Anais do Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão na Graduação do Câmpus de Campos Belos (SEPEG)

Share Embed


Descrição do Produto

Página |1

Página |2

Reitor Prof. Dr. Haroldo Reimer Vice-Reitora Profª. Me. Valcemia Gonçalves de Sousa Novaes Pró-Reitora de Graduação Prof. Me. Maria Olinda Barreto Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós Graduação Prof. Drº. Ivano Alessandro Devilla Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis Prof. Me. Marcos Antônio Cunha Torres Pró-Reitoria de Planejamento, Gestão e Finanças Prof. José Antônio Moiana Diretor do Câmpus Prof. Me. Adelino Soares Santos Machado Coordenador Pedagógico Prof. Esp. Idonizeth Alves Pereira Coord. Adjunta de Pesquisa e Iniciação Científica e Tecnológica e Coordenadora do Evento Profª. Drª. Cristiane Rosa Lopes Organizador dos Anais Prof. Dr. Adolfo José de Souza Frota Coord. Adjunto de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis Prof. Esp. Ronivaldo de Oliveira Rego Santos Presidente da Comissão de Infraestrutura e Logística (portaria DIR nº 006/14 de 27/03/2014) Míriam Fernandes da Silva Cajarana Coordenadora Administrativa Jisele Marques de Alencar Coordenadora do Curso de Letras Prof. Mariana Rodrigues dos Santos Coordenadora do Curso de Pedagogia Prof. Esp. Carmem Oliveira Souza Santos Coordenadora do Curso Tecnologia em Agronegócio Prof. Esp. Aline Rodrigues de Oliveira Secretária de Registro Acadêmico Célia Maria Modesto Presidente do Diretório Acadêmico Karoline Torres Quintanilha

Página |3

II SEMINÁRIO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO NA GRADUAÇÃO O SEPEG/2014 é uma ação acadêmica da Universidade Estadual de Goiás do Câmpus de Campos Belos e que, ao completar 15 anos de instalação, comemora uma investida na interiorização da Educação Superior brasileira. O evento incorpora-se ao projeto de instituição situado no limiar do que as populações interioranas têm almejado, como meio de aproximação de políticas de desenvolvimento de conhecimentos científicos. Esta Universidade representa um conjunto de possibilidades de formação profissional e de melhoria da qualidade da cidadania, após a introdução dessas políticas. O ano dois mil marca o momento inicial da inclusão de pessoas que, doravante, se envolveriam em processos formativos universitários, formalizadamente organizado em forma trina: ensino/pesquisa/extensão. Em boa parte dos quinze anos da IES, o desenvolvimento do ensino no Câmpus Campos Belos teve foco na formação de professores para atuarem na Educação Infantil e nos primeiros anos do Ensino Fundamental, tanto na licenciatura plena parcelada, quanto por meio da pedagogia regular. Ao mesmo tempo, essa formação docente é realizada visando atender a segunda fase do Ensino Fundamental e Médio, por meio da formação de letrados ,também em regime parcelado e regular. Não obstante a isso, as dimensões finalísticas da educação superior tende a evoluir por meio de práticas que venham a fomentar e desenvolver projetos extensivos à comunidade, mas tendo como objetivo produzir pesquisas nas áreas de conhecimento do Câmpus (Pedagogia, Letras e Tecnologia do Agronegócio). Mesmo partindo do ensino, esse deve, gradativamente, planejar as demais dimensões, que compõem os três pilares da Universidade. No ano de 2013, o Câmpus citado realizou seu primeiro seminário, e nele já se iniciaram os esforços de congregação desses pilares no intuito de discutir as potencialidades e dificuldades encontradas em seu interior, ao mesmo tempo em que expôs as iniciativas propostas pelos docentes. O I Seminário reuniu trabalhos das áreas de Pedagogia, Letras e Tecnologia do Agronegócio. Em sua segunda edição, o SEPEG avançou na direção da ampliação do leque de discussões relacionadas à formação docente para uma sociedade em mudança. O questionamento maior abordado desta feita está na confrontação do profissional com a realidade encontrada na escola pública, que padece de carências advindas de uma sociedade fragilizada, muito mais envaidecida com a imagem do que comprometida com a mensagem. O II SEPEG constitui-se num diagnóstico das condições postas ao

Página |4

desenvolvimento da educação superior em suas três dimensões. Sua avaliação se dá por meio da participação da comunidade de professores, em exercício ou em formação, ao refletir sobre o tipo de educação que fazemos frente ao aparato tecnológico que contrasta com as dificuldades enfrentadas pela escola contemporânea.

Adelino Soares Santos Machado. (Diretor da Unidade)

Página |5

SUMÁRIO

Textos completos: “Corre perigo o pescoço do leitor”. Vampiras e súcubos na literatura do sobrenatural Adolfo José de Souza Frota...................................................................................................... 8 Lassitude melancólica: um olhar sobre o signo de Saturno, da Antiguidade à Contemporaneidade Adolfo José de Souza Frota Luana Alves dos Santos.......................................................................................................... 17 Memória e esquecimento em Farenheit 451 Adolfo José de Souza Frota Walquíria Pereira Soares....................................................................................................... 24 Os professores de leitura: a realidade brasileira e o papel da universidade Adriana Demite Stephani....................................................................................................... 32 Limites entre a função pedagógica da literatura e o pedagogismo Carmem Oliveira Souza Santos...............................................................................................41 A educação das relações étnico-raciais e a formação de professores de língua inglesa: possibilidades e desafios Cristiane Rosa Lopes............................................................................................................. 50 A imagem do negro em produtos de beleza e a estética do racismo Cristiane Rosa Lopes Jonathas Vilas Boas de Sant’Ana........................................................................................... 57 A representação do negro em livros didáticos de língua inglesa Cristiane Rosa Lopes Yágo Richard Barbosa Magalhães Queiroz........................................................................... 65 Manejo sanitário em bovinos de corte Diego Rodrigues Pereira....................................................................................................... 69 Discutindo raça/racismo na sala de aula de língua inglesa: relato de uma experiência Edilson Alves de Souza........................................................................................................... 73 Análise da metodologia de ensino de inglês como língua estrangeira na rede pública de ensino do sudeste do Tocantins Edilson Alves de Souza Luciano Alves Feitosa............................................................................................................ 81 “Quem ama o feio bonito lhe parece”: o ciclo do noivo animal nas narrativas feéricas de A bela e a fera, de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont; A dama e o leão, o rei sapo e Hans, o ouriço dos irmãos Grimm; e Entre as folhas do verde o, de Marina Colasanti Edilson Alves de Souza

Página |6

Vanessa Gomes Franca Bruna do Nascimento Santos................................................................................................. 85 Imagens simbólicas em A bolsa amarela, de Lygia Bojunga e Ana Z. Aonde vai você, de Marina Colasanti Edilson Alves de Souza Vanessa Gomes Franca Edilene Santos de Jesus.......................................................................................................... 92 Camponesas, fadas, tecelãs e princesas: as personagens femininas nos contos de fadas tradicionais e colasantianos Edilson Alves de Souza Vanessa Gomes Franca Jéssica Fernanda Soares dos Santos..................................................................................... 96 Considerações sobre os ritos iniciáticos nos contos de fadas e suas contribuições para a resolução dos conflitos infantis Edilson Alves de Souza Vanessa Gomes Franca Karyna Ferreira Gonçalves................................................................................................. 100 Representação da mulher na literatura erótica escrita por mulheres: Marina Colasanti e Maya Banks Edilson Alves de Souza Vanessa Gomes Franca Luziene Taveira dos Santos.................................................................................................. 104 Perspectivas críticas em Macbeth, de William Shakespeare Everton Gomes Chagas........................................................................................................ 109 Propostas metodológicas para trabalhar educação infantil Fábio de Melo Bandeira...................................................................................................... 115 Educação para o trânsito: vivendo e aprendendo nos anos iniciais do ensino fundamental Fábio de Melo Bandeira Ludimilla Ribeiro de Almeida Patrícia Pereira Damascena Rosilene Antônio dos Santos................................................................................................ 123 O duplo em O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson Grazielle Vieira Garcia........................................................................................................ 131 Melancolia na contísica de Caio Fernando Abreu. Breve análise do conto “Sob o céu de Saigon” Luan Carlos Dias Alves de Souza........................................................................................ 139 Mal-estar na educação: inquietações filosóficas Ronivaldo de Oliveira Rego Santos..................................................................................... 146

Página |7

Literatura e catástrofe nos romances O quinze, de Rachel de Queiroz, e Os flagelados do Vento Leste, de Manuel Lopes Silvania Ferreira Nunes Mandú........................................................................................... 153 Morte, amor e tragédia em Romeu e Julieta, de William Shakespeare Simone da Silva Oliveira...................................................................................................... 160 Entrevista: A importância da valorização do professor na formação escolar José Carlos Libâneo............................................................................................................. 164

Página |8

II SEPEG – SEMINÁRIO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO NA GRADUAÇÃO TEXTOS COMPLETOS

“CORRE PERIGO O PESCOÇO DO LEITOR”. VAMPIRAS E SÚCUBOS NA LITERATURA DO SOBRENATURAL Adolfo José de Souza FROTA (UEG/Dr.) ([email protected])

Palavras-chave: Subversão, estranho, vampiro, narrativa fantástica, status quo

Subversiva por natureza, a figura literária do vampiro costuma desafiar o status quo (o período de aparente harmonia e ordem, que precede a chegada do vampiro) da sociedade com práticas proibidas e reprováveis, seduzindo vítimas e apresentando comportamentos extravagantes e alternativos. Se a virada do século XX e início do XXI experimentou e ainda experimenta um revival das atividades vampíricas, com uma quantidade considerável de filmes, romances, séries, graphic novels e contos, foi no século XIX que surgiu o interesse literário pelo tema. Antes mesmo de Bram Stoker, o criador de Drácula, autores como Joseph Sheridan Le Fanu (Carmilla), John Polidori (O vampiro), Theóphile Gautier (A morte amorosa) dedicaram alguma obra a essa figura enigmática e fascinante. Dentre as várias atividades do vampiro, como andar a noite, beber sangue, ter poderes sobrenaturais, possuir vida imortal e poder hipnótico sobre suas vítimas, gostaria de destacar aquelas outras que engrossam a lista de práticas subversivas, o que lhes confere a posição de marginalizados pela sociedade e inimigos dos homens. A presença do vampiro deve ser impreterivelmente exterminada, em nome da ordem social e de sua preservação. Embora essa tenha sido a tônica de narrativas vampirescas, uma característica constante e que vem sendo observada pela crítica literária já há algum tempo, é o papel fundamental do vampiro para a discussão de temas ligados à nossa psicologia, e que, mais do que ser um monstro, ele tem várias características em comum com o ser humano, principalmente no que concerne aos conflitos internos e anseios proibidos. A primeira aproximação que este texto fará com o tema da psicologia será a partir da leitura da teoria do abjeto, de Júlia Kristeva, que publicou o livro Powers of Horror. Para a autora (1982, p. 17), o conceito de abjeto abrange, consistentemente, a manifestação daquilo

Página |9

que há de mais primitivo em nossa economia psíquica e que se origina de um recalque anterior ao surgimento do eu. É por esse motivo que o abjeto se torna aquilo que o homem deva se livrar para ser ele mesmo. Como algo fantasmático, e que assombra a psique humana, o abjeto enfatiza exatamente a contradição, visto que o conceito engloba, ao mesmo tempo, uma característica estranha ao sujeito, mas também íntima. A abjeção pode ser relacionada a um fator psicológico do sujeito, porque é uma substância tão íntima ao homem que ele tenta descartá-lo ao não aceitá-lo, como que um desejo que deva ser reprimido em sua raiz. Esse conflito interno produz o pânico. Segundo Júlia Kristeva (1982, p. 1):

É dentro da abjeção que se avoluma uma daquelas revoltas violentas e negras do ser humano, direcionada contra uma ameaça que parece emanar de um dentro e fora exorbitante, ejetado além do âmbito do possível, do tolerável, do concebível. Ele está lá, bem próximo, mas não pode ser assimilado. Ele suplica, preocupa e fascina o desejo, que, todavia, não se deixa seduzir.

O abjeto não respeita regras, posições, fronteiras. Ele é ambíguo, compósito. Tudo aquilo que chama atenção para a fragilidade da lei é abjeto. Os crimes, os assassinatos, a falsa vingança, assim como os criminosos, o estuprador, o assassino. Tanto os atos quanto os atores podem ser identificados como tal (KRISTEVA, 1982, p. 4). O abjeto é aquilo que costumamos jogar fora ou transformar em manifestações não familiares, que tememos e desejamos porque ele nos ameaça engolir e nos promete o retorno para nossas origens primitivas. Dessa forma, o abjeto é representado sob um novo molde: como uma figura criminalizada e condenada pela lei, e assim sujeita aos padrões de normalidade social. O vampiro se torna, dessa forma, um representante do abjeto pelo fato de ser a representação de algo monstruoso e recriminado pela sociedade, porém, o estranhamento é provocado porque o estranho monstruoso é, na verdade, familiar. Ele não deixa de ser a manifestação de desejos profundos e arraigados que devem ser mantidos ocultos. Assim, a narrativa vampírica tem como função fundamental sugerir que todas as consideradas “anormalidades” que procuramos nos livrar são, na verdade, parte de nós mesmos, pois somos os seus produtores. O papel do vampiro literário nos permite, através de disfarces monstruosos e fantasmais, confrontar as raízes de nossa humanidade, assim como também nos ajuda a nos definir contra essas abjeções estranhas, mesmo que nos sintamos atraídos por elas (HOGLE, 2004, p. 12-17). Uma das manifestações do abjeto apontada por Kristeva (1982) é o cadáver, o corpo humano sem vida. Ele torna um dejeto exatamente no momento em que saiu da

P á g i n a | 10

condição de ser vivo para se transformar em um decomposto orgânico. Nessa relação de vida e morte, se antes era o sujeito quem expelia os dejetos, agora é ele quem é expelido porque “o corpo, visto sem Deus [...] é o máximo da abjeção. É a morte que infecta a vida” (KRISTEVA, 1982, p. 4) e que alerta para a finitude da existência, para a viagem que todos deverão realizar. Por o vampiro ser um cadáver ambulante, ele se torna duplamente um objeto de aversão. Conforme escreve Ernest Jones (1931, p. 102-103), o morto que retorna da sepultura se torna subversivo pelo seu caráter desafiador de retornar à vida para cometer atos proibidos. Elizabeth McCarthy (2003, p. 73) observa que o mito do vampiro e da sua longevidade é uma inversão do cristianismo no sentido da continuidade da vida após a morte. A diferença está que, enquanto no cristianismo é a alma que sobrevive, com o vampiro, é o corpo que prolonga a vida. Isso se torna uma afronta à lei da natureza de vida e morte. Há uma quebra de ciclo que perturba a ordem das coisas, por isso a subversão. A primeira lei que o vampiro quebra é a da finitude existencial, ainda uma das leis invioláveis da natureza, e por ter um corpo sem alma, ser um morto-vivo, ser um cadáver ambulante e cheio de vontade e práticas subversivas, não se torna tarefa difícil associar o vampiro àquilo que é abjeto porque ele retorna do mundo dos mortos, está sem Deus e com a alma perdida, é amaldiçoado pela natureza que se rejeita a decompô-lo, é tido pela sociedade como um criminoso e fora-da-lei pelas práticas proibidas e reprováveis, um inimigo do homem que precisa ser combatido e exterminado para que o status quo seja restabelecido. O vampiro assume uma posição desafiadora em relação às leis que regem tanto a natureza quanto a sociedade, por isso ele é subversivo. A subversão é, conforme Paul Blackstock (1964, p. 56), uma tentativa de transformar e, até mesmo, atacar a ordem social estabelecida e suas estruturas de poder, autoridade e hierarquia. É uma tentativa de “destruição” das estruturas de domínio, uma forma de verter por baixo, fazer ruir o status quo. Tendo como base o conceito de abjeto e seu caráter subversivo, o objetivo deste texto é analisar o conto “A morte amorosa”, de Théophile Gautier para destacar uma leitura que aproxima o comportamento do vampiro literário com o do humano, em seus aspectos socialmente degradantes. Um outro aspecto basilar para a análise será o ataque simbólico do vampiro às convenções sociais, o que, a meu ver, manifesta uma vontade íntima do próprio homem que vive sob a égide de leis comportamentais rígidas. Como parte das figuras góticas que sempre retornam, o vampiro literário é longevo por ser uma criatura imortal e por, acima de tudo, nos permitir, através de seus mecanismos simbólicos, projetar muitas anomalias de nossas condições modernas em espaços

P á g i n a | 11

antiquados ou assombrados, ou, evidentemente, em criaturas anômalas. Segundo Jerrold Hogle (2004, p. 6),

nossas contradições podem ser confrontadas, e até retiradas de nós, e alocadas no aparentemente irreal, estranho e grotesco. [...] Tal reformulação nos ajuda a lidar com as recentes e ascendentes contradições psicológicas e culturais, e ainda nos fornece um método recorrente de moldar e obscurecer nossos medos e desejos proibidos.

