chamado garapa, procurado avidissimamente

misturando água, vulgarmente chamado garapa, procurado avidissimamente

pelos habitantes, que se embriagam com ele quando velho” .

pelos habitantes, que se embriagam com ele quando velho” .

Mas não estilam, ou destilam, os engenhos no mesmo ritmo dos vinhos rústi-

Mas não estilam, ou destilam, os engenhos no mesmo ritmo dos vinhos rústi-

cos nascidos nos engenhos. Ao menos se acreditarmos no silêncio dos documen-

cos nascidos nos engenhos. Ao menos se acreditarmos no silêncio dos documen-

tos a difusão da aguardente, se ocorreu logo, ficou por algum tempo encoberta por

tos a difusão da aguardente, se ocorreu logo, ficou por algum tempo encoberta por

outras tarefas mais imperiosas da produção açucareira, possivelmente restrita ao

outras tarefas mais imperiosas da produção açucareira, possivelmente restrita ao

consumo doméstico. Descrições de cronistas, missionários, mapas de arrecadação

consumo doméstico. Descrições de cronistas, missionários, mapas de arrecadação

fiscal, relatórios administrativos da situação dos engenhos, e mesmo as leis que

fiscal, relatórios administrativos da situação dos engenhos, e mesmo as leis que

trataram de regular o comércio e a tributação sobre o açúcar, no século XVI e ainda

trataram de regular o comércio e a tributação sobre o açúcar, no século XVI e ainda

nas primeiras décadas do século XVII, não mencionam a existência de aguardente,

nas primeiras décadas do século XVII, não mencionam a existência de aguardente,

nome que parece associado a destilação .

nome que parece associado a destilação .

Esse período de letargia de fermentados, do vinho ora da uva, ora do mel de

Esse período de letargia de fermentados, do vinho ora da uva, ora do mel de

açúcar ou de abelha, se arrastou até pelo menos a terceira década do século XVII

açúcar ou de abelha, se arrastou até pelo menos a terceira década do século XVII

quando surgiram as primeiras notícias da aguardente da cana de açúcar destilada

quando surgiram as primeiras notícias da aguardente da cana de açúcar destilada

em alambiques. À sombra dos engenhos nascia então a “aguardente da terra”, de-

em alambiques. À sombra dos engenhos nascia então a “aguardente da terra”, des-

signação que vincava a oposição com a “aguardente do reino”, até ali dominante,

ignação que vincava a oposição com a “aguardente do reino”, até ali dominante,

importada de Portugal.

importada de Portugal.

Em São Paulo há notícias do comércio de aguardente em suas vendas em 1638

Em São Paulo há notícias do comércio de aguardente em suas vendas em 1638

nas Atas da Câmara . Na capitania de Pernambuco ao longo do século XVII muitas

nas Atas da Câmara . Na capitania de Pernambuco ao longo do século XVII muitas

pipas já atendem a exportação para Angola em troca de africanos, pagando direi-

pipas já atendem a exportação para Angola em troca de africanos, pagando dire-

tos ao rei e ao contratador. No início do século seguinte estima-se em 350 o número

itos ao rei e ao contratador. No início do século seguinte estima-se em 350 o

de pipas de aguardente que Pernambuco exporta ; na Bahia não foi diferente: havia

número de pipas de aguardente que Pernambuco exporta ; na Bahia não foi difer-

39 alambiques na capital e 32 no recôncavo, e toda a produção era consumida

ente: havia 39 alambiques na capital e 32 no recôncavo, e toda a produção era con-

localmente . Aos poucos os engenhos seriam dotados de construções especiais

sumida localmente . Aos poucos os engenhos seriam dotados de construções espe-

para destilar seus derivados. Sebastião da Rocha Pitta menciona em 1724 a existên-

ciais para destilar seus derivados. Sebastião da Rocha Pitta menciona em 1724 a

cia nas fazendas de açúcar do recôncavo baiano de casas para “reduzir a águas

existência nas fazendas de açúcar do recôncavo baiano de casas para “reduzir a

ardentes” .

águas ardentes” .

INDIOS EM UMA PLANTAÇÃO, GRAVURA. RUGENDAS

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Em Minas Gerais, no século XVIII, contrariando as leis proibitivas de se montar

Em Minas Gerais, no século XVIII, contrariando as leis proibitivas de se montar

engenhos na região, multiplicaram-se os alambiques. No Maranhão e Pará, onde

engenhos na região, multiplicaram-se os alambiques. No Maranhão e Pará, onde

no início do século XVII segundo Frei Vicente do Salvador inexistiam tais unidades

no início do século XVII segundo Frei Vicente do Salvador inexistiam tais unidades

produtivas, notícias mencionam para o ano de 1751 que no Maranhão todos os 31

produtivas, notícias mencionam para o ano de 1751 que no Maranhão todos os 31

engenhos de açúcar se ocupavam em fazer aguardente. E havia ainda 123 engen-

engenhos de açúcar se ocupavam em fazer aguardente. E havia ainda 123 engen-

hocas . Não era apenas negócio de leigos pois nas fazendas dos Beneditinos e em

hocas . Não era apenas negócio de leigos pois nas fazendas dos Beneditinos e em

muitas missões do norte a sul se estilavam aguardente de cana.

muitas missões do norte a sul se estilavam aguardente de cana.

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< PISO, WILLEM. HISTORIA FRONTISPÍCIO ILUSTRADO. > ANTONIL, CULTURA FRONTISPÍCIO

E

NATURALIS

OPULÊNCIA

NO

BRASILIAE...

OS IMPULSOS DA FORTUNA E DA AGUARDENTE | Não é o acaso que motiva a expan-

OS IMPULSOS DA FORTUNA E DA AGUARDENTE | Não é o acaso que motiva a expan-

são dos destilados da cana do açúcar. Sua multiplicação está associada ao novo

são dos destilados da cana do açúcar. Sua multiplicação está associada ao novo

papel da América no império colonial português, com o declínio do comércio de

papel da América no império colonial português, com o declínio do comércio de

especiarias e da conquista nas índias orientais. O século XVII abre oportunidade

especiarias e da conquista nas índias orientais. O século XVII abre oportunidade

para o Brasil e sua doce potencialidade. Em uma espécie de prognóstico, escrevia

para o Brasil e sua doce potencialidade. Em uma espécie de prognóstico, escrevia

Luis Mendes de Vasconcelos em 1608 sobre o Brasil: “se tratarmos dele como

Luis Mendes de Vasconcelos em 1608 sobre o Brasil: “se tratarmos dele como

pedem as suas qualidades, pode-se fazer nele um grande reino” .

pedem as suas qualidades, pode-se fazer nele um grande reino” .

A expansão já começou embalada. A partir de 1570 florescem os engenhos de

A expansão já começou embalada. A partir de 1570 florescem os engenhos de

açúcar no Brasil. Nesta data havia 60 deles em funcionamento, em 1585 o número

açúcar no Brasil. Nesta data havia 60 deles em funcionamento, em 1585 o número

dobra para 120, em 1612 chegam a 192 e em 1629 a colônia possuía 346 engenhos.

dobra para 120, em 1612 chegam a 192 e em 1629 a colônia possuía 346 engenhos.

Os preços do açúcar também não decepcionam. Eles sobem no mercado interna-

Os preços do açúcar também não decepcionam. Eles sobem no mercado interna-

cional a partir de 1609, em correspondência a um clima geral de prosperidade,

cional a partir de 1609, em correspondência a um clima geral de prosperidade,

sobretudo com as tréguas entre Espanha e Províncias Unidas dos Países Baixos .

sobretudo com as tréguas entre Espanha e Províncias Unidas dos Países Baixos .

A introdução de inovações tecnológicas no fabrico do açúcar assegurou tam-

A introdução de inovações tecnológicas no fabrico do açúcar assegurou tam-

bém um salto de produtividade. Nos anos 1608-1612 certo padre trouxe do Peru a

bém um salto de produtividade. Nos anos 1608-1612 certo padre trouxe do Peru a

novidade que iria revolucionar o modo de produção do açúcar: o engenho de

novidade que iria revolucionar o modo de produção do açúcar: o engenho de

entrosas, ou de “três paus”, que substitutiam os dois eixos horizontais por tres ver-

entrosas, ou de “três paus”, que substitutiam os dois eixos horizontais por tres ver-

ticais e eliminavam a necessidade de grandes prensas. Era mais eficiente, rápido,

ticais e eliminavam a necessidade de grandes prensas. Era mais eficiente, rápido,

de custo reduzido e com instalação bem mais barata . A consolidação das relações

de custo reduzido e com instalação bem mais barata . A consolidação das relações

diretas dos mercadores da costa brasileira com África, em busca de escravos

diretas dos mercadores da costa brasileira com África, em busca de escravos impul-

impulsiona ainda mais o desenvolvimento da aguardente, gênero que os africanos

siona ainda mais o desenvolvimento da aguardente, gênero que os africanos exi-

exigiam como moeda de troca. Esse ritmo frenético de crescimento da economia

giam como moeda de troca. Esse ritmo frenético de crescimento da economia açu-

açucareira da América, no número de engenhos e na produtividade, e a opção

careira da América, no número de engenhos e na produtividade, e a opção pelos

pelos escravos africanos como fonte de braços para a lavoura de exportação no

escravos africanos como fonte de braços para a lavoura de exportação no Brasil

Brasil aceleram a produção da aguardente de cana e as oportunidades para ela que

aceleram a produção da aguardente de cana e as oportunidades para ela que deixe

deixe de ser mais uma das bebidas do universo domético dos engenhos.

de ser mais uma das bebidas do universo domético dos engenhos.

O médico holandês Guilherme Piso, talvez sem saber, revelava em primeira

O médico holandês Guilherme Piso, talvez sem saber, revelava em primeira mão

mão o processo de destilar açúcar na América ao publicar, em 1658, sua Historia

o processo de destilar açúcar na América ao publicar, em 1658, sua Historia Natural

Natural e Médica da Índia Ocidental. Sedento em refinar as antigas potenciali-

e Médica da Índia Ocidental. Sedento em refinar as antigas potencialidades da far-

dades da farmacopéia derivada do açúcar registra no nordeste holandês que “As

macopéia derivada do açúcar registra no nordeste holandês que “As virtudes médi-

virtudes médicas do açúcar, porquanto conhecidas, na maior parte, dos europeus,

cas do açúcar, porquanto conhecidas, na maior parte, dos europeus, serão aqui

serão aqui explanadas em poucas palavras. Caldo recém espremido da cana é frio,

explanadas em poucas palavras. Caldo recém espremido da cana é frio, e, se se des-

e, se se destilar no alambique, muito mais durável e eficaz. Cura muitos males dos

tilar no alambique, muito mais durável e eficaz. Cura muitos males dos olhos, bem

olhos, bem como ardores do fígado e dos rins."

como ardores do fígado e dos rins."

Dois tipos de aguardentes nasceram a esta altura. A primitiva era elaborada pela

Dois tipos de aguardentes nasceram a esta altura. A primitiva era elaborada pela

destilação do mel que escorria das formas de açúcar depois que, retirados das formas

destilação do mel que escorria das formas de açúcar depois que, retirados das formas

de barro, são colocados para purgar: “pingando por um buraco que tem, o primeiro

de barro, são colocados para purgar: “pingando por um buraco que tem, o primeiro

mel (...). Este mel é inferior, e dá-se no tempo do inverno aos escravos do engenho”, ou

mel (...). Este mel é inferior, e dá-se no tempo do inverno aos escravos do engenho”, ou

BRASIL.., 1711.

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CARTA DE DUARTE MAYNE ENCOMENDANDO PENAS DE PAPAGAIO, AÇÚCAR E PAU DE CRAVO. FUNCHAL, 20 DE DEZEMBRO DE 1670.

vendem àqueles que “estilam agua ardente”, cabendo ao oficial purgador de açúcar a

vendem àqueles que “estilam agua ardente”, cabendo ao oficial purgador de açúcar a

obrigação de guardar o mel para ser utilizado na destilação da aguardente .

obrigação de guardar o mel para ser utilizado na destilação da aguardente .

