Além da narração: Comparando as Representações Femininas em Os Contos da Cantuária de Geoffrey Chaucer

June 3, 2017 | Autor: Anna Esser | Categoria: Chaucer, Middle Ages, Medieval Secular Clergy
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ATAS DO

I ENCONTRO DE HISTÓRIA DA UGF Organizadores

Profa. Dra. Carolina Coelho Fortes Profa. Doutoranda Márcia Teixeira Cavalcanti Prof. Mestrando Wendell dos Reis Veloso Prof. Dr. Sérgio Chahon

1a3 AGOSTO 2012

FICHA CATALOGRÁFICA (Catalogado na fonte pela Biblioteca Central da Universidade Gama Filho) MF

Encontro de História da Universidade Gama Filho (1. : 2012 ago. 01-03 : Rio de Janeiro, RJ) Atas do I Encontro de História da Universidade Gama Filho / Organização de Carolina Coelho Fortes, Márcia Teixeira Cavalcanti, Sérgio Chahon e Wendell dos Reis Veloso. — Rio de Janeiro : Editora Gama Filho, 2013. 630p. : fot. ISBN 978-85-7444-101-6 Inclui bibliografia.

1. História – Congressos. I. Fortes, Carolina Coelho. II. Cavalcanti, Márcia Teixeira. III. Chahon, Sérgio. IV. Veloso, Wendell dos Reis. V. Universidade Gama Filho. VI. Título. CDD – 906

Projeto Gráfico e Diagramação André Luiz Santos

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Africanidade e Escravidão no Período Moderno: Representações, Tensões e Flutuações Prof. Mestrando Thiago Mota (UFF) SESSÃO 17 | O Discurso Médico em Perspectiva Histórica

344

Na Ordem do Discurso: Rasgando o Contrato Ficcional? Edson Silva de Lima (UERJ) e Pedro Henrique Rodrigues Torres (UERJ)

353

“Dos Temperamentos”: discurso médico sobre doenças e escravos no Oitocentos Prof.ª Doutoranda Iamara da Silva Viana (UERJ) SESSÃO 18 | Olhares sobre a América Latina

361

Por Uma Revolução Sem Fronteiras: Luta Armada e Internacionalismo Revolucionário na América do Sul Prof. Doutoranda Izabel Priscila Pimentel da Silva (UFF)

370

Concepções de Democracia no Governo de Hugo Chávez Nilson Pereira (UGF) SESSÃO 19 | Ensino de História

375

Etnocentrismo versus Eurocentrismo: um Estudo acerca dos Conceitos no Ensino de História sobre a Conquista da América Espanhola Prof.ª Carla Magdenier Sobrino (UGF) SESSÃO 20 | Literatura e Leis na Idade Média

385

Além da narração: Comparando as Representações Femininas em Os Contos da Cantuária de Geoffrey Chaucer Prof.ª Mestranda Anna Beatriz Esser dos Santos (UFRJ)

394

O Morrer e o Testar na Idade Média Aryanne Faustina da Silva (UNIRIO)

403

A situação legal dos judeus durante o reinado do Rei Sábio: uma análise do discurso régio Igor Formagueri Cunha de Oliveira (UGF)

410

Uma Disputa de Amor nas Cantigas de Santa Maria: Gênero, Sexualidade e Eclesiásticos no século XIII Nathália Silva Fontes (IH/UFRJ)

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Além da narração: Comparando as Representações Femininas em Os Contos da Cantuária de Geoffrey Chaucer Prof.ª Mestranda Anna Beatriz Esser dos Santos(UFRJ)1

