Além da fumaça: Reflexões sobre o risco na responsabilidade civil objetiva das fabricantes de cigarro

November 21, 2017 | Autor: Matheus Rocha | Categoria: Law, Direito, Direito Civil, Responsabilidade Civil, Civil liability
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UNIVERSIDADE DE COIMBRA FACULDADE DE DIREITO

Além da fumaça: Reflexões sobre o risco na responsabilidade civil objetiva das fabricantes de cigarro

Autor: Matheus Pereira Rocha1 Professor Orientador: Dra. Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa

Coimbra Novembro de 2014

1

Acadêmico do 4° Semestre da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

NOTA: A pedido de amigos, estou disponibilizando este trabalho na internet. Ele foi concebido por mim para uma apresentação na cadeira de doutorado que me refiro na apresentação. Acompanhei esta cadeira como ouvinte, com autorização da professora, e me ofereci para acompanhar os colegas e também redigir um trabalho. Falo isso para justificar alguns erros conceituais e de formatação que por ventura se possa encontrar aqui, os quais procurarei revisar nos próximos meses. Além disso, pretendo continuar o trabalho mostrando uma outra visão para o problema, que oferece uma crítica ao pensamento de Flávio Tartuce, propondo uma distribuição da responsabilidade objetiva através do risco, porém desta vez com uma base normativa, ao invés daquela distribuição quase que meramente estatística. A hipótese é de que essa crítica, baseada no problema da autocolocação da vítima em risco, provavelmente limita a aplicação da teoria, o que no caso concreto limitaria a responsabilização das empresas até o momento em que as mesmas não cumpriam com o dever de informação sobre os perigos do cigarro. No entanto, isso depende dos resultados meus estudos sobre o tema e da forma como irei estruturar a questão. De qualquer forma, agradeço o interesse dos amigos por este meu trabalho, e fico feliz se puderem dividir as suas impressões comigo.

SUMÁRIO

1. Risco, Perigo e Sociedade; 2. A questão do tabaco; 3. A judicialização da questão do tabaco no Brasil; 3.1 As teses que têm prevalecido no Judiciário Brasileiro; 3.2 Posições minoritárias e críticas; 4. Uma alternativa: A Teoria do Risco Concorrente

APRESENTAÇÃO: O presente trabalho destina-se a ser apresentado na disciplina de

Desafios Sociais e Risco na Fundamentação da Responsabilidade Civil, do curso de Doutoramento em Direito Civil da Universidade de Coimbra. Baseando-nos na discussão sobre o risco na responsabilidade civil objetiva que se coloca a partir dos desafios sociais do mundo atual, escolhemos a questão da responsabilidade das fabricantes de cigarro pelos danos causados em seus consumidores como uma forma de ilustrar a dificuldade atual quanto o nexo de causalidade, em especial quanto a concausalidade e a parcela de risco que cada parte assume ao caminhar em direção ao dano. Inicialmente, procuraremos analisar o atual cenário referente ao risco, e sua relação com os perigos na sociedade. Não obstante, procuraremos mostrar que, mais do que uma sociedade perigosa, é preciso pensarmos na pessoalidade inerente ao instituto da responsabilidade civil e a importância de fundamentar a reparação dos danos na pessoa, e não em outros elementos sociais ou argumentativos. Delineada brevemente esta questão, apresentamos o tema do tabaco para ilustrar os desafios deste tema. Um breve histórico do tabaco será levantado, de modo a mostrar como chegamos na busca judicial por reparação dos danos sofridos pelo uso contínuo do cigarro. A partir desse quadro, mostraremos como tem se desenvolvido a judicialização deste tema no Brasil, onde a maior parte dos processos é julgada

improcedente. Por isso, analisaremos as teses que têm prevalecido no Judiciário, para depois apresentarmos recentes decisões que se colocam contra a tendência de não responsabilização das referidas empresas. Por fim, procuramos mostrar uma alternativa para a questão do nexo de causalidade na responsabilidade civil a partir da Teoria do Risco Concorrente. Assim, verificaremos suas possibilidades de aplicação e seu diálogo com as atuais teorias sobre o risco na responsabilidade civil.

