Ampliando os direitos da personalidade

October 6, 2017 | Autor: M. Bodin de Moraes | Categoria: Direito Civil, Direitos Da Personalidade
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Ampliando os direitos da personalidade Maria Celina Bodin de Moraes* La vita rischia di essere sottratta all’autonomia della persona. – Stefano Rodotà

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Dos direitos da personalidade à cláusula geral de tutela da pessoa; 3. Transformações do corpo e autonomia privada; 4. Proteção ao nome, à imagem e direito à identidade pessoal; 5. Privacidade como autodeterminação; 6. Conclusão.

1. Introdução Sempre foi muito firme a opinião de que o direito de propriedade representava o verdadeiro e único elemento de unificação das diversas matérias que compõem o direito civil. Assim foi, possivelmente desde tempos imemoriais, até que, no final do séc. XIX, se percebeu a necessidade concreta de garantir proteção a uma esfera de privacidade das pessoas 1 e, a partir daí, seguiram-lhe, ao longo do séc. XX, os demais direitos da personalidade. Variadas são as razões apontadas para esta circunstância histórica, mas a primeira, embora controversa, é a mais interessante: teria sido a completa ausência, nas sociedades ocidentais pelo menos até fins do séc. XVIII, da noção de vida privada, a qual somente veio a ter origem a partir de determinada concepção de civilização. 2 Ao longo dos séculos anteriores, “todo privado era público” e só os grupos tinham o privilégio de ter direitos. 3 O Código Napoleão expressou a monumental revolução de que é fruto ao reconhecer direitos *

Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e Professora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio. 1 WARREN, Samuel D. e BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. In: Harvard Law Review, vol. IV, n. 5, 1890. Segundo Stefano Rodotà: “Già a metà dell'Ottocento uno scrittore, Robert Kerr, descriveva la società dell'Inghilterra vittoriana parlando di un ‘diritto ad essere lasciato solo’, quarant'anni prima del saggio famoso di Warren e Brandeis; e analizzava il significato della privacy, individuando la sua caratteristica essenziale nel ‘rispetto reciproco e l'intimità’”. (A vida na sociedade de vigilância. Privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, no prelo). 2 Assim BEIGNER, Bernard. Les droits de la personnalité. Paris: PUF, 1992, p. 58, com base nos relatos de Arthur Young. No mesmo sentido, ELIAS, Norbert. O processo civilizador. vol. I, passim. Manifesta outra opinião SENNETT, Richard. O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo: Cia das Letras, 1988. 3 Segundo LEITE DE CAMPOS, Diogo. Nós. Estudos sobre o direito das pessoas. Coimbra: Almedina, 2004, p. 115 e ss.: “O direito à privacidade (cada cidadão – um castelo), que está na base dos direitos da personalidade, seria o mais impensável dos direitos (p. 117).

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subjetivos aos indivíduos (agora então “sujeitos de direito”), garantindo a proteção do Estado à burguesia vitoriosa, através da plena jurisdicização das trocas (cujo instrumento é o contrato, isto é, o direito a um bem) e das titularidades (propriedade entendida como o direito sobre um bem). Duzentos anos depois, dentre as garantias oferecidas ao sujeito, reconhecese a prevalência, sobre o patrimônio, da proteção da personalidade humana, seja no que diz respeito à sua identidade e integridade, seja no que se refere à sua intimidade e vida privada. Tais bens, de fato, passaram a constituir os pontos cardeais de nosso sistema jurídico, o qual, porém, tem sido sistematicamente bombardeado e desafiado – assim como vem ocorrendo em todos os cantos do mundo – por inovações científicas e tecnológicas de grande magnitude e de consequências aparentemente imprevisíveis, incontroláveis e inevitáveis. A relevância dos chamados direitos da personalidade, no momento atual, decorre também de outros fatores sociais. De um lado, provém da explosão qualitativa e quantitativa de meios de comunicação de massa invasores, progressivamente direcionados a desconsiderar vidas particulares; de outro lado, do fato de que numerosas relações sociais, antes entendidas como parte de sistemas extrajurídicos, foram sendo crescentemente jurisdicizadas. Possivelmente, este aumento exponencial da regulamentação jurídica deveu-se, ao minguamento de instâncias sociais outrora tidas como incontestáveis e que serviam, utilmente, a mediar os conflitos, tais como a religião, a família, a política, as corporações, os usos e etc.. Outro elemento, menos evidente, configura-se no fato de que, a partir do incremento das técnicas de engenharia genética, se instalou um ambiente de luta pelo “biopoder”, 4 engendrado da uma biopolítica e do consequente desenvolvimento de uma nova disciplina, o biodireito, 5 que mal começa a despontar, e já se vê às voltas com problemas da mais alta indagação. Neste sentido, uma apriorística decisão diz respeito à proteção dos bens jurídicos em jogo: o corpo e a informação devem ser tratados como bens a serem tutelados através de direitos da personalidade ou através do direito de propriedade? Nos Estados Unidos, onde a propriedade privada sempre exerceu um papel cultural central, a construção da ‘privacy’ foi feita através da circunscrição de um 4

A elaboração partiu de FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1993 e foi recentemente retomada por AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2004. Foucault situa a ‘biopolítica’ no quadro de uma ação mais ampla que denomina de ‘biopoder’: “Sua tese fundamental supõe que, no regime da soberania, o súdito deve sua vida e sua morte à vontade do soberano: ‘é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida’, (p. 287). Nestas condições o poder é um mecanismo de retirada e de extorsão, ou seja, um poder negativo sobre a vida. Diferentemente, na época clássica, o poder deixou de basear-se predominantemente na retirada e na apropriação, para funcionar na base da incitação e da vigilância. Ele começou a produzir, intensificar e ordenar forças mais do que limitá-las ou destruí-las. Esse é o ponto no qual se pode situar a clássica passagem do poder ao biopoder tal como proposta por Foucault: “de fazer morrer e deixar viver [soberania]” o poder passa “a fazer viver e deixar morrer [biopoder/biopolítica]”. (ARÁN, Márcia e PEIXOTO JÚNIOR, Carlos Augusto. Vulnerabilidade e vida nua: bioética e biopolítica na atualidade. In: Revista de Saúde Pública, vol. 41, n. 5, São Paulo, out. 2007) 5 Para a definição do termo, v. MARTINS-COSTA, Judith. Bioética e dignidade da pessoa humana: rumo à construção de um biodireito. In: Revista Trimestral de Direito Civil, n. 3, 2000, p. 64.

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território, de uma esfera de intimidade da pessoa, do mesmo modo como se faz com um pedaço de terra, usando a lógica do tresspass, da violação-proteção de uma propriedade (espaço) particular.6 Isto também deve valer para o corpo e para as informações pessoais, ainda a serem devidamente regulados? Alan WESTIN passou a defender que o melhor meio de tutelar a privacidade é considerar a informação como propriedade da pessoa de modo que possa, se desejar, negociála no mercado. 7 No Brasil, como se sabe, a Constituição veda todo tipo de comercialização relativamente a órgãos, tecidos e substâncias humanas (art. 199, § 4º). Já quanto à informação ou sua “privacidade”, isto é, a extensão da titularidade e da possibilidade de controle efetivo sobre os próprios dados pessoais, especialmente dos chamados dados sensíveis 8 a única proteção atualmente disponível é o habeas data (art. 5º, LXXII; L. 9507/97), instrumento claramente insuficiente, destinado tão somente à retificação dos dados e não à disposição sobre os mesmos. Quanto à proteção dos direitos da personalidade, é fato que a partir da mudança de perspectiva constitucional, passando a estar o ordenamento a serviço da pessoa humana, conforme a determinação do art. 1º, III, da Constituição, consolidou-se definitivamente a prevalência das relações não patrimoniais (pessoais e familiares) face às relações patrimoniais (contratuais e proprietárias). Conseqüência desta opção constitucional foi o substancial aumento das restrições estruturais impostas à vontade individual pelo Código de 2002, através, por exemplo, das noções de abuso do direito, dos princípios da boa-fé, da confiança e da função social do contrato e da propriedade, solidificando a já existente compressão da autonomia privada patrimonial. Entretanto, no que se refere às relações extrapatrimoniais, o Código Civil, à luz de interpretação constitucionalizada, possivelmente regrediu. Com efeito, debate-se atualmente se, em virtude do mesmo princípio fundamental da proteção da dignidade humana, não derivaria, logicamente, uma expansão da autonomia privada no que se refere às escolhas da vida privada de cada pessoa humana? Ou seja, a privacidade garantida pela Constituição a uma pessoa digna, plenamente capaz, não deveria significar, pelo menos em linha de princípio, mais amplo poder de escolha sobre os seus bens mais importantes? O Código Civil de 2002, porém, em dispositivo redigido, como a seguir veremos, vinte e cinco anos antes da consagração constitucional da dignidade humana, nega de forma incisiva esta possibilidade. O art. 11 diz: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo seu exercício sofrer limitação voluntária”. Sua literalidade, inaceitável nos dias atuais, vem sendo temperada pela doutrina civilista que periodicamente tem se reunido nas Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça 6

RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância. Privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, no prelo. 7 WESTIN, Alan F. Privacy and Freedom. New York: Atheneum Publishers, 1967 8 Dados sensíveis são os dados pessoais que dizem respeito à saúde, opiniões políticas ou religiosas, hábitos sexuais etc. aptos a gerar situações de discriminação e desigualdade.

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Federal e coordenadas pelo Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr.. Assim, na I Jornada, realizada em 2002, foi aprovado o Enunciado n. 4: “O exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”. Em 2004, na III Jornada, acentuou-se a distância em relação à interpretação literal do dispositivo, com a aprovação do Enunciado n. 139: “Os direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes”.9

2. Dos direitos da personalidade à cláusula geral de tutela da pessoa O capítulo referente aos direitos da personalidade foi amplamente noticiado como uma das grandes novidades do Código Civil de 2002, motivo para louvores e prova de sua atualidade. A constatação de que se trata, neste ponto, de mera repetição de dispositivos redigidos em 1963 por Orlando Gomes,10 não é, contudo, a principal crítica a esta propaganda enganosa. Seu problema mais grave é fazer crer que o vasto movimento mundial que, ao longo do último quartel do século XX, se dedicou a orientar o Direito no sentido de uma integral e irrestrita proteção da pessoa humana em sua dignidade limita-se, para o civilista, a um rol de tímidas enunciações do legislador ordinário, reduzidas em número e presas à categoria dos direitos subjetivos. Como já foi salientado em doutrina, a tutela da personalidade, para ser eficaz, não pode ser fracionada em diversas fattispecie fechadas, como se fossem hipóteses autônomas não comunicáveis entre si. 11 Tal tutela deve ser concebida de forma unitária, dado o seu fundamento que é a unidade do valor da dignidade da pessoa. É facilmente constatável que a personalidade humana não se realiza através de um esquema fixo de situação jurídica subjetiva – o direito subjetivo –, mas sim por meio de uma complexidade de situações subjetivas, que podem se apresentar ora como poder jurídico, ora como direito potestativo ou como autoridade parental, interesse legítimo, faculdade, estado – enfim, qualquer acontecimento ou circunstância (rectius, situação) juridicamente relevante.12 se 9

O direito subjetivo, concebido para titularizar as relações patrimoniais, não adapta perfeitamente à categoria do “ser”, âmbito das relações

Os enunciados aprovados nas diversas Jornadas de Direito Civil estão reunidos na internet, disponíveis em www.jf.gov.br/portal/publicacao/download.wsp?tmp.arquivo=1296, acesso em 20.11.2007. 10 Com o objetivo de constarem de Anteprojeto de Código Civil, em seguida revisto por Comissão que incluiu, além do autor, Caio Mário da Silva Pereira e Orosimbo Nonato (Revisão de Anteprojeto, 1964). Ambos os documentos, tanto o anteprojeto como sua revisão, compõem o vol. 2 de publicação do Senado Federal intitulada Código Civil. Anteprojetos, Brasília: Senado Federal, 1989. De 1963 em diante, em relação ao capítulo dos direitos da personalidade, a única modificação significativa foi a inclusão do atual art. 21 do CCb, acrescido em 1983 ao Projeto da Câmara dos Deputados 634/75, enviado em 15.06.1984 ao Senado Federal (SF-Projeto de Lei da Câmara n. 118/1984). O Senado manteve a redação aprovada pela Câmara. 11 Para a crítica, v. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao direito civilconstitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 153 e ss. 12 Assim, PERLINGIERI, Pietro. Perfis, cit., p. 155.

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extrapatrimoniais, onde não existe dualidade entre sujeito e objeto, porque ambos representam a pessoa humana.13 Esta problemática transposição vem ocorrendo mediante a atribuição de uma série de características excepcionais aos direitos subjetivos comuns – necessariedade, vitaliciedade, extrapatrimonialidade, inalienabilidade, indisponibilidade, inexpropriabilidade, intransmissibilidade, irrenunciabilidade, impenhorabilidade, imprescritibilidade –, mas que, mesmo assim, não estão aptas a garantir uma valoração apropriada do merecimento de tutela dos interesses em jogo, especialmente por continuarem a revestir, no âmbito civilista, uma ótica de proteção essencialmente repressivo-ressarcitória.14 Limitando-se a este perfil, estão contidas no disposto no art. 12 do Código de 2002 as medidas judiciais previstas no CPC, nos arts. 287, 273 e 796, respectivamente obrigação de fazer, antecipação de tutela e medidas cautelares tais como busca e apreensão. No entanto, graças à legislação especial pós-88, é possível reconhecer, aqui e ali, a intervenção do legislador em sua tarefa de atuação promocional, e a expressa abertura ao juiz para exercer o papel de dar eficácia ao acesso à justiça, através de instrumentos diferenciados e mais eficientes. Assim, por exemplo, ocorre no Estatuto da Criança e do Adolescente, na averiguação oficiosa da paternidade, no Estatuto do Idoso, na lei Maria da Penha etc. A propósito dos direitos da personalidade, um de seus aspectos mais interessantes, e problemáticos, consiste no fato de que se evidenciam sempre novas instâncias concernentes à personalidade do sujeito, não previstas nem previsíveis pelo legislador, de modo que estes interesses precisam ser tidos como uma categoria aberta. De fato, à uma identificação taxativa dos direitos da personalidade opõe-se a consideração de que a pessoa humana – e, portanto, sua personalidade – configura-se como um valor unitário, daí decorrendo o reconhecimento pelo ordenamento jurídico de uma cláusula geral a consagrar a proteção integral da sua personalidade, isto é, a pessoa globalmente considerada. O conceito é, então, elástico, abrangendo um número ilimitado de hipóteses; e somente encontra os limites postos na tutela do interesse de outras personalidades. Nessa medida, bem fez o legislador civil português ao optar pela cláusula geral de tutela, reconhecendo que a proteção dos direitos da personalidade, para ser eficaz, deve ser a mais ampla possível. O art. 70º, 1, do Código Civil português de 1966 declara: “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”. No direito brasileiro, a previsão do inciso III do art. 1º da Constituição, ao considerar a dignidade humana como valor sobre o qual se funda a República, representa uma verdadeira cláusula geral de tutela de todos os direitos que da personalidade irradiam. Assim, em nosso ordenamento, o princípio da dignidade da pessoa humana atua como uma cláusula geral de tutela e promoção da