Na Bahia alguns lavradores irritados com o excesso de impostos que pagam

Na Bahia alguns lavradores irritados com o excesso de impostos que pagam

confirmam em meados do século XVIII essa sequência. Dentre estes produtores

confirmam em meados do século XVIII essa sequência. Dentre estes produtores

havia aqueles que “tem casas de destilar aguardente e a fazem todo o ano do mel

havia aqueles que “tem casas de destilar aguardente e a fazem todo o ano do mel

que compram aos senhores de engenho”. E revelam o segundo tipo de aguardente,

que compram aos senhores de engenho”. E revelam o segundo tipo de aguardente,

feita ali por outros que possuíam “engenhos menores a que chamam engenhocas

feita ali por outros que possuíam “engenhos menores a que chamam engenhocas

e lhe servem somente de moer as canas que plantam nas terras que por serem fra-

e lhe servem somente de moer as canas que plantam nas terras que por serem fra-

cas as produzem com pouca substância e não deitam sumo capaz de se fazer dele

cas as produzem com pouca substância e não deitam sumo capaz de se fazer dele

açucar, e para o aproveitarem o destilam e reduzem a aguardente” .

açucar, e para o aproveitarem o destilam e reduzem a aguardente” .

A generalização do processo de destilação multiplica e embaralha os nomes

A generalização do processo de destilação multiplica e embaralha os nomes

que recebe a aguardente desde o século XVII: “aguardente da terra”, “aguardente

que recebe a aguardente desde o século XVII: “aguardente da terra”, “aguardente

que na terra se lavra”, “aguardente do país”, “aguardente de cachaça”, “aguardente

que na terra se lavra”, “aguardente do país”, “aguardente de cachaça”, “aguardente

feita de açúcar”, “aguardente de cana”. Para complicar “água ardente” nem sempre

feita de açúcar”, “aguardente de cana”. Para complicar “água ardente” nem sempre

era sinônimo de destilado. Antonil a emprega como sinônimo da “garapa azeda” ,

era sinônimo de destilado. Antonil a emprega como sinônimo da “garapa azeda” ,

que sofrera fermentação. Aceitava ainda significados regionais. Em São Paulo a

que sofrera fermentação. Aceitava ainda significados regionais. Em São Paulo a

designação “aguardente” servia mais comumente à bebida que vinha do reino ou

designação “aguardente” servia mais comumente à bebida que vinha do reino ou a

a aguardente ali fabricada com milho . A jeritibita era outra designação corrente

aguardente ali fabricada com milho . A jeritibita era outra designação corrente

para a aguardente, empregada na África.

para a aguardente, empregada na África.

O termo cachaça é mais preciso. Depois de perder seu primeiro significado, aos poucos

O termo cachaça é mais preciso. Depois de perder seu primeiro significado, aos poucos

vai ser promovida a sinônimo da aguardente feita pela destilação do mel. Até mesmo nas mis-

vai ser promovida a sinônimo da aguardente feita pela destilação do mel. Até mesmo nas mis-

sões do Mato Grosso a aguardente assim produzida mereceu a designação de “cachaça” .

sões do Mato Grosso a aguardente assim produzida mereceu a designação de “cachaça” .

A distinção entre “aguardente” e “cachaça” existe desde cedo, ao menos na

A distinção entre “aguardente” e “cachaça” existe desde cedo, ao menos na doc-

documentação oficial: na Bahia uma determinação do governador geral do Brasil

umentação oficial: na Bahia uma determinação do governador geral do Brasil de

de 1640, ávido por receitas para a guerra, menciona o tributo “que se pôs nas casas,

1640, ávido por receitas para a guerra, menciona o tributo “que se pôs nas casas,

em que se vende aguardente, e cachaça”

em que se vende aguardente, e cachaça”

Em algum momento impreciso, ao que parece situado em meados do século

Em algum momento impreciso, ao que parece situado em meados do século

XVIII, começa-se a chamar a aguardente da terra de cachaça: em 1742, segundo

XVIII, começa-se a chamar a aguardente da terra de cachaça: em 1742, segundo

Almeida Jr., “já se dizia cachaça por aguardente” em São Paulo . Isto sem falar nos

Almeida Jr. 164, “já se dizia cachaça por aguardente” em São Paulo . Isto sem falar

neologismos de ocasião: nas Cartas Chilenas, Tomás Antônio Gonzaga criou em

nos neologismos de ocasião: nas Cartas Chilenas, Tomás Antônio Gonzaga criou em

fins do século XVIII a expressão “cachaça ardente” .

fins do século XVIII a expressão “cachaça ardente” .

Com o rápido deslocamento da palavra, dissociada do seu primeiro significado

Com o rápido deslocamento da palavra, dissociada do seu primeiro significado

e, ao longo do tempo aproximada de diferentes processos técnicos de destilação,

e, ao longo do tempo aproximada de diferentes processos técnicos de destilação, a

a cachaça não perde contudo o forte sentido depreciativo que conhecia. Se não era

cachaça não perde contudo o forte sentido depreciativo que conhecia. Se não era

mais feita de repugnantes borras da fervura do sumo da cana e oferecida aos ani-

mais feita de repugnantes borras da fervura do sumo da cana e oferecida aos ani-

mais da fazenda, servia agora para estabelecer uma distinção e uma condenação

mais da fazenda, servia agora para estabelecer uma distinção e uma condenação

social de seus novos consumidores, escravos, africanos ou crioulos, e população

social de seus novos consumidores, escravos, africanos ou crioulos, e população de

de cor liberta, ou ainda brancos e mulatos empobrecidos.

cor liberta, ou ainda brancos e mulatos empobrecidos.

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PEREIRA, JOÃO MANSO. MEMORIA ECONOMICO DE TRANSPORTAR PARA ARDENTE DO

BRAZIL

SOBRE O METHODO

PORTUGAL

A AGUA

COM GRANDE PROVEITO DOS FABRI-

CANTES, E COMMERCIANTES, APRESENTADA, E OFFERECIDA A SUA ALTEZA REAL O PRINCIPE DO BRAZIL NOSSO SENHOR, / POR JOÃO MANSO PEREIRA ... [LISBOA] : NA OFFICINA DE SIMÃO THADDEO FERREIRA,1798. 28 P. ; 18,5 CM. MORAES, R.B. DE BIB. BRASILIANA

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ENGENHO EM PERNAMBUCO, FRANZ POST OFÍCIO DE PEDRO DE VASCONCELOS E SOUSA, GOVERNADOR GERAL DO BRASIL, AOS CORONÉIS ANTONIO FERREIRA, EGAS MUNIZ BARRETO E ANTONIO DE CAMPOS, ORDENANDO QUE LAVRADORES DE CANA, LENHADORES E SENHORES DE ENGENHO FOSSEM OBRIGADOS A PLANTAR QUINHENTAS COVAS DE MANDIOCA, POR ESCRAVO, COM EXCEÇÃO DAQUELES QUE COMPROVADAMENTE, NÃO DISPUSESSEM DE TERRA PARA FAZÊ-LO. AOS INFRATORES SERIAM IMPOSTAS AS PENAS PREVISTAS NO BANDO DE 2 DE MAIO DE 1712. BAHIA, 14 DE JANEIRO DE 1712.

Independente do nome, não tiveram vida fácil os produtores de aguardente,

Independente do nome, não tiveram vida fácil os produtores de aguardente,

cachaça ou vinho de mel que seguiam embalados pelo sucesso da produção açu-

cachaça ou vinho de mel que seguiam embalados pelo sucesso da produção açu-

careira e expansão dos alambiques. Não demorou para que os interesses dos co-

careira e expansão dos alambiques. Não demorou para que os interesses dos com-

merciantes de vinho atacassem.

erciantes de vinho atacassem.

Em uma decisão polêmica de 1639 o Governador e capitão-general do Estado do

Em uma decisão polêmica de 1639 o Governador e capitão-general do Estado do

Brasil proíbe a fabricação da bebida em toda a colônia, em clara reação à expansão

Brasil proíbe a fabricação da bebida em toda a colônia, em clara reação à expansão

repentina da bebida que roubava consumidores, : “Mando que nenhuma pessoa de

repentina da bebida que roubava consumidores, : “Mando que nenhuma pessoa de

qualquer sorte e condição que seja, use das ditas oficinas e alambiques de

qualquer sorte e condição que seja, use das ditas oficinas e alambiques de

aguardente, nem a faça neste estado dos meles e remeles do açúcar dele (...)” determi-

aguardente, nem a faça neste estado dos meles e remeles do açúcar dele (...)” determi-

nava a provisão emitida na Bahia em 9 de outubro de 1639 . As alegações voltam-se

nava a provisão emitida na Bahia em 9 de outubro de 1639 . As alegações voltam-se

para a quebra na arrecadação dos dízimos sobre o açúcar, violência entre os escravos

para a quebra na arrecadação dos dízimos sobre o açúcar, violência entre os escravos

sob o efeito da bebida e diminuição no consumo do vinho português, cuja

sob o efeito da bebida e diminuição no consumo do vinho português, cuja

arrecadação era essencial para manter a defesa das cidades coloniais. Os argumen-

arrecadação era essencial para manter a defesa das cidades coloniais. Os argumen-

tos não foram fortes o suficiente para garantir o cumprimento da ordem.

tos não foram fortes o suficiente para garantir o cumprimento da ordem.

Dez anos depois, a medida reaparecia, reforçada por um Alvará real que proíbe a

Dez anos depois, a medida reaparecia, reforçada por um Alvará real que proíbe a

venda do vinho de mel, da aguardente e da cachaça no Brasil . Permite contudo que

venda do vinho de mel, da aguardente e da cachaça no Brasil . Permite contudo que

os escravos dos engenhos o fabricassem, desde que para o auto-consumo. A nova

os escravos dos engenhos o fabricassem, desde que para o auto-consumo. A nova

proibição decorria da pressão direta da Companhia Geral de Comércio do Brasil, esta-

proibição decorria da pressão direta da Companhia Geral de Comércio do Brasil, esta-

belecida no mesmo ano de 1649 e que detinha a exclusividade no abastecimento da

belecida no mesmo ano de 1649 e que detinha a exclusividade no abastecimento da

Colônia de quatro dos principais gêneros, vinho, farinha de trigo, azeite de oliva e

Colônia de quatro dos principais gêneros, vinho, farinha de trigo, azeite de oliva e

bacalhau, e controlava a exportação de pau-brasil. Os lucros dos acionistas com a dis-

bacalhau, e controlava a exportação de pau-brasil. Os lucros dos acionistas com a dis-

tribuição exclusiva do vinho nas tabernas coloniais dependiam da morte dos engen-

tribuição exclusiva do vinho nas tabernas coloniais dependiam da morte dos engen-

hos. Diante da calamidade que se avizinhava com a medida para os produtores de

hos. Diante da calamidade que se avizinhava com a medida para os produtores de

açúcar, nem o governador do Rio de Janeiro acatou a ordem, permitindo que engen-

açúcar, nem o governador do Rio de Janeiro acatou a ordem, permitindo que engen-

hos da capitania continuassem a fabricar aguardente e vinho de mel. E diante das

hos da capitania continuassem a fabricar aguardente e vinho de mel. E diante das

razões habitualmente alegadas da competição do vinho com a cachaça, dom Luis de

razões habitualmente alegadas da competição do vinho com a cachaça, dom Luis de

Almeida atalhava: “não é a aguardente que a tira e sim a falta do dinheiro”. Ao mesmo

Almeida atalhava: “não é a aguardente que a tira e sim a falta do dinheiro”. Ao mesmo

tempo diante do argumento da violência social e degradação com o consumo eleva-

tempo diante do argumento da violência social e degradação com o consumo eleva-

do do alcool questiona: “qual é o branco que morre pelo beber que não morra beben-

do do alcool questiona: “qual é o branco que morre pelo beber que não morra beben-

do vinho, por que o excesso não tem limites?”

do vinho, por que o excesso não tem limites?”

Era tarde demais para barrar a expansão da “aguardente da terra”. E as câmaras

Era tarde demais para barrar a expansão da “aguardente da terra”. E as câmaras

municipais não demoram para se assanhar com as expectativas fiscais da bebida

municipais não demoram para se assanhar com as expectativas fiscais da bebida

que se dissemina pelas ruas, tabernas das vilas e arraiais e que embarcava para a

que se dissemina pelas ruas, tabernas das vilas e arraiais e que embarcava para a

África. Aos poucos seu comércio encontra-se enredado com uma infinidade de

África. Aos poucos seu comércio encontra-se enredado com uma infinidade de

taxas, quase sempre voltadas para despesas militares da colônia. Em toda a parte

taxas, quase sempre voltadas para despesas militares da colônia. Em toda a parte

surgiam os subsídios da aguardente.

surgiam os subsídios da aguardente.