1. Risco, Perigo e Sociedade Nos dias atuais, os desafios sociais têm provocado os estudiosos do instituto da responsabilidade civil. Por vivermos em uma sociedade cada vez mais complexa, percebemos que, diferentemente de tempos passados, os principais perigos para a pessoa são criados dentro da própria sociedade. Assim, nesse sentido, veremos o surgimento2 da responsabilidade civil pelo risco a partir da revolução industrial, devido a acentuação dos perigos que a nova ordem econômica envolvia. No entanto, hoje, já não olhamos mais para o indivíduo como na época passada, mas para a pessoa. Essa não é mais o sujeito isolado sobre si mesmo que olha para os outros como antagonistas e, portanto, como limites à sua liberdade, mas é aquele que (sem apagar a dimensão individual) só se realiza no encontro com o outro, com o qual se relaciona numa perspectiva de cuidado. Portanto, ao responsabilizar o sujeito, estamos a afirmar que ele é pessoa e a recusar o seu tratamento como objeto. Afinal, a finalidade última da responsabilidade civil passa pela reafirmação da pessoalidade de cada um 3. Assim, refletindo sobre os perigos da sociedade atual e o paradigma da pessoalidade, vemos que o que é relevante não é a caracterização da sociedade amorfa como perigosa ou arriscada, mas sim a percepção exata de que o homem, na sua pessoalidade livre, é capaz de controlar, pelo menos em parte, essa perigosidade. Nesse sentido, entendemos que o risco deve ser considerado como um passo decidido da pessoa em direção ao perigo, o que faz do momento em que a pessoa assume o risco um ponto nevrálgico na questão da imputação. Fica claro que, quanto mais complexas as relações na sociedade, mais complexos os riscos. Assim, muitos juristas irão procurar tipificar, através da teoria do risco, algumas modalidades de risco, tais como risco-criado, risco2

Refere-se ao surgimento moderno do conceito. No entanto, as primeiras reflexões sobre

responsabilidade tendem para uma imputação objetiva, já que, verificado o dano, era todo o clã chamado a responder (ver GENEVIEVE VINEY, Introduction à la Responsabilité, Traité de Droit

Civil sous la Direction de Jacques Ghestin, 2° edition, Paris, LGDJ, 1995, p. 7) 3

MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Estudos a propósito da Responsabilidade Objetiva, 2014, Ed. Principia, pg. 23 e ss.

profissional, risco-proveito, entre outros. Quanto a este último, importante é defini-lo como o risco que traz vantagens àquele que o cria, causando danos a outrem. Assim, a responsabilização daquele que atua com risco-proveito segue a máxima ubi commoda, ubi incommoda. Muito se discutiu sobre a finalidade da responsabilidade objetiva nos últimos anos. Assim, em seu livro Estudos a Propósito da Responsabilidade

Objetiva, a autora Mafalda Miranda Barbosa sistematiza em cinco as principais correntes. Haveria, inicialmente, uma linha funcionalista de perspectiva economicista, protagonizada pelos cultores da law and aconomics4, concebendo a responsabilidade civil como forma de prevenir os comportamentos lesantes, maximizando o lucro. Na mesma linha funcionalista, teríamos a perspectiva

político-marxista, de que ABEL5 seria representante, defendendo a extensão da responsabilidade objetiva na medida em que a responsabilidade baseada na culpa serviria apenas para manter o estatuto de uma sociedade capitalista. Após, vemos uma linha libertária, remetendo-nos para uma ideia de pura causalidade, tendo como NOZICK o seu inspirador. Neste ponto também destacamos o pensamento de VENEZIAN6, que afirma que cada um responde porque o dano emana da sua individualidade e, se o dano traduz-se na lesão de fato de um direito de outrem, então deve ser reparado objetivamente. Outra linha apontada será a de perspectiva empresarialista, tendo como representante TRIMARCHI7, remetendo-nos a uma ideia de responsabilidade pelo risco da empresa. Sobre as perspectivas acima, a autora afirma que não crê que a perspectiva marcadamente economicista possa servir para captar o fenômeno da responsabilidade pelo risco. De igual modo, não procede a invocação da responsabilidade do mais rico, por não ser certo, em concreto, que aquele que reclama uma indenização está numa posição econômica mais vantajosa do que aquele que fica obrigado a pagá-la. Assim, aponta-se uma quinta perspectiva,