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PERLINGIERI, Pietro. Perfis, cit., p. 155. Como explica TEPEDINO, Gustavo: “A tutela da pessoa humana, além de superar a perspectiva setorial (direito público e direito privado), não se satisfaz com as técnicas ressarcitória e repressiva (binômio lesão-sanção), exigindo, ao reverso, instrumentos de proteção do homem” (A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 48-49). 14

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personalidade em suas mais diversas manifestações que, portanto, não pode ser limitada em sua aplicação pelo legislador ordinário.15 A concepção revela seu proveito de forma ainda mais incisiva quando se tem que enfrentar os difíceis conflitos nos quais há a colisão de interesses relativos à proteção da personalidade. Não parece possível solucionar em termos de titularidade ou não de direitos subjetivos os recorrentes conflitos envolvendo a proteção da personalidade, especialmente quando, do outro lado, é também uma expressão da dignidade de outra pessoa que está em jogo. Nos casos de colisão – como entre os direitos à informação, de um lado, e à imagem, honra ou privacidade, de outro – o melhor caminho é reconhecer nos chamados direitos da personalidade expressões da irrestrita proteção jurídica à pessoa humana e, portanto, atribuir-lhes a natureza de princípios de inspiração constitucional. Assim, tais litígios deverão ser examinados através do já amplamente aceito mecanismo da ponderação 16 com o objetivo de verificar, no caso concreto, onde se realiza mais plenamente a dignidade da pessoa humana, conforme a determinação constitucional. Como consequência, qualquer reflexão acerca dos direitos da personalidade deve ter como ponto de partida o fato de que: “Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação”.17 3. Transformações do corpo e autonomia privada A integridade psicofísica é um dos aspectos da dignidade humana mais tradicionalmente protegidos, a abranger desde a vedação à tortura e lesões corporais no âmbito penal até o direito ao fornecimento de medicamentos no âmbito administrativo. Nas relações privadas, todavia, embora sua manifestação como defesa contra lesões exteriores também seja bastante relevante, são mais controversas e merecedoras de análise as questões envolvendo os limites ou os parâmetros para a disposição sobre o próprio corpo. A questão ganhou novo fôlego em decorrência de um processo no qual o corpo foi, na expressão de Rodotà, multiplicado, desterritorializado e desmaterializado: primeiro perdeu sua unidade, que foi decomposta em órgãos, células, gametas, vindo cada uma dessas porções a ter outra utilidade que não a estabelecida pela natureza; depois perdeu sua materialidade, através da instituição 15

TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade, cit., p. 50. Alexy define os princípios como “normas que ordenam a realização de algo na maior medida possível, relativamente às possibilidades jurídicas e fáticas. Os princípios são, por conseguinte, mandados de otimização que se caracterizam por poder ser cumpridos em diversos graus”, por meio de uma ponderação, a qual corresponde à seguinte medida de proporcionalidade: “Quanto mais alto for o grau de descumprimento de um princípio, tanto maior deverá ser a importância do outro” (ALEXY, Robert. Sistema jurídico, princípios jurídicos y razón. In: Doxa, n. 5, 1988, p. 143147). 17 Este é o teor do Enunciado n. 274, aprovado na IV Jornada de Direito Civil (2006). 16

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de um “corpo eletrônico” que vem se tornando, a passos cada vez mais largos, a senha, imprescindível nas relações eletrônicas: impressões digitais, DNA, geometria da mão, da orelha, da íris, da retina, dos traços faciais, voz, assinatura, uso do teclado, e até mesmo o modo de andar marcam a individualidade de cada um, podendo, portanto, servir à sua identificação.18 Realmente, as principais perplexidades em torno do tema dizem respeito ao extraordinário desenvolvimento da biotecnologia e a suas consequências sobre a esfera psicofísica do ser humano, em especial a proteção ao material genético e reprodutivo.19 De fato, as hipóteses em que a proteção da liberdade da pessoa entra em confronto com a sua integridade psicofísica têm se avolumado. A partir dos tão debatidos casos de transfusão de sangue a pacientes testemunhas de Jeová e de alimentação forçada de sujeitos em greve de fome, novas demandas, ainda mais desconcertantes, se juntaram a estas, colocando em discussão os termos da tutela ao direito ao próprio corpo. A situação mais extrema, dentre essas hipóteses, parece ser a dos que sofrem de apotemnofilia (BIID para body integrity identity disorder), vulgarmente conhecidos como “amputados por escolha” (amputees by choice ou wannabes), pessoas que, embora não estejam fisicamente doentes, desejam, às vezes ferozmente, ter um de seus membros amputado. 20 Esta condição tornou-se visível a partir de sua divulgação na internet e hoje há diversas listas de discussão, uma delas intitulada justamente amputees-by-choice, a qual tem se preocupado em oferecer, segundo se diz, algum alívio aos portadores desta disfunção, os quais passam a se sentir menos solitários e menos excepcionais.21 O Código Civil indica, no art. 13, três critérios para regular os atos de disposição do próprio corpo: a diminuição permanente à integridade física, os bons costumes e, a autorizar o ato, a exigência médica ou finalidade terapêutica.22 18

Assim, RODOTÀ, Stefano. Transformações do corpo. In: Revista Trimestral de Direito Civil, n. 19, jul.-set. de 2004, p. 93). 19 V., por todos, os diversos artigos reunidos na obra editada por KOLB, Robert W. The Ethics of Genetic Commerce. Oxford: Blackwell Pub., 2007. 20 Ilustrativa desta rara condição é a história de Karl, um químico americano, que após estudos aprofundados de termodinâmica, foi capaz de avaliar as condições ideais para que suas pernas, mergulhadas em gelo seco por seis horas, não tivessem mais salvação: v. What Drives People to Want to Be Amputees? no site ABC News, disponível em http://abcnews.go.com/Primetime/ Health/ story?id=1806125, acesso em 20.10.2007. Atualmente, o fenômeno está sendo estudado especialmente pelo Dr. Michel B. First, um dos editores da DSM-IV e da DSM-IV-TR, que cunhou o termo BIID e dele agora começa a diferenciar hipóteses: AID – “Amputee Identity Disorder”seria apenas um dos casos de BIID. O Dr. First considera, ao menos conceitualmente, BIID/AID como uma condição análoga ao transexualismo (GID/Gender Identity Disorder). 21 ELLIOT, Carl. A new way to be mad. In: The Atlantic Monthly, dez. 2000, disponível na internet em The Atlantic.com (ora em http://www.theatlantic.com/doc/prem/200012/madness), acesso em 20.10.2007. Para tentar entender o ponto de vista do doente, v. http://www.amputeeonline.com/amputee/ wannabee.html. No Brasil, v. o pioneiro artigo de KONDER, Carlos Nelson. O consentimento no biodireito: os casos dos transexuais e dos wannabes. In: Revista Trimestral de Direito Civil, n. 15, jul.-set. de 2003, pp. 41-72. 22 Código Civil, art. 13: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”. Já na I Jornada de Direito Civil (2002) o Enunciado n. 6 explicitava: “A expressão ‘exigência médica’ contida no art. 13 refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente”.

