Albert Camus no Brasil

June 3, 2017 | Autor: I. Carneiro de Sousa | Categoria: Brazil, Albert Camus, Contemporary French Literature
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Nasceu em 1913, em Mondovi, hoje Dréan, na Argélia, de pai francês, morto em 1914 na batalha do Marne, e de mãe de origem espanhola: Albert Camus transformou-se no mais conhecido, lido e discutido pied noir (como se chamavam os franceses argelinos), agora revisitado em ano de centenário, celebrado mais intensamente em França, mas com ecos um pouco por todo o mundo culto e em mais fugazes memórias mediáticas, distribuídas entre evocações de circunstância muitas e alguns ensaios bem mais sérios. A sua biografia é sobejamente conhecida, vivida na infância em Argel com dificuldades, estudante liceal graças ao apoio do seu professor primário, Louis Germain, e estudante universitário mercê do apoio de um dos seus mestres de Liceu, Jean Grenier. Por Argel, licenciouse em Filosofia, escreveu uma tese equivalente a mestrado sobre Plotino e concluiu uma dissertação de doutoramento sobre Santo Agostinho. Estaria fadado para uma carreira académica, não fosse a tuberculose que, desde 1930, o fragilizou para sempre. Em 1935, adere ao Partido Comunista, mas rapidamente se incompatibiliza com as suas posições face ao problema argelino que, muito mais tarde, durante a guerra que estala desde 1954, vai dividir Camus mais profundamente. Por 1939, o

lusofonias nº 21 | 02 de Dezembro de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS: • O Rio de Janeiro: encanto, favelas, macumba e muita paciência • No Recife: bumba-meu-boi • S. Salvador da Bahia: barroco e candomblé • De São Paulo a Iguape • A Romaria do Bom Jesus de Iguape • Porto Alegre: cidade feia, Erico Veríssimo e a decadência europeia • A Pedra que Cresce • Epílogo em actualidade

Dia 10 de Dezembro: A Claridade de Cabo Verde

APOIO:

Albert Camus no Brasil

Albert Camus no

Brasil

Ivo Carneiro de Sousa

N

asceu em 1913, em Mondovi, hoje Dréan, na Argélia, de pai francês, morto em 1914 na batalha do Marne, e de mãe de origem espanhola: Albert Camus transformou-se no mais conhecido, lido e discutido pied noir (como se chamavam os franceses argelinos), agora revisitado em ano de centenário, celebrado mais intensamente em França, mas com ecos um pouco por todo o mundo culto e em mais fugazes memórias mediáticas, distribuídas entre evocações de circunstância muitas e alguns ensaios bem mais sérios. A sua biografia é sobejamente conhecida, vivida na infância em Argel com dificuldades, estudante liceal graças ao apoio do seu professor primário, Louis Germain, e estudante universitário mercê do apoio de um dos seus mestres de Liceu, Jean Grenier. Por Argel, licenciou-se em Filosofia, escreveu uma tese equivalente a mestrado sobre Plotino e concluiu uma dissertação de doutoramento sobre Santo Agostinho. Estaria fadado para uma carreira académica, não fosse a tuberculose que, desde 1930, o fragilizou para sempre. Em

A visita M

ao

Brasil

uito menos lembrada é a visita de Albert Camus, em 1949, ao Brasil. País que o continua a ler e a discutir, sendo muitas as conferências, exposições, cursos e seminários que este ano se espalham por universidades brasileiras, centros de investigação e bibliotecas. Contrastando com Portugal, onde passadas as ocasionais necrologias de centenário nos principais meios de comunicação, pouco ficará. A minha geração, que chegou à Universidade logo depois do 25 de Abril de 1974, já não lia e muito pouco conhecia de Camus, mais frequentado nas décadas de 1950 e 1960 quando os seus livros eram lidos em Portugal entre paixão

1935, adere ao Partido Comunista, mas rapidamente se incompatibiliza com as suas posições face ao problema argelino que, muito mais tarde, durante a guerra que estala desde 1954, vai dividir Camus mais profundamente. Por 1939, o jornal em que trabalhava, o Soir Republicain, é fechado por ordens do prefeito de Argel. Instala-se sem a família em Paris, em 1940, sendo secretário de redacção no Paris-Soir, mas a invasão alemã obriga o jornal a transferir-se para Lyon e Camus a colaborar com a Resistência. Seguem-se os seus mais conhecidos livros: O Mito de Sisifo e O Estrangeiro publicam-se em 1942, A Peste sai em 1947, e as suas encenações Calígula, escrito em 1938, estreado em 1945, e O Malentendido que chega aos palcos ainda em 1944. Em 1948, a sua independência polémica manifesta-se inteligente com um texto intitulado Ni Victimes ni Bourreaux, condenando toda e qualquer legitimação do assassinato, mesmo em nome de uma melhor sociedade futura, o que foi muito mal recebido entre os comunistas e várias outras esquerdas francesas. Em rigor, a polémica

transportava já muitos dos argumentos da sua famosa ruptura com Sartre, em 1952, até então assíduo companheiro de trago e tertúlias nas noites do Saint-Germain. Continuou a publicar intensamente, destacando-se em 1951 o muito célebre e corajoso O Homem Revoltado e, em 1956, a edição do romance A Queda. Morreu estupidamente cedo, com as chuvas de Janeiro, em 1960, num acidente de automóvel em Yvonne, perto de Sens. Camus ocupava o tristemente célebre «lugar do morto», tendo morte imediata quando o automóvel conduzido pelo seu editor e amigo, Michel Gallimard, se espatifou violento contra um plátano. Datas, títulos e eventos mais do que conhecidos. Alimentando mais uma vez essas irritantes classificações em que a sua escrita complexa se vaza nessa repetida ideia de filosofia do absurdo em que Camus não se revia, criticando, como escreveu, “a fúria contemporânea de confundir o escritor com o seu tema, que não é sensível a esta liberdade relativa do escritor. E assim nos tornamos profeta do absurdo”.

