Althusser, Pêcheux e as estruturas do desconhecimento

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Freda Indursky Maria Cristina Leandro Ferreiro Solange Mittmann (organizadoros)

ANÁLISE DO DISCURSO: DOS FUNDAMENTOS AOS DESDOBRAMENTOS

30 ANOS DE MICHEL PÊCHEUX

t\fQCftDO® ~ LfTQflS

Dados Internacionais (Câmara Análise

do discurso

Michel

Pêcheux)

Miumann,

de Catalogação Brasileira

na Publicação

(C1P)

do Livro, SP, Brasil)

: dos fundamentos

aos desdobramentos

(30 anos

de

I Freda Indursky, Maria Cristina Leandro Ferreira, Solange

(organizadoras).

- Campinas,

SP : Mercado

de Letras, 2015.

Vários autores. Bibliografia. ISBN 976-85·7591·364-0

1. Análise

do discurso

2. Ungua

1963 - Crítica e interpretação Leandro.

11I. Miumann,

e linguagem

I. Indursky,

3. Pêcheux,

Michel,

1936·

Freda. 11.Ferreira, Maria Cristina

Solange. CDo..401.41

15~6866 Indices para catálogo 1. Análise do discurso:

Capa e gerência Preparação

sistemático:

Ciências

editorial:

dos originais:

da linguagem

401.41

Vande RoUa Gomide

Editora Mercado

de Letras

Obra em acordo com as novas

da ortografia portuguesa.

normas

DIREITOS RESERVADOS PARA A LlNGUA PORTUGUESA: c MERCADO

DE LETRAS'"

VRGOMIDE

ME

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- CEP 13070·116 SP Brasil

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1ª edição outubro/20

15

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SUMÁRIO

Apresentação Os Percursos Teórico-Analíticos do VI SEAD

11

Primeira Parte: Um Efeito-Início

1.

Na trilha: teoria, autoria, reescrita

21

Eni Puccínelli Orlandi

Segunda Parte: Entrelaçamentos

entre análise

do discurso, marxismo e psicanálise

2.

Análise de discurso e o materialismo histórico

35

Maria Virgínia Borges Amaral e Mônica Graciela Zoppi Fontana 3.

Althusser, Pêcheux e as estruturas do desconhecimento .. 55

Fábio Ramos Barbosa Filho 4.

Sobre a reprodução/transformação: o (dislfuncionamento ideológico e seus efeitos políticos Maurício Beck

67

5.

Inconsciente e ideologia nas formulações linguísticas do confl itó: a propósito da denegação

81

Carolina P. Fedatto

6.

Medicalização e escrita: metáforas da sutura e da cicatriz

95

Aline Femandes de Azevedo

Terceira Parte: Funcionamentos midiáticos e publicitários 7.

Os sentidos de nação e república na imprensa brasileira no final do império

113

Giovanna G. Benedetto Flores 8.

Felicidade, um arquivo. Sobre a noção de arquivo e o seu funcionamento no discurso da/na mídia

123

Si/mara Dela Si/va e Juciele Pereira Dias 9.

O Banco do Brasil é o Brasil? O efeito metafórico na propaganda bancária dos anos 1970

137

Luciana Fracasse

Quarta Parte: Reflexões em torno de práticas pedagógicas

10.

A escrita no discurso de sujeitos-professores: relações com a língua, repercussões em seus saberes profissionais e processos de subjetivação

155

Filomena Elaine P. Assolini 11.

O sujeito entre línguas: historicidade e reverberação ... 169 Giovani Forgiarini Aiub

12.

Entre o ver e o ler: gestos de leitura da materialidade visual implicando outros gestos de ensino

183

Carolina Femandes 13.

O sujeito da socioeducação entre o político, o administrativo e o jurídico

195

Lucilene Lusia Adomo de Oliveira

Quinta Parte:

A dinâmica dos corpos: do social ao discursivo 14.

O fracasso do intervalo semântico: significante, sentido e corpo

209

Marcos Aurelio Barbai 15.

De aranha a borboleta: processos de subjetivação de um corpo preso

223

Luciana Iost Vinhas 16.