4

PABLO SALVADOR CODERCH, NUNO GAROUPA e CARLOS GOMÉZ-LIGÜERRE, Scope of Liability: the Vanishing Distinction between Negligence and Strict Liability, 2004. 5 ABEL, A critique of torts, UCLA Law Review n° 37, 1990. 6 VENEZIAN, Danno e risarcimento fuori dei contratti, 1919. 7 TRIMARCHI, Rischio e Responsabilità Oggetiva, 1961.

chamada de normativa, que presta especial atenção a aspectos como a tutela especial de bens jurídicos, a tutela da posição mais frágil do lesado, à perigosidade, e aos benefícios que se pode obter com a atividade potencialmente danosa.8 2. A questão do tabaco Um exemplo para ilustrar o debate atual sobre o risco na responsabilidade civil objetiva é a questão do tabaco. Conforme já se afirmou em uma revista de grande circulação no Brasil, “o cigarro é a droga mais popular do século XX. Teve a mais espetacular trajetória de um produto no surgimento da sociedade de massas. No apogeu, era símbolo das mais instintivas ambições humanas: a riqueza, o poder, a beleza. No ocaso, virou câncer, dor e morte”.9 Em estudo chamado Atrás da Cortina de Fumaça, o sociólogo brasileiro Sérgio Luís Boeira irá procurar traçar uma linha histórica para a trajetória do cigarro, mostrando o debate acerca dos seus riscos. Inicialmente, ele aponta para o fato de que a expansão da manufatura de tabaco acentua-se globalmente após a independência dos EUA, pois após tal fato a Inglaterra perde o monopólio da fabricação dos derivados de tabaco, aquecendo o mercado. Após, demonstra-se que o cigarro tornou-se substancialmente popular na segunda metade do século XIX, sendo seu uso estimulado pela urbanização e pelo ritmo de vida da modernidade, fortemente influenciado pelo american way of life. No entanto, no século XX, surgem os primeiros estudos relativos aos males deste hábito. Em 1964, o governo americano publica um relatório de grande impacto na opinião pública, estabelecendo uma relação entre tabaco e várias enfermidades graves.10 Cabe ressaltar, neste ponto, o fato de que em meados da década de 1990 descobre-se que desde a década de 1950 a indústria mantinha em segredo pesquisas científicas que contrariavam frontalmente os seus próprios discursos 8

MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Estudos a propósito da Responsabilidade Objetiva, 2014, Ed. Principia, pg. 34 e ss. 9 REVISTA VEJA. São Paulo: Abril, Edição 2.140, ano 42, n. 47, 25 nov. 2009, p. 163. 10 BOEIRA, Sérgio Luís. Atrás da cortina de fumaça. Tabaco, tabagismo e meio ambiente. Estratégias da indústria e dilemas da crítica. Tese de doutorado defendida na Universidade Federal de Santa Catarina.

públicos, tendo sido comprovadas alterações e supressões de trechos nas suas campanhas publicitárias considerados perigosos para a imagem pública das empresas, em virtude dos efeitos do tabagismo. A partir da década de noventa, então, é que empresas produtoras de cigarro começarão a ser condenadas nos EUA, pois entre 1954 e 1992, a indústria ganhou todas as ações movidas pelos fumantes. Em 1997, seis grandes empresas do ramo celebram acordo para pôr fim a ações movidas pelos estados americanos em busca de recuperar os valores gastos pelo sistema de saúde, o que ficou conhecido como Master Settelment