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Independentemente do critério relativo aos bons costumes – de interpretação complexa em uma sociedade que tem por princípio o pluralismo –, o caso dos amputees caracterizaria uma diminuição permanente, mas sem seu enquadramento como exigência médica, 23 o que ocorre na situação vivenciada por pessoas transexuais. Neste último caso, no entanto, o problema não passa pela já consolidada autorização para a cirurgia de modificação do sexo, admitida em nosso ordenamento através de resolução do Conselho Federal de Medicina,24 mas pelas consequências jurídicas da cirurgia, impossibilitada a obtenção de alteração cabal no registro civil, no que se refere ao sexo que ali vem indicado. 25 Sob o argumento da proteção à veracidade do registro e da proteção à segurança jurídica, nossa jurisprudência superior se firmou no sentido de não autorizar a retificação do registro, mas tão-somente admitir a averbação, com a necessária referência à situação anterior e à causa da alteração. 26 Sobre o tema, foi sustentado que a solução que menos prejuízos traz à pessoa humana é a que concebe o sexo não como um atributo instantaneamente adquirido na concepção, segundo a visão biomédica, mas, a partir do reconhecimento da imprescindibilidade da esfera psíquica, como um aspecto que vai aos poucos se formando, em processo que ocorre até o início da vida adulta.27 Se nestes casos já se revela incompatível com a proteção integral à dignidade humana a tutela da integridade física em termos absolutos, em outros casos a falta de ponderação é ainda mais grave em virtude da desconsideração de outros interesses constitucionalmente protegidos que no caso podem se mostrar mais relevantes do que a incolumidade física. 23

Recentemente, porém, BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By Choice: Body Integrity Identity Disorder and the Ethics of Amputation. In: Journal of Applied Philosophy, vol. 22; n. 1, 2005, pp. 75-86, tendo em vista o grau normal de autonomia e racionalidade que apresentam os doentes, sustentam que, do ponto de vista ético, enquanto não houver outra possibilidade de cura, a cirurgia deve ser autorizada. 24 Inicialmente pela Resolução 1472/1997, atualmente pela Resolução 1652/2002, ambas do CFM. 25 Mas, cf. o Enunciado n. 276, aprovado na IV Jornada de Direito Civil (2006) que se refere expressamente à alteração do sexo: “O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a conseqüente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil”. 26 STJ, 3ª T., REsp. 678.933, Rel. Min. Carlos Alberto M. Direito, julg. 22.03.2007, publ. 21.05.2007 em cuja ementa se lê: “Mudança de sexo. Averbação no registro civil. 1. O recorrido quis seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar no seu registro civil a sua opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção que lhe provocou a alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que se não pode comparar com qualquer outra circunstância que não tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz do espírito. 2. Recurso especial conhecido e provido”. 27 RODOTA, Stefano. Présentation générale des problèmes liés au transsexualisme. In: Transsexualisme, médicine et droit, XXIII Coloque de Droit Européen, Pays Bas, Vrije Universiteit, 1993, p. 20.

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Assim, por exemplo, a hipótese da recusa à realização do exame de DNA em que o Supremo Tribunal Federal – por maioria de 6 a 4 – entendeu que a proteção à integridade física do suposto pai prevalecia sobre o melhor interesse da criança concretizado no seu direito à verdade real sobre sua origem genética.28 Neste caso, já se teve a ocasião de expor que “o direito à integridade física configura verdadeiro direito subjetivo da personalidade, garantido constitucionalmente, cujo exercício, no entanto, se torna abusivo se servir de escusa para eximir a comprovação, acima de qualquer dúvida, de vínculo genético, a fundamentar adequadamente as responsabilidades decorrentes da relação de paternidade. A perícia compulsória, então, se, em princípio, repugna aqueles que, com razão, veem o corpo humano como bem jurídico intangível e inviolável, parece ser providência necessária e legítima, a ser adotada pelo juiz, quando tem por objetivo impedir que o exercício contrário à finalidade de sua tutela prejudique, como ocorre no caso do reconhecimento do estado de filiação, direito de terceiro, correspondente à dignidade de pessoa em desenvolvimento, interesse este que é, a um só tempo, público e individual”.29 Ainda nesta linha, no tocante à doação de órgãos para depois da morte, o consentimento presumido foi afastado pela MP 1.718/98 que, depois de reeditada vinte e seis vezes, ganhou nova redação, fazendo prevalecer sempre a vontade dos familiares, independentemente de expressa declaração do falecido no sentido da doação (ou da não doação). Converteu-se, após mais cinco reedições, na L. 10.211/01 e é o dispositivo vigente na lei de transplantes, 30 a não ser que se interprete ter sido ele revogado pelo art. 14 do Código Civil de 2002 – “É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte” – raciocínio mais consentâneo com os princípios da liberdade pessoal e da solidariedade e com a funcionalização da família aos interesses de cada um de seus membros, todos constitucionalmente assegurados.31

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“Investigação de paternidade. Exame DNA. Condução do réu ‘debaixo de vara’. Discrepa, a mais não poder, das garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica da obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, “debaixo de vara”, para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos” (STF, Tribunal Pleno, HC 71.373-4, Rel. p/ o acórdão: Min. Marco Aurélio Mello, julg. 10.11.1994 – v.m.). 29 BODIN DE MORAES, M. C. Recusa à realização do exame de DNA na investigação da paternidade e direitos da personalidade. In: Revista Forense, n. 343, jul.-set. de 1998, p. 168. 30 Art. 4º da L. 9.434/97, com a redação dada pela L. 10.211/01: “A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte”. 31 Neste sentido o Enunciado n. 277, aprovado na IV Jornada de Direito Civil (2006): “O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portanto, a aplicação do art. 4º da Lei n. 9.434/97 ficou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador”.

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A regra do art. 15, segundo a qual “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”, tem gerado alguns mal-entendidos. 32 Antes do Código Civil, regulava o assunto o Código de Ética Médica, o qual vedava ao médico desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente a que práticas terapêuticas se submeter, “salvo em caso de iminente perigo de vida”. A expressão atual “com risco de vida”, portanto, interpretada sistematicamente, altera a regra anterior, atribuindo agora ao paciente, desde que lúcido e consciente, a completa autodeterminação. Isto vale, evidentemente, para cirurgias e tratamentos programados; em situações de emergência, em que há risco de vida do paciente, o médico procederá ao tratamento, não apenas pelo consentimento presumido implícito, mas pela ausência, neste caso, de qualquer forma de “constrangimento”. São apenas circunstanciais as duas grandes questões que a vida social propõe hoje, não apenas aos operadores do direito, no que se refere aos direitos da personalidade: “quando” (em que circunstâncias?) e “quanto” (em que medida?), à luz do princípio maior da dignidade da pessoa humana, podemos dispor, com autonomia e informação, acerca de nós mesmos? Que limites deverão ser impostos à autodeterminação? Parece relevante assinalar que, ao proceder às necessárias ponderações, se deve atentar para a armadilha de uma tutela “paternalista”. Ordenamentos de tipo paternalista só são compatíveis com sociedades infantilizadas, tidas como irresponsáveis, ignorantes e inconsequentes, às quais em regra tudo deve ser proibido, ou regulado, podendo-se fazer apenas o que é expressamente permitido – princípio este que é próprio dos sistemas fascistas e, portanto, incompatível com sistemas democráticos. 33 Ao paternalismo, contido na máxima segundo a qual “as pessoas devem ser protegidas de si próprias”, deve ser oposta a presunção que vigora nas sociedades democráticas: a liberdade de escolha acerca do próprio destino não pode ser exceção. 4. Proteção ao nome, à imagem e o direito à identidade pessoal Nome e imagem são dois aspectos fundamentais da personalidade que receberam destaque na tutela do Código, e cuja importância decorre não apenas do fato de atuarem como os sinais designativos que indicam a individualização da pessoa no meio social, mas também por constituírem manifestações intrínsecas da individualidade pessoal, dizendo respeito, portanto, ao seu interesse mais essencial. 32

Assim, por exemplo: “Já o artigo 15 dispõe acerca de tratamento médico compulsório, salvo em situações que a intervenção gere risco de vida para o paciente. Esse artigo resta de todo autoritário e completamente anacrônico, em relação às teorias da Bioética, em especial no que tange o Consentimento Informado”. (STANCIOLI, Brunello Souza. Os direitos da personalidade no novo Código Civil brasileiro. In: Videtur, n. 27, disponível em http://www.hottopos.com/videtur27/ index.htm, acesso em 27.11.2007). 33 “Os inquisidores que impunham caridosamente a salvação da alma foram substituídos por outros inquisidores que zelam pela saúde pública dos corpos, sobretudo quando sua reparação representa um custo para a previdência. A cruzada contra o cigarro, causa dos piores atentados contra a liberdade pessoal, é um exemplo deste puritanismo em nome da vida – entendida esta como duração produtiva” (SAVATER, Fernando. El valor de eligir. Barcelona: Ariel, 2003, p. 107).

