Ameaças em construção: processos transnacionais de securitização entre Afeganistão, Paquistão e Índia

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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES INSTITUTO RIO BRANCO

AMEAÇAS EM CONSTRUÇÃO: PROCESSOS TRANSNACIONAIS DE SECURITIZAÇÃO ENTRE AFEGANISTÃO, PAQUISTÃO E ÍNDIA

THOMAZ ALEXANDRE MAYER NAPOLEÃO

BRASÍLIA/ISLAMABADE 2011

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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES INSTITUTO RIO BRANCO

AMEAÇAS EM CONSTRUÇÃO: PROCESSOS TRANSNACIONAIS DE SECURITIZAÇÃO ENTRE AFEGANISTÃO, PAQUISTÃO E ÍNDIA

THOMAZ ALEXANDRE MAYER NAPOLEÃO

Dissertação apresentada ao Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Diplomacia. Área de concentração: Negociações e relações bilaterais e multilaterais. Orientadora: Primeira-Secretária Maria Angélica Ikeda. Co-orientador: Embaixador Éverton Vieira Vargas.

BRASÍLIA/ISLAMABADE 2011

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Ao povo do Afeganistão, ainda à espera da paz.

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AGRADECIMENTOS

Aos Ministros Celso Amorim e Antonio de Aguiar Patriota, que me inspiram enquanto diplomatas, pensadores e brasileiros, meu sincero agradecimento e meus profundos respeitos. Por meio deles, agradeço à Casa que me acolheu com tanto esmero.

Agradeço ao Embaixador Alfredo Leoni e ao Ministro-Conselheiro João Carlos Belloc, meus superiores e mentores na Embaixada do Brasil em Islamabade.

Sou grato ao Embaixador Éverton Vieira Vargas e à Primeira-Secretária Maria Angélica Ikeda pela paciência em me orientar e instruir. Ao Embaixador Hermano Telles Ribeiro e à equipe da SPD, um afetuoso abraço.

Aos excelentes professores que tive no Instituto Rio Branco, um muito obrigado.

Agradeço, hoje e sempre, aos queridos amigos e parceiros de trabalho e de vida: Guilherme Pereira, Chloé Young, Helena Jornada, Gustavo Carneiro, Patrick Luna, Larissa Schneider, Bruno Toledo, Helen Conceição, Felipe Ortega, Barbara Boechat, Rafael Prince, Anne Diesel, João Vargas e outros tantos – vocês sabem quem são.

À minha família, distante mas nunca ausente, só posso dizer obrigado por tudo.

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RESUMO

Por meio do instrumental teórico da Escola de Copenhague, de Barry Buzan e Ole Wæver, que ocupa papel intermediário entre o Construtivismo e o Neorrealismo em Relações Internacionais, este trabalho examina algumas das ameaças específicas à segurança da Ásia Meridional. Para tanto, utilizamos extensivamente o conceito seminal da securitização, de Wæver: o processo social através do qual algumas questões, consideradas vitais à sobrevivência de um determinado objeto referente, são elevadas acima da política pública regular e tratadas como se exigissem medidas extraordinárias, emergenciais e até antidemocráticas. Mediante pesquisa empírica e análise de discurso, investigamos três questões relevantes – a proliferação nuclear entre Índia e Paquistão; as disputas territoriais que opõem Índia, Paquistão e Afeganistão, incluindo a Caxemira e a Linha Durand; e a mudança climática global – para averiguar se elas são securitizadas no âmbito no Complexo Regional de Segurança da Ásia Meridional, e como o são. Concluímos que algumas securitizações, sobretudo a da mudança do clima, falharam na região. Nossa análise também demonstra que ameaças políticas e societais, relacionadas a questões profundas de identidade nacional e legitimidade política, estão por trás de todas as principais securitizações da Ásia Meridional. Palavras-chave: Teoria da Securitização. Complexo Regional de Segurança da Ásia Meridional. Proliferação nuclear. Caxemira. Índia. Paquistão. Afeganistão.

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ABSTRACT

Using the theoretical framework of the Copenhagen School of Barry Buzan and Ole Wæver, which occupies the middle ground between Constructivism and Neo-realism in International Relations, this work examines some of the specific threats currently undermining South Asian security. To that end, we extensively employ Wæver’s key concept of securitization: the social process through which some issues, considered vital to the survival of a given referent object, are raised above regular public policy and treated as if requiring extraordinary, emergency and even undemocratic measures. Through empirical research and discourse analysis, we focus on three relevant issues – nuclear weapon proliferation between India and Pakistan; territorial disputes opposing India, Pakistan and Afghanistan, including Kashmir and the Durand Line; and global climate change – to ascertain whether they are securitized within the South Asian Security Complex, and how. We conclude some securitizations, notably climate change, have failed in the region. Our analysis also shows how political and societal threats, pertaining to deep issues of national identity and political legitimacy, are behind all major securitizations in South Asia. Keywords: Securitization Theory. South Asian Security Complex. Nuclear Proliferation. Kashmir. India. Pakistan. Afghanistan.

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RÉSUMÉ

Moyennant la grille d’analyse de l’Ecole de Copenhague de Barry Buzan et Ole Wæver, située à mi-chemin entre le Constructivisme et le Néo-réalisme en Relations internationales, ce travail examine quelques menaces à la sécurité de l’Asie du sud. Pour le faire, nous utilisons fréquemment le concept crucial de la sécuritisation, créé par Wæver : le processus social à travers duquel certains problèmes, jugées vitales à la survie d’un objet référent, s’élèvent au-dessus de la politique publique ordinaire et exigent des mesures extraordinaires et d’urgence, voire antidémocratiques. La recherche empirique et l’analyse du discours nous permetront d’étudier trois questions pertinentes – la prolifération nucléaire entre l’Inde et le Pakistan ; les disputes territoriales opposant l’Inde, le Pakistan et l’Afghanistan, y compris le Cachemire et la Ligne Durand ; et le changement climatique mondial – pour déterminer si elles sont sécuritisées à l’intérieur du Complexe régional de sécurité de l’Asie du sud, et comment elles le sont. Selon notre conclusion, certaines sécuritisations, notamment celle relative au changement climatique, ont échoué dans la région. Notre analyse démontre également comment les menaces politiques et societales, liées aux interrogations profondes sur l’identité nationale et la légitimité politique, sont derrière toutes les sécuritisations importantes en l’Asie du sud. Mots-clef: Théorie de la sécuritisation. Complexe régional de sécurité de l’Asie du sud. Prolifération nucléaire. Cachemire. Inde. Pakistan. Afghanistan.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Os Complexos e Subcomplexos Regionais de Segurança da Ásia.

61

Figura 2: Jammu e Caxemira.

108

Figura 3: A Geleira de Siachen.

139

Figura 4: O Rann de Kutch.

142

Figura 5: O Estuário de Sir Creek.

144

Figura 6: As cinco possibilidades da fronteira noroeste do Raj britânico.

147

Figura 7: O “Pashtunistão” entre Afeganistão e Paquistão.

150

Figura 8: Países e regiões mais vulneráveis à mudança de clima.

158

Figura 9: Escassez de água no mundo.

168

Figura 10: Os principais rios da bacia do Indo.

170

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Força x Potência do Estado.

31

Tabela 2: O continuum da securitização.

36

Tabela 3: A intensidade da securitização por nível e setor.

50

Tabela 4: Elementos da securitização nuclear na Índia e no Paquistão

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AGNU: Assembleia Geral das Nações Unidas. AIEA: Agência Internacional de Energia Atômica. AJK: Azad Jammu & Kashmir. Nome oficial da Caxemira sob controle paquistanês. APHC: Conferência Suprapartidária pela Liberdade (da Caxemira). BASIC: Brasil, África do Sul, Índia e China. Coalizão ativa nas negociações climáticas. BJP: Partido Popular da Índia (Bharatiya Janata Party). BRICS: Agrupamento Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. CASA-1000: Linha de Transmissão Ásia Central-Ásia Meridional. CEI: Comunidade dos Estados Independentes. COP: Convenção das Partes. COPRI: Instituto de Pesquisas para a Paz de Copenhague. CQNUMC (ou UNFCCC): Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. CRS (ou RSC): Complexo Regional de Segurança. CSNU: Conselho de Segurança das Nações Unidas. CTBT (ou TICE): Tratado para a Interdição Completa de Testes (Ensaios) Nucleares. ECOSOC: Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. FATA: Áreas Tribais sob Administração Federal, Paquistão. FCR: Regulamento de Crimes da Fronteira; código legal das FATA. FMCT: Tratado sobre Banimento da Produção Materiais Físseis. FMI: Fundo Monetário Internacional. FRC ou RCF: Teoria da Formação Regional de Conflitos. GEEs: Gases responsáveis pelo Efeito-Estufa. GHQ: General Headquarters, Rawalpindi. Metonímia para o Exército do Paquistão. HuM: Hizb-ul Mujaheddin (“Partido dos Mujaheddin”), Caxemira.

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IPCC: Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. IPI: Gasoduto Irã-Paquistão-Índia. ISAF (ou FIAS): Força Internacional de Assistência para a Segurança. Contingente da OTAN no Afeganistão. ISI: Diretório de Inteligência Inter-Serviços. Principal Serviço de Inteligência do Paquistão. ISS: Estudos de Segurança Internacional. IWT: Tratado do Rio Indo. J&K: Jammu & Kashmir. Nome oficial da Caxemira sob controle indiano. JI: Jamaat Islami (“Sociedade Islâmica”), Paquistão. Há partidos homônimos em J&K e em Bangladesh. JKLF: Frente de Libertação de Jammu e Caxemira. JuD: Jamaat-ul-Dawa (“Sociedade para a Pregação”), reencarnação do LeT. JUH: Associação de Clérigos da Índia. LeT: Lashkar-e-Taiba (“Exército dos Justos”). LSE: Escola de Economia de Londres. NAFTA: Área de Livre Comércio da América do Norte. NMF (ou MFN): Nação Mais Favorecida. NSG: Grupo de Supridores Nucleares. NWFP: Província da Fronteira Noroeste, Paquistão (Khyber-Pakhtunkhwa desde 2010). OCDE: Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. OCX: Organização de Cooperação de Xangai. OMC: Organização Mundial do Comércio. ONG: Organização Não-Governamental. ONU: Organização das Nações Unidas. OPEP: Organização dos Países Exportadores de Petróleo. OTAN: Organização do Tratado do Atlântico Norte. PML: Liga Muçulmana do Paquistão, atualmente dividida em diversas correntes.

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PNUD: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. PNUMA: Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. PPP: Partido Popular do Paquistão, atualmente dividido em diversas correntes. RAW: Setor de Pesquisas e Análises. Principal Serviço de Inteligência da Índia. RI: Relações Internacionais. RSS: Rashtriya Swayamsevak Sangh (“Organização Nacional de Voluntários”). SAARC: Associação Sul-Asiática para a Cooperação Regional. SAFTA: Área de Livre Comércio da Ásia Meridional. SAFMA: Associação de Mídia Livre da Ásia Meridional. SGNU: Secretário-Geral das Nações Unidas. SIPRI: Instituto Internacional de Pesquisas para a Paz de Estocolmo. TAPI: Gasoduto Turcomenistão, Afeganistão, Paquistão, Índia. TNP: Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares. TTP: Tehreek-e-Taliban Pakistan ou Talibã Paquistanês. UNASUL: União das Nações Sul-Americanas. UNCIP: Comissão das Nações Unidas para Índia e Paquistão. UNMOGIP: Grupo Observador Militar das Nações Unidas para Índia e Paquistão. VANT (ou “drone”): Veículo Aéreo Não-Tripulado. VHP: Vishva Hindu Parishad (“Conselho Nacional Hindu”).

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SUMÁRIO

I – INTRODUÇÃO

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II – AMEAÇAS EM CONSTRUÇÃO: A ESCOLA DE COPENHAGUE E O ARCABOUÇO TEÓRICO DA SECURITIZAÇÃO

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A Escola de Copenhague e os Estudos Internacionais de Segurança

24

Estados fortes e fracos, ameaças e vulnerabilidades

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Securitização: a construção discursiva da segurança

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Críticas ao modelo da securitização

37

Superpotências, grandes potências e potências regionais

39

Os quatro níveis de análise da segurança

42

Os cinco setores da segurança

45

A macrossecuritização e o Conselho de Segurança

51

Os Complexos Regionais de Segurança

53

O CRS da Ásia Meridional, suas características e suas securitizações

56

O caso sui generis do Afeganistão

60

III – O DESTRUIDOR DE MUNDOS E O BUDA SORRIDENTE: A SECURITIZAÇÃO ASSIMÉTRICA DA PROLIFERAÇÃO NUCLEAR ENTRE PAQUISTÃO E ÍNDIA

69

Uma falsa obviedade

69

A evolução descompassada de dois programas rivais

73

Os motivos da nuclearização de Nova Delhi

79

Desconstruindo a Índia nuclear

85

O programa nuclear monotemático do Paquistão

87

13

Armas nucleares no Sul da Ásia: a securitização assimétrica O contra-exemplo iraniano

92 101

IV – TERRA, HOMENS, LUTA: AS MÚLTIPLAS SECURITIZAÇÕES TERRITORIAIS DA ÁSIA MERIDIONAL

105

Seis décadas de securitização da Caxemira

107

A securitização da Caxemira pelo Paquistão

116

A securitização da Caxemira pela Índia

128

A securitização da Caxemira pelos próprios caxemires

135

Siachen e a securitização subordinada

138

Dessecuritização territorial entre Paquistão e Índia: Rann de Kutch e Sir Creek

141

O “Pashtunistão” e a Linha Durand: promessa não-realizada de securitização

146

V – MAIS EMPREGOS E MENOS ÁRVORES: O FRACASSO DA SECURITIZAÇÃO AMBIENTAL NA ÁSIA MERIDIONAL

156

Uma multiplicidade de riscos ambientais

157

Entraves à securitização ambiental

161

Índia e Paquistão contra a macrossecuritização da mudança do clima

166

O potencial de securitização da água

168

Uma consideração contra Cassandra

172

VI – CONCLUSÃO

175

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

178

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I – INTRODUÇÃO

“The most dangerous place in the world today, I think you could argue, is the Indian subcontinent and the line of control in Kashmir.” (Bill Clinton, Presidente dos Estados Unidos, em 2000)

“I dream of a day, while retaining our respective national identities, one can have breakfast in Amritsar, lunch in Lahore and dinner in Kabul. That is how my forefathers lived. That is how I want our grandchildren to live.” (Manmohan Singh, Primeiro-Ministro da Índia, em 2007)

Vítima de instabilidades endêmicas e rivalidades insolúveis desde a descolonização, em 1947, a Ásia Meridional é frequentemente descrita pelo discurso acadêmico, político e diplomático como região de elevada conflitualidade. Por diferentes motivos, tanto a fronteira indopaquistanesa1 como a divisa afegãpaquistanesa2 têm sido rotuladas como as mais perigosas do mundo. A situação se tornou ainda mais volátil em 1998, ano em que Índia e Paquistão realizaram seus primeiros testes nucleares de teor bélico; e após o 11 de setembro de 2001, quando a intervenção da OTAN no Afeganistão trouxe novo elemento polarizador para a geopolítica sul-asiática e elevou intensamente a incidência de atos terroristas na região. Como consequência de tais eventos recentes, que se somaram ao denso legado de violência organizada na região, hoje se verifica profunda interdependência entre Afeganistão, Paquistão e Índia em termos de segurança. Já não é possível insular analiticamente as principais ameaças à estabilidade de cada um desses Estados: o 1 2

ECONOMIST. “The world's most dangerous border”. GUL, Imtiaz. The Most Dangerous Place: Pakistan’s Lawless Frontier.

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jihadismo na Caxemira alimenta a insurgência no Afeganistão e é por ela alimentado; o risco de conflagração nuclear afeta a totalidade da Ásia Meridional; a rivalidade indopaquistanesa contamina as tentativas de estabilizar e de reconciliar o Afeganistão; a escassez de recursos naturais e as catástrofes ambientais causadas pela mudança do clima possibilitam novas disputas transnacionais entre os três países; e assim por diante. No entanto, para compreender as tensões securitárias da Ásia Meridional, e a interdependência entre elas, não basta elaborar uma longa lista de problemas e ameaças. Elencar e descrever os riscos à segurança da região, tarefa útil aos jornalistas, é de pouca valia analítica. Para o pesquisador e o diplomata, urge compreender as dinâmicas por trás da formação da conflitualidade entre Afeganistão, Paquistão e Índia. É preciso averiguar as causas, e não as consequências, da volatilidade regional. Para tanto, o mais sofisticado modelo teórico disponível é o da securitização, desenvolvido nos anos 1990 pelos membros da chamada Escola de Copenhague, grupo acadêmico atuante na disciplina dos Estudos Internacionais de Segurança, sob a coordenação de Barry Buzan e Ole Wæver. A Escola de Copenhague, que ocupa posição intermediária entre o Construtivismo e o Neorrealismo em Relações Internacionais, argumenta que a segurança tem existência simbólica, e não objetiva. Por meio de processos discursivos, é possível representar qualquer problema como “ameaça existencial” – portanto, como questão de segurança. Esse processo é denominado securitização. A securitização, que pode ser compreendida como sinônimo aproximado de dramatização, ocorre quando um indivíduo ou organização com legitimidade discursiva (o ator securitizador) declara que um determinado elemento, seja concreto ou abstrato (o objeto referente) está sob ameaça existencial. Trata-se de um ato de fala (speech act)

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que, caso seja bem-sucedido, permitirá ao ator securitizador impor medidas emergenciais para enfrentar o problema e proteger o objeto referente. A securitização tende a ser autoritária, pois retira assuntos da esfera da política regular, onde é possível o debate de ideias, e os reposiciona no âmbito da segurança, no qual vigoram relações de coerção e de antagonismo no sentido schmittiano. Buzan e Wæver afirmam ser conceitualmente possível, e normativamente desejável, que um assunto deixe de ser tratado como questão de segurança e retorne ao mundo da política regular; a isso, denominam dessecuritização. Por meio do modelo da securitização, a Escola de Copenhague alargou vastamente o escopo de análise dos Estudos em Segurança Internacional, e inverteu as premissas tradicionais da pesquisa na disciplina: já não basta estudar as ameaças per se; é necessário compreender a construção discursiva das ameaças. É o que faremos na dissertação que ora se inicia. Nosso pressuposto, que será constantemente colocado à prova, afirma que os desafios transnacionais da Ásia Meridional somente são elevados ao patamar da “segurança” quando são designados como tal, por meio de processo de securitização. Como nem toda securitização é bemsucedida, é possível que importantes e desestabilizadores fenômenos não sejam tratados como questões de segurança na região. Nossas hipóteses de trabalho são as seguintes: a. Em razão de múltiplos fatores (contexto político interno e externo, estratégias discursivas utilizadas, papel dos atores funcionais, relações de poder vigentes e grau de aceitação da audiência, entre outros), certas securitizações, como a da Caxemira e a da proliferação de armas

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nucleares, serão bem-sucedidas na Ásia Meridional; mas outras, como a securitização da mudança climática, falharão. b. As dinâmicas de segurança da região não se limitam no âmbito estritamente militar. A raiz profunda da persistente insegurança na Ásia Meridional está nas contradições, em termos de identidade e de legitimidade política, entre Paquistão e Índia, entre Paquistão e Afeganistão, e no interior desses Estados. Este trabalho tem quatro objetivos primordiais: primeiro, aplicar empiricamente o modelo teórico da securitização às questões de segurança da Ásia Meridional, contribuindo para validar, em novo contexto, os conceitos da Escola de Copenhague, cuja agenda de pesquisa é excessivamente eurocêntrica; segundo, ampliar a literatura acadêmica brasileira, lamentavelmente escassa, sobre as Relações Internacionais da Ásia Meridional; terceiro, colaborar para disseminar o arcabouço teórico da Escola de Copenhague, ainda relativamente incógnito no Brasil3; quarto, e mais importante, auxiliar no embasamento da atuação diplomática brasileira junto aos três países que estudaremos. Interessa ao Brasil, que ambiciona tornar-se membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a melhor compreensão das dinâmicas securitárias da Ásia. Correndo o risco da redundância, relembremos a imensa relevância, para o Itamaraty, dos três Estados ora analisados. Seja em base bilateral ou no âmbito de blocos, coalizões e agrupamentos plurilaterais e multilaterais, como o IBAS, o BRICS, o BASIC, o G-4 do Conselho de Segurança, o G-20 Comercial ou o G-20 Financeiro, a 3

Entre as exceções relevantes, citemos TANNO, Grace. “A contribuição da Escola de Copenhague aos Estudos de Segurança Internacional”; GUEDES DUQUE, Marina. “O papel de síntese da Escola de Copenhague nos Estudos de Segurança Internacional”; RUDZIT, Gunther. “O debate teórico em segurança internacional: Mudanças frente ao terrorismo?”; SOARES MONTEIRO, José Cauby. “Estudos de Defesa e Teorias de Relações Internacionais”; e URT, João Nackle & PINHO, Alexandre Felipe. “Securitização e dessecuritização da Amazônia contemporânea”.

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Índia está firmemente consolidada como parceiro estratégico do Brasil; concentra, ademais, o quarto maior fluxo comercial brasileiro na Ásia. O Brasil também vem descobrindo novas avenidas de colaboração com o Paquistão, país nevrálgico das dinâmicas de segurança da Ásia, particularmente no que respeita ao incremento do comércio, à difusão cultural e à cooperação técnica – em 2011, a Agência Brasileira de Cooperação enviou sua primeira missão a Islamabade. Por fim, o Afeganistão, palco do mais longo e complexo conflito do Pós-Guerra Fria, tem se aproximado sistematicamente de nossa diplomacia: o Brasil participou das quatro mais recentes Conferências Internacionais sobre o país asiático (Londres, 2006; Paris, 2008; Haia, 2009; e Cabul, 2010), engendra promissora cooperação técnica bilateral em mineração e agricultura e, sobretudo, prepara-se para abrir Embaixada em Cabul, já autorizada por Decreto Executivo de 2010. Será a primeira representação diplomática latino-americana no Afeganistão. Assinale-se que o pressuposto epistemológico de nossa pesquisa, a necessidade de alargar – embora não indiscriminadamente – o conceito de segurança internacional, é condizente com a prática e os objetivos da política externa brasileira. O País propôs e presidiu debate temático no CSNU sobre a interdependência entre paz, segurança e desenvolvimento, em fevereiro de 2011, quando o Ministro de Estado Antonio de Aguiar Patriota sublinhou que estratégias puramente militares não serão suficientes para lidar com os conflitos contemporâneos.4 Índia e Paquistão, também presentes à reunião, expressaram apoio à perspectiva brasileira. Já em 2003, o então Chanceler Celso Amorim publicou artigo no qual afirmava que o Brasil se identifica com uma concepção cooperativa da segurança internacional, vê clara distinção entre segurança e defesa e é 4

CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS. Anais da 6479ª reunião, 11 de fevereiro de 2011, pp. 26-9.

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reticente quanto a doutrinas securitárias de cunho intervencionista ou totalizante, como o direito de ingerência, a responsabilidade de proteger e a segurança humana.5 O protagonismo brasileiro na criação da Comissão de Consolidação da Paz se coaduna com essas preocupações sobre a expansão conceitual do conceito de segurança. Em tese a respeito, escreve a Conselheira Gilda Motta Santos Neves:

O Brasil reconhece a premissa de que a insegurança coletiva é resultante da inter-relação entre todas as ameaças à pessoa humana, inclusive o risco de utilização de armas nucleares, químicas ou biológicas por terroristas, a relação de causa (não exclusiva) e efeito entre exclusão social e conflitos e entre o colapso de Estados e o terrorismo. Decorre que qualquer sistema de segurança coletiva deve reconhecer essa inter-relação e promover o tratamento sistêmico das ameaças.6

Sempre que possível e pertinente, nosso trabalho estabelecerá relações entre os processos de segurança analisados e a perspectiva diplomática brasileira.

A contar introdução e conclusão, esta dissertação tem seis capítulos. Após a presente introdução, o segundo capítulo apresentará os pressupostos teóricos e epistemológicos da Escola de Copenhague, e em particular os conceitos de securitização; da força sociopolítica do Estado; de superpotências, grandes potências e potências regionais; dos níveis de análise em segurança; dos setores de segurança; e dos Complexos Regionais de Segurança. Apresentaremos, ainda, as particularidades securitárias da Ásia Meridional e o papel sui generis do Afeganistão na conflitualidade

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AMORIM, Celso. Discursos, palestras e artigos do Chanceler Celso Amorim Volume I, pp. 233-244. NEVES, Gilda Motta Santos. Comissão das Nações Unidas para Consolidação da Paz – Perspectiva Brasileira, p. 34. 6

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regional, enquanto insulador entre os Complexos Regionais de Segurança da Ásia Meridional, da Pós-URSS e do Oriente Médio. O terceiro capítulo se debruçará sobre a nuclearização da Ásia Meridional. Especificamente, investigaremos como e por que Paquistão e Índia desenvolveram armas atômicas no contexto da intensa securitização recíproca que os une. Demonstraremos que a nuclearização sul-asiática foi assimétrica em termos de propósitos e significados: enquanto Nova Delhi, rompendo com o pacifismo gandhianonehruviano, obteve tais armamentos como parte de um projeto nacional de autossuficiência econômico-tecnológica e de prestígio político, Islamabade desenvolveu seu arsenal de maneira exclusivamente reativa e defensiva. Argumentaremos, ainda, que o imperativo nuclear decorreu das tensões e das contradições identitárias entre a Índia, inerentemente secular, e o Paquistão, de pertencimento confessional. A seguir, dedicaremos o quarto capítulo às múltiplas e complexas securitizações territoriais da Ásia Meridional, com destaque especial para a mais relevante e duradoura: o contencioso da Caxemira. Após apresentar sucintamente o histórico da disputa e comparar os processos de securitização da Caxemira praticados pelo Paquistão, pela Índia e pelos próprios caxemires, concluiremos que a intratável querela permanece na raiz da instabilidade e da conflitualidade no subcontinente indiano. Analisaremos, ainda, três outras contendas territoriais entre Nova Delhi e Islamabade: uma subordinada à questão caxemir (geleira de Siachen), outra já dessecuritizada (Rann de Kutch) e uma terceira que jamais chegou a ser efetivamente securitizada (estuário de Sir Creek). Por fim, examinaremos a fronteira contestada entre Paquistão e Afeganistão, a Linha Durand – que, no entanto, não é efetivamente tratada como problema existencial; logo, não é securitizada.

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Finalmente, o quinto capítulo discutirá uma lógica de securitização que emerge em certas regiões, como a Europa, mas ainda não vingou na Ásia Meridional: a representação dos problemas ambientais, sobretudo a mudança do clima, como problemas de segurança. Diversos obstáculos internos e externos, que estudaremos, impedem que o próprio conceito de segurança ambiental ganhe força na Índia, no Paquistão e no Afeganistão. Em arenas como o Conselho de Segurança, os Governos da região se recusam a aceitar que a mudança do clima seja designada ameaça à paz e à segurança internacional. O capítulo contemplará, ainda, considerações sobre o potencial de securitização das disputas em torno de recursos hídricos; a escassez de água pode vir a ser o primeiro tema de segurança ambiental reconhecido como tal pelos Estados da Ásia Meridional. O sexto capítulo sintetizará nossas conclusões e esboçará linhas de pesquisas que podem vir a ser desenvolvidas na esteira do presente trabalho. Entre volumes publicados, artigos acadêmicos, discursos, entrevistas e atos internacionais, alternamos fontes primárias e secundárias na elaboração deste trabalho. Para evitar “orientalismos” – na acepção de Edward Said – e visões preconcebidas, conferimos especial atenção a autores oriundos da Ásia Meridional, que compõem cerca de metade da literatura consultada. Os demais são primordialmente anglo-saxônicos, e brasileiros quando possível. Alguns esclarecimentos formais e metodológicos são cabíveis. O conceito de “Ásia Meridional” adotado neste trabalho difere da categorização geográfica adotada pelo Ministério das Relações Exteriores. Por motivos que serão extensamente discutidos no capítulo II, optamos por incluir no escopo geográfico da Ásia Meridional o Paquistão e, em uma categoria especial (“Estado insulador”) o

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Afeganistão – dois países que, segundo o atual Regimento Interno do Serviço Exterior, recaem na esfera de competência da Divisão da Ásia Central (DASC). Utilizaremos frequentemente o termo “subcontinente” como metonímia para a Ásia Meridional. Os demais Estados da Ásia Meridional não serão abordados, a não ser de forma passageira. Isso não significa que suas questões de segurança não sejam relevantes; tal escolha deve-se unicamente à compreensão de que a interdependência securitária regional é protagonizada por Afeganistão, Índia e Paquistão. À guisa de exemplo: diferentemente do contencioso da Caxemira, as recém-concluídas guerras civis no Nepal (1996-2006) e no Sri Lanka (1983-2009)7 surtiram efeito limitado para além dos Estados onde foram travadas. Embora o foco desta pesquisa seja a conflitualidade na Ásia Meridional contemporânea, será frequentemente necessário retornar a eventos de décadas passadas, sobretudo ao debater a nuclearização do subcontinente indiano ou a securitização da questão da Caxemira. Assim, não foi adotada limitação temporal estreita, que seria obstáculo desnecessário a nossa análise; tudo o que ocorreu na Ásia Meridional entre a descolonização (1947) e o presente (2011) nos interessa. Com a certeza de que não serão entrave à compreensão do leitor, mantivemos as citações longas na língua original, em nome da fidedignidade e do estilo. Pelos indispensáveis galicismos “identitário” e “securitário”, pedimos desculpas. Este trabalho adota as normas ortográficas e de acentuação previstas pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor desde 2009.

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A exceção foi o breve envolvimento militar da Índia no Sri Lanka, no final dos anos 1980, que acabou motivando o assassinato do ex-Primeiro Ministro Rajiv Gandhi, em 1991.

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A presente dissertação está intimamente ligada à experiência pessoal do autor como Chefe do Setor Político da Embaixada do Brasil em Islamabade, a partir do início de 2011. Diversas observações, ressalvas e percepções aqui apresentadas derivam da prática diplomática no Paquistão e de interações cotidianas com acadêmicos, jornalistas, militares, funcionários de organizações não-governamentais e membros do Corpo Diplomático residentes em Islamabade, que preferimos não nomear.

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II – AMEAÇAS EM CONSTRUÇÃO: A ESCOLA DE COPENHAGUE E O ARCABOUÇO TEÓRICO DA SECURITIZAÇÃO

“Erras pensando que esse fora o termo De tanta guerra que de crime alcunhas Mas que chamar nos praz guerra de glória.” (John Milton. O Paraíso Perdido)

A Escola de Copenhague e os Estudos Internacionais de Segurança Nos anos 1980, paralelamente ao surgimento do Construtivismo em Relações Internacionais8 por obra de Alexander Wendt, Nicholas Onuf, Ted Hopf, John Ruggie e outros, um grupo de pesquisadores do Instituto de Pesquisas para a Paz de Copenhague (COPRI) e da Escola de Economia de Londres (LSE) desenvolveu um pensamento autônomo e crítico sobre as questões de segurança. Conhecida como Escola de Copenhague, e em grande medida legatária da Escola Inglesa de Martin Wight, Hedley Bull e Andrew Hurrell, essa nova corrente teve seus alicerces lançados pelo britânico Barry Buzan, hoje docente da LSE, em People, States and Fear: the National Security Problem in International Relations (1983), provavelmente o livro mais influente do último quartel do século XX para a literatura de segurança. Na obra, Buzan proclamava a necessidade de estruturar intelectualmente um novo campo de pesquisa na disciplina das Relações Internacionais (RI): os Estudos de Segurança Internacional, ou ISS em inglês.9 Tratar-se-ia de alternativa mais abrangente

8

As premissas do Construtivismo em RI foram sintetizadas em WENDT, Alexander. “Anarchy is what states make of it: the social construction of power politics”. 9 Sobre a genealogia da Escola de Copenhague e dos ISS, ver BUZAN, Barry & HANSEN, Lene. The Evolution of International Security Studies.

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aos Estudos Estratégicos, nos quais havia claro predomínio dos temas estritamente militares, inclusive tecnologias de armamentos e doutrinas nucleares, e que terminavam por legitimar academicamente os interesses da política externa das principais potências.10 O principal parceiro de Buzan na Escola de Copenhague, cujo trabalho individual é significativamente mais próximo da epistemologia pós-estruturalista, é o dinamarquês Ole Wæver, idealizador do conceito de securitização, que balizará a presente pesquisa. Outros pesquisadores destacados do grupo são Jaap de Wilde, cujo foco de estudo é a segurança ambiental, e Lene Hansen, que se debruça principalmente sobre o feminismo em RI e sobre conflitos identitários nos Bálcãs. A pedra-de-toque da Escola de Copenhague é a convicção de que a segurança não existe per se, mas é fruto de construção social. A segurança é um discurso, não uma realidade objetiva. O termo “segurança” pode implicar significados muito distintos de acordo com seu contexto, com quem o enuncia e com quem é sua audiência. Trata-se, portanto, de ato de fala (speech act) rico em perspectivas e possibilidades. Em seu momento inicial, a Escola de Copenhague abraçou os pressupostos do Neorrealismo em RI, elaborados principalmente por Kenneth Waltz – como a epistemologia positivista e a crença na centralidade do Estado enquanto unidade analítica das Relações Internacionais, ambas esposadas por Barry Buzan em People, States and Fear. Desde então, conforme sublinhou Grace Tanno, a Escola vem se aproximando gradualmente das premissas do construtivismo, adotando a interpretação

10

BUZAN, Barry. People, States and Fear: the National Security Problem in International Relations.

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de discursos como método empírico preferencial e negando a existência de realidades apriorísticas em matéria de segurança internacional.11 A Escola de Copenhague surgiu no bojo de um importante debate teórico sobre a natureza da segurança internacional, nos anos 1980, opondo defensores de uma concepção “estreita” da segurança, tradicionalista e vinculada exclusivamente a temas político-militares, àqueles que propunham uma definição mais “ampla”. Marina Guedes Duque atribui à Escola um papel de síntese nesse debate, ao ocupar posição intermediária entre a corrente crítica, que defendia o indiscriminado alargamento conceitual da segurança, e a corrente tradicionalista, que se opunha a qualquer expansão desse conceito, em nome da coerência intelectual.12 No mesmo sentido, Karin Fierke salienta que a Escola de Copenhague trouxe mais nuance ao pensamento do Construtivismo em RI sobre segurança. As duas correntes compartilham a crença de que a segurança internacional resulta de um processo social intersubjetivo e suscetível de crítica ou transformação; contudo, Buzan e Wæver, ao contrário de certos construtivistas, também reconhecem a importância da história e da conotação tradicionais de segurança – isto é, realistas e neorrealistas – na produção dos discursos securitários.13 Como no Neorrealismo, adota-se o pressuposto de que o conceito de segurança está necessariamente ligado à sobrevivência. Nisso, a Escola de Copenhague diverge dos chamados Estudos Críticos de Segurança (às vezes rotulados Escola de Aberystwyth ou Escola Galesa), que aplicam as premissas do Construtivismo às últimas consequências, flertam com a epistemologia

11

TANNO, Grace. “A contribuição da Escola de Copenhague aos Estudos de Segurança Internacional”. GUEDES DUQUE, Marina. “O papel de síntese da Escola de Copenhague nos Estudos de Segurança Internacional”. 13 FIERKE, K. M. Critical Approaches to International Security, p. 99-103. 12

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do Pós-Modernismo e rejeitam quase todas as premissas do Realismo e do Neorrealismo em RI. Em suma, a Escola de Copenhague é inovadora, mas não iconoclasta. Isso foi essencial para lhe assegurar grande influência e respeitabilidade acadêmica. No decorrer deste capítulo, esboçaremos os principais conceitos por ela desenvolvidos, e que fornecerão o arcabouço analítico da presente dissertação.

Estados fortes e fracos, ameaças e vulnerabilidades A abordagem da Escola de Copenhague repousa sobre uma compreensão específica da natureza do Estado. Não satisfeito com a concepção tradicional weberiana, apegada às expressões burocrático-institucionais do Estado, Buzan propõe uma definição tripartite: o Estado é uma entidade territorial, política e societal. Assim, todo Estado possui uma base física (território, população e recursos), uma base ideática (o propósito do Estado: identidade, ideologia, nacionalismo, etc) e uma base institucional (o aparato estatal propriamente dito, em termos jurídicos).14 Cada um dos três elementos constitutivos do Estado é passível de ser representado como objeto de segurança: a base física pode sofrer invasões, bloqueios, bombardeios, fluxos humanos descontrolados, o emprego de armas de destruição em massa, etc; a base ideática pode ser desestabilizada ou deslegitimizada por cisões internas e separatismos ou pela falência de modelos ideológicos (como ocorreu com o

14

BUZAN, Barry. People, States and Fear, p. 71.

28

comunismo e, antes, com a monarquia absoluta europeia); e a base institucional é vulnerável a revoluções, anexações e guerras civis.15 Eventual assimetria entre tais fatores pode ser fonte de grande vulnerabilidade. Por exemplo, em certos Estados coloniais, autoritários e totalitários, a força da base institucional,

sobretudo

seus

órgãos

repressivos

e

coercitivos,

pode

ser

instrumentalizada para compensar a fraqueza da base ideática – pois o Estado não goza de legitimidade interna suficiente.16 Buzan chama a atenção para a possibilidade de problemas de segurança causados por contradições internas à base ideática do Estado, ou seja, à rationale do relacionamento entre governantes e governados. O autor estabelece distinção entre as nações-Estado, como Itália e Japão, nos quais a nação precede e legitima o Estado; os Estados-nação, como a Austrália e os países latino-americanos, nos quais a nação é claramente construção simbólica do Estado; as nações-Estado parciais, como as Coreias do Sul e do Norte, nos quais uma nação está dividida em dois ou mais Estados; e os Estados multinacionais, que congregam múltiplas nações. Esta última categoria é, então, didaticamente subdividida em Estados federativos, como o Canadá e a Iugoslávia sob Tito, nos quais há tolerância para o exercício de diferentes identidades; e os Estados imperiais, nos quais uma nacionalidade (russos na URSS e subsequentemente na Federação Russa, punjabis no Paquistão, chineses han na China) exerce hegemonia interna e procura impor coercitivamente um modelo de Estado-nação.17 Essa última categoria, em especial, acarreta vulnerabilidades que podem ser representadas como questões de “segurança nacional” pelos detentores da autoridade estatal.