em 1949

e saudável provocação. No Brasil, a editora Record, detentora dos direitos de Albert Camus, anunciava recentemente várias reedições dos seus livros, esclarecendo também ter já comercializado cerca de 290 mil exemplares dos 11 títulos do autor traduzidos em português do seu catálogo. Neste volume estimável de vendas, mais de 115 mil cópias devem-se, como seria de esperar, a O Estrangeiro, a que se seguem os apreciáveis 55 mil exemplares de A Peste. A brasileira viagem de Camus talvez não seja estranha a estes números num país que o consagrou com nomes de praças, ruas e até uma alameda

no parque da Gruta do Senhor, em Iguape, a cidade do Bom Jesus no litoral paulista. A viagem de Camus à América do Sul foi decidida em Janeiro de 1949 pelo governo francês como parte de um programa de estreitamento das relações culturais com o Brasil, o Uruguai, a Argentina e o Chile. No princípio do Verão europeu, Camus embarcou no cargueiro Campana para atravessar o Atlântico. A viagem foi extremamente desagradável para o escritor que, nesta altura, preparava aquele célebre O Homem Revoltado. Foi anotando diariamente a sua demorada travessia transatlântica, escrevendo

desesperado: “Por duas vezes, ideia de suicídio. A segunda vez, sempre olhando o mar, uma terrível queimadura me vem à têmpora. Creio que agora eu compreendo como alguém se mata”. Na verdade, passou parte da travessia febril, cansando-se com facilidade, pelo que as suas anotações convocam mesmo essa sua muito discutida metafísica em que declarava grave: “o suicídio é a única questão filosófica séria”. Apesar de tudo, sobreviveu às provações da viagem, organizou razoavelmente o seu Diário e chegou mesmo ao Rio de Janeiro. Doente, muito fatigado, mas genuinamente interessado.

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II

Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS

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O

O

Rio

Campana que transporta este já muito cansado Albert Camus chega ao Rio de Janeiro a 15 de Julho de 1949. Esta marítima chegada, em nevoenta madrugada, à singular baía de Guanabara, aparece finamente descrita no seu Diário de Viagem com rigor, admiração, as palavras mais do que certas: “Às quatro da manhã, um estardalhaço no convés superior me desperta. Saio. Ainda está escuro. Mas a costa está muito próxima: serras negras e regulares, muito recortadas, mas os recortes são redondos – velhos perfis de uma das mais velhas terras do globo. Ao longe, luzes. Seguimos o litoral, enquanto a noite clareia, a água mal estremece, fazemos uma grande manobra e as luzes agora estão diante de nós, mas longínquas. Volto para o meu camarote. Quando torno a subir, já estamos na baía, imensa, um pouco fumegante no dia que nasce, com súbitas condensações de luz, que são as ilhas. A névoa desaparece rapidamente. E vemos as luzes do Rio correndo ao longo da costa, o ‘Pão de Açúcar’, com quatro luzes no seu topo, e no mais alto cume das montanhas, que parecem esmagar a cidade, um imenso e lamentável Cristo luminoso. À medida que nasce a luz, vê-se melhor a cidade, espremida entre o mar e as montanhas, estendida no comprimento, interminavelmente estirada. No centro, prédios enormes. A cada instante, um ronco acima de nós: um avião descola no dia nascente, confundindo-se, de início, com a terra, elevando-se depois em direcção a nós, passando por cima de nossas cabeças. Estamos no meio da baía e as montanhas, à nossa volta, fazem um círculo quase perfeito. Finalmente, uma luz mais sanguínea anuncia o raiar do sol, que surge por trás das montanhas a leste, em frente à cidade, e começa a subir, num céu pálido e fresco. A riqueza e a sumptuosidade das cores que brincam sobre a baía, as montanhas e o céu, fazem calar a todos, uma vez mais. Um instante depois, as cores parecem as mesmas, mas é o cartão-postal. A natureza tem horror dos milagres longos demais.” Ao desembarcar, Camus é recebido por uma jovem secretária da embaixada francesa que designa simplesmente no seu diário por M. (como grande parte das outras pessoas que foi conhecendo e, com muita frequência, detestando…), mais um jornalista que conhecera em Paris, “muito simpático”, à frente de uma sortida legião de repórteres brasileiros em busca da francesa celebridade. É convidado a escolher entre alojar-se na em-

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de

Janeiro:

encanto, favelas, macumba e muita paciência

baixada francesa (o Rio foi capital do Brasil de 1763 a 1960), quase completamente deserta à noite, e um palacete carioca. O escritor foge da “sale gueulle du palace” e agradece por encontrar um quarto simples na residência diplomática totalmente vazia de noctívagos locatários. Interrogado pelos muitos jornalistas sobre o que primeiro queria conhecer no Brasil, Camus pede que o levassem a assistir a uma partida de futebol. Solicitação que não veria satisfeita, mas remetendo para essa juventude em que parece ter sido um muito bom guarda-redes da selecção universitária da então Argélia francesa, desportiva vocação definitivamente perdida por essa tuberculose que cedo o atacou, perseguiu e deixou marcas terríveis para toda a sua vida. Fascinava-o o amor brasileiro pelo futebol que queria compreender e escrever. Em rigor, o futebol sempre o fascinou e chegou mesmo a escrever solene: “O que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem, devo ao futebol”. A partida de futebol não assistiu e, a 16 de Julho, mal dormido e adoentado, Camus foi visitar o carioca Country Club, assistindo à apresentação de vários barcos de

Guerra, “um deles, que parece datar de há muito, chama-se Terror do Mundo”. Encontra-se, em seguida, com um grupo de actores negros que querem montar a sua peça Calígula. Salta para um encontro organizado pela sua Embaixada em que lhe são apresentados vários intelectuais brasileiros que não fixou e algumas outras inteligências estrangeiras que lamentou como “um filósofo polaco do qual o céu, se for bom, me preservará”. O pior, porém, estava ainda para vir: “quando eu acho que tudo acabou, Mme. M. anuncia-me que eu jantarei com um poeta brasileiro. Eu não digo nada, prometendo a mim mesmo cortar tudo que não é indispensável a partir de amanhã. E resigno-me. Mas eu não esperava a provação que devia seguir-se. O poeta chega, enorme, indolente, os olhos enrugados, a boca caída. De quando em quando, inquietações, uma brusca agitação, logo ele se mexe na sua poltrona e resfolega um pouco. Levanta-se, dá voltas, retorna à poltrona. Fala de Bernanos, Mauriac, Brisson, Halévy. Conhece todo o mundo, aparentemente. Foram maus para com ele. Ele não faz política franco-brasileira, mas criou uma fábrica de adubos com franceses. Aliás,