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O nome, composto de prenome e sobrenome (art. 16), chega a se confundir com a própria personalidade de quem o porta e serve, em primeiro lugar, como proteção da esfera individual. 34 É o primeiro e mais imediato elemento característico da individualização de uma pessoa e ela tem, assim, a possibilidade de defendê-lo de usos que a exponham, de alguma maneira, a desprezo público, independentemente da prática de difamação (art. 17). A tutela alcança ainda o uso não autorizado, quando direcionado à propaganda comercial (art. 18), 35 bem como o pseudônimo (art. 19). Por outro lado, o nome serve também como sinal designativo da pessoa e desempenha o papel de tornar possível o cumprimento do dever de identificação social de modo que a pessoa tem, em virtude disso, o dever de usá-lo. 36 É, justamente neste âmbito, atuando como dever, que se encontram as principais problemáticas relativas ao nome. Tutelado como o sinal legal identificador da pessoa, em relação ao mundo exterior, na vida social e no comércio jurídico, se justifica o princípio de imutabilidade do prenome bem como a exigência de manutenção de sobrenome de família. No entanto, cada vez mais a jurisprudência vem flexibilizando o princípio da imutabilidade do prenome – que nunca foi absoluto 37 –, admitindo numerosas exceções casuísticas, com vistas à realização da personalidade da pessoa de cujo nome se trata. 38 Outro aspecto de relevância é a imagem, cuja proteção se tornou muito mais difícil em virtude dos processos tecnológicos que generalizaram as formas requintadas de manipulação e divulgação. Aqui é possível observar um processo de ampliação dos bens jurídicos protegidos: para além da ‘imagem-retrato’, o aspecto fisionômico, a forma plástica do sujeito, hoje se protege também a ‘imagem-atributo’, isto é o conjunto de características decorrente do comportamento do indivíduo, de modo a compor sua representação no meio social.39 As duas instâncias referidas são exemplificadas através da diferença que existe entre lesar a imagem de alguém, publicando-se sem autorização uma imagem fidedigna (a lesão aqui se daria sob o ponto de vista estático), e a publicação, sem autorização, da imagem deformada, fazendo, por exemplo, um comunista passar por fascista (e a lesão teria ocorrido sob o aspecto dinâmico). 40 34

Sobre o tema, remete-se a BODIN DE MORAES, M. C. A tutela do nome da pessoa humana. In: Revista Forense, n. 364, nov./dez. de 2002, pp. 217-228. 35 O Enunciado n. 278 da IV Jornada de Direito Civil (2006) interpreta extensivamente o dispositivo: “A publicidade que divulgar, sem autorização, qualidades inerentes a determinada pessoa, ainda que sem mencionar seu nome, mas sendo capaz de identificá- la, constitui violação a direito da personalidade.” 36 Assim, Harry WESTERMANN. Código Civil Alemão. Parte geral. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1991, p. 37. 37 Assim, por exemplo, na adoção (ECA, art. 47, § 5º); na naturalização dos estrangeiros, para aportuguesá-lo (art. 115 da L. 6.815/90); para a inclusão de apelidos notórios (LRP, art. 58, alterado pela L. 9.708/98); para a proteção de testemunhas (LRP, art. 58, parágrafo único, inserido pela L. 9.807/99). 38 V., para diversos exemplos, BODIN DE MORAES, M. C. A tutela do nome da pessoa humana, cit., pp. 224-227. 39 Sobre o tema, v. PEREIRA DE SOUZA, C. A. Contornos atuais do direito à imagem. In: Revista Forense, n. 367, mai.-jun. de 2003, pp. 45-68. 40 O exemplo é inspirado em LORENZETTI, Riccardo L. Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 485.

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Observe-se a distinção desta ampliação do direito à imagem com relação ao direito à honra: os fatos imputados, para a caracterização da lesão à identidade, não precisam ser negativos, basta que sejam incompatíveis com a representação construída pela própria pessoa em seu meio social. Neste sentido a controvérsia instaurada na jurisprudência nacional acerca da autonomia do direito à imagem frente ao direito à honra. Embora no Superior Tribunal de Justiça haja decisões que só reconhecem o dano moral quando há intuito de depreciar a vítima,41 no Supremo Tribunal Federal afirmou-se que “para a reparação do dano moral não se exige a ocorrência de ofensa à reputação do indivíduo. O que acontece é que, de regra, a publicação da fotografia de alguém, com intuito comercial ou não, causa desconforto, aborrecimento ou constrangimento, não importando o tamanho desse desconforto, desse aborrecimento ou desse constrangimento. Desde que ele exista, há o dano moral, que deve ser reparado, manda a Constituição, art. 5º, X. II”. 42 A noção de “imagem-atributo” pareceu à jurisprudência italiana que não deveria ficar contida no âmbito do direito à imagem porque representava muito mais do que a simples “imagem”. 43 Os Tribunais criaram então um direito da personalidade autônomo, a que chamaram de direito à identidade pessoal, o qual se distingue não apenas do direito à honra mas também do direito ao nome, do direito à imagem e do direito à privacidade. Enquanto o nome identifica o sujeito físico no plano da existência material e a imagem evoca os traços fisionômicos da pessoa, a identidade pessoal representa uma “fórmula sintética” para destacar a pessoa globalmente considerada, de seus elementos, características e manifestações, isto é, para expressar a concreta personalidade individual que veio se consolidando na vida social.44 Este novo direito da personalidade consubstanciou-se em um “direito de ser si mesmo” (diritto ad essere se stesso), entendido como o respeito à imagem global da pessoa participante da vida em sociedade, com a aquisição de idéias e experiências pessoais, com as convicções ideológicas, religiosas, morais e sociais que distinguem a pessoa e, ao mesmo tempo, a qualificam.45 O direito à identidade pessoal contemplaria duas instâncias: uma estática e outra dinâmica. A identidade estática compreende os direitos ao nome, à origem genética, à identificação biofísica e à imagem-retrato; a identidade dinâmica se refere à verdade biográfica, ao estilo individual e social, isto é, à imagem-atributo, 41

“Civil. Recurso Especial. Ação indenizatória. Violação do direito de imagem. Uso indevido. Prova do dano. Aquele que usa a imagem de terceiro sem autorização, com intuito de auferir lucros e depreciar a vítima, está sujeito à reparação, bastando ao autor provar tão-somente o fato gerador da violação do direito à sua imagem. O uso indevido autoriza, por si só, a reparação em danos materiais, desde que abrangido no pedido deduzido pelo autor. Se ao uso indevido da imagem soma-se o intuito de depreciar a vítima, deve a reparação abranger não apenas os danos materiais, mas também os morais.” (STJ, 3ª T., REsp. 436.070, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 4.11.2004, publ. RDR 31/428 – grifou-se). 42 STF, 2ª T., RE 215.984, Rel. Min. Carlos Velloso, julg. 04.06.2002, publ. RTJ 183-03/1096. 43 V., a respeito, PINO, Giorgio. Il diritto all’identità personale. Interpretazione costituzionale e creatività giurisprudenziale. Bologna: Il Mulino, 2003 e SESSAREGO, Carlos F. Derecho a la identidad personal. Buenos Aires: Astrea, 1992. 44 Assim, PINO, G. Il diritto all’identità personale, cit., p. 188 e ss. Dentre os autores italianos que aprofundaram o tema v. DE CUPIS, Adriano. I diritti della personalità. Milano: Giuffrè, 1982 e DOGLIOTTI, Massimo. Trattato di diritto privato (a cura di P. Rescigno). Torino: Utet, 1981.. 45 LORENZETTI, R. L. Fundamentos, cit., p.483.