15

Idem, pp. 74-92. Idem, pp. 83-4. 17 Idem, pp. 76-9. 16

29

Outra importante inovação de Buzan nesse aspecto é a tipologia que opõe Estados fortes a Estados fracos, mensurados em termos de coesão sociopolítica. Tal conceito não se confunde com as categorias de potências fortes e potências fracas, definidas por suas capacidades militares e econômicas.18 À guisa de exemplo: Áustria, Noruega e Dinamarca são potências fracas e Estados fortes, pois dispõem de escasso hard power, mas apresentam grande coesão entre Estado e sociedade e são quase imunes a questionamentos sobre a unidade nacional e a legitimidade estatal. Opostamente, Rússia, China e Paquistão são potências relativamente fortes, porém Estados fracos: detém considerável poder “bruto”, mas enfrentam separatismos, dissensos políticos e outras dificuldades domésticas. O autor enumera seis fenômenos que indicam baixa coesão sociopolítica, e portanto são típicos de Estados fracos: níveis elevados de violência política; a onipresença da polícia política; a presença de grande conflito sobre a ideologia que organizará o Estado; a ausência de uma identidade nacional coerente; a falta de uma hierarquia política clara; e o controle estatal da mídia.19 Atendo-nos apenas aos três países que nos propomos a analisar no presente estudo, dentre os fenômenos típicos de Estados fracos, é possível identificar níveis elevados de violência política (Afeganistão, Paquistão, esporadicamente Índia); grandes conflitos sobre a ideologia que organizará o Estado (Afeganistão, Paquistão, potencialmente Índia como consequência da questão da Caxemira); a ausência de uma identidade nacional coerente (Afeganistão e Paquistão); a falta de uma hierarquia política clara (Afeganistão, zonas tribais do Paquistão); e o controle estatal da mídia (Afeganistão sob os regimes comunista e talibã, Paquistão nos governos militares).

18 19

Ver a discussão sobre superpotências, grandes potências e potências regionais, mais adiante. Idem, pp. 92-5.

30

Como veremos repetidamente no decorrer deste trabalho, essa fraqueza – em termos de coesão sociopolítica – dos Estados da Ásia Meridional é fator crucial para compreender suas vulnerabilidades e seus respectivos processos de securitização.20 Em casos de extrema fraqueza estatal, quando a base ideática do Estado praticamente desaparece, os processos internos de securitização são distorcidos.21 No Líbano durante a guerra civil dos anos 1980 e 1990 e no Afeganistão desde 1979, o próprio Estado deixou de ser um objeto de referência plausível. “Segurança”, na prática, passou a ser a segurança de cristãos druzos e árabes xiitas, ou de tadjiques e hazaras, e não a do Estado libanês ou afegão. A acepção buzaniana dos Estados fracos não pode ser confundida com a categoria dos Estados falidos (ou falhos, ou colapsados), posteriormente elaborada por outros teóricos das Relações Internacionais, como Francis Fukuyama. O primeiro conceito é eminentemente sociológico, e envolve o grau intangível de coesão identitária e de legitimidade política estatal; o segundo é funcional, e diz respeito à capacidade objetiva do Estado em exercer a autoridade e manter a ordem em seu território. Se é verdade que Estados falidos quase sempre são fracos, a recíproca não é verdadeira, como demonstra o caso da União Soviética sob Gorbachev – um Estado muito fraco, mas certamente não falido. Para Barry Buzan, a insegurança decorre da combinação de ameaças e vulnerabilidades. O autor cita o exemplo didático da Polônia, que historicamente enfrenta ameaças externas (dois vizinhos poderosos e hostis) e possui vulnerabilidades internas – subdesenvolvimento, instabilidade política, pequeno tamanho e a ausência de fronteiras defensíveis. Se não houvesse ameaças (se Alemanha e Rússia não existissem), 20 21

Ver seção Securitização: a construção discursiva da segurança, a seguir. Idem, pp. 96-100.

31

a Polônia não seria insegura, apesar de suas vulnerabilidades; inversamente, se não houvesse vulnerabilidades (se a Polônia fosse mais estável e militarmente poderosa que seus vizinhos), também não haveria insegurança, em que pese a presença de ameaças.22 Via de regra, os Estados buscam minimizar suas vulnerabilidades e neutralizar ameaças internas e externas. No entanto, as vulnerabilidades específicas de cada Estado dependem, em certo grau, de sua força e de seu poder, conforme abaixo23: Coesão sociopolítica (“força”) do Estado

Potência do Estado

Fraca

Forte

Vulnerável à maior parte das

Mais vulnerável a ameaças

ameaças (Afeganistão, RD Congo)

militares (Dinamarca, Áustria)

Mais vulnerável a ameaças políticas

Pouco vulnerável à maior parte

(URSS, China)

das ameaças (França, Japão)

Fraca

Forte

Estados fracos são particularmente vulneráveis a ameaças de natureza política24, que desafiam suas bases ideáticas. Já potências fracas são suscetíveis a ameaças militares tradicionais, que colocam em xeque a base física do Estado. Quando um Estado forte também é potência forte, será afetado por poucas ameaças; inversamente, a combinação de fraqueza estatal e pouca potência será, previsivelmente, fonte de grande fragilidade ante todos os tipos de ameaça.

22

Idem, p. 104. Idem, p. 105. 24 Ver Os cinco setores da segurança, mais adiante. 23

32

Securitização: a construção discursiva da segurança A segurança pressupõe, necessariamente, ameaças à existência de algo – um conceito, uma estrutura, um valor, uma pessoa ou um objeto – que deve ser protegido. No entanto, a representação de um determinado tema, em detrimento de outros, como “problema de segurança” é artifício subjetivo e não objetivo. Nesse sentido, a mais influente contribuição metodológica da Escola de Copenhague é o conceito essencial de securitização, neologismo que designa a definição de um problema como “ameaça existencial, que requer medidas emergenciais e justifica ações fora do procedimento político”.25 Trata-se de uma forma extremada da politização, que é o ato de trazer determinado assunto para o debate público. A securitização é necessariamente praticada por meio de ato de fala (speech act), conceito herdado da teoria semiótica de John Austin, para quem a realidade depende de construções discursivas; o discurso é uma forma de ação, portanto dizer algo é fazer algo.26 A abordagem da securitização foi inicialmente desenvolvida por Ole Wæver, que, em 1995, assim apresentou seus fundamentos:

In naming a certain development a security problem, the “state” can claim a special right, one that will, in the final instance, always be defined by the state and its elites27 (...) Power holders can always try to use the instrument of securitization of an issue to gain control over it. By definition, something is a security problem when the elites declare it to be so. (…) With the help of language theory, we can regard “security” as a speech act. In this usage, security is not of interest as a sign that refers to something more real; the utterance itself is the act.28

25

BUZAN, Barry, WÆVER, Ole & DE WILDE, Jaap. Security: A New Framework for Analysis, p. 22. FIERKE, K. M. Op. cit., p. 104. 27 Destaques em itálico no original. 28 WÆVER, Ole. “Securitization and Desecuritization” in LIPSCHUTZ, Ronnie (org.). On Security, p. 54. 26

33

Wæver assinalou que seu modelo não era politicamente neutro: a securitização, em muitos casos, permitiria abusos de poder por parte de Governos, seja em nome da “segurança nacional” ou da sobrevivência de qualquer outro objeto supostamente ameaçado e que exija proteção urgente (soberania política, integridade territorial, identidade nacional, bem-estar social, proteção dos ecossistemas, manutenção da ordem política vigente, etc). Trata-se de processo potencialmente violento e autoritário, especialmente em sociedades não-democráticas, nas quais o público é incapaz de reagir ao speech act securitizador imposto pelo Estado. Para conter a agenda potencialmente retrógrada da securitização, seria desejável promover a dessecuritização (que aqui é sinônimo de repolitização) dos problemas já securitizados, na medida do possível.29 “Less security, more politics” é um dos lemas normativos de Ole Wæver. Em uma frase, a securitização é o processo de designar um desafio como ameaça; por sua vez, a dessecuritização atua no sentido oposto. Em 1998, em obra conjunta com Barry Buzan e Jaap de Wilde (Security: A New Framework for Analysis), Wæver refinou seu modelo teórico. Os autores harmonizaram o conceito de securitização com a perspectiva multissetorial da segurança, antes elaborada por Buzan, e indicaram que a securitização pode ser empreendida por diversos agentes, não apenas por Estados. Manteve-se, porém, a ênfase na securitização como um speech act, o que implica situar conceitualmente a “segurança” como uma construção social e discursiva. O modelo teórico da securitização comporta três elementos principais: um objeto referente, cuja sobrevivência é tida como fundamental; um ator securitizador, que

29

Idem, pp. 75-6.

34

anuncia que o objeto referente está sob grave ameaça; e o conjunto dos atores funcionais que influenciam, positiva ou negativamente, a dinâmica do setor.30 O objeto referente é o epicentro do processo de securitização. Trata-se do elemento material ou simbólico cuja sobrevivência, de acordo com o ator securitizador, está em risco. Pode ser, por exemplo, a integridade territorial do país (segurança militar), a soberania jurídica e a legitimidade política do Estado (segurança política), a sobrevivência da indústria nacional ou o nível de emprego da população (segurança econômica), a cultura e a identidade nacionais (segurança societal), o equilíbrio climático (segurança ambiental) e assim por diante. Está implícito que o objeto referente merece ser protegido. Um único ato de securitização pode abarcar múltiplos objetos referentes. O ator securitizador é o indivíduo ou grupo que desempenha o speech act da securitização.31 No mais das vezes, são agentes do Estado: líderes governamentais ou partidários, burocratas, diplomatas ou militares. Porém, em algumas situações, a categoria pode incluir representantes de interesses setoriais, como lobbistas, membros de organizações não-governamentais, líderes empresariais ou sindicais e até a comunidade acadêmica. O ator securitizador, evidentemente, não fala sozinho: ele se dirige à audiência – geralmente a opinião pública doméstica ou internacional – que deverá aceitar, ou recusar, seu discurso de segurança. Por fim, os atores funcionais influenciam as dinâmicas do processo de securitização, mas não são objetos referentes nem atores securitizadores.32 Assim, em um processo de paz complexo, como o da Palestina ou o do Afeganistão, os múltiplos stakeholders envolvidos – mediadores, Estados da região, as Nações Unidas e a comunidade de doadores, entre outros – podem ser considerados atores funcionais. 30

BUZAN, Barry, WÆVER, Ole & DE WILDE, Jaap. Op. cit., p. 36. Idem, p. 40. 32 Idem, p. 36. 31

35

Um exemplo simples ilustra a teoria de Wæver. Quando um Estado decide ir à guerra, como os Estados Unidos contra o Iraque em 2003, há necessariamente um ator securitizador (no caso, o Governo de George W. Bush), que anuncia a sua audiência (a opinião pública norte-americana) a existência de um ou mais objetos referentes cuja sobrevivência esteja ameaçada (a estabilidade do Oriente Médio, a liberdade do povo iraquiano e a não-proliferação de armas de destruição em massa) e decide tomar medidas extraordinárias (uma invasão militar) para protegê-los. Numerosos atores funcionais, como o Conselho de Segurança das Nações Unidas e os Estados vizinhos ao Iraque, poderiam facilitar ou dificultar tal processo de securitização, como de fato ocorreu. Em um exemplo menos convencional, quando a migração internacional é designada “ameaça à segurança (inter)nacional” por partidos políticos de extremadireita na Europa, os atores securitizadores são as lideranças partidárias, o objeto referente é a identidade nacional e os atores funcionais são a imprensa local, as associações de imigrantes e as ONGs de defesa dos direitos humanos, entre outros. A dinâmica de securitização não deve ser compreendida como processo monolítico. Há um continuum entre não-politização, politização e securitização de um determinado problema, sintetizado da seguinte forma por Ralf Emmers:33

33

EMMERS, Ralf. “Securitization” in COLLINS, Alan (org.). Contemporary Security Studies, p. 138.

36

Não-politização •O Estado não lida com o problema •O problema não figura no debate público

Politização

Securitização

•Lida-se com o problema por meio do sistema político regular •É parte da "política pública, requerendo decisão governamental e alocações de recursos ou, mais raramente, alguma forma de governança" (BUZAN)

•O problema é retratado como uma questão de segurança por meio de um ato securitizador •Um ator securitizador apresenta um problema (antes politizado) como uma ameaça existencial a um objeto referente

Wæver assinala a presença de três componentes em um processo bem-sucedido de securitização: ameaça existencial, ação emergencial (violação das regras políticas normais) e o efeito que essa violação de regras terá sobre as relações entre unidades.34 Ralf Emmers acrescenta que o processo de securitização tem duas etapas, que poderíamos chamar de designação e convencimento. No primeiro momento, um ator securitizador emprega um speech act para retratar um determinado processo, entidade ou pessoa como ameaça existencial que paira sobre um objeto referente; na segunda etapa, o ator securitizador precisa persuadir sua audiência (opinião pública, elites decisórias, etc) de que existe, de fato, ameaça à existência do objeto referente. Caso a audiência esteja de acordo, ou seja simplesmente seja incapaz de opor, o ator securitizador poderá impor medidas extraordinárias para proteger o objeto referente.35 Como identificou Michael Williams, a abordagem da securitização tem suas raízes intelectuais no Construtivismo em RI (Wendt) e na Semiótica (Austin e Searle),

34 35

BUZAN, Barry, WÆVER, Ole & DE WILDE, Jaap. Security: A New Framework for Analysis, p. 26. EMMERS, Ralf. Op. cit., p. 139.

37

mas também no pensamento de Carl Schmitt em Ciências Políticas. O foco de Wæver nas “ameaças existenciais” como essência da segurança ecoa as visões de Schmitt sobre o caráter da “política” como arena definida pela exclusão e pela inimizade. Se para Schmitt a política comporta necessariamente relações de conflito e antagonismo, para a Escola de Copenhague o mesmo se dá na esfera da segurança. Em ambos os casos, o comportamento dos atores é balizado pelo imperativo da sobrevivência e não se submete a limitações de cunho ético-moral. 36 Para o escopo de nosso trabalho, é importante ressalvar que a securitização não indica,

automaticamente,

presença

de

conflito

aberto;

no

sentido

inverso,

dessecuritização não é sinônimo de resolução de disputas. Nem todo contencioso é securitizado pelos atores envolvidos, como demonstra o impasse sino-indiano pela posse do território montanhoso de Aksai Chin, que não é representado como ameaça existencial e portanto permanece no campo da política, não da segurança. Buzan e Wæver apontam haver grande diversidade de reações possíveis a disputas internacionais, de acordo com o contexto, a conveniência e a capacidade dos atores. Procuraremos corroborar tal hipótese na presente dissertação.

Críticas ao modelo da securitização Embora

tenha

logrado

grande

repercussão

no

campo

das

Relações

Internacionais, sobretudo na Europa, a abordagem da securitização desenvolvida por Ole Wæver não é consensual, e tem enfrentado críticas de naturezas diversas.

36

WILLIAMS, Michael. “Words, Images, Enemies: Securitization and International Politics”, pp. 515521.

38

Thierry Balzacq reconhece a grande utilidade analítica do modelo de Wæver, mas critica seu foco exagerado no estudo de atores securitizadores, objetos referentes e atores funcionais. A Escola de Copenhague negligenciaria outros três elementos que determinam o sucesso ou o fracasso dos processos de securitização: a audiência, o contexto e as relações de poder vigentes entre agente e sistema. 37 Para contemplar essas categorias, o autor propõe um “modelo sociológico” da securitização, em contraste com o “modelo filosófico” de Buzan e Wæver.38 Balzacq também identifica uma “pervasiva ambiguidade” no âmago da abordagem da securitização: nela, a segurança é interpretada, ao mesmo tempo e contraditoriamente, como atividade autorreferente e como processo intersubjetivo. Ralf Emmers acredita haver lacuna analítica entre a grande variedade dos atores securitizadores e a pouca diversidade das “medidas emergenciais” que tais atores poderiam adotar como consequência de uma securitização bem-sucedida. Se é fácil antever quais ações (presumivelmente coercitivas) seriam tomadas por um Estado securitizador, não está claro que tipo de medida emergencial poderia ser imposta por uma ONG que procurasse securitizar, por exemplo, a mudança do clima. Em comentário de teor normativo, Navnita Chadha Behera considera que o modelo da Escola de Copenhague não é suficientemente transformador, e que analistas não deveriam apenas identificar casos de securitização, mas sim questionar o modo de produção dos discursos securitários, que são discursos de poder.39 Olaf Knudsen acusa a Escola de Copenhague de deslocar o foco analítico dos Estudos de Segurança Internacional da “política realmente existente” para a “política 37

BALZACQ, Thierry. “The Three Faces of Securitization: Political Agency, Audience, and Context”, p. 176-9. 38 BALZACQ Thierry. “Constructivism and Securitization Studies” in DUNN CAVELTY, Myriam & MAUER, Victor, Routledge Handbook of Security Studies. 39 CHADHA BEHERA, Navnita. “Discourses on Security: South Asian Perspectives”, p. 24.

39

imaginada”. O conceito de securitização, em especial, superestimaria a importância do agenda-setting em matéria de segurança.40 Em crítica ainda mais pungente, Mely Caballero-Anthony et alii salientam que o conceito de securitização tende a ser eurocêntrico.41 Seus antecedentes históricos e culturais são pertinentes a um modelo específico de sociedade, o europeu. O estudo de caso específico que Ole Wæver desenvolveu ao criar a teoria, em meados dos anos 1990, dizia respeito à securitização da migração na Europa. O eurocentrismo de tal modelo teórico se reflete em termos de produção empírica: nos anos 1990, 36% dos documentos de trabalho da Escola de Copenhague foram dedicados a temas europeus, 30% à teoria e apenas 23% à empiria relativa aos demais continentes.42 Justamente para alargar o horizonte empírico do modelo da securitização, Mely Caballero-Anthony et alii editaram um volume dedicado ao estudo de ameaças nãotradicionais à segurança na Ásia. O presente trabalho tem o mesmo objetivo.

Superpotências, grandes potências e potências regionais Um dos principais pontos de convergência entre a Escola de Copenhague e o Neorrealismo em Relações Internacionais é a atenção que ambas as tradições dedicam ao estudo dos graus de polaridade (ou seja, distribuição de poder) do sistema internacional. Há, no entanto, uma distinção crucial. Para os neorrealistas de matriz waltziana, o debate sobre unipolaridade/bipolaridade/multipolaridade é absolutamente central e determinante, pois diz respeito à configuração e à estabilidade do sistema; em

40

KNUDSEN, Olaf. “Post-Copenhagen Security Studies: Desecuritizing Securitization”, pp. 355-368. CABALLERO-ANTHONY, Mely, EMMERS, Ralf & ACHARYA, Amitav. Non-Traditional Security in Asia: Dilemmas in Securitisation, pp. 5-6. 42 TANNO, Grace. Op. cit., p. 53. 41

40

outras palavras, compreender a polaridade é um fim em si. Já para Copenhague, a análise da polaridade é apenas um meio: serve, essencialmente, para compreender a lógica das interações entre os Complexos Regionais de Segurança e no interior deles, como veremos a seguir. Buzan e Wæver estabelecem distinção crucial entre superpotências, grandes potências e potências regionais. Superpotências, por definição, têm atuação global; detém aparatos político-militares de primeira linha e o poder econômico para sustentálos; no plano discursivo, reivindicam o status de superpotência, são reconhecidas como tais pelos demais atores e têm a capacidade de ditar os valores “universais” da sociedade internacional, o que lhes confere ampla legitimidade; mais importante, superpotências são ativas nos processos de securitização e dessecuritização em todas (ou quase todas) as regiões do planeta.43 Grandes potências, em contraste, não têm capacidade global de atuação, e não necessariamente possuem grandes capabilities em todas as esferas tradicionais (política, militar e econômica) de poder. Dois elementos distinguem grandes potências de potências regionais: a capacidade de influenciar as dinâmicas de segurança de mais de uma região – e não apenas na própria – e considerações sobre as distribuições atuais e futuras de poder. Em outras palavras, um Estado será tratado como grande potência caso tenha o potencial de se tornar, a curto ou médio prazo, uma superpotência.44 Por fim, potências regionais são os pólos de poder no interior de cada Complexo Regional de Segurança – conceito que estudaremos a seguir. São capazes de moldar as

43 44

BUZAN, Barry e WÆVER, Ole. Regions and Powers, pp. 30-34. Idem, pp. 35-6.

41

dinâmicas securitárias das regiões em que se situam, mas dificilmente projetam poder para alhures.45 Escrevendo em 2003, Buzan e Wæver identificam somente uma superpotência – os Estados Unidos – e quatro grandes potências: China, Rússia, Japão e União Europeia (ou “UE/França/Reino Unido/Alemanha”, que se comportam como um ator único quanto a certos temas, mas não todos). Numerosas potências regionais, como Brasil, Índia, África do Sul, Egito, Irã e Nigéria, completariam o quadro. Os autores resumem, assim, a polaridade do sistema internacional no modelo “1+4”46, fórmula que ecoa o célebre conceito de “unimultipolaridade” desenvolvido por Samuel Huntington.47 Quase uma década mais tarde, conforme se consolida a ascensão da influência dos BRICS em todas as esferas da agenda internacional – segurança, mudança do clima, reforma das instituições de Bretton Woods, etc – , o modelo “1+4” já parece algo anacrônico, ao não contemplar, por exemplo, Brasil e Índia. Mas Buzan e Wæver já admitiam que a configuração do poder no sistema internacional é cambiante, e que os padrões de polaridade evoluem. Os autores anteviram, inclusive, a possível emergência de um modelo “0+x”: caso se confirme o presente declínio relativo dos Estados Unidos, adviria um mundo sem superpotências, mas com número considerável de grandes potências.48 Tal hipótese ganha força na literatura de Relações Internacionais desde a crise econômica de 2008, o que se reflete nos recentes conceitos de “apolaridade”, de Bertrand Badie49, ou “não-polaridade”, para Richard Haass50 – que suplantaram, até certo ponto, termos populares para se referir à supremacia norte-americana no imediato

45

Idem, p. 37. Idem, 27-39. 47 HUNTINGTON, Samuel. “The Lonely Superpower”, pp. 35-6. 48 BUZAN, Barry e WÆVER, Ole. Regions and Powers, pp. 37-9. 49 BADIE, Bertrand. La diplomatie de connivence: Les dérives oligarchiques du système international. 50 HAASS, Richard. “The Age of Nonpolarity”. 46

42

pós-Guerra Fria, como “momento unipolar” (Charles Krauthammer)51 e “hiperpotência” (Hubert Védrine)52.

Os quatro níveis de análise da segurança A Escola de Copenhague adota o pluralismo dos níveis de análise. Em contraste com o Neorrealismo, que basicamente se preocupa com a interação entre Estados e o sistema internacional, Buzan considera que existem quatro níveis relevantes para os Estudos de Segurança Internacional, e que cada um contempla uma grande variedade de atores securitizadores, objetos referentes, atores funcionais, agendas e dinâmicas. O mais elevado nível de análise é o global, ou sistêmico, no qual operam os diversos padrões (ou culturas) de anarquia do sistema internacional – que Alexander Wendt classificou como hobbesianos (inimizade; normas impostas pela coerção), lockeanos (competição; normas adotadas por cálculos de custo-benefício) ou kantianos (cooperação; normas internalizadas pela legitimidade)53, mas que Buzan prefere designar anarquias imaturas (instabilidade endêmica e fragmentação política) ou anarquias maduras (estabilidade e unidade).54 Além de superpotências e grandes potências, neste nível atuam organizações internacionais de alcance universal, a exemplo de ONU e OMC. Os objetos referentes têm importância planetária, como a não-proliferação nuclear, o controle da mudança climática, o combate à pobreza em escala mundial e a luta global contra o terrorismo. No nível sistêmico, é possível a macrossecuritização de determinados temas, hipótese que será analisada mais adiante.

51

KRAUTHAMMER, Charles. “The Unipolar Moment”. VÉDRINE, Hubert. Face à l'hyperpuissance: textes et discours. 53 WENDT, Alexander. Social Theory of International Politics, pp. 246-312. 54 BUZAN, Barry. People, States and Fear, pp. 148-152. 52

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O segundo nível, ao qual a Escola de Copenhague dedica menos atenção, é o subssistêmico, que pode ou não ser interregional. Convivem, neste patamar, objetos referentes, ameaças e processos de securitização relevantes para duas ou mais regiões contíguas (como o tráfico de opiáceos, que emana do Afeganistão e afeta Ásia Central, Ásia Meridional, Ásia Oriental e Oriente Médio), quando o nível subssistêmico atua como realidade geográfica (interregional)55; já na variante não-geográfica (nãoregional)56, objetos referentes e ameaças estão dispersos fisicamente – envolvem diversas regiões não-contíguas, mas não chegam a ser globais, a exemplo da pirataria no Oceano Índico, que prejudica Estados tão díspares quanto Somália e Indonésia. Além de superpotências, grandes potências e Estados da área, o nível subssistêmico é protagonizado por instituições regionais e interregionais (União Africana, CEI, OTAN, UNASUL), para as dinâmicas geograficamente coesas, ou por organizações de interesse comum (OPEP, OCDE, Movimento dos Não-Alinhados), no caso das dinâmicas geograficamente dispersas, portanto não-regionais. O terceiro nível de análise é o regional. Trata-se do mais relevante patamar das dinâmicas de segurança internacional no pós-Guerra Fria, segundo Buzan e Wæver, que dedicaram um volume de fôlego (Regions and Powers, de 2003) exclusivamente ao tratamento conceitual e empírico do assunto.57 Admitindo que a segurança internacional permanece, grosso modo, territorializada e dependente da geografia, e que ameaças securitárias são mais intensas quando são espacialmente concentradas, os autores situam a maioria dos processos de securitização no nível regional.

55

BUZAN, Barry & WÆVER, Ole. Regions and Powers, pp. 182-5. BUZAN, Barry, WÆVER, Ole & DE WILDE, Jaap. Security: A New Framework for Analysis, pp. 164-6. 57 Ver a descrição do conceito seminal de Complexo Regional de Segurança, mais adiante. 56

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A Escola de Copenhague se associa, portanto, à corrente regionalista dos Estudos de Segurança Internacional, em contraposição à perspectiva neorrealista – que se apega à interação entre Estados (unidades) e o sistema internacional, sem patamares intermediários – e à corrente liberal-globalista, cuja ênfase na globalização e na desterritorialização da segurança é, para Buzan e Wæver, exagerada.58 Já em 1983, Buzan apontou a “região” – definida como o espaço no qual “um subsistema significativo de relações de segurança existe entre um conjunto de Estados geograficamente próximos” – como arena principal das análises e da prática da segurança internacional.

59

Nas décadas seguintes, o autor tornou a acepção menos

“estadocêntrica” para permitir maior pluralismo, mas manteve os Estados como principais atores e unidades de análise. O último nível de análise é o doméstico, ou local, no qual operam as dinâmicas subnacionais de securitização. Há, aqui, grande diversidade de atores securitizadores e atores funcionais que convivem sob a égide do Estado, inclusive firmas, organizações não-governamentais, entes políticos subnacionais, a mídia, partidos políticos, sindicatos e associações religiosas, entre outros. No nível doméstico, a principal dinâmica diz respeito à coesão sociopolítica do Estado, o que determina, como visto, a “força” do Estado na acepção buzaniana, e afeta diretamente o grau de violência política interna.60 No arcabouço conceitual da Escolha de Copenhague, não há um patamar específico – seria o quinto – para os indivíduos. Barry Buzan, forte crítico do conceito “reducionista e idealista”61 de segurança humana, não considera que o indivíduo constitua nível de análise ou objeto referente válido para os Estudos de Segurança

58

BUZAN, Barry & WÆVER, Ole. Regions and Powers, pp. 6-13. BUZAN, Barry. People, States and Fear, p. 158. 60 Idem, p. 185. 61 BUZAN, Barry, “A Reductionist, Idealistic Notion that Adds Little Analytical Value”, p. 369. 59

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Internacional, pois isso causaria confusão epistemológica com outra disciplina, a dos Direitos Humanos. Após reiterar que a segurança internacional trata exclusivamente das interações entre coletividades sociais, escreve: While a moral case for making individuals the ultimate referent object can be constructed, the cost to be paid is loss of analytical purchase on collective actors both as the main agents of security provision and as possessors of a claim to survival in their own right. Individuals are not free standing, but only take their meaning from the societies in which they operate: they are not some kind of bottom line to which all else can or should be reduced or subordinated. 62

A respeito, Rita Floyd acrescenta não ser possível comparar os objetivos da Escola de Copenhague (cujo modelo de securitização tem grande utilidade analítica, mas é limitado em termos normativos) e da teoria da segurança humana – uma abordagem essencialmente normativa, de pouca relevância analítica. Na realidade, os próprios estudiosos da segurança humana, ao designar como “segurança” qualquer ameaça à integridade física ou ao bem-estar dos indivíduos, desempenham um ato de securitização.63

Os cinco setores da segurança De maneira coerente com sua defesa do alargamento do conceito de segurança internacional, já em 1983 Barry Buzan escrevia que a segurança é constituída por cinco setores, cada um envolvendo um conjunto particular de interações – a saber, o militar, o político, o econômico, o societal e o ambiental. Essa perspectiva multissetorial seria

62

Idem, p. 370. FLOYD, Rita. “Human Security and the Copenhagen School’s Securitization Approach: Conceptualizing Human Security as a Securitizing Move”, pp. 45-6.

63

46

refinada quinze anos mais tarde, em Security: A New Framework for Analysis, para tornar-se menos “estadocêntrica” do que fora no início. Na definição mais recente de Buzan et alii, o setor militar, que corresponde à arena tradicional da segurança internacional, diz respeito a relações de coerção e de força; o setor político envolve autoridade, reconhecimento e status de governo; o setor econômico abrange dinâmicas de comércio, produção e finanças; o setor societal (e não “social”) respeita à interação entre identidades coletivas; e o setor ambiental aborda relacionamentos entre a atividade humana e a biosfera global.64 Cada setor comporta um conjunto específico de objetos referentes, atores securitizadores, atores funcionais, dinâmicas, agendas, ameaças e vulnerabilidades. No setor militar, em que a lógica da securitização é mais institucionalizada, o Estado (com sua integridade territorial e sua unidade política) é o objeto referente principal, mas pode ser substituído por entidades não-estatais (nações, tribos, etnias, guerrilhas) em condições de separatismo ou guerra civil. Espera-se que o ator securitizador também seja o Estado, por meio de seus agentes autorizados; porém, em certas circunstâncias, tal papel pode ser desempenhado por dirigentes de organizações internacionais ou alianças militares, como os Secretários-Gerais da ONU e da OTAN. Entre os atores funcionais capazes de influenciar o processo de securitização militar, estão as burocracias nacionais de defesa, Chancelarias, serviços de inteligência, indústrias bélicas, companhias privadas de segurança e outras instituições vinculadas à proteção do Estado. A lógica de ameaças e vulnerabilidades depende primariamente da interrelação entre capacidades militares e padrões históricos de amizade ou inimizade; quando o diálogo entre dois Estados for inamistoso e um deles (ou ambos) detiver

64

BUZAN, Barry, WÆVER, Ole & DE WILDE, Jaap. Security: A New Framework for Analysis, pp. 6-7.

47

capacidade militar ofensiva considerável, poderá haver securitização do relacionamento com o rival. Ao asseverar que poucos Estados têm a capacidade de exercer presença militar global e que ameaças militares, normalmente subordinadas à geografia, são mais eficazes em espaços contíguos, Buzan identifica a mais importante dinâmica do setor militar: o regionalismo. A consequência, conforme estudaremos posteriormente, é a centralidade dos Complexos Regionais de Segurança para a Escola de Copenhague.65 Já no setor ambiental, no qual o discurso de securitização é muito mais recente66, há maior variedade de atores securitizadores: inter alia, Estados, organizações nãogovernamentais, agências das Nações Unidas e a comunidade científico-epistêmica global, por meio de arranjos como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Buzan et alii ressaltam que o objeto referente do setor ambiental de segurança não é a natureza em si, mas sim a própria experiência humana, ou seja, a sobrevivência da “civilização”. Entre os atores funcionais que influenciam a segurança ambiental, estão as indústrias e demais agentes econômicos potencialmente poluentes, como siderúrgicas, mineradoras, petrolíferas e centrais nucleares. Há três categorias de ameaças ambientais: as não-antropogênicas (vulcões, terremotos), as antropogênicas que não representam ameaça existencial à humanidade (como o esgotamento de recursos minerais) e as antropogênicas que podem representar ameaça existencial, como a mudança climática, e que são passíveis de securitização. A dinâmica principal deste setor é a interação entre as agendas científica e política do meio ambiente; em outras palavras, é preciso verificar se os riscos ecológicos identificados pela comunidade científica serão politizados, ou mesmo securitizados, pelos governantes. Como os

65

Idem, pp. 49-70. Para Buzan et alii, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Estocolmo, 1972) é o marco inicial da disseminação do discurso de securitização do setor ambiental.

66

48

fenômenos que afetam o meio ambiente são geralmente de alcance global, neste setor predomina o nível sistêmico de análise.67 O terceiro setor de segurança, o econômico, contém uma contradição inerente: em um mercado capitalista, é necessário que os atores econômicos sintam certo grau de insegurança, ou não serão eficientes. Não obstante, é possível identificar uma ampla gama de objetos referentes (indivíduos, classes no discurso marxista, Estados, regimes de liberalização comercial, organizações multilaterais como a OMC, ou o próprio mercado global – mas não firmas específicas, que podem falir sem afetar a estabilidade de uma economia capitalista), cuja sobrevivência econômica poderia ser questionada por ameaças como crises sistêmicas, insolvências generalizadas ou catástrofes ambientais.

Autoridades

governamentais,

lideranças

sub-nacionais

(sindicatos,

federações patronais, etc), consultorias financeiras internacionais e representantes de organizações multilaterais – FMI sobretudo – podem exercer o papel de ator securitizador ou de ator funcional no processo de securitização68 econômica. De maneira análoga ao setor ambiental, o nível de análise predominante no setor econômico é o sistêmico, graças à interdependência dos mercados globais. O sucesso relativo de iniciativas de integração econômico-comercial regional, como Mercosul, NAFTA e União Europeia, salientou o peso também considerável do nível regional.69 O setor societal de segurança confere centralidade analítica à nação, e não ao Estado. Enquanto “comunidade política imaginada, soberana e limitada”, na definição de Benedict Anderson70, a nação apenas sobrevive como tal se preservar sua identidade

67

Idem, pp. 71-93. Não confundir o conceito de Buzan e Wæver com a prática financeira, também designada securitização, de converter ativos financeiros em títulos negociáveis no mercado de capitais. Neste trabalho, empregaremos o termo “securitização” exclusivamente em sua acepção ancorada nas Relações Internacionais. 69 Ibidem, pp. 95-117. 70 ANDERSON, Benedict. Imagined Communities, p. 5-7. 68

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distinta. Logo, identidades coletivas – nações, tribos, clãs, religiões e etnias – são, por excelência, os objetos referentes do setor societal. Buzan et alii identificam três categorias da agenda de segurança societal: migrações, competições horizontais (entre identidades) e competições verticais (uma macro-identidade, como “europeu” ou “muçulmano”, pode enfraquecer identidades nacionais, e vice-versa). Fenômenos que coloquem em xeque a sobrevivência de identidades coletivas – entre outros, a homogeneização cultural, a ascensão de nacionalismos ou xenofobias, fluxos maciços de migrantes ou refugiados e tentativas de assimilação linguística – podem ser designados como ameaças pelos atores securitizadores do setor societal, que incluem representantes estatais, autoridades religiosas, líderes nacionalistas e a imprensa. Uma vez que a competição identitária é especialmente forte entre vizinhos próximos, como sérvios e croatas ou judeus e árabes, o nível regional de análise prepondera no setor societal de segurança.71 Por fim, o setor político, embora dialogue com todos os demais, diz respeito especificamente à estabilidade organizacional das unidades políticas. Trata-se do mais “estadocêntrico” dos cinco setores de segurança: o principal objeto referente é a soberania estatal, e as ameaças são os processos que comprometam a base ideática do Estado, como a perda de seu reconhecimento externo, a erosão de sua legitimidade interna, o enfraquecimento de sua autoridade e o desgaste de sua ideologia organizadora. O ator securitizador quase sempre é o Governo, que normalmente tem legitimidade discursiva para representar o Estado, embora a tarefa possa ser compartilhada com partidos políticos e organizações afins. Por lidar exclusivamente com a sobrevivência ideática da unidade estatal, e não com preferências partidárias ou programáticas, a segurança política (political security) não se confunde com a política

71

BUZAN, Barry, WÆVER, Ole & DE WILDE, Jaap. Op. cit. pp. 119-140.

50

(politics) propriamente dita ou com a política pública (policy) – estas últimas estão situadas na arena da politização e não da securitização; do diálogo ordinário e não das medidas de exceção. Como visto anteriormente, Estados cujo nível de coesão sociopolítica seja baixo, portanto “fracos” na acepção buzaniana, são particularmente vulneráveis a ameaças de segurança política. O mais importante nível de análise para o setor político é o regional, pois as mais agudas incompatibilidades entre legitimidades estatais (Índia versus Paquistão, israelenses contra palestinos, as duas Coreias) tendem a ocorrer entre vizinhos imediatos.72 Ao entrecruzar os quatro níveis de análise com os cinco setores da segurança, Buzan et alii elaboraram a tabela didática a seguir, na qual a quantidade de estrelas indica a intensidade dos processos de securitização em cada patamar73:

Setores de segurança

Níveis de análise

Militar

Ambiental Econômico

Societal

Político

Global/sistêmico











Subssistêmico











Regional







Doméstico/local







  



Conforme indica a tabela, no setor militar a securitização é predominantemente regional; no setor ambiental, ameaças são securitizadas principalmente nos dois extremos, os níveis global e doméstico; no setor econômico, a securitização é 72 73

Idem, pp. 141-162. Ibidem, p. 165.

51

essencialmente global; por fim, nos setores societal e político, o nível dominante é o regional. Confirma-se, assim, a preferência regionalista da Escola de Copenhague.