não o condecoraram. Condecoraram todos os inimigos da França neste país. Mas não ele. etc., etc.” O poeta brasileiro em questão é Augusto Frederico Schmidt (19061965), mistura de empresário, comerciante, autor de uma poesia grandiloquente que se queria modernista, mais livreiro, jornalista e intelectual católico. Com o poeta está outra personagem que Camus refere apenas como um señorito, assim mesmo em castelhano. Perspectiva-se apavoradamente um jantar. O nosso escritor mobiliza de imediato um biólogo francês que lhe tinha sido apresentado pela embaixada, Letarguet, “furiosamente simpático”. Neste arranjado quarteto, toma solene a palavra o tal señorito “semelhante a esses que passeavam com cães erguidos sobre as patas na Calle Major em Palma de Mallorca, antes de irem assistir como connaisseurs às execuções de 36”. O señorito pontifica, “decide tudo, eu devo ver isto, fazer aquilo, o Brasil é um país onde a única coisa que se faz é trabalhar, não existem viciados, aliás não se tem tempo, trabalha-se, trabalha-se, e Bernanos lhe dizia, e Bernanos criou neste país um estilo de vida, ah: nós amamos a França”. Partem para jantar na noite carioca: “no carro, peço para não irmos jantar num restaurante de luxo. E o poeta emerge de seus 150 quilos e me diz, um dedo erguido: Não existe luxo no Brasil. Nós somos pobres, miseráveis, batendo afectuosamente nas costas do chauffeur engalanado que dirigia o seu enorme Chrysler. Tendo o poeta falado, suspira dolorosamente e volta ao seu nicho de carne, onde se põe distraidamente um dos seus complexos. O señorito mostra-nos o Rio, que está na mesma latitude de Madagascar e é mais belo que Tananarive”. Chegam os quatro a um restaurante “iluminado tão brutalmente a neon que temos o ar de peixes pálidos evoluindo numa água irreal”. O señorito quer obrigar Camus a comer camarões, o que ele recusa, explicando que já conhece tal prato, muito comum na Argélia. Depois, “com a ajuda do cansaço, vem-me uma cólera tola e já afasto a minha cadeira para retirar-me. Uma gentil intervenção de Letarget e também a simpatia que sinto, apesar de tudo, por esse curioso personagem-poeta, retêm-me e faço um grande esforço para acalmar-me. ‘Ah’, diz o poeta, chupando os dedos, ‘é preciso muiCONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE >

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013

III

No Recife:

< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR

ta paciência com o Brasil, muita paciência.’ Digo apenas, como única vingança, que a mim não parecia ter-me faltado paciência até agora. Apesar de tudo, o resto da refeição passa-se com calma, se bem que o poeta e o señorito não parem de fazer apartes em português, nos quais julgo compreender que reclamam um pouco de mim. Além disso, essa grosseria, essa falta de modos, se expõe de forma tão natural que se torna amável.” E assim termina este primeiro dia de Albert Camus no Brasil. O 16 de Julho é mais sossegado e, após um passeio de lancha na Guanabara, Camus conhece Murilo Mendes (19011975), por quem sentiu grande afinidade, descrevendo-o como “poeta e doente” (era, como ele próprio, um ex-tuberculoso...), personalidade de “espírito fino e resistente, um dos dois ou três que realmente me chamaram a atenção aqui.” À noite, assiste a um espectáculo de macumba em Caxias, a uns quarenta quilómetros do Rio. Camus interessa-se pelo ritual evento, mas fatigado escreve no seu Diário de Viagem: “São duas horas da manhã. O calor, a poeira e a fumaça dos cigarros, o odor humano, tornam o ar irrespirável. Eu saio, cambaleante, e enfim respiro com delícia o ar fresco. Eu amo a noite e o céu, mais que os deuses dos homens”. Nos dias seguintes, o muito solicitado escritor francês vai também descobrindo as contradições e as misérias profundas apunhalando o coração do Rio: visita as favelas. Escreve sentidamente no seu Diário: “o contraste mais chocante é dado pela ostentação do luxo dos palácios e dos edifícios modernos com as favelas, às vezes a cem metros do luxo, espécie de bidonvilles encravadas no flanco das colinas, sem água nem luz, onde vive uma população miserável, negra e branca. As mulheres vão buscar água ao pé das colinas, onde elas fazem fila, e trazem a sua provisão em latas que carregam sobre a cabeça como as mulheres cabilas. Enquanto elas esperam, passam à sua frente, em fila ininterrupta, os monstros niquelados e silenciosos da indústria automobilística norte-americana. Jamais luxo e miséria me pareceram tão insolentemente misturados. É verdade que, segundo um de meus companheiros, eles se divertem muito, pelo menos. Lástima e cinismo. B., o único generoso, me levará às favelas que conhece muito bem: Fui repórter policial e comunista, diz ele. Duas boas condições para conhecer os bairros da miséria”. Em contraste com estes muitos jantares, sucessivos encontros e conferências sem fim que o vão progressivamente cansando e tornando ainda mais adoentado, Camus destacou com indisfarçável felicidade o seu encontro com o grande poeta e vulto nacional que era então Manuel Bandeira (1886-1968) – “pequeno homem extremamente fino” – em serão mais do que animado por Dorival Caymmi, designado no seu Diário de Viagem simplesmente por Kaimi. Visitando estas páginas de memórias, o escritor francês recordava que “depois do jantar, Kaimi, um negro que compõe e escreve todos os sambas que o país canta, vem cantar com o seu violão. São as canções mais tristes e mais comoventes. O mar e o amor, a saudade da Bahia. Pouco a pouco, todos cantam e vê-se um negro, um deputado, um professor da Faculdade e um tabelião cantarem esses sambas em coro, com uma graça muito natural. Totalmente seduzido.” Sedução mútua também entre os dois homens que tinham vivido o mesmo drama da tuberculose. Em 1960, ao receber a mortal notícia do acidente que tinha ceifado a vida de Camus, Manuel Bandeira escreve com delicada humanidade sobre essa noite vivida entre saboroso demorado jantar, conversa sem fim e a música singular de Dorival Caimmi nesse Rio de Janeiro dos idos de 1949: “Por aí fomos num papo sem nenhuma formalidade, falamos da nossa doença, falamos de muitas outras coisas e ele acabou dando-me o seu telefone privado em Paris para que eu o procurasse quando fosse à França. Durante todo o tempo que o ouvi, senti-me à vontade e encantado. Surpreso. Não havia naquele homem vestígio dessa personagem odiosa que é a celebridade itinerante. Não parecia um homem de letras. Era um homem da rua, um simples homem, dando a outro homem um pouco da sua substância espiritual, simplesmente humana. Senti vontade de ser seu amigo. Quando, um ano depois, estive em Paris, quis procurá-lo. Ele estava ausente. Agora, o desastre. Deixo nestas pobres linhas a minha saudade do homem Camus, tão simples, tão simpático, tão despretensioso na sua glória mundial”.