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àquilo que a diferencia e singulariza em sociedade. Neste último sentido, alguns autores falam de “direito à paternidade de seus próprios atos.” 46 A propósito da identificação dinâmica, Harry WESTERMANN elabora o seguinte exemplo: Um jovem rapaz tenta aproximar-se de uma moça, particularmente atraente, muito conhecida na pequena cidade onde ambos vivem; ela, porém, o ignora solenemente. No decorrer de suas tentativas, ele a fotografou, ampliou o retrato, e o colocou em sua mesa de trabalho. Indagado por amigos sobre como chegou a obter a foto e que relações tem com a mocinha, ele sorri significativamente. Ela, evidentemente, gostaria de obrigar-lhe a destruir o retrato ou, pelo menos, a mantê-lo guardado. 47 A identidade pessoal constitui, assim, “um bem em si mesmo, independentemente da condição pessoal e social, das virtudes e dos defeitos do sujeito, de modo que a cada um é reconhecido o direito a que sua individualidade seja preservada.” 48 Há ainda um aspecto fundamental do direito à identidade pessoal: a sua “intrínseca modificabilidade, isto é sua capacidade ou potencialidade de mudança. Diferentemente do nome, da imagem ou da privacidade, a identidade pessoal pode mudar e frequentemente muda com a evolução da pessoa. Tendo em vista a redação de seu art. 20, o Código Civil, neste ponto, constitui verdadeiro obstáculo a uma tutela da imagem condizente com a proteção integral da dignidade da pessoa humana. 49 Com efeito, além de sugerir, em sua parte final, a não autonomia da proteção à imagem, uma vez que a lesão só se concretizaria com a concomitante lesão à honra, ou se destinar a fins comerciais, pecando assim pelo excesso, o dispositivo peca ainda por omissão, ao afirmar que somente a “administração da justiça” ou a “manutenção da ordem pública” podem justificar a divulgação não-autorizada da imagem, desconsiderando outros interesses merecedores de tutela que podem se revelar, no caso concreto, mais relevantes.50 Aliás, decisões vêm sendo exaradas, inspiradas por este dispositivo 46

V. LORENZETTI, R. L. Fundamentos, cit., p. 484: “Machado disse que uma pessoa faz caminho ao andar, deixando seu rastro. (...) É a forma que os demais nos olham pelo que temos feito na vida: somos um tipo especial de católicos, de profissionais, de trabalhadores; somos ecologistas, homens de paz, bons vizinhos, afiliados a um clube etc. Tudo isto nos identifica. Este aspecto é dinâmico porque é variável, e faz referência ao passado, aos fatos objetivos que a pessoa vai deixando, e pelos quais as outras pessoas a reconhecem”. 47 WESTERMANN, Harry. Código Civil Alemão, cit., p. 36. 48 Corte Costituzionale italiana, Sentenza n. 13, de 1994. 49 “Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. 50 Enunciado n. 279, da IV Jornada de Direito Civil (2006): “A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações”. V., também, BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. In: Revista Trimestral de Direito Civil, n. 16, out.-dez. 2003, pp. 59-102.

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da legislação ordinária, mas que, ao menos aparentemente, são incompatíveis com a proteção a ser atribuída à pessoa. 51 Mais consentâneo com o espírito do art. 20 parece ser a interpretação de que a liberdade de expressão deve ser exercida responsavelmente, para não ultrapassar os limites claros da inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas. De qualquer forma, o controle da legalidade da conduta dos órgãos de imprensa não pode ser confundido com a “censura”, proibida expressamente nos termos do art. 220, § 2º da Constituição. O ato do juiz se configura como controle jurídico ou legal, com vistas à proteção da pessoa humana. 5. Privacidade como autodeterminação De todos os aspectos da personalidade, certamente a privacidade é o que sofreu as transformações mais radicais. O tradicional conceito do “direito a ficar só”, elaborado por Warren e Brandeis, funda-se em uma criticável e anacrônica perspectiva do indivíduo murado, conduzindo a um isolamento protegido, a uma tutela negativa que se concretiza apenas na exclusão dos demais. 52 Nesta concepção, outrora dominante, o homem era visto como um ser hermeticamente fechado ao mundo exterior, isolado, solitário em seu interior: era o chamado homo clausus. Esta concepção, porém, foi abandonada em prol da compreensão a ela oposta, isto é, aquela segundo a qual o indivíduo existe enquanto em relação com outros (o sentido da alteridade) e com o mundo a ele externo. Hoje se sabe que o ser humano existe apenas como integrante de uma espécie que precisa de outro(s) para existir (rectius, coexistir). 53 Do ponto de vista da moderna sociologia, portanto, o indivíduo, como tal, não existe; coexiste, juntamente com os outros indivíduos. 54 E porque sua relação com os semelhantes passou a ser avaliada como constitutiva de sua existência, uma condição fundadora, não pôde ele mais 51

STJ, 4ª T., Resp. 595.600, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julg. 18.03.2004, publ. RDR 31/442, em cuja ementa se lê: “Direito civil. Direito de imagem. Topless praticado em cenário público. Não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente a sua imagem. Se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria exposição realizada. Recurso especial não conhecido”. (Grifou-se). Como se o público da pequena praia onde uma então ilustre desconhecida tomava sol devesse (ou pudesse) ser comparado ao contingente alcançado pelo jornal de maior circulação do estado que estampou, no dia seguinte, sem a sua autorização, uma fotografia de média dimensão, sob a alegação de tratar-se de “notícia”. 52 LEWICKI, Bruno. A privacidade da pessoa humana no ambiente de trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 9. 53 É a do chamado homo non clausus. O sociólogo alemão Norbert Elias foi um dos maiores defensores dessa última corrente, a qual o concebe o indivíduo como fundamentalmente em relação com um mundo que não é ele mesmo ou ela mesma, com outros objetos e em particular com outros homens.” (ELIAS, Norbert. Norbert Elias por ele mesmo (1990). Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 97 e ss.). 54 Artífices desta tese são, entre outros, Georg Simmel e Norbert Elias. Cf. L. WAIZBORT (org.). Dossiê Norbert Elias. São Paulo: Edusp, 1999, p. 104: “Para eles, indivíduo e sociedade são conceitos complementares não apenas logicamente, mas também em sua realização. A pluralidade dos indivíduos produz, através de suas relações mútuas, o que se denomina unidade do todo, isto é, a sociedade; mas aquela pluralidade não seria imaginável sem esta unidade”.

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ser estimado, como havia feito o pensamento liberal-individualista, como uma pequena “totalidade”, uma micro célula autônoma, autossuficiente e autossubsistente. Segundo Stefano Rodotà, aqui há um ponto de chegada na longa evolução do conceito de privacidade: da originária definição – the right to be let alone – ao direito de determinar as modalidades de construção da própria esfera privada bem como de manter o controle sobre as próprias informações. Visto desta maneira, configura-se o direito à privacidade como um instrumento fundamental contra a discriminação, a favor da igualdade e da liberdade. 55 De fato, nas sociedades de informação, como são as sociedades em que vivemos, pode-se dizer que “nós somos as nossas informações”, pois elas nos definem, nos classificam, nos etiquetam; portanto, a privacidade hoje se manifesta essencialmente em ter como controlar a circulação das informações e saber quem as usa significa adquirir, concretamente, um poder sobre si mesmo. 56 Trata-se da concepção, qualitativamente diferente, da privacidade como “direito à autodeterminação informativa”, o qual concede a cada um de nós um real poder sobre nossas próprias informações, nossos próprios dados. No contexto atual, revelam-se especialmente assustadoras as medidas tomadas na linha do falacioso slogan “menos privacidade, mais segurança”. Rodotà recorda a metáfora do homem de vidro, de matriz nazista, em que se baseia a pretensão do Estado de conhecer tudo, até os aspectos mais íntimos da vida dos cidadãos, transformando automaticamente em “suspeito” aquele que quiser salvaguardar sua vida privada. Ao argumento de que “quem não tem nada a esconder, nada deve temer”, o autor não se cansa de admoestar que o emprego das tecnologias da informação coloca justamente o cidadão que nada tem a temer em uma situação de risco, de discriminação.57 O caso de Truro, em Massachusetts, nos Estados Unidos, é emblemático dos problemas ínsitos a esta concepção. Em janeiro de 2005, em razão do assassinato de Christa Worthington, ocorrido três anos antes, setecentos e noventa homens foram chamados a ceder saliva (fragmentos de DNA) de modo a permitir a comparação com uma amostra encontrada na cena do crime. O porta-voz da Polícia de Truro afirmou que o programa era voluntário mas “particular atenção” seria dada àqueles que se recusassem a cooperar. “Nós estamos tentando achar