Agreement. Por meio deste ato, as empresas ficaram proibidas de dirigir suas estratégias de publicidade ao público jovem, além de sofrerem proibições e restrições quanto a sua publicidade normal. Em outras ações, a indústria foi obrigada a entregar os seus arquivos secretos que mantinha desde a década de 1950. Em 2006, ainda, a Juíza Gladys Kessler reconheceu que a indústria está por trás da epidemia tabagista e atua em conjunto e coordenadamente, em nível global, para enganar a opinião pública, governo, comunidade de saúde e consumidores. 11 3. A judicialização da questão do tabaco no Brasil Tendo em vista o panorama apresentado, principalmente com as ligações históricas entre a indústria do tabaco e os EUA, podemos agora analisar o caso brasileiro sobre os danos causados pelo cigarro e seu respectivo enquadramento do ordenamento jurídico brasileiro, com foco nos fundamentos da responsabilidade civil através dos argumentos apresentados em juízo. Para isso, ressaltamos a contribuição da Aliança de Controle do Tabagismo, que apresentou estudo intitulado “Ações Indenizatórias Contra a Indústria do Tabaco:

Estudo de Casos e Jurisprudência”12. O trabalho contou com uma base de 100 decisões judiciais de todo o país entre 2007 e 2010 e percebeu que, nas ações 11

Fonte: Aliança de Controle do Tabagismo, Ações judiciais no exterior (Disponível em . Acesso: 20/11/2014) 12 SALAZAR, Andrea Lazzarini. e GROU, Karina Bozola. Ações Indenizatórias Contra a Indústria do Tabaco: Estudo de Casos e Jurisprudência. 2011.

judiciais indenizatórias movidas contra as referidas empresas, a maior parte das sentenças e acórdãos tem decidido pela não responsabilização desses fornecedores nos casos de adoecimento e morte de fumantes. O seu objetivo, então, é entender os argumentos que afastam a responsabilidade da indústria do cigarro. Inicialmente, destacamos que, nos relatórios e fundamentações das decisões, 81,2% dos casos apresentam o vício, a falta de informação e a publicidade como causa (única ou associada) das razões para fumar. Quanto aos danos causados, em especial as doenças, destacam-se pela maior incidência os casos de câncer (45,8%), sendo o mais recorrente o câncer de pulmão, seguido pelo câncer de laringe e ou faringe. É importante destacar também que em 6 casos foi apontada a tromboangeíte obliterante (Doença de Buerger), uma doença que é causada, na imensa maioria dos casos, pelo consumo de cigarro. Quanto às características dos julgados, em 22 ações a perícia para averiguar o nexo de causalidade entre o cigarro e os danos apontados foi realizada. Porém, em 14 destes casos o resultado foi inconclusivo. Por isso, em outros 31 casos, o meio de prova escolhido foram as provas documentais e testemunhais. Quanto aos resultados, 80,2% dos casos foram desfavoráveis às pretensões das vítimas, julgando a ação improcedente em primeira instância, contra 9,3% de resultados total ou parcialmente favoráveis às vítimas. A mesma tendência mantém-se em segunda instância, agora um pouco menos desproporcional, com 66,6% de casos improcedentes contra 12,5% de casos com julgamento favorável ou parcialmente favorável à vítima. Do total da pesquisa, houve reconhecimento de nexo de causalidade em pouquíssimos julgados, sendo a falta deste requisito uma das teses mais utilizadas para fundamentação dos mesmos. A responsabilidade objetiva e o nexo de causalidade foram declarados em cinco acórdãos e em um julgado foi reconhecida a responsabilidade subjetiva da ré.

Por fim, chamamos a atenção para o fato de que o Superior Tribunal de Justiça, instância máxima do país em matéria infraconstitucional, proferiu seis decisões em ações de indenização por danos sofridos por vítimas do tabaco, sendo que em nenhuma delas houve condenação da indústria tabagista. Nos julgados que enfrentaram o mérito da questão, o pedido foi negado, por unanimidade, sob a argumentação de (1) falta de nexo causal, (2) ausência de violação a dever legal e (3) culpa exclusiva da vítima. 3.1 As teses que têm prevalecido no Judiciário Brasileiro Conforme aponta o referido estudo, os resultados da pesquisa revelam a predominância do posicionamento do Poder Judiciário favorável às teses da indústria tabagista. Os argumentos que prevalecem para rechaçar o pedido indenizatório das vítimas e seus familiares são, basicamente, o livre arbítrio; a

incidência da responsabilidade subjetiva; a falta de nexo de causalidade entre o dano e o tabaco; a licitude da atividade; e a prescrição de cinco anos do Código de Defesa do Consumidor13. No presente trabalho, analisaremos as primeiras três proposições. a.