Os dois sentimentos aparentemente opostos, medo e desejo, são comuns às narrativas vampíricas escolhidas para análise neste artigo. Eles problematizam um conflito ético que envolve a vítima de vampirismo com o seu “algoz”, já que ela está ciente de que a influência sobrenatural leva-a a práticas proibidas pela sociedade. O personagem Romualdo, que foi ordenado padre, acaba dividido entre as obrigações paroquiais e os prazeres ao lado de Clarimunda. A tônica da narrativa de Gautier é o embate entre esses dois comportamentos. A procura do prazer sem culpa: desejo e razão em “A morte amorosa”

Dentre as vampiras da literatura ocidental, especialmente produzida no século XIX, Clarimunda é uma das mais marcantes. No conto de Gautier, sua presença é notada pelo seminarista Romualdo no momento em que ele seria ordenado padre. A visão impactante da sedutora cortesã deixa-o sem convicção de que abraçar a vida eclesiástica seria o projeto de vida mais adequado. Entretanto, mesmo com a fé abalada, Romualdo se torna padre de uma pequena paróquia em uma cidade francesa inominada. A presença de Clarimunda se torna perigosa para a vida religiosa de Romualdo porque a cortesã representa tudo aquilo que o mundo do prazer poderia oferecer, desde noite de bebedeiras e jogos a orgias intermináveis. O mundo profano é completamente desconhecido pelo padre, já que vivera desde criança no seminário. Tudo que existe do outro lado das grossas paredes e altos muros do claustro se torna atrativo exatamente pela possibilidade de experimentação e de descoberta. A vida sem cor e sem emoções de um religioso é rapidamente abandonada pela necessidade palpitante da experiência que a clausura jamais poderia ofertá-lo, e Romualdo, sem hesitação, decide mergulhar em uma vida dupla. Se de dia, ele era o respeitado pároco e ministro de Deus, durante a noite, assim que adormecia, viajava para Veneza e passava noites de diversão com Clarimunda:

P á g i n a | 12 Durante mais de três anos, fui o joguete de uma ilusão singular e diabólica. Eu, pobre pároco do interior, levei em sonho todas as noites (Deus queira que seja um sonho!) uma vida de amaldiçoado, uma vida de mundano e de Sardanápalo. Um único olhar cheio de complacência lançado a uma mulher quase causou a perda de minha alma, mas, por fim, com ajuda de Deus e de meu santo patrono, consegui expulsar o espírito maligno que se apossara de mim. Minha existência se complicou com uma existência noturna inteiramente diferente. De dia, eu era um sacerdote do Senhor, casto, ocupado com a prece e as coisas santas; à noite, a partir do momento em que fechava os olhos, eu me tornava um jovem refinado, conhecedor de mulheres, cães e cavalos, jogava dados, bebia, blasfemava. (GAUTIER, 2010, p. 123)

A vida dupla de Romualdo, que vivia na fronteira entre sonho e vigília, indica uma natureza conflituosa. A postura do protagonista, ancorada por um discurso eclesiástico, divide os dois momentos em conteúdos distintos: enquanto que o dia e a França representam o momento de penitência (mesmo que não haja, voluntariamente, qualquer indício de que ele tente buscar a redenção durante os três anos de encontro com Clarimunda), Veneza e a noite se amalgamam na substância do prazer e dos excessos terminantemente reprováveis pelo seu eu religioso, mas que são irresistíveis. A impressão é que a história de Romualdo, contada por ele, sirva como expiação e alerta para futuras vítimas de vampirismo e que o período de sono, quando a alma goza de mais liberdade, pode ser o caminho para a perdição. Assim, para o padre, o sono não deixava de ter um significado duplo, pois era tanto um sonho de prazer quanto um pesadelo. Em sua análise do significado do sonho, Freud (1952, p. 189) explica que os sonhos, no fundo, não são nem absurdos e nem destituídos de sentido. Os sonhos são, na verdade, “realizações de desejos” reprimidos. Para o padre, as noites de orgia personificavam o seu maior pesadelo: a vida cheia de práticas impróprias à sua posição social. Por outro lado, não é possível descartar que Romualdo fora envolvido pela libertinagem (durante o sonho) por seu próprio caráter. A sua suposta influência “demoníaca” foi, na verdade, a manifestação de seu desejo profundo de experimentação do proibido. Segundo Ernest Jones (1931, p. 44), “a doença conhecida como Pesadelo é sempre uma expressão de conflito mental intenso concentrando-se sobre alguma forma de desejo sexual ‘reprimido’”. A partir dessa constatação, Jones (1931) observa uma ligação entre o Pesadelo e a imagem do vampiro pela tendência sexual ao incesto (que no caso de “A morte amorosa”, pode ser atribuído pelo tabu religioso, pois padres não devem fazer sexo). Em outras palavras, o pesadelo não deixa de ser nada além do que a expressão de um conflito mental sobre o desejo incestuoso, um tipo de ataque de ansiedade provocado pela vontade de se obter aquilo

P á g i n a | 13

que é proibido socialmente, por isso é reprimido. É por esse motivo que o monstruoso, o demoníaco, o vampiresco se torna uma figura recorrente para esse tipo de conflito. Nesse caso, adiciona o autor, o vampiro é a representação subjacente de um anseio que não é permitido em sua forma despida, sem disfarces, aberta. Assim, o sonho se torna um compromisso do desejo, por um lado, e por outro, o medo intenso pertencente à inibição (JONES, 1931, p. 78). Pensando na situação de Romualdo, fica evidente que a repressão ocorra pela sua posição social, a de representante de uma convenção que proíbe o sexo para além da reprodução. Por ser padre, a prática sexual fica terminantemente proibida. Assim, é somente no mundo onírico, onde as amarras da obrigação estão frouxas, que o padre poderá realizar-se, sexualmente. De outro modo, quando o amante de Clarimunda ia repousar, voltava a assumir a sua vida clerical e se penitenciava dos excessos noturnos (mas sem querer abandoná-los, a princípio), que começaram no instante em que ele decide optar pela vida dupla:

A datar dessa noite [do encontro com Clarimunda], a minha natureza se desdobrou de alguma forma, em mim havia dois homens, e um não conhecia o outro. Ora acreditava ser um padre que toda noite sonhava ser um cavalheiro e no instante seguinte, um cavalheiro que sonhava ser padre. Eu já não conseguia mais distinguir o sonho da véspera e não sabia onde começava a realidade e onde terminava a ilusão. O jovem elegante e libertino troçava do padre, o padre detestava a dissolução do jovem. Duas espirais emaranhadas e confundidas uma na outra sem jamais se tocarem representam muito bem esta vida bicéfala que foi a minha. (GAUTIER, 2010, p. 152-153)

Como um objeto sexual, a vampira Clarimunda se torna a contrapartida das obrigações religiosas do padre, que é assistido pelo abade Serapião, o seu mentor espiritual e uma funcional voz da razão que o prenderá, até o final da narrativa, às obrigações paroquiais. Dividido entre a razão e o prazer, e mais propenso ao mundo dos “excessos”, o jovem clérigo se espanta com a visão diabolicamente angelical da vampira, ao escrever que se tratava de

uma jovem de rara beleza e vestida com magnificência real. Foi como se conchas caíssem das pupilas de meus olhos. Tive a sensação de um cego que subitamente recupera a vista. O bispo, tão radiante há um momento, apagouse de repente, os círios empalideceram como as estrelas de manhã em seus candelabros de ouro e por toda a igreja se fez uma escuridão completa. A encantadora criatura se destacava sobre este fundo de sombra como uma revelação angelical. Parecia iluminada por si mesma; mais parecia emanar a luz do que recebê-la. (GAUTIER, 2010, p. 125)

P á g i n a | 14

A visão de Clarimunda, que assistia a sua ordenação, provocou o surgimento de um novo sentimento até então inédito para o jovem padre, que ficou em dúvida se a jovem seria “um anjo ou demônio, talvez ambos” e teria olhos cujas chamas viessem “do céu ou do inferno” (GAUTIER, 2010, p. 126). A vampira cortesã representava a possibilidade de novas experiências alheias para Romualdo. A vida reclusa de seminarista lhe privou o conhecimento dos prazeres, especialmente ligados ao pecado, já que o discurso, conforme comentado, está submetido ao julgo religioso. Clarimunda era a oportunidade da descoberta, do inédito, da sensação. Para aquele acostumado a cultivar apenas as virtudes espirituais, a presença da vampira despertava a volúpia, como se esta fosse uma necessidade irresistível e que, acima de tudo, proporcionasse um novo renascimento. Se como padre Romualdo continuaria a vida clerical, com Clarimunda ele renasceria para a vida de sensações:

Quanto mais olhava para ela, mais eu sentia abrirem-se em mim portas até então fechadas... respiros obstruídos desembocavam em todos os sentidos e me deixavam entrever perspectivas desconhecidas. A vida se apresentava para mim num aspecto completamente diferente: eu acabava de nascer para uma nova ordem de ideias. Uma angústia assustadora me atazanava o coração, cada minuto que escoava me parecia um segundo e um século. (GAUTIER, 2010, p. 127)

A presença de Clarimunda, na experiência de Romualdo, representa o “outro” sexual e que, por estar dentro do próprio personagem, subjugado pela sua posição e obrigações, se torna reprimido. Por isso, somente quando o padre está dormindo é que se manifesta a sua outra personalidade, amparado pela presença marcante da vampira. Conforme escreve Mary Hallab (2009, p. 54), referindo-se a autores como Christopher Craft e Andrew Schopp, o vampiro literário assume papéis sociais proibidos, como a própria representação do desejo sexual e medo inconsciente. É por esse motivo que a presença sobrenatural de Clarimunda está associada ao pesadelo do padre. A questão do abjeto relacionado ao vampirismo fica notória pela própria posição convencional da criatura, tendo em vista que o vampiro é um cadáver que continua a peregrinar e que não é decomposto pela terra. Aliás, a necrofilia é também um dos temas caros à literatura vampiresca, a atração sexual pelo cadáver. Antes do encontro decisivo com Clarimunda, aquele que vai conduzi-lo para a sua vida dupla, Romualdo é convocado para dar a extrema-unção ao corpo da cortesã, morta depois de uma noitada de orgia, conforme informação do abade. Quando o padre entra na câmara, ele comenta:

P á g i n a | 15

Devo confessá-lo? – esta perfeição de formas, ainda que purificada e santificada pela sombra da morte, perturbava-me mais voluptuosamente do que seria conveniente... esse repouso tanto parecia um sono, que enganaria qualquer um. Esqueci que fora até lá para um ofício fúnebre e imaginava ser um jovem esposo entrando no quarto da noiva que esconde suas formas por pudor e não quer se deixar ver. Ferido de dor, desvairado de alegria, estremecendo de temor e de prazer, inclinei-me para ela, peguei o canto do lençol e o ergui lentamente, contendo a respiração por temer despertá-la. Minhas artérias palpitavam com tal força, que eu as sentia assobiar em minhas têmporas, o suor inundava minha fronte como se eu houvesse movido uma laje de mármore. (GAUTIER, 2010, p. 142)

Romualdo beija Clarimunda, que retorna à vida para correspondê-lo, mas volta a sucumbir em seguida. O padre regressa à paróquia e tenta manter uma vida clerical até o ressurgimento da vampira para lhe oferecer uma vida em Veneza ao seu lado. Diante da vida dupla, que perdura por mais de três anos, Romualdo se divide entre repressão e desejo realizado, medo por estar pecando e sensação de completude, pela satisfação. Sob a influência de Clarimunda, ele percebe que os acontecimentos mais estranhos, seja pela presença do sobrenatural ou por suas práticas religiosamente reprováveis, acabam se tornando naturais:

Notável é que eu não sentisse o menor espanto como uma aventura tão extraordinária, e com essa facilidade de nossa visão para admitir como muito simples os acontecimentos mais estranhos, eu nada via ali que não fosse perfeitamente natural. (GAUTIER, 2004, p. 231)

O papel do vampiro é naturalizar temas tabus e o sexo não deixa de ser uma questão delicada, principalmente se for considerado que tanto “A morte amorosa” quanto Camilla foram escritas no mesmo século (XIX). As duas narrativas são transgressoras por abordarem o sexo a partir da presença obsessiva do vampiro. Segundo Michel Foucault: “Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão possui como que um ar de transgressão deliberada”. Assim, “[q]uem emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura” (1988, p. 12). E Maria Conceição Monteiro (2009, p. 79-80) afirma que o tabu é uma das formas mais extremas de restrição imposta por uma cultura para garantir a sua sobrevivência. Na literatura vampiresca, a violação do tabu é manifestada através de narrativas que valorizam a fantasia ao mostrar criaturas marginalizadas, onde o proibido é substituído por algo que preenche a lacuna libidinal.

P á g i n a | 16

A realização sexual de Romualdo só era possível com o abandono temporário dos afazeres religiosos, o que, em certo ponto, desvirtuou sua rotina de pároco por três anos. Foi somente com o extermínio de Clarimunda, que ele voltou ao equilíbrio anterior à aparição da vampira. O padre teve que exterminar a vampira para conseguir libertar-se de seu julgo, mas a presença de Clarimunda está assegurada em sua memória. REFERÊNCIAS: BLACKSTOCK, Paul. The strategy of subversion: Manipulating the policits of other nations. Chicago: Quadrangle Books, 1964. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber I. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. FREUD, Sigmund. The Interpretation of Dreams. In: HUTCHINS, Robert Maynard (Ed.). Great Books of the Western World. London: Encyclopedia Britannica, Inc., 1952. p. 135-398. v. 54. GAUTIER, Théophile. A morte amorosa. In: BYRON, STOKER E OUTROS. Contos clássicos de vampiro. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Hedra, 2010. p. 123-161. HALLAB, Mary Y. Vampires and psychology. Body, soul, and self. In: ______. Vapire god: The allure of the undead in western culture. Nova Iorque: State University of New York, 2009. p. 49-65. HOGLE, Jerrold E. Introduction. In: ______. (Ed.). The Cambridge Companion to Gothic Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 1-20. JONES, Ernest. Nightmare, witches, and devils. Nova Iorque: W. W. Norton & Company Inc., 1931. KRISTEVA, Júlia. Powers of horror. An essay on abjection. Tradução de Leon S. Roudiez. Nova Iorque: Columbia University Press, 1982. MCCARTHY, Elizabeth. Death to vampires! The vampire body and the meaning of mutilation. In: KUNGL, Carla T. (Ed.). Vampires. Myths and Metaphors of Enduring Evil. Oxford: Interdisciplinary Press, 2003. p. 73-77. MONTEIRO, Maria Conceição. Fragmented identities in circles of fears and desires. In: ______. Leituras contemporâneas. Interseções nas literaturas de língua inglesa. Rio de Janeiro: Caetés, 2009. p. 77-86.

P á g i n a | 17

LASSITUDE MELANCÓLICA: UM OLHAR SOBRE O SIGNO DE SATURNO, DA ANTIGUIDADE À CONTEMPORANEIDADE.

Adolfo José de Souza FROTA (UEG/Dr.) ([email protected]) Luana Alves dos SANTOS (UEG) ([email protected])

Palavras-chave: Melancolia, Moacyr Scliar, bile negra, Saturno

Desde a Antiguidade, a melancolia é vista como um tema notável, caracterizada principalmente pela disposição de espírito taciturno. Na Grécia Antiga, o tema despertou a atenção de Aristóteles e Hipócrates de Cós, de modo que as reflexões dadas por eles sobre o tema ainda hoje são consideradas pertinentes e contribuíram de forma significativa para acepções modernas. Moacyr Scliar, no livro Saturno nos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil (2003, p. 56), relata que a melancolia é uma experiência humana peculiar. O sentimento deve ser diferenciado da tristeza, pois é uma reação até certo ponto normal aos embates da existência. Etimologicamente, o termo melancolia vem do grego melankholia (de melanos = negro, sombrio, triste, funesto) + chole (bílis, fel, veneno). No latim, a palavra seria melancholia. O termo refere-se ao estado de desgosto da vida e a propensão habitual ao pessimismo. Na cultura grega, segundo Moacyr Scliar (2003, p. 68-70), Hipócrates de Cós, o pai da medicina, associa a melancolia aos problemas de saúde. A melancolia e outras doenças provocadas por distúrbios mentais tais como a epilepsia, são resultados do desequilíbrio dos quatro humores presentes no corpo: o sangue, a linfa, a bile amarela e a bile negra. Partindo deste pressuposto, os antigos acreditavam que o comportamento humano era dotado de quatro estados temperamentais: o sanguíneo, o fleumático, o colérico e o melancólico. O equilíbrio dos

quatro

humores

associados

aos

temperamentos

garantiria

saúde

mental

e,

consequentemente, saúde física, ao passo que o acúmulo demasiado de um dos humores provocaria determinado temperamento. O temperamento melancólico corresponde à bile negra, popularmente conhecida como “fel”, que se acumularia no baço, daí o nome em inglês spleen, que, no Romantismo (século XIX), foi largamente utilizado para indicar o estado constante de melancolia, nas artes.

P á g i n a | 18

Considerando a concepção dos humores como rudimentos importantes na melancolia, percebe-se que são correspondentes aos tipos físicos e as disposições emocionais descritas por Scliar (2003, p.72): o sanguíneo é forte, musculoso, gosta de companhia, de comida, de bebida. É característica do melancólico ser magro, pálido, taciturno, lento, silencioso, desconfiado, invejoso, ciumento e solitário. A solidão é a causa da melancolia, diante das características atribuídas a ele, provocando assim a inatividade do ser humano. Para Hipócrates há dois tipos de melancolia. Scliar cita-os: Dos temperamentos, o melancólico era o mais patológico, aquele mais obviamente associado à doença. Hipócrates diferenciava a melancolia endógena, em que, sem razão aparente, a pessoa torna-se taciturna e busca a solidão, da melancolia exógena, resultante de um trauma externo. A melancolia, sintetizou o “Pai da Medicina”, é a perda do amor pela vida, uma situação na qual a pessoa aspira à morte como se fosse uma benção. (2003, p. 70)

Na Idade Média, assim como na Antiguidade, o tema da melancolia manifestou-se por meio da ciência, desta vez, para deixar o ambiente dos intelectuais gregos e reaparecer em meio aos árabes. No continente oriental, no século IX, foram os autores árabes, principalmente Abû Mar Sar, que estabeleceu a correlação entre melancolia e astrologia. O planeta Saturno exerce fortes influências astrais sob os melancólicos (BENJAMIN, 1984, p. 171). Conforme escreve Scliar: O humor sanguíneo corresponderia Júpiter, o colérico a marte, deus da guerra, o fleumático à Vênus ou à Lua. A melancolia estaria sob o signo de Saturno, planeta distante, de lenta revolução. Como também tinha correspondência no chumbo, àqueles que nasciam sob o seu signo eram lentos, pesados. Ou seja: um astro pouco auspicioso. No corpo humano, Saturno governava o baço, sede da bile negra. A associação entre Saturno e a melancolia era inevitável. Até hoje o qualificativo de “soturno”, corruptela de Saturno é sinônimo de melancólico. (2003, p. 73-74)

Sob a ótica dos antigos, a melancolia estava relacionada à pessoa de comportamento sério, soturno e extremamente frio na maneira de tratar os outros. Também o perfeccionismo, conduta voltada para a intelectualidade e a vagarosidade eram característicos, pois, no melancólico, todas as ações parecem ser mais lentas, sendo elas por motivos psíquicos e/ou biológicos. Em conformidade com Adolfo Frota (2012, p. 4), essa associação da melancolia com o planeta Saturno ocorreu por causa de sua posição astronômica, na época o mais distante dos conhecidos no Sistema Solar. Benjamim (1884, p. 172-173) explica a