O presente trabalho pretende analisar como as relações de poder e o discurso permeiam a fonte por nós trabalhada, tentando perceber como a Igreja como instituição estava presente nas relações discursivas. Assim, iremos estudar alguns dos Contos da Cantuária (The Canterbury Tales) de Geoffrey Chaucer no que diz respeito à conduta do Clero e como o discurso do autor inglês acaba por representar suas críticas e percepções sobre a sociedade em que vivia. Quando utilizamos o termo representação, referimo-nos ao conceito desenvolvido por Roger Chartier em A História Cultural – Entre Práticas e Representações, que define tipos de “práticas” capazes de articular e dar sentido a tudo que permeia o campo das práticas culturais. As representações, de fato, fornecem sentido ao conjunto das práticas sociais, mas se diferenciam a partir do grupo que as veicula. Coexistindo uma gama de representações que são diferentes e também divergentes entre si, em uma luta constante, onde estas servem a interesses de grupos particulares dentro da sociedade. Estas lutas se dão no nível simbólico e, muitas vezes, não são facilmente identificáveis. E como nossa fonte trata de um texto literário, entendemos que este contribui para a construção de identidades sociais, de relações sociais e de sistemas de conhecimento e crença, cuja reprodução e cujas transformações (possíveis) cabem às práticas discursivas, de que a literatura é um veículo. E neste sentido, podem representar e/ou reproduzir ideologias, que entendemos como (...) significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais), que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação. (FAIRCLOUGH, 2001, p.117)

E como nessa construção textual o aspecto da linguagem é essencial, esta pode ser entendida, por um lado, a partir de sua função na sociedade, um meio de comunicação através do qual mensagens e informações são construídas e passadas; mas também se pode compreender a linguagem como a própria comunicação, que é constituída na sociedade, a linguagem reflete e é representada pela própria sociedade. 1

Mestranda bolsista (Capes/CNPq) pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC/IH/ UFRJ) orientada pela Profª Drª Gracilda Alves. [email protected].

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A respeito de como a linguagem é essencial ao se pensar as relações de poder no campo discursivo, ao longo de nossa pesquisa entendemos também que as considerações de Bordieu em O poder simbólico são úteis para a análise de nossa fonte. Ele explica que se pode conferir uma eficiência propriamente simbólica de construção da realidade, isto porque estrutura a noção que os agentes sociais têm do mundo, e como se opera as relações nesse mundo. Assim, a língua e, por extensão, a linguagem pode ser compreendida como um sistema simbólico que constitui instrumentos de conhecimento e de comunicação, e de visões de mundo, de percepção do mundo social. E afirma: A percepção do mundo social é produto de uma dupla estruturação social: do lado objetivo, ela está socialmente estruturada porque as autoridades ligadas aos agentes ou às instituições não oferecem à percepção de maneira independente, mas em combinações de probabilidade muito desigual (...); do lado subjetivo, ela está estruturada porque os esquemas de percepção e de apreciação, (...) são produtos das lutas simbólicas anteriores e exprimem, de forma mais ou menos transformada, o estado das relações de força simbólica. (BORDIEU, 2004, pp.139-140)

As considerações de Bourdieu são pertinentes para essa discussão, pois através delas pode-se precisar, de que forma a linguagem exerce um poder e se constitui em um instrumento que age sobre o mundo. É através desse poder simbólico percebido na linguagem e que reafirmam o caráter social da linguagem. A força das palavras se exerce na sua ação comunicativa, pois elas propagam valores, significados, ideologias que perpassam os agentes sociais, e se configuram formas de dominação e exercício de poder. Assim, na análise de nossa fonte e entendemos como as palavras estão inseridas nas relações de poder e como estas perpassam na forma como o Clero era percebido pelos homens medievais e como Chaucer, por conseguinte, o representou e explorou as nuances destas caracterizações. 1 - Chaucer e seus Contos Os Contos da Cantuária têm como ponto de partida, uma peregrinação composta por vinte e nove peregrinos, que incluem o próprio Chaucer entre eles. Estes peregrinos rumam à cidade da Cantuária, para visitar o túmulo de São Thomas Beckett.2 Quando param em Southwark, reúnem-se na Taberna do Tabardo, onde o Albergueiro sugere aos peregrinos que cada um conte uma história, o melhor narrador ganharia um jantar como prêmio. Os Contos estão precedidos por um Prólogo onde são apresentados, todos os 21 narradores; que competem membros da aristocracia como o Cavaleiro e o Escudeiro; membros do clero 2

Arcebispo da Cantuária, assassinado durante o reinado de Henrique II, em 1170, por ter jurado fidelidade ao Papa quando dos conflitos entre o poder da Coroa e o do Papado. MAUROIS, André. A História da Inglaterra. Rio de Janeiro: Pongetti, 1975. p 82-87.

