Alfredo de J. Flores - Elementos de lógica no método jurídico do Brasil Império - cap. livro FONSECA, Ricardo - SIQUEIRA, Gustavo. História do Direito privado - 2015

Share Embed


Descrição do Produto

GUSTAVO SILVEIRA SIQUEIRA RICARDO MARCELO FONSECA (OrganizadOres)

História

do

direito Privado

Olhares Diacrônicos

Belo Horizonte 2015

CONSELHO EDITORIAL Álvaro Ricardo de Souza Cruz André Cordeiro Leal André Lipp Pinto Basto Lupi Antônio Márcio da Cunha Guimarães Bernardo G. B. Nogueira Carlos Augusto Canedo G. da Silva Carlos Bruno Ferreira da Silva Carlos Henrique Soares Claudia Rosane Roesler Clèmerson Merlin Clève David França Ribeiro de Carvalho Dhenis Cruz Madeira Dircêo Torrecillas Ramos Emerson Garcia Felipe Chiarello de Souza Pinto Florisbal de Souza Del’Olmo Frederico Barbosa Gomes Gilberto Bercovici Gregório Assagra de Almeida Gustavo Corgosinho Jamile Bergamaschine Mata Diz Janaína Rigo Santin Jean Carlos Fernandes

Jorge Bacelar Gouveia – Portugal Jorge M. Lasmar Jose Antonio Moreno Molina – Espanha José Luiz Quadros de Magalhães Kiwonghi Bizawu Leandro Eustáquio de Matos Monteiro Luciano Stoller de Faria Luiz Manoel Gomes Júnior Luiz Moreira Márcio Luís de Oliveira Maria de Fátima Freire Sá Mário Lúcio Quintão Soares Martonio Mont’Alverne Barreto Lima Nelson Rosenvald Renato Caram Roberto Correia da Silva Gomes Caldas Rodolfo Viana Pereira Rodrigo Almeida Magalhães Rogério Filippetto de Oliveira Rubens Beçak Vladmir Oliveira da Silveira Wagner Menezes William Eduardo Freire

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico, inclusive por processos reprográficos, sem autorização expressa da editora. Impresso no Brasil | Printed in Brazil

Arraes Editores Ltda., 2015. Coordenação Editorial: Fabiana Carvalho Produção Editorial e Capa: Danilo Jorge da Silva Revisão: Raquel Rezende

340.9 H673 2015

História do direito privado: olhares diacrônicos Gustavo Silveira Siqueira, Ricardo Marcelo Fonseca (orgs.). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2015. p.259 ISBN: 978-85-8238-160-1 1. Direito privado – História. 2. História do direito. I. Siqueira, Gustavo Silveira (org.). II. Título. CDD – 340.9 CDU – 347.2

Elaborada por: Fátima Falci CRB/6-700

Rua Oriente, 445 – Serra Belo Horizonte/MG - CEP 30220-270 Tel: (31) 3031-2330 Belo Horizonte 2015

www.arraeseditores.com.br [email protected]

elementos de lógica no método jurídico do brasil imPério1 Alfredo de J. Flores2

INTRODUÇÃO Se há na literatura nacional sobre as mentalidades e o ensino formal no Brasil Império uma visão de que houve continuidade da tradição retórica que se consolidara no Portugal do Antigo Regime, como atesta José Murilo de Carvalho3, quando fala da relevância da retórica na formação da elite brasileira do séc. XIX, é de presumir-se que o cenário de reformas, que se iniciaria com o Marquês do Pombal ainda em meados do séc. XVIII, determinaria um novo rumo para o pensamento no Brasil. E, de fato, a introdução de novos modelos por Pombal foi a causa de um processo de autonomização dos substratos lógico-formais, até então estudados na esteira da matriz medieval universitária do “trivium”, a lógica em companhia da gramática e da retórica, para então suceder-se a afirmação da aplicação da lógica, entendida aqui como “científica”, na consolidação do ideário liberal na sociedade brasileira. Deste processo surgiria a reforma legislativa dos Oitocentos, em particular o que se chamava como “codificação”. O que se propõe neste estudo é que a assimilação do método codificatório no Brasil, em resposta às necessidades políticas de uma jovem nação independente, deveria ser resultado de um processo de autonomização do discurso e do pensamento jurídico de origem na lógica ante a tradição retórica anterior. Fala-se de um caráter autônomo do discurso lógico-racional porque não mais dependeria das fontes e das estratégias retóricas como antes. 1

2

3

Texto consolidado referente à palestra do dia 04 de setembro de 2014 no VII Congresso Brasileiro de História do Direito, que foi promovido pelo Instituto Brasileiro de História do Direito (IBHD). Agradecimentos ao Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca e ao Prof. Dr. Gustavo Siqueira, organizadores do evento, e ao Prof. Dr. Arno Wehling, Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Doutor em Direito e Filosofia pela Universitat de València (Espanha). Professor Adjunto de Metodologia Jurídica (Faculdade de Direito, UFRGS). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGDir, UFRGS). Membro do Instituto Brasileiro de História do Direito (IBHD). Afirma Carvalho que “o peso da retórica é facilmente explicado pela análise da tradição escolástica portuguesa, sobretudo a que predominou no Colégio das Artes e na Universidade de Coimbra” (CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, n. 1, p. 130).

150

Gustavo silveira siqueira / ricardo Marcelo Fonseca (orGs.)

Nesses termos, alguns passos são necessários para que se chegue a tal compreensão: de início, surge a questão metodológica (1) em que se manifesta a impropriedade do uso de somente um método para encaminhar dito estudo; a proposta vai no sentido de utilizar, com certa liberdade, métodos em voga que tenham alguma relevância para os objetivos que se buscam com tal investigação. Na sequência, pretende-se aprofundar esse questionamento metodológico pondo sob o crivo de um problema central (2) que venha a iluminar a questão, o que depois se materializa na (3) aplicação desta metodologia, debatendo tópicos relevantes, como a circulação de obras e a formatação do ensino no período. 1. ENQUADRAMENTO METODOLÓGICO Durante o desenvolvimento da presente investigação, levando em conta a bagagem dos últimos dez anos nos estudos sobre a história da metodologia jurídica no Brasil, percebemos que, na tentativa de apresentar um ponto de vista que venha a acrescentar algo ao debate que já existe, seria preciso fazer uma aproximação aos questionamentos próprios da literatura da área de sociologia do conhecimento, no sentido de buscar esclarecer a dinâmica da construção do imaginário do jurista nacional desde os parâmetros que se consolidaram no período tardo-colonial do Império luso, particularmente após as reformas pombalinas. Nesta aproximação, é preciso esclarecer que os juristas do Brasil independente determinaram, a partir de critérios e práticas que advinham da tradição jurídica portuguesa, algumas características nos trabalhos de ciência jurídica prática e nos manuais, material esse que predominava na época, que seriam peculiares ao atendimento de necessidades político-sociais do país naquele então. Dentro do esforço comum que atualmente se estabelece nos estudos histórico-jurídicos no Brasil, em muito em razão das atividades do Instituto Brasileiro de História do Direito, é possível constituir uma linha de debates com pelo menos três níveis discursivos distintos que podem compatibilizar-se para efeitos desta pesquisa: a história das ideias jurídicas; a história do livro e a tradução cultural. a) A base metodológica prévia da história das ideias jurídicas. A estrutura de uma história das ideias jurídicas4, ou do pensamento jurídico, combina bem com o objetivo primordial de identificar uma perspectiva mais formal (ou estrutural) do discurso dos juristas, que é fazer um mapeamento da história do método jurídico. Nisso, deve-se retomar as origens luso-brasileiras do pensamento jurídico e debater a história das ideias jurídicas desde o período colonial no Brasil. Base desta análise seria ensaiar uma aplicação da história das mentalidades, a fim de identificar a “forma mentis” do jurista 4