As dores da dona Mariana

235

Ana Josefina Ferrari

17.

O movimento dos sentidos na materialidade do movimento do corpo

247

Marchiori Quadrado de Quevedo

Sexta Parte:

Criação e produção no processo artístico 18.

Pensando a arte como discurso

263

Maria Cristina Leandro Ferreira 19.

(Com)Textura de corpos na vídeo-performance contemporânea Nádia Régia Maffi Neckel

275

20.

Da produção à criação da obra de arte como gesto político

289

Freda Indursky

Sétima Parte:

Em torno de materialidades 21.

digitais

Sujeito e memória em textual idades digitais

307

Evandra Grigoletto e Solange Leda Gallo 22.

O funcionamento do "mas" no discurso digital sobre a/ols Brasileira/oIs

319

Glória da Ressurreição Abreu França 23.

Análise discursiva da hashtag #onagagné: estrutura e acontecimento

335

Juliana da Silveira 24.

O arquivo como gatilho de movimentos de interpretação em torno da palavra "luta"

351

Solange Mittmann Sobre os Autores

365

3 Althusser, Pêcheux e as estruturas do desconhecimento

Fábio Ramos Barbosa Filho Uma história chegou ao fim. É a outra infinita? Louis Althusser, Unfinished

history, 1976.

Introdução

Em 1976, no prefácio ao livro de Dominique Lecourt, "Lysenko, uma ciência proletária?", Althusser encerra o texto com uma pergunta 1 a respeito da relação entre ideologia e produção de conhecimento, no famoso caso envolvendo o cientista russo Trofim Lysenko. É sabido que a história de Lysenko chegou ao fim no que diz respeito à sua relação com a ciência. Mas e a outra história? Aquela, quase silenciosa, que diz respeito à toda e qualquer produção de conhecimento, na sua relação inevitável com a ideologia? Aquela que diz respeito à relação entre teoria e política nesse jogo de autonomias relativas tangenciadas pelo movimento da história? Trago essa história para situar o meu texto. Talvez seja sobre isso, afinal, que eu me debruce nesse momento. Uma história, ou duas. História

1.

A pergunta consta na epígrafe. Tradução minha.

55

de uma relação muito particular, ou melhor, de relações muito particulares. Relação entre formações teóricas, entre problemáticas, entre inconsciente e ideologia, entre teoria e política. Relação entre uma história que chegou ao fim, que precisa chegar ao fim - várias vezes - mas que continua produzindo efeitos quase silenciosos. Como o título sugere, falo de Louis Althusser e Michel Pêcheux que, neste momento e neste recorte, está presente por uma ausência necessária. Talvez não fosse preciso, mas quando trago esses nomes, não falo (apenas) de duas pessoas. Falo de duas formações teóricas, de duas regiões de conhecimento que, a partir de problemáticas específicas, produziram conhecimento sobre a linguagem, o sujeito e a história. E, sobretudo, propuseram uma nova teoria da leitura e do processo histórico de formação de sentidos, em um processo contínuo de autocrítica, passando por reelaborações extremamente significativas. A referência do título deste texto remete ao parágrafo final do "Freud e Lacan", texto que me serve de ponto de partida para a presente discussão, que tem como fio condutor a relação entre Althusser e Pêcheux frente a uma teoria materialista da leitura. Lá, Althusser afirma: Desse modo, ter-se-á notado, está aberta para nós, sem dúvida, uma das vias pelas quais chegaremos talvez um dia a uma melhor compreensão dessa estrutura do desconhecimento,

que interessa, em primeiro

lugar, a qualquer pesquisa sobre a ideologia. (Althusser 1964[19850, p.71])

É dessa (in)conclusão de Althusser que parto para relacionar dois domínios de saber que se articulam justamente no limiar desses conceitos. Quando o filósofo relaciona inconsciente e ideologia, põe uma questão incontornável no entremeio da psicanálise e do marxismo (inclusive no campo da prática política): a descoberta freudiana do inconsciente mexe com a estruturação teórica do materialismo no que tange à teoria da ideologia. Ou seja, há algo no funcionamento do inconsciente que estrutura o modo de funcionamento da ideologia como uma entidade "profundamente inconsciente" (Althusser 1965[19670, p. 206]). Ora, é justamente esse deslocamento que retira a ideologia do campo da consciência e permite que o desconhecimento seja mais do que um "engano" ou um "erro" para ser constitutivo de qualquer relação subjetiva e de qualquer relação social, colocando em pauta a primazia da opacidade do sujeito e do social frente 56