Responsabilidade Subjetiva: O sistema brasileiro admite a

responsabilidade objetiva a partir do art. 927, § único, do Código Civil, o qual disciplina que haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa,

nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Considerando que o Código de Defesa do Consumidor também prevê a responsabilidade objetiva por defeitos no produto, conforme disciplinado no art. 12 e seu primeiro parágrafo, a argumentação das empresas gira em torno da negação de que o cigarro seja um produto defeituoso, negando que haja informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

13

SALAZAR, Andrea Lazzarini. e GROU, Karina Bozola. Ações Indenizatórias Contra a Indústria do Tabaco: Estudo de Casos e Jurisprudência. 2011, pg. 25 e ss.

Assim,

as

empresas

afastam

a

hipótese

de

aplicação

de

responsabilidade objetiva em virtude da lei, qual seja o CDC, e, quando o processo chegou a ser analisado em seu mérito sob a ótica da responsabilidade subjetiva, foi afastada a responsabilidade em virtude de ausência de violação a dever jurídico (licitude do comércio de cigarros) e ausência de nexo causal. b.

Livre Arbítrio: Vários julgados entenderam que a responsabilidade

pelos danos causados pelo consumo de cigarro não pode ser atribuída à indústria porque há culpa exclusiva da vítima. Assim, argumentam alguns julgadores: “É de se considerar que a decisão de fumar é matéria de escolha pessoal, do exercício da liberdade que é assegurada pela Constituição, e que se algum mal resultar desse hábito não há como afastar a culpa exclusiva da vítima. Ninguém é obrigado a fumar. Tudo é uma questão de livre escolha, pois é fato certo e notório que as pessoas, que se até há algumas décadas não eram bem esclarecidas sobre os males provocados pelo cigarro, hoje têm conscientização sobre os danos que pode causar à saúde, e se quiserem podem evita-los”14

Quanto ao risco assumido e os seus efeitos, outros assim afirmam: “A despeito da ampla informação existente, optou por ser fumante e assumiu os riscos decorrentes. (...) Ignorar que o vício é fruto da escolha da própria autora, passando a indenizar seus familiares por ela ter feito essa equivocada opção, seria incentivar que muitos persistam no vício, na esperança de que a família possa ser indenizada”15

c.

Ausência de nexo causal: A falta do nexo de causalidade é

fundamento encontrado em grande parte dos julgados, seja com base no CDC, seja com base do Código Civil (1916 ou 2002), de modo a afastar o dever de indenizar. Esta foi a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, baseada no voto do Ministro Luis Felipe Salomão, para o qual a ausência deste requisito 14 15

Apelação 6670-4/2008, Relatora Desa. Maria Geraldina Sá de Souza Galvão, 11/02/2009, TJ/BA Apelação Cível 607.771-4, Relator Dr. João Domingos Küster Puppi, 04/02/2010, TJ/PR

é explicada com base na adoção da teoria do dano direto e imediato, considerando que não há a comprovação de uma causalidade necessária, direta e exclusiva, na medicina, entre o tabaco e o desenvolvimento de câncer.16 Portanto, não havendo uma condição identificada como sine qua non, não há condições para se falar em responsabilização. 3.2 Posições minoritárias e críticas Embora a maioria dos julgados siga o raciocínio brevemente aqui exposto, algumas decisões têm se destacado em críticas aos argumentos acima desenvolvidos, mostrando que a questão não está pacificada. Deste modo, destacamos a Apelação com Revisão n° 379.261.4/5, do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2008, que contou com votos importantes para uma outra visão sobre o tema17. a. Responsabilidade Civil e Ilicitude: Ao discorrer sobre o conceito de produto defeituoso (usado para afastar a incidência do CDC e seu regime de responsabilidade civil objetiva), o referido desembargador afirma que tal argumento é sofístico, pois o problema não está no plantio, mas antes nos ingredientes agregados ao fumo na fase de industrialização e que vêm sendo regularmente combatidos mundialmente, em nome da saúde pública. Assim, portanto, o cigarro caracteriza-se como produto defeituoso e aplica-se a responsabilidade civil objetiva18. b. O Livre Arbítrio: A exclusão da responsabilidade por culpa exclusiva da vítima baseada no livre arbítrio de sua decisão de fumar também é enfrentada por essa decisão. Questionam os julgadores acerca da certeza de que tal decisão é totalmente livre, afirmando que “com o uso regular de cigarros, estabelece-se um condicionamento que faz com que a pessoa passe a ter o fumo 16