Ao prefaciar obra de A. L. Machado Neto, explica Miguel Reale a concepção metodológica de seu tempo, tida desde meados do séc. XX como a leitura adequada ao desenvolvimentismo dirigista da época; assim, sobre o pensamento jurídico no Brasil, diria Reale: “Podemos dizer, em suma, que, ora de maneira surpreendentemente atual, ora com certo atraso, o que havia de essencial no pensamento europeu ou norte-americano acabou repercutindo na cultura nacional, condicionando tanto a formulação dos ‘modelos jurídicos’ quanto o desenvolvimento dos ‘modelos dogmáticos’” (REALE, Miguel. Prefácio. In: MACHADO NETO, A. L. História das idéias jurídicas no Brasil. São Paulo: Editorial Grijalbo – Ed. USP, 1969. p. 09).

História do direito Privado: olHares diacrônicos

151

nacional no séc. XIX, o que buscaremos fazer de uma forma mais preliminar neste trabalho. b) A história do livro. O segundo enfoque de debates, também presente nos âmbitos do IBHD, manifesta-se na aplicação da metodologia da história do livro, da percepção das condições materiais do livro – tratando-o como objeto de análise5, o livro da área jurídica apresenta inúmeros detalhes que manifestam a desenvoltura da área em termos editoriais e de mercado dos livros já no séc. XIX brasileiro. c) A tradução cultural. O terceiro modelo de método, ainda uma novidade dentro do debate nacional, trabalha com o processo de construção da história cultural, em que a situação de um país como o Brasil, jovem nação que buscava referenciais na primeira metade de séc. XIX, seria a de servir-se do processamento do legado português, bem como da “tradução” ao contexto nacional de elementos ideológicos tidos por inovadores dentro do discurso filosófico e político6 (como já se falava antes em Portugal) das “nações civilizadas” da época. 2. PROBLEMATIZAÇÃO A PARTIR DO ENQUADRAMENTO DO MÉTODO Ainda que se considere a dificuldade na intersecção entre as metodologias citadas, isso porque a bibliografia que vamos trabalhar vai de fins do séc. XVIII e início do séc. XIX até o final do período imperial no Brasil, é possível afirmar que, da consulta de inúmeras obras – sejam manuais, monografias, artigos de revista ou repertórios de decisões jurisprudenciais – fica a questão da estratégia adotada pelos juristas para alcançar seus objetivos práticos e/ou teóricos em ditas obras. De uma análise mais crítica das fontes, aponta-se que cada gênero de obra em alguma situação penderia mais para um dos modelos tradicionais de discurso – seja o dialético (lógico ou analítico), que normalmente é vinculado ao discurso da época, seja o retórico, mais próprio do pensamento do Antigo Regime luso-brasileiro. Não se trata de um esquema simplificado de explicação dos gêneros literários jurídicos deste largo período pós-pombalino, pois importa recordar que na tradição universitária europeia havia a convivência entre tais perspectivas, no modelo educacional pré-universitário do “trivium”, já referido. Deste modo, a intenção é fazer uma aproximação ao discurso de afirmação da lógica nos textos jurídicos brasileiros de fins do período colonial e no imperial. Vale ressaltar que tal afirmação não necessariamente resultou na negação do discurso 5

6

A perspectiva que se busca utilizar sobre a valoração dos detalhes do livro tem inspiração no que Darnton tenta descrever como “a história do livro” – darNtoN, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. Tradução de Daniel Pellizzari. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 189-219. Um exemplo desta percepção nos dá Peter Burke: “Outra maneira de discutir a tradução cultural é falar de um duplo processo de descontextualização e recontextualização, que primeiro busca se apropriar de algo estranho e em seguida o domestica. (...). Pode ser esclarecedor tentar observar esse processo de uma dupla perspectiva. Para o receptor, ele é uma forma de ganho, enriquecendo a cultura hospedeira em resultado de uma adaptação hábil. Do ponto de vista do doador, por outro lado, a tradução é uma forma de perda, levando a mal-entendidos e violentando o original” – BURKE, Peter. Culturas da tradução nos primórdios da Europa Moderna. In: BURKE, Peter; PO-CHIA HSIA, R. (org.). A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 16.

152

Gustavo silveira siqueira / ricardo Marcelo Fonseca (orGs.)

anterior, predominantemente retórico, uma vez que elementos desta análise retórica foram comuns em textos jurídicos tanto teóricos como práticos no país até ao menos meados do séc. XX. 3. APLICAÇÃO DA METODOLOGIA PROPOSTA A identificação de determinado gênero de obra jurídica a um estilo mais retórico ou lógico-analítico pode resultar primeiramente de um crivo mais do tipo de “fenótipo” – é como aparece de modo objetivo, a partir do contato direto com a obra; por outro lado, um segundo passo, que neste lugar ainda não será o local adequado, deveria ser o de analisar tais obras de uma forma crítica, no sentido savignyano7, de entender cada obra, cada texto segundo as condições de pensamento do próprio autor, suas limitações e suas fontes de formação tanto no estilo lógico-analítico como no retórico. Partindo desta preocupação, o primeiro passo a ser dado seria o de averiguar o modo de circulação das obras jurídicas particularmente no período imperial brasileiro. 3.1. A circulação das obras Do levantamento já feito em bibliografia secundária e do contato direto com os livros da época é possível elencar alguns dados entendidos como relevantes para identificar as bases do pensamento jurídico dos Oitocentos no Brasil. Assim, um dos elementos centrais para uma configuração da circulação das obras jurídicas seria recordar a influência que teve no início do séc. XIX no país da presença da Biblioteca régia, fruto da chegada da família real portuguesa no Rio de Janeiro em 1808, uma vez que tal acervo foi o mais relevante8 para a administração portuguesa no Brasil. Igualmente importante foi a presença de livros-chave da administração desde a época colonial, como as “Ordenações” de modo muito particular, em vista das estruturas municipais que necessitavam de tais regramentos na consolidação do projeto colonizador9. Ademais, não se pode esquecer, falando agora mais do período imperial, de muitos livros que serviram para a causa nacional de afirmação de um direito genuinamente brasileiro, sendo resultado da ação política dos nacionais em reestruturar o legado lusitano segundo moldes adaptados à realidade nacional – assim, muitas 7