A presente dissertação analisará, no contexto específico da Ásia Meridional contemporânea, a securitização (ou não) de três categorias de ameaças que perpassam todos os cinco setores de segurança identificados pela Escola de Copenhague: a proliferação de armas nucleares (setor militar explicitamente, e setores político e societal sob a superfície), disputas territoriais (setores militar, político e societal) e a mudança climática (setores ambiental e econômico).

A macrossecuritização e o Conselho de Segurança Mais recentemente, em 2006, Barry Buzan desenvolveu o conceito de macrossecuritização, que se refere a processos de securitização no nível sistêmico e que resulta da construção de objetos referentes de interesse universal, como o meio ambiente planetário ou a civilização humana; ou de ameaças de impacto global, como o terrorismo e determinadas pandemias. O autor aponta o exemplo da Guerra Fria, cujo objeto referente era nada menos que o futuro sociopolítico da humanidade. Macrossecuritizações são uma relativa novidade histórica, de acordo com Buzan, pois dependem da difusão bem-sucedida de ideologias universalistas e adotam o pressuposto de que a humanidade tem um destino comum. A frequência desse fenômeno tende a aumentar em decorrência da globalização. A “Guerra ao Terror” empreendida pelos EUA desde 2001, alardeada – sobretudo em seus primeiros anos74 – como combate em

74

Embora o controverso termo “Guerra ao Terror” tenha sido abandonado pelo Executivo norteamericano após a posse de Barack Obama, o discurso universalista do contraterrorismo continua a ser

52

escala global pela sobrevivência da civilização, é exemplo contemporâneo de macrossecuritização, ainda que sua perenidade seja incerta.75 Curiosamente, ao concentrar sua agenda de pesquisa nas dinâmicas e nos discursos de segurança manejados por Estados e atores subnacionais, a Escola de Copenhague dedica pouca atenção ao papel macrossecuritizador potencialmente desempenhado por certas organizações internacionais. É especialmente relevante, nesse aspecto, o papel discursivo do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A capacidade de designar certos problemas – em detrimento de outros – como ameaças à paz e à segurança internacional faz do CSNU o ator securitizador por excelência em escala sistêmica. Com efeito, o Conselho tem servido de arena para debates intergovernamentais sobre a possibilidade de securitizar “novos temas” não-militares de segurança, como as mudanças climáticas; a proteção humanitária (a exemplo da situação de mulheres e crianças em conflitos armados); a disseminação do HIV/AIDS; a justiça penal internacional (seja por meio do Tribunal Penal Internacional ou de cortes ad hoc, como as criadas para Ruanda e ex-Iugoslávia); e o desenvolvimento.76 No bojo do CSNU, países como o Brasil têm sido parte ativa nos debates sobre a interrelação entre segurança e desenvolvimento. Desde o término da Guerra Fria, cresceu vertiginosamente a incidência desses “novos temas” na agenda do CSNU: de uma média de 6% do total anual de resoluções adotadas nos anos 1990, os temas não-militares alcançaram uma média anual de 27% das decisões do Conselho na primeira década do século XXI.77 Além de corroborar, a

central para as políticas securitizadoras de países como China, Paquistão, Índia e Rússia, além dos próprios EUA. 75 BUZAN, Barry. “The ‘War on Terrorism’ as the new macro-securitisation?”. 76 NAPOLEÃO, Thomaz & FERRAZ, Marcelo. “A redefinição da segurança internacional no pós-Guerra Fria: teorias e práticas”, pp. 13-20. 77 Idem, p. 16.

53

posteriori, a posição “alargadora” da Escola de Copenhague e de outros autores no debate sobre o conceito de segurança internacional dos anos 1980, essa observação empírica confirma a maior frequência dos processos de macrossecuritização desde o final da Guerra Fria.

Os Complexos Regionais de Segurança Buzan idealizou conceitualmente os Complexos Regionais de Segurança (CRS, ou RSC no original em inglês), nos quais a interdependência securitária é tão profunda que já não é possível analisar isoladamente as questões de segurança de apenas um de seus atores. Trata-se de noção que funde elementos teóricos neorrealistas (a territorialidade da segurança, a centralidade do Estado e a polaridade em termos de poder) e construtivistas (os processos discursivos de securitização e a presença de ameaças não-militares à segurança).78 Duas variáveis determinam a dinâmica de um Complexo Regional de Segurança: a distribuição relativa de poder (polaridade), fator neorrealista tipicamente waltziano; e os padrões de amizade ou inimizade entre os atores do CRS, noção construtivista de matriz wendtiana. O próprio Alexander Wendt salientou que sua teoria das três culturas da anarquia internacional (hobbesiana, lockeana e kantiana, cf. supra) é válida também no interior de Complexos Regionais de Segurança, e não apenas no nível global.79 Isso permite a Buzan e Wæver distinguir entre CRS de acordo com seu grau de violência. Os autores identificam um continuum na conflitualidade de um CRS, das situações de formação de conflito (como Oriente Médio e a Ásia Meridional), passando

78 79

BUZAN, Barry e WÆVER, Ole. Regions and Powers, pp. 3-5. WENDT, Alexander. Op. cit., p. 257.

54

pelos regimes de segurança (a exemplo da América do Sul e do Sudeste Asiático) e culminando com as comunidades de segurança (Europa e América do Norte); neste estágio, o mais maduro, a guerra entre os atores regionais é impensável.80 Buzan afirma que as fronteiras de um CRS são definidas pelas dinâmicas regionais de segurança, e não unicamente pela geografia, pela cultura ou pela história – embora esses fatores sejam, obviamente, relevantes.81 Assim, não há um Complexo Regional de Segurança do “Mundo Árabe”, mas sim um CRS do Oriente Médio, que inclui importantes membros não-árabes, como Israel e Irã. Tampouco existem CRS do “Ocidente” ou da “América Latina”, pois não há coesão securitária no interior dessas regiões culturalmente definidas – há, isso sim, Complexos Regionais de Segurança distintos para a Europa, a América do Norte e a América do Sul. Um CRS, embora coerente, não precisa ser monolítico; em seu interior, pode haver zonas menores com relativa autonomia em termos de dinâmicas securitárias, denominadas Subcomplexos. Assim, Buzan partilha o Complexo do Oriente Médio em três Subcomplexos: Maghreb, Levante e Golfo.82 Da mesma forma, a América Central é um Subcomplexo do CRS da América do Norte,83 e a Ásia Central exerce papel semelhante no seio do Complexo Regional de Segurança Pós-Soviético.84 Buzan e Wæver salientam que a análise das dinâmicas securitárias de um CRS deve ser feita em três níveis: vulnerabilidades internas, relações interestatais e o papel das grandes potências.85

80

BUZAN, Barry e WÆVER, Ole. Regions and Powers, pp. 471-2. Idem, pp. 43-4. 82 Ibidem, pp. 187-218. 83 Ibidem, pp. 268-303. 84 Ibidem, pp. 397-436. 85 Ibidem, p. 51. 81

55

As fronteiras dos Complexos Regionais de Segurança não são estanques, e evoluem conforme cambiam a natureza do sistema e o perfil das ameaças vigentes. Assim, durante a Guerra Fria, Sudeste Asiático (os membros da ASEAN) e Nordeste Asiático (China, Taiwan, Japão e Coreias) compuseram CRS distintos, com dinâmicas próprias de securitização; desde então, segundo a Escola de Copenhague, eles se fundiram, em virtude da interdependência securitária entre seus membros, e hoje constituem o CRS da Ásia Oriental. Certos Estados não se identificam inequivocadamente com um único CRS, e se situam no límitrofe entre diversas regiões definidas em termos de dinâmicas de segurança. São os chamados insuladores, na terminologia de Buzan, como a Turquia, entre Europa, Oriente Médio e Pós-URSS; o Nepal, entre Ásia Meridional e Ásia Oriental; e, crucialmente, para nosso trabalho, o Afeganistão, cuja especificidade abordaremos posteriormente. A categoria não se confunde com o conceito de “Estadotampão”, cuja função, historicamente, é evitar ou mitigar conflitos entre potências vizinhas; ao contrário do Estado-tampão, o insulador pode ter lógica securitária autônoma, desde que ela não se enquadre inequivocamente em apenas um CRS. Pode haver interdependência securitária especialmente forte entre alguns membros de um Complexo Regional de Segurança. É o que ocorre entre Índia e Paquistão, que, por adotarem modelos antagônicos de legitimação política, constituem ameaça mútua e permanente no setor político da segurança e, portanto, securitizam-se reciprocamente. Escreve Buzan:

India and Pakistan offer a particularly tragic case of a structural political threat (…) Their organizing principles pose a permanent threat to each other; a threat amplified by the fact that both states are

56

politically vulnerable. Pakistan is organized on the principle of Islamic unity, and so stands for the definition of the state along exclusively theological lines. India is constituted on secular, federal lines and can only exist by cultivating mutual accommodation among the various large religious groups within its borders (…) The principle of India thus threatens Pakistan’s major raison d’être. In the early years, this provided grounds for Pakistan to fear absorption by an omnivorous India (…) The principle of Pakistan likewise threatens India’s raison d’être, raising the specter of a breakup of the Indian Union in a number of independent, single-religion, successor states. (…) The political threats posed to each other by India and Pakistan clearly define a central element in the national security problem of each of them, and illustrate the extensive ground for confusion between internal politics and national security.86

Como veremos na seção a seguir e pormenorizadamente nos capítulos posteriores, tal insolúvel antagonismo é a raiz das dinâmicas de insegurança em vigor no Complexo Regional de Segurança da Ásia Meridional.

O CRS da Ásia Meridional, suas características e suas securitizações Na geografia securitária de Buzan e Wæver, seis Estados compõem o Complexo Regional de Segurança da Ásia Meridional: Índia, Paquistão, Bangladesh, Butão, Sri Lanka e Maldivas. Eles são flanqueados por três insuladores: Nepal, que separa os CRS da Ásia Meridional e da Ásia Oriental (Subcomplexo do Nordeste da Ásia); Myanmar, que insula o subcontinente do CRS da Ásia Oriental (Subcomplexo do Sudeste da Ásia); e Afeganistão, que serve como “insulador triplo” entre os Complexos da Ásia Meridional, da Ex-URSS (Subcomplexo da Ásia Central) e do Oriente Médio (Subcomplexo do Golfo).87 De modo geral, todos os Estados sul-asiáticos são relativamente fracos em termos de coesão sociopolítica, o que é causa permanente de

86 87

BUZAN, Barry. People, States and Fear, p. 111. BUZAN, Barry e WÆVER, Ole. Regions and Powers, pp. 101-127.

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tensões internas, como insurgências ideológicas, separatismos etnonacionalistas e terrorismos político-religiosos.88 Em razão de níveis muito elevados de violência política, tanto interestatal89 como intraestatal90, o CRS da Ásia Meridional é considerado zona de formação de conflitos pela Escola de Copenhague. Assim como no vizinho Complexo do Oriente Médio, a conflitualidade já presente no interior da região é exacerbada pela frequente interferência de superpotências – EUA e URSS até 1989 – e de grandes potências, como China, Rússia e Reino Unido.91 A Ásia Meridional constitui CRS bipolar, segundo Buzan e Wæver, devido à presença de duas potências regionais fortemente antagônicas, Índia e Paquistão, que representam ameaça mútua e perene, conforme citação da seção anterior; logo, securitizam-se reciprocamente. Há evidente assimetria demográfica, territorial e econômica entre os dois rivais, sobretudo desde a secessão de Bangladesh, em 1971. No entanto, graças à existência de diversos “equalizadores estratégicos”, sobretudo a paridade em arsenais nucleares, a Índia ainda não logrou consolidar sua liderança regional e eclipsar a ameaça representada pelo Paquistão. Ainda assim, os autores consideram plausível a transformação futura do CRS sul-asiático em um Complexo unipolar, caso Nova Delhi continue maximizando suas capacidades econômicas e

88

PAUL, T. V. South Asia’s Weak States: Understanding the Regional Insecurity Predicament. Desde a descolonização, os Estados sul-asiáticos travaram quatro guerras entre si (Índia-Paquistão em 1947-8, 1965, 1971 e 1999) e se envolveram em duas outras com Estados insulares ou de CRS vizinhos (Índia-China em 1962, participação do Paquistão nas sucessivas guerras afegãs desde 1979), sem contar as intervenções militares ou sanções econômicas indianas no Sri Lanka, no Nepal e nas Maldivas, nos anos 1980, e a anexação – esta, pacífica – do antigo Estado do Sikkim pela Índia. 90 Também desde o fim do domínio britânico, houve graves conflitos internos no Paquistão (secessão do Bangladesh, separatismo no Baluquistão e no chamado “Pashtunistão”, terrorismo nas áreas tribais, conflitos étnicos em Karachi e violência sectária no sul do Punjab), na Índia (separatismos e revoltas maoístas no Punjab, em Nagalândia e nos estados tribais do nordeste indiano) e no Sri Lanka (guerra civil em 1983-2009); e todos os três insuladores do CRS sul-asiático atravessaram longas guerras civis – o Nepal entre 1996 e 2006, o Afeganistão desde 1979 e Myanmar esporadicamente desde os anos 1940. 91 SABUR, A. K. M. Abdus. “South Asian security in the post-Cold War era: Issues”. 89

58

diplomáticas e caso Islamabade permaneça imersa em crises econômicas e de segurança interna, como tem sido o caso desde os anos 1990.92 À semelhança dos Complexos que o cercam, o CRS da Ásia Meridional é primordialmente definido por securitizações tradicionais, protagonizadas por Estados e atuantes no setor militar, embora haja significativo transbordamento para os setores político e societal. É fraca, embora não completamente ausente, a dinâmica de integração regional: as iniciativas sul-asiáticas de cooperação interestatal, como a Associação Sul-Asiática para a Cooperação Regional (SAARC, formada em 1985), embora

não

sejam

inexpressivas,

jamais

superaram

a

vigorosa

inimizade

indopaquistanesa.93 Mais recentemente, a lógica econômico-comercial, que serviu de cimento inicial às integrações europeia e mercosulina, foi experimentada no subcontinente, por meio da Área de Livre Comércio da Ásia Meridional (SAFTA, estabelecida em 2004). Embora ainda seja cedo para julgar o sucesso da integração comercial, pois a remoção de barreiras tarifárias não entrou em vigor94, o fato de que o Paquistão apenas em 2011 concordou em ceder à Índia o status de Nação Mais Favorecida (NMF), após postergar politicamente a decisão por mais de cinco anos, serve como indício negativo sobre as perspectivas da SAFTA. Diversas das características do CRS da Ásia Meridional – o tradicionalismo das ameaças, o patamar elevado de conflitualidade e a centralidade do Estado nos processos de securitização – são comuns aos demais Complexos Regionais de Segurança asiáticos. Na conclusão de volume empírico sobre o tema, Amitav Acharya pondera que os processos de securitização na Ásia são predominantemente “estadocêntricos”: em quase

92

BUZAN, Barry e WÆVER, Ole. Regions and Powers, pp. 101-127. MALLICK, Ross. “Cooperation among antagonists: Regional integration and security in South Asia”. 94 Segundo o SAFTA, Índia, Paquistão e Sri Lanka deverão eliminar barreiras não-tarifárias até 2012; Butão, Nepal , Maldivase Bangladesh deverão fazer o mesmo até 2015. 93

59

todos os casos, caberá ao Estado determinar os temas que devem pertencer à agenda de segurança. Isso ocorre, em parte, devido à relativa fraqueza da sociedade civil organizada no continente, sobretudo nos países com pouca tradição democrática. Pelo mesmo motivo, é relativamente mais fácil promover um processo de securitização na Ásia do que na Europa, onde há maior tradição de contestação e debate na esfera pública. Além disso, Acharya observa que a audiência da securitização, na Ásia, varia em função do ator securitizador: quando Estados conduzem o processo, seus cidadãos são a audiência, mas quando o ator securitizador é não-estatal, a audiência tende a ser externa, i.e., a “comunidade internacional”. Tal constatação leva o autor a concluir, como fizera Balzacq, que a securitização depende do contexto político onde é praticada, inclusive em termos de liderança estatal e regime político doméstico.95 Acharya também conclui que as dimensões normativas da securitização, no caso asiático, podem divergir de suas implicações funcionais, o que não estava previsto pela Escola de Copenhague. Em certos casos, a securitização pode chamar a atenção para um problema antes negligenciado, o que é positivo; porém, em outras situações, a securitização será autoritária, pois dificultará a participação popular no processo decisório interno. 96 Os problemas de segurança da Ásia Meridional foram estudados pelo prisma teórico dos Complexos Regionais de Segurança por autores como Amer Rizwan97, Peter Jones98, Shahrbanou Tadjbakhsh99 e Kristian Berg Harpviken100, entre outros. Acreditamos que tal abordagem é correta, por ser adequada às características do subcontinente, no qual a produção discursiva de ameaças – militares ou não – está 95

CABALLERO-ANTHONY, Mely, EMMERS, Ralf & ACHARYA, Amitav. Op. cit., pp. 247-9. Idem, p. 250. 97 RIZWAN, Amer. “South Asian Security Complex and Pakistan-United States relations post 9/11”. 98 JONES, Peter. “South Asia: Is a Regional Security Community Possible?”. 99 TADJBAKHSH, Shahrbanou. South Asia and Afghanistan: The Robust India-Pakistan Rivalry. 100 HARPVIKEN, Kristin Berg. “Afghanistan: Torn Between Regional Security Complexes”. 96

60

intrinsecamente ligada às relações de inimizade entre Paquistão e Índia. A Ásia Meridional segue dinâmicas políticas e históricas próprias, relativamente insuladas das que governam o Oriente Médio, a Ásia Central e a Ásia Oriental, e a existência de interdependência intrarregional em termos de segurança – o critério adotado por Buzan e Wæver para definir um CRS – é evidente para qualquer analista ou diplomata com experiência na região.

O caso sui generis do Afeganistão Em

termos

de

segurança,

o

Afeganistão

não

está

inequívoca

e

indissociavelmente vinculado a nenhuma região específica. Portanto, não é membro de qualquer CRS, mas desempenha o papel singular de insulador, de acordo com a geografia securitária de Buzan e Wæver. O país está situado entre os Complexos Regionais de Segurança da Ásia Meridional, do Oriente Médio (Subcomplexo do Golfo) e Pós-Soviético (subcomplexo da Ásia Central)101, como ilustra o mapa a seguir:

101

Embora o Afeganistão também seja vizinho da China (portanto, do CRS da Ásia Oriental) graças ao estreito Corredor de Wakhan, trata-se de região montanhosa e inacessível, onde não há passagens de fronteira, o que efetivamente impede qualquer interação territorial em segurança entre os dois países.

61

Figura 1: Os Complexos e Subcomplexos Regionais de Segurança da Ásia. (fonte: adaptado de BUZAN, Barry e WÆVER, Ole. Regions and Powers, pp. xxvi, 99 e 189)

Desde 1979, as sucessivas etapas do conflito que assola o país reforçaram a dinâmica de fragmentação política interna, e fizeram do Afeganistão uma espécie de mini-CRS102, protagonizado por forças etnopolíticas rivais que desfrutam de substantivo apoio material, político e diplomático externo. Grosso modo, os pashtuns, predominantes no sul e no leste do país, e particularmente o movimento Talibã, têm laços próximos com o Paquistão por motivos culturais e geopolíticos, e com a Arábia Saudita por razões religiosas; os tadjiques e uzbeques, concentrados no norte, são historicamente alinhados com Rússia, Uzbequistão e Tadjiquistão; e os hazaras, que habitam o Afeganistão central e – ao contrário dos outros grupos, quase todos sunitas – são majoritariamente xiitas, recebem apoio iraniano. Tadjiques, uzbeques e hazaras integraram no final dos anos 1990 a Frente Islâmica Unida, mais conhecida como Aliança do Norte, que enfrentou o domínio talibã (pashtun) sobre a maior parte do país 102

BUZAN, Barry e WÆVER, Ole. Regions and Powers, p. 111-2.

62

e também contou com o patrocínio da Índia.103 Por óbvio, os grupos étnicos não são monolíticos, e a presença de dezenas de pequenas minorias, como baluques, turcomenos, nuristanis e aimaks, torna ainda mais frágil e complexo o equilíbrio político, étnico e militar do Afeganistão. Assim como os CRS que o cercam, o “minicomplexo” afegão também teve suas dinâmicas de conflitualidade exacerbadas pela ocupação militar de superpotências em suas eras respectivas: o Império Britânico (guerras de 1839-42, 1878-80 e 1919), a União Soviética (1979-89) e os Estados Unidos, como líderes da Força Internacional de Assistência para a Segurança (ISAF) da OTAN desde 2001. A especificidade do Afeganistão na geografia asiática de segurança decorre de sua história, segundo relata Rasul Baksh Rais.104 O Estado afegão, nominalmente consolidado em 1747, nunca se adaptou plenamente aos moldes vestfalianos: sempre teve fronteiras fluidas, preservou suas estruturas tribais e clânicas (“pré-modernas”) de governança e não logrou forjar uma identidade nacional coerente. Somadas às constantes intervenções estrangeiras e a uma topografia que limita a interação entre as diferentes regiões afegãs, essas características mantiveram permanentemente o país como “fronteira” entre impérios, civilizações ou regiões – portanto, como insulador entre Complexos Regionais de Segurança.

O CRS com mais evidente influência sobre o Afeganistão é o da Ásia Meridional. A bipolaridade indopaquistanesa afeta diretamente a situação política e de segurança do Afeganistão, onde se trava uma “guerra por procuração” entre Islamabade

103

DOMBROWSKY, Patrick & PIERNAS, Simone. Géopolitique du nouvel Afghanistan, pp. 79-88. BAKSH RAIS, Rasul. “Afghanistan: a weak state in the path of power rivalries” in PAUL, T. V (org.). South Asia’s Weak States: Understanding the Regional Insecurity Predicament, pp. 195-219.

104

63

e Nova Delhi, segundo numerosos analistas. É o caso de Ahmed Rashid, para quem “o caminho para Cabul passa pela Caxemira”, isto é, solucionar o contencioso entre Paquistão e Índia é indispensável para estabilizar o Afeganistão.105 Como elucida Riaz Mohammad Khan, o Paquistão tem interesses extremamente substantivos na política interna e externa do Afeganistão, reforçados pela proximidade cultural e étnica entre os dois países, por motivos históricos106 e por imperativos geopolíticos anti-indianos.107 Entre analistas ocidentais, é bastante difundida a percepção de que setores do Estado paquistanês, particularmente as Forças Armadas e o Diretório de Inteligência Inter-Serviços (ISI), que apoiaram ostensivamente a guerrilha antissoviética dos mujaheddin nos anos 1980 e a ascensão do Talibã na década seguinte, ainda fomentariam a atuação de diversos movimentos jihadistas afegãos, como a Rede Haqqani, para neutralizar a presença indiana no Afeganistão.108 O Governo de Barack Obama reconheceu essa interdependência ao formular o termo “AfPak”, que unifica conceitualmente os teatros militares contíguos.109 Obama reduziu a ênfase na “de-hifenização” da diplomacia norte-americana para o subcontinente110, e procurou integrar suas políticas para Afeganistão, Paquistão e Índia, como relata Simbal Khan.111 Por sua vez, o discurso do Governo indiano encoraja a integração do Afeganistão no espaço geo-estratégico, econômico e cultural da Ásia Meridional, como

105

RASHID, Ahmed. “The road to Kabul passes through Kashmir”, s.p. A Linha Durand separa artificialmente os cerca de 40 milhões de pashtuns que residem nos dois países, dos quais aproximadamente dois-terços estão no Paquistão. Ver capítulo IV. 107 KHAN, Riaz Mohammad. Afghanistan and Pakistan: Conflict, Extremism and Resistance to Modernity. 108 STRATEGIC FORECASTING (STRATFOR). Afghanistan at the Crossroads. 109 WOODWARD, Bob. Obama’s Wars. 110 Criação do Governo Bush, a “de-hifenização” possibilitava a adoção de políticas não-conexas para Paquistão e Índia, ambos considerados aliados vitais dos EUA. Washington recusava, assim, a tradicional noção de que a diplomacia do subcontinente é um jogo de soma zero entre Nova Delhi e Islamabade. 111 KHAN, Simbal. “Breakfast in Amritsar, lunch in Lahore, dinner in Kabul”, s.p. 106

64

nos escritos de I. P. Khosla, o que justificaria e legitimaria o grande interesse de Nova Delhi no país.112 A Índia é o principal parceiro regional da reconstrução afegã, com investimentos de cerca de US$ 2 bilhões no país desde 2001, e em outubro de 2011 assinou com Cabul Acordo de Parceria Estratégica que possibilita o treinamento indiano de militares e policiais afegãos. De maneira mais controversa, a Índia é frequentemente acusada por membros do establishment paquistanês, como Munir Akram, de utilizar seus Consulados em Kandahar e Jalalabad para fomentar separatismos nas províncias paquistanesas de Khyber-Pakhtunkhwa e Baluquistão.113

Já o CRS do Oriente Médio influencia o Afeganistão sobretudo por meio da projeção da rivalidade entre as principais potências do Golfo: Irã e Arábia Saudita. Afinidades linguísticas, geográficas e históricas sempre garantiram a Teerã presença destacada no Afeganistão, principalmente na região de Herat, mas as relações ganharam animosidade com a ascensão ao poder do Talibã, portador de discurso virulentamente anti-xiita; o assassinato de diplomatas iranianos em Mazar-e-Sharif, em 1998, quase levou os dois países à guerra. A partir de 2001, embora não deixasse de criticar a “ocupação” por parte da OTAN, o Irã adotou tom pragmático em suas relações com o Afeganistão, aliando-se à Índia para promover seus interesses econômicos e geopolíticos, como as possíveis rotas entre o sul afegão e o porto iraniano de Chahbahar.114 O interesse de Teerã nos assuntos de Cabul é reforçado pelo fluxo maciço de refugiados afegãos para o Irã, pela vulnerabilidade da minoria xiita hazara, e pela

112

KHOSA, I. P. “India and Afghanistan” in SINHA, Atish & MOHTA, Madhup (ed.). Indian Foreign Policy: Challenges and Opportunities, pp. 529-555. 113 AKRAM, Munar. “Reversing Strategic ‘Shrinkage’” in LODHI, Maleeha. Pakistan: Beyond the ‘Crisis State’. Pp. 283-304. 114 KHAN, Riaz Mohammad. Op. cit., pp. 177-183.

65

atuação de grupos separatistas violentos na região do Baluquistão, tríplice fronteira entre Irã, Paquistão e Afeganistão. Já a presença saudita no Afeganistão, geralmente em parceria com o Paquistão, visa a contrarrestar a influência indo-iraniana. Após patrocinar generosamente os mujaheddin anticomunistas nos anos 1980, Riade manteve relações diplomáticas com o Governo do Talibã e, por meio de seus subsídios a madrassas nas regiões de maioria pashtun, exerceu grande influência sobre a teologia wahabita do movimento islamista – embora o refúgio afegão da Al-Qaeda, que apregoa justamente a derrocada da casa dos Saud, não tenha sido conveniente para os sauditas.115

Enfim, a Ásia Central desempenha papel nevrálgico na geografia securitária afegã ao menos desde a invasão soviética de 1979, quando o Exército Vermelho desdobrou suas tropas ofensivas a partir de Termez, no Uzbequistão. Vários dos principais processos centro-asiáticos de securitização, como os que envolvem o tráfico transnacional de opiáceos, os fluxos de refugiados e a difusão do terrorismo de matriz jihadista, são diretamente afetados pelo conflito em curso no Afeganistão.116 A instabilidade afegã aprofunda a fraqueza, em termos de coesão sociopolítica, do Tadjiquistão, além de motivar o uso, pelos EUA, de instalações militares em países como o Uzbequistão (base de Karshi-Khanabad) e o Quirguistão (base de Manas), o que vem aprofundando a penetração de superpotências e grandes potências rivais – essencialmente Rússia, EUA e China – na Ásia Central. As repúblicas centro-asiáticas esperam que sejam dessecuritizadas as ameaças oriundas do Afeganistão, o que viabilizaria a implantação de projetos transnacionais de 115 116

Idem, pp. 184-7. NOURZHANOV, Kirill. “Changing security threat perceptions in Central Asia”, p. 92.

66

desenvolvimento e infraestrutura, como o gasoduto TAPI (Turcomenistão, Afeganistão, Paquistão, Índia) e as linhas de transmissão elétrica da iniciativa CASA-1000, que deverá interligar Quirguistão, Tadjiquistão, Afeganistão e Paquistão.117 Ademais, a interação em segurança com a Ásia Central deu ao Afeganistão seus atuais contornos. As fronteiras afegãs foram definidas ao final do século XIX, com a demarcação da Linha Durand, que separou o país do noroeste do Raj (atualmente Paquistão), em 1893; e com a delimitação do Corredor de Wakhan, que conecta territorialmente Afeganistão e China, em 1895. Isso consolidou o Estado afegão como insulador geográfico entre os impérios britânico e russo, que à época disputavam o controle pela Ásia Central, no processo histórico conhecido como Great Game.118 A possível inclusão plena do Afeganistão na Organização de Cooperação de Xangai (OCX)119, principal fórum para questões de segurança referentes à Ásia Central, poderá consolidar a interação desse Estado com o subcomplexo centro-asiático. A conflitualidade afegã tem claro efeito multiplicador em relação aos “três males” que, segundo o discurso da OCX, afetam a segurança centro-asiática: extremismo, terrorismo e separatismo. Para os membros da OCX, o Afeganistão é, simultaneamente, fator externo de instabilidade endêmica e potencial parceiro para superá-la, pois o Estado afegão compartilha, prima facie, diversos interesses estratégicos com a OCX: o enfrentamento do narcotráfico e do terrorismo transnacionais, e a integração e o desenvolvimento da economia regional.120

117

NIYATBEKOV, Vafo. “Tajikistan’s Perspective and Prospective Role in Stabilising Afghanistan” in HASAN NURI, Maqsudul, MUNIR, Muhammad & HUSSAIN, Aftab (org.). Stabilising Afghanistan: Regional Perspectives and Prospects, pp. 76-84. 118 HOPKIRK, Peter. The Great Game: The Struggle for Empire in Central Asia. 119 O Afeganistão se tornou parceiro de diálogo da OCX em 2005, e observador formal em 2011. Poderá integrar a organização, como membro pleno, no futuro. 120 BAILES, Alison, DUNAY, Pál, GUANG, Pan & TROITSKIY, Mikhail. The Shanghai Cooperation Organization, p. 19.

67

A proliferação de mecanismos diplomáticos regionais para promover a estabilização afegã, quase sempre envolvendo Estados centro-asiáticos, é mais um indício do entrelaçamento securitário entre o país e o CRS da Ásia Central. É o caso do “Quarteto de Dushanbe”121, do agrupamento “6+2”122 – que o Uzbequistão propôs expandir para “6+3” com a entrada da OTAN – e de iniciativas como a Conferência de Istambul123, entre outros.

Como observa Kristian Berg Harpviken, embora as causas da conflitualidade afegã sejam domésticas, o envolvimento de atores regionais agravou o quadro de violência, tornando-o mais instável e insolúvel.124 Shahrbanou Tadjbakhsh assevera que o Afeganistão permanece uma “zona de caos”, no qual as disputas dos CRS vizinhos (como os contenciosos entre Islamabade e Nova Delhi e entre Teerã e Riade) são replicadas.125 Buzan e Wæver concordam, e acrescentam que o único poder de projeção externa do Afeganistão é o chaos power.126 Uma vez que os discursos e práticas de segurança permanecem fortemente tradicionais (militares e “estadocêntricos”) nos três CRS que avizinham o Afeganistão127, a abordagem buzaniana dos Complexos Regionais de Segurança, com seu foco na centralidade não-exclusiva dos Estados é, a priori, lente de análise mais adequada para a compreensão das interações entre o Afeganistão e as três regiões que o cercam. Interessante alternativa metodológica é oferecida pela teoria concorrente da 121

Afeganistão, Paquistão, Rússia e Tadjiquistão. O Quarteto de Dushambe surgiu em 2009. Grupo de contato que reuniu os seis vizinhos do Afeganistão (China, Irã, Paquistão, Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão), além de EUA e Rússia, entre 1999 e 2001. 123 A Conferência de Istambul (novembro de 2011) reunirá os vizinhos do Afeganistão, além de atores extrarregionais relevantes, para procurar definir uma arquitetura diplomática regional para o país após a retirada prevista das forças das OTAN, em 2014. Cogita-se que o Afeganistão seja feito “Estado neutro”. 124 HARPVIKEN, Kristin Berg. “Afghanistan: Torn Between Regional Security Complexes”, p. 2. 125 TADJBAKHSH, Shahrbanou. South Asia and Afghanistan: The Robust India-Pakistan Rivalry, p. 49. 126 BUZAN, Barry e WÆVER, Ole. Regions and Powers, p. 112. 127 Idem, p. 12. 122

68

Formação Regional de Conflitos (FRC, ou RCF em inglês), elaborada por Barnett Rubin128, que é menos “estadocêntrica” que a perspectiva de Buzan, estuda primordialmente as ameaças transnacionais de segurança e tenderia a colocar o Afeganistão no centro – e não na limítrofe – das dinâmicas regionais de conflitualidade.129 Porém, isso não corresponde às preferências, em termos de políticas e discursos de segurança, dos Estados lindeiros ao Afeganistão – que tradicionalmente adotam respostas nacionais, ou no máximo intergovernamentais, para enfrentar problemas transnacionais.

128 129

RUBIN, Barnett. “Regional Approaches to Conflict Management in Africa”, p.1. HARPVIKEN, Kristin Berg. Op. cit., p. 12.

69

III – O DESTRUIDOR DOS MUNDOS E O BUDA SORRIDENTE: A SECURITIZAÇÃO ASSIMÉTRICA DA PROLIFERAÇÃO NUCLEAR ENTRE PAQUISTÃO E ÍNDIA

“Disse o Senhor Krishna (a Arjuna): Eu sou o Tempo, o grande destruidor dos mundos, E vim para destruir todas as pessoas. Nenhum soldado aqui presente será poupado.” (Bhagavad Gita, capítulo 11, verso 32. Em 1965, J. Robert Oppenheimer citou o trecho [como “Now I am become Death, the destroyer of worlds”] ao refletir sobre o significado das armas nucleares)

Uma falsa obviedade Entre todos os recursos de poder à disposição dos Estados, arsenais nucleares são, com toda a probabilidade, os mais frequentemente associados à noção de hard power político-militar. Assim, pode parecer uma obviedade a securitização dos processos relacionados ao desenvolvimento de armas nucleares – a mineração e o enriquecimento de urânio; a fabricação industrial de plutônio; a obtenção de tecnologias duais; a produção de ogivas; o estocamento seguro de arsenais; a implementação de vetores de lançamento (missilísticos, aéreos ou submarinos); a elaboração e o aperfeiçoamento de doutrinas estratégicas; o emprego de testes nucleares; e, por fim, o uso (ou a ameaça político-diplomática do uso) militar da bomba atômica. A realidade, no entanto, é mais nuançada. Embora seu poder destrutivo seja incontestável, o átomo é especial também por motivos simbólicos e subjetivos. Em seu clássico estudo acerca das modalidades coercitivas da diplomacia, Thomas Schelling apresenta incisivamente a grande particularidade das armas nucleares:

70

“And what is so different about nuclear weapons? Is it the size of the explosion? (…) Why is a kiloton nuclear bomb so different from an equivalent weight of high explosives dropped in a single attack? It is. Everybody knows the difference. The difference is not tactical; it is “conventional”, traditional, symbolic – a matter of what people will treat as different, of where they will draw the line.”130

Schelling argumenta que a aura de excepcionalismo das armas nucleares é, em grande parte, consequência de seu não-uso. Trata-de do célebre “tabu atômico”, que vigora desde 1945 e decorre de motivos materiais – o temor de destruição mútua ou coletiva – e, em grau ainda maior, de fatores normativos: a ascensão gradual de uma prática internacional profundamente avessa ao uso desses armamentos, além de considerações sobre os graves danos à reputação de quem as utilizasse. Isso compôs, para T. V. Paul, uma “proibição normativa informal”.131 Segundo Price e Tannenwald, o próprio conceito de dissuasão nuclear foi socialmente construído pela comunidade decisória norte-americana, e posteriormente ganhou difusão global. Ao lado de outros fatores não-objetivos – contingência, postura reiterada dos Estados, preocupações morais e pura sorte – isso inviabilizou o emprego de bombas atômicas, até torná-lo quase inimaginável. Inicialmente fruto de cálculo estratégico, o não-uso de armas nucleares se tornou objeto de tabu.132 Nada havia de inevitável nesse tabu, que poderia ter desmoronado já em 1950, houvesse Harry Truman autorizado o General MacArthur a lançar engenhos nucleares contra forças chinesas na Guerra da Coreia.133

130

SCHELLING, Thomas. Arms and Influence, pp. 133-4. PAUL, T. V. The Tradition of Non-Use of Nuclear Weapons, pp. 15-37. 132 PRICE, Richard & TANNENWALD, Nina. “Norms and Deterrence: The Nuclear and Chemical Weapons Taboos” in KATZENSTEIN, Peter (org.), The Culture of National Security, pp. 114-152. 133 SCHELLING, Thomas. Op. cit, pp. 289-90. 131

71

O

corolário

lógico

dessa

percepção

de

excepcionalismo

foi

a

macrossecuritização das armas nucleares, nos termos de Barry Buzan.134 Em outras palavras, graças à convicção generalizada segundo a qual bombas atômicas eram especiais, e poderiam colocar em xeque a existência do mais elevado objeto referente – a própria humanidade – , forjou-se um consenso planetário em torno da aversão à ameaça que emana de tais artefatos. Como salienta Bryan Mabee, armas nucleares representaram a primeira ameaça inequivocadamente global à humanidade; nesse sentido, foram peça crucial da “globalização da segurança” que, segundo o autor, está em voga e vem transformando a natureza do Estado nacional.135 Esse processo macrossecuritizador teve início em meados dos anos 1960, quando os cinco atuais136 membros permanentes do Conselho de Segurança já haviam testado armas nucleares. Foi uma mudança de percepções causada, entre outros fatores, pela Crise dos Mísseis de Cuba (1962), zênite histórico dos temores de holocausto atômico; pela evolução paralela das doutrinas nucleares e das relações civil-militares nos EUA, com Lyndon Johnson (desde 1963), e na URSS, sob Leonid Brezhnev (desde 1964), ambos mais cautelosos em estratégia nuclear que seus antecessores; e pelo sucesso das negociações multilaterais no seio do Comitê de Desarmamento das Dez (depois Dezoito, com participação brasileira) Nações, desde 1960, que viabilizou politicamente a posterior elaboração do TNP, assinado em 1968. Vista com relativa leniência na década anterior137, a disseminação da arma atômica passou, então, a ser alardeada como ameaça existencial para a humanidade. Tal raciocínio legitimou o TNP e desde então justifica obrigações jurídicas para todos os 134

BUZAN, Barry. “The ‘War on Terrorism’ as the new macro-securitisation?”, pp. 1-22. MABEE, Bryan. The Globalization of Security, pp. 65-87. 136 A República Popular da China somente ingressou na ONU e no CSNU em 1971. 137 Em que pese iniciativas restritivas, como o Atoms for Peace de Eisenhower, os anos 1950 foram pródigos em proliferação. O laissez-faire nuclear de países como França, Canadá e Noruega permitiu que Israel e Índia obtivessem, menos de duas décadas mais tarde, seus primeiros dispositivos atômicos. 135

72

Estados. Trata-se de um discurso de controle, segundo Itty Abraham, para quem o próprio conceito de não-proliferação, essencialmente normativo-prescritivo, resultaria da intersecção entre uma disciplina acadêmica, que Abraham denomina “História Nuclear”, e os objetivos da política externa de um Estado – os EUA.138 Antes de se tornar hegemônico, o discurso da não-proliferação enfrentou resistências por parte de diversos países em desenvolvimento. Era o caso do Brasil do Embaixador Araújo Castro, cuja célebre denúncia do “congelamento do poder mundial” sobrevive até hoje, em linhas gerais, na crítica indiana do “apartheid nuclear”139. A macrossecuritização global da não-proliferação culminou em 2004, com a adoção da Resolução 1540 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que impôs a todos os Estados a obrigação de adotar e aplicar legislações específicas para conter a proliferação de armas nucleares, químicas e biológicas, além de seus vetores.140 Contudo, graças às vigorosas dinâmicas internas do Complexo Regional de Segurança da Ásia Meridional, seus principais membros – Índia e Paquistão – jamais se submeteram inteiramente à lógica macrossecuritizadora da não-proliferação. Em função de particularidades do processo histórico de ambos os países; de pressões internas e externas; e das preferências políticas de diversas gerações de governantes indianos e paquistaneses, os dois países optaram pelo desenvolvimento de arsenais nucleares, o que reforçou a securitização recíproca e pré-existente entre eles. Sob o prisma das percepções e dos discursos, não apenas de fatos e dados, averiguaremos a seguir a gênese e as consequências desse processo de nuclearização regional, com o fito de compreender a natureza assimétrica da securitização nuclear na Ásia Meridional.