No Rio de Janeiro, diante da queda de receita do comércio de vinhos, a partir de

No Rio de Janeiro, diante da queda de receita do comércio de vinhos, a partir de

1661 a arrecadação do subsídio da aguardente e jeribita foi entregue a contrata-

1661 a arrecadação do subsídio da aguardente e jeribita foi entregue a contrata-

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< MARCHÉ AUX NÉGRES E VUE DE OLINDA, RUGENDAS, JOHANN MORITZ. VOYAGE PITTORESQUE DANS LE BRÉSIL, PAR MAURICE RUGENDAS; TRADUIT DE L’ALLEMAND PAR MR. COLBERY [...]. PARIS, ENGELMANN & CIE., 1835

dores que arrendavam o direito de cobrar os impostos sobre o comércio da bebida

dores que arrendavam o direito de cobrar os impostos sobre o comércio da bebida

em nome do Rei. Parte dos recursos serviriam para sustentar a defesa do Rio e

em nome do Rei. Parte dos recursos serviriam para sustentar a defesa do Rio e

outra parte para socorrer a infantaria da Colônia do Sacramento, cidadela por-

outra parte para socorrer a infantaria da Colônia do Sacramento, cidadela por-

tuguesa a beira do rio da Prata.

tuguesa a beira do rio da Prata.

A moda pega e outras câmaras, como a da Vila de Santo Antônio de Sá, pedem

A moda pega e outras câmaras, como a da Vila de Santo Antônio de Sá, pedem

o mesmo direito de tributar a aguardente da terra e usar o dinheiro para pagar a

o mesmo direito de tributar a aguardente da terra e usar o dinheiro para pagar a

defesa. Na Bahia o imposto cobrado nos alambiques pagava a sustentação da

defesa. Na Bahia o imposto cobrado nos alambiques pagava a sustentação da

infantaria da praça desde o século XVII.

infantaria da praça desde o século XVII.

De seu consumo viriam ainda os recursos para pagar o salário dos professores

De seu consumo viriam ainda os recursos para pagar o salário dos professores

que atuavam na América, depois da expulsão dos jesuítas. O subsídio literário esta-

que atuavam na América, depois da expulsão dos jesuítas. O subsídio literário esta-

belecido através de Carta de Lei 1772 era cobrado sobre cada barril de aguardente

belecido através de Carta de Lei 1772 era cobrado sobre cada barril de aguardente

de cana, além do gado que se cortasse nos açougues. Em São Paulo o governador

de cana, além do gado que se cortasse nos açougues. Em São Paulo o governador

dom Luiz Antônio de Souza Botelho Mourão, manda em 1774 “criar escolas públi-

dom Luiz Antônio de Souza Botelho Mourão, manda em 1774 “criar escolas públi-

cas de ler, escrever e contar, e estudos de gramática, grego, retórica e filosofia”.

cas de ler, escrever e contar, e estudos de gramática, grego, retórica e filosofia”.

Para pagar os novos mestres colabora as receitas do comércio da aguardente . A se

Para pagar os novos mestres colabora as receitas do comércio da aguardente . A se

considerar a produção e consumo da bebida, algum conforto deveriam ter os pro-

considerar a produção e consumo da bebida, algum conforto deveriam ter os pro-

fessores de então.

fessores de então.

Outras vezes as comunidades identificaram nas taxações sobre a aguardente a

Outras vezes as comunidades identificaram nas taxações sobre a aguardente a

saída para problemas emergenciais de caixa. Em São Jorge de Ilhéus na Bahia os

saída para problemas emergenciais de caixa. Em São Jorge de Ilhéus na Bahia os

devotos paroquianos criaram o tributo sobre os alambiques para as obras da igre-

devotos paroquianos criaram o tributo sobre os alambiques para as obras da igre-

Pernambuco, para escapar do controle da metrópole e do monopólio de seus nego-

para escapar do controle da metrópole e do monopólio de seus negociantes.

ja matriz em 1724. Cobram ainda meia pataca por cada medida de aguardente do

ja matriz em 1724. Cobram ainda meia pataca por cada medida de aguardente do

ciantes. Acabaram por levar para lá a bebida, ao lado do tabaco, farinha de mandio-

Acabaram por levar para lá a bebida, ao lado do tabaco, farinha de mandioca,

reino e meia para as da terra. A experiência dá certo e logo pedem que o tributo

reino e meia para as da terra. A experiência dá certo e logo pedem que o tributo

ca, búzios da costa da Bahia e pólvora .

búzios da costa da Bahia e pólvora .

seja utilzado para a matriz de São Miguel do Rio da Contas . Em São Paulo em 1646

seja utilzado para a matriz de São Miguel do Rio da Contas . Em São Paulo em 1646

Na Costa do ouro e na Costa dos Escravos a jeribita era apreciada assim como

Na Costa do ouro e na Costa dos Escravos a jeribita era apreciada assim como

graças a uma taxa aprovada pela câmara sobre o aumento do preço da aguardente

graças a uma taxa aprovada pela câmara sobre o aumento do preço da aguardente

o rum antilhano, desde o século XVII, pelo seu elevado teor alcoólico. A chegada

o rum antilhano, desde o século XVII, pelo seu elevado teor alcoólico. A chegada

da terra se conseguiu construir na cidade uma cadeia de pedra e cal .

da terra se conseguiu construir na cidade uma cadeia de pedra e cal .

dessas bebidas na África Atlântica, ao lado de outras que eram importadas, como

dessas bebidas na África Atlântica, ao lado de outras que eram importadas, como

vinhos brancos e tintos, secos e doces, cerveja européia e cidra, ocupou o lugar de

vinhos brancos e tintos, secos e doces, cerveja européia e cidra, ocupou o lugar de

bebidas fermentadas de baixo teor alcoólico .

bebidas fermentadas de baixo teor alcoólico .

E pobre daquele que não pagasse o imposto. A expectativa com o recolhimento de

E pobre daquele que não pagasse o imposto. A expectativa com o recolhimento de

dízimos sobre a aguardente em Minas faz com que o Bispo de Mariana em 1776, ao

dízimos sobre a aguardente em Minas faz com que o Bispo de Mariana em 1776, ao

saber que os lavradores e senhores de engenho sonegavam, roga uma verdadeira

saber que os lavradores e senhores de engenho sonegavam, roga uma verdadeira

Em Angola e entre as populações africanas das redondezas, a predileção pela

Em Angola e entre as populações africanas das redondezas, a predileção pela

praga com os “castigos que Deus Nosso Senhor dá na esterilidade das terras e destem-

praga com os “castigos que Deus Nosso Senhor dá na esterilidade das terras e destem-

aguardente substituiu em várias regiões o apreço às bebidas tradicionais, como as

aguardente substituiu em várias regiões o apreço às bebidas tradicionais, como as

peranças dos tempos que tal sejam efeitos da divina justiça justamente merecidos”

peranças dos tempos que tal sejam efeitos da divina justiça justamente merecidos”

cervejas africanas e o malafo, chamado pelos portugueses de “vinho de palma”,

cervejas africanas e o malafo, chamado pelos portugueses de “vinho de palma”,

bebida fermentada tradicional extraída de diversos tipos de palmeiras e que con-

bebida fermentada tradicional extraída de diversos tipos de palmeiras e que con-

AMARGA JERIBITA | Com a jeribita, designação que a cachaça do Brasil conheceu

AMARGA JERIBITA | Com a jeribita, designação que a cachaça do Brasil conheceu

hecia forte valor cerimonial. A jeribita prevalece em Angola a partir de 1650 sobre

hecia forte valor cerimonial. A jeribita prevalece em Angola a partir de 1650 sobre

na África, a aguardente mostrou talvez sua face mais perversa. Acelerada a pro-

na África, a aguardente mostrou talvez sua face mais perversa. Acelerada a pro-

os vinhos portugueses que tinham menor teor alcoólico, eram mais caros e se

os vinhos portugueses que tinham menor teor alcoólico, eram mais caros e se

dução do açúcar, as águas do Atlântico aumentam o troca-troca entre Brasil e

dução do açúcar, as águas do Atlântico aumentam o troca-troca entre Brasil e

estragavam com o calor. Ali, em atitude semelhante a que praticou no Brasil, a

estragavam com o calor. Ali, em atitude semelhante a que praticou no Brasil, a

África. Braços para as lavouras e engenhos de açúcar, mercadorias de escambo

África. Braços para as lavouras e engenhos de açúcar, mercadorias de escambo

Coroa chegou a proibir a importação de aguardente do Brasil em Luanda entre

Coroa chegou a proibir a importação de aguardente do Brasil em Luanda entre

para os reinos e traficantes africanos.

para os reinos e traficantes africanos.

1679 e 1695 a fim de proteger os negociantes de vinho portugueses. Debalde, pois

1679 e 1695 a fim de proteger os negociantes de vinho portugueses. Debalde, pois

nos mercados do interior não se aceitava outra bebida, obrigando os traficantes a

nos mercados do interior não se aceitava outra bebida, obrigando os traficantes a

adequirirem a aguardente através do contrabando .

adequirirem a aguardente através do contrabando .

A cachaça chega ao litoral africano graças aos traficantes de escravos que

A cachaça chega ao litoral africano graças aos traficantes de escravos que apar-

aparelhavam seus barcos na costa brasileira, especialmente na Bahia e

elhavam seus barcos na costa brasileira, especialmente na Bahia e Pernambuco,

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DEBRET, JEAN BAPTISTE.ENGENHO MANUAL QUE FAZ CALDO DE CANA, 1822, AQUARELA, 17,6 X 24,5 CM OFICIAIS DA CÂMARA DE JACAREI . DETALHE DA CARTA AO GOVERNADOR LUIS ANTONIO DE SOUSA BOTELHO MOURÃO TRATANDO DA CONVENIÊNCIA DE SE CULTIVAR NAQUELA VILA O TABACO E A CANA, E DANDO INFORMAÇÕES SOBRE A CULTURA E A COLHEITA DO ALGODÃO.JUNDIAI, 02/09/1765 .

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Na segunda metade do século XVII já não se fazia negócio em grande parte da

Na segunda metade do século XVII já não se fazia negócio em grande parte da

costa africana sem aguardentes, seja de uva, cereais ou de cana . O diretor do forte

costa africana sem aguardentes, seja de uva, cereais ou de cana . O diretor do forte

de Ajudá em 1731 João Basílio narra que, com a chegada do Rei de Daomé a Arda foi

de Ajudá em 1731 João Basílio narra que, com a chegada do Rei de Daomé a Arda foi

obrigado a lhe oferecer “mimos de panos” de diversos tipos e de “água ardente, e

obrigado a lhe oferecer “mimos de panos” de diversos tipos e de “água ardente, e

frasqueiras de licores, para o dito rei e seus principais cabeceiras” .

frasqueiras de licores, para o dito rei e seus principais cabeceiras” .

Comerciantes brasileiros alcançam destaque na África graças a predileção pela

Comerciantes brasileiros alcançam destaque na África graças a predileção pela

aguardente de cana, ao do tabaco baiano. Como afirma José da Silva Lisboa, quan-

aguardente de cana, ao do tabaco baiano. Como afirma José da Silva Lisboa, quan-

do escreve da Bahia para Portugal em 1781: “este comércio da África é de grande

do escreve da Bahia para Portugal em 1781: “este comércio da África é de grande

importância para este lugar [Bahia], e sua base é o tabaco de refugo .. e a

importância para este lugar [Bahia], e sua base é o tabaco de refugo .. e a

aguardente do país” .

aguardente do país” .

A CACHAÇA

A CACHAÇA

E SEUS

ENGENHOS | Deste lado do Atlântico novas supresas espre-

E SEUS

ENGENHOS | Deste lado do Atlântico novas supresas espre-

itavam o destino da cachaça. Nos engenhos do Brasil ela chega a roubar a cena do

itavam o destino da cachaça. Nos engenhos do Brasil ela chega a roubar a cena do

principal produto, o açúcar, em momentos de instabilidade do mercado. O negócio

principal produto, o açúcar, em momentos de instabilidade do mercado. O negócio

do açúcar era bem mais arriscado do que a história sugere e o mercado de expor-

do açúcar era bem mais arriscado do que a história sugere e o mercado de expor-

tação caprichoso. Se em certo ano a Europa consumia avidamente, no outro os

tação caprichoso. Se em certo ano a Europa consumia avidamente, no outro os

preços despencavam e ninguém comprava um pão que fosse, jogando no deses-

preços despencavam e ninguém comprava um pão que fosse, jogando no deses-

pero os senhores de engenho. Escravos, peças de reposição, dívidas, salários de ofi-

pero os senhores de engenho. Escravos, peças de reposição, dívidas, salários de ofi-

ciais mecânicos aproximavam as contas do vermelho. Conforme percebeu Antonil,

ciais mecânicos aproximavam as contas do vermelho. Conforme percebeu Antonil,

“homens de bastante cabedal e bom juízo” preferiam “antes ser lavradores pos-

“homens de bastante cabedal e bom juízo” preferiam “antes ser lavradores pos-

santes de cana (...) do que senhores de engenho por poucos anos”. O risco era

santes de cana (...) do que senhores de engenho por poucos anos”. O risco era

grande “com as mortes e fugidas dos servos, e com a perda de muitos cavalos e

grande “com as mortes e fugidas dos servos, e com a perda de muitos cavalos e bois

bois e com as secas que de improviso apertam e mirram a cana e com os desastres

e com as secas que de improviso apertam e mirram a cana e com os desastres (...)”