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como a Prioresa, o Monge, o Frade, a Freira e seu Secretário, o oficial de Justiça Eclesiástica, o Pároco, o Vendedor de Indulgências e o Estudante de Oxford; da burguesia temos o Mercador, o Médico, o Advogado, a Mulher de Bath (fabricante de tecidos) e o proprietário de terras alodiais; das classes populares temos o Feitor, o Moleiro, o Carpinteiro e o Camponês. Os personagens que narram são tão ou até mais importantes que os personagens das histórias que serão contadas. O prólogo funciona como um guia para os contos, já que explica a motivação por trás de cada narrador. 2 - As Mulheres Narradas O objetivo desta parte é discutir alguns dos Contos cujas temáticas giram em torno da conduta feminina das mulheres narradas. Ou seja, se detém às mulheres como personagens. Em alguns dos contos, as personagens são criticadas pelo poeta inglês por atitudes como a infidelidade, a falsidade, a vaidade, a futilidade, e diversas outras críticas e questionamentos no que diz respeito à vida conjugal. Neste ponto, Jeffrey Richards atesta que, de acordo com o pensamento da época, o casamento era, com efeito, visto como uma fonte de contrariedades: O casamento era o fim da liberdade e o começo da responsabilidade. ‘Nenhum homem se casa sem se arrepender disso’ era um dos ditos populares da época. Os fabliaux, as histórias ritmadas e obscenas das vilas e cidades, apresentavam um elenco familiar de maridos traídos e frequentemente mais velhos, de jovens esposas lascivas, padres devassos e rapazes galantes e amorosos. (RICHARDS, 1993, p. 45)

O casamento entre pessoas de faixas etárias muito diferentes – aliás, o fator de tensão em alguns dos contos de Chaucer que giram em torno do adultério – era uma realidade comum na época medieval. Muitos homens, do meio urbano principalmente, casavam-se com mulheres bem mais jovens, em decorrência da viuvez ou por adiarem o matrimônio até possuírem condições financeiras adequadas para tal finalidade (COSER, 2008, pp.93-108). Assim, temos, dentre os contos escolhidos para análise, o Conto do Moleiro e o Conto do Mercador que tratam ambos de casos onde um homem relativamente idoso desposa uma jovem que é considerada atraente: Quanto ao carpinteiro, casara-se, não fazia muito, com uma mulher que ele amava mais do que a própria vida, e que tinha dezoito anos de idade. Era ciumento, mantendo-a sob sete chaves, pois, como era velho, e ela fogosa e jovem, tinha medo de ser corneado. (CHAUCER, 1988, p.50)

No caso do Conto do Moleiro, temos um carpinteiro rico e bem sucedido de Oxford que se casa com Alison, uma bela mulher de apenas dezoito anos, em que este a guardava a sete chaves 387

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com medo que fosse traído. Temos aí a confirmação do que é atestado por Jeffrey Richards, ou seja, um suposto vínculo existente, no imaginário da época, entre o casamento e contrariedades futuras. Inclusive, no discurso do narrador do Conto do Moleiro, notamos que estas tensões estão relacionadas, em grande medida, ao adultério. No Conto do Mercador, ainda no preâmbulo do conto, observamos as reclamações do narrador em relação a vida conjugal e chama sua mulher, Griselda, de megera: Pelo menos no que me diz respeito, é assim que levo a vida. Eu não poderia ter arranjado mulher pior; e posso jurar que até o diabo, se fosse marido dela, iria se dar mal. O que poderia eu lembrar particularmente como amostra de sua enorme maldade? Ela é uma megera em tudo. (CHAUCER, 1988, p.193)