138

ABRAHAM, Itty. “Contra-Proliferation: Interpreting the Meanings of India’s Nuclear Tests” in SAGAN, Scott (org.), Inside Nuclear Asia, pp. 107-8. 139 SINGH, Jaswant. “Against Nuclear Apartheid” in Foreign Affairs, s.n., set-out. 1998. 140 CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 1540 (2004).

73

A evolução descompassada de dois programas rivais O programa nuclear de Nova Delhi é sui generis. Entre os nove países que comprovadamente desenvolveram armas atômicas entre 1945 e 2011, a Índia é, ao lado da França, um dos únicos cuja empreitada nuclear foi inicialmente pacífica, e apenas mais tarde derivou para finalidades bélicas. Todos os outros, Paquistão inclusive, seguiram o caminho oposto.141 O embrião do projeto nuclear indiano data de 1944, antes mesmo dos primeiros testes nucleares da história, em Alamogordo, e da própria independência do país.142 Naquele ano, Homi J. Bhabha fundou o Instituto para Pesquisa Fundamental, cujo intuito era formar engenheiros e físicos nucleares. Em 1948, somente oito meses após a emancipação formal do Estado, a Índia constituiu sua Comissão de Energia Atômica, sob supervisão direta do Primeiro-Ministro Jawarharlal Nehru. Entre a independência e meados dos anos 1960, coincidindo com o longo Governo de Nehru (1947-64), o programa atômico indiano foi claramente pacífico e correspondeu a uma espécie de “desenvolvimentismo nuclear”143, cujas metas eram a legitimação do novo Estado indiano; a promoção de uma base industrial e tecnológica autóctone; a autossuficiência econômica; e o pacifismo e o não-alinhamento no plano externo. Em outras palavras, as diretrizes do programa nuclear indiano, em harmonia com o projeto nacional do país recém-independente, ecoavam os discursos e as preferências do Partido do Congresso. A busca pela fissão do átomo era apenas uma entre as várias ambiciosas iniciativas desenvolvimentistas do Estado pós-colonial indiano, como a represa Bhakra-Nangal e a cidade planejada de Chandigarh. Apesar da

141

HYMANS, Jacques. “Why do States acquire Nuclear Weapons? The cases of India and France” in SARDESAI, D. R & THOMAS, Raju, Nuclear India in the Twenty-First Century, pp. 139-160. 142 Idem, pp. 13-4. 143 ABRAHAM, Itty. Op. cit., pp. 120-1.

74

escassez geral de recursos e de tecnologias, o programa avançou com relativa rapidez, por gozar de alta prioridade entre as iniciativas de Nehru: já nos anos 1950, graças a acordos de cooperação com o Canadá, a Índia se tornou o primeiro país asiático a contar com reatores nucleares operacionais, instalados em Mumbai (então Bombaim) e no estado do Rajastão.144 No entanto, Nova Delhi reviu suas prioridades político-estratégicas entre 1962 e 1967, aparentemente como resposta a ameaças externas (uma derrota militar fragorosa para a China, em 1962, o pioneiro teste nuclear chinês, em 1964, o impasse em uma guerra iniciada pelo Paquistão, em 1965, e as já citadas negociações em torno do TNP, que impediriam a ascensão futura de novas potências nucleares) e a fatores domésticos (a morte de Nehru, em 1964, e o consequente fim do consenso político em torno da hegemonia do Partido do Congresso, liderado por Indira Gandhi a partir de 1966). Nesse contexto histórico – que, como visto, coincidiu com o processo global de macrossecuritização da não-proliferação – , os governantes indianos tomaram a decisão de optar pela “opacidade nuclear”145, abandonando a ênfase anterior no pacifismo inequívoco. Foi esse o primeiro dos três momentos decisivos na trajetória do programa nuclear bélico indiano, na análise de Rajesh Basrur. Em cada etapa, a decisão de Nova Delhi foi pautada por diferentes, mas sempre endógenas, percepções de ameaças externas à segurança nacional.146 Em 1974, Indira Gandhi determinou a “explosão nuclear pacífica” que fez do país um Estado com capacidade nuclear, embora ainda não dotado de engenhos

144

THOMAS, Raju. “India’s Energy Policy and Nuclear Weapons Program” in SARDESAI, D. R & THOMAS, Raju (org.). Nuclear India in the Twenty-First Century, pp. 277-296. 145 ABRAHAM, Itty. Op. cit., pp. 115-8. 146 BASRUR, Rajesh. “Indian Perspectives on the Global Elimination of Nuclear Weapons” in BLECHMAN, Barry (org.). Unblocking the Road to Zero: Perspectives of Advanced Nuclear Nations, pp. 1-27.

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nucleares propriamente ditos, tampouco de vetores para transportá-los. Dotado de codinome brilhantemente irônico (“Operação Buda Sorridente”), o teste representou, segundo Basrur, uma resposta ao temor de perda de autonomia política por parte da liderança pós-colonial indiana, ainda fortemente influenciada pelos conceitos de nãoalinhamento e autarquia que haviam fundamentado o projeto nacional nehruviano. Nova Delhi desejava, ainda, expressar que não havia se tornado subalterna a Moscou, com quem assinara um Tratado de Amizade, quase uma aliança, em 1971. O segundo momento-chave foi 1989, momento provável em que a Índia se tornou um Estado nuclear não-declarado (covert), ou seja, obteve ogivas nucleares para fins militares sem admitir tal fato. A decisão do então Primeiro-Ministro Rajiv Gandhi respondeu à percepção de que o Paquistão, que desenvolvia armas atômicas com apoio chinês e conivência norte-americana – decorrência, por sua vez, da aliança entre Washington e Islamabade para enfrentar a URSS no Afeganistão – representava ameaça imediata à segurança da Índia. Por fim, o ano de 1998 trouxe o terceiro momento decisivo na trajetória atômica indiana, quando o país reivindicou o status de Estado nuclear declarado por meio dos testes de Pokhran-II, sob o Governo de Atal Bihari Vajpayee.147 Pesou, à época, a ascensão ao poder do Partido Popular da Índia (Bharatiya Janata, BJP), movimento nacionalista hindu interessado em obter sinais tangíveis de prestígio, status e poder (shakti) para o país. Por fim, ainda de acordo com Basrur, Nova Delhi se sentiu compelida a externalizar seu status nuclear em resposta ao fortalecimento do regime de não-proliferação nos anos 1990 – a prorrogação sine die do TNP, em 1995, e a conclusão do CTBT, no ano seguinte. Realistas indianos alegavam que o final do século

147

Idem.

76

representava a última oportunidade para que a Índia desafiasse a “hegemonia nuclear” dos cinco Estados nucleares consagrados pelo TNP.148 Por sua vez, o programa nuclear bélico paquistanês é comparativamente recente e tem data de início precisa: 1972, imediatamente após a fragorosa derrota do país na guerra civil que culminou com a independência de Bangladesh, antes Paquistão Oriental. A amputação do território paquistanês intensificou o – já significativo – desequilíbrio entre os rivais sul-asiáticos, o que levou o então Primeiro-Ministro Zulfikar Ali Bhutto, que desde a década anterior pregava a necessidade de criar um mecanismo de dissuasão contra a Índia, a lançar o programa nuclear do Paquistão. A iniciativa apenas ganhou urgência após 1974, em resposta à “explosão nuclear pacífica” indiana daquele ano.149 Após depor Bhutto, em 1977, o General Zia ul-Haq colocou a empreitada sob controle das Forças Armadas, situação que perdura até hoje e contrasta com o comando civil do programa nuclear indiano. A projeto paquistanês enfrentou grandes dificuldades técnicas e políticas. A constituição do Grupo de Supridores de Londres, mais tarde renomeado Grupo de Supridores Nucleares (NSG), já em 1974/75, dificultou ao país a obtenção de tecnologias nucleares e de uso dual. Nos anos seguintes, cresceu gradualmente a pressão dos EUA para que o Paquistão renunciasse a suas ambições atômicas, o que afetou o conjunto das relações bilaterais entre os antigos aliados. A política norte-americana seria revertida apenas em 1981, já sob a presidência de Ronald Reagan, quando a invasão soviética do Afeganistão reaproximou diplomaticamente Washington e Islamabade e colocou em suspenso as sanções impostas pela Casa Branca em 1977. 150

148

SUBRAHMANYAM, K. “India and the International Nuclear Order” in SARDESAI, D. R & THOMAS, Raju (ed.), Nuclear India in the Twenty-First Century, pp. 63-84. 149 SALIK, Naeem. The Genesis of South Asian Nuclear Deterrence: Pakistan’s Perspective, p. 68-70. 150 CHAKMA, Bhumitra. Pakistan’s Nuclear Weapons, pp. 18-30.

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Nas décadas de 1970 e 1980, Islamabade compensou sua inferioridade tecnológica e de materiais nucleares vis-à-vis Nova Delhi por meio da assistência chinesa e da rede de proliferação de A. Q. Khan, que trouxe clandestinamente ao país projetos de centrífugas do grupo europeu URENCO e, a partir de 1976, dirigiu os laboratórios de pesquisa de Kahuta, indiretamente vinculados ao Estado mas com grande autonomia operacional. Mais tarde, Khan seria acusado de comercializar, ilegamente, tecnologia e materiais nucleares para Irã, Líbia e Coreia do Norte, o que danificaria seriamente a reputação paquistanesa em matéria de não-proliferação.151 O Paquistão obteve a capacidade de produzir armas nucleares na segunda metade dos anos 1980, em consequência direta da Guerra do Afeganistão, que retirou temporariamente a maior barreira externa – a norte-americana – ao programa atômico do país. Durante aproximadamente uma década, até 1998, verificou-se uma situação de dissuasão nuclear de facto, mas não explícita, do sul da Ásia. Foi um período de tensões bilaterais consideráveis, incluindo a Operação Brasstacks (1987), uma grande mobilização militar indiana para desbaratinar o apoio paquistanês à insurgência no Punjab indiano; e a grande insurreição que afetou a Caxemira indiana no final dos anos 1980 e levou a nova mobilização de grande escala, em 1990.152 Os pioneiros testes nucleares paquistaneses ocorreram em 28 de maio de 1998, no campo de Chagatai, no Baluquistão, em resposta calculada à demonstração equivalente por parte da Índia, duas semanas mais cedo. Durante as décadas que antecederam os testes de 1998, ambos os rivais lançaram mão da diplomacia, sem sucesso, para prevenir (ou adiar) a nuclearização do

151

CORERA, Gordon. Shopping for Bombs: Nuclear Proliferation, Global Insecurity and the Rise and Fall of the A.Q. Khan Network. 152 GANGULY, Sumit & KAPUR, S. Paul. India, Pakistan and the Bomb: Debating Nuclear Stability in South Asia, pp. 35-44.

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subcontinente. Em 1975, em reação à “explosão nuclear pacífica” indiana, o Paquistão propôs o estabelecimento de uma Zona Livre de Armas de Nucleares para o Sul da Ásia. Treze anos mais tarde, e imediatamente antes de militarizar suas ogivas nucleares, a Índia levou à Assembleia Geral das Nações Unidas um plano para o desarmamento global. Ambas as iniciativas falharam, assim como outras semelhantes, de menor vulto. Desde então, ambos os países têm se engajado no que poderia ser descrito como a única corrida nuclear do século XXI. De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisas para a Paz de Estocolmo (SIPRI), Paquistão e Índia, ao contrário de todas as potências nucleares reconhecidas pelo TNP, vêm expandindo seus respectivos arsenais a uma razão de aproximadamente 20 novas bombas por ano. Em 2011, os estoques indiano e paquistanês têm dimensão semelhante – 80 a 110 ogivas cada. Mantido esse ritmo de expansão, o que pressupõe a não-entrada em vigor do Tratado sobre Banimento da Produção de Materiais Físseis (FMCT), os rivais sul-asiáticos poderão ter arsenais maiores que os de China, França e Reino Unido até o final da segunda década do século. Enquanto Nova Delhi produz engenhos com base em plutônio, Islamabade o faz a partir de urânio altamente enriquecido. Os dois países dispõem de vetores missilísticos terrestres e aéreos eficientes, e a Índia está desenvolvimento mísseis lançados a partir de submarinos.153 Expostos os fatos de forma sucinta, e antes de avaliar as dinâmicas de securitização correlatas, é necessário averiguar as razões da obtenção de armas nucleares por parte da Índia e, posteriormente, do Paquistão.

153

KILE, Shannon, FEDCHENKO, Vitaly, GOPALASWAMY, Bharath & KRISTENSEN, Hans. “World Nuclear Forces” in SIPRI Yearbook 2011: Armaments, Disarmament and International Security. Estocolmo: SIPRI, 2011, pp. 319-359.

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Os motivos da nuclearização de Nova Delhi Há, grosso modo, quatro principais escolas de pensamento sobre as motivações que levaram a Índia a buscar armas nucleares: três perspectivas realistas/racionalistas – a linha oficial indiana, o discurso autorizado paquistanês e a pensamento realista autônomo em RI – e uma alternativa reflexivista/construtivista. Representantes autorizados – ou semi-oficiais, como diplomatas aposentados – do Governo da Índia reiteram a natureza reativa, e portanto defensiva, do programa nuclear de Nova Delhi. Arundhati Ghose insiste no caráter inicialmente pacífico do projeto atômico da Índia, um “Estado nuclear relutante” e não-militarista, que somente teria optado pela via atômica em resposta a três reveses externos: a ameaça chinesa (a vitória de Pequim na guerra sino-indiana de 1962 e o pioneiro teste nuclear chinês em 1964); o fracasso na tentativa de fazer do TNP um tratado não-discriminatório; e, nos anos 1980, a convicção de que Islamabade teria desenvolvido, com auxílio chinês, uma capacidade nuclear bélica.154 Shyam Saran acrescenta que a Índia, apesar de seu status nuclear, permanece comprometida com o desarmamento global e teria – ao contrário do Paquistão – um legado imaculado em matéria de proliferação horizontal para outros Estados.155 Para C. Raja Mohan, a disposição indiana em adotar unilateralmente os padrões dos regimes de segurança nuclear – sobretudo o Grupo de Supridores Nucleares – e a elaboração de uma doutrina atômica defensiva teriam comprovado, a posteriori, a “inocência” do país em matéria de não-proliferação.156

154

GHOSE, Arundhati. “Disarmament and India’s nuclear diplomacy: evolution of a ‘reluctant’ nuclear weapon State” in SINHA, Atish & MOHTA, Madhup (ed.). Indian Foreign Policy: Challenges and Opportunities, pp. 979-1007. 155 SARAN, Shyam. “Nuclear non-proliferation and international security – an Indian perspective” in SINHA, Atish & MOHTA, Madhup (ed.). Op. cit., pp. 1009-1017. 156 MOHAN, C. Raja. “The evolution of Indian nuclear doctrine” in SINHA, Atish & MOHTA, Madhup (ed.). Op. cit., pp. 1019-1038.

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Postura ainda mais explícita é a do influente estrategista K. Subrahmanyam:

“India was compelled157 to go nuclear because of the obduracy of nuclear-weapons powers, the legitimization of nuclear weapons by the international community, and the rising trend in interventionism by the industrialized nations in the affairs of the developing world. It became necessary to protect158 the autonomy of decision making in the developmental process and in strategic matters that are inalienable democratic rights of one sixth of mankind living in India.”159 Jaswant Singh, Chanceler e Ministro da Defesa sob o Primeiro-Ministro Atal Bihari Vajpayee, responsável pelos testes nucleares de 1998, justifica a nuclearização da Índia com base em argumentos morais (a recusa em aceitar a divisão do mundo entre “haves” e “have-nots” nucleares, conforme o TNP) e também realistas – a “difícil vizinhança” sino-paquistanesa da Índia. Após afirmar que Nova Delhi se viu obrigada a testar seu arsenal antes da entrada em vigor do CTBT, Singh questiona, retoricamente:

“If the permanent five's possession of nuclear weapons increases security, why would India's possession of nuclear weapons be dangerous? If the permanent five continue to employ nuclear weapons as an international currency of force and power, why should India voluntarily devalue its own state power and national security? Why admonish India after the fact for not failing in line behind a new international agenda of discriminatory nonproliferation pursued largely due to the internal agendas or political debates of the nuclear club?”160

Previsivelmente, essas teses são vistas com grande ceticismo por fontes oficiais e semi-oficiais paquistanesas, para quem a política nuclear indiana é parte de um projeto expansionista de hegemonia regional, analogamente à candidatura do país a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Naeem Salik afirma que a “explosão nuclear pacífica” de 1974, em vista da natureza dual dessa tecnologia, teria sido mero 157

Grifo nosso. Grifo nosso. 159 SUBRAHMANYAM, K. Op. cit., pp. 63-84. 160 SINGH, Jaswant. “Against Nuclear Apartheid”, s.p. 158

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pretexto para o desenvolvimento de um programa militar por parte de Nova Delhi, cujo objetivo primordial seria a obtenção de poder e prestígio. Os 24 anos decorridos até os testes de 1998 teriam sido necessários para que a Índia obtivesse quantidades suficientes de urânio e plutônio, desenvolvesse seus vetores de lançamento, principalmente mísseis, e criasse estruturas de comando e controle para seu futuro arsenal nuclear.161 De fato, após o teste de 1974 a Índia nunca explorou o potencial não-bélico de explosões atômicas, como, hipoteticamente, na construção civil. Segundo Feroz Hassan Khan, que identifica a ambição nuclear indiana já em pronunciamentos ambíguos de Nehru, nos anos 1940, a “obsessão” de Nova Delhi em competir militarmente com a China teria conduzido à nuclearização do Sul da Ásia.162 É praticamente unânime, no Paquistão, a condenação do Acordo Nuclear Civil EUA-Índia de 2005/6163, tido como discriminatório por legitimar ex post facto o programa atômico de Nova Delhi, mas não o de Islamabade – o que ecoa, curiosamente, o raciocínio normativo utilizado por autoridades indianas para criticar o próprio TNP. Para contrarrestar os efeitos do pacto indo-americano, o Governo do Paquistão adotou duas medidas principais desde então: buscou legitimar, junto ao Grupo de Supridores Nucleares, acordo semelhante que firmara com a China; e impediu, a partir de 2009, o avanço das negociações a respeito do FMCT, no âmbito da Conferência de Desarmamento, abandonando a costumeira ambivalência do país a respeito164 e

161

SALIK, Naeem. Op. cit., pp. 12-67. HASSAN KHAN, Feroz. “Pakistan’s Perspective on the Global Elimination of Nuclear Weapons” in BLECHMAN, Barry (ed.). Unblocking the Road to Zero: Perspectives of Advanced Nuclear Nations. 163 Declaração Conjunta anunciando a cooperação nuclear indo-americana foi elaborada em 2005; o Acordo foi firmado no ano seguinte. 164 MIAN, Zia & NAYYAR, A. H. “Playing the Nuclear Game: Pakistan and the Fissile Material Cut-Off Treaty”. 162

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alegando que o FMCT “perpetuaria a instabilidade regional” por favorecer, alegadamente, a Índia, que já detém estoques mais amplos de materiais físseis.165 O pensamento autônomo de matriz racionalista/realista em Relações Internacionais oferece, evidentemente, maior diversidade interpretativa do que os discursos oficiais ou semi-oficiais da Índia e do Paquistão. Na categorização de Sasikumar e Way, há três conjuntos de respostas racionalistas à indagação geral sobre o que leva os Estados a desenvolver armas nucleares: determinantes tecnológicas (a inferência realista de que que todo Estado com capacidade para construir arsenais atômicos um dia o fará); determinantes externas (ameaças à segurança e à sobrevivência do Estado); e determinantes domésticas (disputas eleitorais, ideologias, influência de aparatos burocráticos, tipo de regime político, etc). 166 De maneira similar, Scott Sagan, referência do realismo defensivo em estudos nucleares, identifica três modelos teóricos a partir da literatura existente sobre proliferação: o “modelo da segurança”, segundo o qual os Estados proliferam para reagir a ameaças externas; o “modelo da política doméstica”, que atribui objetivos eleitorais ou de popularidade interna à proliferação; e o “modelo normativo”, que insere a proliferação na procura dos Estados por legitimidade política internacional.167 Especificamente no caso indiano, a busca da proliferação decorreria de fatores sistêmicos, na análise de T. V. Paul, para quem a exclusão de Nova Delhi da hierarquia nuclear global (consagrada pelo TNP) teria forçado o país a desenvolver um arsenal

165

MUSTAFA, Malik Hasin. “FMCT and Pakistan: futuristic perspectives”. SASIKUMAR, Karthika & WAY, Christopher. “Testing Theories of Proliferation in South Asia” in SAGAN, Scott (org.). Inside Nuclear Asia, pp. 68-70. 167 SAGAN, Scott. “Why do States Build Nuclear Weapons? Three Models in Search of a Bomb”, pp 5486. 166

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independente para reforçar sua posição na equação mundial de poder.168 David Malone atribui à transição do “idealismo unificado” nehruviano para o “realismo intermitente” de Indira Gandhi, nos anos 1960, a decisão de abandonar o ativismo anti-nuclear e adotar gradualmente a via da proliferação.169 Ashley Tellis, autor do mais pormenorizado estudo de matriz neorrealista sobre o tema, identifica quatro variáveis estratégicas que determinariam o ritmo e a direção do programa nuclear indiano: o caráter do regime nuclear global; as ameaças regionais à segurança do país, sobretudo se atômicas; o estado das relações bilaterais entre Nova Delhi e as potências centrais do sistema internacional; e a evolução da política interna indiana, inclusive em termos de disputa ideológica ou eleitoral.170 O que une essas hipóteses realistas ou neorrealistas é a crença comum na objetividade e no utilitarismo do comportamento proliferador de Nova Delhi, que derivaria de cálculos frios e racionais, ainda que influenciados pela experiência histórica particular do país. Parte-se do pressuposto que armas nucleares teriam o mesmo significado para todos os Estados em todas as épocas, o que leva a frequentes analogias entre a “guerra fria” indopaquistanesa e a Guerra Fria original, com letras maiúsculas, entre Estados Unidos e União Soviética.171 Com efeito, grande parte da literatura atual sobre proliferação no sul da Ásia se debruça sobre a eficácia (ou ineficácia) da dissuasão nuclear regional, como nos duelos acadêmicos de Kenneth Waltz versus Scott Sagan172 e Sumit Ganguly contra S. Paul

168

PAUL, T.V., “India, the International System, and Nuclear Weapons” in SARDESAI, D. R & THOMAS, Raju (ed.), Nuclear India in the Twenty-First Century, pp. 85-104. 169 MALONE, David. Does the Elephant Dance? Contemporary Indian Foreign Policy, pp. 50-1. 170 TELLIS, Ashley. India’s Emerging Nuclear Posture: Between Recessed Deterrent and Ready Arsenal, pp. 9-115. 171 BASRUR, Rajesh. South Asia’s Cold War: Nuclear Weapons and Conflict in Comparative Perspective. 172 SAGAN, Scott & WALTZ, Kenneth. The Spread of Nuclear Weapons: a Debate Renewed.

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Kapur173; sobre a segurança do arsenal nuclear paquistanês e o risco de proliferação para atores não-estatais, como grupos terroristas ou separatistas174; ou sobre a evolução das doutrinas estratégicas de ambos os países – a dicotomia entre o Paquistão, que por ser mais frágil adotaria doutrina nuclear ofensiva e postura convencional defensiva, e a Índia, que por deter mais poder faria exatamente o contrário.175 Grande energia intelectual é gasta em debates sobre as implicações político-securitárias de temas relativamente técnicos, como a modernização dos sistemas missilísticos de Índia e Paquistão, medidas de fomento da confiança para evitar o lançamento equivocado de ogivas, a elaboração de doutrinas que permitem o “uso tático” (apenas no campo de batalha) de armas nucleares, e as consequências de um eventual escudo indiano contra mísseis balísticos.176 Ainda que meritórios, tais debates são quase inevitavelmente reducionistas. Cada um à sua maneira, os autores realistas terminam por reduzir as ambiguidades, incertezas, fobias e tensões estratégicas e identitárias entre Índia e Paquistão a algo que ela simplesmente não é: uma espécie de equação matemática, complexa, rica em fatores, mas explicável e previsível sob a égide da busca racional pela maximização de poder em um ambiente internacional anárquico, no qual os interesses nacionais seriam evidentes e permanentes.

173

GANGULY, Sumit & KAPUR, S. Paul. Op. cit. ROSENSTEIN, Matthew (ed.). Swords and Ploughshares: Reassessing Nuclear South Asia. 175 TELLIS, Ashley. Op. cit. 176 KREPON, Michael (ed.). Nuclear Risk Reduction in South Asia. 174

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Desconstruindo a Índia nuclear Teóricos de viés construtivista, mais próximos epistemologicamente da Escola de

Copenhague,

têm

oferecido

interpretações

alternativas

às

teorias

realistas/racionalistas sobre a nuclearização da Índia. Andrew Latham, por exemplo, argumenta que a perspectiva indiana, em matéria de segurança, é “influenciada por crenças, tradições, atitudes e símbolos que modulam as maneiras pelas quais diplomatas e formuladores de políticas percebem seus interesses e valores, tanto em substância como em estilo.”177 Com efeito, desde a independência, a política de segurança de Nova Delhi foi moldada pela auto-percepção da Índia como potência regional, e hipoteticamente global; e, a partir da década de 1990, paralelamente à ascensão do BJP, pelo sentimento assertivo de excepcionalismo e orgulho hindu (hindutva). Tais sentimentos possibilitaram a adoção de um discurso securitizador voltado contra os rivais regionais (Paquistão e China) e, em um nível superior, contra os propósitos supostamente neocolonialistas do Ocidente. Some-se a isso a crença, por parte do Governo da Índia, em um droit de regard quanto aos demais países do subcontinente, o que justificou, nos anos 1980, ações militares ou sanções econômicas contra Sri Lanka, Maldivas e Nepal, além da intervenção pela independência de Bangladesh, em 1971. Latham identifica quatro elementos centrais da autopercepção nacional indiana. A Índia se considera um Estado federal, secular e democrático, moralmente superior aos regimes ocasionalmente centralizadores, autoritários ou confessionais de seus vizinhos; uma civilização milenar, cuja identidade é única e cujo legado histórico-cultural merece respeito comparável ao desfrutado pela China; uma "força moral" da política 177

LATHAM, Andrew. “Constructing National Security: Culture and Identity in Indian Arms Control and Disarmament Practice”, pp. 130-158.

86

internacional, herdeira dos métodos gandhianos de não-violência e defesa da verdade; e, por fim, uma nação profundamente independente, não-alinhada, autárquica e capaz de autossuficiência econômica (swadeshi) e autogoverno político (swaraj).178 Tal auto-percepção indiana, ainda segundo Latham, gerou uma cultura de segurança centrada nos seguintes axiomas: a crença na preponderância (e não no equilíbrio) regional como chave para a paz e a estabilidade do sul da Ásia; o comprometimento discursivo com o desarmamento global, mas não necessariamente com a não-proliferação; a defesa da não-discriminação entre as potências, o que inter alia implica rejeitar o TNP; e o ceticismo quando a medidas de fomento da confiança.179 A consequência natural dessas crenças, valores e preferências foi o desenvolvimento de armas nucleares. Para Nova Delhi, o arsenal atômico é instrumento de preponderância regional; corresponde ao direito legítimo da nação indiana, malgrado a oposição das grandes potências; é coerente com o patrimônio histórico de uma grande civilização; e fortalece a autossuficiência política do país. Em suma, para a Índia a arma nuclear é um triunfo estratégico, mas também um direito moral e quase um imperativo identitário. Ao investigar a decisão indiana de realizar testes nucleares em 1998, momento de paz relativa no subcontinente180, Jacques Hymans salienta a importância decisiva do que denomina “nacionalismo oposicional” hindu, sentimento esposado pelo BJP. Ao

178

Idem. Ibidem. 180 Em 1998, a insurgência na Caxemira já havia perdido força. O Paquistão, então envolto em acirradas disputas políticas domésticas, não parecia representar ameaça imediata para a Índia e reduzia seu apoio ao jihadismo anti-indiano. A China já havia assinado o TNP (1992). O Afeganistão, então majoritamente sob controle do Taleban, não era ainda percebido como fonte de instabilidade regional. Os EUA demonstravam pouco interesse pelo subcontinente. Mais importante, o terrorismo transnacional de origem sul-asiática, com seus temores conexos de proliferação nuclear para agentes não-estatais, não havia sido macrossecuritizado; sê-lo-ia apenas em 2001, conforme BUZAN, Barry. “The ‘War on Terrorism’ as the new macro-securitisation?”, pp. 1-25. 179

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contrário do tradicional nacionalismo do Partido do Congresso, centrado na própria Índia (fonte de orgulho e busca por prestígio e desenvolvimento), o Bharatiya Janata praticava uma modalidade de nacionalismo definida pelo temor e pelo desprezo em relação a um Outro – no caso, o Paquistão.181 Em outras palavras, a evolução identitária indiana, corporificada pela ascensão do BJP, levou o país a alterar seu status estratégico, assumindo-se potência nuclear declarada e adotando maior confrontacionismo em relação aos vizinhos. Essa hipótese foi convalidada por Vipin Narang, que analisou o contexto e a justificação política de cada um dos 49 testes de mísseis balísticos – indissociáveis dos programas nucleares – da Índia entre 1988 e 2008. Narang identificou uma clara correlação entre os momentos de tensão regional e os testes ordenados pelo BJP, sempre legitimados pelo Governo com discursos explicitamente anti-paquistaneses (e por vezes anti-chineses), exemplares do nacionalismo oposicional de que fala Hymans. Em contraste, nos períodos de predomínio do Partido do Congresso e de seu nacionalismo centrado na autossuficiência econômico-tecnológica (“tecnonacionalismo”), os testes balísticos não tiveram relação com atritos regionais, e apenas serviram como demonstração ou experimentação de novas tecnologias.182

O programa nuclear monotemático do Paquistão Em nítido contraste com a multiplicidade de motivos invocados para justificar e compreender o programa nuclear indiano, há uma clara convergência política e acadêmica em torno da única rationale do projeto atômico do Paquistão: a segurança.

181

HYMANS, Jacques. Op. cit., pp. 139-160. NARANG, Vipin. “Pride and Prejudice and Prithvis: Strategic Weapons Behavior in South Asia” in SAGAN, Scott (ed.). Inside Nuclear South Asia. Stanford: Stanford University Press, 2007, pp. 137-183. 182

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Se a Índia considera seu programa nuclear parte de um projeto nacional mais amplo e ambicioso, o arsenal paquistanês está submetido às dinâmicas das relações bilaterais com o país vizinho. O discurso oficial de Islamabade atribui a nuclearização do continente à subsistência dos contenciosos com Nova Delhi, sobretudo a questão da Caxemira. É significativo que Shamshad Ahmad, Secretário-Geral da Chancelaria paquistanesa no momento da nuclearização, tenha citado a Índia 16 vezes em um artigo de menos de três páginas no qual justifica os testes paquistaneses de 1998.183 Analistas paquistaneses, ligados ou não ao Governo, adotam tom quase idêntico. Feroz Hassan Khan insiste que a nuclearização paquistanesa é consequência da “obsessão” indiana em competir militarmente com a China, e assinala a necessidade da dissuasão nuclear diante de uma vizinhança na qual Islamabade se vê cercada por inimigos atuais (Nova Delhi) e potenciais (Cabul e Teerã), além de enfrentar o terrorismo doméstico. Sua explicação é tipicamente neorrealista:

For a poor country like Pakistan, balancing its military resources between multiple contingencies is extremely challenging. As Pakistan’s conventional forces are reoriented against the internal insurgent and terrorist threats, nuclear deterrence gains strength in the minds of Pakistani leaders and planners as the most reliable factor to defend against India. Pakistani leaders believe Indian threats are real and justify nuclear weapons in a region in which strategic stability is far from assured.184

Naeem Salik também relaciona o programa nuclear de Islamabade às percepções de segurança e às “compulsões geopolíticas” que pairam sobre o país, e observa que a arma atômica é vista pelas elites paquistanesas, desde os anos 1970, como indispensável 183

AHMAD, Shamshad. “The Nuclear subcontinent: Bringing stability in South Asia” in Foreign Affairs, v. 78, n. 4, July/August 1999, pp. 123-5. 184 HASSAN KHAN, Feroz. Op. cit., p.7.

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garante da independência nacional. Salik aponta, dentre os já referidos modelos teóricos da proliferação criados por Scott Sagan – o da segurança, o da política doméstica e o modelo normativo – , a clara supremacia do primeiro no caso paquistanês.185 Historiadores e pesquisadores independentes em Relações Internacionais chegam a conclusões semelhantes. Segundo Stephen Cohen, Zulfikar Ali Bhutto iniciou o programa nuclear paquistanês com dois objetivos em mente: igualar o poder militar indiano e reduzir a influência doméstica das Forças Armadas (objetivo que se tornou inviável após o golpe de Estado militar de Zia ul-Haq, em 1977). Uma vez obtida, a bomba atômica poderia criar a ilusão de paridade estratégica no continente – o que convenientemente ignora o fato de que o programa nuclear paquistanês, segundo Cohen, teve sucesso graças à espionagem industrial e à assistência estrangeira.186 Bhumitra Chakma identifica, em todos os momentos cruciais da trajetória nuclear paquistanesa, da decisão de rejeitar o TNP (1968) aos testes nucleares lançados três décadas mais tarde, a percepção de que a Índia representaria ameaça existencial ao país, e de que os aliados paquistaneses não seriam confiáveis.187 Com efeito, a relativa indiferença de China e EUA durante a Guerra de Bangladesh, em 1971, não apenas desapontou Islamabade, mas foi fator essencial para a tomada da decisão nuclear.188 Corroborando tal explicação, Karthika Sasikumar e Christopher Way analisaram quantitativamente as variáveis que historicamente encorajaram – ou desestimularam – os Estados a obter armas nucleares, e concluíram que a ausência de pactos defensivos

185

SALIK, Naeem Ahmad. “Pakistan's Nuclearisation - Imperatives of National Security and Survival of a Smaller State”, pp. 1-20. 186 COHEN, Stephen. The Idea of Pakistan, pp. 80-1. 187 CHAKMA, Bhumitra. Op. cit., pp. 9-38. 188 Os Estados Unidos chegaram a enviar o porta-aviões USS Enterprise para a baía de Bengala durante o conflito, mas esse gesto simbólico de apoio ao Paquistão não teve consequências concretas. A afiliação paquistanesa a dois pactos defensivos da Guerra Fria, SEATO e CENTO, tampouco proporcionou qualquer tipo de auxílio militar a Islamabade em 1971.