P á g i n a | 19

correspondência entre melancolia e a dialética do planeta Saturno, que só pode ser compreendida através da concepção mitológica de Cronos (Saturno), como um deus dos extremos. Por um lado, ele é o senhor da idade do ouro, por outro, é um deus triste e destronado. De um lado, gera e devora inúmeros filhos, mas, de outro, está condenado à esterilidade. Por um lado, é um monstro capaz de ser vencido pela astúcia vulgar, já por outro, é um deus antigo, sábio e de inteligência suprema. É nesta concepção dualista e definitiva do deus Cronos, que se encontra a explicação da influência astrológica do planeta Saturno. Ainda conforme bases firmadas pelos antigos, mas, fazendo uso de conhecimentos astrológicos mais modernos, percebe-se que, em pessoas cujo mapa de nascimento corresponde ao temperamento melancólico, a bile negra é produzida em excesso. Esse humor seria o fluído saturnino produzido no baço e que, ao se dispersar pelo corpo, causaria o comportamento e as manifestações melancólicas no ser humano. É importante observar que qualquer pessoa pode apresentar eventualmente características melancólicas. No início da Idade Média, surge o termo “acedia”, que vem do grego akedia, significando indiferença. Mas, atualmente, ganhou o sentido de abatimento do corpo e do espírito, enfraquecimento da vontade, inércia, tibieza, moleza, frouxidão, melancolia profunda, e pode considerada até como preguiça. De acordo com João Cassiano (apud Scliar, 2003, p. 74), a acedia era frequente, sobretudo, em solitários. Sendo ele criado em um mosteiro cristão, o autor adquiriu experiência a respeito do tema. O mais interessante acerca da acedia é que o termo era atribuído a um espírito maligno, o qual foi nomeado de demônio do meio-dia. Este demônio, além das características já presentes no melancólico, estava associado às tentações carnais e ao pecado. No mosteiro, os monges que apresentavam a acedia, tornavam-se descontentes com a vida religiosa, a inquietude, a solidão e a falta de ânimo para o trabalho também eram traços da acedia. Para o monge afetado pela acedia, o melhor tratamento era o trabalho físico, porém, se o trabalho não fosse suficiente para a cura, o anacoreta não pertenceria mais ao grupo de monges, o mesmo seria excluído e abandonado pelos demais. A acedia, relacionada à religiosidade, era considerada um pecado extremamente grave, estando no nível dos sete pecados capitais, ao lado de comportamentos como a gula, a fornicação, a raiva, a inveja, assim afirma Cassiano (apud SCLIAR, 2003, p. 74). Além dele, Eduardo Lourenço escreve:

No seio do mundo cristão, o fenômeno da melancolia só podia ser entendido como um misterioso e incompreensível ‘abandono’ de Deus — a perda do

P á g i n a | 20 gosto da vida e a perda do gosto de Deus (acedia) confundem-se —, ou como castigo de uma falta, em suma, como um pecado. (apud SCLIAR, 2003, p. 74)

É por esse motivo que a vida deveria ser um hino de louvor, e santidade deveria ser alegria. Tristeza era comumente atribuída à influência demoníaca. A partir desse ponto de vista, percebe-se que a melancolia é um fenômeno incompreendido no meio religioso. A aquisição da melancolia, seja por meio natural ou proveniente de acontecimentos durante a vida, não era recomendável em nenhuma hipótese, porque a melancolia seria a possessão de um espírito maligno (o demônio do meio- dia) e ninguém que estivesse possuído por um demônio poderia servir a Deus com veracidade, ou seja, não poderia estar dos dois lados ao mesmo tempo. Avançando alguns séculos, surge a figura de Robert Burton (1577-1640) como um dos autores que mais contribuiu para o estudo da melancolia. Nascido em Leicestershire na Inglaterra, estudou em Christ Church College (Oxford), tornou-se vigário de Saint Thomas, depois bibliotecário da mesma instituição em que estudou. Por um período exerceu as funções de reitor em Seagrave. A célebre sua obra A anatomia da melancolia é dedicada ao seu protetor em Seagrave, Lord George Beekely. Sob o pseudônimo de Demócritus Júnior, em 1621 publicou na Inglaterra o livro que o consagraria. A obra teve grande sucesso. Cinco edições foram publicadas durante a vida do autor, e uma sexta ainda foi revista, ampliada e publicada após a sua morte. Tratava-se de uma obra que atendia os interesses da geração melancólica da época na Europa. Já no que se refere à obra, no Renascimento, a melancolia alternava entre o estado emocional, condição existencial e ainda como patologia. A melancolia era exaltada entre os intelectuais, e foi extremamente abominada entre as pessoas ditas comuns, justamente pelo fato de se tratar de uma doença associada a demência e o despossuir da glória divina (SCLIAR, 2003, p. 8). É impressionante a repercussão de tal obra, primeiramente porque o tema não era uma novidade. Autores antigos como Hipócrates e Aristóteles já haviam firmado bases sobre a melancolia. Além disso, se tratava de um texto longo. Para se ter noção, em uma edição de bolso (do New York Review of Books), são 1417 páginas de pesquisa exaustiva e citações em latim culto. Vale ressaltar que, na época, o latim já havia sido substituído por línguas vernáculas. O uso do latim culto serviu como prova de erudição e conhecimento. Mas, com erudição ou com humor, Burton foi o responsável pela reintegração da melancolia nos

P á g i n a | 21

círculos intelectuais. O termo já era conhecido, porém, ganhou novo significado com sua obra. Burton se referia a uma melancolia renascida. O retorno da peste negra à Europa veio ao encontro da obra de Burton, mesmo sendo escrita trezentos anos mais tarde. Mas, há alguma semelhança entre esses acontecimentos?, se pergunta Scliar (2003, p. 9). Certamente, a primeira ideia que se tem é de que tanto a peste negra quanto a melancolia são doenças. Entretanto, não se assemelham apenas neste ponto. Indiscutivelmente, a peste negra é uma doença, que dissemina e pode progredir rapidamente para dois quadros, o da cura ou, definitivamente, o da morte. Já a melancolia, às vezes, é doença, e às vezes não é. Além disso, a melancolia não tem progresso definido, arrastando-se ao longo do tempo. Moacyr Scliar (2003, p. 72), ainda acentua nas palavras de Robert Burton a expressão “Be not solitary, be not idle”, ou seja, “Não seja solitário, não seja inativo”. Mas, uma vez que, associando o melancólico à genialidade, através da simbologia, o autor inglês está comparando-o a uma coruja, símbolo da sabedoria, de atividades noturnas e, aparentemente, triste. No Renascimento, a melancolia influenciou o campo das artes. E uma das obras de maior destaque é a gravura Melancolia I, do pintor alemão Albrecht Dürer, representando a melancolia como metáfora. De acordo com Moacyr Scliar (2003, p. 81-86), a melancolia, nessa época, não é mais vista como uma patologia associada à entidade médica. Nesse período, foi atribuído o conceito de metáfora ao tema, configurando, assim, uma mudança de paradigma. Na gravura de Dürer, há vários elementos que configuram sua representação. A melancolia é representa como uma mulher de assas, capaz de altos voos intelectuais, como postulado por Aristóteles no Problema XXX. Mas, a melancolia não está voando: permanece em estado de imobilidade, com o rosto apoiado em uma das mãos como se estivesse segurando a cabeça pesada. Walter Benjamin (1984, p. 164) caracteriza os utensílios dispersos no chão, como objetos de ruminação, sem nenhuma serventia para vida ativa. Para Benjamin (1984, p. 171-174), o plano de fundo (sendo o mar) representa a inclinação do melancólico para longas viagens. Enquanto que a figura do cão, não é incluída por acaso na gravura de Dürer. Na tradição antiga, o baço é responsável pelo organismo do cão, o mesmo baço que, segundo Hipócrates, causava a melancolia. Com a degeneração do baço, o cão perdia sua alegria e sucumbia a raiva. Dessa forma, o cão simbolizava o aspecto sombrio da complexidade melancólica. Aliás, a melancolia é simbolizada pelo fato de o animal aparecer dormindo.

P á g i n a | 22

Acerca dos sonhos, Walter Benjamin (1984, p. 175) afirma que os maus sonhos são provenientes do baço. Porém, os sonhos proféticos são também privilégio do melancólico, uma vez que podem ser compreendidos a partir da perspectiva da “geomancia”, termo que vem do grego, ge = terra + manteia = adivinhação. Assim, toda a sabedoria do melancólico vem do abismo. Tendo em vista que tudo que é saturnino remete às profundezas, o cão aparece cabisbaixo, o olhar voltado para o chão caracteriza o saturnino, que perfura o solo com seus olhos. A pedra tem um significado especial. Aegidius Albertinus (apud Benjamin, 1984, p. 176), fala sobre a comparação da pedra com o ser melancólico: [A] aflição, que em geral abranda o coração, torna-o cada vez mais obstinado em seus pensamentos pervertidos, porque suas lágrimas não caem no coração, suavizando sua dureza, mas acontece com ele como com a pedra, que se molha por fora apenas quando o clima está úmido.

Ainda de acordo com Benjamin (1984, p. 177), é possível perceber que o símbolo da pedra represente apenas os aspectos mais óbvios da terra, enquanto elemento seco, frio e imóvel, referindo-se a acedia, a inércia do coração. Sob a ótica da psicologia, no século XX, Sigmund Freud, no intitulado “Luto e melancolia”, expõe pontos importantes entre as diferenças e semelhanças acerca desses dois estados. Segundo Freud (2014), as características da melancolia é um desânimo profundo e penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade e a culpa vigente. Em conformidade com Freud (2014), na melancolia há perdas consideráveis, porém, a diferença crucial, em se comparando com o luto, é que na melancolia o ente querido não precisa necessariamente estar morto. O que realmente importa é que o objeto de estima tenha sido de alguma maneira perdido, como acontece no caso de um relacionamento amoroso rompido. Acontece que, em alguns casos, o paciente tem consciência da perda que deu origem à sua melancolia, “mas apenas no sentido de que sabem quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém” (FREUD, 2014, grifos do autor). Outro autor fundamental para a compreensão do tema da melancolia é Walter Benjamim (apud SCLIAR, 2003, p. 92), que mostra como era vista a melancolia na dramaturgia barroca alemã, acentuando o caráter artístico ao tema. Segundo Benjamin, os dramaturgos barrocos alemães eram luteranos, o que acabou por influenciar rigorosa obediência ao dever na época. Tal imposição ao servir caracterizou nas pessoas comuns a moralidade e a honestidade em pequenas atitudes cotidianas, mas, Benjamim diz que, nos

P á g i n a | 23

grandes homens, isso produziu a melancolia. O ideal de morte estava sempre presente, porque o mundo havia se tornado vazio, se transformado em máscara, que a dramaturgia barroca alemã recuperou. O estado melancólico faz com que o homem passe por um estado de autoabsorção, resultando em uma queda em um abismo sem fim. No período barroco, a crença da extrema miséria humana poderia ser subentendida como a melancolia nascente “dos abismos da condição da criatura”. Em um tempo que a religiosidade prevalecia de modo imperativo (BENJAMIM, 1984, p. 169). Susan Sontag, no seu ensaio “Sob o signo de saturno” (1986, p. 86), aponta que Benjamin mais do que ter realizado estudos filosóficos a respeito da melancolia, foi ele mesmo um notório melancólico. Para ele, a solidão era o estado mais adequado para o homem. Porém, não a solidão de estar em um quarto, mas sim a solidão de estar em meio a uma multidão e sentir-se só, andando sem direção, apenas observando. A melancolia, sob a ótica de Walter Benjamim, é uma condição do homem moderno diante das profundas mudanças que ocorreram a partir do final do século XIX, como o desenvolvimento industrial, o cotidiano de uma cidade moderna, uma metrópole cosmopolita, ou seja, que reúne pessoas de diversos lugares. Daí, o reflexo da posição do homem diante da modernidade e o resultado dos embates existenciais: a melancolia. REFERÊNCIAS: FROTA, Adolfo José de Souza. Poesia da dor: Luto e melancolia em Edgar Allan Poe e Carlos Drummond de Andrade. Disponível em: . Acesso em: 08 de março. 2014. SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Tradução de Joan Rivieri. Disponível em: . Acesso em: 10 junho de 2014. SONTAG, Susan. Sob o signo de saturno. In:______. Sob o signo de saturno. Tradução de Ana Maria Capovilla & Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM Editores, 1986. p. 85-103.

P á g i n a | 24

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO EM FARENHEIT 451 Adolfo José de Souza Frota (UEG/Dr.) ([email protected]) Walquíria Pereira SOARES (UEG/G) ([email protected])

Palavras-chave: Memória, esquecimento, Farenheit 451, Ray Bradbury

Apresentação

Antigamente, na Grécia, o homem costumava relacionar os fenômenos da natureza, os fatores psíquicos e até mesmo as faculdades humanas (como a sabedoria e o dom de lembrar) às forças divinas. Dessa forma, as coisas não eram explicadas, eram vistas como a ação das mãos divinas sobre tudo o que eles faziam ou sentiam. Vênus, por exemplo, era a deusa do amor. Segundo a mitologia, ela era a responsável por despertar a paixão. A fertilidade era concedida pela deusa Ártemis, e assim seguiam as crenças diversas e suas associações aos vários deuses. A faculdade da memória era concedida pela deusa Mnemósine. A Mnemósine concedia ao aedo (o cantor dos mitos antigos) o poder de transcender para um tempo primordial, para poder resgatar um passado normalmente associado aos feitos heroicos. Como cita Mircea Eliade, no capítulo “Mito e realidade entre os gregos” (2004, p. 108), a deusa Mnemósine é a personificação da “memória”, pois ela sabe tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será. O poeta, inspirado pela musa, tinha o poder de descrever o passado de forma fiel e minuciosa, concedido pela transcendência do presente para o passado a fim de levar o conhecimento às pessoas e não deixar o passado cair no esquecimento. Para Jean-Pierre Vernant, em Mito e pensamento entre os gregos (2002, p. 136), a memória representa uma conquista para o homem do seu passado individual como a história é, para um grupo social, uma conquista do seu passado coletivo. Daí, a importância de se lembrar, em uma época na qual não havia outras formas de repassar a história, uma vez que ainda não havia a escrita. O poeta não apresentava um passado qualquer. Era um passado nobre, heroico, sobre a origem das coisas e do mundo, um passado que deveria ser conhecido e imitado. Memória e esquecimento

P á g i n a | 25

A faculdade da memória, na mitologia grega inicial, sempre esteve ligada à Mnemósine, representada como uma deusa. No entanto, com o fim da era mitológica e o declínio do período politeísta grego, Mnemósine ganhou uma nova representação, fazendo par com o seu principal opositor: o esquecimento. Essa oposição é encontrada na Grécia, depois que Mnemósine deixou de ser deusa e se transformou em fonte. Em Mito e pensamento entre os gregos, Jean-Pierre Vernant (2002, p.146) afirma que a memória, para os gregos, aparece como uma fonte, fazendo par com o seu oposto: o rio do esquecimento. Se a memória representava a imortalidade, o esquecimento, portanto, representava a morte, assim esquecimento e morte estavam intrinsecamente ligados à perda da memória. Vernant assinala um ritual de Lebadeia, de consulta aos mortos. Nesse ritual, o consultante, após passar por um processo de preparação, descia ao mundo dos mortos. Duas fontes faziam parte do ritual: o Lete (rio do esquecimento) e a Mnemósine (fonte da memória). O consultante era conduzido ao reino das duas fontes. Se o consultante bebesse da fonte do Lete, ele caía no esquecimento da vida humana, do mundo físico. Caso o consultante bebesse da fonte da Mnemósine, guardaria na sua memória todo o conhecimento de vida. Desse modo, esquecimento significava morte, enquanto a lembrança significava imortalidade. A memória e o esquecimento mudam de representação no pensamento grego. Se antes a memória representava a imortalidade, agora, ela passa a abranger o conhecimento de vidas passadas, colocando fim a um ciclo de vida. Mnemósine não tem mais a função de proporcionar o conhecimento do passado coletivo, agora ela está ligada ao passado individual. O Lete, rio do esquecimento, tem a função de apagar todas as lembranças de vidas anteriores para que a alma continue no ciclo da vida. O esquecimento de vidas passadas, para iniciar uma nova vida, é a crença da reencarnação. Então, a alma precisa desprender-se de toda a experiência vivida para ser contemplado com uma nova vida, reencarnando-se, portanto. O Lete muda de representação, relacionado agora com a reencarnação. No entanto, não continua com um significado negativo em relação a sua função. A alma que bebe da fonte do Lete continua o ciclo de reencarnações da vida, mas isso é um castigo para a alma, porque bebeu da água da fonte do Lete. A alma que bebesse da fonte da Mnemósine conseguiria libertar-se das tentações

A memória para filosofia

No campo filosófico, a capacidade de lembrar também obteve papel de destaque entre os eruditos, mudando, portanto, de representação ao longo do tempo. Platão, em

P á g i n a | 26

“Fédon” (apud JAEGER, 2001), deixa evidente, em sua teoria de memória, a crença na reencarnação e no conhecimento pré-existente ao mundo sensível. Para o filósofo, o único mundo onde realmente se adquire conhecimento é o espiritual. O conhecimento que demonstramos, no mundo sensível, ou seja, o mundo material é mera recordação. Então, a vida se divide em duas vertentes: a material e a espiritual. Nascer é reencarnar, viver outra vida através de seu contrário. A alma, desse modo, para Sócrates (a voz por trás da teoria de Platão), é imortal. Então, todo o nosso conhecimento nada mais é que o recordar aquilo que já se experienciou no mundo inteligível (o Mundo das Ideias, o mundo espiritual). Aprender significa lembrar. Em outro diálogo platônico, “O Menon”, para se tentar chegar à conceituação de Arete (o conceito grego da Verdade), Platão considera um conjunto de virtudes para se chegar a uma ideia da aquisição do conhecimento e saber (apud JAEGER, 2001, p. 698). Conforme Werner Jaeger, “Platão se preocupa em mostrar que o problema do saber brota e só tem sentido para ele a partir do conjunto da sua investigação ética” (2001, p. 699-700). Então, essa virtude, Arete, pode ser acessada pela busca do ser, e o ser nada mais é do que imitação de outro ser, que já habitou o Mundo das Ideias. Em “O Menon”, Platão (apud JAEGER, 2001, p. 708) postula que o conhecimento e o saber estão relacionados à experiência de um mundo espiritual, das ideias com o mundo físico, afirmando, portanto, a existência de dois mundos para dar sentido à aprendizagem das coisas. Conforme já comentado, conhecimento não é algo externo, que se adquire através da experiência física. Ele é concebido através de algo interno que “desabrocha”. Assim, o conhecimento é reminiscência. A recordação é a busca de conhecimento que já está oculto. Desta forma, não se aprende no mundo sensível, mas recorda-se. É preciso uma busca íntima, pois é forçoso voltar para o interior, para que o conhecimento seja adquirido. Em Confissões, Santo Agostinho (2004, p. 266) estuda a memória baseando-se em Platão, embora algumas adaptações tenham sido feitas. Segundo ele, já nascemos dotados de todo o conhecimento, que está guardado em algum lugar na nossa memória. A memória, portanto, tem papel de arquivo a ser consultado toda vez que for necessário. Assim como Platão, Santo Agostinho (2004, p. 271) infere que, quando nascemos, já temos ideias natas e algumas impressões no momento de nosso nascimento. O fato de dizer que aprendemos nada mais é que relembrar devido a um estímulo ou uma necessidade. Assim, aprender está associado a relembrar.