IV

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os vários eventos vividos com dificuldade no Rio segue-se a viagem para a capital de Pernambuco: “positivamente, gosto de Recife, Florença dos Trópicos, entre as suas florestas de coqueiros, as suas montanhas vermelhas, as suas praias brancas”. Apesar de febril, Camus continuava a anotar cuidadosamente no seu diário caderno estas suas impressões de viagens sobre estes vários pedaços brasileiros em que, entre conferências, homenagens, encontros e muitos jantares, se sentia um estranho, o estrangeiro, como, afinal, nos outros sítios do mundo por onde passou atento mas quase sempre dividido entre cansaço, enfado e várias depressões. Pe r m a n e ceu apenas dois dias em Pernambuco. Saiu do avião por volta das 13h do dia 21 de Julho de 1949. Constipado, torna-se um refém do calor. Recebido por três franceses, percebe que todos têm mais de 1,80 m de altura: “Estamos bem representados”, regista no seu diário, com essa ironia seca que marcava com frequência a sua escrita exemplar. Levado para o Grande Hotel, no centro do Recife, não consegue descansar. Quatro horas depois, é arrastado para uma visita à cidade. Aníbal Fernandes, o director de redacção do Diário de Pernambuco, “o mais antigo jornal da América do Sul”, dirige o selecto grupo que arrasta Camus para o Centro Histórico do Recife, ali entre os bairros de Santo António e São José. O já muito consagrado escritor francês aprecia as “igrejas coloniais admiráveis”, as “ruas calçadas com grandes pedras pontiagudas”, recorda a Capela Dourada e o Pátio de São Pedro, igreja que está “completamente escurecida pela fumaça dos torrefactores. Está literalmente patinada de café”. Depois de jantar no hotel, Camus oferece uma conferência na vetusta Faculdade de Direito do Recife, reunindo uma centena de pessoas “que, ao saírem, têm um ar de muito cansadas”. O que não era de admirar já que, seguindo o camusiano diário da sua viagem pelo Brasil, os intelectuais locais fizeram tantos e tão demorados discursos que o nosso escritor nem sequer tirou do bolso a palestra previamente preparada, sublinhando que aquelas distintas personalidades tinham falado tudo por ele. No dia seguinte, mesmo com mais febre e definitivamente com gripe, Camus espera no hotel “por três intelectuais que fazem questão de me ver. Dois simpáticos”. É levado a Olinda, admirando sinceramente o Convento de São Francisco. Depois de um almoço na casa do cônsul francês, passeia à beira-mar na Boa Viagem, deslumbrando-se com as florestas de coqueiros e as tradicionais embarcações de pesca. Pelas 17h, participa

bumba-meu-boi

numa mesa-redonda na Associação Cultura Franco-Brasileira, actividade que confess ter aguentado “graças a dois uísques”. Na sua última noite no Recife, Albert Camu é o convidado de honra de um espectáculo d bumba-meu-boi, fixado no seu Diário de via gem como “macumba-chique”. Uma rápid página de apontamentos apresenta o festiv evento como um “balett grotesco dançad por máscaras e figuras totémicas, sobre um tema que é sempre o mesmo: a matança d um boi”, depois gozando com a saudaçã que recebe no final: “Viv o señor Camu e os cem rei do Oriente!” Cerca da 23h, regress ao hotel, vol tando a te dificuldade em dormir descansar. N dia seguinte pelas 9h d manhã, segu para Salvado da Bahia. A 23 de Ju lho, depois d partida de Ca mus, o Diári de Pernambuco consagra-se destacadamen te a relatar em pormenor a festa do bumba -meu-boi oferecida ao escritor francês, em peça intitulada Um espectáculo tipicament popular para Albert Camus. Fica-se a sabe que o agitado serão ocorreu no pátio de di versões da Cerâmica de Apipucos, proprie dade do empresário Baby Salgado, esclare cendo-se que o bumba-meu-boi “constitu sempre um espectáculo divertido para um estrangeiro de gosto e que ame o que s chama povo”. O que, a acreditar na repor tagem, muito terá impressionado Camus qu repetia constantemente: “é extraordinário é inesquecível”, depois demonstrando mes mo intelectual interesse em recolher biblio grafia sobre o bumba-meu-boi que não ter sequer esgotado o sarau, continuado com Xangô de Pai Apolinário. Seguindo a elogios peça do jornal, “Camus ficou particularmen te impressionado com todo aquele espectá culo tipicamente popular e disse que levav de tudo uma recordação inesquecível. Vei ao Brasil para isso mesmo. Não veio para ve avenidas nem arranha-céus, nem hotéis d luxo”, concluía o muito antigo e probo Diá rio de Pernambuco. O que o jornal se esqueceu de escrever fo que o muito popular e folclórico espectácu lo oferecido no Recife em honra de Alber Camus tinha sido sugerido por essa figur maior em que nos habituámos a ler o fami gerado luso-tropicalismo: Gilberto Freyre, mais do que célebre autor de Casa-Grande & Senzala, obra editada em 1933, cumprem-s oitenta anos. Freyre telegrafou propositada mente do Rio de Janeiro a um amigo pedind que convocasse o pintor Lula Cardoso Aires o poeta Ascenso Ferreira e o seu pupilo Ed son Nery da Fonseca para acompanharem a gaulesa celebridade: “Preparem um bom maracatu, que Camus gosta disso, ele não muito académico”.