REsp. 1.113.804-RS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Para outras decisões no mesmo sentido, ver “TARTUCE, Flávio. A teoria do risco concorrente e o cigarro. In A teoria do risco concorrente na responsabilidade objetiva” e o relatório da Aliança para Controle do Tabagismo, anteriormente referido. 18 “Esquece-se, contudo, que plantar fumo, repita-se, pode não ser nefasto, nefasta é a sua manipulação, no momento da industrialização, ao agregar substâncias químicas, ao mesmo tempo em que a propaganda maciça impede que sejam realmente conhecidas em seus efeitos colaterais, também como causadores de moléstias e dependência, impedindo manifestação segura da livre escolha.” 17

integrado à sua rotina. Além disso, o cigarro também é utilizado como um tipo de modulador de emoções, o que faz com que seu uso se amplie significativamente e não esteja associado apenas à necessidade fisiológica de reposição periódica da droga”. Além destas breves considerações, entendemos que seria possível também questionar que a integridade física da pessoa é direito de personalidade irrenunciável, mesmo em se tratando de um suposto livre arbítrio na utilização do cigarro. c. O nexo de causalidade: Embora muitas decisões não reconheçam o nexo de causalidade entre o ato de fumar e danos existentes, o presente caso tratava-se de tromboangeíte obliterante (ou doença de Buerger), que tem como causa quase única o uso continuado do cigarro. Forma-se, assim, uma condição

sine qua non para a causa do dano. No entanto, para além disso, autores como Flávio Tartuce vão relembrar que, nos casos de responsabilidade objetiva, o nexo causal pode ser formado pela lei, que qualifica a conduta que causou o dano (imputação objetiva). Assim, considerando o cigarro como produto defeituoso (com defeito de criação), há aplicação do Código de Defesa do Consumidor e consequente enquadramento no regime de responsabilidade civil objetiva. 19 4.

Uma alternativa: A Teoria do Risco Concorrente

Diante das reflexões apresentadas, apontamos como uma possível teoria para resolução dos desafios da responsabilidade objetiva em casos com contribuição causal da vítima a recente tese de doutorado apresentada pelo professor Flávio Tartuce, intitulada Teoria do Risco Concorrente na

Responsabilidade Objetiva20. Esta tese pretende analisar a contribuição causal

19

TARTUCE, Flávio. A teoria do risco concorrente e o cigarro. In A teoria do risco concorrente na responsabilidade objetiva. 2010. 20 TARTUCE, Flávio. Teoria do Risco Concorrente na Responsabilidade Objetiva. Universidade de São Paulo, 2010.

da vítima, pela assunção do risco, na responsabilidade objetiva, propondo que a indenização deve ser fixada de acordo com os riscos assumidos pelas partes. Inicialmente, o autor aponta que o direito civil brasileiro adota, quanto ao nexo de causalidade, a teoria do dano direto e imediato (art. 403) e a teoria da causalidade adequada (art. 944 e 945). No entanto, diante da prevalência das situações de concausalidade, conclui-se como premissa desse estudo que a teoria da causalidade adequada deve prevalecer, tendo em vista que o dever de reparar deve ser adequado às condutas dos participantes ou atores do evento danoso, incluindo a própria vítima. Importante destacar que o Código Civil de 2002 trata da concausalidade ao prever que, presente mais de um autor para o evento danoso, todos respondem solidariamente (art. 942, p.u). Assim, Tartuce afirma que essa deve ser a regra, em especial se não for possível verificar qual a contribuição de cada um dos envolvidos para o evento danoso. No entanto, vai além, e defende que é possível distribuir a responsabilidade civil de acordo com as respectivas contribuições causais. Assim, seria viável juridicamente atribuir a culpa levandose em conta as concorrências efetivas do agente e da própria vítima. Se houver responsabilidade objetiva, falar-se-ia de risco concorrente. Em síntese, o autor demonstra que o art. 945 permite a análise da concausalidade na responsabilidade subjetiva, distribuindo a responsabilidade de acordo com a culpa de cada agente, incluindo a culpa concorrente da vítima.