8

9

A respeito do método de leitura crítica e de leitura histórica em Savigny, ver: SAVIGNY, Friedrich Carl von. Metodología jurídica. Buenos Aires: Depalma, 1994. p. 57-60. Para L. Schwarcz: “A Real Biblioteca ia se impondo no cotidiano local. Mesmo não sendo exatamente pública – uma vez que o empréstimo de livros era evitado –, estava sempre aberta a consultas. E havia outras bibliotecas na cidade: particulares, de conventos e de algumas instituições de ensino superior, como as da Academia Real da Guarda Marinha, da Real Academia Militar, do Laboratório Químico Prático, da Academia Médico-Cirúrgica e do Arquivo Militar. Porém, a Real Biblioteca suplantava todas em volume, variedade, raridade das obras e até ostentação. Era para lá que se dirigiam os visitantes estrangeiros, e era por entre suas salas que passeava, de vez em quando, a realeza” (SCHWARCZ, Lilia Moritz et alii. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 281). Atesta Luís Fernando Lopes Pereira que “em relação ao conhecimento ou não das leis metropolitanas, percebe-se que a Câmara de Curitiba possuía uma cópia das Ordenações Filipinas, comprada no início do século XVIII pelo valor de 30$460” (LOPES PEREIRA, Luís Fernando. Súditos d’El-Rey na América portuguesa: Monarquia corporativa, virtudes cristãs e ação judicial na Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 172, n. 452, jul-set 2011, p. 81).

História do direito Privado: olHares diacrônicos

153

obras jurídicas dos primeiros intelectuais brasileiros tiveram tal meta no ambiente das Faculdades de Direito, na administração pública e na prática notarial. Pode-se dizer que houve um predomínio deste material10 do século, que foi acentuado pelo contato mais restrito com a doutrina anterior à reforma pombalina, isso em razão das medidas feitas por Pombal para tentar garantir seu projeto reformista. Apesar desta percepção, não se pode negar que havia uma farta literatura portuguesa circulando nos meios forenses, nas livrarias e nas Faculdades. Neste caso, entram os manuais consagrados que se publicavam em Portugal, bem como traduções para o português de obras de relevância na Europa, em regra de origem francesa, doutrina essa que igualmente era muito consultada no Brasil. 3.2. A questão do ensino na época Outro aspecto estrutural relevante para essa reconstrução seria a questão do ensino – de certa forma, ainda que o projeto pombalino tenha sofrido revezes, pode-se dizer que houve forte direcionamento da doutrina lusitana à introdução de Portugal aos debates das “nações civilizadas” da época, como eram entendidas pelos próprios portugueses, como resultado das reformas do Marquês. Inobstante isso, aquela formação tradicional, que remontava ao modelo jesuítico da “Ratio studiorum” (com primeira versão em 1599), teve ainda suas repercussões, na verdade reprocessadas em novos contextos. Importa lembrar que tal modelo foi combatido pela política do Marquês de Pombal, enquanto este se servia dos escritos do sacerdote Luís António Verney, da Congregação do Oratório, para implementar sua reforma pedagógica; mas isso não resultou na negação completa do ensino antigo11. Na verdade, pode-se falar que vários foram os motivos que explicam o fato de a política educacional pombalina não ter alcançado de forma cabal a meta almejada; basta lembrar a rejeição ao próprio Marquês que existia no país ao tempo da morte do monarca D. José I em 1777. Por outro lado, nos escritos de Verney já se antevia uma posição meticulosa ao criticar a estrutura educacional12 vinculada aos jesuítas dizendo que seria um 10

11

12

Sobre a literatura jurídica como meio textual de difusão e seleção do Direito: “Existem outros meios de difusão também importantes (...). São manuais, resumos, dicionários que das mais variadas e eficazes maneiras resumiam, colecionavam citações, sistematizavam o direito legislado, faziam a concordância com o direito estrangeiro” – BARBOSA, Samuel Rodrigues. Complexidade e meios textuais de difusão e seleção do Direito civil brasileiro pré-codificação. In: FONSECA, Ricardo Marcelo; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite (org.). História do Direito em perspectiva: do Antigo Regime à Modernidade. Curitiba: Juruá, 2008. p. 372. Recorda Guilherme P. das Neves que a reforma de Pombal ao final não teria alcançado todos os seus objetivos em Portugal, isso em vista de inúmeros contratempos, como a falta de recursos humanos e materiais para substituir a complexa rede que os jesuítas haviam implantado anteriormente (NEVES, Guilherme Pereira das. Repercussão, no Brasil, das reformas pombalinas da educação: o Seminário de Olinda. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 159, n. 401, out-dez 1998, p. 1718). Por outro lado, na opinião de José Murilo de Carvalho em trabalho já citado, Verney não pretendia negar o estudo da retórica: “Mas, segundo ele, o problema não estava na retórica, estava na ignorância do que fosse a retórica. Como arte de persuadir, ela é utilíssima, aplica-se a todas as circunstâncias da vida (...). Os portugueses simplesmente ignoravam o que ela fosse, seja por não a estudarem, seja por estudarem em péssimos manuais (jesuíticos). (...) O que era preciso era reformar radicalmente a concepção de retórica e o método de ensiná-la” – CarvaLho, História intelectual no Brasil, cit., p. 132. Literalmente, diz Verney: “Esta reflexam para V. P. é superfla , pois conhece mui bem o meu animo ; e sabe , que eu só pego na pena , para lhe-dar gosto. Mas porque poderá ler esta carta , a algum ignorante , ou malevolo ; que intenda , que eu , dizendo o que me-parece dos-estudos , com isto digo mal , da-Religiam da-Companhia de Jezu ; que neste Reino , é a que principalmente ensina a Mocidade : devo declarar , que nam é ese o meu animo. Eu venero esta Religiam doutisima , por-agradecimento , e por-justisa” – VERNEY, Luis

