Algumas Considerações sobre Teoria da História e a Prática do Historiador

June 30, 2017 | Autor: Thais Turial | Categoria: Historia Cultural, Teoria e metodologia da história
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Algumas Considerações sobre Teoria da História e a Prática do Historiador

ALDRIGHI, Camila Sousa NASCIMENTO, Rodrigo Nunes BRITO, Thais Rosalina Turial

Antes de qualquer afirmação a respeito da prática historiográfica, é importante considerar que aquilo que o historiador fabrica nunca é o passado como um todo; não se busca uma verdade absoluta. Sua escrita consiste em uma narrativa sobre o passado e essa narrativa, além de fazer menções ao passado, traz o lugar do historiador: o presente. Sua prática se origina, dentre outros aspectos, da fusão entre os fragmentos ou as evidências contextualizadas de um passado; o seu presente – o lugar de que fala1; a cultura – as normas pelas quais sua escrita está inserida - e o horizonte de expectativas, porque o presente não ressignifica apenas o passado, ele também age sobre as nossas expectativas do “futuro”2. Nenhuma ciência é autônoma. Ela é cravada no seu tempo e a sua produção é justamente o resultado das perguntas do “hoje” que o historiador lança para o “ontem”. As práticas de muitos historiadores, durante algum tempo, estiveram centradas no estudo das grandes estruturas, distanciando-se, desta forma, da história factual, acontecimental. Os grandes representantes deste método historiográfico, eram sobretudo, os historiadores da 1ª geração dos Annales. Esta geração se volta para o estudo das estruturas numa perspectiva de longa duração, na qual a história se prende aos grandes blocos estruturantes resistentes ao longo das gerações. Segundo Brito, Lucien Febvre e Marc Bloch são os dois fundadores da revista que defendiam “(...) que ao historiador caberia olhar para o passado a procura não só do aparente, o obvio, e o imediato – o acontecimento – mas de suas estruturas profundas, verdadeiro território do historiador”3. .

A 2ª geração, por sua vez, é marcada pelo uso das estatísticas para suas análises; uma

história de caráter coletivo, em que dados de batismos, casamentos, inventários, testamentos, são instrumentos centrais na produção historiográfica destes historiadores. Este tipo de produção ficará conhecida como “história serial” ou “quantitativa”. Como afirma Brito, 1

CERTEAU, Michel de. A operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982 2 KOSELLECK, Reinhart. Espaço de experiência e horizonte de expectativa. In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2006. p.305-327. 3 BRITO, Eleonora Zicari Costa de. Les Annales em suas Diferentes Fases.

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“colocadas no plano da longa duração, essas séries buscavam responder aos questionamentos voltados tanto ao interesse em descobrir as estruturas que abrigam as relações econômicas e sociais, quanto as variações conjeturais”4. Ao longo do século passado e de nosso século, a prática do historiador tem passado por importantes revisões ou reflexões. Alguns historiadores questionam profundamente os modelos estruturantes e generalistas da prática historiográfica utilizada pincipalmente pela 1ª e 2ª geração dos Annales. Alertam, sobretudo, para a importância do que é singular, do que é individual e de tudo aquilo que não se adequa aos grandes modelos generalizantes recorrentemente usados até então. Para estes, o geral não fala tudo ,

ele

perde

as

particularidades e o que é singular sobre a história que se busca escrever. Carlo Ginzburg, importante historiador italiano, promove a primeira reflexão acerca da Micro-História. Para ele, é fundamental a delimitação temporal e espacial do objeto de estudo, pois, em uma escala de observação reduzida, pode-se desenvolver uma exploração exaustiva das fontes – por meio do método indiciário, no qual a história é produzida envolvendo a descrição etnográfica e o uso da narrativa. Entretanto, Ginzburg não nega a importância do método que busca a cientificidade, denominado Galileano, mas lembra a relevância dos pequenos indícios que escapam a este tipo de estudo. Segundo ele, o uso da matemática ou do método experimental implicavam a quantificação e a repetitividade dos fatos. Já a perspectiva individualizante exclui a repetição e admite a quantificação apenas de forma auxiliar. Isso é justamente o que explica o fato de a história nunca se tornar uma ciência galileana5. Ginzburg busca, na arte, na semiótica médica e na psicanálise, a proposta de um método que permita analisar e/ou encontrar os pormenores mais negligenciáveis, os indícios imperceptíveis para a maioria, de forma que a observação exerce papel fundamental na aplicação deste método. A proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais, “baixos”, forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espírito humano: “os meus adversários”6.