In verbis: Art. 945: Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.

O que se propõe, então, é que tal raciocínio seja transportado para a responsabilidade objetiva, no sentido de que seria possível distribuir a

responsabilidade objetiva de acordo com os riscos assumidos entre as partes, levando em consideração também o risco concorrente da vítima21. Por isso, nota-se que o problema da responsabilidade civil das indústrias do cigarro poderia ser resolvido pela teoria do risco concorrente. Assim, para aqueles que começaram a fumar antes da publicidade e da propaganda de alerta para os riscos do cigarro, o fator de assunção de risco deveria ser diminuído ou até excluído, pois não tinham conhecimento de todos os males causados. Aqui se enquadram os casos daqueles que iniciaram o consumo de cigarro antes do início do século XXI, e que são justamente os personagens atuais das demandas em curso no Poder Judiciário Brasileiro. Deste modo, o maior índice de risco assumido está na conduta dos fabricantes e comerciantes de cigarros, pois sabiam (ou deveriam saber) os males causados pelo produto22. No entanto, para aquele que iniciou o hábito mais recentemente, estando devidamente informado e conhecendo os males do cigarro, a situação seria diferente. Haveria, então, a inversão do raciocínio, uma vez que a maior carga de risco assumido seria dada por parte do fumante. Contudo, mesmo em casos tais, não se pode admitir a culpa ou o fato exclusivo da vítima, havendo, na verdade, um risco concorrente. Assim, a empresa ainda seria responsável juridicamente, porém com um percentual menor, tendo em vista que a maior parte do risco assumido pertence à conduta da própria vítima. Isto ocorre porque não é possível negar, neste quadro de risco concorrente, que a empresa possui um risco-proveito baseado na comercialização de um produto que nitidamente causa danos e vícios23.

21

Ao defender a interdisciplinaridade na aplicação do Direito, o autor também defende que a avaliação e distribuição do risco pode ser feita através de perícia com especialista em estatísticas de risco. 22 “Para ilustrar, se uma pessoa altamente esclarecida começou a fumar nos anos 1980, sendo razoável que ela sabia dos males do cigarro, o grau de risco assumido deve ser em torno de 10% ou 20%, enquanto os outros 90% ou 80% correm por conta da empresa de tabaco. Na mesma hipótese, mas envolvendo um analfabeto sem instrução cultural, o grau de risco será de 100% por parte da empresa.” 23 “Nesse contexto, pode-se imaginar 90% de risco por parte do fumante e 10% pela empresa; 80% de risco pelo fumante e 20% pela empresa, e assim sucessivamente, o que depende da análise caso a caso pelo aplicador do Direito.”

Concluímos esta exposição lembrando, por fim, as ideias de Jorge Mosset Iturraspe, ao afirmar que não se pode mais encarar a responsabilidade civil com a construção de uma culpabilidade total de certos indivíduos. Afinal, um sistema justo, equânime e ponderado de direito dos danos, seria aquele que procura dividir os custos do dever de indenizar de acordo com os seus participantes e na medida dos riscos assumidos por cada um deles.24

24

ITURRASPE, Jorge Mosset. Responsabilidad por daños, t. III. Buenos Aires, Ed. Rubinzal-Culzoni, pg. 13.