154

Gustavo silveira siqueira / ricardo Marcelo Fonseca (orGs.)

problema presente mais em Portugal e que não seria uma questão geral do jesuitismo, até porque alguns jesuítas que viviam no estrangeiro também teriam criticado tal modelo perante o próprio Verney. Apesar desta postura, nas cartas que apresenta em seu livro, traça um projeto reformador da educação portuguesa, nele incluindo um fator que haveria de ter repercussão maior com o tempo, que é o ensino de lógica. Por detrás deste estudo, apresentam-se temas e métodos discutidos fora de Portugal à época, e que resultariam numa mudança de mentalidades13 caso fossem colocados em prática. E isso tudo se dá dentro do espírito do assim chamado “Iluminismo católico”, um movimento do século que primava por grandes reformas, como quando “(...) procurou limitar o poder jurisdicional da Igreja; assumiu a defesa da Filosofia moderna; difundiu o espírito laico; renovou a atividade científica”, sem ainda esquecer14 que “propagou a instrução pública mediante uma série de reformas pedagógicas de caráter essencialmente secular”. É dentro deste contexto que se afirma a política de Pombal: no ponto específico que se trata aqui, o da reforma pedagógica e sua repercussão na formação dos juristas, a mudança se dá a partir da publicação da Lei de 18 de agosto de 1769, que ficou conhecida como a “Lei da Boa Razão”. A partir desta lei, são enfrentadas questões relativas à constituição, interpretação e integração do direito positivo desde o prisma iluminista tão caro a Pombal15, favorecendo o primado da vigência das leis nacionais em nome de uma modernização do direito português. Entretanto essa reforma jurídica, vinculada à pedagógica, também não deveria ser entendida como triunfante, até porque dita estratégia resultou na introdução de elementos estrangeiros, de início o praxismo alemão (particularmente de J. G. Heineccius), para depois recepcionar a doutrina liberal da codificação16 que se tornaria amplamente dominante no continente europeu após publicado o Code Napoléon em 1804. Voltando ao contexto pombalino, a consecução das reformas deu um novo passo logo depois, com outra medida a mando do Marquês: era preciso fazer um

13

14

15

16

António (Rev. Pe. Barbadinho). Verdadeiro metodo de estudar, para ser útil à Republica, e à Igreja : proporcionado ao estilo, e necesidade de Portugal. Tomo I. Valensa: Oficina de Antonio Balle, MDCCXLVI. p. 03. Comenta Verney na “Carta Oitava” que “Eu verdadeiramente nam sei, se as escolas de Filozofia deste Reino , tem pior metodo , que as escolas baixas : sobre iso avia muito que dizer : o que sei porem é , que nestes paizes nam se-sabe , de que cor seja isto , a que chamam boa Filozofia. Este vocabulo , ou por-ele intendamos ciencia , ou com rigor gramatico , amor da-ciencia ; é vocabulo bem Grego nestes paizes” (VERNEY, Verdadeiro metodo de estudar, cit., p. 277). Seguiria explicando Cabral de Moncada: “para conseguir tudo isso, esforçou-se por utilizar o melhor que pôde as duas grandes ideias que se tinham desenvolvido no mundo ocidental europeu desde o fim da Idade-Média: a ideia nacional e a da Monarquia absoluta. Este Iluminismo foi, pode-se dizer, essencialmente Reformismo e Pedagogismo. O seu espírito era, não revolucionário, nem anti -histórico, nem irreligioso como o francês; mas essencialmente progressista, reformista, nacionalista e humanista. Era o Iluminismo italiano: um Iluminismo essencialmente cristão e católico. (...) Ora é este o Iluminismo que verNey representa” – CABRAL DE MONCADA, L. Estudos de História do Direito. vol. 3. Coimbra: Univ. de Coimbra, 1950. p. 8. Explica António Manuel Hespanha a abrangência do tema: “Partindo habilmente de soluções já esboçadas nas Ordenações Filipinas, colocando-se no papel mais de regenerador do que de revolucionário, Pombal vem, afinal, operar uma total remodelação nas fontes (e, assim, nos conteúdos) do nosso direito e, a pretexto desta remodelação, introduzir os novos métodos de interpretação e de integração do direito, tarefa que completará nos Estatutos Pombalinos da Universidade, em conjunto com os quais esta lei tem, de resto, de ser entendida” – HESPANHA, António Manuel. A história do Direito na história social. Lisboa: Livraria Horizonte, 1978. p. 73. “É esta recepção maciça do direito estrangeiro e das opiniões doutrinais sobre ele estabelecidas que vem completar a grande revolução do direito nacional, pondo-o de acordo com a nova natureza do poder político e com a mundividência dos estratos sociais dirigentes nesta primeira metade do século XIX. (...) Este novo espírito é o do direito racionalista e iluminista, ideologicamente enformado pelos princípios do individualismo e da abstracção cujo desenvolvimento levará ao liberalismo característico da primeira metade do século XIX” (HESPANHA, A história do Direito na história social, cit., p. 83).

História do direito Privado: olHares diacrônicos

155

texto de forte conotação política, elaborado no sentido de acentuar os “equívocos” (segundo a concepção do renomado Secretário de Estado português) do ensino em Portugal – tratava-se do “Compêndio histórico da Universidade de Coimbra”, publicado em 1771, que dá a entender uma causa jesuítica para o “atraso” do país. No que tange à formação dos juristas, o citado documento feito pela Junta de Providência Literária (notoriamente dirigida por Pombal) tecia inúmeras críticas ao ensino da época no país, as que serviam a tal objetivo político; assim, comentava-se que “a dita falta do bom conhecimento da Língua Latina, com que a Mocidade era admitida a matricular-se em Direito foi causada”17. Por fim, nos Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772 (no seu livro II, título I, capítulo II), ficou registrado que “os estudantes, que quizerem matricular-se em alguma das Faculdades Jurídicas, devem ter já adquirido hum bom conhecimento da Língua Latina, da Rhetorica , da Logica , da Metafysica , e da Ethica”18, isso porque à época eram feitos exames de habilitação dos candidatos para o ingresso nas carreiras jurídicas citadas. Entrando no caso brasileiro19, a Lei de 11 de Agosto de 1827, que criou os dois cursos jurídicos (em Olinda e em São Paulo), declara em seu art. 8º: “Os estudantes, que se quiserem matricular nos Cursos Juridicos, devem apresentar as certidões de idade, porque mostrem ter a de quinze annos completos, e de approvação da Lingua Franceza, Grammatica Latina, Rhetorica, Philosophia Racional e Moral, e Geometria”20. O citado texto consolida a proposta dos Estatutos do Visconde da Cachoeira, no sentido de seguir a proposta metodológica que se afirmara desde o período pombalino na reforma da Universidade de Coimbra, com o ensino de Filosofia racional e moral21, bem como do estudo de Aritmética e Geometria22. 17