A grande contribuição de Ginzburg para a reflexão da prática historiográfica está justamente em pensar uma história que se preocupe com o particular. Ou seja, aquela que, por meio de pistas infinitesimais, permita a captação de uma realidade mais profunda – o que não seria possível através dos métodos estruturantes. O que caracteriza o saber de tipo venatório, 4

BRITO, Eleonora Zicari Costa de. Les Annales em suas Diferentes Fases. GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 6 FREUD apud GINZBURG, 1990, p.149-150. 5

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diz ele, “é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente. Pode-se acrescentar que esses dados são sempre dispostos pelo observador, de modo tal a dar lugar a uma sequência narrativa (...)”7. Desta forma, narrar uma história exige a capacidade de ler, nas evidências, uma série coerente de eventos, bem como ordena uma atitude orientada para a análise a partir de casos individuais. A micro-história evidencia que até mesmo nas semelhanças há diferenças. A realidade é extremamente complexa a ponto de não se permitir enquadrar em grandes blocos que não contemplam a singularidade. Olhar as diferenças, ler as entrelinhas, procurar o que está oculto, é, sem dúvida, um caminho mais difícil a percorrer, mas de que forma poderíamos calcular aquilo que é qualitativo? Ou ainda, como podemos calcular aquilo que é individual? Por fim, como brilhantemente narra Ginzburg, “ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição”8. Ainda no que se refere à discussão proposta, o historiador francês Jacques Revel propõe, a partir do ensaio Cultura, culturas: uma perspectiva historiográfica, a reflexão sobre as mudanças na prática historiográfica no século XX e suas implicações com foco em dois pontos que dialogam com as proposições de Carlo Ginzburg: (1) o declínio dos grandes modelos teóricos, ou seja, dos modelos explicativos generalistas como o marxismo e o positivismo, e (2) as redefinições no conceito de cultura. Por muito tempo, a prática historiográfica foi influenciada pelos postulados da filosofia hegeliana (sobretudo pelo peso do marxismo), onde a realidade histórica seria determinada pelo espírito, sendo a razão o motor da história, formando assim um esquema totalizante e unificador. Outros modelos analíticos e interpretativos receberam o legado da filosofia hegeliana, porém, como “toda História é filha de seu tempo”, “a própria ideia da sociedade, concebida como uma totalidade ou como um sistema, viu-se abalada no momento em que, também em nossas sociedades, findava a confiança nas possibilidades do porvir, nas promessas do progresso. Esta “crise do porvir” é um componente essencial de nossa relação atual com o tempo histórico”9. A noção de cultura passou por uma transição essencial entre uma versão dominante, segundo Revel, limitadora e prescritiva, centrada no que, por vezes, chama-se de alta cultura, 7

GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário In: GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 152. 8 Idem, p. 179. 9 REVEL, Jacques. Cultura, culturas: uma perspectiva historiográfica. In: REVEL, Jacques. Proposições. Ensaios de história e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2009. p. 98.