P á g i n a | 27

A memória coletiva e a memória individual

Em A memória coletiva, de Maurice Halbwachs (1990), é descrita a teoria da memória individual e coletiva, onde se encontra uma análise da vida quotidiana que implica na trama da vida coletiva. No prefácio a esse livro, Jean Duvignaud deixa evidente um ponto importante que resume o que a obra deseja transmitir:

O autor aí demonstra que é impossível conceber o problema de evocação e da localização das lembranças se não tomarmos para ponto de aplicação os quadros sociais reais que servem de pontos de referência nesta reconstrução que chamamos memória. (1990, p. 9-10)

Jean Duvignaud posiciona-se a respeito das lembranças individuais, que não faz sentido senão pertencente a uma comunidade afetiva. Dessa forma, um depoimento não faz sentido senão em relação a um grupo. Assim, a lembrança é um ponto de referência onde nos situamos dentro dos quadros sociais. Para Maurice Halbwachs (1990, p. 24), quando depomos, sempre recorremos aos outros para reforçar ou nos ajudar no que estamos contando. Assim, não apoiamos nossa impressão apenas em nossas lembranças, mas sim em várias outras, o depoimento de outros dão mais autenticidade aos depoimentos individuais, pois existem momentos de nossas vidas que não conseguimos lembrar ou temos dificuldade em evocar. Nossas lembranças individuais não são puramente individuais, pois um grupo a que pertencemos, nos ajuda a construir nossas lembranças. Para Halbwachs, as lembranças são coletivas e mesmo que vivenciemos episódios que apenas nós estamos envolvidos, os outros também participam dessas lembranças. Isso porque nunca estamos sós. Mesmo isolados de um meio social, nosso pensamento reflete uma reflexão social: “Mas lá não esteve só senão na aparência, posto que, mesmo nesse intervalo, seus pensamentos e seus atos se explicam pela sua natureza de ser social, e que em nenhum instante deixou de estar confinado dentro de alguma sociedade” (HALBWCHS, 1990, p. 36-37). Portanto, a lembrança torna-se um processo coletivo e está inserida num meio social: “Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem” (HALBWACHS, 1990, p. 26). Entende-se que a memória individual é parte de um todo, mas que sozinha, não consegue representar o ato de recordar, que implica em lembrança.

P á g i n a | 28

A memória coletiva, portanto, é constituída por diversas memórias individuais, sendo que o eu individual não consegue sozinho recordar. Por esse motivo é que, com apoio nos depoimentos de outros, é que se consegue formar um quadro de memória de um determinado grupo. Por isso, para Halbwachs (1990, p.26), toda memória individual pertence a um grupo e constitui parte de uma trama coletiva. A memória individual não é genuinamente individual, pois alguns grupos nos ajudam no ato de rememorar.

Memória e esquecimento em Farenheit 451 O romance Fahrenheit 4511, do autor norte-americano Ray Bradbury, é um romance futurista e de ficção cientifica. Considerado como um dos livros que ajudou a consagrar o autor, a narrativa faz uma reflexão da censura a uma das mais ricas fontes da disseminação do conhecimento: o livro. Considerado um dos maiores romances de ficção cientifica do século XX, a obra sinaliza para uma de suas associações inevitáveis: a narrativa distópica, uma alternativa oposta à utopia. Então, o livro pode ser analisado como romance distópico e, ao mesmo tempo, como ficção científica. No entanto, o livro, rico em possibilidades interpretativas, não se restringe a esses dois temas: outra análise pode associar o enredo ao tema da memória. No romance, Ray Bradbury trabalha o individualismo, o apego exagerado às inovações tecnológicas, a censura aos livros, a falta da liberdade e do livre pensamento, e como isso configura um futuro distópico, onde o conhecimento livresco é repassado na clandestinidade, por um grupo de leitores, através da memória. Guy Montag é um bombeiro, cuja profissão aparece com um significado oposto à concepção tradicional. O bombeiro, na obra, tem a função de queimar livros. Montag começa a refletir sobre a vida quando conhece Clarisse McClellan, outra personagem fundamental nessa narrativa. Clarisse é uma jovem de 17 anos que aprecia o gosto pela natureza, pelas tradições antigas, pelas relações humanas e pelo conhecimento advindo dos livros, lidos clandestinamente, recurso banido pelo regime totalitário. Essas qualidades são consideradas estranhas para as pessoas de sua época, pois caracterizavam os gestos de Clarisse como uma perda de tempo e completamente fora dos padrões da sociedade. É nesse encontro que Montag começa despertar um sentimento diferente, quando, a partir desse encontro com Clarisse, ela o questiona sobre a felicidade. Montag começa refletir sobre o seu estado de felicidade, mas percebe, através da conversa com Clarisse, que não é feliz.

1

O romance foi, originalmente, publicado nos Estados Unidos em 1953.

P á g i n a | 29

Ao entrar em casa, a primeira impressão de Montag é de estranhamento, pois ele parece não reconhecer Mildred. Depois da tentativa de suicídio em vão de Mildred (uma máquina socorre sua esposa), Montag se mostra ainda mais reflexivo com a situação na qual se encontra: – Mildred – disse ele finalmente. Existe gente demais, pensou. Somos bilhões e isso é excessivo. Ninguém conhece ninguém. Estranhos entram em nossa casa e nos violentam. Estranhos chegam e arrancam nosso coração. Estranhos chegam e nos tiram o sangue. Meu Deus, que homens eram esses? Nunca os vi em toda a minha vida! (BRADBURY, 2009, p. 32, grifos do autor).

A personagem Mildred afetada pela sociedade tecnológica não consegue lembrar-se de momentos marcantes, quase universalizados. Os recursos tecnológicos são capazes de afetar as relações pessoais mais íntimas, provocando o esquecimento nos personagens. A capacidade de lembrar foi ignorada, e, portanto, não tem importância alguma. Em Fahrenheit 451, as pessoas vivem em um regime totalitário. As pessoas são impedidas de ter acesso aos livros, pois quem lesse, provavelmente, despertaria senso de reflexão e, para um sistema de governo, causaria desordem no sistema. Em uma demanda de queima de livros, Guy Montag lê um trecho de uma obra e começa a se interessar por livros. Desde então, começa a roubá-los e levá-los para casa. A revelação de Montag à esposa Mildred aparentemente não causa grande susto mas ela o denuncia aos bombeiros e Montag decide fugir. Ele decide fugir não só para garantir a sua sobrevivência, mas também para esquecer sua própria experiência com a sociedade anterior. Montag ateia fogo em sua própria casa, no capitão dos bombeiros, e nas coisas que pudessem ligá-lo ao seu passado. Queimar, para ele, agora seria apagar a memória, destruir tudo que remetesse ao passado. O fogo que ele usava para destruir os livros, agora era usado para queimar sua vida pregressa e provocar o esquecimento. Ele é perseguido e, após escapar da perseguição, encontra-se num lugar diferente daquela realidade: “Sentiu-se como se tivesse abandonado a grande sessão espírita e todos os fantasmas murmurantes. Estava passando de uma irrealidade assustadora para uma realidade irreal, porque nova” (BRADBURY, 2009, p. 198). Montag encontra um grupo de pessoas que não fazia parte da sociedade onde ele vivia, e conservava antigos costumes, inclusive bem diferentes daquele anterior, onde Montag vivia. Guy ganha uma nova identidade. Os membros do grupo começam a falar sobre os livros lidos. Percebe-se que os integrantes do grupo tem conhecimento de livros e autores

P á g i n a | 30

importantes e compartilham entre eles o conhecimento que cada um tem à respeito de cada obra. Em uma sociedade que abolia a cultura livresca; cada integrante do grupo tinha a função de, clandestinamente, ler os livros, guardá-los em suas memórias e, posteriormente, queimálos. Assim, os livros não eram esquecidos pelos integrantes e repassavam o conhecimento aos demais, para não deixarem morrer o conhecimento. Os livros que as pessoas leem são memorizados para que dessa forma consigam transmiti-los às outras pessoas verbalmente, já que a posse do livro é um crime. A crítica de Ray Bradbury para a sociedade carregada de informação acontece quando Montag lembra-se de quando conheceu Mildred. A sociedade não prezou pela memória das coisas e das pessoas, pois estas rapidamente se esquecem do seu passado. A sociedade não valoriza o que se passou, a todo o momento informações novas são chegadas às pessoas e elas privilegiam o momento presente, sem importar, ou, pelo menos, mencionar, fatos passados.

Só em um ambiente distante e tranquilo é que as pessoas conseguem

despertar o poder de rememoração. O romance Fahrenheit 451 é uma obra elaborada para refletir sobre o caminho para onde a sociedade está evoluindo, Bradbury imaginou uma sociedade verossímil e, talvez, não muito distante. A censura aos livros já aconteceu, porém não coincidiu com a falta de intimidade cada vez mais presente na sociedade. A memória não é mais uma faculdade na qual as pessoas hoje retornam às coisas passadas, porque elas inexistem uma vez que a grande quantidade de informação não permite que as lembranças sejam guardadas. No romance era a falta da lembrança que distanciava as personagens. O alerta de Bradbury, em Fahrenheit 451, é para uma sociedade a qual valoriza cada vez mais os meios, os recursos. É uma visão antecipada e crítica de uma sociedade futura, vinculada aos excessos de informação e inovação. Essa visão mostra uma sociedade que perde o principal e mais importante meio de resgate ao passado: a memória.

REFERÊNCIAS: BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Textos escolhidos. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Abril, 1980. p. 57-74. BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Tradução de Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2009. DUVIGNAUD, Jean. “Prefácio”. In: HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Leon Schaffter. São Paulo: Vértice; Ed. Revista dos Tribunais, 1990, p. 9-17. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Tradução de Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2004.

P á g i n a | 31

GRIMAL, Pierre. Dicionário de mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille 5ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Leon Schaffter. São Paulo: Vértice; Ed. Revista dos Tribunais, 1990. JAEGER, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PLATÃO. Fédon. In: ______. Os pensadores. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p.698-717. SANTO AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos, S.J. e A. Ambrósio de Pina, S. J. São Paulo: Nova Cultural, 2004. TORRANO, Jaa. Memória e Môira. In: HESIODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.69-81. VERNANT, Jean-Pierre. Aspectos míticos da memória e do tempo. In: ______. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Tradução de Haiganuch Sarian. São Paulo: Difel; Ed. Universidade de São Paulo, 1973.

P á g i n a | 32

OS PROFESSORES DE LEITURA: A REALIDADE BRASILEIRA E O PAPEL DA UNIVERSIDADE Adriana Demite STEPHANI (UFT/UnB/Me) ([email protected]) Palavras-chave: Professores, leitura, realidade, universidade.

Todos os anos, licenciaturas de Letras e de Pedagogia de todo o país lançam no “mercado” milhares de professores da educação básica. Eles são, obviamente, pessoas diferentes, com histórias leitoras diferentes. Pesquisar e ouvir tais histórias seria um meio de, conhecendo tais professores, dispor de melhores instrumentais para, talvez, intervir positivamente na realidade e na cultura leitora desses novos profissionais. Apesar de a importância desse diagnóstico parecer ser óbvia, a realidade é que, dada a enorme bibliografia disponível em língua portuguesa sobre o tema leitura, é relativamente pequeno o número de trabalhos que se propõem a estudar o perfil (níveis, experiências, relações, hábitos) de leitura dos professores que têm ou terão a função formal de mediadores de leitura. É urgente, portanto, a emergência de estudos, de modo a que sejam contemplados todos os “órgãos” do sistema literário (alunos, professores do Ensino Fundamental, do Ensino Médio, políticas públicas, comunidades, teorias da leitura etc.). Isso se faz necessário porque precisamos conhecer todos os pontos desse círculo muitas vezes vicioso de (má)formação da leitura literária. E, para conhecer os leitores que serão formadores de leitores é que alguns estudiosos e Universidades vêm realizando pesquisas que tornem possível interferir nessa realidade, que está distante do ideal. Esses trabalhos investigam o perfil do professor já formado e em efetivo exercício e tentam responder entre outras as seguintes questões: De onde essas pessoas vêm? O que buscam? Quais seus hábitos e interesses de leitura? Um levantamento sobre pesquisas a respeito da carreira docente respondem a algumas dessas perguntas. Infelizmente, por meio de dados não muito animadores, a começar pela constatação de que o interesse pela licenciatura encontra-se entre nós em franco declínio. Isso porque os chamados “melhores cérebros” estão migrando da educação para outros ramos mais satisfatórios em termos financeiros, sociais e operacionais. Algumas pesquisas apontam o grande descontentamento de professores de diferentes períodos da carreira com a profissão docente. Muitos mudariam de emprego, se pudessem escolher.

P á g i n a | 33

Se os veteranos estão querendo sair, não é de se estranhar que boa parte dos vestibulandos não queira entrar: é notório que ser professor não está nos planos da maioria dos adolescentes e dos jovens do país. É o que revelou o MEC em 2006. Com base na Pesquisa Nacional de Amostra a Domicílio (PNAD), o Ministério da Educação confirmou a tendência já observada em pesquisas dos anos anteriores, que apontavam para uma falta crônica de professores, que só aumenta a cada ano, pois é cada vez menor a quantidade dos que se formam em cursos de licenciatura para exercer a profissão docente. Esse déficit ainda existe, e como não se pode ficar sem ofertar a escolarização, essas vagas estão sendo ocupadas por profissionais sem formação em nível superior, requisito considerado mínimo para a atuação como professor desde a LDB 9394/96 de 1996. Tal situação problemática levou o governo federal a criar o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR), implantado em regime de colaboração entre a Capes, os estados, municípios o Distrito Federal e as Instituições de Educação Superior – IES. Esse programa emergencial vem oportunizando a professores em exercício a formação superior. Segundo dados da Capes, até 2012, o PARFOR implantou 1.920 turmas e havia 54.000 professores da educação básica frequentando os cursos em turmas especiais do programa, localizada em 397 municípios do país, e nos anos de 2013 e 1014 novas turmas estão sendo implantadas. Mesmo com a crescente busca pelo ensino superior e com o aumento considerável de vagas nas Universidades públicas e particulares, não há candidatos interessados suficientes para concorrer às licenciaturas, que são, portanto, os cursos com menor concorrência. Uma pesquisa sobre a carreira do professor no Brasil, encomendada pela área de Estudos e Pesquisas da Fundação Victor Civita (FVC) e realizada em 2009 pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), detectou que apenas 2% dos alunos do final do Ensino Médio nas escolas públicas escolhem ser professor (RATIER, 2009, p. 2). Isso também foi constatado em pesquisas que realizamos nos últimos anos no nordeste de Goiás e sudeste tocantinense (STEPHANI, 2011; 2009), onde a rejeição se confirma. De acordo com as pesquisadoras Bernadete Angelina Gatti e Elba Siqueira de Sá Barreto (2009), a renda e o prestígio social são os principais fatores para essa rejeição e quanto maior a renda familiar, maior é a rejeição pelos cursos de licenciatura, que não têm muito status e ainda remuneram muito mal. Segundo as pesquisadoras, como os jovens das classes A e B preferem as profissões melhor remuneradas e prestigiadas, os poucos alunos que ainda “escolhem” a carreira de professores são, portanto, das classes C e D e na sua maioria, do sexo feminino.

P á g i n a | 34

As principais razões para estão opção são constrangedoras, pois, segundo a pesquisa citada e conforme nossos próprios levantamentos (STEPHANI, 2011; 2009), esses são os fatores que levam tais alunos a escolherem o curso de licenciatura são os seguintes: 1º.) a garantia de emprego após o término do curso, pois o baixo número de formaturas implica menor concorrência no mercado de trabalho; 2º.) a facilidade de ingresso, uma vez que a baixa procura implica um maior número de vagas e uma menos acirrada concorrência; 3º.) o custo financeiro significativamente menor que os de outros cursos, visto que cursar licenciatura costuma ser menos oneroso tanto nas universidades públicas quanto nas instituições privadas, onde os cursos de licenciatura são os mais baratos. Ainda, as licenciaturas são escolhidas em razão do fato de não serem consideradas cursos tão exigentes como os das outras profissões. Diante desse quadro, perguntamos: será que ainda podemos sonhar com mediadores de leitura realmente preparados e engajados? Como vimos, os dados mostram que os que optam pela licenciatura, em grande parte, não estão necessariamente em busca de uma carreira docente. Uma vez que o déficit de professores no Brasil é grande – no começo de 2010 passava de 700 mil para os últimos anos do Ensino Fundamental e para todo o Ensino Médio, dados que pouco se alteraram de lá para cá –, a escolha pela profissão quase sempre é guiada exclusivamente pela busca da garantia de emprego. Segundo Rodrigo Ratier e Fernanda Salla (2009, p. 6), “[a] maior parte dos candidatos vem de famílias de baixa renda e pouca escolarização, estudou em escola pública, trabalha para pagar a graduação e faz parte de um grupo com fraco repertório cultural”. Portanto, os poucos candidatos que “sobram” para cursar as licenciaturas nos cursos de Letras e Pedagogia são frequentemente marcados por profundas fragilidades advindas de sua formação básica: entre outros déficits, eles apresentam níveis de leitura abaixo do esperado. Esse é, portanto, o principal desafio dos cursos de formação de professores: candidatos escassos e, ainda assim, pouco motivados e com graves problemas de formação básica. Essa realidade acaba impondo um verdadeiro drama à escola brasileira, pois ela raramente dispõe de um profissional preparado e auto-realizado, pois aquele que lhe “restou” é quase sempre um sujeito que está ali a contragosto, sem motivação e com uma formação deficiente. As consequências disso para a qualidade da educação brasileira dificilmente poderiam ser exageradas. Eis, portanto, como o drama da leitura no Brasil se constrói: os estudantes que não tiveram boa formação na educação básica foram para a licenciatura por ser mais barata, mais acessível e menos exigente; a Universidade, sustentando a lógica de mercado, não exigiu

P á g i n a | 35

muito desse aluno, pois era o que lhe restava e concedeu-lhe um título de licenciado; a escola, que não dispunha de um poder real de seleção, empregou o professor que não aprendeu a gostar de ler nem a formar leitores. Eis agora esse professor, à frente de centenas de crianças e adolescentes, tendo o poder de interferir substancialmente na carreira leitora desses alunos. É o “velho círculo vicioso” que ainda alimentamos, como destacado por Machado (2012, p. 58):

Famílias com baixa escolaridade e com reduzido (ou inexistente) acesso a bens culturais matriculam nas escolas crianças ávidas por conhecimento e educação. Lá, elas encontram professores muitas vezes oriundos de famílias igualmente com baixa escolaridade e reduzido acesso a bens culturais, despejados num mercado de trabalho que não lhes dá oportunidades, não os remunera condignamente e ainda lhes nega recursos essenciais ao bom desempenho da profissão. A formação do magistério e a formulação de políticas públicas não têm sabido romper e corrigir esse processo contínuo, com a profundidade que ele exige.