18 19

20 21

22

Na sequência do texto: “Primo: Pelo máo methodo , e grande desordem do Estudo da Latinidade nas Escolas Jesuiticas , que eram nos precedentes Seculos as principaes , e as que serviam de norma a todas as outras destes Reinos: Pois que devendo nellas ensinar-se os primeiros rudimentos da Lingua Latina por huma Grammatica breve , clara , e bem ordenada , que accomodando-se á tenra idade dos Alumnos , trouxesse sómente as Regras principaes , e mais necessarias (...)” (Compendio historico do estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados jesuitas e dos estragos feitos nas sciencias e nos professores, e directores que a regiam pelas maquinações, e publicações dos novos estatutos por elles fabricados. Lisboa: Regia Officina Typografica, MDCCLXXI. p. 145). Estatutos da Universidade de Coimbra, livro II, ed. 1773, p. 05. Recorda Ricardo Fonseca: “Fica, deste modo, estabelecida uma relação de continuidade com a cultura jurídica portuguesa, incrementada pelo fato de que a quase totalidade dos quadros burocráticos da esfera jurídica era formada em Coimbra. Por isso, logo após a independência, e na senda da construção nacional, iniciam-se os debates para a criação dos cursos jurídicos no Brasil que, após controvérsias, são instituídos pela lei de 11 de agosto de 1827 e começam a funcionar logo no ano seguinte nas cidades de Olinda e São Paulo” – FONSECA, Ricardo M. A formação da cultura jurídica nacional e os cursos jurídicos no Brasil: uma análise preliminar (1854-1879). Cuadernos del Instituto Antonio de Nebrija, vol. 8, 2005, p. 98. Texto original disponível no site do Planalto - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-11-08-1827.htm Na versão original do texto: “5º A philosophia racional apura o entendimento e ensina as regras de discorrer, e tirar conclusões certas de principios; o que é assaz necessario a todo o homem litterato, e particularmente ao jurisconsultos, não só porque tem necessidade de saber discorrer com precisão em todas as materias, mas porque sendo certo, que nem todos os casos podem especialmente prevenir-se, e acautelar-se nas leis, de força há de estender-se para casos identicos a identica razão de direito. Parte della é alem disto a arte critica, que ensina a avaliar os quilates das provas, e conhecer onde se encontra a evidencia moral, ou a certeza deduzida do testemunho por documentos, e affirmações verbaes; e a moral, ou ethica, é como a base, ou antes o primeiro degráo para o estudo do direito natural, que é a primeira, e a mais fundamental sciencia, que deve occupar o animo do jurisconsulto, como o primordial assento da jurisprudencia”. Disponível no mesmo site do Planalto - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-11-08-1827.htm. Original, também no mesmo link do site do Planalto citado acima: “6º Não é menos necessario, nem menos util o ensino da arithmetica, e geometria; esta pelo muito que que concorre para se discorer com methodo, clareza, precisão, e exactidão, e aquella porque convem que a saiba, todo o homem, a fim de conhecer o nelhor methodo de conditos, que elle póde prestar nos usos da vida, além

156

Gustavo silveira siqueira / ricardo Marcelo Fonseca (orGs.)

A partir de 1838, com a criação do Colégio de Pedro II, tem-se uma organização mais formal do ensino prévio ao ingresso nas Faculdades; este mesmo colégio, referência oficial do ensino brasileiro no Império, também recepcionou uma reforma que manifestava o espírito de mudança que advinha da época pombalina. Na reforma de 1855, declarava-se que “os estudos de segunda classe são: alta latinidade e versão para o latim de trechos clássicos portugueses; grego; alemão; geografia e história antiga; geografia e história da Idade Média; filosofia racional e moral; retórica e poética; italiano”23. Após tal reforma, predominaram24 no imperial Colégio de Pedro II, entre 1856 e 1892, os manuais escolares franceses – assim, exemplificativamente, no programa de 1856, definiu-se25 como livro-chave o Cours élémentaire de philosophie de Barbe para a matéria de filosofia, enquanto que para retórica são duas obras de Paula Menezes (Quadros da literatura nacional e Lições de literatura). Já para efeitos do programa26 de 1877, na disciplina de filosofia, usa-se a tradução de Augusto E. Zaluar do livro Précis d’un cours complet de philosophie élémentaire de Pellissier, enquanto que, para a retórica, utiliza-se a obra Nouvelle rhétorique de Joseph-Victor Leclerc, traduzida pelo dr. Paula Menezes. Um ponto singular no que se refere diretamente ao ensino nas faculdades seria o caso dos “Cursos anexos”; apesar das narrativas de descalabro nestes cursos27, em que se comenta que era comum a desorganização e o desrespeito às disposições estatutárias (e.g., alunos dando aulas), quando não a situação dos professores das aulas menores ministrarem as suas aulas em casa (com pagamentos por fora), ausentando-se do curso regular. Apesar disso, foi publicado28, pela Portaria de 04 de maio de 1856, o “Regulamento das aulas preparatórias das Faculdades de Direito”, o qual, ainda que não definisse mudanças estruturais, resultou em maior controle por parte do governo, uma vez que havia uma supervisão direta sobre o ensino ministrado nos Cursos anexos, também porque se determinavam programas e compêndios que seriam utilizados nas aulas secundárias; no que se refere aos professores, seriam selecionados por concurso. Além disso, por intermédio do Decreto 1331a de 17 de fevereiro de 1854, o ministro Couto Ferraz criou as bancas de exames preparatórios na Inspetoria Geral, junto à Corte; com isso, aprovados em tais exames ou no Bacharelado em letras no Colégio de Pedro II tinham a garantia de matrícula em qualquer dos cursos superiores, independentemente das provas junto às Faculdades29. Com isso, pode-se afirmar que, quanto à questão do ensino, todo o contexto de vestíbulo ao ingresso na Fa-

23

24

25 26 27 28 29

disto aproveitam muito particularmente ao magistrado, advogado, deputado, ou diplomata, que no exercicio dos seus respectivos empregos acharão repetidas occasiões de applicar com proveito os principios que tiverem deste dous importantissimo ramos das sciencias mathematicas”. Ver: HADDAD, Jamil Almansur. Latim e retórica no século XIX brasileiro. Revista Brasileira de Filosofia, vol. II, fasc. 4, out-dez 1952, p. 680. BASTOS, Maria Helena Camara. Manuais escolares franceses no Imperial Colégio de Pedro II (1856-1892). História da Educação, Pelotas, n. 26, set-dez 2008, p. 46-47. HAIDAR, Maria de Lourdes Mariotto. O ensino secundário no Império brasileiro. São Paulo: Edusp/Editorial Grijalbo, 1972. p. 117. BASTOS, Manuais escolares franceses no Imperial Colégio de Pedro II, cit. p. 48-49. HAIDAR, O ensino secundário no Império brasileiro, cit. p. 49. HAIDAR, O ensino secundário no Império brasileiro, cit. p. 50-51. HAIDAR, O ensino secundário no Império brasileiro, cit. p. 51.