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para uma noção bem mais abrangente, e, principalmente com as contribuições da Antropologia na “cena historiográfica”: os objetos de estudo chamados “culturais” se diversificaram vertiginosamente. No entanto, apesar de “não aderimos mais à leitura hegeliana da história. (...) os historiadores conservaram de bom grado sua concepção holística das culturas”10. A concepção holística, de totalidade, ou seja, quando há o entendimento da cultura como um conjunto coerente de padrões e cânones, geralmente colocado sob um nome de época barroca ou civilização clássica, teve um grande peso na história das mentalidades e nas estruturas. Segundo Revel, comentando as proposições de Febvre, podemos perceber tais influências: “certamente não é mais organizada em torno de um princípio central (à maneira de Hegel), mas ele pretende explicar o que é comum a um conjunto sócio-histórico”11. É muito interessante o comentário de Michel de Certeau sobre a mesma situação. Reafirmando a importância do lugar e situação social no discurso do historiador, ele diz: Deste ponto de vista L. Febvre procede da mesma maneira que os seus predecessores. Estes adotavam como postulados de sua compreensão a estrutura e as “evidências” sociais de seu grupo, com o risco de fazê-los sofrerem um desvio crítico. O fundador dos Annales, não faz ele a mesma coisa quando promove uma Busca e uma Reconquista histórica do “Homem”, imagem “soberana” no centro do universo de seu meio burguês; quando chama de “história global” o panorama que se abre aos olhos de uma magistratura universitária; quando, com a “mentalidade” a “psicologia coletiva” e todo o instrumental do Zusammenhangele situa uma estrutura ainda “idealista”, que funciona como antídoto da análise marxista, e esconde sob a homogeneidade “cultural” os conflitos de classe nos quais ele mesmo se encontra implicado? Nem por ser tão genial e nova sua história está menos marcada, socialmente, do que aquelas que rejeita, mas se ele pode superá-las é porque elas correspondem a situações passadas, e porque um outro “hábito” lhe foi imposto, de confecção, pelo lugar que ocupa nos conflitos do seu presente 12.

Diante disso, é necessário reconhecer que o real não pode ser reduzido a leis gerais. Atualmente, a tendência dominante é a de que os objetos da História sejam sempre particularidades. Assim, o mais coerente é falar de “culturas” historicamente localizadas e não “cultura”, de “contextos” e não puramente do “contexto”, o que certamente faz com que suas abordagens históricas se tornem bem mais complexas. Ao comentar as recomendações de Ernst Gombrich, Revel passa muito da essência de sua proposta e destaca que mais do que caracterizar um momento, um movimento, por meio de um tipo ideal, ele sugere levar em conta o conjunto de formas de participação e de níveis de identificação, que afetam os atores de modo desigual e que devem ser distinguidos e comparados, caso se queira compreender melhor a maneira como efetivamente são construídas as identidades culturais13.

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Idem. p. 106. 1Idem. p. 108. 12 CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. p. 75-76. 13 REVEL, Jacques. Idem, p. 116. 11

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A noção de contexto, também muito debatida entre os historiadores, entra exatamente nas questões sobre a redefinição da noção de cultura – especificamente quando se trata da possibilidade de ligar um texto a seu contexto –, relacionando-se também com a noção de mentalidade. A partir do que já vimos, pode-se considerar a perspectiva de uma totalidade cultural ultrapassada, não há contexto que seja dado e unificado. É preciso entender como pessoas e culturas, em suas diferentes capacidades, reagiram nas diversas pressões sociais em seus contextos em um mundo em conflito e construção. Em meio a todo o debate acerca da prática historiográfica já disposto, cabe ainda ressaltar e reforçar a importância que a Antropologia toma dentro da História no que se refere não só às significações culturais, simbológicas, particulares e coletivas do objeto que se estuda, mas também na forma de interagir com esse objeto. Tende-se a pensar em outra cultura apenas relativo ao espaço (índio-europeu, por exemplo) ou forma radical dentro de uma mesma geração. Mas, Robert Darnton (1987), assim como Georges Duby (1993), referem-se ao choque cultural com o passado, à falsa impressão de familiaridade com ele a um primeiro momento. Em A História Continua, Georges Duby transmite ao seu leitor, dentre outros aspectos, toda a metodologia de uma pesquisa historiográfica. Depara-se com estranhezas gramaticais e, a partir daí, observa que “esta busca do sentido é um jogo cativante cujos encantos assemelhamse aos da exploração, da investigação e até da adivinhação, e posso perfeitamente entender que alguém se deixe envolver nele”14. Darnton também chega ao mesmo impasse, quando tem acesso aos livros de provérbios do século XVIII e afirma que “analisando o documento onde ele é mais opaco, talvez se consiga descobrir um sistema de significados estranho”15. A partir de então, Darnton defende o desvio do caminho tradicional de pontos de vista e de narrativas, para que se adote um método antropológico da História que começa com a premissa de que a expressão individual ocorre dentro de um idioma geral, de que aprendemos a classificar as sensações e a entender as coisas pensando dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura. Ao historiador, portanto, deveria ser possível descobrir a dimensão social do pensamento e extrair a significação de documentos, passando do texto ao contexto e voltando ao contexto, até abrir caminho através de um universo mental estranho 16.