Premido por diversos obstáculos, como o de suas próprias contingências intelectuais e financeiras, as limitações dos alunos e das instituições onde atua, o professor assume papel de grande relevância na “crise da leitura” (LAJOLO, 2007; 1988). Eis porque defendemos aqui a tese segundo a qual é na boa formação do professor que pode estar uma efetiva solução para o impasse, a crermos no que diz Filipouski (1988, p. 111), para quem “um professor que assume a sua função legítima de educador é capaz de transformar os efeitos perniciosos da miséria, má nutrição e doença em elementos propulsores de consciência e engajamento com a realidade”. Nesse sentido, Mello e Oliveira (2008, p. 1) mencionam que, “para ter uma visão mais ampla desse quadro, é necessária uma consideração sistêmica do problema, a fim de, posteriormente, empreender esforços que permitam um início de transformação”. Os autores acreditam ainda que se deve conhecer a realidade da precária formação dos professores para tentar intervir sobre ela. Segundo eles, em um país onde não há o hábito de ler, é comum os jovens chegarem aos cursos de Letras e Pedagogia sem um repertório desejável para quem objetiva trabalhar/incentivar a leitura. Isso, no entanto, resulta numa perpetuação do problema, já que há, como apontado pelas autoras, “há que considerar que o aluno que a Universidade receberá no futuro está sendo formado por aquele que ela própria diplomou, fechando um círculo, infelizmente, vicioso”. Ainda, devemos somar a isso “a falta de cultura da leitura, menos ainda a literária, principalmente no segmento social de baixa renda, que compõe a maioria dos brasileiros, e ter-se-á um quadro lamentável da conjuntura da leitura em nosso país” (MELLO; OLIVEIRA, 2008, p. 2, grifos nossos).

P á g i n a | 36

A própria Universidade se defende, buscando eximir-se da culpa, justamente lembrando a circularidade da crise da formação e apontando, num lance imediatamente abaixo ou anterior, a origem dos males da deficiente educação do formando: em outras palavras, a culpa seria da escola e do ensino básico, que não capacitam o aluno para estar na Universidade. Configura-se, assim, um circulo vicioso responsável pela crise do sistema leitor brasileiro, no centro do qual está sempre a problemática do repertório. O problema do letramento literário do licenciando, que, sob certos aspectos, complementa o fenômeno da formação deficiente, é também dele distinto, uma vez que as habilidades e as competências esperadas para o perfil de um licenciado em Letras e Pedagogia podem ser perfeitamente diferenciadas de seu arcabouço de leituras literárias. Com isso queremos dizer que, mesmo quando o ingressante nos cursos de licenciatura dispõe de uma razoável formação básica, em geral tem grande lacuna em sua familiaridade com obras da literatura nacional e/ou universal. No afã de reverter esse embaraço, muitos estudantes desses cursos tentam adquirir um repertório mínimo de leituras literárias, ao mesmo tempo em que devem fazer, por exemplo, as leituras teóricas e analíticas que pressupõem aquelas. Os professores universitários alegam2 que, como o déficit dos alunos é muito grande, estes têm necessidade de tentar minimizá-lo ao mesmo tempo em que precisam estudar e adquirir os conhecimentos da graduação. Assim, quando não é a Universidade que está abrindo mão de seu currículo e passando a adaptar-se à realidade da maioria dos alunos –, oferecendo, portanto, uma formação mínima e ineficiente – é o aluno que está tentando correr atrás do prejuízo, buscando ao mesmo tempo adquirir conhecimentos e competências, tanto da formação superior quanto da falida educação básica que cursou. Evidentemente, se assim a situação se instaura, a maioria dos estudantes não consegue sair-se bem nessa árdua tarefa. Acabam, muitas vezes, não fazendo nem uma coisa nem outra, pois devem adquirir um repertório mínimo de leituras “retroativas” ao mesmo tempo em que precisam fazer os estudos e leituras obrigatórias para aquele estágio de formação. Esse fenômeno fez surgir uma discussão sobre a necessidade da exigência de nota mínima para acesso aos cursos de licenciatura. Já se tem até um indicativo dessa possibilidade, apresentado na Lei nº. 12.796, de 4 de Abril de 2013 (que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 e que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a formação dos profissionais da Educação). De acordo com o Artigo 62, § 6o 2

Trabalhamos 7 anos no curso de Letras, sendo 5 deles a frente da coordenação de curso e essa era uma reclamação muito recorrente por parte dos docentes.

P á g i n a | 37

desse documento, “o Ministério da Educação poderá estabelecer nota mínima em exame nacional aplicado aos concluintes do ensino médio como pré-requisito para o ingresso em cursos de graduação para formação de docentes, ouvido o Conselho Nacional de Educação – CNE”3. Talvez essa iniciativa impedisse que candidatos, em virtude da pouca concorrência já mencionada nos cursos de licenciatura, ingressassem nos cursos de Letras e Pedagogia sem os requisitos mínimos para a habilitação em ensino de língua e literatura. Atualmente, com o modelo de seleção que temos em algumas instituições, baseado no quantitativo de vagas e não num ponto de corte que tenha como critério uma quantificação de formação mínima esperada, a (baixa) concorrência dita os rumos do perfil do futuro professor e, consequentemente, dita também o futuro dos seus alunos. O despropósito desse modelo é tão grande que hoje é possível e até mais comum do que se espera, que um candidato, mesmo “zerando” em questões da grande área de conhecimento a que está pleiteando, ingresse na licenciatura. Em muitos vestibulares (inclusive de IES públicas) não há ponto de corte, bastando uma pontuação “medíocre” para garantir a vaga. Até agora falamos da formação inicial do professor e seria o caso de questionarmos se o profissional em atividade se encontra numa realidade diferente da apresentada: será que os professores em pleno exercício são leitores? Em seguida, avaliaremos alguns dados que mostrarão que, apesar de ser mais positiva, a situação leitora desses professores também não é muito empolgante. Em trabalho da década de 1990, Lajolo (2007, p. 108) avaliou o pequeno e frágil domínio da literatura por parte de profissionais da educação e destacou o repertório de leitura desolador desses profissionais. Apesar da relativa antiguidade das pesquisas de que trata Lajolo, infelizmente o acerto das observações e a realidade sobre a qual elas se voltavam não mudaram muito, já que estudos recentes como a pesquisa Retratos da leitura no Brasil, realizada em 2011, apontam os mesmos resultados. Avaliando os dados levantados, Failla (2012) demonstrou que, de maneira geral, os professores possuem o mesmo comportamento da população leiga quanto aos hábitos, frequência e interesses de leitura. Os docentes, mediadores

de

leitura,

não

se

diferenciam

daqueles

que

estão

“desobrigados”

profissionalmente de conviver com os livros e textos, e mesmo quando são leitores, concentram suas preferências, segundo Failla (2012, p. 45), nos manuais de autoajuda. O que 3

Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12796.htm>. Acesso em 15 de ago. de 2013.

P á g i n a | 38

contraria a expectativa de que o professor, como “profissional das Letras”, tenha gosto, repertório e expectativas de leitura mais exigentes, principalmente por ter tido, pelo menos em tese, acesso em seu curso de formação a um maior repertório literário e crítico. Sobre esse aspecto da formação, também podemos citar uma pontuação feita por Silva (2009) ao discutir sobre o professor leitor, menciona sobre esse quadro de repertório precário desse profissional, destacando as possíveis causas: [n]o Brasil, a formação aligeirada – ou de meia tigela- dos professores, o aviltamento das suas condições de trabalho, o minguado salário e as políticas educacionais caolhas fazem com que os sujeitos do ensino exerçam a profissão sem serem leitores. Ou, então, sejam tão somente leitores pela metade, pseudoleitores, leitores nas horas vagas, leitores mancos, leitores de cabresto e outras coisas assim. Os resultados desse quadro lamentável e vergonhoso todos sabem: dependência de livros didáticos e outras receitas prontas, desatualização, redundância dos programas de ensino, homogeneização das condutas didáticas, repertório restrito, ausência de habilidades e competências de leitura, estagnação intelectual, etc. (SILVA, 2009, p. 23)

Diante destas tristes constatações apontadas por Failla (2012) e Silva (2009), melhorar o repertório do docente é crucial e urgente, e isso pode e deve ser feito na graduação (formação inicial), bem como nas capacitações para os professores já em exercício (formação continuada). Tais ações devem ser de responsabilidade das Universidades e dos governos em todas as esferas, nos seus ministérios e secretarias de educação: ou seja, devem ser concebidas como uma política pública. Só na união de esforços e no estabelecimento de parcerias – principalmente entre as Universidades que fazem pesquisas constantes e os governos que elaboram muitas dessas políticas públicas –, a problemática realidade atual poderá ser transformada. Assim, acreditamos que a posição da Universidade frente à problemática configurada deve se dar em três linhas: 1º.) na busca, cobrança e execução das políticas públicas para a formação de professores; 2º.) na articulação de estratégias e ações para a melhoria da formação inicial dos licenciados; e, 3º.) na relação com os profissionais já em efetivo exercício (ações de pesquisa e diagnóstico sobre a realidade e propostas de ações via extensão). REFERÊNCIAS FAILLA, Zoara. Leituras dos “retratos” – O comportamento leitor do brasileiro. In: ______. (Org.) Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Pró-Livro, 2012. p. 19-54

P á g i n a | 39

FILIPOUSKI, Ana Mariza Ribeiro. Atividades com textos em sala de aula. In: ZILBERMAN, Regina. (Org). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. p. 107-131. GATTI, Bernadete Angelina; BARRETTO, Elba Siqueira de Sá. Professores: aspectos de sua profissionalização, formação e valorização social. Relatório de Pesquisa, DF: UNESCO, 2009. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed. São Paulo: Ática, 2007. ______. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina. (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 107-131. MACHADO, Ana Maria. Sangue nas veias. In: FAILLA, Zoara. (Org.) Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Pró-Livro, 2012. p. 57- 62. MELLO, Cláudio; OLIVEIRA, Silvana. Metodologia do ensino, teoria da literatura e a formação do leitor competente. Disponível em: . Acesso em: 05 de jun. de 2008. OLIVEIRA, Gabriela Rodella de. A relação do professor de português com a literatura: formação, hábitos de leitura, práticas de ensino. São Paulo: USP, 2008. Dissertação de Mestrado. RATIER, Rodrigo. Uma carreira desprestigiada. In: Revista Nova Escola. 2009. Disponível em: . Acesso em: 20 de ago. de 2013. ______; SALLA, Fernanda. Nossos futuros Professores. In: Revista Nova Escola. 2009. Disponível em: . Acesso em: 20 de ago. de 2013. ROLLA, Ângela da Rocha. Professor: perfil de leitor. Tese de Doutorado. Porto Alegre (RS): PUC - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1995. SILVA, Ezequiel Theodoro da. ______. O professor leitor. In: SANTOS, Fabiano dos; MARQUES NETO, José Castilho; RÖSING, Tânia Mariza Kuchenbecker (Orgs.). Mediação de Leitura – discussões e alternativas para a formação de leitores. São Paulo: Global, 2009. p. 23-26 STEPHANI, Adriana Demite. O desafio da ampliação da cultura da leitura na Universidade: um trabalho no interior do Tocantins. 2011. Comunicação apresentada no Seminário Internacional de Políticas e Práticas de Leitura e V Encontro Internacional da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-RIO. Goiânia: UFG, 13 a 16 de setembro de 2011.

P á g i n a | 40

_______. Vício circuloso: o papel da Universidade na (má)formação do leitor de literatura no nordeste goiano. Dissertação de Mestrado. Brasília (DF): UnB, 2009.

P á g i n a | 41

LIMITES ENTRE A FUNÇÃO PEDAGÓGICA DA LITERATURA E O PEDAGOGISMO. Carmem Oliveira Souza SANTOS (UEG/Esp.) ([email protected]) Palavra-chave: Pedagogia, literatura infanto-juvenil, literatura e ensino, pedagogismo.

As manifestações literárias que originaram os gêneros que conhecemos hoje surgiram no século VIII a.C. As primeiras obras literárias da História de que se tem informação são os dois poemas atribuídos a Homero: Ilíada e Odisseia. Os dois poemas narram a Guerra de Tróia e as aventuras do herói Ulisses, respectivamente:

Quando nasceu, na antiga Grécia, a literatura não tinha esse nome. Chamava-se poesia e existia para divertir a nobreza, nos intervalos entre uma guerra e outra. Era declamada por profissionais da palavra, narradores que, nessa época, preferiam a paz à luta armada. (ZILBERMAN; SILVA, 1990, p. 12)

No seu início, a literatura possuía dois públicos: a classe burguesa tinha acesso aos clássicos enquanto os desprivilegiados liam ou ouviam as histórias de cavalaria, aventuras, contos, fábulas, lendas, mitos e folclore. Para Zilberman e Silva, nesse período da história da leitura pode-se notar que as crianças conviviam com a fala do adulto, pois não havia “infância” como nós a conhecemos hoje. A criança era uma espécie de adulto em miniatura. Não havia nenhum espaço separado do mundo adulto e a criança, a partir de sua convivência com os mais velhos, ia construindo a sua formação. Para os autores, a ideologia burguesa, que se firmou a partir de meados do século XVIII, firmou a distinção entre a concepção de literatura adulta e literatura de crianças. Surge, assim, a função pedagógica da literatura, em um contexto que visava à formação plena do indivíduo para um futuro promissor:

Primeiramente integrou o Triviun, dissolvendo-se entre Gramática, a Lógica e a Retórica: depois, quando a Renascença privilegiou o ensino da cultura clássica, serviu de modelo para a aprendizagem das línguas grega e latina. A pedagogia do século XVII opôs-se a essa pratica e sublinhou a necessidade de os alunos estudarem vernáculo. (ZILBERMAN; SILVA, 1990, p. 14)

P á g i n a | 42

Vemos, assim, que, no contexto escolar, a literatura não foi inserida como matéria pedagógica senão depois de passar por várias transformações ate chegar ao reconhecimento da sua eficácia e do seu poder de educar as crianças através dos textos voltados para o público infantil. Através da literatura a criança passa a julgar ou interpretar o mundo que a rodeia, a partir de sua vivência, de suas sensações imediatas e diretas. O adulto não pode dar a resposta pronta e acabada para as crianças, mas viabilizar atividades que as permitam pensar, multiplicando suas observações e descobrindo suas funções, usos e prazeres. O aprendizado como solução de problemas conceituais, proposto por Vigotski, se efetua plenamente no exercício da leitura. As histórias lidas em voz alta permitem que as crianças estabeleçam um contato significativo com os livros. Esse contato deve ser iniciado o mais cedo possível, pois para a criança as coisas existem ou não na medida em que sua imaginação as aceita como reais ou inexistentes. Quando o indivíduo entra em contato com o universo literário pela leitura ou por ouvir uma história, ele coloca em desenvolvimento suas funções afetivas, cognitivas e emocionais. Portanto, cabe ao professor se concentrar na importância desse ato pedagógico, que envolve o mundo da leitura e o contar histórias. Como diz Campos, “[a] aprendizagem não pode ser considerada somente como um processo de memorização ou que emprega apenas o conjunto das funções mentais ou unicamente os elementos físicos ou emocionais, pois todos estes aspectos são necessários” (1984, p. 33). Campos percebe que a criança só aprende de fato quando soluciona problemas ou mobiliza conceitos. É aí que a literatura atua, propondo problemas e desafios que excitam a imaginação e a inteligência da criança. Segundo o escritor e crítico Augusto Meyer, na primeira fase de nossa vida de leitores (geralmente na infância) temos a tendência a nos identificarmos plenamente com os protagonistas das narrativas que lemos e a projetar em nossa imaginação que somos nós as personagens dos dramas e aventuras vividos na leitura: “Ler um livro é desinteressar-se a gente deste mundo comum e objetivo para viver noutro mundo” (Cf. MEYER, 1947, p. 11). É importante lembrar que ao trazer a literatura infantil para a sala de aula, o professor deve estabelecer uma relação dialógica com o aluno, o livro, sua cultura e a própria realidade. Deve-se criar um contexto que, aguçando a percepção do leitor, permita que ele descubra no texto mais do que já sabia. Desenvolvendo no leitor a sua inteligência e senso crítico, que costuma ser desrespeitadas pelo pedagogismo. É essencial escolher bem o texto

P á g i n a | 43

para que o grau de dificuldade seja adequado à faixa etária dos alunos e o desafio não seja excessivo:

[L]ê histórias para crianças, sempre, sempre... É poder sorrir, gargalhar com as situações vividas pelas personagens, com a idéia do conto ou com o jeito de escrever de um autor e, então, poder ser um pouco cúmplice desse momento de humor, de brincadeira... É uma possibilidade de descobrir o mundo imenso dos conflitos, dos impasses, das soluções que todos vivemos e atravessamos de um jeito ou de outro... E a cada vez ir se identificando com, outra personagem... E assim, esclarecer melhor as próprias dificuldades ou encontrar um caminho para a resolução delas. (ABRAMOVICH, 1995, p. 17)

Nesse sentido, uma história traz consigo inúmeras possibilidades de aprendizagem. Entre elas estão os valores apontados no texto, que poderão ser objeto de diálogo com as crianças, possibilitando a troca de opiniões e o desenvolvimento de sua capacidade de expressão. O estabelecimento de relações entre os comportamentos das personagens da história e o comportamento das próprias crianças possibilita ao professor desenvolver os múltiplos aspectos educativos da literatura infantil. Através da literatura o professor deve explorar bastante a sensibilidade e a fantasia. Quanto menor o número de elementos conceituais, quanto maior a exploração do sentimento e do sensorial, melhor será a acolhida desse tipo de texto entre as crianças. As imagens que houver no livro devem traduzir as correspondências entre o mundo externo e o mundo interno, com o qual o leitor se identifica e, muitas vezes, se compreende:

A educação compartilha com a fantasia e a literatura a perspectiva utópica, a que essas apareçam. Etimologicamente, educar é extrair, levar avante, induzir para fora e para frente. Funda-se, pois, num ideal: o de que é possível mudar a atitude individual e a configuração da sociedade por meio da ação humana. (ZILBERMAN; SILVA, 1990, p. 35)

Quando o professor decide contar uma história é necessário que a escolha com muito cuidado e carinho, pois ela deve ser adequada à faixa etária, ao interesse dos ouvintes, aos objetivos do próprio professor. Muitos textos procuram elevar o nível das crianças ao dos professores é uma espécie de autoritarismo didático que não respeita as peculiaridades da criança. A escolha da história funciona como chave mágica e tem importância decisiva no processo narrativo. Não é necessário que o professor tenha um talento especial para contar história, todavia, algumas habilidades devem ser cultivadas.