História do direito Privado: olHares diacrônicos

157

culdade de Direito no período imperial, ressaltando-se as idas-e-vindas das políticas ministeriais, ora mais favoráveis ao ensino livre, ora ordenando mais de forma contundente, demonstra que a formação do alunado (a qual, às vezes, era realmente precária) tocava ao menos nos dois estilos de pensamento, uma vez que havia uma disciplina de retórica, com suas aulas e livros-texto (apoiada essa disciplina por temas conexos, como a literatura e a gramática); e outra de filosofia racional, onde se enquadrava particularmente o estudo de lógica, apoiado tal estudo nas disciplinas que denominamos hoje de ciências exatas e serviam melhor a motivações políticas de progresso, comuns no séc. XIX industrializado30, mas que têm raízes nas posturas iluministas em voga no século anterior. 3.3. Os livros sobre Filosofia racional no período Além dos elementos citados acima, o plano do substrato fundamental do ensino, que daria a formatação básica a esse alunado dos cursos jurídicos oitocentistas, é desdobrado com o debate em torno da lógica – que seriam os livros sobre Filosofia racional que se publicam desde o período joanino. Num primeiro momento, a posse e uso destas obras, desde o período pombalino até a regência joanina, têm múltiplos atributos31 – a partir da ideia central do livro como fonte do saber (particularmente de cunho profissional), passando assim a meio de acesso ao sagrado (contexto religioso) e objeto de entretenimento (quando não de ornamento...). O manuseio dos livros agora publicados no Brasil ainda tem a carga tardo-colonial e estamental prévia de um uso do livro como um privilégio – não somente econômico, mas também de grupos sociais determinados e seletos. Daí que predominassem, entre os possuidores de bibliotecas neste primeiro período, os advogados, os clérigos e os médicos. Dentre as figuras proeminentes na área de filosofia, o nome de Silvestre Pinheiro Ferreira não pode ser esquecido; sua atuação na Corte, particularmente no final do período joanino no Brasil, não se reduziu à atuação política32 – talvez recordando seu papel de moderador, nosso pensador foi também filósofo que soube aliar o pensamento escolástico tradicional ao debate da época. Exemplo disso ocorreu 30

31 32

Recorda Gustavo Cabral: “A idéia metalista era encarada como fundamental para o Portugal desses tempos, possibilitando-lhe a industrialização. Outro elemento fundamental do mercantilismo encontrado no modelo pombalino é a idéia de pacto colonial, cabendo à principal colônia portuguesa, o Brasil, servir de fonte de recursos para Portugal e de mercado consumidor para a produção portuguesa” – CABRAL, Gustavo César Machado. A Lei da Boa Razão e as fontes do direito: investigações sobre as mudanças no Direito Português do final do Antigo Regime. In: CoNseLho NaCioNaL de pesQuisa e pÓs-graduaÇÃo eM direito – CONPEDI; uNiversidade federaL do CearÁ (org.). Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010. p. 6115. VILLALTA, Luiz Carlos. Posse e usos dos livros. Oceanos, n. 42 (Viver no Brasil colónia), abr-jun 2000, p. 143. WEHLING, Arno. Um ator político e dois momentos de reestruturação institucional do Império português (1814-1822). In: CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO. Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846): bibliografia e estudos críticos. Salvador: CDPB, 2010. p. 121-122. Por outro lado, o prof. Wehling recorda em outra obra que o elemento político era muito relevante para o ensino e para elevar o nível de debate; assim, v.g. afirma: “A proposta de circulação das elites político-administrativas não consistia novidade no governo português e do ultramar, porém era agora apresentada em matriz sistêmica, para dirimir a relação colônia-metrópole (“odiosa distinção”, na palavra do autor) e prevendo-se mecanismos institucionais de promoção fundamentados numa combinação de critérios como antiguidade, merecimento e serviços” (WEHLING, Arno. Silvestre Pinheiro Ferreira e as dificuldades de um Império luso-brasileiro. In: PINHEIRO-FERREIRA, Silvestre. As dificuldades de um Império luso-brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2012. p. 21).

158

Gustavo silveira siqueira / ricardo Marcelo Fonseca (orGs.)

com a publicação a partir de 1813 das Preleções filosóficas, concomitantemente (em 1814) à tradução do livro das Categorias de Aristóteles (feita pelo próprio Silvestre Ferreira, diretamente do grego), para acompanhar as Preleções. Já em 1826, publica em francês o Ensaio sobre a Psicologia, incluindo a teoria do raciocínio e da linguagem, a ontologia, a estética e a diceósina, obra essa que somente teve a sua tradução ao português durante o séc. XX. Na mesma linha, em 1839, publica as Noções elementares de filosofia geral e aplicada às ciências morais e políticas; nesta obra, em sua advertência33, explica Silvestre Ferreira que compreende as três partes do que ele entende por lógica e metafísica, quais sejam – ontologia, psicologia em geral e ideologia, enquanto tem por objeto o “perceber” (sensações, ideias, percepções, noções) e o “pensar” (atenção e recordação). Não adentrando aqui em detalhes do pensamento do autor, vale recordar que, a julgar pelo volume de sua obra e por sua importância política, foi um autor lido entre os juristas de então. A segunda figura histórica de relevância na época seria o frei Francisco de Monte Alverne; pregador régio em 1816, até ser acometido de uma doença nos olhos em meados da década de 1830. Trata-se de autor singular no âmbito do conhecimento de ciências humanas na Corte; é orador reconhecido e professor de retórica no Colégio São José no Rio de Janeiro. Postumamente, em 1859 sai publicado seu Compêndio de filosofia, livro robusto em que, nas suas 311 páginas, nosso autor trabalha as noções fundamentais da filosofia, sempre realçando seu contato com as obras modernas, dando seu caráter crítico às teorias que entendia serem equivocadas34 – é uma obra de construção sintética, como obra única no gênero deste autor. Entretanto, foi mais usado pelos seus discípulos que pelo público em geral. De maneira geral, foram publicadas várias obras sobre lógica (entendida aqui como filosofia racional) durante o 2º Reinado35. Mas a raiz disso já estava na postura pombalina de definir os critérios desde uma perspectiva pragmática36 – daí o uso largo dos textos do italiano Antonio Genovese (ou Genuense, como consta em várias traduções ao português) desde o séc. XVIII, por ser adaptado ao debate iluminista sem aderir às “seitas” (como se dizia à época). Dos gêneros da literatura jurídica que haveriam de chegar a meados do séc. XVIII, a começar pelos comentários às Ordenações como os de Manuel Álvares Pegas, passando para as obras de casuística, que continham nos seus títulos a expressão “decisiones”, bem como as obras de prática notarial e forense e, por fim, as monografias, parece que soçobram ante o novo ímpeto da doutrina jurídica37 portuguesa após Pombal. Inicialmente a pragmática 33