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S. Salvador

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Bahia:

S

egue num sábado do Recife para S. Salvador da Bahia, escrevendo nas suas diárias páginas de viagem que na antiga cidade “não se vê senão negros, parece-me uma imensa casbah, fervilhante, miserável, suja e bela”. Encanta-se depressa. Gosta mais da baía de Salvador, avistada do seu quarto de hotel, do que da de Guanabara, “muito espetacular para o meu gosto”. Explica sobre a baía que baptiza a primeira capital do Brasil colonial: “esta, pelo menos, tem uma medida e uma poesia”. Almoça no porto, onde “comemos pratos suficientemente apimentados para fazer paralíticos se moverem”. Visita as igrejas de Salvador, mas acha serem exactamente as mesmas que havia encontrado no Recife: “um barroco harmonioso que se repete muito”. Enfada-se, por isso, chegando a escrever que a arte do barroco brasileiro é mesmo a única coisa a ser vista no Brasil, mas que se vê depressa. À noite, mais uma conferência em Universidade. No domingo, 24 de Julho, visita Itapoã, encontrando um grupo de cineastas franceses a rodar um documentário. Pela noite dentro, assiste a um inevitável baiano candomblé, fascinando-se por uma negra enorme: “Ela

De São Paulo

barroco e candomblé

usa um chapéu azul de caçadora, de aba dobrada, com plumas de mosqueteiro, um vestido verde e tem na mão um arco verde e amarelo munido da sua flecha, na ponta da qual está cravado um pássaro multicor. O belo rosto adormecido reflecte uma melancolia parelha e inocente. Esta Diana negra é de uma graça infinita. E quando ela dança, esta graça extraordinária não se desmente”. Apesar da admiração sincera pela Bahia, acaba por se interrogar no seu Diário: “Será que sinto vontade de passar alguns anos no Brasil?”. A resposta é tão clara como definitiva: “Não”. Infelizmente, a gripe e a febre agravam-se durante a baiana visita. Camus regressa ao Rio de Janeiro, registando perturbado no seu Diário viver um “sentimento insuportável de caminhar passo a passo rumo a uma catástrofe que destruirá tudo em torno a mim e em mim”. Mesmo assim, consegue reunir forças suficientes para assistir à encenação de um acto de Calígula representado por esse grupo de actores negros que tinha já conhecido. Veste-se abafadamente como se estivesse em dia do mais frio Inverno do norte da Europa. Assistido, medicado, vai-se recuperando, conseguindo cumprir a viagem prevista a São Paulo.

a Iguape

A

lbert Camus chega a 2 de Agosto de 1949 a São Paulo, por esta altura já o grande centro económico e industrial do Brasil, mais fervente cidade de vários modernismos e vanguardas culturais. Descreve a enorme metrópole com brevidade: “cidade estranha, Oran desmedida”. Muito mais curiosamente, o seu primeiro paulista dia é largamente ocupado com uma curiosa visita à penitenciária estadual para conhecer e falar com o célebre Gino Amleto Meneghetti (1878-1976) que, nascido em Pisa, mas radicado no Brasil, ficaria conhecido como gato do telhado para ganhar fama de “maior ladrão da América do Sul”, lenda cantada em muitas exageradas proezas de folclórico arrombador, evasor célebre e gatuno quase romântico. No dia seguinte, é heroicamente recebido por Oswald de Andrade com uma feijoada antropofágica e muita conversa sobre a antropofagia como visão do mundo, assim recordando o seu famoso Manifesto Antropófago, pubicado em 1928, com que o poeta da paulista Semana de Arte Moderna de 1922 tinha agitado os meios intelectuais brasileiros, excitando as hostes do nascente modernismo. Segue-se uma inevitável conferência, desta vez no Instituto de Educação Caetano Campos, aberta por Andrade com um discurso sobre “O Tempo dos Assassinos”. A oswaldiana apresentação não se distancia, porém, desses lugares-comuns que, entre absurdo e existencialismo, foram perseguindo a representação da obra complexa de Camus: “Sendo o mais vivo dos escritores, sois um amigo da morte. Sendo o mais claro dos filósofos, sois um técnico do absurdo. Não se trata pois de Flaubert interessando-se pelos cartagineses, mas do africano que se apoderou como um mestre do espírito ocidental”. A 7 de Agosto, o muito lido Estado de São Paulo publica um extenso artigo de Roland Corbisier sobre a passagem de Camus pela cidade. O texto cita Hegel, Aristóteles, Politzer e, muito mais abundantemente, Sartre. As referências à obra camusiana são esparsas. A comparação e paralelo com Sartre tornaram-se mesmo recorrentes em encontros, conferências e nas perguntas das entrevistas para os jornais brasileiros. Significativamente, na entrevista colectiva concedida à maior parte dos grandes jornais de São Paulo, logo na sua chegada à cidade, interrogado com insistência sobre o existencialismo, Camus responde com exemplar lacónico desin-

onias

Ao

lado de

Lina Bo Bardi, Albert Camus

come feijoada na casa de

teresse: “Data de Santo Agostinho”. Apesar destas irritações, o escritor francês apreciou o convívio com Oswald de Andrade. Aceita mesmo o seu original convite para se deslocar a Iguape, entre 5 e 7 de Agosto, para assistir às plurisseculares festas do Bom Jesus. Forma-se uma comitiva que soma a Camus e Oswald de Andrade, o seu filho Rudá de Andrade e Paul Silvestre, o adido cultural da Embaixada de França. A viagem de cerca de 175 km faz-se de automóvel e demora mais de dez horas, um “verdadeiro programa de índio”, regista no seu Diário. O motorista, designado ironicamente por Camus de Augusto Comte, não conhece nem o caminho nem muito menos sabe de “positivista” mecânica. O carro avaria, mas são salvos por um camião. Almoçam pela Piedade, uma “pequena aldeia sem graça”, demorando-se à volta de uma “refeição brasileira, que não acaba mais, e que passa graças à pinga.” Consertado o automóvel, retomam a viagem, mas Augusto Comte engana-se nas direcções e ultrapassam o destino em mais de 60 quilómetros, obrigando a mais três horas de viagem. Passam por Registro, anotando Camus no seu Diário que a cidade era uma “verdadeira capital japonesa no meio do Brasil, onde tive tempo de ver casas de decoração frágil, e até mesmo um quimono”. Chegam, finalmente, a Iguape no começo da