(...)” .Nestes momentos dificeis entravam em cena as receitas salvadoras do comér-

.Nestes momentos dificeis entravam em cena as receitas salvadoras do comércio

cio da cachaça que, diante da crise, permitia que os proprietários dos engenhos

da cachaça que, diante da crise, permitia que os proprietários dos engenhos equi-

equilibrassem o Deve e o Haver de sua contabilidade.

librassem o Deve e o Haver de sua contabilidade.

No Rio de Janeiro afirmava-se no século XVIII que foi a cachaça e não o açúcar

No Rio de Janeiro afirmava-se no século XVIII que foi a cachaça e não o açúcar

o principal produto dos engenhos. Muitos senhores de engenho defendiam que

o principal produto dos engenhos. Muitos senhores de engenho defendiam que era

era o comércio da aguardente que garantia o seu lucro, uma vez que a venda do

o comércio da aguardente que garantia o seu lucro, uma vez que a venda do açú-

açúcar apenas pagava as despesas . Não era diferente do que se passava com a

car apenas pagava as despesas . Não era diferente do que se passava com a econo-

economia na capitania de Minas Gerais. A produção da aguardente compensava as

mia na capitania de Minas Gerais. A produção da aguardente compensava as

baixas da mineração

baixas da mineração

No século XVIII, na América portuguesa, as condições para o consumo em

No século XVIII, na América portuguesa, as condições para o consumo em

massa da aguardente de cana aparecem pela primeira. vez. Tal situação foi, em

massa da aguardente de cana aparecem pela primeira. vez. Tal situação foi, em

parte, impulsionada pelos progressos técnicos na destilação e, principalmente,

parte, impulsionada pelos progressos técnicos na destilação e, principalmente,

pelo surgimento de um mercado interno colonial. Estudos a respeito da evolução

pelo surgimento de um mercado interno colonial. Estudos a respeito da evolução

de nossa população mostram que o Brasil, entre os séculos XVI e XVII, cresce muito

de nossa população mostram que o Brasil, entre os séculos XVI e XVII, cresce muito

lentamente. Por volta da década de 1690, essa situação sofre profunda alteração.

lentamente. Por volta da década de 1690, essa situação sofre profunda alteração.

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FÁBRICA DE ENGENHO, GRAVURA. IN MONTANUS, ARNOLDUS. DE NIEUWE ONBEKEND WEERELD...AMSTERDAM, BY JACOB MEURS..., 1671.

MOULIN À SUCRE RUGENDAS, JOHANN MORITZ. VOYAGE PITTORESQUE DANS LE BRÉSIL, PAR MAURICE RUGENDAS; TRADUIT DE L’ALLEMAND PAR MR. COLBERY [...]. PARIS, ENGELMANN & CIE., 1835

EN

Razão? Ora, após muito palmilhar o sertão em busca de índios para escravizar, os

Razão? Ora, após muito palmilhar o sertão em busca de índios para escravizar, os

Por esta época, o preço da cachaça eleva-se vertiginosamente, estimulando

Por esta época, o preço da cachaça eleva-se vertiginosamente, estimulando

bandeirantes descobrem áreas produtoras de ouro. Nas Minas Gerais e, logo a

bandeirantes descobrem áreas produtoras de ouro. Nas Minas Gerais e, logo a

ainda mais a formação de uma malha de pequenos produtores. A explosão desse

ainda mais a formação de uma malha de pequenos produtores. A explosão desse

seguir, em Goiás e Mato Grosso surgem numerosos arraiais e vilas. Entre 1700 e

seguir, em Goiás e Mato Grosso surgem numerosos arraiais e vilas. Entre 1700 e

consumo também é estimulada pela combinação de novas e velhas tradições ali-

consumo também é estimulada pela combinação de novas e velhas tradições ali-

1750, a população colonial triplica, não somente devido a chegada de portugueses,

1750, a população colonial triplica, não somente devido a chegada de portugueses,

mentares. Desde muito, nas regiões açucareiras, a jeribita era dada aos escravos,

mentares. Desde muito, nas regiões açucareiras, a jeribita era dada aos escravos,

ávidos por descobrir e explorar ouro e pedras preciosas, como também pela impor-

ávidos por descobrir e explorar ouro e pedras preciosas, como também pela impor-

como alimento, principalmente pela manhã, antes do início do trabalho agrícola .

como alimento, principalmente pela manhã, antes do início do trabalho agrícola .

tação sem precedentes de escravos africanos.

tação sem precedentes de escravos africanos.

Sabemos que esse hábito não é dos mais recomendáveis, mas ele também era com-

Sabemos que esse hábito não é dos mais recomendáveis, mas ele também era com-

Toda esta gente volta-se para a exploração da riqueza mineral. Nas Minas,

Toda esta gente volta-se para a exploração da riqueza mineral. Nas Minas,

partilhado pela população livre e nutria-se na antiquíssima tradição da medicina

partilhado pela população livre e nutria-se na antiquíssima tradição da medicina

surgem roças produtoras de alimentos, mas nem sempre capazes de atender as

surgem roças produtoras de alimentos, mas nem sempre capazes de atender as

clássica. Em livro publicado em 1721, Francisco da Fonseca Henriquez – nada

clássica. Em livro publicado em 1721, Francisco da Fonseca Henriquez – nada

necessidades alimentares mínimas de uma população que não pára de crescer. Tal

necessidades alimentares mínimas de uma população que não pára de crescer. Tal

menos do que o médico do Rei D. João V – afirma, por exemplo: a aguardente é cal-

menos do que o médico do Rei D. João V – afirma, por exemplo: a aguardente é cal-

situação também estimula a agricultura nas províncias vizinhas. Áreas produtoras

situação também estimula a agricultura nas províncias vizinhas. Áreas produtoras

ida e seca em alto grau. É muito útil nas naturezas frias e úmidas, em pessoas

ida e seca em alto grau. É muito útil nas naturezas frias e úmidas, em pessoas

de açúcar para exportação, como Bahia e Rio de Janeiro, passam a produzir cada vez

de açúcar para exportação, como Bahia e Rio de Janeiro, passam a produzir cada vez

grossas (ou seja, obesas), nos velhos e nos que têm o estômago débil por falta de

grossas (ou seja, obesas), nos velhos e nos que têm o estômago débil por falta de

mais rapadura e cachaça para atender ao mercado interno. O negócio da cachaça

mais rapadura e cachaça para atender ao mercado interno. O negócio da cachaça

calor... A bebida tudo curava: dissipa os flatos, consome as fleumas, alenta os espíri-

calor... A bebida tudo curava: dissipa os flatos, consome as fleumas, alenta os espíri-

vira profissão. Em 1714, nas devassas abertas contra cariocas suspeitos de praticas

vira profissão. Em 1714, nas devassas abertas contra cariocas suspeitos de praticas

tos, vigora o coração, anima o sangue, facilita a circulação, restaura as forças e é

tos, vigora o coração, anima o sangue, facilita a circulação, restaura as forças e é

judaizantes, registra-se a prisão de José Barreto, que declara ser aguardenteiro .

judaizantes, registra-se a prisão de José Barreto, que declara ser aguardenteiro .

remédio nas síncopes, nas apoplexias, nas vertigens e nos letargos...Seu consumo

remédio nas síncopes, nas apoplexias, nas vertigens e nos letargos...Seu consumo

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RUGENDAS, VILLA RICA ESCRAVOS MINEIRANDO EM RIOS.

era assim recomendado: tomando uma colher dela em caldo de galinha, de manhã,

era assim recomendado: tomando uma colher dela em caldo de galinha, de manhã,

em jejum ... .

em jejum ... .

É bem verdade que esse conjunto de recomendações dizia respeito à

É bem verdade que esse conjunto de recomendações dizia respeito à

aguardente de uva. Nada impedia, porém, que os colonos as adaptassem no uso

aguardente de uva. Nada impedia, porém, que os colonos as adaptassem no uso

da cachaça. Prática, aliás, muito bem documentada nas receitas dos boticários

da cachaça. Prática, aliás, muito bem documentada nas receitas dos boticários

mineiros do século XVIII: Observamos que as receitas seguiam determinados

mineiros do século XVIII: Observamos que as receitas seguiam determinados

padrões, onde purgas eram freqüentes, acompanhadas ou não de prescrições de

padrões, onde purgas eram freqüentes, acompanhadas ou não de prescrições de

águas específicas, tinturas, emplastros, vomitórios, bálsamos, ungüentos e

águas específicas, tinturas, emplastros, vomitórios, bálsamos, ungüentos e

xaropes. Muitas vezes, esses medicamentos também estavam acompanhados de

xaropes. Muitas vezes, esses medicamentos também estavam acompanhados de

doses de aguardente das mais variadas procedências e qualidades, e de vinho .

doses de aguardente das mais variadas procedências e qualidades, e de vinho .

Nestes tempos aguardente não servia apenas para alegrar os espíritos. Por

Nestes tempos aguardente não servia apenas para alegrar os espíritos. Por

mais estranho que isto pareça hoje, o uso comum, multiplicado, e que empurrava

mais estranho que isto pareça hoje, o uso comum, multiplicado, e que empurrava

seu consumo, era medicinal.

seu consumo, era medicinal.

O consumo da cachaça, principalmente entre escravos e homens livres pobres,

O consumo da cachaça, principalmente entre escravos e homens livres pobres,

encontra, assim, poderosos partidários. De acordo com tradições populares, tam-

encontra, assim, poderosos partidários. De acordo com tradições populares, tam-

bém aceitas nos meios oficiais, a bebida era vista como alimento ideal para quem

bém aceitas nos meios oficiais, a bebida era vista como alimento ideal para quem

trabalhasse em áreas insalubres. No contexto minerador, isso era ainda mais

trabalhasse em áreas insalubres. No contexto minerador, isso era ainda mais

incentivado devido ao fato de a aguardente ser uma fonte calórica para os

incentivado devido ao fato de a aguardente ser uma fonte calórica para os

escravos que enfrentavam o garimpo em gélidos rios. Em alguns engenhos do

escravos que enfrentavam o garimpo em gélidos rios. Em alguns engenhos do

nordeste a cachaça era fornecida aos negros do eito logo com a primeira refeição

nordeste a cachaça era fornecida aos negros do eito logo com a primeira refeição

do dia, a fim de que melhor pudessem suportar o árduo trabalho nos canaviais

do dia, a fim de que melhor pudessem suportar o árduo trabalho nos canaviais

durante o inverno, semi-nus, expostos à chuva, atolados no massapê, sem que

durante o inverno, semi-nus, expostos à chuva, atolados no massapê, sem que

ninguém soubesse, naquele tempo, que a cachaça fornece cerca de sete calorias

ninguém soubesse, naquele tempo, que a cachaça fornece cerca de sete calorias

por grama, mais ou menos o teor da manteiga, duas vezes o da carne magra e dez

por grama, mais ou menos o teor da manteiga, duas vezes o da carne magra e dez

vezes a do leite, como afirmam Luis Lobo e Leopoldo Adour da Câmara .

vezes a do leite, como afirmam Luis Lobo e Leopoldo Adour da Câmara .

Soma-se a isso o fato de os africanos, que chegavam aos milhares nas minas, há

Soma-se a isso o fato de os africanos, que chegavam aos milhares nas minas, há

centenas de anos conhecerem bebidas alcóolicas, como o vinho de palma, de buzi

centenas de anos conhecerem bebidas alcóolicas, como o vinho de palma, de buzi

e de sura - ingredientes fundamentais em seus rituais religiosos, reproduzidos ou

e de sura - ingredientes fundamentais em seus rituais religiosos, reproduzidos ou

reelaborados no Novo Mundo, como até hoje observa-se na umbanda e no can-

reelaborados no Novo Mundo, como até hoje observa-se na umbanda e no can-

domblé.

domblé.