34

35

36

37

PINHEIRO-FERREIRA, Silvestre. Noções elementares de philosophia geral e applicada às sciencias moraes e politicas: ontologia, psychologia, ideologia. Paris: Rey et Gravier – J. P. Aillaud, 1839. p. V-VI. SARMIENTO DA SILVA, Guilherme. Dinâmica das almas: fantasmagoria romântica no Brasil (1830-1850). Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. vol. 1. p. 200. SARMIENTO DA SILVA, Dinâmica das almas, cit. p. 240. Assim: Salustino Pedroza (Esboço de história da filosofia, 1845; Compêndio de filosofia elementar, 1846); João Murici (Curso abreviado de filosofia, 1846); Victor Cousin (tradução de Antônio Pedro de Figueiredo – Curso de história da filosofia moderna, 1843-1844); Eduardo França (Investigações de psicologia, 1854); Domingos Gonçalves de Magalhães (discípulo de Monte Alverne – Fatos do espírito humano, 1858). GOMES, Evandro Luís. Sobre a história da lógica no Brasil: da lógica das faculdades à lógica positiva (1808-1909). Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p. 49-50. Quanto aos gêneros literários anteriores ao período pombalino, ver: HESPANHA, António Manuel. História das instituições: épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982. p. 518-524.

História do direito Privado: olHares diacrônicos

159

de um Despotismo esclarecido vai corroendo as arcaicas estruturas tradicionais da prática jurídica lusitana nestes tempos, até que o discurso liberal, entendido como “racional”, impele a política legislativa de um Portugal em turbulência na primeira metade do séc. XIX em direção à codificação. Seria o auge da guinada para o uso da lógica de forma autônoma, em ruptura com a tradição. CONCLUSÃO Os estilos retórico e analítico conviveram dentro do parco cenário de debates nacionais em Portugal e no Brasil por séculos – na verdade, os imperativos derivados da prática política e jurídica demonstram que a apreensão de critérios pelos juristas é normalmente no sentido de resolver questões práticas, ainda que existam honrosos exemplos de pensadores. Desde essa perspectiva, mais parece que a afirmação da lógica como elemento central do discurso liberal (entendido aqui principalmente como a política legislativa da codificação, como predominou no séc. XIX, junto a uma teoria exegética de interpretação e integração do direito) não seria o resultado de uma elevação “racionalizante” dos debates e do discurso nesse espaço periférico do poder que seria o mundo luso-ocidental de fins do Antigo Regime. Apesar das reformas de Pombal no âmbito que chamaríamos do ensino colegial e universitário, e reconhecendo que há uma estruturação progressiva do ensino em Portugal e no Brasil na passagem dos séc. XVIII a XIX, a política da codificação e a implementação da “lógica” como elemento fundamental do novo discurso entendido por “moderno”, separando esse conhecimento das seculares vinculações com a retórica e a gramática, parece ser mais fruto de uma necessidade política que de uma constatação da ciência. Logo, há elementos que servem para explicar como o cientificismo, tão propalado no fim do Império brasileiro, teria o espaço necessário para formatar o jurista nacional neste discurso. REFERÊNCIAS 1) FONTES PRIMÁRIAS PINHEIRO-FERREIRA, Silvestre. Noções elementares de philosophia geral e applicada às sciencias moraes e politicas: ontologia, psychologia, ideologia. Paris: Rey et Gravier – J. P. Aillaud, 1839. PORTUGAL – junTa de PrOVidencia liTeraria. Compendio historico do estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados jesuitas e dos estragos feitos nas sciencias e nos professores, e directores que a regiam pelas maquinações, e publicações dos novos estatutos por elles fabricados. Lisboa: Regia Officina Typografica, MDCCLXXI. PORTUGAL – junTa de PrOVidencia liTeraria. Estatutos da Universidade de Coimbra do anno de MDCCLXXII. Livro II que contém os cursos jurídicos das Faculdades de Canones e de Leis. Lisboa: Regia Officina Typografica, MDCCLXXIII. VERNEY, Luis António (Rev. Pe. Barbadinho, da Congregação de Italia). Verdadeiro metodo de estudar, para ser útil à Republica, e à Igreja : proporcionado ao estilo, e necesidade de Portugal. Tomo I. Valensa: Oficina de Antonio Balle, MDCCXLVI. 2) FONTES SECUNDÁRIAS BARBOSA, Samuel Rodrigues. Complexidade e meios textuais de difusão e seleção do Direito civil brasileiro pré-codificação. In: FONSECA, Ricardo Marcelo; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite (org.). História do Direito em perspectiva: do Antigo Regime à Modernidade. Curitiba: Juruá, 2008. p. 361-373.

160

Gustavo silveira siqueira / ricardo Marcelo Fonseca (orGs.)