Oswald

de

Andrade,

em

1949

madrugada, debaixo de chuva. Mesmo cansado da viagem, Camus sublinha no seu Diário a acolhedora hospitalidade das autoridades locais: “Observo, mais uma vez, a refinada polidez brasileira, talvez um pouco cerimoniosa, mas que, mesmo assim, é melhor que a grosseria europeia.” O escritor francês nunca viria a saber que o Prefeito de Iguape tinha dado ordens precisas para que se mantivesse o fornecimento de energia eléctrica toda a noite quando, habitualmente, era desligado às 22 horas. Camus e a sua comitiva são hospedados no hospital “Feliz Lembrança”, nos arredores, já que todos os hotéis e casas estavam mais do que esgotados com os muitos romeiros que, nestes últimos anos, chegam a uns 200 mil, decuplicando a população da cidade balneária que é agora Iguape. Camus sente-se confortável no seu quarto de hospital, mas não deixa de protestar no seu Diário contra os roncos sonoros e os espirros de Augusto Comte que embaraçam o seu sono. Antes, ainda tivera tempo de escrever no livro de honra do velho hospital, hoje em ruínas: “Ao Hospital Feliz Lembrança que traz tão bem o seu nome, com a homenagem calorosa a este Brasil que aboliu a pena de morte e a esta Iguape onde a gente compreende esse gesto.” Segue-se, pela manhã, a famosa romaria do Bom Jesus. LUSOFONIAS • Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013

V

A Romaria

do

T

Bom Jesus

odos os anos, de 28 de Julho a 6 de Agosto, com regularidade plurissecular, a grande festa do Bom Jesus transforma a sossegada cidade balnear de Iguape, no litoral sul de São Paulo, em terra de centenas de milhares de romeiros e turistas, comércio abundante e agitação muita. O popular festival, mesclando devidamente, como sempre convém, as manifestações mais devotas ao mais desgarrado profano, escora-se numa antiga legenda piedosa, difundida ao longo do século XVIII. Textos hagiográficos contando a milagrosa descoberta por dois índios, em 1647, na praia de Una, na Jureia, de uma imagem de Jesus perdida no alto mar por uma embarcação portuguesa aflita em meio de tenebroso temporal. Ao transportarem a imagem, os dois perceberam rapidamente que se tornava mais leve quando se dirigiam para Iguape e muito mais pesada noutras direcções. Para Iguape seguiram. Nos arrabaldes da antiga vila, fundada ainda em 1538, lavaram cuidadosamente o vulto na água de uma fonte que brotava de um rochedo. Limpa, a imagem seguiu para a igreja de Nossa Senhora das Neves, a padroeira da vila. Mobilizados pelo sacro evento, muitas pessoas passaram a frequentar a fonte e a retirarem pedaços de pedra do seu rochedo, acreditando nos seus poderes milagrosos. Os pedaços foram sen-

de Iguape

(...) Camus acompanhou fascinado durante três dias as festas do Bom Jesus de Iguape (...) do continuadamente retirados, mas a pedra continuava do mesmo tamanho. A milagrosa imagem transformou-se em Bom Jesus e nova basílica a acolheu no centro de Iguape, solenemente inaugurada em 1856. O rochedo da fonte foi-se transformando em gruta, recebeu uma pequena capela abobadada, conhecida por Gruta do Senhor, convidando os fiéis a descer uma escadaria para chegarem à pedra milagrosa. Em torno da gruta construiu-se um parque arborizado, veio o lago com patos e parcas, mais um tanque agora transformado em conveniente piscina pública. A alameda que leva

peregrinos e turistas à gruta recebeu o nome de Albert Camus. O escritor não viu ainda, nesse ano de 1949, os muitos moleques diligentes, munidos de um martelo, oferecendo aos muitos fiéis a sua ajuda para retirarem do fundo cada vez mais longínquo da gruta um pedaço da milagrosa rocha. Em algumas horas, fazem umas centenas de reais que os ajudam depois ao longo de uma vida mais difícil à espera da romaria do ano seguinte. Camus acompanhou fascinado durante três dias as festas do Bom Jesus de Iguape. Observou com atenção, escreveu apontamentos pormenorizados, tirou fotografias, falou com muitos populares, perdeu-se frequentemente na multidão, entre as muitas vendas e tendas improvisadas por avenidas e ruelas. A experiência, registada cuidadosamente no seu Diário de Viagem, estaria ainda na origem do último dos seis contos reunidos em O Exílio e o Reino, obra publicada em 1957 quando foi muito justamente agraciado com o Prémio Nobel da Literatura. Intitulado A Pedra que Cresce, o brasileiro conto haveria de aguardar oito anos para ser concluído. É que, passados os três dias de romaria no Bom Jesus de Iguape, Camus ainda tinha algumas outras canseiras finais para cumprir por terras brasileiras mais austrais.

Porto Alegre:

cidade feia, Erico Veríssimo e a decadência europeia

A

ssim, passadas estas aventuras peregrinas de Iguape, segue-se a 9 de Agosto mais uma viagem cansativa, desta vez rumo a esse outro Brasil que se encontra nas grandes paragens do Sul em torno de Porto Alegre e muito mais além. A viagem de avião causa-lhe uma crise respiratória e Camus sente-se sufocar. Escreve, por isso, muito a desgosto sobre a cidade: “A luz é linda. A cidade feia. Apesar dos seus cinco rios. Tais ilhotas de civilização são geralmente horrorosas”. Visita Porto Alegre quase contrariado e praticamente nada o encanta e interessa. Segue-se, como seria de adivinhar, a inevitável conferência nocturna. A muito longa saudação é feita em francês pelo gaúcho e já muito famoso romancista que era Erico Veríssimo, começando não sem vaidade por explicar ter sido escolhido para saudar e introduzir Camus por ter “as mãos sujas do sangue inocente de muitas línguas, pois, não contente de torturar a minha desde a época em que comecei a escrever romances, ainda assassinei a de Shakespeare durante dois anos, ao correr das diversas conferências que fiz nos Estados Unidos”. Vaidades à parte, o escritor brasileiro disserta longamente sobre

VI

Da esq. para a dta.: Marques Rebelo, Carlos Reverbel, Dante de Laytano, Guilhermino Cesar, Albert Camus e Erico Veríssimo, Jean Roche, Moysés Vellinho, Manuelito de Ornellas e Décio Souza

esse livro tão genial como terrível que continua a ser A Peste, obra maior em que Albert Camus mergulha fundo nas contradições de uma cidade exilada nela própria devido à pestilência, depois dividindo-se entre pessoas cada vez mais isoladas, desesperadas, capazes de tudo. Qualquer coisa que nos lembra estes muitos desastres naturais em que, neste nosso tempo de mediático voyeurismo e alterações climáticas, desfilam gentes perdidas sem nada que pilham, se afrontam, exploram a desgraça, rapidamente perdendo miseráveis as referências mais primárias da condição humana. Erico Veríssimo disserta com seriedade sobre o camusiano título: “Nós também temos consciência de viver instantes trágicos numa cidade bloqueada por todos os lados, onde grassa a peste e onde os