90

plausíveis com grandes potências é, ao lado da existência de uma rivalidade duradoura e da disponibilidade de uma base industrial suficiente, o maior incentivo para que um Estado desenvolva programas nucleares bélicos. Os autores aplicam tal hipótese ao Paquistão, com sucesso.189 Embasando tais interpretações sobre a função defensiva do programa nuclearmissilístico do Paquistão, o levantamento de Vipin Narang sobre os testes missilísticos no sul da Ásia entre 1988 e 2008 confirmou, empiricamente, que a quase-totalidade dos engenhos testados por Islamabade o foi em momentos de tensão bilateral, geralmente em reação a manobras indianas percebidas como agressivas.190 A caracterização do programa nuclear paquistanês como procura por uma “bomba islâmica” – termo utilizado pelo próprio Bhutto – é ocasionalmente feita por analistas.191 Trata-se, porém, de explicação falaciosa, que inverte causa e consequência. Coerentemente com as estratégias de relegitimação confessional do Estado paquistanês após a guerra civil de 1971192, o Islã tem sido instrumentalizado para justificar, interna e externamente, um arsenal nuclear cuja origem é, exclusivamente, anti-indiana. Isso é comprovado pelas características técnicas dos vetores de lançamento nuclear do Paquistão: todos os mísseis balísticos e de cruzeiro paquistaneses, assim como os aviões-caça de que dispõe o país para executar eventuais bombardeios nucleares, têm curto ou médio alcance e foram especificamente projetados para atingir alvos

189

SASIKUMAR, Karthika & WAY, Christopher. Op. cit., pp. 93-8. NARANG, Vipin. Op. cit., pp. 139-160. 191 PATTANAIK, Smruti. “Pakistan’s Nuclear Strategy”, pp. 6-7. 192 NASR, Vali. “National Identities and the India-Pakistan Conflict” in PAUL, T. V. The India-Pakistan Conflict: An Enduring Rivalry, pp. 178-201. 190

91

indianos.193 Atualmente, Islamabade não é capaz de lançar engenhos nucleares contra outros hipotéticos inimigos, como Israel.194 Imperativos de sobrevivência, e não principalmente de prestígio, têm pautado o programa nuclear paquistanês desde sua origem. Os grandes sacrifícios materiais e diplomáticos feitos pelo país para preservar sua opção atômica, apesar de pressões externas; as circunstâncias específicas dos momentos nos quais o Paquistão decidiu desenvolver armas nucleares (1972) e testá-las (1998), em ambos os casos para reagir a manobras indianas construídas como ameaças existenciais; a percepção, reforçada historicamente, de não-confiabilidade das alianças militares do país; e as características técnicas dos vetores nucleares paquistaneses confirmam, afinal, que o programa nuclear de Islamabade é apenas dissuasivo e não hegemônico ou ideológico. Porém, como observa Schelling, dissuasão não é sinônimo de defesa.195 A doutrina militar paquistanesa, que permite o primeiro-uso de armas atômicas, contempla seu uso tático no campo de batalha e tem um limiar (threshold) nuclear baixo, é claramente mais ofensiva que a indiana, atada pela no-first-use policy de Nova Delhi.196 O aparente paradoxo entre a natureza defensiva e a doutrina ofensiva do programa nuclear de Islamabade é facilmente compreensível. O Governo paquistanês desenvolveu armas atômicas em resposta à percepção de inferioridade em armamentos convencionais de que se ressente desde 1971; e, justamente por causa dessa percepção, elaborou uma doutrina nuclear ofensiva, que visa a neutralizar ativamente a evidente vantagem militar convencional da Índia. 193

SALIK, Naeem. The Genesis of South Asian Nuclear Deterrence: Pakistan’s Perspective, pp. 206212. 194 KILE, Shannon, FEDCHENKO, Vitaly, GOPALASWAMY, Bharath & KRISTENSEN, Hans. Op. cit., pp. 319-359. 195 SCHELLING, Thomas. Op. cit., pp. 78-80. 196 SAGAN, Scott. “The Evolution of Indian and Pakistani Nuclear Doctrine” in Inside Nuclear Asia, pp.219-220.

92

Em um nível mais profundo, a rationale por trás do cálculo estratégico e psicológico paquistanês é o que Jean-Luc Racine chama de “Síndrome da Índia”: a arraigada crença de que o país rival, que se considera multiconfessional e portanto questiona a legitimidade de Estados fundamentados em identidades religiosas, até hoje não aceitou a partição de 1947 e gostaria de desfazê-la.197 Com efeito, três gerações após o divórcio indopaquistanês, muitos influentes comentaristas indianos, como M. J. Akbar, ainda argumentam que paquistaneses e indianos são um só povo, ainda que tenham seguido trajetórias diferentes.198 Investigaremos em mais detalhes os ressentimentos, as mentalidades, as crenças, as percepções e os temores mútuos entre Índia e Paquistão no próximo capítulo; basta, por ora, assinalar que a sensação paquistanesa de perene insegurança é, segundo convergência acadêmica, responsável pela arriscada iniciativa de desenvolver arsenal nuclear próprio.

Armas nucleares no Sul da Ásia: a securitização assimétrica Há clara assimetria entre os dois programas nucleares da Ásia Meridional – não necessariamente em termos tecnológicos ou quantitativos, mas em relação aos propósitos e significados de cada programa. Disso, decorre a securitização assimétrica do tema pelos dois Estados. No continuum entre não-politização, politização e securitização de questões de segurança, a securitização nuclear paquistanesa alcança o patamar máximo, é inteiramente consolidada em termos discursivos e não está aberta a questionamentos; por sua vez, a securitização indiana é menos extremada, decorre de debate político interno e poderia ser desfeita (dessecuritizada) com maior facilidade.

197

RACINE, Jean-Luc. “Pakistan and the ‘India Syndrome’” in Pakistan: Nation, Nationalism and the State, p. 198. 198 AKBAR, M. J. Tinderbox: The Past and Future of Pakistan, p. xvi.

93

Em ambas as situações, o Estado é o ator securitizador que designa a condição estratégica do país (equilíbrio regional com Nova Delhi, no caso paquistanês; equilíbrio interregional com Pequim, autossuficiência geopolítica e status no sistema internacional, no caso da Índia) como objeto referente sujeito a ameaças existenciais, o que justifica a tomada de medidas extraordinárias – a própria nuclearização. Porém, apenas no Paquistão a securitização foi completa, ou seja, efetivamente retirou o tema do debate político regular; na Índia, a escolha nuclear é parte de um projeto de nação definido e implantado por meio do diálogo democrático, o que torna plausível, embora não provável, eventual dessecuritização do tema. Para melhor compreender a assimetria nas securitizações nucleares do subcontinente, também é útil recorrer aos três elementos que, no “modelo sociológico” da securitização, de Thierry Balzacq, determinam o sucesso ou o fracasso dos processos securitizadores: a audiência, o contexto e as relações de poder entre agente e sistema.199 Sinteticamente, nossa investigação propõe o seguinte quadro:

199

BALZACQ, Thierry. “The Three Faces of Securitization: Political Agency, Audience, and Context”, p. 176-9.

94

Elementos da securitização

Índia

Ator securitizador

Estado (democrático, secular)

Setores de segurança

Militar (explicitamente),

Militar (explicitamente), político

envolvidos

político e societal

e societal

Condição estratégica do país

Condição estratégica do país em

em escala regional e global

escala regional

Objeto referente

Paquistão Estado (autoritário, parcialmente confessional)

Indeterminada (Discriminação

Alegada ameaça ao objeto

das grandes potências?

Índia hegemônica e

referente

Militarismo chinês? Atraso

possivelmente expansionista

tecnológico indiano?)

Medidas extraordinárias Estratégia discursiva para legitimar a securitização Principal audiência

Nuclearização

Nuclearização

“Autossuficiência” (swaraj e

“Síndrome da Índia”, “bomba

swadeshi) em 1974, “potência”

islâmica”, “equilíbrio/paridade

(shakti e hindutva) em 1998

estratégica regional”

Opinião pública

O próprio establishment estatal

Partidos políticos, burocracia Forças Armadas estatal, academia, opinião

Atores funcionais

(principalmente), burocracia pública, imprensa, Forças estatal, academia e potências Armadas e potências extrarregionais (China e EUA) extrarregionais (China e EUA)

Contexto interno

Democracia (salvo Estado de

Diversos tipos de autoritarismo,

Exceção 1975-77), controle civil

permanente predomínio militar

Consolidação da independência

Contexto externo

politica e tecnológica nacional

Declínio estratégico e ameaça

(teste de 1974); ascensão do

percebida de anexação indiana

país ao status de potência

após 1971

(teste de 1998) Favorável no interior do CRS; Desfavorável no interior do CRS

Relações de poder agente-

desfavorável no nível (ante Índia). Estado pouco interregional (ante China);

estrutura

relevante nos níveis contestador no nível global interregional e global (potência emergente) Sim, embora improvável;

Dessecuritização possível?

Impossível sem reconciliação depende de consenso político com a Índia interno e desarmamento global

95

Como esboça o quadro supra, se é verdadeiro que as securitizações nucleares paquistanesa e indiana se reforçam mutuamente, elas são muito distintas entre si. É a natural consequência das divergências entre os países em termos de regime doméstico, política externa, equilíbrio das relações civil-militares, caráter do Estado e natureza da identidade nacional. Como argumentam Farzana Shaikh200 e Vali Nasr201, o dilema identitário é o cerne da dualidade indopaquistanesa. A dissonância identitária entre os vizinhos é a força motriz da longeva rivalidade regional na Ásia Meridional. A identidade nacional paquistanesa, projeto recente, inacabado e contraditório, existe largamente em oposição à Índia, mas a recíproca não é verdadeira. O mesmo raciocínio é válido para os programas nucleares dos respectivos países: o Paquistão buscou obter arsenais atômicos para se defender da ameaça – real ou imaginada – da Índia, buscando uma impossível paridade; por sua vez, Nova Delhi não se armou para enfrentar o Paquistão, ou mesmo a China, mas sim para alavancar o próprio projeto desenvolvimentista nacional, obter prestígio e reforçar a projeção do país no mundo. Como sua identidade nacional artificial202 e confessionária, o programa atômico do Paquistão é negativo; em contraste, a nuclearização da Índia, à imagem da identidade secular e não-excludente do país, é positiva. Se o contexto do anno nuclearis da Índia – aproximadamente 1965 – foi de mudanças políticas domésticas, a “decisão nuclear”

200

SHAIKH, Farzana. Making Sense of Pakistan. NASR, Vali. Op. cit. 202 Em caso único no mundo, o próprio nome “Pakistan”, além de significar “terra dos puros” em urdu, é acrônimo criado em 1933 pelo estudante Choudhary Rahmat Ali para amalgamar as iniciais das regiões que viriam a compor o futuro país: Punjab, Afegãos (na realidade pashtuns – a atual província do KhyberPakhtunkhwa), Kashmir, Sindh e –tan para o Baluquistão. Note-se que Bengala Oriental, que se tornou o Paquistão Oriental e atualmente é Bangladesh, não foi contemplada. 201

96

inicial do Paquistão foi tomada precisamente quando a identidade do país, como santuário dos muçulmanos do Sul da Ásia, foi irremediavelmente comprometida: 1971. Isso não significa, contudo, que o programa nuclear indiano tenha sido inteiramente livre de influências identitárias negativas. Pelo contrário: o pioneiro teste atômico bélico de Nova Delhi, em 1998, foi decisão do primeiro Governo de cunho nacionalista hindu203, e exprimiu o “nacionalismo oposicional” do BJP.204 Significa, tão-somente, que a nuclearização da Ásia Meridional envolve os setores político e societal de segurança, além do militar, e tem raízes mais profundas do que aparenta. Entre os atores funcionais das securitizações em análise, destacam-se as Forças Armadas, a comunidade acadêmica e as potências extrarregionais capazes de influência e ingerência no Complexo Regional de Segurança da Ásia Meridional, principalmente China e Estados Unidos. Na Índia, os partidos políticos, a imprensa e a opinião pública se somam à lista; no Paquistão, o tema foge aos processos democráticos regulares. Praticamente não há debate público sobre a legitimidade e a conveniência do arsenal nuclear do Paquistão. Pelo contrário, os “ativos estratégicos” nacionais dispõem de uma aura quase sobrenatural, acima de qualquer crítica. O aniversário dos testes nucleares de 28 de maio de 1998 é celebrado anualmente pelos paquistaneses como youm-e-takbeer, o “dia da grandeza divina”, em tradução aproximada. Numerosas praças públicas são ornamentadas com mementos do programa nuclear do país, como mísseis desativados ou réplicas do campo de testes de Chagatai. A preponderância política, econômica, institucional e discursiva do aparato militar no âmbito do Estado paquistanês está no âmago da securitização das armas

203 204

BAJPAI, Kanti. “The BJP and the Bomb” in SAGAN, Scott (org.), Inside Nuclear Asia, pp. 25-67. HYMANS, Jacques. Op. Cit., pp. 139-160.

97

nucleares por parte do Governo do Paquistão e de suas Forças Armadas. A respeito, escreve Samina Ahmed: Discourse on security issues in Pakistan is determined by the lack of transparency in the formulation of policy and the absence of an informed public debate. The lack of debate is the result of deliberate state policy and a by-product of the political system. For most of Pakistan’s history, political power has been exercised by the military through the civil bureaucracy. Not only has the military attempted to maintain complete control over policy in areas of particular sensitivity, it has also endeavoured to ensure that its interests and perceptions are not challenged by political rivals. Although successive military regimes have failed in their attempts to gain domestic legitimacy for authoritarian rule, they have succeeded in attaining popular acceptance of their security policies, particularly in the nuclear realm.205

O principal elemento que permitiu às Forças Armadas paquistanesas controlar o debate público sobre questões de segurança, e portanto securitizar sem dificuldades a proliferação de armas nucleares no subcontinente, é a intensa e assimétrica rivalidade do país com a Índia, marcada pela percepção de inferioridade estratégica desde a derrota militar de 1971. Adicionalmente, o acesso limitado da população paquistanesa a informação sobre o assunto, as restrições (apenas recentemente revogadas) sobre a liberdade de imprensa e os baixos índices educacionais do Paquistão facilitam ao Exército manejar confortavelmente o discurso de segurança no país.206 Entre a imprensa paquistanesa de língua inglesa, que atende à diminuta elite intelectual do país, há certo grau de debate sobre o arsenal nuclear do país, o que poderia enfraquecer a securitização aqui analisada. Contudo, são muito raras as vozes dissonantes. A mais influente é a do físico e pacifista Pervez Hoodbhoy, que advoga o fim da produção de materiais físseis, o fechamento das instalações de testes nucleares e 205

AHMED, Samina. “Public opinion, democratic governance and the making of Pakistani nuclear policy” in ARNETT, Eric. Nuclear Weapons and Arms Control in South Asia after the Test Ban, pp. 5474. 206 Idem.

98

a separação entre ogivas atômicas e seus vetores de lançamento, além do fim da “obsessão nacional” com a Caxemira.207 A percepção anti-indiana da segurança nacional paquistanesa, que justifica e até requer o desenvolvimento de um elemento de dissuasão nuclear, é quase unânime inclusive entre as próprias classes governantes do Paquistão. Não se trata, portanto, de um discurso top-down, mas de um virtual consenso securitizador, que repousa sobre os fundamentos históricos e identitários do projeto nacional paquistanês. O processo interno é mais complexo na Índia, cuja tradição democrática, ainda que imperfeita, impede a centralização das decisões em segurança no bojo das Forças Armadas e as submete a rígido controle civil. Se as comunidades acadêmicas de ambos os países influenciam a securitização, fazem-no de maneira bem distinta. É sintomático que a maioria da literatura paquistanesa sobre proliferação nuclear seja obra de militares da reserva, enquanto na Índia se verifica certo predomínio acadêmico de servidores civis, como diplomatas aposentados. Duas potências extrarregionais, China e Estados Unidos, também são atores funcionais relevantes da securitização em apreço. O primeiro foi decisivo para a nuclearização da Ásia Meridional: Pequim viabilizou tecnicamente o programa atômico paquistanês, e facilitou a legitimação do arsenal indiano, ao representar ameaça externa que Nova Delhi, com sucesso, explorou e ainda explora.208 O papel norte-americano é muito mais ambíguo. A superpotência alternou, de maneira errática, punições e recompensas ao Paquistão e à Índia em função de seus

207

HOODBHOY, Pervez & MIAN, Zia. “The India-Pakistan Conflict: Towards the Failure of Nuclear Deterrence”. 208 SAALMAN, Lora. “Divergence, Similarity and Symmetry in Sino-Indian Threat Perceptions”.

99

programas atômicos. Washington impôs sanções a Islamabade nos anos 1970 em nome da não-proliferação, depois as suspendeu em prol da luta anticomunista no Afeganistão, então as retomou na “década democrática” (1988-99) paquistanesa, e desde os testes de 1998 trata o Paquistão como espécie de pária nuclear, sem direito a privilégios no NSG e em posição de permanente suspeita desde o escândalo da rede de proliferação de A. Q. Khan. Já o tratamento dispensado à Índia oscilou da negligência benevolente, nos anos 1970 e 1980, às críticas à nuclearização militar em 1998; desde então, Washington mudou novamente sua postura e passou a patrocinar a legitimação internacional do programa atômico de Nova Delhi, como demonstraram o Acordo Nuclear de 2005/6 e a subsequente isenção das restrições do NSG para a Índia.209 Como relata Philip Oldenburg, a burocracia pública e a classe política eleita vêm disputando espaço e influência desde a incepção do Estado indiano.210 Praticamente nenhum tema foge a esse embate, e as armas nucleares não foram exceção. Sob genuína influência do pacifismo gandhiano-nehruviano, o establishment de Nova Delhi por muito tempo hesitou em desenvolver um programa atômico bélico, e somente o fez quando julgou que a escolha reforçaria a consolidação da autossuficiência econômica (swadeshi) e política (swaraj) da Índia. Em etapa posterior, as armas nucleares ganharam importância como símbolo de prestígio de uma potência em ascensão. Ao contrário do Paquistão, cujo ritmo de nuclearização não foi afetado pela alternância de Governos – entre o Partido Popular do Paquistão (PPP), de centoesquerda, legatário de Zulfikar Ali Bhutto e sua filha Benazir, e a Liga Muçulmana do Paquistão (PML), de centro-direita, herdeira indireta de Muhammad Ali Jinnah e controlada pelos irmãos Nawaz e Shahbaz Sharif – nos anos 1980 e 1990, a Índia teve

209 210

BAJORIA, Jayshree. “The U.S.-India Nuclear Deal”. OLDENBURG, Philip. India, Pakistan and Democracy: Solving the Puzzle of divergent paths.

100

seu projeto atômico influenciado pela disputa eleitoral, programática e principalmente identitária entre o Partido do Congresso e o BJP. Como abordamos, o teste nuclear de 1998 representou o triunfo do “nacionalismo oposicional” do Bharatiya Janata sobre seu maior rival eleitoral. Tal vitória foi efêmera, pois o Partido do Congresso voltou ao poder em Nova Delhi em 2004. Em virtude da existência de autêntico debate interno sobre o assunto, a dessecuritização das armas nucleares é plausível na Índia. Mais precisamente, é possível vislumbrar cenário em que o ator securitizador (Estado) deixará de julgar que requer medidas extraordinárias (o arsenal nuclear) para responder a ameaças existenciais (a discriminação das grandes potências, o militarismo chinês e o atraso tecnológico indiano) sobre um objeto referente (a condição estratégica da Índia, nos planos regional, interregional e global) que exige proteção. Conforme observa Rajesh Basrur, isso poderia acontecer em caso de desarmamento nuclear por parte do Paquistão (ameaça regional), da China (ameaça interregional) e dos demais Estados nuclearizados signatários do TNP (ameaça global) – uma hipótese improvável, mas não completamente impossível. Isso explica porque Nova Delhi, apesar de ser Estado proliferador

à

margem

do

TNP,

continua

apresentando

propostas

para

a

desnuclearização global, como fez na Conferência do Desarmamento, em 2008.211 Enquanto não houver reconciliação abrangente e definitiva com a Índia, é muito difícil imaginar dessecuritização comparável no Paquistão. Islamabade apenas renunciaria a suas medidas extraordinárias (armas nucleares), e abandonaria a lógica securitizadora de sua posição estratégica desfavorável no CRS da Ásia Meridional, caso fosse possível solucionar todos os contenciosos que opõem os países rivais, com destaque para a Caxemira, que analisaremos pormenorizadamente no próximo capítulo. 211

BASRUR, Rajesh. Op. cit, pp.15-22.

101

Já para as contradições inerentes às naturezas identitárias da Índia e do Paquistão, não parece haver resposta – a não ser, idealmente, que a integração regional prevista pela SAARC avance a ponto de tornar, um dia, irrelevantes as fronteiras políticas da Ásia Meridional. A hipotética dessecuritização do relacionamento indopaquistanês poderia levar à formação de uma comunidade de segurança no subcontinente. Já aventada por autores como Peter Jones212 e Alyson Bailes et alii213, essa possibilidade é, infelizmente, muito remota.

O contra-exemplo iraniano O programa nuclear do Irã, com os temores correlatos de proliferação horizontal para uma potência regional contígua ao Complexo Regional de Segurança da Ásia Meridional, serve de contra-exemplo extremamente nítido para os processos de securitização da proliferação nuclear entre Paquistão e Índia. A suposta – embora ainda não comprovada – intenção iraniana de obter armas nucleares motiva, sem dúvida, securitizações por parte dos círculos decisórios dos Estados Unidos, de certos membros da União Europeia e, em grau ainda mais intenso, do Estado de Israel, entre outros atores securitizadores. Ademais, o dossiê nuclear iraniano já foi macrossecuritizado no momento em que a Agência Internacional de Energia Atômica cedeu ao Conselho de Segurança das Nações Unidas a prerrogativa de debater e decidir sobre o tema, em 2006. Desde então, o programa atômico de Teerã é tratado como “ameaça à paz e à segurança internacional”, na conhecida formulação político-diplomática do CSNU.

212

JONES, Peter. “South Asia: Is a Regional Security Community Possible?”. BAILES, Alyson, GOONERATNE, John, INAYAT, Mavara, AYAZ KHAN, Jamshed & SINGH, Swaran. Regionalism in South Asian Diplomacy. 213

102

Todavia, Paquistão e Índia, embora possam ser fisicamente ameaçados pelo raio de ação de eventual futuro vetor nuclear do Irã, optaram por não securitizar o assunto, e o tratam de maneira discreta e com relativa neutralidade, por razões diversas. O Paquistão – que, em caso de nuclearização militar do Irã, seria cercado por três vizinhos detentores de armas atômicas214 – mantém relações relativamente benignas com o país persa. A potencial tensão entre uma teocracia xiita e um Estado de forte identidade sunita não tem se realizado. Islamabade mantém laços diplomáticos, militares e econômicos sólidos com as monarquias árabes do Golfo, particularmente a Arábia Saudita, principal antagonista regional do Irã; com frequência, isso permite ao Governo paquistanês exercer papel essencial de mediação entre Riade e Teerã. Embora tenham apoiado lados opostos na guerra civil afegã dos anos 1990 – Teerã patrocinava a Aliança do Norte, Islamabade o Talibã –, os vizinhos atualmente compartilham metas em relação a Cabul: impedir a destabilização regional, bloquear a permanência a longo prazo de forças norte-americanas e preservar suas respectivas “esferas de influência”, etnicamente definidas, no Afeganistão: domínio sobre o sul pashtun, no caso paquistanês, e sobre a região de Herat, na perspectiva iraniana. Os países compartilham inteligência no enfrentamento à insurgência separatista do Baluquistão215 e cooperam no projeto de gasoduto IPI (Irã-Paquistão-Índia, do qual Nova Delhi posteriormente suspendeu sua participação). O Paquistão compensa parte de seu déficit energético importando eletricidade do Irã. Mais significativo, a rede de A.Q. Khan – sem aval ostensivo do Governo do Paquistão216, mas provavelmente com a

214

Em todo o mundo, apenas a China tem mais vizinhos nucleares: a Índia e o próprio Paquistão a sudoeste, a Rússia ao norte e a Coreia do Norte a nordeste. 215 A região do Baluquistão conforma uma província no Irã (Sistan-e-Balochistan) e outra no Paquistão (Balochistan); em ambas, atuam diversos movimentos separatistas, alguns pacíficos e outros armados. 216 SALIK, Naeem. Op. cit, pp. 257-281.

103

anuência de parte da liderança militar – exportou secretamente tecnologia e projetos nucleares para o Irã a partir de 1987.217 A nuclearização do Irã poderia vir a ser detrimental para o Paquistão e seus percebidos interesses nacionais a longo prazo.218 Não obstante, Islamabade não tem adotado discursos ou medidas antagônicas ou condenatórias ao programa atômico do vizinho xiita, além da obrigatória obediência às sanções impostas pelo CSNU. Apesar de importantes divergências pontuais, como a cooperação militar indoisraelense, também a Índia alimenta relações geralmente positivas com o Irã.219 Após período de estranhamento diplomático nos anos 1980, quando Nova Delhi – para insatisfação de Teerã – apoiou a invasão soviética do Afeganistão, os dois países se reaproximaram na década seguinte. Hoje, são os mais dedicados patrocinadores regionais do Governo Karzai em Cabul. Nova Delhi importa quantidades crescentes de gás liquefeito de Teerã, e tem financiado o desenvolvimento do porto iraniano de Chahbahar, visto como potencial contrapeso estratégico ao novo porto paquistanês de Gwadar, construído com capitais chineses.220 A Índia também crê que o Irã é capaz de contrabalançar o significativo peso do Paquistão no mundo muçulmano, impedindo que Islamabade seja legitimada como líder da ummah. A cooperação bilateral encompassa, inclusive, incipientes parcerias no fornecimento e na manutenção de materiais militares, não obstante a oposição dos Estados Unidos a qualquer apoio ao Irã na matéria.221

217

CORERA, Gordon. Op. cit., pp.59-81. CHEEMA, Pervaiz Iqbal. “Nuclear Issue: Current Developments and Future Challenges for Pakistan” in JETLY, Rajshree (ed.). Pakistan in Regional and Global Politics, pp. 45-62. 219 ANSARI, Hamid. “India and the Persian Gulf” in SINHA, Atish & MOHTA, Madhup (ed.). Op. cit., pp. 275-291. 220 KAPLAN, Robert. Monsoon: The Indian Ocean and the Future of American Power, pp. 12-14. 221 PANT, Harsh. Contemporary Debates in Indian Foreign and Security Policy: India Negotiates its Rise in the International System, pp. 113-8. 218

104

Nova Delhi trata com grande cautela do dossiê atômico de Teerã. O Governo indiano tem votado contrariamente ao Irã na AIEA, e já emitiu diversas declarações oficiais de que não deseja ver a nuclearização do país persa; no entanto, parcialmente por não ser signatária do TNP e em boa medida para evitar alienar um importante parceiro regional, a Índia não tem criticado o Irã por suas supostas violações do regime de não-proliferação, e prefere se distanciar das discussões correlatas.222 Para frustração da Casa Branca e de analistas ocidentais, como Harsh Pant, o Governo da Índia se recusa a embasar discursos beligerantes quanto à possível nuclearização iraniana, e insiste – como o brasileiro, aliás – na via diplomática para solucionar a questão.223 Como visto, embora a questão nuclear iraniana seja de óbvia importância estratégica para a Ásia, devido a seu potencial de realinhar alianças e exacerbar tensões regionais, o assunto não é motivo de securitização por parte de Islamabade e de Nova Delhi. Entre o Irã e as duas potências nucleares da Ásia Meridional, não pesam os dilemas identitários que opõem existencialmente Paquistão e Índia desde 1947. O contra-exemplo iraniano demonstra que a securitização das armas nucleares não é inevitável ou automática. Esse quadro, porém, é volúvel. Caso evoluam percepções e realidades, nada impede que eventual nuclearização do Irã venha a ser securitizada pelo Paquistão, pela Índia ou por ambos no futuro – sobretudo em caso de corrida armamentista no Oriente Médio que envolva aliados paquistaneses cruciais, como a Arábia Saudita, ou se a partida da ISAF do Afeganistão, prevista para 2014, desencadear nova guerra civil em Cabul, o que poderia deteriorar significativamente as relações irano-paquistanesas.

222 223

MALONE, David. Op.cit., pp. 194-5. PANT, Harsh. Op.cit., pp. 119-129.

105

IV – TERRA, HOMENS, LUTA: AS MÚLTIPLAS SECURITIZAÇÕES TERRITORIAIS DA ÁSIA MERIDIONAL

“Two thousand souls and twenty thousand ducats Will not debate the question of this straw. This is the imposthume of much wealth and peace, That inward breaks, and shows no cause without Why the man dies.” (William Shakespeare. Hamlet, ato IV, cena IV, versos 26-30)

Em condições normais, qualquer Estado se apega ferrenhamente a sua integridade territorial, que constitui um dos fatores vitais de sua base física, como vimos no capítulo II. Contudo, assim como no caso da proliferação de armas nucleares, não há nada de intrínseco ou mecânico na securitização de todo e qualquer contencioso territorial entre Estados, ou no interior destes. Tudo depende do valor – político, econômico, estratégico, identitário ou simbólico – que se atribui à área em disputa. A Escola de Copenhague é taxativa a respeito, conforme escreve Buzan: Although as a rule states will contest all challenges to their territorial integrity, some pieces of territory are clearly more valuable than others. This value may arise because of resources, like oil in the areas contested between Iran and Iraq; because of transportation access, like the Polish Corridor; for reasons arising from historical tradition or the cultural identity of occupants, like Alsace-Lorraine; for symbolic reasons, like Berlin; for strategic reasons, like Gibraltar; or for combinations of these, such as the Falklands, Kashmir and Japan’s four northern islands.224

Nem todos os contenciosos territoriais em disputa no sul da Ásia são securitizados. Imediatamente após a citação supra, Buzan acrescenta que a Índia atribui 224

BUZAN, Barry. People, States and Fear, p. 90.

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muito menor prioridade às remotas áreas montanhosas anexadas pela China em 1962 (o Aksai Chin) que à Caxemira.225 Como veremos a seguir, há outras complexas disputas territoriais entre Índia e Paquistão. Contudo, apenas a Caxemira é objeto de vigorosa securitização. A região enquadra-se em todos os critérios de importância enumerados por Buzan: é rica em recursos naturais, principalmente hídricos226; é vital em termos de circulação, por conter a única fronteira terrestre entre o Paquistão e seu principal aliado, a China; tem função absolutamente crucial na construção identitária dos Estados paquistanês e indiano; é símbolo político potente, por representar o “negócio inacabado” da dolorosa Partição de 1947; e é estratégica, entre outros motivos, porque guarda a chave para a proteção militar de ambas as capitais – o controle da totalidade da Caxemira permitiria o acesso, sem defesas naturais, às cidades de Nova Delhi e Islamabade. Neste capítulo, analisaremos sucintamente as principais dinâmicas, causas e consequências da intensa e recíproca securitização indopaquistanesa em torno da Caxemira, incluindo a “subdisputa” pelo controle da geleira de Siachen. A seguir, estudaremos o caso bastante distinto do estuário fronteiriço de Sir (Sir Creek), parte do pântano costeiro conhecido como Rann de Kutch. O contencioso bilateral sobre o Rann de Kutch foi solucionado e dessecuritizado nos anos 1960, e a questão menor das águas territoriais do Sir Creek não é tratada como ameaça existencial por Índia e Paquistão; logo, é apenas politizada, e não justifica ações emergenciais de cunho securitizador. Posteriormente, vamos nos debruçar sobre o caso mais ambíguo da disputa territorial afegã-paquistanesa em torno da validade da Linha Durand e da eventualidade

225 226

Idem. Sobre a importância hídrica da Caxemira, ver o capítulo V.

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de um “Pashtunistão” independente a partir das zonas da fronteira, ou como parte integrante do Afeganistão.

Seis décadas de securitização na Caxemira Recitar em detalhes o histórico da Caxemira fugiria ao escopo deste trabalho e seria supérfluo, pois já foi feito inúmeras vezes,227 mas uma curta contextualização nos permitirá analisar as principais dimensões da disputa, sob o ângulo da securitização.

227

Ver, p.ex., SCHOFIELD, Victoria. Kashmir in Conflict: India, Pakistan and the Unending War; BOSE, Sumantra. Kashmir: Roots of Conflict, Paths to Peace; ROSENSTEIN, Matthew (org.). The Future of Kashmir; e INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Kashmir: Learning from the Past.

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Figura 2: Jammu e Caxemira, cujas fronteiras históricas estão delineadas em vermelho. Nota: no Paquistão, a Província da Fronteira Noroeste (NWFP) e as Áreas do Norte (Northern Areas) foram rebatizadas, respectivamente, Khyber-Pakhtunkhwa e Gilgit-Baltistão. (fonte: Perry Castañeda Map Collection)

A região montanhosa de Jammu e Caxemira (ou apenas “Caxemira”), situada entre as cordilheiras do Karakoram e do Himalaia, margeia Paquistão, Índia, China e Afeganistão, e é separada do Tadjiquistão (URSS até 1991) pelo Corredor de Wakhan, parte do Afeganistão. A população local, estimada em 14 milhões, é predominantemente muçulmana, mas há grande variedade confessional entre as sub-regiões: a chamada Azad Jammu Kashmir (sob administração paquistanesa, conhecida como AJK) e o o

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Vale da Caxemira têm maioria muçulmana sunita; o Gilgit-Baltistão é principalmente muçulmano xiita; a população de Jammu é geralmente hindu e sique; por fim, no escassamente povoado Ladakh, a maioria é budista. Não há povoamentos significativos no Aksai Chin, o setor controlado pela China, ou nas geleiras locais, como Siachen.228 A questão da Caxemira é de extração colonial. Formado em 1846 pela dinastia hindu dos dogras, o Estado de Jammu e Caxemira detinha grande autonomia durante o Raj britânico, à semelhança dos quase 600 domínios principescos do subcontinente indiano. No entanto, ao término da colonização, em agosto de 1947, o marajá hindu da Caxemira, Hari Singh, teve seu desejo de independência negado pelo último vice-rei britânico da Índia, Lord Mountbatten, e viu-se forçado a optar pela incorporação à Índia ou ao Paquistão. O marajá, então, hesitou por semanas sobre o futuro de seu reino, e chegou a assinar acordos provisórios (standstill agreements) com os dois novos países. Em outubro, por uma sucedânea de motivos – a diplomacia mais eficiente de Jawaharlal Nehru; o provável favoritismo por parte de Lord Mountbatten; e, principalmente, a ameaça militar representada por tribos pashtuns paquistanesas prestes a adentrar a capital da Caxemira, Srinagar –, Hari Singh assinou o instrumento de acessão à Índia, e solicitou imediatamente o envio de tropas indianas para se defender dos pashtuns.229 O Paquistão recusou prontamente a “anexação” indiana da Caxemira, alegando que o instrumento de acessão seria inválido por ter sido assinado sob coerção, e assim teve início a primeira guerra entre os vizinhos recém-independentes. Paralelamente, revoltas populares contra o marajá trouxeram as sub-regiões de Gilgit e do Baltistão para o controle paquistanês. A Índia assegurou que em breve, “assim que a lei e a ordem 228

SCHOFIELD, Victoria. Kashmir in Conflict: India, Pakistan and the Unending War, pp. 1-26. Mais de 60 anos depois, esses episódios históricos permanecem altamente controversos. Até hoje não se sabe qual a data exata da acessão da Caxemira à Índia, se antes ou depois da chegada de tropas indianas a Srinagar. O Governo da Índia nunca divulgou publicamente o documento de acessão firmado pelo marajá Hari Singh. Também não está claro qual foi o papel do Governo do Paquistão na campanha das tribos pashtuns na Caxemira. 229

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fossem restauradas e o reino fosse libertado do invasor”, organizaria um referendo para que os caxemires decidissem sobre seu futuro, o que nunca aconteceu. Em dezembro de 1947, Nova Delhi acionou o Conselho de Segurança, manobra de que se arrependeria mais tarde; a Índia esperava uma condenação clara do Paquistão, mas terminou por internacionalizar a disputa. O CSNU estabeleceu a Comissão das Nações Unidas para Índia e Paquistão (UNCIP), mais tarde substituída pelo Grupo Observador Militar das Nações Unidas para Índia e Paquistão (UNMOGIP), que permanece desdobrado na região até hoje.230 Mais importante, o Conselho determinou que a Índia realizasse um referendo “assim que possível” para definir o status da Caxemira, se parte do Paquistão ou da Índia, e negociou um cessar-fogo, o Acordo de Karachi, que entrou em vigor no primeiro dia de 1949.231 Após 14 meses de conflito, a Índia controlava dois-terços do antigo reino, inclusive o Vale da Caxemira, Jammu, Ladakh e Aksai Chin, coletivamente designados Jammu & Kashmir (J&K) pela Índia e Indian-Occupied Kashmir (IOK) pelo Paquistão. Por sua vez, o Paquistão deteve um terço da região: Gilgit, Baltistão e uma estreita faixa conhecida localmente como Azad Jammu Kashmir (“Caxemira Livre”), mas que a Índia denomina Pakistan-Occupied Kashmir (POK). A divisa provisória entre as duas porções era designada Linha de Cessar-Fogo, renomeada Linha de Controle em 1972. Nos anos 1950, os países consolidaram suas posições e demandas que, com pequenas mudanças, vigoram até hoje. A Índia insiste que que a totalidade de Jammu e Caxemira está sujeita a sua soberania, e não reconhece (oficialmente) a existência da disputa territorial; recusa qualquer referendo, tido como “inviável” e, na prática, tornado 230

A Índia considera o UNMOGIP redundante desde os Acordos de Simla (1972), mas não engendra esforços para removê-lo. O Paquistão defende a continuidade do mandato do UNMOGIP até que o Conselho de Segurança decida extingui-lo. 231 CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS. Resoluções 38 (1948), 39 (1948), 47 (1948) e 51 (1948).

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redundante pela realização de eleições regulares no território; considera que as resoluções do CSNU não são mais vinculantes, pois se referem a uma realidade que já foi alterada; vê a Caxemira como tema estritamente bilateral; e não aceita mediação, arbitragem ou bons ofícios. Embora o Governo da Índia não o diga explicitamente, sabe-se que Nova Delhi deseja converter a Linha de Controle em fronteira internacional indopaquistanesa, o que instantaneamente colocaria fim à disputa bilateral. Por sua vez, o Paquistão defende o cumprimento das resoluções do CSNU, particularmente a realização do referendo, que não poderia ser substituído por eleições; alega que a disputa da Caxemira não é apenas territorial, mas diz respeito à autodeterminação dos caxemires; deseja o envolvimento de mediadores na questão – o que poderia neutralizar a óbvia assimetria indopaquistanesa e forçar a Índia a voltar a negociar; sublinha que a autonomia regional não é substituto para a independência; e não aceita que a Linha de Controle seja convertida em fronteira internacional.232 Por rejeitar o status quo com mais veemência que a Índia, o Paquistão é geralmente considerado a parte revisionista na questão da Caxemira. Por mais alguns anos, o CSNU continuou a apregoar a desmilitarização da área disputada e propôs uma fórmula alternativa de referendos, elaborada por Owen Dixon, pela qual haveria diversos votações separadas nas diversas sub-regiões da Caxemira, mas Nova Delhi a recusou.233 A partir de meados dos anos 1950, a União Soviética, que até então se abstinha nas resoluções sobre a Caxemira, passou a vetá-las, em nome de suas boas relações com a Índia. O Conselho efetivamente cessou de deliberar sobre o tema em 1957, e só voltaria a fazê-lo, brevemente, por ocasião da guerra de 1965.