P á g i n a | 44

Levar a leitura ao encontro do aluno é um compromisso de todos os envolvidos e comprometidos com a educação. Sendo assim, a escola e o professor exercem papel fundamental na mediação para a construção desse conhecimento. E a literatura infantil é extremamente significativa para a reflexão e para a descoberta do interior de cada um, possibilitando, assim, a aprendizagem e o prazer pela leitura e pela literatura. A leitura dos livros de história infantis ajuda o professor a conhecer o aluno, pois este leva os textos para casa e ali pode aprofundar a sua leitura, fazendo novas sínteses, descobrindo os problemas que o texto suscita e relacionando-os com a sua realidade. Na sala de aula o professor indaga os alunos fazendo-os pensar e expor o que eles aprenderam com o texto, num processo contínuo, como já nos ensinara Vigotski:

[A] relação entre o pensamento e a palavra não é uma coisa, mas um processo, um movimento contínuo de vaivém do pensamento para a palavra, e vice – versa. Nesse processo, a relação entre o pensamento e a palavra passa por transformações que, em si mesmas, podem ser consideradas um desenvolvimento no sentido funcional. O pensamento não é simplesmente expresso em palavras; é por meio delas que ele passa a existir. (VIGOTSKI, 1998b, p. 156)

A leitura ajuda a desenvolver quatro habilidades básicas de raciocínio: habilidade de prestar atenção; habilidade de resolver problemas; uma boa maneira e proficiência na linguagem. Portanto, cada leitura oferece um grande estoque de conhecimento, ajudando as crianças na elaboração de um conceito, o qual, segundo Vigotski, “não se forma pela interação das associações, mas mediante uma operação intelectual em que todas as funções mentais elementares participam de uma combinação específica” (1998b, p. 101). Toda história contada tem uma visão educadora, uma vez que, através das histórias contadas o educador pode questionar as crianças, levando-as a se darem conta daquilo que a história significou para elas, para desvendarem o que a história quer dizer. Em momentos assim, o professor deve coordenar a conversa e problematizar as questões que surgem. Segundo Zilberman e Silva, a utilização das histórias infantis na escola tem a finalidade de contextualizar a aprendizagem, tornando significativo o trabalho educativo. Deste modo, as características das histórias infanto-juvenis se definem em três níveis: primeiro, o caráter imaginário: a história extrapola a realidade, enriquece e encanta a criança, possibilita que ela dê asas à própria imaginação.

P á g i n a | 45

Depois o dramatismo: a história reflete, ou procura refletir o universo da criança, que é quase sempre o ideal e absurdo, mas, às vezes, realista e despojado. É aspecto importante para concentrar a atenção e facilitar a globalização das imagens interiores. Ao viver o drama através de seus sentidos, vê repetirem-se suas sensações íntimas, que passam a ser, então, seu próprio drama. Assim a história constitui o caminho da aprendizagem. Em terceiro, a linguagem; a história deve ser apresentada em linguagem acessível e atraente para a criança, ou seja, a linguagem é uma característica de importância vital para apreciação da história:

A literatura provoca no leitor um efeito duplo: aciona sua fantasia, colocando frente a frente dois imaginários e dois tipos de vivência interior: mas suscita um posicionamento intelectual, uma vez que o mundo representado no texto, mesmo afastado no tempo ou diferenciado enquanto invenção produz uma modalidade de reconhecimento em quem lê. Nesse sentido, o texto literário introduz um universo que, por mais distanciado do cotidiano, leva o leitor a refletir a incorporar novas experiências. (ZILBERMAN; SILVA, 1990, p. 19)

A leitura na sala pode ajudar o aluno a interessar-se pela aula, permitindo a autoidentificação, favorecendo aceitações de situações desagradáveis e ajudando a resolver conflitos:

O exercício da leitura do texto literário em sala de aula pode preencher esses objetivos: e confere á literatura outro sentido educativo, talvez não o que responde a intenções de alguns grupos, mas o que auxilia o estudante a ter mais segurança relativamente a suas próprias experiências. (ZILBERMAN; SILVA, 1990, p. 20)

O hábito de contar história é um instrumento eficiente se aliado ao trabalho pessoal criativo do educador. Percebe-se que não há entusiasmo por parte de alguns educandos, devido ao fato de esses não vivenciarem na prática as ideias, os discursos de diferentes pontos de vista e análise dos diversos textos literários, que envolvem as variadas formas linguísticas de norma culta, após terem apreciado uma história ou conto pelo professor. Isso demonstra a necessidade de que a criança tenha contato, o mais cedo possível, com os livros de literatura. É necessário que o professor das séries iniciais conheça a finalidade da história na alfabetização, pois ela constitui um importante recurso no processo de ensino-aprendizagem em todos os níveis de ensino, sendo imprescindível na educação da criança. Na alfabetização facilita o contato inicial com a linguagem oral e escrita.

P á g i n a | 46

A literatura educa através de seus textos, pois a leitura representa, para o leitor, a ponte entre o mundo linguístico e o real, permitindo assim desvelar novos propósitos de reflexão, ampliando o seu conhecimento de mundo. Muito frequentemente, os professores não desenvolvem nas crianças o hábito de ler por desconhecerem a importância de texto literário e por não saberem que eles dão “um sentido ao mundo, ou ele não tem sentido nenhum.” (LAJOLO, 1999, p. 15). A leitura depende tanto do conhecimento de mundo do leitor quanto da capacidade do escritor de seduzi-lo. O professor tem que dar sentido ao texto literário, pois, segundo Zilberman e Silva, a criança

se alimenta da fantasia do autor, que elabora suas imagens interiores para se comunicar com o leitor. Assim o texto concilia a racionalidade da linguagem, de que é testemunha sua estrutura gramatical, com a invenção nascida na intimidade de um indivíduo; e pode lidar com a ficção mais exacerbada, sem perder o contato com a realidade, pois precisa condicionar a imaginação à ordem sintática da língua. Por isso a literatura não deixa de ser realista, documentando seu tempo de modo lúcido e crítico; mas mostra-se sempre original, não esgotando as possibilidades de criar, pois o imaginário empurra o artista à geração de formas e expressões inusitadas. (1990, p. 189)

Ainda segundo esses autores, “a leitura do texto literário constitui uma atividade sintetizadora” (1990, p. 18-19), pois saber ler é o ponto de partida para dominar toda riqueza que um texto, literário ou não, pode transmitir. O aluno que for conduzido nesse processo tornar-se-á, consequentemente, um bom leitor, pois saberá fazer uma análise do texto lido, aprofundando-se na compreensão de detalhes a fim de construir o seu próprio entendimento daquilo que leu. O filósofo Karl Marx afirmava que aquilo que nos faz humanos, como o uso diferenciado dos sentidos em relação aos animais, não é dado pela natureza, mas é resultado de um processo de desalienação e humanização (Cf. MARX; ENGELS, 1980). O crítico marxista brasileiro Antonio Candido desenvolve em seus trabalhos uma ampliação dessa afirmação de Marx. Candido discorre em vários momentos sobre o papel humanizador da literatura. Papel esse que vamos utilizar para defender a função “formadora” da literatura. A literatura é humanizadora, pois ela estimula o exercício da mente, desperta a criatividade da criança e esse processo de desenvolvimento tem que começar na infância através dos livros literários como: fábula, conto, apólogo, histórias dos clássicos, provérbios, histórias de cordel, contos de assombrações, lendas, mitos, folclores e outros. Todos propiciam o desenvolvimento conceitual da criança, como diz Vigotski:

P á g i n a | 47

O desenvolvimento dos processos que finalmente resultam na formação de conceitos começa na fase mais precoce da infância, mas as funções intelectuais que, numa combinação específica, formam a base psicológica do processo da formação de conceitos amadurecem, se configura e se desenvolve somente na puberdade. (1998a, p. 72)

Candido vê a obra literária como “objeto de conhecimento [...] como algo que exprime o homem e depois atua na própria formação do homem.” (1972, p. 804). A literatura, a leitura literária não é, portanto, uma matéria escolar a mais, algo que a escola e os pais e mesmo os próprios alunos podem desprezar como inútil. Candido aponta sua função vital para o ser humano:

Portanto, por via oral ou visual; sob formas curtas e elementares, ou sob complexas formas extensas, a necessidade de ficção se manifesta a cada instante; aliás, ninguém pode passar um dia sem consumi-la, ainda que sob a forma de palpite na loteria, devaneio, construção ideal ou anedota. E assim se justifica o interesse pela função dessas formas de sistematizar a fantasia, de que a literatura é uma das modalidades mais ricas. (CANDIDO, 1972, p. 804)

Interessante é que Candido aponta como função da literatura exatamente a de vincular fantasia e realidade, a mesma expectativa da pedagogia e do aprendizado, mas com outros aspectos, como já argumentamos atrás: “ eis porque surge a indagação sobre o vínculo entre fantasia e realidade, que pode servir de entrada para pensar na função da literatura.” (CANDIDO, 1972, p. 804). Aquela mesma função de produção de maturação do universo interior, necessária para o surgimento da linguagem e da compreensão do mundo, apontada por estudiosos da linguagem e da epistemologia como Vigotski na primeira parte desse trabalho, é associada por Candido ao universo da literatura: “Sabemos que um grande número de mitos, lendas e contos são etiológicos, isto é, são um modo figurado ou fictício de explicar o aparecimento e a razão de ser do mundo físico e da sociedade.” (CANDIDO, 1972, p. 804). Para ele, “O devaneio (rêverie) se incorpora à imaginação poética e acaba na criação de semelhantes imagens; mas o seu ponto de partida é a realidade sensível do mundo, ao qual se liga assim necessariamente” (CANDIDO, 1972, p. 805). Portanto, para Candido a literatura tem uma função formadora essencial. Mas ele se pergunta: “a literatura tem uma função formativa de tipo educacional?” (1972, p. 805) e desenvolve uma resposta elaborada para que se evite confundir função pedagógica com pedagogismo:

P á g i n a | 48 A sua função educativa é muito mais complexa do que pressupõe um ponto de vista estritamente pedagógico. A própria ação que exerce nas camadas profundas afasta a noção convencional de uma atividade delimitada e dirigida segundo os requisitos das normas vigentes. A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê-la ideologicamente como um veículo da tríade famosa, – o verdadeiro, o bom, o belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço da sua concepção de vida. (CANDIDO, 1972, p. 805)

Para Candido, não é preciso instrumentalizar a literatura com intenções pedagogizantes. Ela atinge seu papel pedagógico justamente sendo apreciada como literatura, como fim em si mesma, livre de imposições: “Dado que a literatura, como a vida, ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta” (CANDIDO, 1972, p. 806). Para Candido, portanto, a literatura não pode ser domesticada e muito menos usada como manual, pois ela e seus efeitos são imprevisíveis. Sua função seria justamente humanizar por meio desse pleno exercício de se viver experiências:

Paradoxos, portanto de todo lado, mostrando o conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver. (CANDIDO, 1972, p. 806)

A literatura tem a vantagem de “[s]atisfazer à necessidade universal de fantasia e contribui para a formação da personalidade”. (CANDIDO, 1972, p. 806). Candido responde ainda sobre se “teria a literatura uma função de conhecimento do mundo e do ser?”. Segundo ele, “[o]bras autônomas, com estrutura específica e filiação a modelos duráveis, lhe dão uns significados também específicos.” (CANDIDO, 1972, 806). Apesar de sua autonomia e de sua negativa de toda imposição e instrumentalização da realidade, a literatura, segundo Candido, não se desvincula do real:

A obra literária significa um tipo de elaboração das sugestões da personalidade e do mundo que possui autonomia de significado; mas que esta autonomia não a desliga das suas fontes de inspiração no real, nem anula a sua capacidade de atuar sobre ele. (CANDIDO, 1972, p. 806)

Além disso, é “função da literatura como representação de uma dada realidade social e humana, que faculta maior inteligibilidade com relação a esta realidade” (CANDIDO, 1972,

P á g i n a | 49

p. 806). Ou seja, por meio das histórias, as crianças e os adultos podem compreender mais amplamente a realidade. Assim, ao invés de fantasiar a realidade, a literatura acaba possibilitando uma visão mais clara da mesma.

REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1985. CAMPOS, Dinah Martins de Souza. A aprendizagem: conceito e características. In _____. A psicologia da aprendizagem. 16. Ed. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 28-38. CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: Ciência e Cultura. São Paulo, n. 24, 24 set. 1972, p. 803-809. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 5. Ed. São Paulo: Ática, 1999. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre literatura e arte. 2. Ed. São Paulo: Global, 1980. MEYER, Augusto. À sombra da estante: ensaios. [s.i]. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947. P.11-23. VYGOTSKI, Liev Semenovitch. Um Estudo experimental da formação de conceitos. In:______. Pensamento e linguagem. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998a. p. 65-102. _______. Pensamento e palavra. In:______. Pensamento e linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998b. p. 149-190. ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro da. (orgs.). Literatura e pedagogia: Ponto e contraponto. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.

P á g i n a | 50

A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA: POSSIBILIDADES E DESAFIOS Cristiane Rosa LOPES (UEG/Dra.) ([email protected])

Palavras-chave: educação, relações étnico-raciais, formação, professor No Brasil, desde os anos 90, diretrizes e legislações têm estabelecido a inclusão de conteúdos étnico-raciais nos currículos escolares (SILVA, 2011). Os Parâmetros Curriculares Nacionais, publicados em 1998, determinam a Pluralidade Cultural como um dos Temas Transversais, que devem ser integrados ao currículo (BRASIL, 1998, 2000). A Lei Federal nº 10.639, promulgada em 2003, determina a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todos os estabelecimentos educacionais, sejam eles públicos ou particulares. O problema é que geralmente essas políticas públicas educacionais, assim como os documentos oficiais, “são trazidos para a arena da escola repassando toda responsabilidade para o professor resolver as questões dentro do ambiente escolar” (FERREIRA, 2009, p. 99), sem que, na maioria das vezes, os professores sejam antes preparados para lidar com a temática das relações étnico-raciais. Várias pesquisas indicam que muitos cursos de formação de professores ainda não integraram a diversidade étnicoracial às suas pautas (MOITA LOPES, 2002; FERREIRA, 2006a, 2006b, 2009, 2011, 2012; SILVA, 2011; GONÇALVES, MENEZES e TEODORO, 2011). E, sem haver uma sólida formação docente para a educação das relações étnico-raciais, tais políticas continuarão incipientes, ou seja, com pouca contribuição para a formação de práticas cidadãs. Diante disso, as universidades estão sendo formalmente instruídas para a inclusão de discussões sobre diversidade étnico-cultural em seus currículos (FERREIRA, 2011). Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, nos cursos de licenciatura, de graduação plena (artigo 2º), consta que os currículos devem ter “outras formas de orientação inerentes à formação para a atividade docente, entre as quais o preparo para: […] o acolhimento e o trato da diversidade” (BRASIL, 2002, p.1). As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais apontam questões que são de responsabilidade dos cursos de formação de professores, dentre elas: Introdução, nos cursos de formação de professores e de outros profissionais da educação, de análises das relações sociais e raciais no Brasil; de conceitos e de suas bases teóricas, tais como racismo, discriminações, intolerância,

P á g i n a | 51 preconceito, estereótipo, raça, etnia, cultura, classe social, diversidade, diferença, multiculturalismo; de práticas pedagógicas, de materiais e textos didáticos, na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais […]. (BRASIL, 2005, p. 23) Inclusão de discussão da questão racial como parte integrante da matriz curricular, tanto dos cursos de licenciatura para a Educação Infantil, os anos iniciais e finais da Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos, como de processos de formação continuada de professores, inclusive de docentes no ensino superior. (BRASIL, 2005, p. 23)

Além das questões já citadas, os cursos de licenciatura na região nordeste de Goiás têm outro motivo importante para promover a educação das relações étnico-raciais. Essa região é caracterizada pela presença de várias comunidades afrodescendentes, dentre elas, a comunidade Kalunga, que é a maior comunidade de remanescentes de quilombos do Brasil. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, os municípios mais populosos do nordeste goiano têm o percentual de quase 80% de negros (pretos e pardos), índice muito maior do que o da população brasileira, que tem o percentual de 50,7% de negros (IBGE, 2010). Levando em consideração estas questões, tenho coordenado pesquisas com o objetivo de analisar o processo de inserção das políticas educacionais sobre a diversidade étnico-racial em instituições públicas de ensino da região. Neste trabalho apresento um recorte de uma investigação desenvolvida em 2013, que teve como participantes professores da área de língua inglesa de uma universidade e de escolas públicas da maior cidade do nordeste goiano. Dentre os objetivos propostos nesta investigação, discuto aqui os dois listados a seguir:  verificar se os professores da área de língua inglesa da licenciatura e das escolascampo de estágio tinham conhecimento de documentos oficiais que tornam obrigatória a abordagem da diversidade étnico-racial no ensino fundamental, médio e superior;  verificar se a questão étnico-racial já estava sendo abordada nas aulas da área de língua inglesa na universidade e nas escolas públicas. O principal instrumento utilizado para a coleta de dados foi um questionário com questões abertas e fechadas. Além do questionário, houve a análise de documentos do curso de licenciatura em Letras: projeto pedagógico, matriz curricular e planos de curso das disciplinas da área de língua inglesa. No curso de Letras, a área de língua inglesa é formada

P á g i n a | 52

por quatro professores e duas professoras. Quatro deles concordaram em participar da pesquisa e responderam ao questionário inicial. Através de suas respostas nas questões objetivas, obtivemos as seguintes informações:  Três participantes afirmaram não ter conhecimento de qualquer instrumento legal que aborde a educação das relações étnico-raciais e/ou o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana na educação básica (ensino fundamental e médio);  Dois participantes afirmaram não saber da obrigatoriedade da inclusão da discussão sobre as relações étnico-raciais nos cursos de licenciatura;  Dois participantes afirmaram que trabalham com a temática da educação das relações étnico-raciais nas disciplinas que ministram. Através das análises das respostas abertas do questionário, obtemos, por exemplo, a informação de que para um professor, a educação das relações étnico-raciais não está no âmbito das disciplinas de língua inglesa na universidade. Confira o trecho a seguir: Trabalho Língua Inglesa e essa temática parece se inserir no contexto do ensino de Língua Portuguesa, já que em nosso país esse assunto está em evidência, o que nos países de Língua Inglesa parece estar solucionado, ou próximo a isso. (João – Q/PU)

Esta afirmação do professor João4 parece se alinhar a uma tradição de ensino de inglês como língua estrangeira no Brasil que, segundo Moita Lopes (2003), está na contramão há muito tempo. Para o autor, muitos professores de inglês continuam “ensinando uma língua de forma desvinculada das questões sociais, culturais, históricas e político-econômicas” da nossa sociedade (MOITA LOPES, 2003, p. 6). É preciso, todavia, que professores e formadores de professores se engajem numa prática que os leve “a entender e reforçar as implicações sociais, econômicas e políticas” das suas profissões. Ou seja, é preciso “desafiar o tecnicismo reinante e fazer pedagogia crítica” (SILVA, 2010, p. 28). A pedagogia crítica, para Pennycook (2001), é a educação que tem vontade de mudança social e de fortalecimento (do mais fraco), que visa promover mudança na escola e na sociedade para o benefício mútuo de ambas. O professor João afirma que o problema das relações étnico-raciais “parece estar solucionado” nos países de língua inglesa. Para estudiosos do assunto, isto está bem distante 4

Utilizo nomes fictícios para preservar a identidade dos participantes da pesquisa.