CONCLUSÃO: Neste ponto, retomamos o que foi dito inicialmente, ao refletirmos sobre os perigos da sociedade atual e o paradigma da pessoalidade, e vemos que o que é relevante não é a caracterização da sociedade amorfa como perigosa ou arriscada, mas sim a percepção exata de que o homem, na sua pessoalidade livre, é capaz de controlar, pelo menos em parte, essa perigosidade. Nesse sentido, entendemos que o risco deve ser considerado como um passo decidido da pessoa em direção ao perigo, o que faz do momento em que a pessoa assume o risco um ponto nevrálgico na questão da imputação. Assim, ao analisarmos a história da indústria do cigarro, percebemos que a mesma deu enormes passos em direção ao perigo de causar danos aos consumidores por, durante anos, não ter informado à sociedade sobre as suas descobertas acerca dos riscos à saúde das pessoas. Além disso, manteve uma postura de forte publicidade de seus produtos para todas as faixas etárias e ainda, em seu processo industrial, adicionou diversas substâncias tóxicas, além da própria nicotina inerente ao tabaco. Tais fatos surgem, inclusive, como forma de comprometer o livre arbítrio das pessoas quanto a sua utilização ou não. No entanto, com a tomada de consciência por parte dos órgãos estatais e da sociedade sobre os riscos a que estavam sujeitos, houve um aumento da regulação deste setor e as primeiras demandas judiciais começam a surgir. No Brasil, esse movimento de judicialização irá encontrar forte resistência, tendo as teses

da

indústria

do

cigarro

prevalecido

nos

tribunais

brasileiros,

nomeadamente a ausência de nexo de causalidade, o livre arbítrio e a exclusão

da sua responsabilidade. Nos últimos anos, vimos que algumas decisões judiciais têm contrariado essa tendência, proporcionando uma maior reflexão sobre o real estado de liberdade das pessoas no uso do cigarro e sobre a distribuição dos riscos desse consumo. Nesse sentido, apontamos como uma teoria possível para a reparação dos danos causados pelo consumo de cigarro a utilização da teoria do risco concorrente.

Afinal, a ideia de justiça delitual deve passar, imperiosamente, pela equitativa distribuição do risco. Porém, é preciso que esta distribuição do risco entre as partes, incluindo a vítima, seja baseada na dialética entre a autonomia e a responsabilidade de cada pessoa, tendo como foco a responsabilidade pessoal pelo resultado danoso25. Assim, por mais que atualmente as empresas produtoras de cigarro cumpram, dentro dos limites da lei, com os deveres de informação sobre os perigos do cigarro, e a pessoa que começou a utilizá-lo sabendo desses riscos estava consciente dos mesmos, é possível se falar em uma distribuição dos riscos entre ambos. Pois a empresa continua produzindo um produto defeituoso (no sentido de que, em seu processo de produção, são adicionadas substâncias tóxicas danosas aos consumidores) e a pessoa também tomou a atitude em direção a esse perigo ao iniciar o seu consumo. Por tal relação, a proporção de risco assumido por cada um deve ser ponderada e atribuída com equidade, de modo a propiciar uma equânime distribuição desta responsabilidade objetiva.

25

MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Estudos a propósito da Responsabilidade Objetiva. Ed. Principia, 2014. Pg. 107.

BIBLIOGRAFIA: MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Estudos a propósito da Responsabilidade Objetiva, 2014, Ed. Principia; BOEIRA, Sérgio Luís. Atrás da cortina de fumaça. Tabaco, tabagismo e meio ambiente. Estratégias da indústria e dilemas da crítica; SALAZAR, Andrea Lazzarini. e GROU, Karina Bozola. Ações Indenizatórias Contra a Indústria do Tabaco: Estudo de Casos e Jurisprudência. 2011; TARTUCE, Flávio. Teoria do Risco Concorrente na Responsabilidade Objetiva. Universidade de São Paulo, 2010; ITURRASPE, Jorge Mosset. Responsabilidad por daños, t. III. Buenos Aires, Ed. RubinzalCulzoni; GENEVIEVE VINEY, Introduction à la Responsabilité, Traité de Droit Civil sous la Direction de Jacques Ghestin, 2° edition, Paris, LGDJ, 1995; PABLO SALVADOR CODERCH, NUNO GAROUPA e CARLOS GOMÉZ-LIGÜERRE, Scope of Liability: the Vanishing Distinction between Negligence and Strict Liability, 2004; ABEL, A critique of torts, UCLA Law Review n° 37, 1990; VENEZIAN, Danno e risarcimento fuori dei contratti, 1919; TRIMARCHI, Rischio e Responsabilità Oggetiva, 1961;

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