Revel, assim como Ernst Gombrich, dialoga com a reflexão aqui proposta acerca da cultura no tempo e suas transformações incessantes, afirmando que “as culturas não cessam de insistir sobre as continuidades e as tradições que as fundamentam em valor e em legitimidade.

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DUBY, Georges. Leitura. In: DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Ed. UFRJ, 1993. p. 52 15 DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da História Cultural Francesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. p. 15. 16 Idem, p. 17.

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(...) esses traços de continuidade convocam a cada momento uma reinterpretação e até uma reconfiguração, que lhes proporciona sentido no interior de um novo contexto de recepção”17. Ou seja, esses diferentes “contextos” de um mesmo tempo estão atravessados, em todos os aspectos das sociedades, por uma cultura18 altamente complexa e mutável, que traz consigo significados e elementos simbólicos particulares àquelas pessoas daquele período. Darnton faz referência então ao principal sistema simbólico e de significados de uma cultura: o seu idioma. É pelo sistema linguístico que se tem o primeiro contato com uma civilização antes desconhecida. É a partir da compreensão daquela cultura por ela e a partir dela – ou seja, do exercício de uma história etnográfica – que se apreende os seus significados e são estabelecidas conexões interpretativas e conclusões. Por isso, Darnton remete à analogia de um idioma geral para abordar a questão da individualidade no coletivo: “cada um de nós fala à sua maneira própria, mas partilhamos a mesma gramática – ainda mais porque, em geral, não temos consciência dela”19. É possível substituir, nesse contexto, a gramática pela cultura, que também é partilhada, mas manifesta de formas diferentes em cada um. É indubitável, portanto, que uma das maiores contribuições da Antropologia para a História foi a cultura-como-linguagem. A tentativa de alcançar o passado em suas múltiplas visões de mundo se dá por meio da busca pela opacidade dos textos. Quando a lente dos nossos arcabouços culturais, semiológicos, representativos e conceituais é trocada pela lente do “nativo”, é possível transitar entre documentos sem que haja problemas. A verdade dos fatos, segundo Georges Duby, “é inacessível e que o historiador só tem oportunidade de aproximar-se dela em nível intermediário, ao nível da testemunha, questionando-se não sobre os fatos que relata, mas sobre a maneira como os relatou”20. Ou seja, o mais próximo de o passado que jamais chegaremos está materializado nas fontes, pois o passado está dado. A verdade dos fatos por si só já é inacessível por não se tratar de somente uma única verdade, além de o ser pela questão de finitude dos eventos. “Jamais encontramos pura linguagem. Interpretamos textos”21. Robert Darnton faz ainda uma última ressalva sobre à intencionalidade de historiografias generalizantes que procuram um personagem típico (o burguês, o artesão, o filósofo) para as diferentes temporalidades.

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REVEL, Jacques. Op. cit., p.116. O oposto do que acontecia antes: acreditava que a Cultura pairava sobre ou sob outros aspectos sociais, mas sempre de certa forma alheios a eles. Mais uma demonstração de que a cultura muda e os conceitos são revisitados. 19 DARNTON, Robert. Op. cit. p.333. 20 DUBY, Georges. Op. cit., p. 99. 21 DARNTON, Robert. Op. cit., p. 336 18

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A partir da generalização e da categorização, é suprimida a individualidade e consequentemente o elemento idiossincrático da história. Logo, não há tantas conexões e considerações no “campo comum” da experiência em todo esse contexto.

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