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Sobre o tema, v. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância. Privacidade hoje, cit, no prelo. A hipótese é explicada por Danilo Doneda: “Nesta mudança, a proteção da dignidade acompanha a consolidação da própria teoria dos direitos da personalidade e, em seus mais recentes desenvolvimentos, contribui para afastar uma leitura pela qual sua utilização em nome de um individualismo exacerbado alimentou o medo de que eles se tornassem o ‘direito dos egoísmos privados’. Algo paradoxal, a proteção da privacidade na sociedade da informação, tomada na sua forma de proteção de dados pessoais, avança sobre terrenos outrora não proponíveis e induz a pensá-la como um elemento que, antes de garantir o isolamento ou a tranquilidade, proporcione ao indivíduo os meios necessários para a construção e consolidação de uma esfera privada própria” (Danilo DONEDA. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 23-24. 56 RODOTÀ, Stefano. Nessuna censura sulla privacy. In: La Repubblica, 13.04.1997. 57 RODOTÀ, Stefano. L’organizzazione del nuovo mondo. Disponível em http://magazine.enel.it/ boiler/arretrati/arretrati/boiler67/html/articoli/Focus-Rodota.asp, acesso em 20.10.2007.

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aquela pessoa que tem algo a esconder” explicou. 58 Cria-se assim o princípio antagonista ao da presunção de inocência e consolida-se a política “do cidadão transparente”: tudo o que é seu pode ser vasculhado. A estratégia americana da luta contra o terrorismo levada a cabo pelo governo Bush fez com que aquele país passasse a considerar indispensável exercer formas de controle total sobre os cidadãos, através da coleta de suas comunicações eletrônicas e de seus deslocamentos, em particular das viagens aéreas. O governo reagiu aos atentados de 11 de setembro de 2001 instituindo um projeto que denominou Total Information Awareness, posteriormente renomeado como Terrorism Information Awareness (TIA),59 não deixando margem a dúvidas acerca de seus objetivos: os Estados Unidos desejam exercer uma vigilância total sobre os dados de todos os cidadãos do mundo. O problema não é exclusivo do continente americano. Na França, o Conselho Nacional da Informática e das Liberdades (CNIL) revelou que há mais de 30 mil câmeras só em Paris. O caso francês, que causou protestos por parte do CNIL, não se compara com a situação da sociedade britânica – onde há uma câmera para cada 14 pessoas (4,2 milhões no total) –, a mais vigiada no mundo. Não obstante esta realidade, Stefano RODOTÀ não crê que a única reação possível seja a da aceitação acrítica, quase uma rendição, em direção a uma sociedade inevitavelmente transparente. 60 Muitos princípios em matéria de proteção de dados pessoais já estão consolidados na Europa. Além do princípio da dignidade humana, aplicam-se à proteção dos dados pessoais os princípios da finalidade, pertinência, proporcionalidade, simplificação, harmonização e necessidade. Uma trama tão urdida de princípios para a proteção dos dados pessoais atende à realidade de uma matéria que, por sua amplitude e por sua tendência à aplicação em todo tipo de relação humana, não pode ser confiada unicamente às formas disciplinares casuísticas. E a legislação por princípios, para que possa atingir seus propósitos, deve servir para a definição de um quadro geral, no interior do qual, a seguir, deverão ser postas e interpretadas as disposições específicas. Assim é que em Roma, na Itália, a Comissão de Proteção dos Dados Pessoais tomou uma série de decisões limitativas da ação das câmeras ao promulgar, em 2004, uma normativa geral relativa à videosorveglianza.61 Dentre as regras para a instalação desses aparelhos, consta que devem ser ativados somente quando outras medidas tenham se revelado insuficientes ou impossíveis (sistemas de alarme, outros controles físicos ou logísticos, medidas de limitação a entradas etc.). Além disso, a eventual conservação das imagens deve ser limitada no tempo, não podendo ultrapassar vinte e quatro horas, e os cidadãos devem

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New York Times, 07.01.2005. O congresso norte-americano cortou as verbas deste projeto em setembro de 2003. Sua menção, no entanto, continua relevante, visto que outros projetos de controle através do data mining permanecem em curso, patrocinados por agências governamentais do setor de inteligência e segurança. Sobre o tema, v. http://www.epic.org/privacy/profiling/tia, acesso em 10.08.2007. 60 RODOTÀ, Stefano. Il secolo del Grande Fratello. In: La Repubblica, 20.01.1999. 61 Provvedimento generale sulla videosorveglianza, datado de 29.04.2004. Disponível em http://www.garanteprivacy.it/garante/navig/jsp/index.jsp, acesso em 15.07.2007. 59

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sempre ser advertidos por escrito – com uma placa – quando uma área estiver posta sob televigilância. No Brasil, a ausência qualquer de regulamentação em defesa dos dados pessoais gera a real possibilidade de criação de um banco de dados centralizado, gigantesco, mantendo todos sob controle e vigilância; isso, aliás, é o que está em curso nos Estados Unidos, por determinação do Patriotic Act, com vistas à necessidade de prevenção contra o terrorismo. No entanto, espera-se que o respeito à dignidade humana, consagrado no art. 1º, III, de nossa Constituição, bem como a tradição civilista que nosso sistema encerra, aliados à chamada globalização através dos direitos, permita a nossa aproximação ao modelo europeu, através de uma legislação por princípios. 62 As primeiras notícias, porém, não são alvissareiras. O temor advém da iminente instauração do “Sistema de Identificação Automática de Veículos” (SINIAV) 63 prevista na Resolução n. 212 de 2006 do Conselho Nacional de Trânsito que determina que todos os automóveis brasileiros deverão, em breve termo, portar uma “placa eletrônica” que os identificará, automaticamente, em todas as vias e rodovias de circulação do país. O sistema, também denominado de “Placa Eletrônica”, vem sendo apresentado como um instrumento fundamental de apoio à fiscalização e repressão ao furto e roubo de veículos e cargas, voltado para elaborar políticas de melhoria da gestão de tráfego e de outras ações direcionadas ao aumento da segurança pública. Nenhuma palavra sobre a tutela dos dados coletados ou sobre a proteção da privacidade dos proprietários. Como adverte a doutrina mais atenta, um sistema poderoso como o este somente pode ser cogitado se levados em conta os riscos potenciais ao cidadão pelo uso abusivo ou indevido de suas informações pessoais.64 Tal sistema, portanto, deveria vir acompanhado de previsões específicas sobre a utilização e segurança dos dados pessoais coletados, sob pena de representar uma concreta ameaça à privacidade e às garantias fundamentais dos cidadãos – chegando a suscitar dúvidas quanto à sua constitucionalidade, justamente no que tange à privacidade de todos: proprietários, condutores e passageiros.65 6. Conclusão Cumpre, em conclusão à ideia de ampliação dos direitos da personalidade, ressaltar a expansão também de sua tutela: de fato, no que tange a direitos (ou, extensivamente, a situações jurídicas) extrapatrimoniais, a pessoa humana nunca esteve tão protegida. Isto se deve, em grande parte, à radical transformação da responsabilidade civil, na qual a plena reparação do dano moral consagrada com a Constituição de 62

Sobre a distinção entre os modelos, europeu e americano, v. DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 221-322. 63 Disponível em: http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/RESOLUCAO_212.rtf, acesso em 21.09.2007. 64 DONEDA, Danilo. A “placa eletrônica” e o monitoramento de automóveis na Sociedade da Vigilância. In: Revista Trimestral de Direito Civil, n.32, out-dez. de 2007, no prelo. 65 DONEDA, Danilo. A “placa eletrônica”, cit.