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homens de responsabilidade fazem causa comum com ela. As forças das trevas e da ignorância estão em liberdade. Exactamente como o vosso admirável Rieux, sabemos que cada um de nós traz consigo a peste, que deste mal ninguém está isento, e que nós devemos estar sempre vigilantes, a fim de que o sopro de nossa respiração no rosto de outrem não o contamine; e que o resto — saúde, integridade, pureza — é um produto da vontade humana, de uma vigilância que não deve fraquejar; e que, finalmente, como existem na terra pestilências e vítimas, de modo algum devemos prestar ajuda às pestilências”. Preparado com esses vários textos que tinha escrito com anterioridade, Camus decide apresentar palestra ainda mais demorada, quase de duas horas, em que fala drama-

ticamente sobre “A Europa e o Crime”. Segue-se uma muito militante acusação da decadência europeia e da pobreza das suas ideologias, um outro tema que parece significativamente carregado de actualidade. No Instituto de Belas-Artes de Porto Alegre, o grande escritor francês recordava que muitas pessoas dispersas pelos diferentes continentes se voltavam preocupadamente para a Europa, interrogando-se sobre o seu futuro convencidas de que o desespero europeu seria o fim dos valores indispensáveis da dignidade humana. Recusando qualquer profecia, Camus procura entender a enfermidade de uma Europa que “vivia em desgraça”, multiplicando a morte de uma forma inteiramente nova: “Caim assassinava Abel em nome da lógica e imediatamente pedia a Legião de Honra. Pior ainda, em vários países europeus, os carrascos estavam instalados nas poltronas ministeriais, substituindo simplesmente o machado pelo tinteiro”. A Europa estava enferma do crime e da abstracção. Uma enfermidade terrível que só poderia ser debelada através de uma revolta sem a qual o mundo seria dominado por povos infantis que ririam sentados sobre as suas máquinas. Impunha-se uma revolta como recusa de dominação e tentativa de

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diminuir a dor dos homens. Ficcionalmente, contou depois a história de um adolescente francês que, sob a repressiva ameaça de um polícia alemão, repetia que nenhuma ideia merecia que alguém morresse por ela. O que imediatamente significava também reconhecer rigorosamente a existência de algumas ideias pelas quais era possível consentir dar a vida. Essas ideias eram muito superiores à existência de um indivíduo porque absoluta e anteriormente necessárias à dignidade do homem: a liberdade, a justiça, a luta contra a inveja, contra a mentira e contra a violência. Camus concluiria a sua gaúcha conferência destacando que se, por infelicidade, o escritor fracassasse na sua generosa missão de espalhar essas ideias, seria melhor enganar-se sem matar ninguém do que ter razão no meio do silêncio e das tumbas. No dia seguinte, Camus voltou a passear durante a manhã por Porto Alegre sem grande mobilização e cada vez mais doente. Às 14 horas, subiu para o avião que o levou a Montevideu, capital visitada tão rápida e desinteressadamente como Buenos Aires e Santiago do Chile. Regressaria cansado, muito mais doente, ao Rio de Janeiro, convalescendo ao longo de dez sofridos dias entre médicos, consultas, medicação vária. Escreve alguns apontamentos gerais sobre a terra e as gentes brasileiras. Alguns, breves e quase triviais, irritam-se com o tráfico nas grandes metrópoles brasileiras: “Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar.” Noutros apontamentos, melhor pensados, reflecte-se a própria ideia de Brasil: “um país em que as estações se confundem umas com as outras; onde a vegetação inextrincável torna-se disforme; onde os sangues misturam-se a tal ponto que a alma perdeu os seus limites.” Ainda noutros registos, muito mais graves, Camus procura perceber os problemas e desafios brasileiros: “O Brasil com a sua delgada estrutura moderna plantada sobre este imenso continente formigante de forças naturais e primitivas faz-me pensar num edifício, roído cada vez mais por invisíveis térmitas. Um dia o edifício desmoronará e um povo inteiro, formigante, negro, vermelho e amarelo se espalhará sobre a superfície do continente, mascarado e munido de lanças para a dança da vitória”. A 31 de Agosto deixa o Brasil. Continua doente e a sofrer terrivelmente. O último registo escrito no seu Diário parece quase fatal: “Doente. Bronquite, no mínimo. Telefonam para avisar que partimos esta tarde. Faz um dia radioso. Médico. Penicilina. A viagem termina num caixão metálico, entre um médico louco e um diplomata, em direcção a Paris.” Felizmente, a policromia cultural que faz o Brasil ficou inscrita inspiradoramente em Camus quando, em 1957, publica finalmente a encerrar O Reino e o Exílio, esse conto quase brasileiro a que chamou La Pierre qui pousse. Esta Pedra que Cresce (alguns académicos preferem traduzir mais exactamente como A Pedra que Brota..., não é que haja muita diferença) volta convenientemente a Iguape e à imensa festa do Bom Jesus que, assim, parece ter permitido ao escritor francês vislumbrar alguns dos principais dialécticos paradigmas das identidades culturais do Brasil: festa e revolta, carnaval e fé, tradição e modernidade entre crenças vetustas e alegrias explosivas, apesar da pobreza e da miséria muita que ainda marcava o grande país americano no final da década de 1940.