Neste conto, encontramos um nobre italiano de sessenta anos que resolve se casar após adiar tal resolução por muitos anos. No entanto, Janeiro salienta sua opção por desposar um jovem, por considerar que as mulheres mais velhas seriam mais difíceis de lidar, além do risco da infertilidade. Além disto, uma mulher mais nova e inexperiente seria, no entender do personagem, mais submissa: (...) uma mulher velha eu não vou aceitar de modo algum. Ela não pode ter mais de vinte anos (...). Não quero saber de trintonas: elas não passam de palha de feijão e forragem. Nem dessas viúvas enrugadas, por Deus! (...) não, prefiro uma coisinha nova, que pode ser guiada como se molda a cera quente com as mãos. (CHAUCER, 1988, p.196)

Em ambos os contos também há, de acordo com Derek Pearsall (In: MANN e BOITANI, 1986, p.129), a presença de um jovem intruso, que acaba funcionando como um pretexto para que as protagonistas demonstrem sua capacidade de trair e enganar seus ingênuos cônjuges. No Conto do Moleiro, a figura do intruso é um estudante da Universidade de Oxford, Nicholas, inquilino da casa. Já no caso do Conto do Mercador não há exatamente um intruso, mas sim um criado, Damião, que não esconde seu desejo pela esposa de Janeiro. Neste ponto é interessante observar que na maioria dos contos satíricos deste gênero, como os fabliaux, a classe social dos protagonistas é a pequena burguesia ascendente em fins da Idade Média O Conto do Mercador seria a única exceção nos Contos, já que o personagem Janeiro pertence à nobreza (MANN e BOITANI,1986, p.131). Normalmente o intruso é um homem mais jovem do que o marido logrado, embora no Conto do Homem do Mar, é um monge sedutor que aparenta ter idade mais avançada do que os jovens dos demais contos. Além disto, estes intrusos são de origens sociais diferenciadas, ou são universitários, como no caso dos Contos do Moleiro e do Feitor, ou religiosos como no Conto do Homem do Mar. 388

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Concentrando o nosso foco nos Contos do Moleiro e do Mercador, percebemos que as jovens esposas não cedem, inicialmente ao assédio dos rapazes apaixonados. No Conto do Moleiro, vemos a resistência inicial de Alison em relação a Nicholas, temendo o ciúme do carpinteiro: (Nicholas) agarrando-a firmemente pelos quadris, sussurrou: “Meu bem. Venha comigo agora mesmo, senão – que Deus me ajude – vou morrer!” Ela, porém, saltou como o potro que está no cercadinho para ser ferrado, e, desviando rapidamente a cabeça, respondeu: “Eu é que não vou beijar você! Ora, deixe disso, Nicholas ou eu começo a gritar socorro, acudam. Faça-me o favor de não por mais as mãos em mim!” (CHAUCER, 1988, p.50).

Já o Conto do Mercador mostra o comportamento tímido e introspectivo da jovem Maio, que não demonstrava afeto e desejo na mesma proporção que seu marido fazia, atitude que pode ser relacionada ao fato de muitos casamentos serem, na Idade Média, realizados em nome de interesses financeiros e alianças políticas, sobretudo em famílias aristocráticas, e o amor não era um pré-requisito para o matrimônio. No decorrer desses dois contos, as jovens esposas tem a oportunidade de fugir do cerco de seus maridos e corresponder aos apelos dos rapazes, revelando um caráter considerado, no entender dos narradores, malicioso e pérfido, corroborando a imagem construída em relação às mulheres pelo pensamento da época que colocava as mulheres como seres propensos ao pecado e à luxuria. No Conto do Moleiro, Alison e Nicholas armam um plano que o Carpinteiro se ausentasse da casa por um final de semana, ou seja, o que Alison espera era simplesmente uma oportunidade para escapar da vigilância do marido e levar a cabo seu plano de estar com Nicholas (TAVARES, 2011, p.75). No Conto do Mercador, a oportunidade para que Maio e Damião resolvam ceder ao desejo e à paixão ocorre quando o nobre Janeiro fica cego repentinamente, e Maio, furtivamente, cede ao jovem escudeiro a cópia da chave de um jardim particular da propriedade. Com isto Maio e Damião pretendiam consumar o adultério em um momento de distração do marido cego. O destino dos personagens é decidido de forma sobrenatural, através da discussão de Plutão e Prosépina, casal de deuses mitológicos. Plutão pretende comprovar que a infidelidade é uma característica inerente às mulheres, e sua esposa diz que as mulheres deveriam se defende das ofensas masculinas. Janeiro em sua visão restituída pelo deus Greco-romano no exato momento em que sua esposa está em pleno ato sexual com o escudeiro, porém Maio consegue enganar o marido, convencendo-o de que este está delirando. No Conto do Moleiro, por sua vez, o desfecho também é marcado por uma crítica: o carpinteiro, acreditando na eminência de um dilúvio, supostamente previsto por Nicholas, constrói três tinas e pendura-as no teto de um quarto, para evitar que ele, Alison e Nicholas se afogassem. Os dois jovens escapam do esconderijo e ficam juntos durante o final de semana. O 389