BASTOS, Maria Helena Camara. Manuais escolares franceses no Imperial Colégio de Pedro II (1856-1892). História da Educação, Pelotas, n. 26, set-dez 2008, p. 39-58. BURKE, Peter; PO-CHIA HSIA, R. (org.). A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Editora UNESP, 2009. CABRAL, Gustavo César Machado. A Lei da Boa Razão e as fontes do direito: investigações sobre as mudanças no Direito Português do final do Antigo Regime. In: cOnselhO naciOnal de PesQuisa e PÓs-graduaÇÃO em direiTO – CONPEDI; uniVersidade federal dO cearÁ (org.). Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010. p. 6114-6126. CABRAL DE MONCADA, L. Estudos de História do Direito. vol. 3 (Século XVIII – Iluminismo católico, Verney - Muratori). Coimbra: Univ. de Coimbra, 1950. CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, n. 1, p. 123-152. Disponível em: < http://www.ifcs.ufrj.br/~ppghis/pdf/topoi1a3.pdf >. darnTOn, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. Tradução de Daniel Pellizzari. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. FONSECA, Ricardo Marcelo. A formação da cultura jurídica nacional e os cursos jurídicos no Brasil: uma análise preliminar (1854-1879). Cuadernos del Instituto Antonio de Nebrija, vol. 8, 2005, p. 97-116. GOMES, Evandro Luís. Sobre a história da lógica no Brasil: da lógica das faculdades à lógica positiva (18081909). Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. HADDAD, Jamil Almansur. Latim e retórica no século XIX brasileiro. Revista Brasileira de Filosofia, vol. II, fasc. 4, out-dez 1952, p. 679-697. HAIDAR, Maria de Lourdes Mariotto. O ensino secundário no Império brasileiro. São Paulo: Edusp/Editorial Grijalbo, 1972. HESPANHA, António Manuel. A história do Direito na história social. Lisboa: Livraria Horizonte, 1978. HESPANHA, António Manuel. História das instituições: épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982. LOPES PEREIRA, Luís Fernando. Súditos d’El-Rey na América portuguesa: Monarquia corporativa, virtudes cristãs e ação judicial na Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 172, n. 452, jul-set 2011, p. 51-86. MACHADO NETO, A. L. História das idéias jurídicas no Brasil. São Paulo: Editorial Grijalbo – Ed. USP, 1969. NEVES, Guilherme Pereira das. Repercussão, no Brasil, das reformas pombalinas da educação: o Seminário de Olinda. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 159, n. 401, out-dez 1998, p. 1707-1728. SARMIENTO DA SILVA, Guilherme. Dinâmica das almas: fantasmagoria romântica no Brasil (1830-1850). Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. 2 vol. SAVIGNY, Friedrich Carl von. Metodología jurídica. Buenos Aires: Depalma, 1994. SCHWARCZ, Lilia Moritz et alii. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. VILLALTA, Luiz Carlos. Posse e usos dos livros. Oceanos, n. 42 (Viver no Brasil colónia), abr-jun 2000, p. 132-144. WEHLING, Arno. Silvestre Pinheiro Ferreira e as dificuldades de um Império luso-brasileiro. In: PINHEIRO-FERREIRA, Silvestre. As dificuldades de um Império luso-brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2012. p. 09-32. WEHLING, Arno. Um ator político e dois momentos de reestruturação institucional do Império português (18141822). In: CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO. Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846): bibliografia e estudos críticos. Salvador: CDPB, 2010. p. 103-127. 3) SITE DE INTERNET http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-11-08-1827.htm 1) Projeto de regulamento ou estatuto para o Curso Juridico pelo Decreto de 9 de Janeiro de 1825, organizado pelo Conselheiro de Estado Visconde da Cachoeira, e mandado observar provisoriamente nos Cursos Juridicos de S. Paulo e Olinda pelo art 10º desta lei. 2) Lei de 11 de Agosto de 1827. Crêa dous Cursos de sciencias Juridicas e Sociaes, um na cidade de S. Paulo e outro na de Olinda.

sumário

aPresenTaÇÃO ....................................................................................................

Vii

ParTe i

EXPERIÊNCIAS PRIVADAS INTERNACIONAIS ...........................................

1

DIFICULDADES DE UMA HISTÓRIA NÃO TRADICIONALISTA DA TRADIÇÃO DO DIREITO PRIVADO António Manuel Hespanha ...................................................................................

2

CONSEJOS DE CASANOVA A DA PONTE, O PRÁCTICA CAMBIARIA A USO DE LIBERTINOS Carlos Petit ................................................................................................................

19

EL CÓDIGO PRIVADO-SOCIAL PANAMERICANO José Ramón Narváez Hernández .........................................................................

44

REFLEXIONES SOBRE LOS PROCESOS DE CODIFICACIÓNS Y DESCODIFICACIÓN CIVIL EN ARGENTINA Juan Carlos Frontera ..............................................................................................

55

O ESPAÇO PRESSUPOSTO: HORIZONTES ESPACIAIS E CONFIGURAÇÕES DOUTRINAIS NA EXPERIÊNCIA JURÍDICA Massimo Meccarelli .................................................................................................

63

DA CULPA AO RISCO: AS METAMORFOSES DO ILÍCITO CIVIL NA FRANÇA DA BELLE ÉPOQUE ENTRE POUVOIR PRÉTORIEN E PRODUÇÃO SAPIENCIAL DO DIREITO Marco Sabbioneti .....................................................................................................

74

INTERVENÇÃO DO ESTADO E LIBERDADE CONTRATUAL ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX Giovanni Cazzetta ...................................................................................................

85 V

ParTe ii

TEMAS DE HISTÓRIA DO DIREITO DO DIREITO PRIVADO NO BRASIL................................................................................................................

96

SENHORES E OUVIDDORES DE CAPITANIAS HEREDITÁRIAS: UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DAS FONTES DO DIREITO COLONIAL BRASILEIRO A PARTIR DA LITERATURA JURÍDICA (SÉCULOS XVI A XVIII) Gustavo César Machado Cabral ..........................................................................

97

O REGIME DE SESMARIAS À LUZ DAS FONTES PRIMÁRIAS (AMÉRICA PORTUGUESA, SÉCULO XVIII) Luís Fernando Lopes Pereira.................................................................................

119

O DIREITO PRIVADO ENTRE O ANTIGO REGIME E O LIBERALISMO CONSTITUCIONAL: PERMANÊNCIAS, RUPTURAS E DIFERENTES DINÂMICAS Arno Wehling ............................................................................................................

136

ELEMENTOS DE LÓGICA NO MÉTODO JURÍDICO DO BRASIL IMPÉRIO Alfredo de J. Flores...................................................................................................

149

A CRÍTICA AO DIREITO PRIVADO NOS ANOS VINTE COMO PROBLEMA DE RACIONALIDADE GOVERNAMENTAL Andrei Koerner .........................................................................................................

161

HISTÓRIA DO DIREITO NO BRASIL REPUBLICANO: A GREVE COMO CHAVE DE LEITURA Cristiano Paixão .......................................................................................................

188

DIREITO DO TRABALHO, OS OFÍCIOS E OS INSTITUTOS JURÍDICOS: HISTÓRIA E CONTINGÊNCIA Mônica Sette Lopes ..................................................................................................

200

EXPERIÊNCIAS DE GREVE NO ESTADO NOVO Gustavo Silveira Siqueira ......................................................................................

216

REVISIÓN CONSTITUCIONAL Y TRANSFORMACIÓN DEL DERECHO PRIVADO BRASILEÑO: PROPUESTAS Y DEBATES EN LA ASAMBLEA NACIONAL CONSTITUYENTE DE 1933-1934 Ezequiel Abásolo.......................................................................................................

232

VI

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.