às categorias de razão e consciência. Em suma, frente a uma concepção idealista de ideologia. Partindo dessas premissas, o que aproxima então a psicanálise do marxismo é o fato de ambos se debruçarem sobre instâncias que, cada qual ao seu modo, são estruturas. É essa consideração que permite deslocar as discussões fenomenológicas (Politzer e o desprezo pela metapsicologia, do lado da psicanálise, ou a ideologia como "senso-comum", do lado do marxismo) ou ontológicas (Laplanche, a respeito da realidade ou realismo do inconsciente, do lado da psicanálise, ou da ideologia como "a ideologia do/de cada indivíduo", do lado do marxismo) a respeito do par ideologia e inconsciente. É isso que permite a Althusser afirmar que

[... 1 a

ideologia tem uma estrutura e um funcionamento

tais que fazem

dela uma realidade não-histórica, isto é, omnihistórica, no sentido em que esta estrutura e este funcionamento

se apresentam na mesma for-

ma imutável em toda história, no sentido em que o Manifesto define a história como história da luta de classes, ou seja, história das sociedades de classe. (Althusser 1971[1985b, p. 84))

A questão que se coloca, a partir desse deslocamento, é compreender ideologia e inconsciente não como realidades fenomenológicas ou ontológicas, mas como estruturas que produzem efeitos e que sustentam processos e práticas. Essa compreensão dialoga de uma maneira bastante particular com as relações existentes entre a psicanálise e o marxismo.

Inconsciente e ideologia: do freudo-marxismo

à intervenção althusseriana

Há, na história do marxismo, diferentes modos de articulação (teóricos e políticos) com a psicanálise. Vale a pena lembrar que ela, que conta com uma grande produção e até mesmo "simpatia" oficial na União Soviética até a morte de Lênin, é execrada quando o marxismo se torna a "religião" do Estado. Passa a ser uma panaceia idealista, uma charlatanice pequeno-burguesa suplantada pelas ideias de Pavlov. É justamente contra essa interpretação, difundida pela Terceira Internacional, que surgem tanto as "reações" do freudo-marxismo e da teoria crítica quanto a de Louis Althusser. Cada qual à sua maneira. 57

Gostaria, brevemente, de mencionar as consequências desses diferentes modos de articulação a partir de duas posições de "defesa" da pertinência da psicanálise no terreno do marxismo:2 a) o freudo-marxismo dos anos 20 e 30, que surge, sob a forma do positivismo biologista, enquanto tentativa de compreender as "raízes psíquicas" e a eficácia da dominação capitalista e b) a teoria crítica,3que se debruça diante da discrepância entre a "consciência política" e as condições objetivas da exploração, buscando compreender como os explorados aceitam e defendem o sistema que os oprime. O que une essas duas tendências é o modo de consideração dessa discrepância, ou seja, a natureza desse "espaço" entre a exploração (realidade objetiva) e os explorados (classe trabalhadora). Existe, então, tanto no freudo-marxismo quanto na teoria crítica duas suposições basilares: há algo como uma irracionalidade da classe operária frente ao funcionamento objetivo das relações sociais bem como uma certa indistinção entre inconsciente e ideologia.4 Assim como o freudo-marxismo e a teoria crítica, a concepção freudiana de inconsciente desempenha para Althusser um papel fundamental tanto na defesa da psicanálises no terreno do marxismo (e, nesse sentido, o artigo "Freud e Lacan" funciona quase como um manifesto) quanto na elaboração da sua teoria da ideologia em geral.6 Em "Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado" (daqui em diante, AlE),! o filósofo afirma, após apresentar algumas teses fundamentais (a ideologia é onipresente, transistórica e imutável em sua forma, ou seja, eterna), que se considera autorizado "a propor uma teoria da ideologia em geral, no mesmo sentido em que Freud apresentou uma teoria do inconsciente em geral" (Althusser 1971[1985b, p. 85])". Porém, diferentemente do freudo-marxismo e de alguns autores da teoria crítica, Althusser não tenta encontrar uma plasti-

2. 3.