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carpinteiro não chega a descobrir que foi traído, mas acaba sendo ridicularizado e considerado como louco pelos demais morados da cidade. Observa-se que, nos contos cujo gênero literário é a comédia, as personagens não apresentam valores religiosos mais importantes do que a sobrevivência e a satisfação dos desejos (MANN e BOITANI, 1986, p.126). A esperteza, normalmente sobrepõe à honestidade. Em ambos os Contos, o marido acaba ridicularizado por ter acreditado em uma explicação fantasiosa de outro e ser enganado por suas esposas e os amantes. O Conto do Feitor e O Conto do Homem do Mar também apresentam outras falhas do caráter feminino. O Conto do Feitor descreve um moleiro desonesto e suas trapaças, até o momento em que ele é enganado por dois estudantes de Cambridge. E logo no início do Conto, a esposa deste moleiro é apresentada pelo narrador como uma mulher exibicionista, arrogante e orgulhosa: E ela, toda empertigada como uma pega, não ficava atrás em matéria de orgulho. Era um espetáculo e tanto ver os dois passeando juntos em dias de festa: ele vinha na frente, com o capuz atado sob o queixo e as calças de vermelho vivo; e ela atrás, metida numa cota da mesma cor. Intimidados, todos a chamavam de ‘madame’ (...) (CHAUCER, 1988, p.61)

Essa arrogância provinha do fato de que a esposa do moleiro era filha do pároco local, tendo recebido uma boa herança. A filha Molly, é descrita como uma jovem muito bonita, e por essa razão, seus pais esperavam casá-la com um homem ilustre, talvez membro da aristocracia. Vemos, portanto, que a família descrita pela narrativa também faz parte da pequena burguesia. O moleiro engana os dois universitários para que eles precisem pagar por um abrigo em sua casa, onde é ludibriado pelos dois jovens que se envolvem tanto com sua esposa, quanto com sua filha. Entende-se que o moleiro foi, na realidade, castigado por seus golpes e atitudes desonestas, já que, aos enganar diversas pessoas, acaba sendo traído pela esposa e pela filha. De acordo com Richards, percebe-se que nenhuma crítica é feita a conduta dos estudantes, que ludibriaram as duas mulheres e os prejuízos relativos à moral e a honra seriam exclusivos do moleiro3. Assim como no Conto do Homem do Mar, que trata de um rico comerciante francês e de sua esposa. A esposa da narrativa deste conto é descrita como uma mulher bonita, consumista e extremamente fútil: Ora, quem deve pagar é o idiota do marido. É ele quem deve nos vestir, quem deve nos cobrir de joias... afinal, quando exibimos nossos ricos trajes, dançando alegremente, é ele quem faz boa figura aos olhos da sociedade. (...) (CHAUCER, 1988, p.89) 3

RICHARDS, J. Op.cit, p. 49.