232

HORIMOTO, Takenori. “The Kashmir Dispute: Ripe for Resolution?” in IQBAL CHEEMA, Pervaiz & HASAN NURI, Maqsudul (orgs). The Kashmir Imbroglio: Looking Towards the Future, pp. 17-25. 233 CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 91 (1951).

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A Índia tratou de consolidar seu controle sobre a J&K em 1952-3: eliminou a maior parte das prerrogativas de autonomia do território e aprisionou Sheikh Mohammed Abdullah, líder carismático da Conferência Nacional, partido nacionalista moderado que por meio século dominou a política da Caxemira sob administração indiana. Como é praxe na política da Ásia Meridional, a liderança do movimento de Sheikh Abdullah foi posteriormente legada para seu filho, Farooq Abdullah, e seu neto, Omar Abdullah – todos os três chefiaram o Executivo de J&K. Em 1962, a China travou breve e vitoriosa guerra contra a Índia pelo controle do Aksai Chin, extremidade setentrional e desabitada da Caxemira, que Pequim considera parte do Xinjiang. A decorrente desmoralização militar da Índia, somada a um inesperado levante popular na J&K em torno do desaparecimento de um fio de barba do Profeta Maomé, em 1963-4,234 e ao triunfo paquistanês na batalha do Rann de Kutch, que analisaremos posteriormente, levaram o Paquistão a crer que a Índia estava em posição de fragilidade na Caxemira. Assim, em 1965, insurgentes e forças regulares paquistanesas infiltraram a J&K e procuraram despertar uma revolta pró-Paquistão no Vale da Caxemira; a iniciativa fracassou, e desencadeou guerra aberta entre os dois países, que terminou em impasse. O Acordo de Tashkent, em 1966, negociado com mediação soviética, consagrou o status quo ante em relação à Caxemira.235 Nova guerra, mas por motivo bem diferente – a emancipação de Bangladesh –, adveio em 1971. Quando o Governo do Paquistão recusou-se a ceder o poder à Liga Awami, representativa dos bengalis do Paquistão Oriental e vencedora das eleições nacionais de 1970, teve início uma guerra civil que culminaria com a fragmentação territorial do Paquistão, com intervenção indiana. O documento que encerrou o conflito,

234 235

BOSE, Sumantra. Kashmir: Roots of Conflict, Paths to Peace, pp. 78-80. SCHOFIELD, Victoria. Op. cit., pp. 99-113.

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o Acordo de Simla de 1972, foi relevante para a Caxemira por renomear a Linha de Cessar-Fogo para Linha de Controle e, sobretudo, por determinar que Índia e Paquistão doravante resolveriam suas diferenças “por negociações bilaterais ou por quaisquer outros meios pacíficos mutuamente acordados” – dando a entender, na perspectiva indiana, que já não seria possível solicitar mediadores ou seguir resoluções do CSNU para o contencioso da Caxemira. A seguir, em 1974, a Índia promoveu nova reforma jurídica que enfraqueceu a autonomia residual da J&K, que desde então é, em termos legais, quase comparável aos demais estados da União Indiana. Como a década seguinte demonstraria, a medida centralizadora causou grande ressentimento entre os caxemires. Após mais de dez anos de relativa paz, nova perturbação bilateral ocorreu em 1984, quando a Índia ocupou sem aviso prévio a geleira de Siachen, único setor nãodemarcado da Caxemira, imediatamente ao norte da Linha de Controle. O Paquistão respondeu com o desdobramento de tropas, e desde então a geleira é considerada o campo de batalha mais elevado do mundo, que chega a superar 6.000 metros. O ano de 1987 foi central para a história política da Caxemira. Na ocasião, a Índia realizou eleições altamente controversas na J&K, que reconduziram ao poder a Conferência Nacional da família Abdullah e alimentaram uma rebelião violenta que teria início dois anos mais tarde. Durante a década de 1990, a Caxemira sob controle indiano sofreu insurgência de grande escala, que radicalizou a política local, permitiu a atuação de diversos grupos jihadistas, incitou a Índia a impor o Estado de exceção e a cometer numerosos abusos de direitos humanos e deixou entre 30 e 100 mil mortes – mais do que a soma de todas as guerras indopaquistanesas, excetuando-se a Partição.236

236

BENNETT JONES, Owen. Pakistan: Eye of the Storm, pp. 76-139.

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O Paquistão alegou oferecer apoio moral e diplomático aos revoltosos, mas na realidade garantiu patrocínio material, inclusive financeiro e bélico, aos jihadistas – apresentados como “freedom fighters” por Islamabade e “terroristas” por Nova Delhi – para que travassem uma “guerra por procuração” com a Índia.237 A insurgência caxemir também exacerbou as tensões étnicas locais, desencadeando o deslocamento de cerca de 130 mil hindus – os pandits – que habitavam o Vale da Caxemira, além de atos graves de violência contra a minoria sique, a exemplo do massacre de Chittisinghpura, perpetrado em 2000.238 No início de 1999, a Cúpula de Lahore, que reuniu os Primeiros-Ministros Nawaz Sharif e Atal Bihari Vajpayee, pareceu dirimir as tensões bilaterais resultantes dos testes nucleares de ambos os países, no ano anterior. Contudo, o diálogo foi abandonado com a eclosão da quarta guerra239 indopaquistanesa, em maio de 1999, quando tropas paquistanesas, camufladas como insurgentes caxemires, ocuparam silenciosamente posições militares indianas abandonadas na região de Kargil, no Ladakh. O conflito despertou grande apreensão internacional e foi encerrado com a mediação dos EUA, que exigiram ao Paquistão que se retirasse das posições indianas ocupadas. Ao acirrar as tensões entre civis e militares em Islamabade, Kargil acarretou, indiretamente, a queda do Governo de Nawaz Sharif, meses mais tarde.240 Não houve novos conflitos armados entre Paquistão e Índia na primeira década do século 21, mas o relacionamento bilateral atravessou diversas crises. A mais significativa teve lugar entre 2001 e 2002, quando Nova Delhi, enfurecida por atentados aos Parlamentos da Caxemira e da Índia atribuídos a grupos jihadistas, mobilizou 237

NEVES JÚNIOR, Edson José. Morrer pelo Paraíso. O terrorismo internacional na Caxemira: entre a Guerra por Procuração e o Jihadismo Instrumental. 1989-2009. 238 MISHRA, Pankaj. “Death in Kashmir”. 239 Certos autores fazem referência à “crise” ou à “miniguerra” de Kargil; no entanto, as hostilidades deixaram mais de mil mortos, superando o patamar mais utilizado para qualificar uma guerra como tal. 240 INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Kashmir: Learning from the Past, pp. 14-5.

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centenas de milhares de tropas para pressionar Islamabade a cessar seu apoio às guerrilhas caxemires. A pressão internacional apaziguou as tensões bilaterais.241 A partir de 2003, quando as relações diplomáticas foram normalizadas, os vizinhos lançaram um processo de paz inesperadamente ousado em torno da Caxemira, graças à flexibilização da postura tradicional paquistanesa por parte do então Presidente Pervez Musharraf. Pela primeira vez, Islamabade sugeriu que poderia prescindir da realização do referendo exigido desde 1948 pelas resoluções do CSNU, e deixou a entender que não mais fomentaria a insurgência separatista na Caxemira.242 Por sua vez, o Primeiro-Ministro (a partir de 2004) Manmohan Singh deixou implícita a possibilidade de abandonar a reivindicação indiana sobre a totalidade da Caxemira, e acenou com a possibilidade de autonomia substantiva para J&K. Em 2004, foi estabelecido o Diálogo Composto Índia-Paquistão, mecanismo diplomático para facilitar a resolução de todos os impasses bilaterais. 243 As negociações permitiram a abertura da ligação rodoviária entre Muzaffarabad e Srinagar, capitais das porções paquistanesa e indiana da Caxemira. Foi contemplada a desmilitarização gradual da região disputada. Por meio da diplomacia secreta e de mediadores nãooficiais, Paquistão e Índia alegadamente chegaram “muito perto” de resolver o contencioso em 2007, segundo o então Chanceler paquistanês Khurshid Kasuri.244 Pela primeira vez em 60 anos, a dessecuritização da Caxemira pareceu plausível.

241

RASHID, Ahmed. Descent into Chaos: The United States and the Failure of Nation Building in Pakistan, Afghanistan and Central Asia, pp. 109-124. 242 RIFAAT HUSSAIN, Syed. “Pakistan’s Changing Outlook in Kashmir” in ROSENSTEIN, Matthew (org.). The Future of Kashmir, pp. 7-11. 243 Os oito temas do Diálogo Composto Índia-Paquistão são: Medidas de Fomento à Confiança (MFCs), sobretudo sobre arsenais e doutrinas nucleares; Jammu e Caxemira; Siachen; Sir Creek; os projetos hídricos de Tulbul/Wullar, Baglihar e Kishenganga; terrorismo e narcotráfico; cooperação econômicocomercial; e a promoção de contatos humanos amistosos, incluindo possível liberalização de vistos. 244 BENNETT JONES, Owen. Op. cit., p. 136.

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O auspicioso processo de paz foi subitamente interrompido pelas turbulências internas que vitimaram o Paquistão entre 2007 e 2008, e culminaram com a renúncia de Musharraf. Em novembro de 2008, atentados de grande escala em Mumbai, alegadamente cometidos pela rede jihadista paquistanesa Lashkar-e-Taiba (LeT, “exército dos puros”), levaram a Índia a suspender o diálogo bilateral.245 No primeiro semestre de 2011, os vizinhos retomaram cautelosamente as negociações sobre a questão caxemir, reativaram o Diálogo Composto e anunciaram novas Medidas de Fomento à Confiança relativas ao comércio e à circulação através da Linha de Controle.246 Porém, no momento de revisão deste trabalho (outubro de 2011), o processo de paz permanece frágil, precário e refém de pressões domésticas em ambos os países – ou seja, sujeito à interferência dos numerosos atores funcionais que influenciam as dinâmicas de securitização em torno da Caxemira.

A securitização da Caxemira pelo Paquistão Desde a independência, a questão da Caxemira tem sido designada pela quase unanimidade dos atores políticos, militares, religiosos, sociais, jornalísticos e acadêmicos do Paquistão como absolutamente nevrálgica para a sobrevivência nacional. Trata-se de uma das mais intensas, consensuais e duradoras dinâmicas de securitização do mundo, a ponto de determinar grande parte das políticas interna, externa e de defesa do país. É tentador perguntar, mas impossível responder, se o Paquistão teria seguido rumos muito diferentes caso o contencioso tivesse sido solucionado já em 1947.

245

RIFAAT HUSSAIN, Syed. “The India Factor” in LODHI, Maleeha. Pakistan: Beyond the ‘Crisis State’, pp. 319-347. 246 Joint Statement following meeting between S.M. Krishna Minister of External Affairs of India and Hina Rabbani Khar Minister of Foreign Affairs of Pakistan. Nova Delhi, 27 de julho de 2011.

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A raiz da securitização paquistanesa da Caxemira está no dilema quanto à identidade nacional do país fundado por Muhammad Ali Jinnah. A Liga Muçulmana obteve a independência com base na Teoria das Duas Nações, segundo a qual hindus e muçulmanos seriam incapazes de conviver harmoniosamente no mesmo Estado, o que justificaria um divórcio político e territorial. No entanto, o Paquistão jamais logrou articular consenso nacional sobre sua identidade, se país muçulmano ou islâmico. No primeiro caso, o recém-criado Estado deveria seguir padrões políticos, culturais e jurídicos seculares, ainda que seu pertencimento nacional fosse justificado – algo contraditoriamente – pela fé de seus cidadãos. Caso prevalecesse a segunda hipótese, seria preciso adotar a xariá e islamizar gradualmente as normas e os costumes da sociedade paquistanesa. A História do Paquistão é uma trajetória errática entre esses dois extremos. O problema é elegantemente definido por Farzana Shaikh:

The ambiguous but ample role afforded to Islam in the creation of Pakistan (especially in the years immediately leading up to the country’s independence in 1947) ensured that Islam would not only play a part in moulding the constitutional complexion of the new state, but also set the priorities of its public policy. That it had damaging political, economic and social consequences had less to do with Islam as such than with a perennial uncertainty about its influence over Pakistan’s identity as well as with the lack of consensus over the very terms of Islam. It is this contestation over the multiple meanings of Islam that accounts today for the doubts about the meaning of Pakistan and the significance of being Pakistani.247

Em seu estudo comparativo sobre a solidez do modelo democrático indiano e a resiliência do autoritarismo militar-burocrático paquistanês, Philip Oldenburg relata que 247

SHAIKH, Farzana. Making Sense of Pakistan, p. 209.

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a Liga Muçulmana de Jinnah – ao contrário do Partido do Congresso de Gandhi e de Nehru – tinha trajetória recente e pouco enraizamento popular248 em 1947, e que a demanda pelo estabelecimento do Paquistão concorreu com outras reivindicações contraditórias entre os muçulmanos da Índia, como o separatismo em linhas étnicas (pashtuns e caxemires), o Califado (partidos islâmicos)249 e a autonomia (muçulmanos que permaneceram na Índia). Para o autor, essa “multiplicidade de nacionalismos” foi fator determinante para impedir que o Paquistão estabelecesse uma democracia funcional, e mais tarde conduziu à fragmentação violenta do país, em 1971.250 No ângulo inverso, Christophe Jaffrelot identifica um “nacionalismo sem nação” na gênese paquistanesa. A Liga Muçulmana definiu símbolos nacionais, como o idioma urdu, e identificou aproximadamente251 o território que o novo Estado deveria ocupar; todavia, foi incapaz de dar real conteúdo e coesão, em termos de identidade, ao país recém-criado.252 De maneira mais informal, ao refletir sobre suas viagens pelo subcontinente meio século após a Partição, Stephen Alter emitiu o seguinte juízo: Pakistan seemed to be a nation that was still struggling with its own identity. Fifty years earlier it had been created in opposition to India and the country immediately declared itself an Islamic state. From the first moment of Independence, religion and politics were inextricably linked. In most people’s minds, to be a citizen of Pakistan was to be a Muslim.

248

As regiões do Raj onde havia maior apoio muçulmano à causa paquistanesa, como Bihar, Hyderabad e as Províncias Unidas, permaneceram na Índia após 1947. Os mais entusiasmados defensores da causa paquistanesa foram os migrantes da Partição – hoje conhecidos como mohajirs no Paquistão. 249 Os principais partidos islâmicos da Índia Britânica, como a Jamiat Ulema-e-Hind (Associação de Clérigos da Índia, JUH) e o Jamaat-e-Islami (Sociedade Islâmica, JI) recusaram o projeto nacional do Paquistão, alegando que a única nação de um muçulmano é a ummah, a comunidade global de fiéis. Como alternativa, a JUH se engajou no movimento pela restauração do Califado, nos anos 1920, em aliança com o Partido do Congresso, de Gandhi. 250 OLDENBURG, Philip. India, Pakistan and Democracy: Solving the Puzzle of divergent paths, pp. 1735. 251 A delimitação do território paquistanês – sobretudo a Linha Radcliffe, que separou as porções indiana e paquistanesa do Punjab – foi, quase exclusivamente, obra das autoridades coloniais britânicas. 252 JAFFRELOT, Christophe (org.). Pakistan: Nation, Nationalism and the State, pp. 7-47.

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And yet, the very concept of a modern nation-state demanded a sense of communal identity that went beyond the bonds of faith.253

É sintomático que as autoridades paquistanesas ainda precisem justificar a raison d’être de seu país, mais de 60 anos após a independência. O embaixador aposentado Shahid Amin inicia seu estudo sobre a política externa paquistanesa com uma enumeração de motivos pelos quais seu país tem direito a existir separadamente da Índia, como a distinção entre monoteísmo e politeísmo, as divergências em termos de narrativas históricas, os diferentes costumes, trajes e idiomas, e até o contraste nos hábitos alimentares entre muçulmanos e hindus do subcontinente – elementos coroados, é claro, pela percepção de intolerância sectária que supostamente reinaria no Raj.254 A tentativa de se sublinhar sua especificidade em relação a Índia, desde os primeiros dias de vida independente, levou o establishment paquistanês a tomar duas decisões cruciais para o futuro do país. Uma, que foge ao escopo deste trabalho, foi a deliberada aproximação diplomática, geopolítica e cultural de Islamabade com certos países árabes do Oriente Médio – particularmente a Arábia Saudita, importante referência religiosa, moral e financeira para todos os Governos paquistaneses – , em detrimento do histórico pertencimento paquistanês ao CRS da Ásia Meridional. Incipiente, mas verificável, até 1977,255 essa tentativa paquistanesa de reorientação para o Golfo tornou-se mais acelerada após aquele ano,

256

quando o General Zia ul-Haq

assumiu o poder e deu início a campanha de islamização do país. 257

253

ALTER, Stephen. Amritsar to Lahore: A Journey Across the India-Pakistan Border, pp. 126-7. AMIN, Shahid. Pakistan’s Foreign Policy: A Reappraisal, pp. 14-23. 255 BISHKU, Michael. “In Search of Identity and Security: Pakistan and the Middle East, 1947-77”. 256 OLDENBURG, Philip. Op. cit. 257 Nesse sentido, Vali Nasr argumenta que a crescente sacralização da política em ambos os países – referência à islamização do Paquistão desde a década de 1970 e à ascensão do nacionalismo hindu na Índia nos anos 1980 e 1990 – é consequência, não causa, das tensões bilaterais. Como em muitos outros cenários de conflito prolongado (Bósnia e Sudão, por exemplo), as identidades religiosas não são causa de violência per se, mas são instrumentalizadas pelas elites políticas como se fossem. Vide NASR, Vali. 254

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O segundo corolário da estratégia paquistanesa de diferenciação vis-à-vis a Índia foi a enorme prioridade dada ao contencioso caxemir desde 1947; em outras palavras, foi a securitização quase permanente da disputa, elevada desde o início a peça-central da identidade nacional paquistanesa. A respeito, escreve Jean-Luc Racine: Kashmir remains today the most dramatic point of discord between the two countries. What is at stake here? Over and above its strategic importance, located as it is between China, the Central Asian Republics, India, and the Middle Eastern Muslim continuum ending in Afghanistan, Kashmir represents, for Pakistan and for India, more than a territory. It stands as a symbol of the idea of nationhood on which each of the two States has been founded. For Islamabad, Kashmir should have belonged to it by right, in line with the very reasoning behind Partition: it had, after all, a Muslim majority and was contiguous to Pakistan (…) India’s way of reasoning is different. Its Constitution is based on the principle that religion is not a factor to be taken into account of national identity. A secular State, India is the home of about as many Muslims as Pakistan itself. A Muslim-majority State can very well exist within its frame, and, in fact, vindicates the concept of a pluralistic India.258

Ademais, como assinala Lawrence Ziring, o conflito de 1947-8 pela Caxemira foi, efetivamente, a guerra da independência do Paquistão, o “teste” decisivo para a consolidação do país e de sua soberania.259 Inconcluso, esse conflito terminou com um frágil cessar-fogo, mas nunca conduziu a um Acordo de Paz abrangente e definitivo entre os vizinhos que então se emancipavam. Tal ausência permitiu às elites paquistanesas representar a Caxemira como o unfinished business da Partição. Os argumentos até agora elencados permitem antever que a securitização paquistanesa do contencioso da Caxemira, embora tenha o Estado como ator securitizador primordial, conta com grande variedade de atores funcionais interessados

“National Identities and the India-Pakistan Conflict” in PAUL, T. V (org.). The India-Pakistan Conflict: An Enduring Rivalry, pp. 178-9. 258 RACINE, Jean-Luc. “Pakistan and the ‘India Syndrome’: Between Kashmir and the Nuclear Predicament” in JAFFRELOT, Christophe (org.). Pakistan: Nation, Nationalism and the State, pp. 211-2. 259 ZIRING, Lawrence. “Weak State, Failed State, Garrison State: the Pakistan Saga” in PAUL, T. V (org.). South Asia’s Weak States: Understanding the Regional Insecurity Predicament., p. 177.

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em influenciar o processo. O principal é o conjunto das Forças Armadas, em cujo âmago opera o Serviço de Inteligência Inter-Serviços (ISI), com grau elevado de autonomia desde os anos 1980. Na realidade, em relação à Caxemira há grande interposição de objetivos e interesses entre o Estado paquistanês e seu estamento militar, o que dificulta a separação analítica entre ator securitizador e ator funcional: o General Headquarters (GHQ, metonímia utilizada pelos paquistaneses para se referir ao próprio Exército) é, a um só tempo, responsável pela securitização da Caxemira e parte interessada no processo. Ziring argumenta que a disputa da Caxemira permitiu às Forças Armadas transmutar o país em um “Estado-guarnição”. 260 Na mesma linha, Yasmin Khan argumenta que o grande legado da Partição e de sua irmã gêmea – a questão da Caxemira – foi a cultura de militarização do subcontinente. “A evocação de um inimigo externo aguardando nas fronteiras para anexar o Paquistão estabeleceu um vínculo poderoso entre os paquistaneses, alguns dos quais tinham pouca convicção na viabilidade do Estado”; enquanto isso, na Índia, “houve consideráveis tentativas para fortalecer a capacidade militar [nacional], por meio de métodos convencionais ou não-convencionais”.261 Outro ator protagônico na referida securitização é a extensa comunidade islâmica do país. De fato, para a experiência nacional paquistanesa, uma consequência profunda da perene rivalidade com a Índia e do impasse identitário nacional foi a emergência de um nexo entre os “guardiões do Islã” e os defensores da integridade territorial do país, ou seja, entre clérigos e GHQ. É o que o atual embaixador do

260 261

Idem. KHAN, Yasmin. The Great Partition: The Making of India and Pakistan, p. 184.

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Paquistão em Washington, Husain Haqqani, pormenoriza em livro polêmico, mas extremamente influente.262 O corolário desse binômio militar-identitário entre nacionalismo religioso e confrontação com a Índia foi a política de alianças com superpotências ou grandes potências extrarregionais, particularmente os EUA – o que, na visão de polemistas como Tariq Ali, bastante difundida no Paquistão, semeou a instabilidade, a desigualdade social e o autoritarismo no país desde os anos 1950.263 A anedota paquistanesa segundo a qual o país é governado por três As – Allah, Army and America – decorre diretamente da insolubilidade do contencioso caxemir. No entanto, como assinala Farzana Shaikh, o significado religioso e identitário da Caxemira para o Paquistão não é monolítico, e sofreu significativas alterações desde 1947. Nas primeiras duas décadas após a independência, a luta pela Caxemira simbolizava a sobrevivência do próprio projeto histórico paquistanês, fundamentado sobre o (instável) alicerce do nacionalismo muçulmano. Após 1971, quando a secessão de Bangladesh pareceu desmentir a Teoria das Duas Nações de Jinnah, a Caxemira passou a ser representada, no discurso majoritário paquistanês, como um território sagrado, a ser libertado por meio da jihad, de modo a autenticar o papel do Paquistão como defensor do Islã.264 Não são raras, na imprensa paquistanesa, analogias entre a Caxemira e a Palestina, o que corrobora tal observação. Ressalve-se que o apoio paquistanês à “causa caxemir” – seja interpretada em termos militares tradicionais ou no discurso da jihad – não é homogêneo, embora geralmente seja bastante sólido. Grosso modo, o entusiasmo com a Caxemira é maior no Punjab, que avizinha física e culturalmente a Caxemira, do que nas demais províncias. 262

HAQQANI, Hussein. Pakistan between Mosque and Military. ALI, Tariq. The Duel: Pakistan on the Flight Path of American Power. 264 SHAIKH, Farzana. Op. cit., p. 186-7 263

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No antigo Paquistão Oriental, distante geográfica e sentimentalmente de Srinagar, era mais reduzido o interesse popular pela disputa.265 É interessante observar que o Governo do Paquistão imputa ao Conselho de Segurança das Nações Unidas um papel que lhe pertenceu nos anos 1940 e 1950: o de ator securitizador do contencioso da Caxemira. Os onze documentos aprovados pelo CSNU a respeito entre 1948 e 1957, com destaque para as Resoluções 47 (1948) e 80 (1950), que determinaram a realização de plebiscito na região, de fato consagraram a disputa como ameaça à paz e à segurança internacional. Porém, a partir do momento em que a URSS decidiu impedir que o Conselho deliberasse sobre o tema, e sobretudo após o Acordo de Simla de 1972, o CSNU deixou de ser ator securitizador plausível, e desde então não se envolve diretamente na querela indopaquistanesa.266 A mídia é outro ator funcional relevante no processo paquistanês de securitização da Caxemira, e tende a reforçá-lo. Essa observação é especialmente verdadeira para os meios audiovisuais. Em um país – à semelhança da Índia e, aliás, da maior parte da Ásia Meridional – ainda largamente rural e semi-alfabetizado, é natural que os veículos de radiodifusão e televisão tenham maior influência que os impressos e os digitais. E é justamente a mídia radiofônica e televisiva que adota tom mais rancoroso quanto à Índia, ao suposto belicismo de Nova Delhi e aos relatos de abusos de direitos humanos da população caxemir.267 O tema da solidariedade com os “irmãos muçulmanos” da região disputada é repetido ad nauseam por certos veículos em época de tensões indopaquistanesas.

265

SHAIKH, Farzana. Op. cit., p. 187-8. A exceção a essa regra são os documentos do CSNU conclamando à paz entre os vizinhos em contextos de grande tensão, como após os testes nucleares de 1998, mas que não se referem primordialmente à disputa da Caxemira. 267 INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Kashmir: The View from Islamabad, p. 20. 266

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Há maior independência editorial entre os jornais, legatários de longa tradição de resistência da imprensa contra os quatro regimes militares que governaram o Paquistão desde a independência. Ainda assim, a dependência econômica do Governo, que é frequentemente o principal anunciante dos veículos impressos, reduz a margem de manobra para o pensamento crítico e autônomo. Nota-se, no Paquistão, clara diferença entre as abordagens jornalísticas de acordo com o idioma utilizado; a barreira linguística é também ideológica. Assim, o discurso de securitização da Caxemira é mais intenso na imprensa em urdu, que caracteriza a Índia de maneira quase uniformemente negativa. Os veículos em inglês são sensivelmente mais cosmopolitas: se também publicam quase diariamente notícias críticas ao Governo indiano, o fazem de maneira menos explícita e passional. Além de enfatizar a “injustiça histórica” de atribuir à Índia uma região de maioria muçulmano, e de alardear as violações de direitos humanos alegadamente cometidas na J&K, a retórica securitizadora paquistanesa também se fundamenta na caracterização da Caxemira como uma disputa pela autodeterminação, e não apenas territorial. Islamabade tradicionalmente enfatiza o caráter “humano” do conflito para angariar simpatia internacional; essa tática discursiva é comum ao Governo e aos setores mais nacionalistas da mídia, a exemplo da editorialista Shireen Mazari.268 Mais do que na Índia, os serviços de inteligência exercem grande influência sobre os processos editoriais do Paquistão, e têm o costume de “plantar” matérias de acordo com seus interesses e suas perspectivas. Essa manipulação é facilitada pela extrema dificuldade, para um jornalista paquistanês, em obter um visto indiano e a permissão requerida para visitar o Vale da Caxemira. Diante da impossibilidade de 268

Apud IQBAL CHEEMA, Pervaiz & HASAN NURI, Maqsudul (orgs). The Kashmir Imbroglio: Looking Towards the Future.

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verificar os fatos em primeira mão, o profissional de imprensa é forçado a confiar nas fontes indiretas de que dispõe, e que emanam, no mais das vezes, do ISI.269 Consistentemente cética quanto às intenções da Índia, a opinião pública paquistanesa também contribui para a securitização da Caxemira. De acordo com pesquisas realizadas entre 2006 e 2007, 78% dos paquistaneses acreditam que a paz com a Índia só será possível se a questão da Caxemira for solucionada primeiro. Embora as enquetes tenham sido realizadas em um momento relativamente positivo das relações bilaterais, 75% dos paquistaneses opinaram que a Índia jamais abriria mão da Caxemira, e 64% declararam rejeitar a solução – conveniente a Nova Delhi – de oficializar o status quo e transformar a Linha de Controle em fronteira internacional. Em interrogação que lembra as categorias wendtianas de cooperação (anarquia kantiana), rivalidade (anarquia lockeana) e conflito (anarquia hobbesiana), a Índia é vista como “amiga” por 17% dos paquistaneses, “rival” por 36% e “inimiga” por 47%.270 Em contraste com o que se passa na Índia, e que será objeto de análise na próxima seção, há pouca variação significativa na prática dos principais partidos paquistaneses quanto à Caxemira. Agremiações como a Liga Muçulmana (PML), mais conservadora, religiosa e alinhada aos militares que o PPP, tendem a adotar discurso mais belicoso – logo, mais securitizador – em relação à disputa271; porém, as práticas securitizadoras de ambos os partidos são muito semelhantes. Isso ocorre porque ambos reconhecem a primazia do Exército na formulação da política paquistanesa para a Caxemira. Tal predomínio do GHQ se tornou bastante óbvio em 1999, quando, como mencionado na seção anterior, um Governo democraticamente eleito – o de Nawaz

269

REHMAN, Sherry. “The Media’s Role in Kashmir” in IQBAL CHEEMA, Pervaiz & HASAN NURI, Maqsudul (orgs). Op. cit., pp. 162-182. 270 SHAFI GILANI, Ijaz. The Voice of the People: Public Opinion in Pakistan, 2007-09, pp. 88-93. 271 INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Kashmir: The View from Islamabad, pp. 16-19.

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Sharif, da PML – teve sua reaproximação com a Índia frustrada pela atuação autônoma do Exército, que julgou oportuno lançar campanha militar ofensiva em Kargil, no Ladakh, Caxemira. Uma categoria social que poderia contribuir para desdramatizar a questão caxemir no Paquistão, mas não tem conseguido fazê-lo, é a sociedade civil. Grupos como a Associação de Mídia Livre da Ásia Meridional (SAFMA), a Comissão de Direitos Humanos do Paquistão e a Associação de Advogados da Suprema Corte são favoráveis à reconciliação com a Índia e à resolução pacífica do contencioso, mas detêm influência insuficiente para ser ator funcional significativo em prol da dessecuritização. Merece menção, por fim, uma categoria bastante controversa e complexa de ator funcional paquistanês que reforça as dinâmicas de securitização em torno da Caxemira: os grupos jihadistas presentes e atuantes na região, particularmente a partir de 1989, quando encerrou-se a guerra soviética no Afeganistão e teve início violenta insurgência contra o domínio indiano de J&K. Embora o Governo do Paquistão não o admita, é quase consensual entre analistas independentes, paquistaneses ou não – como Pankaj Mishra272, Ahmed Rashid273, Victoria Schofield274, Anatol Lieven275, T. V. Paul276, Sumantra Bose277, Imtiaz Gul278, Stephen Cohen279, Steve Coll280 e Syed Rifaat

272

MISHRA, Pankaj. “Death in Kashmir”. RASHID, Ahmed. Descent into Chaos: The United States and the Failure of Nation Building in Pakistan, Afghanistan and Central Asia. 274 SCHOFIELD, Victoria. Kashmir in Conflict: India, Pakistan and the Unending War. 275 LIEVEN, Anatol. Pakistan: A Hard Country. 276 PAUL, T. V (org.). The India-Pakistan Conflict: An Enduring Rivalry. 277 BOSE, Sumantra. Op. cit. 278 GUL, Imtiaz. The Most Dangerous Place: Pakistan’s Lawless Frontier. 279 COHEN, Stephen. The Idea of Pakistan. 280 COLL, Steve. Ghost Wars: The secret history of the CIA, Afghanistan and Bin Laden, from the Soviet invasion to September 10, 2001. 273

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Hussein281, entre numerosos outros – a percepção de que Islamabade utilizou grupos islamistas para travar “guerra por procuração” com a Índia na Caxemira, via ISI. Até 2001, tais movimentos eram habitualmente descritos como freedom fighters por fontes oficiais paquistanesas; porém, naquele ano, a aliança selada entre os Presidentes Bush e Musharraf para combater o Talibã no Afeganistão tornou politicamente inviável a continuidade da simpatia governamental paquistanesa aos islamistas da Caxemira. Após as tensões militares com Nova Delhi em 2001-2, Islamabade proscreveu os principais grupos jihadistas que combatiam a presença indiana em J&K a partir de bases e santuários paquistaneses. A maioria deles, no entanto, simplesmente adotou novo nome e continuou a operar como dantes, a exemplo do LeT, que passou a atender por Jamaat-ul-Dawa (“Sociedade para a Pregação”, JuD), grupo registrado como sociedade beneficente no Paquistão. Em fenômeno extremamente detrimental para a estabilidade interna do Paquistão, após 2001 certos grupos jihadistas de base paquistanesa passaram a desenvolver agenda própria, escapando ao controle direto de Islamabade e securitizando a Caxemira de maneiras novas, autônomas e mais extremadas. Como demonstraram os atentados de Mumbai, em 2008, movimentos como o LeT têm grande capacidade de desestabilizar todo o processo de reconciliação indopaquistanês; assim, são potentes spoilers que dificultam qualquer tentativa de dessecuritização da Caxemira.

281

RIFAAT HUSSAIN, Syed. “Pakistan’s Changing Outlook on Kashmir” in ROSENSTEIN, Matthew (org.). The Future of Kashmir, pp. 7-11.

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A securitização da Caxemira pela Índia Assim como no Paquistão, na Índia a Caxemira remete psicologicamente aos eventos de 1947. Porém, ao contrário de seus vizinhos paquistaneses, que celebram a Partição como espécie de emancipação (ainda que violenta), os indianos tendem a vê-la como trágica ruptura histórica. Nas palavras de Sunil Khilnani: History has not anesthetized the original crisis of Partition. Like 1789 for the French, Partition is the moment of the Indian nation’s origin through violent rupture with itself. It both defines and constantly suspects India’s identity, dividing it between the responsibility to tolerate differences, and the dream of a territory where all are compelled to worship in unison.282

A partir dessa crise na gênese do Estado independente, a historiografia oficial indiana consagrou a Caxemira como pedra-de-toque de uma identidade secular e inclusiva, em contraposição ao pertencimento confessional que define o Paquistão. Para Nova Delhi, perder seu único estado com maioria muçulmana significaria fracassar no projeto nacional democrático e tolerante idealizado por Gandhi e Nehru. Contudo, diversos autores indianos vêem com ceticismo esse papel exaltado da Caxemira para a autodefinição nacional. Sumantra Bose estima que o tratamento normalmente tolerante dispensado à enorme minoria muçulmana no país – estimada em 150 milhões de pessoas – já é suficiente para confirmar a natureza secular da Índia.283 Pavan Varma observa que a coexistência entre religiões, além de ser um imperativo para um país tão diverso, é o estado normal das coisas no país284 – com ou sem a Caxemira. É revelador o contraste entre os respectivos slogans nacionais para a disputa. Nova Delhi proclama a Caxemira atoot ang (parte integral) da Índia, enquanto

282

KHILNANI, Sunil. The Idea of India, p. 202. BOSE, Sumantra. Op. cit., p. 8. 284 VARMA, Pavan K. Being Indian: Inside the Real India, pp. 160-5. 283

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Islamabade clama o território como shah rag (veia jugular) do Paquistão.285 São as expressões de duas formas muito diversas, quase antagônicas, de nacionalismo. Já analisamos na seção anterior o dilema entre Islã e nação no âmago do ideal nacional paquistanês, que é relativamente desterritorializado.286 Por sua vez, além de sincrético (ou “mestiço”, como escreve afetuosamente Khilnani287), o nacionalismo indiano, na formulação original de Nehru e do Partido do Congresso, é sobretudo territorial. Por mais que o Estado indiano tenha desenvolvido, gradualmente, diversas estratégias de gerenciamento de conflitos étnicos ou confessionais, como as aplicadas para conter os separatismos do Punjab e da Nagalândia, a sacralidade do território permaneceu inalterada. Comenta, a respeito, Gurharpal Singh: In India the ideology of the predominantly Hindu Congress became synonymous with ‘secular’ impulses towards state expansion. ‘Disputed lands’ – Kashmir, the princely states and the ambiguous colonial border with China and Burma – became the sacred territory of new ‘secular’ Bharat. Legitimizing Indian presence in Kashmir, the Congress fanned a curious double-speak which held that India’s secularism would be threatened if Kashmir left the Indian union. The obverse, that if India’s secularism was so strong, the right of provinces to self-determination should be entertained, was insidiously made a political non-issue, supporting the inference that the forced inclusion of Kashmir symbolized a tokenist secularism and an instrumentalist ideology.288

Conforme observa Iftikhar Malik, a disputa territorial foi instrumentalizada por ambos os países em seus respectivos projetos de consolidação nacional, e continua a sêlo até hoje.289 O contencioso exerceu papel central nas estratégias de construção 285

BOSE, Sumantra. Op. cit., p. 9. Somente uma concepção relativamente não-territorial de nação poderia justificar o absurdo geográfico que foi o Paquistão entre 1947 e 1971, com suas duas porções separadas por 1.600 km. 287 KHILNANI, Sunil. Op. cit., p. xvi. 288 SINGH, Gurharpal. Ethnic Conflict in India: A Case-Study of Punjab, pp. 66-7. 289 MALIK, Iftikhar. Pakistan: Democracy, Terrorism and the Building of a Nation, pp. 78-9. 286

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identitária das elites pós-coloniais de Nova Delhi e Karachi.290 Em outras palavras, a Caxemira auxiliou a consolidação da nação indiana e da nação paquistanesa. Empregamos, aqui, a acepção de nação como comunidade construída (ou imaginada) segundo Eric Hobsbawm291 e Benedict Anderson292 – e não necessariamente de acordo com o moderno termo nation-building, tantas vezes distorcido para atender às necessidades de certos planejadores militares. A célebre frase de Ernst Renan, pai da concepção cívica (e não étnica) do nacionalismo, para quem uma nação seria um grupo de pessoas caracterizado por avoir fait de grandes choses ensemble et vouloir en faire encore, é válida para o subcontinente, onde a extraordinária diversidade de etnias, línguas e mores culturais torna impossível qualquer concepção essencialista da nação.