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A Pedra que Cresce E

m grande parte das muitas biografias e sumários da obra de Albert Camus, agora tão generosamente disponíveis em ano de centenário por muitos internéticos sítios, é quase normativo reduzir, não sem simplismo e muito desconhecimento, a sua fama literária a dois romances – O Estrangeiro e A Peste – a outros dois ensaios – O Mito de Sísifo e O Homem Revoltado – e a uma sublime peça teatral – Calígula. Assim desaparecem outros títulos fundamentais, dezenas de textos de opinião importantes, mais polémicas escritas e pensadas com elevada inteligência. Esquece-se o contista genial que foi também Camus e essa muito marginalizada arte do conto breve que, felizmente, neste nosso ano de 2013, consagrou com o Prémio Nobel da Literatura as muita ricas e esquecidas letras canadianas na pessoa da escritora Alice Munro, nascida em 1931 nesse Canadá que Camus também visitou em 1946. Os seis contos reunidos e editados em 1957 por Albert Camus, o ano dessa sua Nobel consagração, no volume intitulado L’exil et le Royaume (O Exílio e o Reino) contam-se entre as melhores composições do século XX neste género difícil e exigente. Dedicados à sua mulher, Francine, os contos pensam o reino como a consciência e tratam o exílio como o indivíduo amordaçado ao seu destino e embaraçado pelos desafios do devir existencial. As intrigas espalham-se por cenários europeus, africanos e, o último conto, A Pedra que Cresce, já sabemos que regressa inspirado oito anos mais tarde ao Brasil. O conto organiza-se rápido em cinco momentos consecutivos. A abrir, um engenheiro francês, D’Arrast, acompanhado pelo seu motorista Sócrates, dirige-se com dificuldade para Iguape onde tinha sido contratado para construir um dique. Chega tarde, noite dentro, no preciso dia em que se inauguram as festas do Bom Jesus. Num segundo momento narrativo, ao acordar cansado de manhã, o nosso engenheiro observa detalhadamente o velho edifício em que está hospedado: um hospital com duas fileiras de camas, paredes recentemente caiadas de marrom e branco, com crostas amarelas até ao tecto. É o cenário do Hospital da Boa Lembrança que havia recebido em 1949 Albert Camus. D’Arras é calorosamente acolhido pelas autoridades locais, mas sente a hostilidade dos habitantes mais pobres quando visita os seus tegúrios próximo de um rio que inundava frequentemente as suas casas. O projectado dique destinava-se a resolver este problema. Num terceiro apartado textual, o engenheiro encontra-se com Sócrates que, no jardim da Fonte, lhe apresenta um negro pobre, nomeado simplesmente “o cozinheiro”. Este solicita a ajuda de D’Arras para conseguir cumprir a sua promessa ao Bom Jesus, transportando à cabeça uma pedra pesada de 50 quilos, voto de agradecimento pela sua salvação durante um trágico naufrágio. Num quarto desenvolvimento, nas vésperas da grande procissão do Bom Jesus, o cozinheiro convida D’Arras a assistir aos preparativos festivos numa grande casa do quarteirão mais pobre da cidade, assistindo a celebrações em que Camus convoca os seus apontamentos vividos nas festas de candomblé

em Caxias e na Bahia. No último andamento narrativo, no dia seguinte, D’Arras participa na procissão ao lado do cozinheiro que, extenuado, deixa cair a pesada pedra da sua promessa. O engenheiro levanta-a e carrega-a às suas costas até à casa pobre do cozinheiro. É, finalmente, aceite e acarinhado sem reservas pela população local. Com esta estrutura, o conto parece oferecer leitura evidente: o conflito estabelece-se entre o protagonista, o estrangeiro e a pobre população local, mesmo quando o objectivo da sua chegada era o de dirigir a construção de um dique capaz de salvar as casas das zonas baixas da cidade das recorrentes cheias fluviais; acaba, contudo, por se fazer aceitar ao ajudar o pobre cozinheiro negro a pagar a sua promessa de transportar a pesada pedra. Assim se concretiza para o protagonista a passagem do exílio a um reino: o nosso estrangeiro engenheiro vivia perturbado uma sofrida solidão existencial, como Meursault nessa obra-prima que é O Estrangeiro, mas descobre a ajuda, a solidariedade e o amor entre os mais pobres, tema prefigurando o enredo do derradeiro e inacabado romance de Albert Camus, O Primeiro Homem, publicado pela sua filha apenas em 1994. O conto está mais do que pejado dos lugares da memória da camusiana visita em 1949 a Iguape e a outros espaços do Brasil, restando saber em que medida o destino de D’Arras reflecte os exílios interiores e o pensamento mais profundo de Camus na sua singela feliz conclusiva aceitação no reino dos pobres. LUSOFONIAS • Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013

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Epílogo em actualidade E

m 1949, quarenta e oito dias depois de sua chegada ao Brasil, Albert Camus volta finalmente a Paris para se sentir definitivamente em casa. Chega, contudo, doente, novamente atacado pela tuberculose. É forçado a passar vários meses num sanatório em Cabris, perto de Grasses, e a seguir nos Vosges. A partir daqui, decide passar a recusar todos os convites para viagens ao estrangeiro, incluindo as muito generosas condições que lhe eram oferecidas para realizar um ciclo de conferências no Japão. Viria a abrir apenas duas excepções para visitar dois países que amava especialmente: a Itália e a Grécia. De resto, repugnavam-lhe cada vez mais as conferências públicas, as recepções, homenagens e, sobretudo, mundanidades. Encerrou-se na sua escrita. O seu Diário de Viagem, reunindo as impressões das viagens pelas duas Américas, do Norte e do Sul, espaçadas três anos, foi provavelmente arranjado, reescrito, concluído com delonga tanto como muitas vezes interrompido. Aparece publicado postumamente em França apenas em 1978 como Journaux de voyage compilados por Francine Camus, a sua filha, e anotados Roger Quilliot. A sua brasileira editora, a Record, traduziu com esmerado cuidado e publicou este Diário de Viagem em 1997, agora reeditado em ano de centenário. Ao lado de O Exílio e o Reino, também várias vezes reeditado pela grande edito-

VIII

Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS

ra do Brasil, seria uma pena que o público leitor em língua portuguesa não voltasse a ler ou a descobrir esse Albert Camus cansado, doente, mesmo assim curioso, inteligente e tantas vezes fascinado pelas terras e gentes brasileiras. O que ele escreveu não são apenas memórias ou simples apontamentos de viagens. É do nosso mundo de hoje que verdadeiramente se trata com quase desconcertante actualidade e realidade. Assim é no texto que se segue, muitas décadas antes da invenção dos BRICS, da cooperação Sul-Sul, dos países emergentes e dessas muitas outras etiquetas com que continuamos a julgar viver num mundo novo. Desengano. Leia-se (não é mesmo mais um texto sobre a globalização…) esta prosa final do seu Diário de Viagens: “Mais rápido vai o avião e menos importância têm a França, a Espanha, a Itália. Elas eram nações, ei-las províncias, e amanhã, vilarejos do mundo. O futuro não está em nós e nós não podemos nada contra este movimento irresistível. A Alemanha perdeu a guerra porque era uma nação e porque a guerra moderna exige os meios dos impérios. Amanhã, serão necessários os meios de continentes. E eis os dois grandes impérios lançados à conquista do seu continente. Que fazer? A única esperança é que uma nova cultura nasça e que a América do Sul talvez ajude a equilibrar a estupidez mecânica”.

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