O europeu buscava na aguardente uma forma de purgar e limpar o organismo;

O europeu buscava na aguardente uma forma de purgar e limpar o organismo;

o africano, uma forma de se comunicar com os deuses. Não à toa seu consumo

o africano, uma forma de se comunicar com os deuses. Não à toa seu consumo

tende a crescer. As autoridades portuguesas, no entanto, não vêem com bons

tende a crescer. As autoridades portuguesas, no entanto, não vêem com bons olhos

olhos esse fenômeno. Teme-se que a cachaça substitua, como aliás efetivamente

esse fenômeno. Teme-se que a cachaça substitua, como aliás efetivamente ocor-

ocorreu, o vinho e a aguardente do reino. Além disso, nas lavras que concentravam

reu, o vinho e a aguardente do reino. Além disso, nas lavras que concentravam

muitos escravos, o consumo abusivo da bebida podia gerar situações incon-

muitos escravos, o consumo abusivo da bebida podia gerar situações incon-

troláveis. Nos engenhos a preocupação era semelhante. Atento aos riscos da

troláveis. Nos engenhos a preocupação era semelhante. Atento aos riscos da

embriaguez dos escravos, Antonil desaconselhava que destilassem a aguardente

embriaguez dos escravos, Antonil desaconselhava que destilassem a aguardente

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< VENDA NO RECIFE, RUGENDAS, JOHANN MORITZ. VOYAGE PITTORESQUE DANS LE BRÉSIL, PAR MAURICE RUGENDAS; TRADUIT DE L’ALLEMAND PAR MR. COLBERY [...]. PARIS, ENGELMANN & CIE., 1835

THOMAS ENDER MERCADO PRINCIPAL NO RIO DE JANEIRO, LÁPIS AQUARELADO, 188 X 278 MM

do mel que escorria dos pães de açúcar, mais forte que a cachaça [o líquido forma-

do mel que escorria dos pães de açúcar, mais forte que a cachaça [o líquido forma-

Ainda assim precisaram driblar a poderosa rede de comércio de aguardente

Ainda assim precisaram driblar a poderosa rede de comércio de aguardente

do pela espuma do caldo que é colocado para ferver]; “para não ter uma contínua

do pela espuma do caldo que é colocado para ferver]; “para não ter uma contínua

que se espalhava. Ranchos de beira de estrada, vendas e lojas eram ambientes

que se espalhava. Ranchos de beira de estrada, vendas e lojas eram ambientes

desinquietação na senzala dos negros, e que os seus escravos e escravas não sejam

desinquietação na senzala dos negros, e que os seus escravos e escravas não sejam

onde a população escrava e alforriada se reunia com frequência. Mas a aguardente

onde a população escrava e alforriada se reunia com frequência. Mas a aguardente

com a aguardente mais borrachos do que os faz a cachaça”

com a aguardente mais borrachos do que os faz a cachaça”

circulava com grande desembaraço equilibrada pelas “negras de tabuleiro” que

circulava com grande desembaraço equilibrada pelas “negras de tabuleiro” que

Uma nova onda de repressão se abate sobre o produto. Nas Minas Gerais,

Uma nova onda de repressão se abate sobre o produto. Nas Minas Gerais,

praticavam o comércio ambulante pelas cidades, estradas e lavras de ouro e dia-

praticavam o comércio ambulante pelas cidades, estradas e lavras de ouro e dia-

quase se decreta uma Lei Seca. Em 1715, ordena-se, por exemplo, a destruição dos

quase se decreta uma Lei Seca. Em 1715, ordena-se, por exemplo, a destruição dos

mantes. Das intensas perseguições que sofreram, responsabilizadas por contra-

mantes. Das intensas perseguições que sofreram, responsabilizadas por contra-

alambiques. Em 1743, nova ordem régia proíbe a construção de engenhos de

alambiques. Em 1743, nova ordem régia proíbe a construção de engenhos de

bando pelas autoridades, surgem alguns flagrantes: uma escrava de nome Ana foi

bando pelas autoridades, surgem alguns flagrantes: uma escrava de nome Ana foi

aguardente na capitania . Pretendia-se evitar o desvio para a lavoura da mão de

aguardente na capitania . Pretendia-se evitar o desvio para a lavoura da mão de

presa próxima do arraial do Serro “vendendo aguardente da terra sem medidas aos

presa próxima do arraial do Serro “vendendo aguardente da terra sem medidas aos

obra escrava empregada nos trabalhos de mineração. A repressão só não foi mais

obra escrava empregada nos trabalhos de mineração. A repressão só não foi mais

negros (...) vendendo a dita cachaça por uma tijela de estanho que se lhe achou,

negros (...) vendendo a dita cachaça por uma tijela de estanho que se lhe achou,

intensa porque, paradoxalmente, a Coroa portuguesa passou a depender de

intensa porque, paradoxalmente, a Coroa portuguesa passou a depender de

uma destas com meio frasco de aguardente e outro vazio” . Em Passagem, próximo

uma destas com meio frasco de aguardente e outro vazio” . Em Passagem, próximo

impostos cobrados sobre o consumo da cachaça.

impostos cobrados sobre o consumo da cachaça.

de vila do Carmo na década de 1730 os oficiais da intendência perseguem o comér-

de vila do Carmo na década de 1730 os oficiais da intendência perseguem o comér-

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THOMAS ENDER. NEGRA VENDEDORA DE AGUARDENTE. AQUARELA E LÁPIS. 193 X 280 MM NEGRA COM CANA DE AÇUCAR. AQUARELA E LAPIS. 197 X 277 MM

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cio pribido de “várias negras que costumam nos sábados à noite refazerem-se de

cio pribido de “várias negras que costumam nos sábados à noite refazerem-se de

várias bebeidas, e comestíveis para nos domingos venderem pelas portas dos quin-

várias bebeidas, e comestíveis para nos domingos venderem pelas portas dos quin-

tais aos negros subrepticiamente”. Acham com elas “alguma aguardente da terra

tais aos negros subrepticiamente”. Acham com elas “alguma aguardente da terra

que mostrava estar para se vender” .

que mostrava estar para se vender” .

Uma vez registrado o declínio da produção do ouro, tendem a surgir posturas

Uma vez registrado o declínio da produção do ouro, tendem a surgir posturas

mais tolerantes. Exemplo disso foram as medidas deliberadas pelo governador de

mais tolerantes. Exemplo disso foram as medidas deliberadas pelo governador de

Minas, D. Rodrigo José de Meneses, empossado em 1780, que defendeu uma políti-

Minas, D. Rodrigo José de Meneses, empossado em 1780, que defendeu uma políti-

ca ilimitada de engenhos, chegando a afirmar que a cachaça era bebida da

ca ilimitada de engenhos, chegando a afirmar que a cachaça era bebida da

primeira necessidade para os escravos, que andam metidos na água todo o dia, e

primeira necessidade para os escravos, que andam metidos na água todo o dia, e

que com este socorro resistem a tão grande trabalho, vivem mais sãos, e mais largo

que com este socorro resistem a tão grande trabalho, vivem mais sãos, e mais largo

tempo; sendo experiência certa, que o senhor que a não dá aos seus experimenta

tempo; sendo experiência certa, que o senhor que a não dá aos seus experimenta

neles maior mortandade, que aquele que por este modo os anima e fortifica .

neles maior mortandade, que aquele que por este modo os anima e fortifica .

Em fins do século XVIII, a aguardente de cana-de-açúcar fazia parte do cotidi-

Em fins do século XVIII, a aguardente de cana-de-açúcar fazia parte do cotidi-

ano colonial. Seu consumo não era amaldiçoado pelas autoridades. Trata-se de um

ano colonial. Seu consumo não era amaldiçoado pelas autoridades. Trata-se de um

período de glória para a bebida, que começa a ganhar denominações carinhosas,

período de glória para a bebida, que começa a ganhar denominações carinhosas,

para não dizer francamente eróticas: branquinha, moça-branca, sinhazinha, filha-

para não dizer francamente eróticas: branquinha, moça-branca, sinhazinha, filha-

do-engenho, chora menina, lágrima de virgem... Sem faltar as religiosas: imaculada,

do-engenho, chora menina, lágrima de virgem... Sem faltar as religiosas: imaculada,

santa teresinha, santinha, água benta...

santa teresinha, santinha, água benta...

As opiniões positivas não eram, porém, as únicas existente. Desde a origem, o

As opiniões positivas não eram, porém, as únicas existente. Desde a origem, o

cristianismo pregou contra o consumo excessivo de bebidas alcóolicas. A

cristianismo pregou contra o consumo excessivo de bebidas alcóolicas. A

embriaguez seria a principal causa da debilidade dos nervos, da paralisia, da dor

embriaguez seria a principal causa da debilidade dos nervos, da paralisia, da dor

em todo organismo, do embotamento dos sentidos e da extinção da memória ... .

em todo organismo, do embotamento dos sentidos e da extinção da memória ... .

Os poetas também não lhe tinham em boca conta:

Os poetas também não lhe tinham em boca conta:

Que mais de estorvo que de arrimo serve,

Que mais de estorvo que de arrimo serve,

Pois a cachaça ardente, que o alegra,

Pois a cachaça ardente, que o alegra,

Lhe tira as forças dos robustos membros

Lhe tira as forças dos robustos membros

E põe-lhe peso, na cabeça leve .

E põe-lhe peso, na cabeça leve .

Ao longo do tempo, o surgimento de novos sinônimos da palavra também dão

Ao longo do tempo, o surgimento de novos sinônimos da palavra também dão

mostras de apreensão popular: arrebenta-peito, assovio-de-cobra, estricnina, mijo-

mostras de apreensão popular: arrebenta-peito, assovio-de-cobra, estricnina, mijo-

de-cão, pela goela, martelada, segura o tombo, pé de briga ...

de-cão, pela goela, martelada, segura o tombo, pé de briga ...

Não faltaram culpados por embriaguez. Alguns moradores de Minas Gerais

Não faltaram culpados por embriaguez. Alguns moradores de Minas Gerais

recebem advertências e multas por parte dos clérigos. Em 1753 na Freguesia de

recebem advertências e multas por parte dos clérigos. Em 1753 na Freguesia de

Nossa Senhora da Conceição da Vila do Príncipe; João Gonçalves recebe notifi-

Nossa Senhora da Conceição da Vila do Príncipe; João Gonçalves recebe notifi-

cação “pela culpa de embriaguez” recomendando o padre que “de todo se

cação “pela culpa de embriaguez” recomendando o padre que

apartasse de tão pernicioso vício, com que atualmente se acha privando-se do

apartasse de tão pernicioso vício, com que atualmente se acha privando-se do

juízo”. Era a segunda vez que recebia a mesma multa. No mesmo local e ano o

juízo”. Era a segunda vez que recebia a mesma multa. No mesmo local e ano o

“de todo se

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SILVA, SALVADOR PEREIRA, OUVIDOR DA COMARCA DE SAO PAULO. CARTA ORDENANDO QUE COMUNICASSE AO REVERENDO FRANCISCO XAVIER GARCIA A PRESENCA NAQUELA CIDADE DE UM VENDEDOR DE CACHACA QUE DEVERIA SER ADVERTIDO POR SUA MERCADORIA SER PREJUDICIAL AOS ESCRAVOS. SAO PAULO, 18/10/1766, ORIGINAL. COLECAO MORGADO DE MATEUS.

carpinteiro Francisco Luiz Carapina morador no Itambé foi notificado pela culpa

carpinteiro Francisco Luiz Carapina morador no Itambé foi notificado pela culpa de

de embriaguez e advertido “que de todo se apartasse do costume que tinha de se

embriaguez e advertido “que de todo se apartasse do costume que tinha de se

tomar bebidas privando-se com elas do juízo no que cometia ofensas da Deus” .

tomar bebidas privando-se com elas do juízo no que cometia ofensas da Deus” .