De maneira análoga a seu vizinho e rival, o Estado indiano é o ator securitizador que invoca medidas extraordinárias para proteger a posse reivindicada da Caxemira, que aqui figura como objeto referente. Trata-se de um modelo tradicional de securitização militar, que também abarca os setores político (está em jogo a ideologia secular do Estado nehruviano) e societal (defesa da identidade multicultural indiana), no modelo multissetorial de Barry Buzan. Contudo, há uma inversão crucial na lógica do processo securitizador indiano. Ao contrário de Islamabade, Nova Delhi não securitiza a disputa pela Caxemira, pois tal contencioso não existe, de acordo com o discurso oficial do país; o que se securitiza é a ameaça à Caxemira. Em outras palavras, o problema existencial para o Estado indiano, e que justifica o recurso a medidas de emergência que excedem o espaço da política

290

Posteriormente suplantada por Islamabade como capital. HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. 292 ANDERSON, Benedict. Imagined Communities. 291

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normal, é o risco de perder a Caxemira, e não a necessidade de reavê-la. Isso é consequência da posição da Índia como detentora do status quo na matéria. É interessante comparar o papel dos atores funcionais nas dinâmicas indiana e paquistanesa de securitização em torno da Caxemira. O papel desempenhado pelos partidos políticos, dotados de diferentes ideologias e preferências programáticas, é geralmente maior na Índia que no país vizinho, onde as Forças Armadas têm maior autonomia decisória em política externa. Assim como no processo de securitização das armas nucleares no subcontinente, explorado no capítulo anterior, há expressiva diferença entre a atuação dos principais partidos indianos na matéria. Forte de seu nacionalismo oposicional293, o BJP securitiza a questão da Caxemira com muito mais vigor que o Partido do Congresso. Para o movimento nacionalista hindu, a raiz da questão caxemir não é a falta de autodeterminação da população local, e sim um grave erro tático de Nehru, que em 1947 decidiu internacionar o problema por meio do Conselho de Segurança – o que teria criado a errônea percepção de que haveria disputa legítima sobre a posse da Caxemira.294 O BJP apregoa mais medidas emergenciais que o Congresso, como a ocasional suspensão da autoridade provincial da J&K (imposição do President’s Rule, ou seja, administração direta a partir de Nova Delhi), o endurecimento do combate ao jihadismo e, principalmente, a proposta de abrogação do Artigo 370 da Constituição Indiana, que assegura certa autonomia à Caxemira. Medidas ainda mais radicais já foram cogitadas. Organizações ultranacionalistas ligadas ao BJP, como o Vishva Hindu Parishad (VHP, Conselho Nacional Hindu) e o Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS, Organização Nacional de Voluntários), 293

HYMANS, Jacques. “Why do States acquire Nuclear Weapons? The cases of India and France” in SARDESAI, D. R & THOMAS, Raju, Nuclear India in the Twenty-First Century, pp. 139-160. 294 INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Kashmir: The View from New Delhi, p.11.

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geralmente consideradas de extrema-direita na Índia, advogam a fissão de J&K em diversas unidades definidas em termos étnico-confessionais. O RSS já propôs a tripartição da região em um estado hindu (Jammu), um muçulmano (o Vale da Caxemira) e um território budista sob administração federal (Ladakh). O VHP vai mais além, e demanda uma partilha de J&K em quatro estados: Jammu, Vale da Caxemira, Ladakh e um novo território federal para acomodar os pandits, hindus deslocados pelo conflito.295 A intenção desses grupos é caracterizar a questão caxemir como disputa meramente religiosa entre muçulmanos e os demais (hindus, siques e budistas), o que evidentemente contribui para acirrar as tensões confessionais já existentes em diversas outras regiões indianas, como Gujarat e Bengala Ocidental. Islamabade e Nova Delhi adotam discursos opostos quanto à relação causal entre a contenda territorial e o chamado “terrorismo transfronteiriço” praticado em J&K. O Governo do Paquistão alega que a posse da Caxemira é a questão central a resolver, e que a ação dos jihadistas é mera decorrência de sua insolubilidade; já as autoridades da Índia, para quem o status do território não está em disputa, preocupam-se apenas com a contenção do islamismo violento em suas fronteiras, J&K inclusive. Assim, o impasse caxemir é tratada basicamente como “questão de polícia” por determinados setores do Governo da Índia. Suba Chandran, que distingue o conflito da Caxemira – subordinado à lógica geral da rivalidade indopaquistanesa – do conflito na Caxemira, que opõe Nova Delhi às comunidades que habitam a região, assim define a estratégia indiana: Within India, successive governments in New Delhi have carried out a strategy based on organizing periodic elections for the state legislative assembly of Jammu and Kashmir and sustaining an elected government at the state level. Elections, whether rigged or free, are seen as an “end” 295

BOSE, Sumantra. Op. cit., pp. 187-8.

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in J&K; the party or coalition that forms the government subsequently in Srinagar is expected to adhere to the existing provisions and maintain the status quo, without any demands on changing the nature of unionstate relations. 296

O discurso oficial indiano também tem forte tendência a minimizar a opinião dos caxemires e a autonomia dos grupos separatistas na região, e costuma tratar o contencioso caxemir como questão basicamente bilateral. O embaixador G. Parthasarathy, por exemplo, imputa a longa duração da disputa à “obsessão” paquistanesa em buscar a paridade estratégica com a Índia, o que motivaria o desenvolvimento mútuo de armas nucleares e o suposto uso, por Islamabade, do jihadismo como instrumento de política externa. Para o autor, a solução seria transformar a mentalidade do establishment paquistanês.297 De maneira similar, a comunidade acadêmica indiana tende a ressaltar o aspecto puramente geopolítico da disputa, em prejuízo da necessidade caxemir de autodeterminação. Recente relatório do Instituto para Análises e Estudos de Defesa, think-tank semi-oficial de Delhi, sublinha que a posse completa da Caxemira permitiria à Índia alcançar a fronteira afegã, o que possivelmente eclipsaria o papel central do Paquistão para o transporte e o suprimento das forças da OTAN desdobradas no Afeganistão.298 Não há referência à dimensão identitária da disputa. Em sintonia com o pensamento do Governo, especialistas indianos costumam considerar Pequim um ator funcional externo cuja ação é detrimental para os interesses indianos na questão caxemir. Os projetos chineses de desenvolvimento no Gilgit296

CHANDRAN, Suba. “Jammu & Kashmir: India’s Objectives and Strategies” in ROSENSTEIN, Matthew (org.). Op. cit., pp. 4. 297 PARTHASARATHY, G. “India-Pakistan relations” in SINHA, Atish & MOHTA, Madhup (orgs.). Indian Foreign Policy: Challenges and Opportunities, pp. 625-640. 298 INSTITUTE FOR DEFENCE STUDIES AND ANALYSES. Pakistan Occupied Kashmir: Changing the Discourse, p.11.

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Baltistão, como a rodovia do Karakoram e diversas usinas hidrelétricas, são por vezes interpretados como etapa para a conquista gradual da região montanhosa pela China.299 Analistas indianos mais otimistas, como Jabin Jacob, esperam que a crescente interação econômica entre os dois maiores países da Ásia crie as condições políticas necessárias para que a China, que continua a ocupar o Aksai Chin, favoreça a resolução do conflito.300 É importante ressaltar, no entanto, que a própria China nega ser parte do contencioso caxemir, e mantém perfil baixo sobre o assunto. A imprensa indiana também influi no processo securitizador, e, de maneira relativamente semelhante ao que se vê no Paquistão, costuma dar ressonância às posições oficiais. Embora a Índia disponha de tradição democrática mais consolidada que a paquistanesa, a mídia indiana não é necessariamente mais independente, principalmente no tocante a assuntos de política externa. Paira, ainda, a cultura nehruviana da busca pelo consenso, o que restringe as possibilidades de crítica. No dia-a-dia da política ordinária, o jornalismo indiano é relativamente isento de pressões externas. Essa tentativa de objetividade, no entanto, caduca no momento em que surgem temas de segurança nacional, ou melhor, questões securitizadas.301 Ao tratar de temas sensíveis, sobretudo a questão caxemir, a mídia indiana corre sério risco de ser considerada anti-patriótica caso se descole da posição veiculada oficialmente pelas autoridades.302 O Governo certamente não estimula o espírito crítico quanto à disputa territorial; por exemplo, Nova Delhi censura qualquer publicação que veicule mapas nos quais a Caxemira não seja retratada como parte integral da Índia.303

299

Idem, pp. 30-1. JACOB, Jabin. “China and Kashmir” in ROSENSTEIN, Matthew (org.). Op. cit., pp. 19-21. 301 INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Kashmir: The View from New Delhi, p. 7. 302 REHMAN, Sherry. Op. cit., p. 166-170. 303 ECONOMIST. “Censorship in India: Censors’ sensibilities”, 7 de dezembro de 2010. 300

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Há, sem dúvida, diversidade entre as publicações. Assim como ocorre no Paquistão, os jornais indianos em língua vernacular – entre as quais predomina o hindi – são via de regra mais nacionalistas que os impressos em inglês, cujos leitores, de extração social e educacional mais elevada, são habitualmente mais tolerantes. Mas a tendência geral é claramente identificável: a imprensa indiana costuma reforçar o processo de securitização da Caxemira, apoiando o discurso oficial a aguçando percepções negativas, ressentimentos e temores em relação a Islamabade.

A securitização da Caxemira pelos próprios caxemires Erro comum entre analistas é tratar a Caxemira como questão exclusivamente bilateral.304 Analistas caxemires, como Mehraj Hajni, sublinham que a população local não apenas deve ser contemplada nas negociações, mas constitui a principal parte interessada no contencioso.305 Há, porém, várias dificuldades conexas à securitização da Caxemira por seus habitantes. Primeiramente, a grande diversidade étnica e religiosa do antigo Estado principesco de Jammu e Caxemira, abordada supra e comparada por Bose a um jogo de bonecas russas (matrioshka),306 dificulta a consolidação de um único grupo político com legitimidade para desempenhar o papel de ator securitizador entre os caxemires. O partido tradicionalmente hegemônico em J&K, a Conferência Nacional, sofreu considerável desgaste nos anos 1990, por não se opor à repressão indiana à insurgência da época, e esteve fora do poder em Srinagar, pela primeira vez em muitos anos, entre

304

Teoricamente a China também seria parte do contencioso. Na prática, a Índia vê sua reivindicação do Aksai Chin como uma causa perdida, e já não procura engajar a China nas negociações sobre a Caxemira. 305 HAJNI, Mehraj. “The Kashmir Conflict: a Kashmiri Perspective” in ROSENSTEIN, Matthew (org.). The Future of Kashmir. 306 BOSE, Sumantra. Op. cit.

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2002 e 2009; seus rivais ainda carecem de base política sólida. Já os grupos caxemires que contestam o domínio de Nova Delhi estão profundamente divididos entre partidos separatistas pacíficos (confederados na All-Party Hurriyat Conference, “Conferência Suprapartidária pela Liberdade”, APHC), guerrilhas separatistas (como a “Frente de Libertação de Jammu e Caxemira”, JKLF, que liderou a etapa inicial da insurgência dos anos 1990 mas abandanou a luta armada em 1994) e movimentos armados próPaquistão, a exemplo do Hizb-ul Mujaheddin (HuM, “Partido dos Mujaheddin”), que em alguns casos deixam de se limitar à Caxemira e passam a atacar indiscriminadamente o Estado indiano.307 Nesta última categoria, o exemplo mais notório é o do Lashkar-e-Tayba (LeT, “Exército dos Justos”), responsável pelos atentados a Mumbai em novembro de 2008, entre outros.308 Além disso, é igualmente grande a divisão de opiniões sobre o objeto referente. Para alguns caxemires, como os da JKLF, o que deve ser protegido (ou restaurado) é a independência do território; para outros, o objeto a defender é a autodeterminação expressa em termos de autonomia política – mas não independência – para os caxemires; enfim, há unionistas de ambos os lados, para quem o bem em ameaça é o status quo: os habitantes hindus e siques de Jammu, por exemplo, são majoritamente simpáticos à manutenção da união com a Índia, enquanto que os xiitas do GilgitBaltistão, segundo pesquisas, estão satisfeitos em integrar o Paquistão. Em terceiro lugar, e talvez mais importante, os anseios dos caxemires são quase permanentemente reféns da disputa bilateral indopaquistanesa.309 Um pressuposto do modelo teórico da securitização é a autonomia discursiva do ator securitizador, que deve ser capaz de formular seu discurso com razoavelmente ampla liberdade. Isso não 307

INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Kashmir: The View from Srinagar, p.9-10. NEVES JÚNIOR, Edson José. Op. cit. 309 BENNETT JONES, Owen. Op. cit., p. 138-9. 308

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acontece em ambas as porções da Caxemira: tanto no lado indiano (J&K) como na porção paquistanesa (AJK), constantes interferências dos respectivos Governos nacionais restringem a autonomia local em termos de preferências políticas. Não é novidade a exclusão dos caxemires no processo decisório referente à região em que habitam. O ator securitizador externo que influiu sobre a Caxemira nos anos 1940 e 1950, o CSNU, sempre propugnou a realização de um plebiscito no qual os caxemires poderiam optar por pertencer ao Paquistão ou à Índia – mas não pela independência. Em 1972, o Acordo de Simla confirmou o caráter exclusivamente bilateral da disputa, negligenciando inteiramente a possibilidade de que os caxemires desejassem a autodeterminação sem a mediação de Nova Delhi ou de Islamabade. O resultado de tal intervencionismo na causa caxemir é a “ultrassecuritização” da Caxemira por forças externas, para Mohammad Waqas Sajid e Mahwiz Hafeez: What needs to be looked at are two fundamental issues – one, the overwhelming presence of security forces on the streets and the daily harassment it brings with it; and two, the absence of political freedom. Thus a two-fold contextual solution needs to address Kashmir’s oversecuritization 310 and the creation of political space – this refers to the provision of justice, which is the only package Kashmir needs. (…) Economic indicators that have tended to define Kashmir’s problems need to be downplayed in favour of more meaningful if less tangible solutions since no stats can capture the extent of political alienation and severe psychological trauma experienced by a generation that has grown in the shadow of guns and bloodshed. To put things in perspective, it is pertinent to note that an estimated 17% of the population suffers from post-traumatic stress disorders.311

Para que os caxemires fossem voz autônoma em relação às próprias dinâmicas de securitização e dessecuritização, seria preciso dar conteúdo prático ao termo Kashmiriyat, que define o ethos cultural dos habitantes da região, independentemente de

310 311

Grifo nosso. WAQAS SAJJAD, Mohammad & HAFEEZ, Mahwish. “Contextualizing Kashmir in 2010”, p. 6.

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distinções religiosas.312 Isso não acontecerá enquanto Islamabade e Nova Delhi continuarem a alimentar discursos, práticas e medidas securitizadoras no âmbito bilateral, e enquanto a disputa da Caxemira continuar a receber mais atenção que o conflito na Caxemira, retomando a terminologia de Suba Chandran.

Siachen e a securitização subordinada Como vimos na primeira seção deste capítulo, em 1984 a Índia ocupou parcialmente a geleira de Siachen, única região da Caxemira que não fora delimitada pela Linha de Cessar-Fogo de 1949 e por sua sucessora, a Linha de Controle de 1972; era, portanto, uma no man’s land para o Direito Internacional. Siachen se situa nos 70 quilômetros entre a coordenada geográfica NJ9842 – término da Linha de Controle – e a fronteira chinesa no Passo do Karakoram. Trata-se da segunda maior geleira não-polar do mundo, a altitudes superiores a 6.000 metros, onde é praticamente impossível estabelecer povoamentos humanos permanentes. Ainda assim, Paquistão e Índia mantêm milhares de soldados no local, apesar de cessar-fogo assinado em 2003.

312

INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Kashmir: The View from New Delhi, p.6.

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Figura 3: a geleira disputada de Siachen, no norte da Caxemira (fonte: TIME)

Na esteira da vitória de Pequim na Guerra Sino-Indiana de 1962, e do Acordo de Fronteiras de 1963, pelo qual o Paquistão concedeu à China 5.180 quilômetros quadrados do Gilgit-Baltistão, região contígua a Siachen, a maioria dos mapas passou a indicar que a geleira pertencia ao Paquistão, ainda que a área não houvesse sido demarcada. Insatisfeita com tal “agressão cartográfica”, e antes que Islamabade pudesse reivindicar oficialmente a posse geleira, Nova Delhi deslocou tropas para o local em 1984, e ocupou a cadeia montanhosa do Saltoro, que permite o controle militar de Siachen. O Paquistão reagiu, mas em 1987 já estava delineada uma Linha das Posições Terrestres Reais (Actual Ground Position Line, AGPL) vantajosa à Índia. A linha não tem validade jurídica, mas foi provisoriamente confirmada por trégua militar de 2003. A Índia deseja que a AGPL seja considerada a continuação da Linha de Cessar-Fogo da Caxemira, consolidando o fait accompli de 1984.313 Por sua vez, Islamabade considera que a presença indiana violou o Acordo de Simla de 1972, defende a desmilitarização

313

KANWAL, Gurmeet. Resolving Siachen: Perspectives from India.

140

incondicional da área e exige reversão para a situação anterior a 1984, quando, segundo o discurso paquistanês, a geleira era de facto administrada pelo país. A relevância militar da geleira é bastante discutível. Anatol Lieven considera Siachen “possivelmente a batalha estrategicamente mais absurda de toda a história dos conflitos humanos”.314 Em analogia jocosa que ganhou grande popularidade no subcontinente, Stephen Cohen comparou a disputa de Siachen a “uma briga entre dois carecas por um pente”.315 O impasse na geleira causou mais de 2.500 mortes em 25 anos, geralmente causadas pela hipotermia, por avalanches, por acidentes e por complicações pulmonares entre os soldados. Não obstante sua inexpressividade estratégica e as dificuldades impostas pela natureza, Siachen é objeto referente de forte securitização entre os Estados vizinhos, e está entre os oito itens do Diálogo Composto Índia-Paquistão. Como em outras disputas territoriais sobre áreas ermas ou muito pequenas – o templo de Preah Vihear e as Malvinas, por exemplo –, a real importância da geleira é psicológica. Embora seja desabitada, Siachen evoca certas paixões identitárias entre Paquistão e Índia por remeter à contenda mais ampla de que faz parte. A securitização da geleira é subordinada à da Caxemira, e eventual dessecuritização do conflito caxemir certamente teria o mesmo efeito sobre o contencioso de Siachen. Mas há motivos para otimismo quanto à possibilidade de dessecuritizar Siachen, mesmo sem solução próxima para a disputa da Caxemira. Um consenso indopaquistanês parece emergir gradualmente em torno da necessidade de colocar fim a um conflito que,

314

LIEVEN, Anatol. Pakistan: A Hard Country, p. 186. COHEN, Stephen. “South Asia needs a Peace Process” in Asian Wall Street Journal, 12 de junho de 1999.

315

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per se, não tem mérito. Propõe-se, por exemplo, o estabelecimento de uma Zona Desmilitarizada (DMZ) na geleira, a ser conjuntamente monitorada pelos vizinhos.316 As mais promissoras sugestões para o futuro de Siachen envolvem a eventual criação de um parque natural binacional em Siachen, o que resolveria a disputa e protegeria os frágeis ecossistemas locais.317 A disposição política necessária para implementar tal solução depende do fortalecimento da noção de segurança ambiental no subcontinente – o que, como veremos no capítulo V, constitui processo inacabado.

Dessecuritização territorial entre Paquistão e Índia: Rann de Kutch e Sir Creek Em nítido contraste com a aparente insolubilidade da questão da Caxemira, a resolução do contencioso territorial do pântano costeiro (Rann) de Kutch fornece caso relativamente bem-sucedido de dessecuritização indopaquistanesa. Imediatamente após a Partição de 1947, os dois Estados recém-independentes lançaram reivindicações mutuamente excludentes sobre uma pequena seção do Rann de Kutch, fronteira litorânea entre a província paquistanesa do Sindh e o estado indiano de Gujarat, nos arredores do delta do rio Indo. Como sucessora jurídica do antigo Estado principesco do Kutch, a Índia reivindicava a totalidade do Rann. O Paquistão, contudo, asseverava que a metade setentrional do Rann era tradicionalmente administrada pelo Sindh, e, portanto, deveria ser integrada ao país muçulmano.318 A partir de 1956, Paquistão e Índia iniciaram escaramuças armadas ligeiras em torno do Rann de Kutch, que degeneraram para um conflito aberto nove anos mais 316

HAKEEM, Asad & KANWAL, Gurmeet. Demilitarization of the Siachen Conflict Zone: Concepts for Implementation and Monitoring. 317 KEMKAR, Neal. “Environmental Peacemaking: Ending Conflict between India and Pakistan on the Siachen Glacier through the Creation of a Transboundary Peace Park”. 318 AMIN, Shahid. Op. cit., pp. 174.

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tarde, quando tanques paquistaneses ocuparam a região disputada, superando com facilidade as defesas indianas. O episódio alimentou as tensões que levariam à Guerra Indopaquistanesa de 1965, travada quatro meses mais tarde na Caxemira, no Punjab e nos desertos do Thar/Rajastão.319 Porém, a Índia não procurou reaver o Rann de Kutch pela força, mas optou pela arbitragem. Em junho de 1965, com os bons ofícios do Reino Unido, os países vizinhos decidiram levar a disputa para a arbitragem internacional, sob a égide das Nações Unidas, e concordaram que o resultado seria vinculante.

Figura 4: o estado de Gujarat (Índia), com o Rann de Kutch (ou Kuchchh) assinalado em marrom (fonte: Wikipédia)

319

WOLPERT, Stanley. India and Pakistan: Continued Conflict or Cooperation?, pp. 29-45.

143

O tribunal arbitral, composto por três juizes – o iugoslavo Ales Bebler, escolhido pela Índia; o iraniano Nasrollah Entezam, designado pelo Paquistão; e o sueco Gunnar Lagergren, nomeado pelo SGNU U Thant – chegou a uma decisão em 1968. Foi traçada uma nova fronteira, que legou ao Paquistão a posse de cerca de 10% do Rann de Kutch, incluindo as áreas de maior importância estratégica para a defesa do Sindh. Por rejeitar a reivindicação indiana de controle absoluto sobre o Rann, o veredito foi visto como vitória paquistanesa. A Primeira-Ministra Indira Gandhi aceitou a decisão da corte, mas anunciou que a Índia não mais recorreria à arbitragem internacional no futuro.320 No entanto, a decisão arbitral de 1968 não resolveu todas as disputas territoriais litorâneas entre Paquistão e Índia. Permaneceu, e ainda permanece, o contencioso em torno do diminuto estuário de Sir Creek, contíguo ao Rann de Kutch, que estava fora das competências do tribunal designado pelo SGNU. Com base em documentos de 1914, quando toda a região integrava a Presidência de Bombaim, parte da Índia britânica, o Paquistão reivindica a totalidade do estuário, o que fixaria a divisa na margem oriental do Sir Creek. Já a Índia exige a aplicação do Princípio do Talvegue, segundo o qual a demarcação de uma fronteira fluvial pode coincidir com a parte mais profunda do rio. Contra-argumentando que o Sir Creek não é navegável e que o Princípio do Talvegue não se aplica ao caso, o Paquistão rejeita a interpretação indiana.321

320

AMIN, Shahid. Op. cit., pp. 175-8. AHMED SHAH, Sikand. “River Boundary Delimitation and the Resolution of the Sir Creek Dispute between Pakistan and India”, pp. 357-360. 321

144

Figura 5: o estuário rio fronteiriço de Sir (Sir Creek), com as reivindicações ões antagônicas de demarcação territorial: o Paquistão propõe a linha verde, a Índia a linha vermelha (fonte: Wikipédia)

Assim ssim como a Caxemira e Siachen, a disputa em torno de Sir Creek é um dos oito temas do Diálogo Composto entre Índia e Paquistão. Islamabade propõe que haja arbitragem,, caso não seja possível resolver o contencioso bilateralmente; Nova Delhi, indisposta a ver a repetição dos fatos de 1968, discorda. Equipes cartográficas conjuntas realizaram alizaram pesquisas na área em 2006 e 2007, mas a negociação foi paralisada após os atentados de Mumbai, em 2008, cuja corresponsabilidade a Índia imputou ao Paquistão. Como signatários da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Convenção de Montego tego Bay, de 1982), os países deveriam ter solucionado o contencioso até 2009, para evitar que a plataforma continental relativa ao estuário passasse à administração da

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Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos.322 O prazo não foi respeitado, mas não houve consequências. A controvérsia do estuário tem certa importância econômica, em vista da possível existência de reservas de gás no estuário. Ademais, a cada ano dezenas de pescadores, tanto indianos como paquistaneses, são presos por violar acidentalmente a fronteira em disputa. No entanto, não é possível afirmar que Sir Creek seja objeto referente de securitização territorial entre Paquistão e Índia. A disputa tem sido travada estritamente no âmbito jurídico-diplomático; portanto, na terminologia da Escola de Copenhague, é politizada e não securitizada. Não há, entre analistas da região, quem imagine a eclosão de uma nova guerra unicamente em função de Sir Creek. Observadores de ambos os lados da fronteira, como o paquistanês Syed Rifaat Hussain323 e o indiano Ashutosh Misra324, consideram relativamente promissora a possibilidade de resolução pacífica da disputa pela posse do estuário, ainda que isso dependa do estado geral das relações bilaterais. É certo que Sir Creek e o Rann de Kutch, como o restante da fronteira indopaquistanesa, não estão isentos de tensões esporádicas. Em agosto de 1999, apenas um mês após a Guerra de Kargil, uma aeronave Breguet Atlantique, da Marinha do Paquistão, foi abatida pela Força Aérea Indiana por sobrevoar ilegalmente o Rann. Porém, isso não levou à retomada dos conflitos armados entre os vizinhos. A comparação do Rann de Kutch (dessecuritização nos anos 1960) e de Sir Creek (politização desde então) com a Caxemira (securitização intensa desde 1947) é necessariamente desigual. Os contenciosos litorâneos, embora guardem certa relevância 322

Idem, pp. 361-2. RIFAAT HUSSAIN, Syed. “The India Factor” in LODHI, Maleeha. Pakistan: Beyond the ‘Crisis State’, pp. 329-347. 324 MISRA, Ashutosh. “The Sir Creek Boundary Dispute: A Victim of India-Pakistan Linkage Politics”, pp. 91-6. 323

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estratégica e econômica, não têm qualquer significado identitário para Índia e Paquistão, e não afetam diretamente a legitimidade de seus respectivos sistemas políticos e ideologias legitimadoras. Em outras palavras, por envolver somente o setor militar (e potencialmente o econômico) de segurança, sem alcançar os setores político e societal, as disputas do Rann de Kutch e de Sir Creek são menos graves – logo, menos securitizáveis – que a Caxemira. Não obstante, servem como exemplo ilustrativo da possibilidade de dessecuritização de ameaças na Ásia Meridional, e demonstram que nem toda controvérsia territorial, mesmo entre rivais, justifica medidas de emergência.

O “Pashtunistão” e a Linha Durand: promessa não-realizada de securitização Ao lado do contencioso caxemir e de suas extensões lógicas, como Siachen, a outra disputa territorial interestatal que afeta diretamente a estabilidade da Ásia Meridional respeita à fronteira afegã-paquistanesa, conhecida como Linha Durand em referência ao diplomata britânico que a demarcou, em 1893, conjuntamente com o Emir do Afeganistão, Abdur Rahman. Entre várias possibilidades geográficas, como os rios Oxus e Indo e a cordilheira do Hindu Kush, a cordilheira de Suleiman foi escolhida para delinear a fronteira setentrional da Índia Britânica. Assim, para atender aos imperativos de defesa do Raj, a divisa separou as comunidades de etnia pashtun (ou pakhtun, ou ainda pathan) do Afeganistão e da Província de Fronteira Noroeste (NWFP) do Raj, que atualmente integra o Paquistão. Com pequenas alterações, decorrentes sobretudo da Guerra Anglo-Afegã de 1919, a Linha Durand vigora até hoje; porém, sua validade jurídica jamais foi confirmada por qualquer Governo em Cabul após a independência paquistanesa. O

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Afeganistão alega, para tanto, que o Paquistão não é herdeiro jurídico do Raj, e que os antigos acordos anglo-afegãos, portanto, precisam ser renegociados.

Figura 6: As cinco possibilidades cogitadas para a fronteira noroeste do Raj britânico no século XIX: a linha 1, no rio Oxus, implicaria anexar o Afeganistão; a linha 2, na cordilheira do Hindu Kush, partilharia o Afeganistão ao meio; a 3, nas montanhas de Suleiman, foi escolhida e hoje corresponde à Linha Durand; a linha 4 legaria ao Afeganistão todas as área de maioria pashtun; e a linha 5, no rio Indo, deixaria metade do atual Paquistão sob controle de Cabul. (fonte: OMRANI, Bijan. “The Durand Line: History and Problems”)

No contexto da Partição de 1947, um movimento pashtun conhecido como Khudai Khidmatgar (“camisas vermelhas”), ativo na NWFP da Índia Britânica e com considerável apoio em Cabul, organizou campanha pela criação de um Estado independente para o grupo étnico, que seria denominado “Pashtunistão”. A causa não prosperou, mas rapidamente contaminou as relações bilaterais: uma vez concluído o

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processo de independência do subcontinente, o Afeganistão foi o único Estado a votar contra a adesão paquistanesa às Nações Unidas.325 Nas três décadas seguintes, a paz relativa em Cabul e a maior preocupação de Islamabade com a Índia mantiveram o contencioso lindeiro em estado dormente. Porém, desde a invasão soviética do Afeganistão, em 1979, o Paquistão vem exercendo grande interferência na política doméstica de seu vizinho ocidental, o que reavivou ressentimentos de outrora. Nos anos 1980, Islamabade ofereceu apoio e santuário aos mujaheddin anticomunistas do Afeganistão, financiados primordialmente pelos EUA e pela Arábia Saudita, inclusive aqueles que viriam a formar a rede AlQaeda nos anos finais daquele conflito.326 Na década seguinte, o Paquistão, desejoso de reforçar sua “profundidade estratégica”327, procurou ativamente influenciar os rumos da guerra civil afegã, patrocinando inicialmente líderes mujaheddin como Gulbuddin Hekmatyar e, a partir de 1994, o movimento Talibã, que surgiu nas madrassas paquistanesas e nos campos de refugiados afegãos na NWFP Paquistão.328 Controlando a maior parte do Afeganistão entre 1996 e 2001, e contando com o reconhecimento diplomático de somente três países – Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos – , o Talibã estabeleceu o Governo afegão mais próIslamabade em muitas gerações; ainda assim, não reconheceu a Linha Durand, para frustração de seus apoiadores paquistaneses. Instalado provisoriamente em 2001 e eleito diretamente pela população afegã para a Presidência em 2004 e 2009, Hamid Karzai

325

SHAH BUKHARI, Sayed Noor. “Post 9/11 Pak-Afghan Border Dispute: A Case Study of Durand Line”, p. 264. 326 COLL, Steve. Op. cit. 327 Concebido por estrategas como Hamid Gul, Diretor do ISI no final dos anos 1980, o conceito de “profundidade estratégica” implica, na doutrina paquistanesa, a necessidade de instalar um Governo favorável na retaguarda do país (logo, no Afeganistão), para reforçar a defesa nacional em caso de novo conflito com o principal adversário – ou seja, a Índia. 328 RASHID, Ahmed. Taliban: The Power of Militant Islam in Afghanistan and Beyond.

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também se recusou a formalizar a fronteira, o que tem sido fonte de constantes fricções bilaterais.329 Em termos linguísticos, culturais e socioeconômicos, há grande semelhança identitária entre as comunidades pashtun dos dois lados da Linha Durand. Ambas seguem o pashtunwali, código não-escrito de costumes, regras e valores tribais que, com frequência, é mais influente que a xariá nos territórios em questão. O pashtunwali enfatiza a honra (nanga), o espírito guerreiro (tura), a igualdade (musawat), o respeito aos mais velhos (mashar), as decisões coletivas em assembleias (jirgas), a tenacidade (merana), a compensação ou vingança (badal) e a hospitalidade (melmastiya) – todos os quais são resumidos pelo conceito polissêmico de ghairat, que contempla dignidade, orgulho, zelo, coragem, indignação e modéstia, entre outros atributos.330 Retomemos o instrumental da Escola de Copenhague: os fatos sugerem a existência de ativa dinâmica de securitização, de natureza militar, política e societal, em torno da Linha Durand, na qual o Governo do Paquistão desempenharia o papel de ator securitizador; o irredentismo etnoterritorial do Estado afegão seria a ameaça; e os objetos referentes seriam o status quo territorial, incluindo a sacralidade da fronteira, e a legitimidade do Estado paquistanês para administrar parte expressiva dos pashtuns.

329

SCHOFIELD, Victoria. Afghan Frontier: At the Crossroads of Conflict. RZEHAK, Lutz. Doing Pashto: Pashtunwali as the ideal of honourable behaviour and tribal life among the Pashtuns.

330

150

Figura 7: Em azul, as áreas propostas para um hipotético “Pashtunistão” entre Afeganistão e Paquistão. As regiões com listras diagonais têm efetiva maioria demográfica pashtun. (fonte: Perry Castañeda Map Collection, Universidade do Texas)

Tal securitização, entretanto, não se verifica na prática. De um lado, o Afeganistão não tem condições de representar ameaça plausível à primazia de

151

Islamabade sobre seus territórios de maioria pashtun; do outro, as estratégias e preferências do Governo do Paquistão não favorecem a securitização. Pretensões irredentistas afegãs para além da Linha Durand são obstruídas por três elementos: a peculiaridade institucional das Áreas Tribais sob Administração Federal (FATA) do Paquistão, o desequilíbrio demográfico entre as comunidades pashtun residentes nos dois Estados e a falta de controle de Cabul sobre seus próprios territórios pashtun. As FATA são governadas pelo Regulamento de Crimes da Fronteira (FCR) e não pela Constituição do Paquistão de 1973. Legado do Raj britânico, que basicamente codificou o pashtunwali, o FCR mantém as áreas tribais sob administração direta de um agente político imposto por Islamabade; impede a atuação de partidos políticos no local; inibe qualquer investimento em educação, saúde ou infra-estrutura; e legitima o chamado princípio da justiça coletiva, que autoriza retaliações contra famílias ou vilas inteiras em resposta a um delito cometido por um de seus membros. O alegado propósito do regulamento é preservar a autonomia política e jurídica das comunidades pashtun. Apesar de reforma que flexibilizou a aplicação da justiça coletiva, em 2011, o FCR permanece uma das legislações mais autoritárias da Ásia. Numerosos autores, como Shahrbanou Tadjbakhsh, consideram que o regulamento é responsável pelo atraso, pelo subdesenvolvimento e pelo radicalismo político-religioso das FATA331 – que são, na atualidade, a principal base de operações de grupos jihadistas como o Talibã original, a Rede Haqqani, a Al-Qaeda e o TTP (Tehreek-e-Taliban Pakistan ou Talibã Paquistanês, desvinculado de seu homônimo afegão).

331

TADJBAKHSH, Shahrbanou. South Asia and Afghanistan: The Robust India-Pakistan Rivalry.

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Todavia, segundo Bijan Omrani, apesar de ter mantido o analfabetismo em níveis medievais (86% ao todo; entre mulheres, 97%), o FCR ainda conta com apoio significativo entre os próprios pashtun, profundamente avessos a interferências em seu modo de vida.332 A autonomia conferida pelo regulamento inviabiliza pretensões territoriais revisionistas; com o FCR, os pashtun paquistaneses julgam que não precisam pertencer ao Afeganistão para fazer valer seus costumes. O segundo entrave ao irredentismo de Cabul é o desequilíbrio demográfico entre as comunidades pashtun, atualmente bem mais numerosas no Paquistão que no país vizinho. Há cerca de 25 milhões de membros da etnia no Paquistão, primariamente nas FATA, nas províncias de Khyber-Pakhtunkhwa (antigamente denominada NWFP) e na cidade de Karachi, além de mais de dois milhões de refugiados pashtun afegãos – o maior contingente de refugiados do mundo. Do outro lado da Linha Durand, o Afeganistão conta com cerca de 15 milhões de pashtuns, que conformam a maioria em quase todas as províncias do sul e leste do país. Ao todo, esse grupo étnico representa cerca de 15% da população paquistanesa e 45% da demografia afegã. Embora sejam contestadas por razões políticas, tais estatísticas dificultam reivindicações territoriais por parte do Governo do Afeganistão – que até pode invocar para si a defesa de todas as populações pashtun, mas administra somente uma minoria delas. O terceiro e provavelmente mais significativo obstáculo ao irredentismo afegão é a falta de efetivo controle de Cabul sobre seus territórios meridionais e orientais, onde residem os pashtun. Trata-se, no presente, do principal espaço de atuação do Talibã e dos demais movimentos insurgentes que enfrentam a presença militar da ISAF; é,

332

OMRANI, Bijan. “The Durand Line: History and Problems of the Afghan-Pakistan Border”, p. 192.

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ademais, a área responsável pela grande maioria do cultivo da papoula e da produção de ópio no mundo, que financiam a resistência armada ao Governo Karzai.333 Diante de tais dificuldades, o pleito territorial de Cabul é pouco plausível. Bijan Omrani enumera os argumentos da recusa paquistanesa em reconhecer o irredentismo afegão como ameaça – o que seria o pressuposto para securitizar a Linha Durand: There is a certain unfortunate irredentism in the Afghan view. Afghans are longing for a seaport. They want to generate a Pashtun nation which might never have existed in the first place; indeed, were the Pashtuns ever a unified people? How can the Afghans take on any extra territory when they cannot govern what they already have? What about the selfdetermination of the Pashtuns on the Afghan side of the Line? Arguably, as there are more Pashtuns on the Pakistani side of the Line, the Afghan Pashtuns should be given a referendum about joining Pakistan, not vice versa; the same applies to the Tajiks in the north of Afghanistan, and the Uzbeks and Turkmen. It is a very difficult argument – it cuts both ways. It is self-contradictory to think that the border is not an international frontier.334

Não se constata a securitização do contencioso territorial por parte de Islamabade, que não teme perder a soberania sobre os 25 milhões de pashtuns paquistaneses. Ocorre, na realidade, o contrário: nos momentos de instabilidade no país vizinho, o Paquistão frequentemente assume o papel de defensor dos pashtuns do Afeganistão, de maneira semelhante ao que fazem Irã, Tadjiquistão, Uzbequistão com hazaras, tadjiques e uzbeques, respectivamente. Segundo relatório do United States Peace Institute sobre as preferências externas paquistanesas, que ao ser publicado despertou grande atenção em Islamabade, constituir um Governo com forte representação pashtun em Cabul é uma das prioridades paquistanesas no processo de

333 334

BAJORIA, Jayshree. “The Troubled Afghan-Pakistani Border” in Council of Foreign Relations. OMRANI, Bijan. Op. cit., p. 191.