4.

5. 6. 7.

Este panorama é definido de forma bastante pormenorizada em Rouanet (1989). Aqui me restrinjo às observações de Fromm, Adorno, Horkheimer e Marcuse. Novamente, recomendo a leitura de Rouanet (1989), onde há uma minuciosa investigação da relação entre marxismo e psicanálise na teoria crítica. Para ilustrar essa indistinção, trago a caracterização sintomática de Erich Fromm: "[...] as ideologias são o produto de certos desejos, excitações pulsionais, interesses e necessidades, em grande parte inconscientes, e que se manifestam ideologicamente sob a forma de racionalizações" (Fromm, apud Rouanet 1989, p. 51) A esse respeito há a excelente obra de Pascalle Gillot (2009) que pormenoriza a relação de Althusser com a psicanálise. Vale a pena precisar: não uma teoria das ideologias (formações ideológicas) específicas. Essa distinção é bastante explorada em Althusser (1971[1985b]). Althusser, 1971[1985]. 58

cidade ou uma forma de integrar inconsciente e ideologia (tal como Erich Fromm,8 por exemplo, que busca compreender a ideologia a partir do funcionamento das pulsões), mas apenas de supor que há entre essas duas estruturas algo de análogo. Essa consideração é extremamente importante para pontuar a posição de Althusser no marxismo, pois efetua um corte tanto com a concepção pré-marxista de Marx (duramente criticada no AlE), mas também com a concepção de Gramsci (ideologia como "consciência social" ou "concepção de mundd') e Lukács (ideologia como "alheamentd' ou "falsa consciência").9 Deslocando essas duas posições, Althusser vai afirmar que a ideologia é, antes de tudo, um sistema de representações: representações

mas essas

nada têm a ver com a "consciência": elas são na maior

parte das vezes imagens, as vezes conceitos, mas é antes de tudo como

estruturas que elas se impõem à imensa maioria dos homens, sem passar para a sua consciência. São objetos culturais percebidos-aceitas-suportados,

e que agem funcionalmente

sobre os homens por um

processo que lhes escapa. (Althusser 1%5[1%70, p. 206])

Essa caracterização da ideologia como um "processo que escapa" abre espaço para o que viria a ser, alguns anos depois, a "teoria da interpelação ideolÓgica", que institui a noção de ideologia como noção basilar do empreendimento althusseriano e possibilita pensar o sujeito sempre-já atravessado pela ideologia e pelo inconsciente. Esse encontro, para usar um termo caro a Althusser, marca uma especificidade na articulação entre psicanálise e marxismo e determina a constituição do sujeito em um jogo de relações que excluem os temas da origem e da essência humana, logo, da ideologia "como alheamento" ou conjunto de ideias inculcadas, cinicamente, pela classe dominante. Pois se a ideologia "representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência" (ibidem, p. 85) ela não representa as condições objetivas de existência, mas as relações com essas condições. Ou seja,

8.

9.

Não trago aqui as posições de Erich Fromm em vão. No texto "A querela do humanismo", A1thusser inicia um debate direto com a teoria crítica a partir de um convite de Eric Fromm para que o filósofo francês escrevesse um texto para um livro a respeito do "humanismo socialista". A1thusser aceita o convite mas o seu texto não é incluído na publicação por "destoar" dos demais textos. A esse respeito, ver Sampedro (2010).

59

é representado

na ideologia não o sistema das relações reais que go-

vernam a existência dos homens, mas a relação imaginária desses indivíduos com as relações reais sob as quais eles vivem. (ibidem, p. 88)

É isto, conceber as relações como relações imaginárias, que permite à ideologia não ser um "véu", um "engano" ou um "mito", mas uma relação específica entre o sujeito e as relações sociais (entre o sujeito e o sentido) e que tem uma forte ligação com o que Althusser chamou de "autonomia relativa da superestrutura" e "ação de retorno da superestrutura sobre a base" (Althusser 1971[1985b, p. 61]). Essa concepção de ideologia afasta a ideia de uma suposta irracionalidade (bastando a presença da racionalidade, ou uma inversão, para que tudo se torne evidente) e é extremamente solidária a uma teoria da leitura, tema da próxima sessão.