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1988, aliada à generalização da responsabilidade objetiva e ao alargamento do nexo de causalidade, conduziu a uma explosão das hipóteses de indenização por lesão à pessoa. Este movimento, todavia, não veio acompanhado da correlata evolução doutrinária capaz de prover rigor científico a este novo paradigma de direito dos danos e assim garantir a necessária segurança jurídica. Assim, embora as intenções jurisprudenciais tenham sido sempre as melhores, a ausência de uma dogmática, tanto conceitual quanto procedimental, e da sua momentânea (em virtude da transição ao pós-positivismo) e aparente desnecessidade, de modo a garantir a racionalidade da decisão, provavelmente impedirá que a tutela se mantenha. A transformação permanente do ordenamento nacional em direção à tutela integral do seu valor maior, constitucionalmente garantido, isto é, a dignidade das pessoas humanas, corre sério risco. Para além desta preocupação, já diversas vezes e por muitos externada, cumpre mencionar uma outra, mais filosófica do que jurídica, mas igualmente importante. A partir da constatação de que a relação com os semelhantes é constitutiva de própria existência do sujeito e, portanto, o indivíduo, como tal, não existe; ele coexiste, juntamente com os outros indivíduos, passou-se a afirmar a necessidade de superação do paradigma da subjetividade, que à concepção do homem como uma pequena “totalidade”, uma “ilha”, uma micro célula autônoma, autossuficiente e autossubsistente. 66 Nessa nova perspectiva, as sociedades contemporâneas não mais seriam compreendidas – ou construídas – tendo como ponto de referência central o “indivíduo” ou “a pessoa”, mas, em seu lugar, o “espaço comum existente entre as pessoas”, isto é, “cada um” em relação ao Outro. A noção principal, portanto, passa a ser a da “intersubjetividade”.67 Na ótica jurídica, isto é o que faz com que se possa sustentar que “a tutela dos direitos da personalidade não pode ser separada da consciência da unidade direito-dever, do senso de solidariedade e responsabilidade sobre os quais é construída qualquer sociedade moderna. Não será útil dilatar a tutela do dissenso, a qual pode comprometer a dignidade do consenso. Os direitos da personalidade não podem ser efetivados por meio do Estado; devem se transformar em patrimônio cultural de um povo, no conteúdo ético do ordenamento”.68 Em crítica direta e frontal a esta posição, afirmou-se que “supor que as liberdades humanas só são protegidas na medida em que seu exercício atender a interesses coletivos equivale, no nosso entendimento, a recair num coletivisimo transpersonalista, que não leva a sério que é o Homem ‘a medida de todas as coisas’ (...). Num sistema constitucional antropocêntrico, fundado na dignidade da pessoa humana, não parece legítimo resolver possíveis tensões entre a liberdade

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Metaforicamente, do mesmo modo que uma norma, para ser jurídica, não pode existir sozinha, porque o que a torna jurídica é, exatamente, o fato de pertencer a um ordenamento jurídico e não o contrário, como demonstrou Kelsen. Para uma explicação da obra de Hans Kelsen, especialmente deste aspecto da teoria positivista v. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. São Paulo-Brasília: UNB-Polis, 1989. 67 Assim, por exemplo, em sentidos diferenciados, manifestaram-se Hannah Arendt, Michel Foucault, Paul Ricoeur, Jürgen Habermas, Agnes Heller, entre outros. 68 PERLINGIERI, Pietro. Entrevista. In: Revista Trimestral de Direito Civil, n. 6, abr.-jun. 2001, p. 294.

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existencial da pessoa e os interesses da coletividade sempre em favor dos segundos.” 69 Evidentemente, é por todos ressaltado que se a noção não se esgota na espécie, pois cada ser humano é único, em sua completa individualidade, também ocorre que “a pessoa humana é um ser social e enraizado”70. Único e plural a um só tempo, parte da comunidade humana, mas possuidor de um destino singular, esta é a lei da pluralidade humana, referida pela própria Hannah Arendt: “Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens”.71 Todavia, embora seja a dimensão social constitutiva da própria identidade, ela se manifesta por meio do sujeito individual, através da elaboração que se desenvolve no processo de construção de sua personalidade. Neste sentido, o princípio da solidariedade – a impor deveres e direitos no contexto desta necessária interação social – constantemente se sopesa com o princípio da liberdade, voltado a garantir a prerrogativa da individualidade na construção da própria identidade. No equilíbrio dos demais – variável em cada caso – se encontra a dignidade da pessoa humana, que posto não prescinda da dimensão da interação, nela tampouco se exaure. Portanto, a solidariedade atende à garantia da interação como aspecto de constituição da identidade individual, única de cada sujeito; ao seu lado, a liberdade tutela a possibilidade de elaboração desta interação pelo próprio sujeito, efetivando as opções mais condizentes com sua identidade pessoal, formada e conformada socialmente. A propósito já se destacou que o princípio da liberdade pessoal se consubstancia, cada vez mais, numa perspectiva de privacidade, de intimidade, de exercício da vida privada. “Liberdade, significa hoje, poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, exercendo-as como melhor convier”.72 Como consequência direta da constitucionalização do direito civil, portanto, no âmbito patrimonial os institutos são tutelados em razão e nos limites da sua função social. Já no âmbito extrapatrimonial não se deve cogitar de direitos-deveres para com a sociedade porque não cabe esperar o exercício de função social com relação aos atributos existenciais-constitutivos da pessoa humana. 73 Isto é o mesmo que dizer que como o desenvolvimento da personalidade da pessoa humana não interessa ao campo do jurídico, mas apenas a si mesma, o ordenamento deverá tão-somente garantir-lhe o espaço onde desenvolver suas escolhas autônomas, salientando ainda que de toda liberdade decorre, direta e proporcionalmente, uma responsabilidade. Em síntese, a ampliação dos direitos da personalidade, no nível do Código de 2002, deve se atribuir ao art. 21, interpretando-se a “inviolabilidade da vida 69

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 215. 70 Id., ibidem. 71 ARENDT, Hannah. A condição humana. 9. ed. Rio de Janeiro-São Paulo: Forense Universitária, 1999, p. 188. Em sentido semelhante, Fernando Savater, ao mencionar a “sociedade boa”, aduz que “não há unidade de destino no universal, mas pluralidade universalizada de destinos particulares” (Ética como amor-próprio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 142). 72 BODIN DE MORAES, M.C. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 107. 73 No mesmo sentido SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. cit.,p. 215.

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privada” não como a tímida tutela do microcosmo da casa, mas como o espaço (inviolável) da liberdade de escolhas existenciais. Ou nas palavras sempre inspiradoras de Stefano Rodotà: “Do nexo cada vez mais intenso entre vida e liberdade decorre para a vida um sentido mais profundo e o direito encontra uma medida mais discreta. Coloca-se a serviço do mestiere di vivere, e assim pode ser instrumento de apreensão, lugar do homem e não do poder, instrumento humilde e disponível e não imposição insustentável”.74

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La vita e le regole, cit., p. 72.

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