154

reconciliação nacional afegã que deverá ter lugar até 2014, data prevista para a partida da ISAF.335 Considerando a fraqueza do Estado afegão em termos sociopolíticos, já abordada no capítulo II, duas considerações serão oportunas para encerrar a seção e o capítulo. Em primeiro lugar, a fragmentação étnica e política do Afeganistão não motiva securitizações internas ou externas. Ao contrário do que se verifica em outros ambientes de fraqueza estatal, como a Somália, a existência do Estado afegão não é colocada em dúvida por nenhum dos atores que o compõem. Inexistem movimentos separatistas significativos no interior do país; os tadjiques e uzbeques do norte, por exemplo, não procuram a incorporação aos Estados vinculados a suas respectivas etnias. Quando Robert Blackwill, ex-embaixador norte-americano em Nova Delhi, fez a controversa sugestão de que a ISAF se retirasse do sul e do leste do Afeganistão, abandonando tais áreas para o Talibã e estabelecendo uma partição de facto entre pashtuns e demais grupos336, foi recebido com grande frieza por analistas. O general David Barno, que comandou as forças dos EUA no país entre 2003 e 2005, retorquiu que a proposta de Blackwill é psicologicamente contraproducente, ignora as aspirações da população afegã e carece completamente de lógica militar.337 Ahmed Rashid acrescentou que eventual partilha colocaria em risco a sobrevivência das minorias não-pashtuns do sul, desestabilizaria a região – sobretudo as áreas pashtuns do Paquistão – e seria potencialmente mais violenta que a Partição de 1947.338

335

YUSUF, Moeed, YUSUF, Yuma & ZAIDI, Salman. Pakistan, the United States and the End Game in Afghanistan: Perceptions of Pakistan’s Foreign Policy Elite. 336 BLACKWILL, Robert. “A de facto partition of Afghanistan” in Politico, 7 de julho de 2010. 337 BARNO, David, apud RICKS, Thomas. “Bob Blackwill’s bad, bad Afghan Plan B: Let’s surrender but then keep fighting!”, s.p. 338 RASHID, Ahmed. “Divide Afghanistan at your peril”.

155

A segunda consideração respeita à inconveniência de certos rótulos geopolíticos. O conceito de “AfPak”, por meio do qual a equipe do então recém-empossado Presidente Barack Obama procurou sublinhar a interdependência militar e política entre os teatros contíguos de campanha militar, foi muito mal recebido no Paquistão. Numerosos paquistaneses, acostumados a imaginar o próprio país como a maior potência bélica e tecnológica do mundo muçulmano, sentiram-se ofendidos pela comparação analítica com um dos Estados economicamente mais atrasados do mundo. Partidos oposicionistas protestaram, alegando que o neologismo culpabilizaria o Paquistão pelas falhas da campanha da OTAN no Afeganistão e justificaria o aumento da frequência dos ataques de veículos aéreos não-tripulados (VANTs) nas zonas tribais paquistanesas – o que, de fato, ocorreu. Mais grave, expressivos setores militares e da imprensa observaram que o “AfPak” não é “AfPakIn”: a nova estratégia dos EUA negligenciaria o diálogo com a Índia e, por conseguinte, a busca de uma solução para o imbroglio da Caxemira.339 Especificamente, a confirmação de que a Índia não seria contemplada no mandato do Representante Especial da Casa Branca para o “AfPak”, Embaixador Richard Holbrooke, causou mal-estar em Islamabade. Assim, e conforme ilustrou o presente capítulo, conveniências estratégicas de uma superpotência ditaram uma abordagem – a do AfPak – que negligenciou uma securitização territorial realmente existente, aquela em torno da Caxemira, em prol de outra que não se realizou inteiramente: a das zonas tribais afegãs.

339

FISCHER, Karl. The AfPak Strategy: Reactions in Pakistan.

156

V – MAIS EMPREGOS E MENOS ÁRVORES: O FRACASSO DA SECURITIZAÇÃO AMBIENTAL NA ÁSIA MERIDIONAL

“Ou quem fez a terra firme para se viver, dispôs em sua superfície rios, dotou-a de montanhas imóveis e pôs entre as duas massas de água uma barreira? Poderá haver outra divindade em parceria com Deus? Qual! Porém, a sua maioria é insipiente.” (Alcorão, 27ª surata, verso 61)

Nem todas os desafios – reais ou imaginados – à segurança e à estabilidade da Ásia Meridional são tratados como ameaças existenciais pelos Estados do subcontinente. Nos capítulos anteriores, debruçamo-nos sobre a proliferação de armas nucleares e as disputas territoriais, duas temáticas que motivam processos intensos de securitização entre Paquistão, Índia e Afeganistão; a presente seção servirá de contraexemplo, ao ilustrar problemas vinculados a uma categoria que, por ora, não desfruta de ampla legitimidade na região: a segurança ambiental. A experiência recente da União Europeia demonstra a viabilidade, para os Estados, organizações internacionais, ONGs e outros atores securitizadores, de representar certos fenômenos ambientais, particularmente a mudança do clima, como ameaça existencial às sociedades humanas.340 Como veremos, essa dinâmica não se repete na Ásia Meridional, ao menos não em escala suficiente para influenciar substancialmente os processos políticos e a opinião pública. Há tentativas de mobilizar as audiências internas de cada Estado nesse sentido, mas com sucesso limitado. No presente capítulo, após um breve panorama sobre os problemas ambientais específicas ao Complexo Regional de Segurança da Ásia Meridional, analisaremos 340

MENDES BARBOSA, Luciana e SOUZA, Matilde. “Securitização das mudanças climáticas: o papel da União Europeia”.

157

alguns fatores que impedem a securitização de assuntos relativos ao meio ambiente, como a mudança do clima, na Índia e no Paquistão. O Afeganistão, embora não esquecido, será menos citado; o debate ecológico é extremamente incipiente no país, em consequência compreensível dos índices modestos de alfabetização e das condições internas de persistente instabilidade. Averiguaremos, ainda, a atuação diplomática paquistanesa e indiana para impedir que o conceito de segurança ambiental seja sacramentado pelas Nações Unidas. Por fim, examinaremos a eventual securitização dos recursos hídricos entre Islamabade e Nova Delhi, e possivelmente também Pequim, em torno do rio Indo e de seus tributários.

Uma multiplicidade de riscos ambientais A Ásia Meridional é considerada uma das regiões ecologicamente mais vulneráveis do mundo, e enfrenta uma miríade de problemas ambientais, alguns presentes e outros previstos, que surtem fortes impactos sociais e econômicos e poderiam vir a ser securitizados.341 Grande parte desses fenômenos se relaciona à mudança do clima, cuja manifestação mais dramática, no Paquistão como na Índia, é a intensificação das enchentes causadas anualmente pelas chuvas de monção. O paroxismo dessas catástrofes foi a grande inundação paquistanesa de 2010, que afetou cerca de 20 milhões de pessoas em quase todas as regiões do país, deixou centenas de mortes e destruiu incontáveis vilas e lavouras.

341

Não é feita referência, neste capítulo, às catástrofes naturais que afetam essencialmente países sulasiáticos que estão fora do escopo da presente dissertação, como a possível submersão de partes de Bangladesh e da totalidade das Maldivas, em decorrência da elevação do nível dos oceanos.

158

Furacões e ciclones tropicais, cuja incidência também tem relação direta com as monções, também são desastrosos e podem ter consequências políticas na região; a débil assistência humanitária prestada por Islamabade ao Paquistão Oriental após o ciclone Bhola, em 1970, agravou o ressentimento dos bengalis contra o Governo paquistanês e foi fator decisivo para a eclosão da guerra civil que emancipou Bangladesh no ano seguinte.

Figura 8: Países e regiões mais vulneráveis à mudança de clima. (fonte: Maplecroft)

Fenômeno climático talvez menos visível, mas de consequências possivelmente ainda mais graves a longo prazo que os ciclones e as enchentes, é a acelerada desertificação de regiões semi-áridas, como o Sindh e o Baluquistão paquistaneses e o Rajastão e o Gujarat, na Índia. Essa dinâmica é acelerada pelo deflorestamento em curso em ambos os países.342

342

AHMED, Sohail. “Significance of climate change in Pakistan”.

159

Em perspectiva mais ampla, segundo relatório elaborado a pedido da Comissão Europeia, a mudança de clima deve afetar o Sul e Sudoeste a Ásia de três maneiras principais: como multiplicador de ameaças em uma região já marcada por conflitos étnicos e religiosos; como barreira ao desenvolvimento econômico; e como motivo para novos conflitos e tensões entre os Estados regionais, ou no interior destes.343 Mediterrâneo, montanhoso e dotado de geografia bem distinta, o Afeganistão enfrenta

problemas climáticos específicos, como a desertificação das províncias

meridionais, Nimrod, Kandahar e Helmand, o que pode levar à perda de 75% da terra arável afegã; a crescente irregularidade das chuvas; e, sobretudo, o derretimento parcial das camadas glaciais do Hindu Kush.344 O país enfrentou secas extraordimente severas em 1998-2001 e 2008-2009, o que está vinculado às mudanças climáticas, segundo estudo científico anglo-afegão.345 Várias das cidades mais poluídas do mundo estão situadas no subcontinente, o que evidentemente facilita a proliferação de doenças variadas. Todos os países da região têm a maioria da população ativa no setor rural e dependem de lavouras intensivas, o que cria pressão sobre o uso dos solos. Da mesma forma, a biodiversidade sul-asiática tradicionalmente é refém do deflorestamento que resulta da superpopulação e das necessidades econômicas do setor agrícola. Paralelamente, a expansão acelerada dos arsenais nucleares indiano e paquistanês, associada à ampliação do uso civil da energia atômica por ambos os países,

343

CARIUS, Alexander, MAAS, Achim & FRITZSCHE, Kerstin. Climate Change and Security: Three Scenarios for South-West Asia, p. 13. 344 NASEEMI, Khalid. Urgency in Mainstreaming Climate Change in National and Sectoral Development Strategies in Afghanistan. 345 SAVAGE, Matthew, DOUGHERTY, Bill, HAMZA, Mohammed, BUTTERFIELD, Ruth & BHARWANI, Sukaina. Socio-Economic Impacts of Climate Change in Afghanistan.

160

alimenta consideráveis temores sobre o risco de vazamento radioativo ou de dejetos altamente nocivos à saúde humana, animal e vegetal. Há, por fim, desastres naturais que não dependem da ação humana, mas cujos efeitos seriam minimizados por sistemas eficientes de prevenção e alerta, como os terremotos decorrentes da fricção das placas tectônicas nos arredores do Himalaia e do Karakoram, e os tsunamis que ocasionalmente vitimam o litoral do Oceano Índico. O terremoto da Caxemira de 2005 e o grande tsunami de 2004, respectivamente, são exemplos dessas modalidades de cataclismas.346 Todos os riscos naturais citados supra são maximizados pela superpopulação e pelo acelerado crescimento demográfico da Ásia Meridional – lar de 1,6 bilhão de pessoas, ou quase um a cada quatro humanos. Estima-se que a Índia será o país mais populoso do planeta em poucas décadas, sobrepujando a China; o Paquistão, por sua vez, está prestes a ultrapassar o Brasil e se tornar a quinta maior nação do mundo em termos populacionais. Diante de tantos problemas relacionados à sustentabilidade ambiental e ao bemestar humano, não é surpreendente que haja substancial literatura argumentando pela securitização das ameaças ao meio ambiente na região. Adil Najam, por exemplo, chegou a cinco conclusões ao averiguar a interrelação entre degradação ambiental e insegurança na Ásia Meridional: primeiro, a harmonização conceitual entre segurança e meio-ambiente faz sentido no subcontinente; segundo, os desafios à segurança ambiental na Ásia Meridional surtem efeitos principalmente domésticos, e por vezes locais, o que inibe a cooperação internacional; terceiro, o problema central da insegurança ambiental no subcontinente não é a ausência 346

MUHAMMAD KHAN, Raja. “Non-Traditional Security Threats to South Asia”.

161

de recursos naturais, mas um déficit em termos de instituições e de governança; quarto, guerras por motivações ambientais são improváveis na Ásia Meridional, mas não impossíveis, em vista do passado violento da região; e quinto, existe potencial, ainda que modesto, para que surja na Ásia Meridional uma “nova geração de relações de segurança, com base no nexo entre segurança e meio-ambiente”.347

Entraves à securitização ambiental Não obstante a gravidade dos riscos ao meio ambiente regional, diversos fatores impedem que a noção de segurança ambiental se consolide na Ásia Meridional e dificultam a securitização, no subcontinente, de problemas como a mudança do clima. Um deles é a falta de informação da opinião pública. De acordo com diversas pesquisas do Instituto Gallup, realizadas em 127 Estados entre 2007 e 2008, a Índia está muito atrás dos países que a acompanham no grupo de cinco maiores emissores de gases de efeito estufa – China, EUA, Rússia e Japão – em termos de conhecimento popular sobre a mudança climática. Aproximadamente um terço dos indianos se considera “ciente” (aware) da existência do fenômeno, contra 62% dos chineses, 85% dos russos, 97% dos norte-americanos e 99% dos japoneses. Incidentalmente, os patamares de consciência pública sobre a mudança climática no Paquistão (34%) e no Afeganistão (25%) são semelhantes aos da Índia.348 Em 2006, por ocasião de enquete sobre as causas das fortes variações nos padrões hidrológicos no país, aproximadamente metade da população paquistanesa citou

347

NAJAM, Adil. “The environmental challenge to human security in South Asia” in THAKUR, Ramesh & WIGGEN, Oddny. South Asia in the World: Problem Solving Perspectives on Security, Sustainable Development and Good Governance, pp. 225-247. 348 PUGLIESE, Anita & RAY, Julie. “A heated debate: global attitudes toward climate change”.

162

a mudança de clima; a outra metade culpou a “fúria divina” pelas chuvas torrenciais.349 No mesmo ano, o Pew Center – adotando metodologia ligeiramente diferente da empregada pelo Gallup – realizou pesquisas simultâneas em 15 países para comparar o nível de conhecimento a respeito das mudanças climáticas, e revelou que pouco mais de 10% dos paquistaneses tinham consciência das mudanças no clima global. Isso colocou o país, isoladamente, no último lugar em termos de informação sobre o assunto.350 Por óbvio, os Governos também desempenham papel importante na nãosecuritização do meio ambiente na Ásia Meridional. Todos adotam políticas públicas de proteção dos recursos naturais e de adaptação aos efeitos da mudança do clima, para citar apenas dois exemplos; porém, tais políticas não são tratadas como prioridade emergencial, pois entram em conflito com outra dimensão securitária mais relevante para as sociedades locais: a segurança econômica. Talvez mais importante do ponto de vista da Escola de Copenhague, entre os países aqui analisados nenhum Governo – ao contrário de vários europeus – adota ostensivamente o discurso político-diplomático da segurança ambiental. Em termos de políticas públicas, Nova Delhi reconhece a necessidade de adotar padrões de desenvolvimento que levem em consideração a ameaça representada pela mudança climática; neste sentido, em 2009 adotou metas não-vinculantes de redução da expectativa de emissão dos gases responsáveis pelo efeito-estufa (GEEs). No plano externo, o país tem papel destacado nas negociações para o arranjo jurídico de emissão dos GEEs após a expiração do Protocolo de Quioto. Ao lado de Brasil, África do Sul e China, a Índia compõe o BASIC, principal coalizão do mundo em desenvolvimento atuante nas negociações relativas à Convenção-Quadro das Nações 349

SHAFI GILANI, Ijaz. The Voice of the People: Public Opinion in Pakistan, 2007-09, p. 160. LEISEROWITZ, Anthony. Global public perception, opinion, and understanding of climate change: current patterns, trends, and limitations. 350

163

Unidas sobre Mudanças Climáticas (CQNUMC, ou UNFCCC em inglês, assinado em 1992 no Rio de Janeiro) e em suas Convenções das Partes (COPs), realizadas anualmente desde a entrada em vigor da CQNUMC. Contudo, a Índia é altamente sensível a discursos e práticas internacionais sobre o clima que não respeitem sua premente necessidade de promover o desenvolvimento e combater a pobreza. Em Nova Delhi, impera a percepção de que securitizar o meio ambiente

implicaria

sacrificar

a

segurança

econômica

do

país,

que

é,

compreensivelmente, prioritária. Nas palavras de Ligia Noronha: Indian negotiators rightly perceive that the current developments constitute the pursuit by the developed world of strategic agendas through the environmental route. (…) For an emerging economy to accept legally-binding carbon targets at this stage would impose heavy costs on that economy. It would reduce the time it needs to make the energy transitions to a less fossil fuel-dependent path at a pace and cost that it can afford. This is a fact, given the urgency and the magnitude of an emerging economy’s energy demands, the initial conditions of poverty, and the overall social and economic context in which production takes place. Public opinion in India, although still emerging, is also beginning to perceive this new pressure as linked to developed country concerns surrounding the competitiveness of emerging nations.351

O corolário dessa percepção indiana é a aguda consciência do imperativo de preservar o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, em matéria de redução de emissões de GEEs. O Brasil adota perspectiva muito similar. Menos protagônico nas negociações climáticas globais, o Paquistão enfrenta dificuldades específicas em termos de discursos e políticas ambientais. Com a aprovação da 18ª Emenda à Constituição, o Ministério Federal do Meio Ambiente foi 351

NORONHA, Ligia. “”Climate Change and India’s Energy Policiy” In PANDYA, Amit & MICHEL, David (orgs.). Indian Climate Policy: Choices and Challenges, p. 10.

164

extinto no país. A prerrogativa para deliberar sobre temas ambientais, assim como outros domínios – educação, agricultura e direitos das minorias, por exemplo – foi devolvida às quatro províncias paquistanesas, cujas realidades e prioridades políticas são bastante divergentes. A transferência de competências atendeu a antigos anseios da sociedade paquistanesa, que favorece a descentralização do país, mas criou diversas dificuldades para a coordenação de políticas públicas no setor.352 Há, ainda, com um comitê para mudanças climáticas ligado ao Gabinete do Primeiro-Ministro do Paquistão, estabelecido em 2005 e suposto harmonizar políticas de clima com a legislação ambiental e energética paquistanesa; porém, segundo analistas, o comitê é quase inoperante, e requer revitalização.353 Como visto no capítulo II, a Escola de Copenhague, sobretudo na formulação de Barry Buzan, reconhece a centralidade – embora não exclusividade – dos agentes do Estado como atores securitizadores em todos os setores de segurança. Logo, se os próprios Governos sul-asiáticos não aderem ao discurso securitizador, há pouco espaço para a securitização do meio ambiente na região – inclusive porque a audiência (opinião pública), como visto, não está disposta a aceitar tal lógica. Das duas etapas da securitização no modelo de Ralf Emmers, a primeira (designação da ameaça) é possível, mas a segunda (convencimento da audiência) não é.354 Assim como os respectivos Governos, a comunidade acadêmica sul-asiática adota majoritariamente o viés tradicionalista de segurança, e pouco se inclina a debater temas ecológicos. A constatação é especialmente verdadeira no Paquistão, fértil em respeitados institutos de pesquisa dedicados a assuntos geopolíticos, mas com apenas 352

Entrevistas do autor com dirigentes das ONGs ambientais Climate Knowledge Development Network (CKDN) e Leadership for Environment and Development (LEAD), Islamabade, 2011. 353 IQBAL KHAN, Farrukh & MUNAWAR, Sadia. Institutional Arrangements for Climate Change in Pakistan. 354 EMMERS, Ralf. “Securitization” in COLLINS, Alan (ed). Contemporary Security Studies, p. 139.

165

um think-tank de projeção nacional e especialização em temas ambientais: o Instituto de Políticas de Desenvolvimento Sustentável, SDPI, em Islamabade. É injusto negar inteiramente o papel da academia paquistanesa no debate global sobre a temática ambiental. O economista Mahbub ul-Haq foi um dos pioneiros da noção de segurança humana, com especial ênfase na interação entre sociedades e ecossistemas, e elaborou importante relatório sobre o tema para o PNUD, em 1994. Mais recentemente, o Embaixador Shafqat Kakakhel foi o Diretor-Executivo Adjunto do PNUMA entre 1998 e 2007, e desde então vem atuando como espécie de elder statesman político e intelectual da ecologia paquistanesa. São, contudo, meritórias exceções em um país no qual o interesse por assuntos ambientais é, ainda, limitado. Em consequência da indiscutível centralidade da Ásia Meridional e do Afeganistão nas dinâmicas militares e estratégicas atuais, o discurso acadêmico estrangeiro também tende a negligenciar as dimensões ambientais da segurança na região. Por exemplo, entre os incontáveis autores ocidentais que têm publicado volumes de fôlego sobre o Paquistão desde o 11 de setembro de 2001, Anatol Lieven – curiosamente, um historiador militar – é um dos únicos que enfatizam a ameaça ambiental ao futuro do país. Ainda assim, é bastante cuidadoso ao fazê-lo: In the long run, the greatest threat to Pakistan’s existence is not insurgence, but ecological chance. However, Pakistani farmers are also tough and adaptable, and while some areas like the Quetta valley are likely to suffer disastrous water shortages in the near future, in the country as whole, drought will take several decades to become truly catastrophic; and floods, though devastating in the short term, can also be controlled and harnessed given determination, organization and money. This allows time for human action to ameliorate the impending crisis, if the West, China and of course Pakistan itself have the will to take this action.355

355

LIEVEN, Anatol. Pakistan: A Hard Country, p. 477.

166

É importante a ressalva final de Lieven quanto à necessidade de que o Paquistão tome ciência de seus problemas ambientais. No futuro distante, caso os níveis gerais de educação e informação sejam elevados; caso o país supere a atual fase de instabilidade, e possa voltar a se concentrar em temas civis; caso o Governo adote uma perspectiva mais holística do desenvolvimento; e caso a pobreza seja reduzida de maneira substancial, o que diminuiria as tensões entre meio ambiente e segurança econômica, a ecologia humana pode vir a ocupar o centro do debate público paquistanês. São, porém, apenas hipóteses. Por ora, é totalmente implausível a securitização bem-sucedida do meio ambiente no Paquistão.

Índia e Paquistão contra a macrossecuritização da mudança do clima A tendência sul-asiática de não securitizar temas ambientais tem expressão diplomática, e tornou-se explícita durante importante reunião do Conselho de Segurança a respeito, em julho de 2011. Havendo discutido, em 2007, a relação mais ampla entre segurança, energia e meio ambiente, nesta nova ocasião o CSNU debateu especificamente as implicações securitárias da mudança do clima. Capitaneados pelo G-77, e com importante atuação brasileira, os países do Sul impediram a aprovação de resolução que, na prática, proclamaria a macrossecuritização da mudança do clima. Resistindo ao discurso securitizador da Alemanha, dos Estados Unidos e do próprio SGNU, os países em desenvolvimento declararam que as alterações causadas pela humanidade no clima global, embora sejam grave problema que justifica o engajamento continuado da humanidade, não necessariamente constituem ameaça à paz e segurança internacionais; assim, o CSNU não seria a instância apropriada para

167

lidar com o assunto.356 Na impossibilidade de adotar Resolução sobre o tema, o Conselho se limitou a aprovar Declaração Presidencial vaga, que não consagra a suposta função de “multiplicador de ameaças” da mudança do clima e reconhece a competência da AGNU e do ECOSOC – mas não do CSNU – no debate ambiental.357 Durante a referida reunião, a Índia, por meio do Embaixador Hardeep Singh Puri, ressaltou a grande incerteza científica que persiste sobre os supostos vínculos entre a mudança do clima e quase todos os desastres naturais e humanos imagináveis, das secas e inundações à escassez alimentar e aos conflitos violentos. Além de defender a CQNUMC como instância apropriada para lidar com temas climáticos, o plenipotenciário indiano salientou que a pobreza e o subdesenvolvimento, não a mudança do clima, são preocupações mais graves para a segurança dos países do Sul.358 Já o Paquistão, na voz de seu Representante Permanente Abdullah Hussain Haroon, citou as enchentes e o derretimento dos glaciares em seu país como exemplo dos efeitos deletérios da mudança do clima. Porém, não adotou o discurso da segurança para se referir ao assunto, e insistiu em preservar a competência da CQNUMC, da AGNU e do ECOSOC para o debate de temas climáticos no âmbito multilateral.359

356

CONLEY, Laura & WERZ, Michael. “United Nations Misses Broader Climate Change Connection”. CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Presidencial S/PRST/2011/15. 358 CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS. Anais da 6587ª reunião, 20 de julho de 2011, pp. 18-20. 359 Idem, pp. 41-3. 357

168

O potencial de securitização da água Na região ora estudada, quiçá o assunto ambiental com mais evidente potencial de securitização, a médio prazo, seja o controle dos recursos hídricos – cuja disponibilidade, relativamente à população do subcontinente, é insuficiente. Há consenso acadêmico em torno do risco de escassez de água potável na Ásia Meridional nas próximas décadas.360 O quadro é especialmente grave no norte da Índia e no leste do Paquistão, onde está um dos maiores complexos de irrigação do planeta, concentrado na região do Punjab, hoje dividida entre os dois Estados. Os respectivos Governos têm dificuldade de angariar os recursos necessários para adotar técnicas rurais que reduziriam o uso da água no campo, como a irrigação por gotejamento.361

Figura 9: Escassez de água no mundo: a superexploração das bacias hidrográficas. Com exceção do Sindh paquistanês e do nordeste indiano, a totalidade territorial de Índia, Paquistão e Afeganistão enfrenta risco de escassez. (fonte: PNUMA/GRID-Arendal) 360 361

MICHEL, David. “East is East and West is West”. Entrevistas do autor com técnicos do Pakistan Agricultural Research Council, Islamabade, 2011.

169

O Embaixador Éverton Vieira Vargas pondera que a cooperação internacional sobre a água “obedece a uma lógica utilitarista e tem resultado num equilíbrio imperfeito dos antagonismos entre as pretensões individuais e as acomodações coletivas”.362 A observação é inteiramente pertinente para o regime de acordos hidrográficos da Ásia Meridional, com destaque para o Tratado do Rio Indo, ou IWT, firmado em 1960 por Paquistão e Índia para regular os seis rios da bacia homônima. O IWT determinou que Islamabade teria direitos exclusivos sobre o Jhelum, o Chenab e o próprio Indo, deixando para Nova Delhi o controle sobre os rios Ravi, Sutlej e Beas. Analogamente ao Tratado de Cooperação Amazônica de 1978, o IWT é menos um acordo de cunho ambiental ou preservacionista, e mais uma divisão interestatal dos recursos naturais disponíveis; embora o documento preveja a cooperação bilateral para o aproveitamento das bacias hídricas, isso nunca foi explorado pelas partes.363 O documento foi, por muito tempo, elogiado como um raro exemplo de entendimento cordial entre Islamabade e Nova Delhi. Autores semi-oficiais de ambos os países, como o Embaixador Shahid Amin, ainda empregam tal discurso algo róseo.364 No entanto, diversos fatores políticos, econômicos e ambientais, alguns intencionais e outros não, têm colocado grande pressão sobre o IWT nos últimos anos. Em função das mudanças no clima regional, o derretimento das geleiras do Himalaia e do Karakoram, que alimentam a bacia hidrográfica do Indo, começa a causar sensíveis – e crescentes – desequilíbrios hidrológicos entre Paquistão e Índia.365

362

VARGAS, Éverton Vieira. “Água e relações internacionais”. MICHEL, David. Op. cit.. 364 AMIN, Shahid. Pakistan’s Foreign Policy: A Reappraisal, pp. 179-181. 365 CARIUS, Alexander, MAAS, Achim & FRITZSCHE, Kerstin. Op. cit., p.8 363

170

Ademais, a Índia, ribeirinha superior em relação ao Paquistão, vem construindo projetos fluviais que, na perspectiva de Islamabade, desrespeitam a fórmula de distribuição da água estipulada pelo IWT.366 O Diálogo Composto entre os dois países, lançado em 2004, inclui os contenciosos da barragem de Wullar e do projeto de navegação do Tulbal, ambos no rio Jhelum; da hidrelétrica de Baglihar, no rio Chenab; e da represa de Kishenganga, no rio Neelum, um afluente do Jhelum. O Governo paquistanês considera que todas essas iniciativas indianas violam o IWT.367

Figura 10: Os principais rios da bacia do Indo, regulados pelo IWT, atravessam a Caxemira. (fonte: Al-Jazeera)

366

MUHAMMAD KHAN, Raja. Op. cit., p. 53. JAITLY, Ashok. “South Asian Perspectives on Climate Change and Water Policy” in PANDYA, Amit & MICHEL, David (orgs.). Troubled Waters: Climate Change, Hydropolitics and Transboundary Resources. 367

171

Como sugere o mapa acima, o que torna o assunto realmente delicado é o entrelaçamento entre uma disputa por recursos naturais, a do IWT, e um contencioso territorial-identitário, o da Caxemira, analisado no capítulo anterior. Qualquer solução permanente para a questão caxemir terá que preservar o frágil condomínio hídrico indopaquistanês. Enquanto

a

Índia

dispõe

de

uma

segunda

grande

bacia,

a

do

Ganges/Brahmaputra/Meghna, compartilhada com China, Nepal e Bangladesh, praticamente toda a água doce que viabiliza as atividades humanas no Paquistão deriva da bacia regulada pelo IWT. Assim, eventual utilização agressiva do Indo e de seus tributários por Nova Delhi, como o desvio dos cursos hídricos ou a construção de barragens deliberadamente desestabilizadoras, seria evento catastrófico para o país vizinho.368 A hipótese é bastante improvável, até porque provavelmente induziria o Paquistão a utilizar armas nucleares, mas figura dos cálculos estratégicos de Islamabade. Reside aí o maior risco de securitização das disputas hídricas da Ásia Meridional – não por motivos estritamente ambientais, e sim por subordinação à lógica aparentemente geopolítica, mas na realidade político-identitária, que governa o relacionamento indopaquistanês. Paralelamente à crise do IWT, outras disputas hídricas interestatais podem emergir na região, sobretudo entre Índia e China. Influentes analistas indianos, como Brahma Chellaney, denunciam a “hegemonia hidráulica” de Pequim, ribeirinha superior de parte expressiva dos grandes rios transnacionais asiáticos – como o Mekong, o Indo, o Brahmaputra, o Irtysh e o Amur – e detentora de mais de metade das barragens do mundo. A recusa chinesa em participar plenamente de regimes multilaterais de

368

SIDDIQI, Ayesha. “Kashmir and the politics of water”.

172

compartilhamento de bacias hídricas tenderia a antagonizar os países vizinhos, principalmente a Índia.369 Não há – ainda – registro de conflitualidade militar desencadeada especificamente por motivos ambientais no Complexo Regional de Segurança da Ásia Meridional, mas a rivalidade em torno do gerenciamento de recursos hídricos pode mudar o quadro. Não é implausível a emergência de securitizações ambientais com a água como objeto de referência e os Governos do subcontinente como atores securitizadores. Outras regiões fornecem exemplos de intersecção entre rivalidades políticas e imperativos hidráulicos, como o rio Jordão entre israelenses e seus vizinhos árabes; o mar de Aral entre uzbeques, cazaques e os demais centro-asiáticos; e, em grau menos acirrado, o Danúbio entre húngaros e eslovacos. Tal risco de securitização é condizente com a análise de Wilson John a respeito da política da água na Ásia Meridional: Despite the looming threat of water scarcity staring at many of the countries in South Asia, there has been a persistent reticence, often deliberate, in working together to reduce the impact of the impending crisis on the people of the region. Most of the blame should squarely lie on the political and bureaucratic leadership of these countries which has treated water strictly as a sovereign issue, ignoring the fact that many of the rivers and river systems that feed billions in the region transcend political boundaries. Water is treated as a political feature with the corresponding shorthand on rights, volumes and ownership describing the narrative.370

Uma consideração contra Cassandra No capítulo que ora se encerra, investigamos sucintamente alguns obstáculos à securitização das ameaças ao meio ambiente da Ásia Meridional, geralmente associados 369 370

CHELLANEY, Brahma. “The Water Hegemon”. WILSON, John. Water Security in South Asia: Issues and Policy Recommendations, p.2.

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às dificuldades para consolidar a agenda ambiental na região, e por vezes contaminados por fortes rivalidades político-identitárias entre os Estados da região. Do ponto de vista normativo, trata-se de aparente má notícia. Mas é possível imprimir tom mais positivo a esta conclusão provisória. Para tanto, basta recordar que a securitização ambiental não é considerada desejável pela Escola de Copenhague, que recomenda, na medida do possível, a dessecuritização (no sentido de desdramatização) de todos os conflitos humanos. Já no artigo fundador do conceito de securitização, Ole Wæver expressou sua forte oposição à disseminação do discurso da segurança ambiental, e enumerou quatro motivos para tanto: A first argument against the environment as a security issue is that environmental threats are generally unintentional. This, by itself, does not make the threats any less serious371, although it does take them out of the realm of the will (…) Second, the concept of “security” tends to imply that defense from the problem is to be provided by the state and [environmental security] might even lead to the militarization of environmental problems (…) Third is the tendency for the concept of security to produce thinking in logic of us-them, which could be captured by the logic of nationalism (…) Finally, there is the more political warning that the concept of security is basically defensive in nature, a status quo concept defending that which is, even though it does not necessarily deserve to be protected. 372

Em suma, Wæver acredita que o discurso securitizador do meio-ambiente é conceitualmente

equivocado,

potencialmente

contraproducente

e

politicamente

perigoso, ao fomentar mentalidades e práticas militaristas-oposicionistas. Com ele concordamos.

371

Destaques em itálico no original. WÆVER, Ole. “Securitization and Desecuritization” in LIPSCHUTZ, Ronnie (org.). On Security, pp. 62-5. 372

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A proteção internacional do meio ambiente deveria pertencer à arena democrática, não à esfera da coerção; ao espaço do diálogo público, não à lógica das decisões extremadas; ao mundo da política, não à mentalidade da segurança.

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VI – CONCLUSÃO

Nosso tour de force pelas ameaças à segurança sul-asiática, norteado pelo instrumental teórico da Escola de Copenhague, parece confirmar as duas hipóteses de trabalho aventadas no capítulo introdutório. Em primeiro lugar, as tentativas de securitização na Ásia Meridional nem sempre são bem-sucedidas; apenas serão exitosas quando houver convergência por parte da miríade de elementos que influenciam o processo, como a legitimidade do ator securitizador, as estratégias discursivas por ele utilizadas, a influência dos atores funcionais, o contexto político doméstico e externo, as relações de poder vigentes, a existência ou não de macrossecuritização correlata e o comportamento da audiência. Acrescente-se que situações análogas provavelmente seriam encontradas no seio de qualquer outro Complexo Regional de Segurança – o que não invalida ex post facto a hipótese, mas apenas sublinha a incerteza inerente às dinâmicas securitizadoras. Em segundo lugar, foi possível verificar que as principais securitizações da Ásia Meridional envolvem, direta ou indiretamente, os setores político e societal, por mais que o setor militar possa servir de fachada. Ou seja, os modelos antitéticos de identidade nacional e de legitimidade política adotados pelos Estados da região (particularmente a díade Índia-Paquistão) são fonte permanente de tensões e de securitizações. A conflitualidade sul-asiática não pode ser explicada satisfatoriamente pela geopolítica mecanicista, ou pelos frios cálculos de equilíbrio de poder do Neorrealismo em RI. O corolário dessa segunda conclusão é a reafirmação de que a segurança internacional não pode mais ser vista em termos estritamente militares-defensivos.

176

Assim, engrossamos o coro dos autores que se manifestam, desde os anos 1980, pelo alargamento conceitual – porém não indiscriminado – da segurança. É necessário ressaltar, uma vez mais, que securitizações não são normativamente positivas, pois debilitam o debate democrático ao situar temas determinados além da esfera da política pública normal, o que enseja a possibilidade de abusos aos direitos individuais e coletivos. Há, pois, motivos para celebrar o fracasso de certas securitizações na Ásia Meridional, como a relativa à mudança climática, desde que a não-securitização não seja sinônimo de indiferença. A política, compreendida no sentido schumpeteriano (competição) e não schmittiano (antagonismo), permanece a arena mais apropriada para tratar dos assuntos humanos, em detrimento das lógicas militaristas e impositivas da segurança. Pode-se antever a continuação da presente pesquisa em novas direções. Temas centrais para as securitizações da Ásia Meridional, como o terrorismo transnacional, o narcotráfico e os fluxos de refugiados, que chegaram a ser cogitados durante a elaboração deste trabalho, não puderam ser contemplados por limitações de espaço. Também seria possível aprofundar e inovar quanto ao arcabouço teórico que balizou o presente dissertação. Como sugeriu o capítulo II, há significativo espaço para aprimoramento e adaptação dos conceitos da Escola de Copenhague. Seria possível apurar, por exemplo, o diálogo entre Complexos Regionais de Segurança e o nível subsistêmico da segurança internacional, assunto que permanece pouco desenvolvido nos trabalhos de Buzan et alii. As interações mutuamente constitutivas entre macrossecuritizações (sistêmicas) e securitizações (regionais, nacionais ou domésticas) também carecem de maior elaboração conceitual. Ademais, seria muito oportuno averiguar a evolução dos discursos e pensamentos sobre a própria natureza da segurança

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– incluindo conceitos novos, como a segurança humana, e antigos, como a segurança coletiva – na Ásia Meridional. Por fim, estudos comparativos entre as dinâmicas de segurança da Ásia Meridional e da América do Sul, tema possivelmente inédito, seriam de evidente interesse do Itamaraty.

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