Uma teoria materialista da leitura

Após esse recorte da relação entre marxismo e psicanálise, posso me deter no ponto fundamental deste texto: pensar de que modo Althusser lança as bases de uma teoria materialista da leitura 10 que fundamenta a semântica discursiva de Michel Pêcheux. Utilizo a palavra "fundamenta" de propósito. Tanto para afastar outras como "herança" ou "influência" quanto para compreender essa relação a partir de uma constitutividade que se situa para além de um pano de fundo teórico, mas como uma relação que produziu conceitos e práticas que estabelecem um vínculo direto entre teoria (enquanto uma prática teórica) e política na análise de discurso. Para além de um substrato, um arsenal11 de palavras que, sob a forma de conceitos, desenham uma forma de compreender o simbólico a partir da relação com a história e que dá ao significante uma importância fundamental.

10.

11.

A esse respeito, vale a pena observar de que modo Pierre Macherey vai compreender a produção literária a partir de uma posição materialista. Essa obra (Macherey 1966[1971]) é sintomática de um interesse acentuado na relação entre ideologia e o simbólico nas elaborações teóricas do grupo que se organizava em tomo de A1thusser. Palavra que utilizo para jogar com a concepção althusseriana da teoria como arma. 60

Althusser afirma que há em Marx a emergência de "uma teoria da história capaz de nos fornecer uma nova teoria do ler" (Althusser 1965[1975, p. 16]) e é justamente a partir de uma caracterização bastante particular do conceito de história que o filósofo francês vai pensar a questão da leitura. Althusser considera que Marx abriu o "continente história", saturado pelas filosofias da história e marcado pelas problemáticas da origem e do fim (gênese e teleologia), para o que se chama de conhecimento objetivo, ou seja, aquele que "cessa de interpretar os fenômenos em termos de causas finais" (Turchetto 2010, p. 80) a partir de uma leitura da Economia Política clássica que desloca certas palavras e, assim, faz aparecer outras perguntas. Marx, como sabemos, possuia um olhar agudo para as questões significantes.12 Ele censura Ricardo e Smith por não chamarem a mais-valia por seu nome e critica a não consideração da historicidade de certas palavras. Essa relação, porém, pode cair num historicismo (ou seja, bastaria então contextualizar essas relações) que Althusser trata de dissipar enfaticamente no seu esboço de um conceito de tempo histórico. De modo análogo ao conceito de ideologia, é no conceito de inconsciente que o filósofo se ampara para propor um deslocamento frente à compreensão da história como um processo contínuo e linear para pensá-Ia como "uma realidade que nada tem a ver com a sequência visível de acontecimentos registrados pela crônica" (Althusser 1965[1980, p. 43]). O autor afirma que:

Do mesmo modo que sabemos, desde Freud, que o tempo do inconsciente não se confunde com o tempo da biografia, que se impõe, pelo contrário, construir o conceito de tempo do inconsciente para chegar à compreensão,

do mesmo modo é preciso elaborar os conceitos dos

diversos tempos históricos, que jamais são dados na evidência ideológica da continuidade

do tempo (que bastaria recortar convenientemente

por uma boa periodização

para transformá-lo em tempo da história),

mas que devem ser elaborados

a partir da natureza diferencial e da

articulação diferencial de seu objeto na estrutura do todo. (A1thusser . 1965[1980, p. 43))

12.