P á g i n a | 53

de ocorrer. Purdy (2012), por exemplo, explica que nos Estados Unidos, mesmo após o aumento do número de negros nas universidades e da eleição do presidente Obama, [t]odos os indicadores econômicos e sociais em 2012 mostram a continuação do que vários pesquisadores chamam de um apartheid econômico e social (referindo-se ao sistema de segregação racial na África do Sul durante o século XX). Para exemplificar: a riqueza familiar de brancos é nove vezes maior que a de negros, 30% de crianças negras e latinas vivem na pobreza (o triplo do índice de crianças brancas), negros têm oito vezes mais chances de sofrer de Aids que brancos, e negras têm 19 vezes mais possibilidades de ser diagnosticadas com essa doença que mulheres brancas. Ou seja, a segregação e a desigualdade extrema na comunidade afro-americana ainda marcam fortemente o país. (Purdy, 2012, s/p)

A análise documental também fornece indícios de que as legislações para a educação das relações étnico-raciais ainda não estão sendo seguidas. O projeto pedagógico e a matriz curricular ignoram a temática. A análise dos planos de curso, por outro lado, trouxe informações que complementam e outras que, de certa forma, não coadunam com as obtidas através da análise dos questionários. A professora Bia, por exemplo, afirma no questionário que aborda a temática das relações étnico-raciais na disciplina que ministra. Na análise do plano de curso desta disciplina, todavia, não encontramos nenhuma referência ao assunto nos conteúdos programáticos lançados. Os dados indicam que alguns professores universitários de língua inglesa da instituição pesquisada parecem não estar atentos para a abrangência do ensino/aprendizagem de inglês como língua adicional. Em outras palavras, parece que eles não percebem esta prática como um lugar de construção de identidades sociais, como, por exemplo, as de raça e etnia. As diretrizes educacionais, entretanto, consideram a construção de identidades e a diversidade étnico-racial como temas importantes no processo de ensino/aprendizagem de inglês. Moita Lopes (2002), ao discutir a relação entre linguagem e identidade, explica que [os] professores de línguas precisam considerar a linguagem como um fenômeno essencialmente social (...) e isso inclui consciência de como, através do uso da linguagem, construímos nossas várias identidades sociais no discurso e de como essas afetam os significados que construímos na sociedade. (MOITA LOPES, 2002, p. 54-55)

A análise de dados coletados na licenciatura em Letras geraram constatações que estão de acordo com afirmações de Ferreira (2012, p. 24-25) sobre os cursos de formação de professores de inglês no Brasil. Para a autora, nesses cursos, “a forma como o currículo é construído não reflete a realidade com a qual os/as futuros/as professores/as irão se deparar”, já que as questões étnico-raciais ainda não são debatidas “de forma interdisciplinar, ou como

P á g i n a | 54

uma questão importante”. Desta forma, os graduandos estão implicitamente sendo preparados para trabalhar com alunos brancos, classe média, classe média alta e sem problemas sociais. Este perfil de alunos é bem diferente do que está presente nas salas de aula do ensino público no contexto pesquisado que, conforme já mencionado, é caracterizado pela presença majoritária de negros, numa região com os menores Índices de Desenvolvimento Humano do estado (IBGE, 2010). Para a coleta de dados nas escolas-campo do estágio supervisionado de língua inglesa, utilizamos um questionário, que foi entregue a todos os professores de língua inglesa das oito escolas públicas de ensino fundamental e médio da cidade. No ano de 2013 dezoito professores ministravam a disciplina de língua inglesa e onze participaram da pesquisa, respondendo ao questionário. Desses onze, apenas um professor afirmou ter conhecimento da Lei Federal nº 10.639 (BRASIL, 2003). Esse professou relatou que ficou sabendo sobre a lei através da participação em fóruns de cultura negra, e que concorda com os pressupostos da lei, pois acredita que: trabalhar a cultura negra pode ser um caminho de reduzir o preconceito, principalmente nas escolas, eliminando a visão de que na história do Brasil o negro foi apenas escravizado. (Luiz- Q/PE)

A identificação de um único professor de inglês que tem conhecimento da obrigatoriedade da abordagem da educação das relações étnico-raciais nas escolas públicas pesquisadas indica a distância do cumprimento das leis educacionais relativas ao assunto. É importante lembrar que a Lei Federal nº 10.639 foi homologada há 11 anos, e que até o momento são poucos professores da área de língua inglesa que têm conhecimento de seus pressupostos, independente do contexto de atuação (universidade ou escola). Diante dos dados identificados, fica nítida a necessidade de desenvolvimento de ações na universidade para que as legislações educacionais acerca da diversidade étnico-racial possam ser conhecidas e debatidas na própria universidade e também nas escolas, impulsionando a construção de práticas pedagógicas que valorizem a pluralidade cultural e o respeito à diversidade. Uma das ações iniciadas em 2014 foi o subprojeto Pibid5 do curso de licenciatura em Letras, que tem por objetivo a aproximação entre universidade e escola para a formação de professores aptos para a construção de práticas pedagógicas de ensino de língua inglesa, que possibilitem a melhoria da aprendizagem e incentivem a igualdade e a inclusão social. Outra ação, num âmbito mais amplo, foi a aprovação de uma nova estrutura curricular

5

Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência da CAPES.

P á g i n a | 55

para os cursos de graduação da Universidade Estadual de Goiás (UEG). A partir de 2015 a disciplina Educação em Direitos Humanos, Diversidade e Relações Étnico-raciais deverá ser oferecida em todos os cursos de licenciatura, bacharelado e tecnológico da universidade. REFERÊNCIAS BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC/Secretaria Especial de Política de Promoção de Igualdade Racial, 2005. ________. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Brasília: MEC, 2002. ________. Lei Federal nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Brasília: MEC, 2003. ________. Parâmetros Curriculares Nacionais: Pluralidade Cultural e Educação Sexual. Brasília: MEC/SEF, 2000. ________. Parâmetros Curriculares Nacionais. Terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998. FERREIRA, A. de J. Addressing Race/Ethnicity in Brazilian Schools: A Critical Race Theory Perspective. Seattle – USA: CreateSpace, 2011, v. 1, 419 p. ________. Diversidade Étnico-Racial: Histórias de Professores de Línguas. In: TELLES, J. (Org.) Formação inicial e continuada de professores de línguas – dimensões e ações na pesquisa e na prática. Pontes Editores, 2009, p. 99-111. ________. Formação de professores de língua inglesa e o preparo para o exercício do letramento crítico em sala de aula em prol das práticas sociais: um olhar acerca de raça/etnia. Línguas & Letras, v. 7, n. 12, p. 171-187, 2006a. ________. Formação de professores raça/etnia: reflexões e sugestões de materiais de ensino. Cascavel: Editora Assoeste, 2006b. 129 p. ________. (Org.). Identidades sociais de raça, etnia, gênero e sexualidade: práticas pedagógicas em sala de aula de línguas e formação de professores/as. Campinas: Pontes, 2012. GONÇALVES, L. R. D.; MENEZES, B. O.; TEODORO, L. M. M. Cultura afro-brasileira em escolas municipais: caso de Ituiutaba-MG. In: FILHO, G. R. & PERÓN, C. M. R. (Orgs.). Racismo e Educação: Contribuições para a Implementação da Lei 10.639/03. Uberlândia: EDUFU, 2011, p. 55-66. IBGE. Goiás: Campos Belos: censo demográfico 2010: resultados do universo – características da população e dos domicílios. IBGE, 2010. Disponível em: Acesso em: 05 de abril de 2014. MOITA LOPES, L. P. Discursos de identidades: discurso como espaço de construção de gênero, sexualidade, raça, idade e profissão na escola e na família. Campinas: SP: Mercado de Letras, 2003. ________. Identidades fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e sexualidade em sala de aula. Campinas: Mercado de Letras, 2002. PENNYCOOK, A. Critical Applied Linguistics: a critical introduction. Mahwah: NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 2001. PURDY, S . O pesadelo americano. Carta Capital, 2012. Disponível em: . Acesso em: 08 de agosto de 2013. SILVA, J. C. G. Cultura afro-brasileira e patrimônios culturais africanos nos currículos escolares: breve memória de lutas por uma educação antirracista. In: FILHO, G. R.; PERÓN, C. M. R. (Orgs.). Racismo e Educação: Contribuições para a Implementação da Lei 10.639/03. Uberlândia: EDUFU, 2011, p. 11-29.

P á g i n a | 57

A IMAGEM DO NEGRO EM PRODUTOS DE BELEZA E A ESTÉTICA DO RACISMO Cristiane Rosa LOPES (UEG/Dr.) ([email protected] Jonathas Vilas Boas de SANT’ANA (UEG) ([email protected])

Palavras-chave: Estética, racismo, mídia, educação. Introdução

Tomados como amostra do nordeste goiano, os municípios de Monte Alegre de Goiás e Campos Belos totalizam 26.140 pessoas, das quais 20.531 são negras e 5.609 não são negras, o que em percentual equivale a aproximadamente 78,54% de negros (pretos e pardos) e 21,45% de não negros (brancos, amarelos e indígenas), conforme as categorias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010a; 2010b). Entretanto, apesar de a maioria populacional do nordeste goiano pertencer à categoria negra, a pesquisa sobre “A invisibilidade do negro nos produtos culturais e a formação de um imaginário social racista”6 constatou que isto não é refletido na emissão imagética de comércios, televisão, internet e publicidade impressa7 disponíveis na região. Em abordagem qualitativa (LÜDKE e ANDRÉ, 2004) esta pesquisa envolveu revisão de literatura, pesquisa de campo e análise dos dados e concluiu que além de o aparecimento de negros na mídia regional ser mínimo, carrega diversos estereótipos que revelam preconceitos existentes na sociedade ao mesmo tempo em que os alimentam. Este trabalho discute com maior profundidade um dos estereótipos encontrados na pesquisa supracitada, que é o da desvalorização estética, presente em produtos de beleza comercializados na região. A discussão não pretende dar-se por acabada e certa da verdade, mas tem a intenção de abrir um diálogo crítico. De início realizam-se apontamentos sobre o capitalismo contemporâneo e a função da imagem, argumentando que esta difunde, também nos comércios, a visão de mundo 6

Realizada pelo autor, sob orientação da Prof.ª Dra. Cristiane Rosa Lopes, apoiada pelo Programa de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Estadual de Goiás (PBIC/UEG – 2013/14). 7 Na internet investigou-se os dois maiores sites de vendas do Brasil e as duas maiores páginas comerciais na rede social Facebook; na publicidade impressa foi explorado o conteúdo de seis revistas de venda popular; nos comércios do nordeste goiano pesquisou-se três grupos – supermercados, farmácias e papelarias, resguardando o sigilo dos mesmos; na televisão explorou-se o conteúdo de três emissoras – TV Anhanguera (Rede Globo), TV Record e TV Bandeirantes.

P á g i n a | 58

capitalista, com seus valores e ética. Após, analisa-se de modo qualitativo a imagem do negro nos produtos de beleza encontrados na pesquisa, evidenciando a conexão entre estereótipo e inferiorização histórica. Por fim, apontam-se como estratégias de enfrentamento desta realidade a ressignificação e empoderamento da imagem e do sujeito negro por meio da história e da estética, principalmente na educação escolarizada.

O capitalismo contemporâneo e o papel da imagem

O capitalismo hodierno é simbólico, assimilado e vivenciado subjetivamente, baseado no individualismo midiatizado. A estrutura do poder social é abstrata e midiatizada, atuando neste nível (BAUMAN, 2008). Sodré (1987) aponta que vive-se a telerrealidade: espaço de relações estruturadas pela mídia, a qual produz consenso mediante a junção de realidade e virtualidade midiático-imagética. Nas palavras de Sodré (1987), a telerrealidade tende a aumentar: “Em nome da eficiência e da produtividade, esse sistema tende a expandir-se irreversivelmente, absorvendo atividades de correios, documentação, finanças, comércio etc.” (SODRÉ, 1987, p. 40). Este fechamento progressivo das comunicações indica uma convergência de dos veículos de comunicação, sejam objetos, instituições ou imagens publicitárias etc. Segundo Perez (2011), há publicidade “nas embalagens, nos cartazes, folhetos, adesivos, nos livros, nos rótulos, nas roupas, nos utensílios domésticos, nos sites, nas redes sociais” (PEREZ, 2011, p. 71), o que reitera a convergência apontada por Sodré (1987) e permite que denomine-se aqui a existência de uma rede midiático-publicitária. A imagem é um elemento central nesta rede, pois socializa e difunde uma visão de mundo, a saber, o caráter abstrato das relações de poder, bem como os preconceitos existentes na sociedade. Pela convergência e redundância nos diversos meios, as imagens contribuem para a manutenção do consenso psicológico e ideológico, produzindo sentidos nos ambientes em que estão presentes (KELLNER, 2001). As imagens publicitárias projetam modelos a serem seguidos: estilo, moda, sexualidade, comportamento social etc. Desta forma, “levam à identificação com certas identidades e sua imitação, enquanto se evitam outras” (KELLNER, 2001, p. 330). Isto torna-se uma problemática quando consideramos que, devido às condições históricas, grande período da emissão imagética brasileira supervalorizou o american way of life (estilo de vida americano), etnicamente branco, com a penetração maciça de filmes, técnicas e logística importadas do “outro”, do americano branco (TAVARES, 1985). Parece

P á g i n a | 59

se repetir hoje, na rede midiático-publicitária, a imagem de um outro que não o negro majoritário no país e no nordeste goiano. Atualiza-se a ideologia do branqueamento, advinda da época colonial, ao invisibilizar e imprimir estereótipos sobre o negro (MARTINS, 2011). Este processo reforça a “branquitude normativa, na eleição do paradigma estético e formal branco como referencial, sendo os demais que se afastam dele desviantes” (OLIVEIRA, 2011, p. 34). Isto porque, conforme Borges (2012), a mídia tem um projeto homogeneizador que estabelece o estatuto do “outro” não-branco e define um modelo de dever-ser social, retroalimentando o racismo pela massiva presença midiática na vida contemporânea.

O estereótipo da desvalorização estética e seus sentidos

Analisou-se qualitativamente 505 imagens negros advindas de comércios do nordeste goiano, páginas da internet, publicidade impressa e programação televisiva, no âmbito da pesquisa citada no início. Categorizou-se 11 estereótipos que podem se tornar base cognitiva para o preconceito, o qual tende a sustentar vários graus de discriminação. Houve grande aparição do estereótipo da desvalorização estética – 5,54% na pesquisa geral e 25,68% nos comércios explorados no nordeste goiano, nos produtos de beleza. Compreende-se que as imagens ali presentes integram uma rede midiático-publicitária mais ampla e carregam os valores excludentes e racistas do capitalismo. No estereótipo da desvalorização estética há a negativação da estética do sujeito afrodescendente – em especial a mulher – em termos de moda, estética e beleza (OLIVEIRA, 2011), especialmente no que se refere aos produtos para os cabelos. A imagem do cabelo crespo é atrelada ao indivíduo negro, que tem outras marcas como a cor da pele, o nariz e os lábios. Diversos produtos discursam que somente o seu uso é que fará a mulher negra, portadora do cabelo crespo, aproximar-se do ideal de beleza branco, assemelhando seu cabelo “ruim” ao cabelo “bom” e branqueando-se por meio dele. As embalagens de alguns produtos mostram o “antes e depois” do uso, destacando infelicidade e decepção com o cabelo crespo e felicidade e alívio após o alisamento do mesmo. A diferença natural do cabelo crespo é tornada em inferioridade estética com valor moral (cabelo ruim), o que reforça os discursos sociais. Nega-se a possibilidade de ter cuidados capilares que valorizem o cabelo crespo, pois este é sempre “ruim”, precisa de um produto que o relaxe e alise facilmente. Julga-se moralmente a estética do sujeito, pressionando-o para baixo por não poder se desfazer de seu cabelo.

P á g i n a | 60

No entanto, a questão da desvalorização estética apontada no estereótipo encontrado durante a pesquisa é apenas a ponta de um enorme iceberg. Há outras questões ligadas à inferiorização corpórea e política do negro na sociedade brasileira que podem ser discutidas a partir do estereótipo categorizado. O corpo do negro e da negra é estigmatizado desde o colonialismo, como se a diferença fosse inferioridade. Na literatura, um dos primeiros meios de produção do imaginário, representou-se o negro como desviante desde o escravismo. Moura (1988) afirma que eram raras as aparições do negro na produção literária difundida brasileira, e quando ocorriam negavam a existência do mesmo, isto é, demarcavam “o negro como inferior, numa estética que, no fundamental, colocava-o de um lado como a negação da beleza e, de outro, como anti-herói (...) animal conduzido por reflexos (MOURA, 1988, p. 26). Para Borges (2012), a mídia atual insiste numa estrutura histórica, que polariza negros e brancos, vinculada “à dimensão corpórea como elemento distintivo entre um eu civilizado e o outro bárbaro” (BORGES, 2012, p. 188). No tráfico e na escravização de negros no Brasil havia um “cuidado” quanto à estética do negro. Segundo Maestri (1986), Rodrigues (1997) e Pinsky (2000), a aparência do escravizado interferia em sua alocação para o trabalho, bem como na possibilidade de alforria. Em linhas gerais os relatos históricos indicam que, como força equivalente à de animais, o corpo negro era visto de formas distintas. Para os traficantes o negro era peça de troca e fonte de renda (RODRIGUES, 1997); para os senhores, as mulheres negras eram objetos de prazer sexual e promessa de cura de doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis, por meio da relação sexual (PEREGALLI, 1988); para o sistema escravista como um todo o sujeito negro (corpo, intelecto e espirito) era radicalmente inferior e aceitavelmente punível por sua corrupção moral, espiritual e física (MAESTRI, 1986; PEREGALLI, 1988). Entretanto, por distintas que sejam estas e outras imagens do negro, todas têm mesma base: a crença num “outro” desviante. O corpo negro foi tratado como estranho, anormal, como Saartjie Baartman, mulher negra que possuía as nádegas avantajadas (esteatopigia) e os lábios vaginais alongados. Foi nomeada de Vênus Hatentote, exibida em toda a Europa e estudada pela ciência. Segundo Borges (2012), daí universalizou-se a ideia de mulher negra: corpo anormal, desviante, hipersexualizada, sem domínio de si e devassa, apenas objeto sexual. A mídia atual rememora esta imagem e assim tipifica a mulher negra como inferior e desviante do padrão étnico branco, que é belo, em oposição ao negro. Para Carneiro (2003), as “mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que não são rainhas

P á g i n a | 61

de nada, que são retratadas como antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher branca” (CARNEIRO, 2003, p. 50). Numa análise mais detida, pode-se argumentar que a mulher negra não é “apenas” considerada inferior, mas é inimiga da beleza, é o mal encarnado na “antibeleza”, a corrupção do padrão, o desvio, o erro, o pecado, o mal não apenas técnico, mas moral. Antimusa dá a ideia do oposto da perfeição estética e da inspiração superior da musa. Antimusa é a degradação mais completa, o polo oposto da beleza – a feiura. É válido questionar se ao impor o consumo do produto e da ideia por trás do mesmo, se ao oferecer “alisamento e relaxamento” dos cabelos, a rede midiático-publicitária não estaria num esforço para retirar o “mal” expresso na pele, no cabelo, no nariz e nos lábios do negro. Se sim, o alisamento do cabelo superaria o estado de antimusa e – analogamente a um ditado popular – arrancaria o mal pela raiz (do cabelo!). Sobre o “mal” do corpo, Peregalli (1988) ressalta que a ideia medieval de que o corpo era instrumento do pecado foi transferida para o corpo do negro, justificando os sofrimentos físicos, que deviam ser aceitos para remir os pecados e caminhar para o céu. A violência era vista como libertação e branqueamento da “alma má” do negro. O conceito de mal é compreendido por Malachias (2007) a partir da popular dualidade “cabelo bom/ruim”. A cultura ocidental tipificou os cabelos conforme as relações de poder. A oposição bom/ruim tem conotação social, moral e religiosa, dada a tradição maniqueísta, em que o bom é bem, branco, e o ruim é mal, escuro. Num imaginário racista a cultura negra é associada ao candomblé e ao diabo. Por isto, ter características fenotípicas desta etnia (espessura dos lábios, formato do nariz, textura capilar) torna o sujeito sem valor positivo, feio, perigoso, maléfico, ao contrário do branco que é classificado como bonito e bom (MALACHIAS, 2007). Gomes (2008) afirma que o olhar social compara os indivíduos a partir do padrão estético branco, considerado o ideal, e hierarquiza a partir de tal comparação, minimizando o valor do sujeito negro por seus sinais diacríticos – corpo e cabelo. Os negros podem resistir ou assimilar esta ideia e tentar branquear-se num processo sofrido. Para a autora, alisar os cabelos crespos pode revelar o descontentamento com a aparência própria e a obsessão por alcançar o branqueamento, mas pode também ser escolha livre, uma manipulação do corpo próprio para se ressignificar. O problema é que na maioria das vezes o alisamento é imposto, é uma opção ideológica. De fato, para o negro, a “rejeição do cabelo, muitas vezes, leva a uma sensação de inferioridade e de baixa auto-estima” (GOMES, 2008, p. 189), já que polarizam-se os

P á g i n a | 62

extremos de cabelo crespo/liso, como desejável e indesejável. No imaginário social “quanto mais crespo for o cabelo, mais próximo o sujeito que o possui estará de um grupo étnico/racial ainda considerado inferior tanto no sentido biológico quanto cultural” (GOMES, 2008, p. 216). Aí percebe-se que a desvalorização estética é, na verdade, a desvalorização da imagem e do sujeito negro, o que, para Carneiro (2003) e Malachias (2007) dificulta o exercício da cidadania plena. Os direitos destes sujeitos existem legalmente, mas a desvalorização estética presente no imaginário social segrega e dificulta o acesso aos mesmos, pois o negro é visto e se vê como subumano.

