Alex, nós também somos assassinos?

Share Embed


Descrição do Produto

O Globo, Opinião, 09/01/2016:

Alex, nós também somos assassinos? MAUSY SCHOMAKER E ANDREI BASTOS “Sorte a dos que, deixando de ser humanos, se tornam feras. Infelizes os que matam a mando de outros e mais infelizes ainda os que matam sem ser a mando de ninguém. Desgraçados, enfim, os que, depois de matar, se olham ao espelho e ainda acreditam serem pessoas” (Mia Couto) Alex, ontem fez um ano que você foi tirado de nós de uma maneira covarde e cruel. Nós, seus pais, gostamos de lembrar que fizemos o melhor possível para que você compartilhasse nossas convicções e crenças de que devemos lutar por um país melhor, para que você se transformasse numa pessoa solidária, que atentasse para as questões da injustiça social e econômica e que entendesse o seu papel para melhorar o mundo. Nós acreditávamos nisso e ainda queremos acreditar, por mais complexo e antigo que pareça. Mas hoje não existe mais complexidade alguma, assim como não existem mais explicações ou dúvidas. De fato, a natureza primitiva, de instintos básicos, avançou no terreno da existência sem encontrar nenhuma reação civilizatória efetiva, e muitas vezes encontrando grandes estímulos à barbárie. A realidade não leva mais em consideração diferenças entre ricos e pobres, entre cultos e incultos, entre os que só andam de carro blindado e os que, como você, andam no ônibus 434. Não existem mais explicações para as diferenças, pois todos vivem de acordo com as diretrizes dominantes de desconsideração ao outro e afirmação de vontades individuais a qualquer preço, tornando o valor da própria vida uma abstração. Alex, a barbárie nos domina. Não apenas pela violência explícita que tirou você de nós e terminou com seus sonhos tão cedo, mas também pelo descaso com a educação (você ia ficar muito feliz com a atitude dos estudantes paulistas que mostraram com firmeza que o velho jargão “O povo unido jamais será vencido!” está muito atual), com a saúde, e pela corrupção, hoje tão descarada que não temos palavras para descrevêla. Alex, nós, seus pais, estamos brigando com nossos instintos primitivos. Como reagir à dor inominável e à saudade diária, que sentiremos para sempre, pelo seu assassinato para roubarem seu celular, vendido por R$ 300, sem reconhecer que somos capazes de querer vingar você? Não sabemos. Por enquanto, procuramos honrar a sua memória agindo da maneira como te ensinamos: acreditando na cidadania, na educação e no amor. O lugar onde você morreu e onde vimos seu sangue na calçada, conseguimos, com a ajuda de muitos, transformar numa praça que leva seu nome, hoje iluminada e bem cuidada, e onde seus colegas da UFRJ podem esperar o ônibus 434 com mais segurança. Lá também colocamos uma estante de livros, onde as pessoas pegam, deixam e trocam livros e, acredite, até agora ela está muito bem cuidada, e não mais por nós. Quem cuida da sua estante de livros são as pessoas que, assim como nós, acreditam que a educação liberta e que a cidadania é um direito de todos. Faz um ano que você foi assassinado e, embora tenhamos consciência de nossos instintos primitivos, queremos confiar em que a Justiça dos homens seja a mais rigorosa possível e em que a justiça do universo seja implacável. Se tais desejos nos tornam assassinos, então somos assassinos. Mausy Schomaker e Andrei Bastos são pais do biólogo assassinado em frente ao campus da UFRJ, em Botafogo, em 8 de janeiro de 2015

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.