A mudança, em 1847, do nome da organização operária "Liga dos Justos" para "Liga dos Comunistas" , sugerida por Marx e Engels, é sintomática dessa relação com o significante. 61

Traço característico do materialismo de Althusser, a recusa de qualquer empirismo faz o conceito de história tomar forma a partir de uma concepção de "conjuntura" que determina o modo como as condições de produção do dizer podem ser pensadas no quadro de uma teoria da leitura. Recusando o historicismo, pensa as palavras e os conceitos a partir de relações que vão determinar diretamente a forma do visível e do invisível frente às suas condições históricas de produção. É essa consideração que permite pensar a conjuntura enquanto uma realidade determinada pelo que ele chama de "temporalidade diferencial", ou seja, que cada nívelou instância possui uma autonomia relativa, funciona sob uma ordem "particular" , possui uma história "própria" e portanto pode ser pensada (e analisada) autonomamente. Entre o ver e o não ver é que o ler ganha força e precisa ser pensado de uma maneira que não signifique um processo cuja força-motriz é a descoberta de um conteúdo. É por causa de uma relação específica com a conjuntura, e não por uma questão de conteúdo, que os economistas clássicos não podiam ver certas relações que Marx viu, estando o (des) conhecimento marcado por esse jogo de (in)visibilidades diante de certas formações teóricas na sua relação com a história. E é aí que a teoria da leitura tem, para Althusser, a função específica de mexer com as evidências e dar visibilidade a outras questões. Afinal, se o discurso teórico é aquele que "tem por efeito o conhecimento de um objeto" (Althusser 1967b, p. 52), ela precisa operar de uma maneira distinta da ideologia (visto que a ideologia produz o reconhecimento), fazendo o óbvio deslizar no equívoco por um modo específico de jogar com o sentido. E esse modo era, para o autor, pensado a partir das relações significantes. Ele afirma:

Uma palavra em vez de outra: constituição no lugar de aplicação: parece uma ninharia. Contudo, é assim que a filosofia procede. Basta uma nova palavra para desembaraçar

o espaço duma pergunta, aquela que

não tinha sido posta. A nova palavra abala as antigas, e faz o vazio para a nova pergunta. A nova questão põe em questão as antigas respostas, e as velhas questões adormecidas

debaixo delas. Ganha-se aí uma

nova visão das coisas. (Althusser 1967[1979, p. 34])

Ganhar uma "nova visão das coisas" não é, então, se ocupar do "deciframento" de certas questões (ou ver melhor outros "conteúdos"), mas deslocá-las, expondo as suas relações com a história e com outras

62

questões. Esse processo, bastante familiar para quem se ocupa da Análise de Discurso, é o modo de abalar a linearidade do discurso ideológico, saturado em suas próprias evidências, para propor uma forma de leitura culpada que, recusando novamente o empirismo, se ampara na teoria para derrubar o "mito religioso da leitura". Essa concepção tem consequências que ultrapassam os limites do plano teórico e significam efetivamente a relação entre prática teórica e prática política. A1thusserdiz:

Por que a filosofia se bate com palavras? As realidades da luta de classes são "representadas"

por "ideias" , que são "representadas"

por palavras.

Nos raciocínios científicos e filosóficos, as palavras (conceitos, categorias) são "instrumentos"

do conhecimento.

Mas na luta política, ideoló-

gica e filosófica, as palavras são também armas, explosivos, sedativos ou venenos. Toda luta de classes pode às vezes se resumir na luta por uma palavra, contra uma outra palavra. Certas palavras lutam entre si como inimigas. Outras palavras são o lugar de um equívoco: o lance de uma batalha decisiva, embora indecisa. Exemplo: os comunistas lutam pela supressão das classes e por uma sociedade comunista, onde, um dia, todos os homens serão livres e irmãos. No entanto, toda a tradição marxista clássica se recusou a dizer que o marxismo é um humanismo. Por que? Porque praticamente, logo nos fatos, a palavra humanismo é explorada pela ideologia burguesa que utiliza-a para combater, quer dizer, para matar uma outra palavra verdadeira e vital para o proletariado: luta de classes. (...] Esse combate filosófico sobre palavras é uma parte do combate político. A filosofia marxista-Ieninista só pode realizar seu trabalho teórico, abstrato, rigoroso, sistemático sob a condição de lutar com palavras muito "sábias" (conceitos, teoria, dialética, alienação, etc.) e com palavras muito simples (homem, massas, povo, luta de classe). (A1thusser 1968[1980, pp. 163-164])

Essa citação é sintomática da importância que certas relações ou demandas políticas estabelecem com a produção de conhecimento. Em suma, o que A1thusser nos diz é que certas palavras "da política" representam, na teoria, modos de compreender e configurar problemáticas. E, inversamente, certas problemáticas demandam um deslocamento, na teoria, de certas palavras. O jogo que envolve o significante não é um jogo desinteressado, mas faz parte da luta para colocar certos sentidos em outros lugares. Neste caso, colocar "na teoria" sentidos "da política".