REVOLTAS DA CACHAÇA | A suspeita de embriaguez serviu em outras ocasiões

REVOLTAS DA CACHAÇA | A suspeita de embriaguez serviu em outras ocasiões

para sublinhar o desordenamento na conduta política dos súditos. Não raro, no

para sublinhar o desordenamento na conduta política dos súditos. Não raro, no

Novo e no Velho Mundo autoridades ameaçadas pelos protestos populares vão

Novo e no Velho Mundo autoridades ameaçadas pelos protestos populares vão

apodar os rebeldes com uma linguagem comum da embriaguez. O vocabulário pre-

apodar os rebeldes com uma linguagem comum da embriaguez. O vocabulário pre-

tendia nitidamente desqualificar a relevância de muitas das reivindicações dos

tendia nitidamente desqualificar a relevância de muitas das reivindicações dos

rebeldes ao associá-las ao consumo alcoólico.

rebeldes ao associá-las ao consumo alcoólico.

Em uma das muitas rebeliões no Brasil colônia, uma testemunha narra que

Em uma das muitas rebeliões no Brasil colônia, uma testemunha narra que

rebeldes no sertão de Minas Gerais em 1736, quando resistiam ao pagamento do

rebeldes no sertão de Minas Gerais em 1736, quando resistiam ao pagamento do

quinto, sairam em certo dia pelos arraiais aos gritos de “vivas do Povo e morram

quinto, sairam em certo dia pelos arraiais aos gritos de “vivas do Povo e morram

traidores”. Contrariado com o comportamento, acusa “que aquilo era muita força

traidores”. Contrariado com o comportamento, acusa “que aquilo era muita força

de aguardente e que não fossem tolos que contra a ordem de El-rei nossso senhor

de aguardente e que não fossem tolos que contra a ordem de El-rei nossso senhor

ninguém se opunha” . Na revolta de 1720 em Vila Rica, ao receber as primeiras notí-

ninguém se opunha” . Na revolta de 1720 em Vila Rica, ao receber as primeiras notí-

cias do movimento que se precipitava, o conde de Assumar do alto de sua pre-

cias do movimento que se precipitava, o conde de Assumar do alto de sua pre-

sunção teria tripudiado dos rebeldes acreditando que não passava de “ingestões

sunção teria tripudiado dos rebeldes acreditando que não passava de “ingestões

de cachaça” .

de cachaça” .

Na Bahia situação semelhante aparece na revolta do terço velho, regimento

Na Bahia situação semelhante aparece na revolta do terço velho, regimento

que vivia com o pagamento dos soldados em atraso. Durante um dos protestos dos

que vivia com o pagamento dos soldados em atraso. Durante um dos protestos dos

soldados o vice rei enfrenta os soldados amotinados em 1728 e, durante um encon-

soldados o vice rei enfrenta os soldados amotinados em 1728 e, durante um encon-

tro que tem, pergunta a eles “que bebedice ou atrevimento era aquele?” E, como

tro que tem, pergunta a eles “que bebedice ou atrevimento era aquele?” E, como

medida de conciliação, dizia que tal ato de rebeldia só se justificava por estarem

medida de conciliação, dizia que tal ato de rebeldia só se justificava por estarem

bêbados de “vinho ou aguardente” e que por isso os perdoaria se acabassem com

bêbados de “vinho ou aguardente” e que por isso os perdoaria se acabassem com

o tumulto .

o tumulto .

Ao lado do desejo por parte das autoridade de temperança dos súditos, firmou-

Ao lado do desejo por parte das autoridade de temperança dos súditos, firmou-

se um sólido discurso senhorial quanto à embriaguez dos escravos. Schlichthorst,

se um sólido discurso senhorial quanto à embriaguez dos escravos. Schlichthorst,

viajante que percorreu o Rio em 1824-1826 admira-se com a capacidade dos negros

viajante que percorreu o Rio em 1824-1826 admira-se com a capacidade dos negros

beberem ainda que registre ser raro vê-los bêbados pela rua. Curiosamente é cria-

beberem ainda que registre ser raro vê-los bêbados pela rua. Curiosamente é cria-

da em 1830 no Rio de Janeiro uma firma licenciada destinada a tratar “o vício da

da em 1830 no Rio de Janeiro uma firma licenciada destinada a tratar “o vício da

embriaguez”, na qual José Custódio Teixeira de Magalhães curou 75 escravos do

embriaguez”, na qual José Custódio Teixeira de Magalhães curou 75 escravos do

problema. O sucesso foi tal que a própria Comissão de Saúde reconhece a eficácia

problema. O sucesso foi tal que a própria Comissão de Saúde reconhece a eficácia

do método ao renovar a licença de seu funcionamento

do método ao renovar a licença de seu funcionamento

A força que ganharam as imagens do consumo desenfreado de aguardente por

A força que ganharam as imagens do consumo desenfreado de aguardente por

parte da população negra justifica-se pela estranheza que na cultura de então

parte da população negra justifica-se pela estranheza que na cultura de então

merecia o consumo excessivo de álcool. Os portugueses foram adeptos da tempe-

merecia o consumo excessivo de álcool. Os portugueses foram adeptos da temper-

rança e a embriaguês era considerada uma falta social grave. Missionários católi-

ança e a embriaguês era considerada uma falta social grave. Missionários católicos

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DENIS, REUNIAO POLITICA EM PERNAMBUCO, SÉCULO XIX

cos que passaram pelo nordeste no século XVII admiravam-se que os habitantes de

que passaram pelo nordeste no século XVII admiravam-se que os habitantes de

origem portuguesa bebiam principalmente água fresca, refrescos e suco de frutas.

origem portuguesa bebiam principalmente água fresca, refrescos e suco de frutas.

Saint-Hilaire afirmava ser raro encontrar vinho nas fazendas: “a água é a bebi-

Saint-Hilaire afirmava ser raro encontrar vinho nas fazendas: “a água é a bebi-

da mais comum e enquanto duram as refeições e durante o restante do dia ela é

da mais comum e enquanto duram as refeições e durante o restante do dia ela é

servida dentro de uma jarra imensa”. John Mawe, registra que em São Paulo se con-

servida dentro de uma jarra imensa”. John Mawe, registra que em São Paulo se con-

sumia o vinho com moderação nas refeições comuns. Nas fazendas ou nos sobra-

sumia o vinho com moderação nas refeições comuns. Nas fazendas ou nos sobra-

dos urbanos não recorriam à bebida, exceto a alguns cálices de vinho do porto ou

dos urbanos não recorriam à bebida, exceto a alguns cálices de vinho do porto ou

Madeira, vinhos de laranja e licores com moderação, ainda assim para brindes em

Madeira, vinhos de laranja e licores com moderação, ainda assim para brindes em

celebrações. Richard Burton contraria tais julgamentos quando percorre as

celebrações. Richard Burton contraria tais julgamentos quando percorre as

cidades mineiras onde, segundo ele o “consumo de bebidas alcoólicas ultrapassa,

cidades mineiras onde, segundo ele o “consumo de bebidas alcoólicas ultrapassa,

eu acredito, o da Escócia”.

eu acredito, o da Escócia”.

A mesma cachaça que desinquietava escravos e induzia os católicos a pecar

A mesma cachaça que desinquietava escravos e induzia os católicos a pecar

empurrou súditos para a rebelião. A produção e comércio da cachaça estiveram na

empurrou súditos para a rebelião. A produção e comércio da cachaça estiveram na

raiz de alguns dos mais graves crises políticas da América portuguesa.

raiz de alguns dos mais graves crises políticas da América portuguesa.

A permanente falta de recursos para sustentar os soldados, que quase sempre

A permanente falta de recursos para sustentar os soldados, que quase sempre

viviam com seus soldos atrasados e em grande penúria, suscita grande tenão na

viviam com seus soldos atrasados e em grande penúria, suscita grande tenão na

cidade do Rio de Janeiro ao longo do século XVII. De um lado o governador

cidade do Rio de Janeiro ao longo do século XVII. De um lado o governador Salvador

Salvador Corrêa de Sá e, de outro, a comunidade de comerciantes, padres, solda-

Corrêa de Sá e, de outro, a comunidade de comerciantes, padres, soldados e

dos e lavradores. Na iminência de um motim dos soldados famintos, a câmara que-

lavradores. Na iminência de um motim dos soldados famintos, a câmara quebrada

brada finaceiramente decide nos primeiros anos de 1660 taxar o comércio de

finaceiramente decide nos primeiros anos de 1660 taxar o comércio de aguardente,

aguardente, além de pedir uma contribuição voluntária para os moradores.

além de pedir uma contribuição voluntária para os moradores.

O lançamento do imposto deixa inquieta a população, mesmo por que ele não

O lançamento do imposto deixa inquieta a população, mesmo por que ele não

foi suficiente para cobrir as despesas ao longo do ano. Logo depois, mais impostos

foi suficiente para cobrir as despesas ao longo do ano. Logo depois, mais impostos

foram cobrados. Para a rebelião foi um passo. Nos meses finais de 1660 os

foram cobrados. Para a rebelião foi um passo. Nos meses finais de 1660 os

moradores da freguesia de São Gonçalo e do recôncavo fluminense lideram um

moradores da freguesia de São Gonçalo e do recôncavo fluminense lideram um

movimento de protesto que destitui o governador, esvazia a câmara municipal e,

movimento de protesto que destitui o governador, esvazia a câmara municipal e,

claro, suspende a taxa sobre a aguardente. Protecionistas, não têm dúvidas e

claro, suspende a taxa sobre a aguardente. Protecionistas, não têm dúvidas e

reestabelecem a taxa sobre o vinho. Durante a revolta, os amotinados saqueam

reestabelecem a taxa sobre o vinho. Durante a revolta, os amotinados saqueam

várias casas, atacam autoridades do governo anterior, abrem a câmara para repre-

várias casas, atacam autoridades do governo anterior, abrem a câmara para repre-

Outras muitas revoltas da cachaça acontecem. Mercadoria de troca com a

Outras muitas revoltas da cachaça acontecem. Mercadoria de troca com a

sentantes de regiões e permanecem por 6 meses governando a cidade. Mesmo

sentantes de regiões e permanecem por 6 meses governando a cidade. Mesmo

África, também ali não se recomendava às autoridades provocarem os comer-

África, também ali não se recomendava às autoridades provocarem os comer-

depois da repressão, que leva ao enforcamento do líder Jerônimo Barbalho, não se

depois da repressão, que leva ao enforcamento do líder Jerônimo Barbalho, não se

ciantes de aguardente. Em Angola, a proibição do seu comércio, desde 1679,

ciantes de aguardente. Em Angola, a proibição do seu comércio, desde 1679, gênero

volta a falar em taxar a aguardente tão cedo.

volta a falar em taxar a aguardente tão cedo.

gênero indispensável para sustentar o tráfico, empurrou os jerebiteiros e soldados

indispensável para sustentar o tráfico, empurrou os jerebiteiros e soldados para a

Essa relação com a cachaça bastou para Antonio Callado escrever em 1982

Essa relação com a cachaça bastou para Antonio Callado escrever em 1982

para a revolta. Ao chegar em Angola em setembro de 1694 o novo governador

revolta. Ao chegar em Angola em setembro de 1694 o novo governador Henrique

uma deliciosa peça teatral dedicada a esse episódio, que cunhou no título “A

uma deliciosa peça teatral dedicada a esse episódio, que cunhou no título “A

Henrique Jacques de Magalhães encontra o terço da infantaria, artilharia e cavala-

Jacques de Magalhães encontra o terço da infantaria, artilharia e cavalaria

Revolta da Cachaça”: “As pipas de cachaça rolando no meio da noite, no maior

Revolta da Cachaça”: “As pipas de cachaça rolando no meio da noite, no maior

ria reunidos e amotinados, protestando contra a queda do valor do soldo. No

reunidos e amotinados, protestando contra a queda do valor do soldo. No protesto

silêncio possível. Os veleiros boiando nas águas escuras. Pela primeira vez um

silêncio possível. Os veleiros boiando nas águas escuras. Pela primeira vez um

protesto estiveram ativos os interesses dos comerciantes locais que desejavam

estiveram ativos os interesses dos comerciantes locais que desejavam importar

pedaço de Brasil livre. Pela primeira vez, nesta terra, pretos livres. Eta, peça capi-

pedaço de Brasil livre. Pela primeira vez, nesta terra, pretos livres. Eta, peça capi-

importar legalmente a jeribita . Na repressão vários soldados foram punidos com

legalmente a jeribita . Na repressão vários soldados foram punidos com o enforca-

tosa! Que porre de peça!”

tosa! Que porre de peça!”

o enforcamento. Em homenagem ao acontecimento, Gregório de Matos a esta

mento. Em homenagem ao acontecimento, Gregório de Matos a esta altura

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ORDEM DE D. FERNANDO JOSÉ DE PORTUGAL ACERCA DE ARREMATAÇÃO DE SUBSÍDIO DA CACHAÇA, MINAS GERAIS, 1808. (PROCESSO) CAPA DO PROCESSO COM ASSINATURA DE D. FERNANDO E PÁGINA DO PROCESSO MS I, 26, 27, 073

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altura degredado em Angola e partícipe do motim, não perde a oportunidade de

degredado em Angola e partícipe do motim, não perde a oportunidade de cometer

cometer mais uma sátira onde descreve a aclamação do “rei dos jeribiteiro/ ou por

mais uma sátira onde descreve a aclamação do “rei dos jeribiteiro/ ou por soba dos

soba dos borrachos” ...

borrachos” ...