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O monge Dom John se aproxima da família fingindo ser primo do comerciante. Em um determinado momento, o religioso confessa que, na realidade, o que o faz se infiltrar naquela casa foi a atração que sentia pela bela esposa do amigo. Neste caso, não é a mulher que é a agente da sedução, é o homem que a procura. Inclusive, a esposa do conto só aceita se entregar a Dom John pois precisa de um empréstimo para saldar uma dívida. Ao final do conto, descobrese que a quantia em dinheiro em troca dos favores sexuais havia sido adquirido pelo próprio marido enganado. No entanto, percebemos que, no discurso de Chaucer, a esposa do mercador é apresentada como uma pessoa que manipula os homens através da beleza e da sensualidade, indicando a crença vigente de que a mulher era, naturalmente, mais inclinada aos excessos sexuais e ao pecado do que os homens (MACEDO, 1999, p.57). Há também os contos nos quais as condutas femininas eram elogiadas e suas personagens se destacavam em função da bondade, humildade, religiosidade e submissão que assinala suas condutas, mesmo nas situações de grande adversidade. Podemos assim estabelecer um contraste entre o comportamento considerado exemplar e o que era considerado desviante dos padrões morais estabelecidos pela sociedade à época de Chaucer. A protagonista do Conto do Magistrado é Constância, princesa notável devido à sua generosidade e humildade: “Nosso imperador de Roma (...) tem uma filha que pela sua formosura e bondade, não encontra rival no mundo. (...) guia-se pela virtude; nela, a humildade matou a prepotência”(CHAUCER, 1988, p.73). Já no Conto do Estudante, Griselda, é uma humilde camponesa de uma aldeia italiana e conhecida por sua perfeição moral: “Quanto à perfeição moral era sem dúvida a mais bela sob o sol, pois, criada na pobreza, não permitia que a cobiça ou a lascívia dominassem seu coração” (CHAUCER, 1988, p.178). Em ambos os contos o desenrolar da história acontece quando as jovens recebem propostas de casamento. No Conto do Magistrado, o sofrimento da princesa tem início quando o rei sírio a pede em casamento, convertendo-se ao cristianismo para desposar Constância. A personagem mostra sua resignação em ter de se casar com um homem completamente desconhecido, separando-se para sempre seus familiares. Esta aceitação de casamento está em pleno acordo com o esperado para uma mulher pertencente à nobreza, ainda mais em um período em que mulheres eram, frequentemente, enviadas para casar com homens desconhecidos, a fim de concretizar alianças políticas. O Conto do Estudante também apresenta uma situação análoga, pois a jovem Griselda é pedida em casamento por Valter, nobre senhor da aldeia onde a jovem vivia. A jovem também não questiona a proposta e jura fidelidade e obediência (ZACHÉ, 2012, p. 15). No Conto do Magistrado, os percalços da jovem princesa têm início quando sua sogra, islâmica fervorosa, conspira contra a nora em função de esta ter convertido o marido e vários membros da corte Síria ao catolicismo. Em um dia de festa, os conversos foram assassinados a mando da sultana, cuja crueldade é realçada pelo narrador. Constância é poupada do massacre, 391