63

Conclusão

Essa discussão, que, por enquanto, se configura como o esboço de aproximação de dois autores a partir de uma problemática comum (a questão da leitura), coloca mais questões do que busca soluções. Penso que esse recorte me permite pensar a prática analítica como uma prática que joga tanto na teoria quanto na política. Permite, sobretudo, colocar à Analise de Discurso uma questão tanto teórica quanto política: qual é o seu lugar na conjuntura? Por enquanto, gostaria de mencionar duas hipóteses: 1) a existência de uma teoria materialista da leitura que se fundamenta em uma articulação específica de Marx e Freud a partir, justamente, de uma leitura específica dos conceitos de ideologia e inconsciente e 2) o modo como essa relação adquire contornos específicos quando pensada em uma teoria do discurso, em que há a consideração não mais em generalidades como palavras e conceitos, mas na língua, assumindo as consequências da sua especificidade. Gostaria de aprofundar o segundo ponto, em um outro momento, fazendo um liame entre as reconfigurações que Althusser e Pêcheux desenvolveram nos seus percursos, quase que paralelamente. Acho que a questão do desconhecimento, como ponto que articula inconsciente e ideologia, permite a construção de uma teoria da leitura que rompe com o conteudismo, colocando em pauta a questão da visibilidade e invisibilidade de certas questões em um plano teórico que reclama a história. É esse o gesto que aproxima Pêcheux (e o que se chama análise de discurso materialista) da produção teórica e política de Althusser (ou uma certa leitura do marxismo-leninismo). Não trago, porém, esse recorte para ilustrar ou induzir que Althusser lança as bases da Análise de Discurso, e assim entrar na briga pela sua paternidade. Foi Pêcheux, inegavelmente, que deu ao simbólico todo o peso e preponderância que essa instância ganhou na sua teoria do discurso ao descobrir de que modo essas relações significantes funcionam no simbólico a partir de uma reflexão sobre a materialidade da língua e não no que se poderia chamar de domínio do ideológico ou do imaginário, pura e simplesmente 13. Mas

13.

Isso não significa que Althusser não viu (para usar uma formula bastante marcante do Ler O Capital) o modo como o simbólico articula as relações entre a ideologia e o sujeito (ele chega a mencionar em diversas ocasiões a relação entre inconsciente e lei simbólica, jogos de palavras, metáfora/metonímia ...).

64

tomar a questão da leitura como recorte, me leva a supor que desenvolver uma teoria materialista do discurso foi, para Pêcheux, partir de posições que se formam na articulação específica da psicanálise com o marxismo e da política com a teoria. Ou seja, pensar a questão da leitura em Althusser é assumir uma posição que não é só teórica e implica as consequências de assumir não só um método, mas o investimento político da teoria no jogo das relações de força que o conhecimento desempenha no social. Conceber a prática teórica enquanto luta, significa inscrever a sua função crítica (não moral) frente ao que se chama de domínio ideológico. E é essa função tanto da prática filosófica de Louis Althusser quanto da prática analítica de Michel Pêcheux: produzir conhecimento na teoria para intervir na luta política. Pensar a questão da leitura em Althusser é, enfim, assumir uma prática, demarcando uma posição. Afinal, como ele mesmo diz, "luta de classes e filosofia marxista-Ieninista são unidas como carne e unha" (A1thusser 1980b, p. 165). E marcar essa posição serve (como nos disse o próprio A1thusser retomando Marx) para que não deixemos jamais o trabalho do alfaiate desaparecer na roupa.

Bibliografia

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(1968[1980b]). "A filosofia como arma de revoluçãd', in: ALTHUSSER, Louis Posições lI. Rio de Janeiro: Edições Graal, pp. 152-165. o

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66

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