Também na célebre Revolta de 1720 em Vila Rica, que termina de forma san-

Também na célebre Revolta de 1720 em Vila Rica, que termina de forma san-

grenta com o enforcamento e esquartejamento de Filipe dos Santos, o elevado

grenta com o enforcamento e esquartejamento de Filipe dos Santos, o elevado

preço da cachaça em virtude do monopólio em mãos de contratadores estimula o

preço da cachaça em virtude do monopólio em mãos de contratadores estimula o

descontentamento. Dentre as reivindicações que os amotinados preparam quan-

descontentamento. Dentre as reivindicações que os amotinados preparam quan-

do avançam sobre o governador estava a de “de não haver contratos de

do avançam sobre o governador estava a de “de não haver contratos de

aguardentes de cana” .

aguardentes de cana” .

Em contexto mais tardio, Ouro Preto (Antiga Vila Rica) será novamente consum-

Em contexto mais tardio, Ouro Preto (Antiga Vila Rica) será novamente consum-

ida por reações ao excesso de cobranças fiscais que se concentravam na cachaça.

ida por reações ao excesso de cobranças fiscais que se concentravam na cachaça.

Explodem revoltas em 1831 e 1833 mobilizando muitas pessoas e se estendendo

Explodem revoltas em 1831 e 1833 mobilizando muitas pessoas e se estendendo

para regiões vizinhas como Sabará. Desde o início da independência, sob D Pedro

para regiões vizinhas como Sabará. Desde o início da independência, sob D Pedro

I oferecera grande incentivo aos produtores de aguardente ao aprovar em 1810 leis

I oferecera grande incentivo aos produtores de aguardente ao aprovar em 1810 leis

favoráveis a eles e em 1827 liberar a construção de engenhos. Se o primeiro reina-

favoráveis a eles e em 1827 liberar a construção de engenhos. Se o primeiro reina-

do é favorável a abdicação em 1831 inaugura novas formas de controle sendo seu

do é favorável a abdicação em 1831 inaugura novas formas de controle sendo seu

preço regulado por decreto.

preço regulado por decreto.

Nas regiões próximas à cidade políticos restauradores desejosos do retorno de

Nas regiões próximas à cidade políticos restauradores desejosos do retorno de

d. Pedro I mobilizam sua grande força política e protestam pelas ruas, armados e

d. Pedro I mobilizam sua grande força política e protestam pelas ruas, armados e

aos gritos de “viva d. Pedro I”, enquanto consomem muita aguardente. Em 1833 a

aos gritos de “viva d. Pedro I”, enquanto consomem muita aguardente. Em 1833 a

região de Ouro Preto, Sabará e Rio das mortes seria novamente agitadada com os

região de Ouro Preto, Sabará e Rio das mortes seria novamente agitadada com os

novos tributos sobre a cachaça.

novos tributos sobre a cachaça.

Mas as bebidas da terra assumiram em outras ocasiões um sentido de orgulho

Mas as bebidas da terra assumiram em outras ocasiões um sentido de orgulho

patriótico. No início traduz um sentimento de apego a terra que os portugueses

patriótico. No início traduz um sentimento de apego a terra que os portugueses

buscavam fazer properar. O frade franciscano Vicente do Salvador em 1627

buscavam fazer properar. O frade franciscano Vicente do Salvador em 1627

defende a substituição dos gêneros do exterior pelos da terra do Brasil: “Senão per-

defende a substituição dos gêneros do exterior pelos da terra do Brasil: “Senão per-

gunto eu: de Portugal lhe vem a farinha de trigo? A da terra basta. Vinho? De açúcar

gunto eu: de Portugal lhe vem a farinha de trigo? A da terra basta. Vinho? De açúcar

se faz mui suave e, para quem o quer rijo, com o deixar ferver dois dias embebeda

se faz mui suave e, para quem o quer rijo, com o deixar ferver dois dias embebeda

como o de uvas.” .

como o de uvas.” .

As referências nativistas logo escolhem a “aguardente da terra” conforme vai

As referências nativistas logo escolhem a “aguardente da terra” conforme vai

se revelando inconciliável a convivência entre os interesses de Portugal e dos

se revelando inconciliável a convivência entre os interesses de Portugal e dos

colonos. Em Pernambuco, durante a Revolução de 1817, repleta de ideais revolu-

colonos. Em Pernambuco, durante a Revolução de 1817, repleta de ideais revolu-

cionários e autonomistas, quando rebeldes levantam um brinde ao sucesso do

cionários e autonomistas, quando rebeldes levantam um brinde ao sucesso do

movimento, o padre João Ribeiro, diante do viajante francês Tollenare, sugere que

movimento, o padre João Ribeiro, diante do viajante francês Tollenare, sugere que

bebessem aguardente de cana e não vinho do Porto .

bebessem aguardente de cana e não vinho do Porto .

Com a independência, quando não há mais distinção a se fazer entre “da terra”

Com a independência, quando não há mais distinção a se fazer entre “da terra”

e “do reino” fixa-se possivelmente no início do século XIX a “aguardente de cana”,

e “do reino” fixa-se possivelmente no início do século XIX a “aguardente de cana”,

ou simplesmente “patricia”, ou “patriota”.

ou simplesmente “patricia”, ou “patriota”.

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DEBRET, JEAN BAPTISTE. ALUÁ, LIMÕES DOCES E CANAS DE AÇUCAR , 1826, AQUARELA, 15,3 X 21,2 CM

DISPUTAS: DAS BEBIDAS NATIVAS À CERVEJA | Nos séculos XVIII e XIX, o consumo da

DISPUTAS: DAS BEBIDAS NATIVAS À CERVEJA | Nos séculos XVIII e XIX, o consumo da

hipocondrias e flatulências, nas cólicas de causa fria, nas quedas, nas supressões

hipocondrias e flatulências, nas cólicas de causa fria, nas quedas, nas supressões

aguardente de cana sofre ainda em razão do surgimento, ou maior difusão, de

aguardente de cana sofre ainda em razão do surgimento, ou maior difusão, de

de urinas, que é muito diurético .

de urinas, que é muito diurético .

bebidas rivais. Antes mesmo de a Colônia portuguesa ter se tornado uma área pro-

bebidas rivais. Antes mesmo de a Colônia portuguesa ter se tornado uma área pro-

Trata-se, portanto, de uma bebida maravilhosa. Uma nova panacéia! O café

Trata-se, portanto, de uma bebida maravilhosa. Uma nova panacéia! O café

dutora de café, tratados médicos portugueses exaltavam as qualidades da nova

dutora de café, tratados médicos portugueses exaltavam as qualidades da nova

modifica o hábito matinal de se beber uma caninha. A cerveja é outra alternativa

modifica o hábito matinal de se beber uma caninha. A cerveja é outra alternativa

bebida . Afirma-se que o café ajudava a digestão do alimento, é útil nos males da

bebida . Afirma-se que o café ajudava a digestão do alimento, é útil nos males da

que tende a registrar um consumo crescente. Compreender as rotas de difusão

que tende a registrar um consumo crescente. Compreender as rotas de difusão

cabeça, impede a temulência [embriaguez] ou a modifica, porque reprime e abate

cabeça, impede a temulência [embriaguez] ou a modifica, porque reprime e abate

desta bebida, na sociedade brasileira, é fundamental par entendermos a evolução

desta bebida, na sociedade brasileira, é fundamental par entendermos a evolução

os vapores do vinho e dos mais licores espirituosos, conforta a memória, alegra o

os vapores do vinho e dos mais licores espirituosos, conforta a memória, alegra o

do consumo da aguardente de cana. Trata-se de um produto com longuíssima

do consumo da aguardente de cana. Trata-se de um produto com longuíssima

ânimo, é remédio nas vertigens, nos estupores, paralisias, apoplexias, nos sonos

ânimo, é remédio nas vertigens, nos estupores, paralisias, apoplexias, nos sonos

tradição, sendo registrada sua produção milhares de anos antes de nossa coloniza-

tradição, sendo registrada sua produção milhares de anos antes de nossa coloniza-

profundos, nas hidopsias, nos catarros, nas fluxões de estilicídio bofe, na gota

profundos, nas hidopsias, nos catarros, nas fluxões de estilicídio bofe, na gota

ção, principalmente nas regiões do Norte da Europa

ção, principalmente nas regiões do Norte da Europa

artética, nos males dos olhos, dos ouvidos, nas palpitações do coração, nas

artética, nos males dos olhos, dos ouvidos, nas palpitações do coração, nas

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Ora, conforme mencionamos quando os portugueses aqui chegaram, as popu-

Ora, conforme mencionamos quando os portugueses aqui chegaram, as popu-

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lações indígenas consumiam uma bebida fermentada, denominada cauim ou cahui.

lações indígenas consumiam uma bebida fermentada, denominada cauim ou cahui.

cio, logo se vê pelo fato de fazerem quatro tropas, cada uma de 50 mulas car-

cio, logo se vê pelo fato de fazerem quatro tropas, cada uma de 50 mulas car-

Nas áreas litorâneas esse produto foi rapidamente substituído pelo vinho português

Nas áreas litorâneas esse produto foi rapidamente substituído pelo vinho português

gueiras, contínuas viagens para lá e para cá da capital, anualmente, levando toicin-

gueiras, contínuas viagens para lá e para cá da capital, anualmente, levando toicin-

e, em seguida, pela jeribita. Em algumas regiões do interior a evolução registrada é

e, em seguida, pela jeribita. Em algumas regiões do interior a evolução registrada é

ho, queijos, algum tecido de algodão, chapéus de feltro, gado bovino, mulas, galin-

ho, queijos, algum tecido de algodão, chapéus de feltro, gado bovino, mulas, gali-

bem mais complexa. Na capitania de São Paulo, por exemplo, até a segunda metade

bem mais complexa. Na capitania de São Paulo, por exemplo, até a segunda metade

has e barras de ouro para vender ali; pelo valor de seus produtos trazem de volta

nhas e barras de ouro para vender ali; pelo valor de seus produtos trazem de volta

do século XVIII não havia sido desenvolvida a lavoura canavieira e o fornecimento de

do século XVIII não havia sido desenvolvida a lavoura canavieira e o fornecimento de

mercadorias européias, sobretudo portuguesas e inglesas, como chitas, panos,

mercadorias européias, sobretudo portuguesas e inglesas, como chitas, panos, ren-

produtos portugueses, em razão da pobreza da região, era precário. O resultado

produtos portugueses, em razão da pobreza da região, era precário. O resultado

rendas, utensílios de ferro, vinho, cerveja Porter, licores etc .

das, utensílios de ferro, vinho, cerveja Porter, licores etc .

dessa combinação foi não só a sobrevivência da bebida indígena, como também sua

dessa combinação foi não só a sobrevivência da bebida indígena, como também sua

À medida que o século XIX avança, o café e a cerveja tendem a conquistar o pa-

À medida que o século XIX avança, o café e a cerveja tendem a conquistar o pa-

adoção por parte dos colonizadores portugueses. Um detalhe importante é que nes-

adoção por parte dos colonizadores portugueses. Um detalhe importante é que nes-

ladar da elite. Após 1822, a ruptura com Portugal amplia o leque de opções: whisky,

ladar da elite. Após 1822, a ruptura com Portugal amplia o leque de opções: whisky,

tas áreas o cauim era feito a partir do milho e não da mandioca, como ocorria no

tas áreas o cauim era feito a partir do milho e não da mandioca, como ocorria no

conhaque, champanhe...., bebidas que também conquistam, na elite, consumi-

conhaque, champanhe...., bebidas que também conquistam, na elite, consumi-

litoral . O sucesso foi tanto, que a bebida foi levada à África e aprimorada, voltan-

litoral . O sucesso foi tanto, que a bebida foi levada à África e aprimorada, voltando

dores da antiga aguardente. A cachaça, para o bem e para o mal, tende a ter entre

dores da antiga aguardente. A cachaça, para o bem e para o mal, tende a ter entre

do ao Brasil com o nome de aluá – significando cerveja e derivando do termo qui-

ao Brasil com o nome de aluá – significando cerveja e derivando do termo quibundo

os pobres e escravos seus mais fiéis adeptos. Tal situação garantiu a sobrevivência

os pobres e escravos seus mais fiéis adeptos. Tal situação garantiu a sobrevivência

bundo uálua ou de allewa e eléwae, vocábulos da língua hauçá .

uálua ou de allewa e eléwae, vocábulos da língua hauçá .

da bebida, mas nem sempre lhe conferiu um prestígio social elevado.

da bebida, mas nem sempre lhe conferiu um prestígio social elevado.