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mas é colocada em um barco à deriva. A princesa vai parar no litoral da Inglaterra sendo recebida pelos habitantes do reino anglo-saxão da Nortúmbria. Através de sua bondade e carisma, a jovem conquista a população do local, fazendo com que o rei e sua corte se convertessem ao cristianismo, o rei toma Constância como esposa. Griselda por sua vez, torna-se marquesa e conquista o carinho das pessoas de sua região devido à sua bondade. Até que nasce a primeira filha do casal e Valter mostra-se obcecado em ter provas da fidelidade e da obediência de Griselda, submetendo-a a testes extremamente cruéis. Vemos que a resignação desta personagem frente às imposições de Valter é duplamente realçada, devido à origem servil da personagem e à sua posição de esposa, fatores que tornavam natural o excessivo conformismo e paciência da jovem. Ao passo que, no Conto do Magistrado, a resignação de Constância é subjacente à fé e à religiosidade da personagem, pois a heroína é salva de diversos percalços graças à intervenção divina: a jovem é expulsa da Inglaterra em virtude de uma intriga de sua segunda sogra, e é novamente colocada, junto com seu filho, em uma embarcação à deriva. Contudo, ela consegue voltar a sua terra natal. Os apelos de ambos os contos, deve ser entendido levando em conta a religiosidade da época de Chaucer, atesta que a submissão de ambas as personagens perante o sofrimento é a chave para a redenção das mesmas. Segundo Frank Jr, a espiritualidade de fins da Idade Média, que sublinhava o sofrimento e a dor da Paixão de Cristo e o fato de Chaucer ter dado, ao reescrever a saga de Constância, maior relevo aos elementos religiosos, conferem ao Conto do Magistrado um caráter semelhante às hagiografias, visto que a intervenção divina salva a heroína em vários momentos (In: MANN e BOITANI, 1986, p.150). O discurso religioso de então dava, com base nos exemplos de Cristo e da Virgem Maria, grande importância à humildade, paciência e obediência, características marcantes da conduta de Griselda. Ainda que, como vimos, o discurso de Chaucer condene a crueldade excessiva de Valter, vemos que a conduta da jovem, enquanto esposa, estava em conformidade com os ideais de comportamento da época, tanto que a submissão constante da jovem leva ao arrependimento do marido e à felicidade do casal (ZACHÉ, 2012, p.18). Ao discutirmos os contos escolhidos relativos à condição da mulher, observamos que, nestes contos cujas protagonistas buscam a atividade sexual fora do casamento ou demonstram espontaneamente os seus desejos, o discurso de Chaucer, nas falas dos narradores, expressa desprezo em relação a estas personagens. Já as personagens dos outros contos, apresentam um perfil psicológico e moral coerente com os ideais da época, calcados nos valores religiosos, o que dava grande relevo ao sofrimento da Paixão de Cristo e à postura passiva perante as dificuldades (PATTERSON, 1991, p.88). Além disto, destacamos em diversos pontos deste trabalho o quanto o pensamento da época, no que se refere à posição da mulher, estava pautado na inferioridade considerada natural ao sexo feminino. Nesta perspectiva, vemos que as personagens Constância e Griselda são 392

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elogiadas, no discurso de Chaucer, porque acabam aceitando, o papel passivo reservado a elas (ZESMER, 1962, p.213). Por outro lado, entendemos que ao longo de todo o nosso trabalho, esta questão da inferioridade presumida às mulheres não pode ser aceita como uma verdade universal, pois entendemos que aquelas personagens que acabam sendo passíveis de críticas do poeta inglês, podem demonstrar, na realidade, quais eram as formas encontradas pelas mulheres de então para ter alguma possibilidade de ação e encontrar seu próprio espaço. Documentação CHAUCER, G. Os Contos da Cantuária. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: T.A. Queiroz, 1988. Bibliografia BOITAN, Piero. e MANN, Jill. The Cambridge Chaucer Companion. Londres: Cambridge University Press, 1986. COSER, Miriam C. Casamento, Política e Direito das Mulheres na Idade Média. Revista do Mestrado de História, Vassouras, v.10-n°11, 2008. GARDNER, John Champlin. The life and times of Chaucer. Nova York: Alfred A. Knopf, 1977. MACEDO, J. R. A Mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 1999. MAUROIS, André. A História da Inglaterra. Rio de Janeiro: Pongetti, 1975. PATTERSON, L. Chaucer e o conceito de História. Wisconsin: University of Wisconsin Press, 1991. RICHARDS, J. Sexo, Desvio e Danação – as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. TAVARES, E. F. William Blake e os Peregrinos dos Canterbury. Tales de Chaucer: Releituras Visuais e Textuais. Fólio – Revista de Letras. Vitória da Conquista v. 3, n. 2 p. 65-95 jul./dez. 2011. ZACHÉ, F. As Retratações das Personagens Femininas em Chaucer: uma leitura de “The Clerk’s Tale” e “The Wife of Bath’s Tale”. Revista Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação. Ano 5 - Edição 3 – Março-Maio 2012. ZESMER, D. M. Guide to English Literature: From Beowulf through Chaucer and Medieval Drama. New York: Barnes and Noble, 1961.

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