Variações regionais de bebidas se multiplicaram à margem da aguardente de

Variações regionais de bebidas se multiplicaram à margem da aguardente de

cana, formando verdadeiras sínteses das trocas culturais e das peculiaridades da

cana, formando verdadeiras sínteses das trocas culturais e das peculiaridades da

OS GRAUS DA CACHAÇA | Discreta, disfarçada sob a confusão de seus vários nomes,

OS GRAUS DA CACHAÇA | Discreta, disfarçada sob a confusão de seus vários nomes,

produção local. No Maranhão desenvolveu-se uma aguardente nativa, a tiquira, feita

produção local. No Maranhão desenvolveu-se uma aguardente nativa, a tiquira, feita

a cachaça veio escorrendo pelo tempo, destilada pela História. Depois de abandonar

a cachaça veio escorrendo pelo tempo, destilada pela História. Depois de aban-

de mandioca e muito apreciada pela população pobre. Em Minas Gerais surge o aluá

de mandioca e muito apreciada pela população pobre. Em Minas Gerais surge o aluá

os fundos dos engenhos de açúcar e mover as engenhocas e os alambiques, driblou

donar os fundos dos engenhos de açúcar e mover as engenhocas e os alambiques,

ou “vinho de milho”, bebida fermentada criada pelos africanos chegados da Costa da

ou “vinho de milho”, bebida fermentada criada pelos africanos chegados da Costa da

as proibições, resistiu aos apelos morais e religiosos contra o seu consumo, e o pre-

driblou as proibições, resistiu aos apelos morais e religiosos contra o seu consumo,

Mina: molhavam o milho em folhas de bananeiras, deixavam secá-lo ao sol, pilavam,

Mina: molhavam o milho em folhas de bananeiras, deixavam secá-lo ao sol, pilavam,

conceito contra os pobres que nela encontraram saúde, conforto e alimento.

e o preconceito contra os pobres que nela encontraram saúde, conforto e alimento.

peneiravam e colocavam-no em um tacho com água fervente; a seguir era coado e

peneiravam e colocavam-no em um tacho com água fervente; a seguir era coado e

Ao se iniciar o século XIX a aguardente de cana está longe de ser a mesma bebi-

Ao se iniciar o século XIX a aguardente de cana está longe de ser a mesma bebi-

fermentado em barril. Na vila de São Paulo tornaram-se um sucesso a aguardente de

fermentado em barril. Na vila de São Paulo tornaram-se um sucesso a aguardente de

da timidamente nascida. Ela é o oitavo produto da pauta de exportações do Brasil

da timidamente nascida. Ela é o oitavo produto da pauta de exportações do Brasil

milho e a aguardente de trigo, confeccionadas a partir destes cereais fermentados

milho e a aguardente de trigo, confeccionadas a partir destes cereais fermentados e

para Portugal, movimentando todas as regiões da colônia, e ainda gênero de reex-

para Portugal, movimentando todas as regiões da colônia, e ainda gênero de reex-

e destilados, bebidas que eram muito procuradas pelos mercados próximos. Mais ao

destilados, bebidas que eram muito procuradas pelos mercados próximos. Mais ao

portação da metrópole para países como Holanda, Suécia, Inglaterra e Rússia .

portação da metrópole para países como Holanda, Suécia, Inglaterra e Rússia .

sul surgiria nos tempos coloniais a aguardente de beiju, produzida pela fermentação

sul surgiria nos tempos coloniais a aguardente de beiju, produzida pela fermentação

e destilação do caldo extraído da mandioca ralada e mascada.

e destilação do caldo extraído da mandioca ralada e mascada.

A experiência colonial ofereceu as circunstâncias que permitiram vir ao mundo

A experiência colonial ofereceu as circunstâncias que permitiram vir ao mundo

a cachaça que bebemos hoje. O sistema de exploração do Brasil colônia definido

a cachaça que bebemos hoje. O sistema de exploração do Brasil colônia definido

Portanto, desde o século XVII existiu, por assim dizer, uma cerveja de milho

Portanto, desde o século XVII existiu, por assim dizer, uma cerveja de milho

pela metrópole européia, com a exigências de relações comerciais comple-

pela metrópole européia, com a exigências de relações comerciais comple-

difundida em certas áreas da América portuguesa. Mas essa tradição pouco tem a

difundida em certas áreas da América portuguesa. Mas essa tradição pouco tem a

mentares entre África e Brasil, instabilidade nos preços do açúcar que afligia os

mentares entre África e Brasil, instabilidade nos preços do açúcar que afligia os

ver com a atual cerveja, feita a partir de cevada e lúpulo, e consumida por milhões

ver com a atual cerveja, feita a partir de cevada e lúpulo, e consumida por milhões

produtores e alta exploração da mão-de-obra escrava utilizada a baixos custos,

produtores e alta exploração da mão-de-obra escrava utilizada a baixos custos,

de brasileiros. A bebida, com este tipo de composição, salvo durante 1630 e 1653,

de brasileiros. A bebida, com este tipo de composição, salvo durante 1630 e 1653,

exigiu o crescimento da produção da bebida. Fez ainda que ela ultrapassasse facil-

exigiu o crescimento da produção da bebida. Fez ainda que ela ultrapassasse facil-

época da ocupação holandesa do Nordeste, pouco circulou na sociedade colonial.

época da ocupação holandesa do Nordeste, pouco circulou na sociedade colonial.

mente o consumo doméstico e o mercado regional, que condenou várias outros

mente o consumo doméstico e o mercado regional, que condenou várias outros

Em grande parte, isso decorria do fato de em Portugal o consumo de cerveja tam-

Em grande parte, isso decorria do fato de em Portugal o consumo de cerveja tam-

licores confeccionados na América espanhola. Da mesma forma ajudou a colocar

licores confeccionados na América espanhola. Da mesma forma ajudou a colocar

bém ser pequeno. Obedecendo a geografia etílica européia, a metrópole portugue-

bém ser pequeno. Obedecendo a geografia etílica européia, a metrópole portugue-

Portugal entre os maiores exportadores de destilados da época moderna.

Portugal entre os maiores exportadores de destilados da época moderna.

sa era terra de vinho. Restringir a difusão da cerveja no Novo Mundo consistia em

sa era terra de vinho. Restringir a difusão da cerveja no Novo Mundo consistia em

Lentamente a aguardente suplantou o vinho português, a bagaceira, a

Lentamente a aguardente suplantou o vinho português, a bagaceira, a

uma forma de proteger o mercado lusitano. Foi preciso ser decretado o fim do

uma forma de proteger o mercado lusitano. Foi preciso ser decretado o fim do

aguardente do reino, consumidos pelos portugueses, o cauim e o vinho de caju dos

aguardente do reino, consumidos pelos portugueses, o cauim e o vinho de caju dos

pacto colonial, para as cervejas alemãs, holandesas, dinamarquesas, inglesas,

pacto colonial, para as cervejas alemãs, holandesas, dinamarquesas, inglesas,

índios, e os outros derivados do engenho como o vinho de mel, a garapa.

índios,

norueguesas, invadirem o mercado do Rio de Janeiro, S. Paulo, Bahia, Recife .

norueguesas, invadirem o mercado do Rio de Janeiro, S. Paulo, Bahia, Recife .

Enfrentou a Companhia Geral do Comércio no Brasil e os negociantes de vinho do

Enfrentou a Companhia Geral do Comércio no Brasil e os negociantes de vinho do

e os outros derivados do engenho como o vinho de mel, a garapa.

Um pouco antes de nossa Independência, numerosos viajantes registram a

Um pouco antes de nossa Independência, numerosos viajantes registram a

reino na África; diante das quedas do mercado de açúcar, serviu de esteio para

reino na África; diante das quedas do mercado de açúcar, serviu de esteio para

chegada da nova bebida européia ao interior. Eis o que afirmam, em 1818, dois via-

chegada da nova bebida européia ao interior. Eis o que afirmam, em 1818, dois via-

reforçar o caixa dos senhores de engenho e financiou a manutenção da defesa mil-

reforçar o caixa dos senhores de engenho e financiou a manutenção da defesa mil-

jantes alemães ao passarem por São João del-Rei: Quanto é aqui animado o comér-

jantes alemães ao passarem por São João del-Rei: Quanto é aqui animado o comér-

itar dos portos do Atlântico.

itar dos portos do Atlântico.

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MALTA, AUGUSTO. FAVELA DO MORRO DA PROVIDÊNCIA, RIO DE JANEIRO 22/8/1920 PISCINA DO COPACABANA PALACE

Destronou o vinho de mel que serviam os engenhos quando a escravidão

Destronou o vinho de mel que serviam os engenhos quando a escravidão

africana e o tráfico exigiram uma bebida forte e destilada e conveniente ao trans-

africana e o tráfico exigiram uma bebida forte e destilada e conveniente ao trans-

porte marítimo. Em diversas regiões da África fez recuar o consumo de vinho de

porte marítimo. Em diversas regiões da África fez recuar o consumo de vinho de

palma e cervejas tradicionais; e graças aos barris da jeribita os comerciantes das

palma e cervejas tradicionais; e graças aos barris da jeribita os comerciantes das

regiões brasileiras venceram a disputa com os negociantes metropolitanos para o

regiões brasileiras venceram a disputa com os negociantes metropolitanos para o

acesso direto às fontes de mão de obra.

acesso direto às fontes de mão de obra.

Por outro lado, sob a escravidão, as exigências de manutenção da desigual-

Por outro lado, sob a escravidão, as exigências de manutenção da desigual-

dade social transformaram a bebida forte e barata em um estigma capaz de con-

dade social transformaram a bebida forte e barata em um estigma capaz de con-

trolar escravos e trabalhadores.

trolar escravos e trabalhadores.

O fluxo e o refluxo da aguardente desenham uma história ímpar. As vezes

O fluxo e o refluxo da aguardente desenham uma história ímpar. As vezes

esquecida pois frequentemente a bebida apareceu associada ao sucesso da inven-

esquecida pois frequentemente a bebida apareceu associada ao sucesso da inven-

tividade e da capacidade de improvisar dos colonizadores sob o sol tropical.

tividade e da capacidade de improvisar dos colonizadores sob o sol tropical.

Outras vezes ela tem o gosto da síntese cultural construída pelo trabalho dos

Outras vezes ela tem o gosto da síntese cultural construída pelo trabalho dos

escravos nos engenhos e o gênero econômico trazido pelo colonizador branco.

escravos nos engenhos e o gênero econômico trazido pelo colonizador branco.

São todas essas interpretações muito convenientes. Mas a cachaça nasceu de

São todas essas interpretações muito convenientes. Mas a cachaça nasceu de

condições específicas daquele tempo e sua difusão não foi exatamente a compro-

condições específicas daquele tempo e sua difusão não foi exatamente a compro-

vação histórica de nossas qualidades; mesmo por que, extensão colonial de

vação histórica de nossas qualidades; mesmo por que, extensão colonial de

Portugal, sequer um país havia.

Portugal, sequer um país havia.

Cachaça na América dos escravos, aguardente da terra à mesa dos rebeldes em

Cachaça na América dos escravos, aguardente da terra à mesa dos rebeldes em

busca de símbolos patrióticos, jeribita na África, a bebida que mais tarde se con-

busca de símbolos patrióticos, jeribita na África, a bebida que mais tarde se con-

fundiria com a nação, percorreu os primeiros passos de um longo caminho. Mas

fundiria com a nação, percorreu os primeiros passos de um longo caminho. Mas

carregará ainda muitas das marcas que foram talhadas nesses tempos. E um

carregará ainda muitas das marcas que foram talhadas nesses tempos. E um

provocante sabor de história.

provocante sabor de história.

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