Considerações finais

O nordeste goiano tem maioria negra e abriga o Quilombo Kalunga, o que não impede a minimização da imagem deste grupo nos diferentes aportes midiáticos, mesmo nos comércios locais. Isto porque estes integram uma rede midiático-publicitária mais ampla, onde a imagem tem papel central de difusão de sentidos. A imagem do negro nos produtos de beleza encontrados nos comércios da região carrega o estereótipo da desvalorização estética, centrado na negativação do cabelo crespo. Tal estereótipo é histórico, reverbera questões mais profundas que a mera aparência. O imaginário brasileiro inferioriza o sujeito negro a partir do julgamento negativo, estético, moral e religioso, sobre seu corpo. Pode-se falar de uma estética do racismo, que camufla uma ética opressiva e esconde que conceitos como cabelo bom/ruim, sujeito feio/bonito, ligados ao pertencimento étnico-racial, não são naturais, repercutem a dominação histórica de brancos sobre negros e causam prejuízo social a distintos indivíduos. Ao minar a autoestima do sujeito negro e naturalizar estereótipos, preconceitos e discriminação na sociedade, a estética-ética do racismo segrega, legitima a ordem social vigente e destitui os indivíduos do exercício pleno de seus direitos sociais. Frente à questão, para ressignificar a imagem do negro e empoderá-lo, é preciso atuar com a estética e a história. Isto é, reconhecer, conhecer, aceitar, valorizar e se relacionar com o corpo, com a cultura, com a história, com o pensamento negro, africano e afrobrasileiro, a desconstruir mitos e positivar a imagem do negro e da negra. Distintos espaços sociais podem e devem contribuir no processo de ressignificação da imagem do negro. As questões levantadas neste trabalho podem ser

P á g i n a | 63

subsídios neste processo. A educação escolarizada tem importante papel, mas não auxiliará se apenas “folclorizar” o negro e sua cultura no Dia da Consciência Negra. É preciso efetivar a Lei 10.639/03, que obriga a inserção da “História e Cultura Afro-Brasileiras” no cotidiano escolar e trabalhar esteticamente para romper a ética etnocêntrica europeia e atuar em favor de uma ética-estética da diversidade. Além disto, pode-se apontar algumas sugestões de trabalho antirracista a serem melhor definidas em estudos futuros: a “educomunicação”, reunindo a cultura, a arte, a expressão corporal e a produção coletiva com as tecnologias; o trabalho desde um paradigma transdisciplinar, que integra o pensamento e supera a fragmentação disciplinar, atuando numa perspectiva ecoformadora; a “educação pela pesquisa”, interessada em questões locais ligadas à temática; a tendência de “Escolas Criativas”, que parte da potencialidade humana existente nas instituições; e a literatura infanto-juvenil de origem africana e afro-brasileira ou com personagens negros. As possibilidades de superação do estado deteriorado da imagem do negro são potentes, o que coloca uma perspectiva positiva para o futuro. Sobretudo, quanto à escolarização, é necessário que haja discussão sobre o imaginário racista e sua influência na interação dos sujeitos e destes com o currículo. Isto pode ocorrer na formação inicial e continuada dos docentes da região, bem como nas escolas, e exige a revisão e a reinvenção individual e coletiva das bases da sociedade e das organizações nela presentes. Referências BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. BORGES, Rosane da Silva. Mídias, racismos e representações do outro: ligeiras reflexões em torno da imagem da mulher negra. In: BORGES, Roberto Carlos da Silva; BORGES, Rosane. Mídia e racismo. Brasília, DF: ABPN, 2012. CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDEDORES SOCIAIS E TAKANO CIDADANIA. Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano, 2003. GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. IBGE. Goiás: Monte Alegre de Goiás: censo demográfico 2010: resultados do universo – características da população e dos domicílios. IBGE, 2010a. Disponível em: Acesso em: 09 de abril de 2014 às 22h:54min.

P á g i n a | 64

IBGE. Goiás: Campos Belos: censo demográfico 2010: resultados do universo – características da população e dos domicílios. IBGE, 2010b. Disponível em: Acesso em: 09 de abril de 2014 às 22h:56min. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Trad. Ivone Castilho Benedetti. Bauru, SP: EDUSC, 2001. MAESTRI, Mário. Breve história da escravidão. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. MALACHIAS, Rosangela. Cabelo bom. Cabelo ruim. São Paulo: NEINB, 2007. MARTINS, Carlos Augusto de Miranda e. A publicidade e o registro branco do Brasil. In: BATISTA, Leandro Leonardo; LEITE, Francisco (orgs.). O negro nos espaços publicitários brasileiros: perspectivas contemporâneas em diálogo. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes/USP, 2011. LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 8. reimpressão. São Paulo: EPU, 2004. MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988. OLIVEIRA, Dennis de. Etnomídia: a construção de uma paisagem étnica na linguagem midiática. In: BATISTA, Leandro Leonardo; LEITE, Francisco (orgs.). O negro nos espaços publicitários brasileiros: perspectivas contemporâneas em diálogo. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes/USP, 2011. PEREGALLI, Enrique. Escravidão no Brasil. São Paulo: Global, 1988. PEREZ, Clotilde. Condições antropossemióticas do negro na publicidade contemporânea. In: BATISTA, Leandro Leonardo; LEITE, Francisco (orgs.). O negro nos espaços publicitários brasileiros: perspectivas contemporâneas em diálogo. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes/USP, 2011. PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. 17. ed. São Paulo: Contexto, 2000. RODRIGUES, Jaime. O tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Ática, 1997. SODRÉ, Muniz. Televisão e psicanálise. São Paulo: Ática, 1987. TAVARES, Zulmira Ribeiro. A representação do outro. O cinema norte-americano na emissão televisiva. In: MARCONDES FILHO, Ciro Juvenal Rodrigues (Org.). Política e imaginário nos meios de comunicação. São Paulo: Summus, 1985.

P á g i n a | 65

A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA INGLESA Cristiane Rosa LOPES (UEG/Dra.) ([email protected]) Yágo Richard Barbosa Magalhães QUEIROZ (UEG) ([email protected])

Palavras-chave: Representação, negro, livro didático, Língua Inglesa.

O livro didático é amplamente usado nas escolas brasileiras, desempenhando um importante papel na formação dos alunos. A sua importância, em grande parte, tem sido relacionada ao suprimento de dificuldades pedagógicas, advindas de escassez de materiais didáticos e de salas de aulas lotadas. No livro didático, todavia, muitas vezes ocorre a invisibilidade do povo negro e do seu valor histórico e cultural, bem como a sua inferiorização e discriminação através de estereótipos (SILVA, 2005):

A utilização de recursos pedagógicos com esse caráter remonta a um processo de socialização racista, marcadamente branco-eurocêntrico e etnocêntrico, que historicamente enaltece imagens de indivíduos brancos, do continente europeu e estadunidense como referências positivas em detrimento dos negros e do continente africano. (CAVALLEIRO, 2005, p. 13)

Atendendo reivindicações dos movimentos sociais negros, o governo brasileiro tem, desde a década de 90, implementado normas para uma educação antirracista. Livros didáticos nos quais o negro era retratado de forma estereotipada, como uma raça inferior, com características negativas, tiveram de ser revisados ou eliminados (SANTOS, 2005, p. 25). Além disso, a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais trouxe novas diretrizes para o Ensino Fundamental e Médio, dentre elas, a inserção da temática Pluralidade Cultural (BRASIL, 1997), como um dos Temas Transversais a ser desenvolvido nas aulas. O tema da Pluralidade Cultural aborda a necessidade de conhecimento e valorização das diferenças étnicas e culturais dos vários grupos sociais que compõem a sociedade brasileira, marcada por desigualdades socioeconômicas, relações sociais discriminatórias e excludentes. Visando contribuir para o combate à discriminação étnicoracial, entre os objetivos deste tema, temos:

P á g i n a | 66 conhecer a diversidade do patrimônio étnico-cultural brasileiro, tendo atitude de respeito para com as pessoas e grupos que a compõem […]; repudiar toda discriminação baseada em diferenças de raça/etnia, classe social, crença religiosa, sexo e outras características individuais e sociais (BRASIL, 1997, p. 59).

A Lei Federal nº 10.639 (BRASIL, 2003) determinou a obrigatoriedade do estudo da História da África e da Cultura Afro-Brasileira no âmbito de todo o currículo da rede de ensino, constituindo-se num outro marco na luta por uma educação antirracista. Além disso, houve em 2007 a implementação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que fez com que fossem excluídas dos livros didáticos considerações racistas e formas estereotipadas e/ou preconceituosas em referência aos afrodescendentes. Pesquisas, como as desenvolvidas por Ana Célia da Silva (2005, 2011), indicam que tem havido mudanças significativas na forma como o negro é representado nos livros didáticos de Língua Portuguesa. Na década de 80 os livros didáticos caracterizam-se pela rara presença do negro, “e essa rara presença era marcada pela desumanização e estigma” (SILVA, 2011, p. 13). Investigações mais recentes sobre a representação do negro nos livros didáticos evidenciam transformações, como, por exemplo, a diminuição da associação à representação estereotipada de animal, a diversificação de papeis e funções e, principalmente, a atribuição de características de humanidade. O negro, todavia, continua sendo minoria na frequência total de representações humanas nos livros didáticos (SILVA, 2011). Neste trabalho apresentamos os resultados da primeira etapa de um estudo, que visa analisar como o negro está representado em livros didáticos de Língua Inglesa. Selecionamos a coleção Upgrade para o ensino médio, publicada pela Editora Richmond, que faz parte do Guia do PNLD de 2012, que indica os livros a serem utilizados nos anos de 2013 e 2014. Esta coleção é adotada na maior escola pública, em número de alunos, do município de Campos Belos. Iniciamos nossa análise realizando a quantificação de figuras humanas e de figuras humanas negras (pretos e pardos) presentes em cada volume da série. Na análise do volume 1 identificamos a presença de 138 figuras humanas, sendo apenas 18 figuras humanas negras. 10 figuras não foram contabilizadas, pois consideramos difícil a classificação. Na análise do volume 2 contabilizamos a presença de 144 figuras humanas, sendo 25 figuras humanas negras. Neste volume 6 figuras foram consideradas difíceis para a classificação. No volume 3 verificamos que das 78 figuras humanas presentes, 11 são figuras humanas negras. 3 figuras não foram incluídas na contagem, devido à dificuldade de classificação.

P á g i n a | 67

Identificamos um total de 360 figuras humanas presentes nos três volumes da série, sendo que dessas apenas 54 são negras. Ou seja, apenas 15% do total de figuras humanas identificadas. De acordo com último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), o percentual declarado de negros na população brasileira é de 50,7%, ou seja, mais da metade da população. No município de Campos Belos/GO o índice é muito maior. São 18.410 pessoas residentes no município, e 14.179 são declaradas negras, o que corresponde a 77% da população. Comparando o percentual de figuras humanas negras presentes nos livros didáticos de Língua Inglesa analisados (15%) com o percentual da população negra residente no município (77%), podemos afirmar que a representação do negro nestes materiais de ensino está muito abaixo do esperado. Tendo em vista que a “representação de um grupo ou indivíduo é fundamental para a construção ou desconstrução da(s) sua(s) identidade(s), autoestima e autoconceito” (SILVA, 2011, p.32), a representação minoritária do negro em livros didáticos usados numa escola, na qual há a predominância de alunos negros, pode contribuir para que esses alunos desenvolvam “um processo de auto-rejeição e de rejeição ao seu grupo étnico/racial” (SILVA, 2005, p. 25). Cavalleiro (2005, p. 83) explica que a disparidade nas representações de negros e brancos no material didático pode “ser fonte de rebaixamento de auto-estima e um facilitador para a construção de autoconceito negativo por parte das crianças negras”.

A invisibilidade e a reduzida apresentação do negro no livro didático constroem a ilusão da não existência e da condição de minoria do segmento negro, mesmo nas regiões onde ele constitui maioria. (SILVA, 2005, p. 30)

A predominância de representações de brancos, por outro lado, pode levar a formação de um sentimento de superioridade por parte das crianças brancas, “pelo simples fato de terem a pele branca e fazerem parte, portanto, do grupo que constitui a maioria em ilustrações e referências culturais e históricas nesse tipo de material – o que sinaliza a referência de poder, beleza e inteligência” (CAVALLEIRO, 2005, p. 83). Sabemos que o livro didático continua sendo o material pedagógico mais usado pelos professores, principalmente nas escolas públicas, constituindo-se muitas vezes na única fonte de leitura dos alunos, principalmente aos pertencentes às classes mais populares (SILVA, 2005). Este tipo de material, portanto, deveria estar de acordo com as demandas sociais e educacionais, bem como as legislações e as políticas afirmativas, que visam a

P á g i n a | 68

reconstrução

da

identidade

étnico-racial,

da

autoestima

e

do

autoconceito

dos

afrodescendentes (SILVA, 2011; SMITH, 2013).

REFERÊNCIAS: BRASIL. Lei Federal nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Brasília: MEC, 2003. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual. Brasília: MEC/SEF, 1997. 164 p. CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Discriminação racial e pluralismo em escolas públicas da cidade de São Paulo. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: MEC, 2005, p. 65-104. _______________. Introdução. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: MEC, 2005, p. 11-18. IBGE. Goiás: Campos Belos: censo demográfico 2010: resultados do universo – características da população e dos domicílios. IBGE, 2010. Disponível em: Acesso em: 05 de abril de 2014. SANTOS, Sales Augusto dos Santos. A Lei no 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: MEC, 2005, p. 21-38. SILVA, Ana Célia da. A desconstrução da discriminação no livro didático. In: MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação: Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. _______________. A representação social do negro no livro didático: o que mudou? por que mudou?. Salvador: EDUFBA, 2011. 182 p. SMITH, Alessandra Melo. Mudanças e/ ou permanências: Relações étnico-raciais no livro didático de língua Inglesa. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) Universidade de Brasília, 2013. 130 p.

P á g i n a | 69

MANEJO SANITÁRIO EM BOVINOS DE CORTE Diego Rodrigues PEREIRA ([email protected])

Dentre os diversos fatores para o sucesso na produção de gado de corte, a sanidade do rebanho é um item extremamente importante para evitar o aparecimento de doenças que possam comprometer os índices de produtividade. Esse deve ser feito através de um calendário profilático de vacinações e desverminações. As medidas de controle devem ser realizadas em função das endemias regionais, do estado sanitário do rebanho, do perfil de sistema de produção e orientação do órgão de defesa estadual. Certas vacinas são aplicadas no rebanho todo, outras são aplicadas somente em certas categorias de animais, selecionando idade e até mesmo o sexo, como é o caso das vacinações contra o carbúnculo sintomático e a brucelose. Febre aftosa é uma das enfermidades mais importantes para a pecuária brasileira por ser um fator limitante para as exportações de carne. A doença é causada por um vírus e extremamente contagiosa, acomete os animais fissípedes (cascos fendidos) causando feridas nos cascos e na boca, além de febre alta. A vacinação de caráter obrigatório obedece os calendários determinados pelos dos órgão de defesa estadual. A raiva dos herbívoros é outra doença viral, e é transmitida através da mordedura por morcegos hematófagos (alimentam-se de sangue). A vacinação é recomendada em áreas onde a doença ocorre, feita anualmente e deve ser associada à vacinação dos cães e eqüídeos. Em algumas regiões está prática está vinculada a vacinação da febre aftosa a critério dos órgãos de defesa estadual. Os principais tipos de vacinas utilizadas no Brasil são a inativada e atenuada, por apresentarem uma imunidade duradoura nos animas. Tuberculose é controlada através de um programa nacional o PNCEBT (Programa Nacional de Controle e Erradicação da Brucelose e da Tuberculose) que oferece aos criadores orientações sobre prevenção e controle. Como a vacinação tem pouca eficácia o controle é feito através do teste de tuberculinização, com uso de tuberculina PPD bovina, feita na prega caudal ou no pescoço. Os animais reagentes são isolados e sacrificados pelo serviço de inspeção oficial. Doenças da reprodução

P á g i n a | 70

Doenças da esfera reprodutiva trazem sérios danos ao pecuarista, impedindo a fecundação, causando abortos ou produzindo bezerros com peso inferior à média. As enfermidades reprodutivas podem ter origem bacteriana, virótica e parasitarias dentre elas estão: Brucelose – causada pela bactéria Brucela abortus; provoca abortos, infertilidade e retenção de placenta. O controle da doença deve ser feito através de vacinação em dose única aplicada por médico veterinário em fêmeas dos três a oito meses de idade, e marcadas com um “V” no lado esquerdo da cara, junto com o último digito do ano da vacinação; Campilobacteriose – normalmente é transmitida pelo touro contaminado na monta, causando a infertilidade temporária e morte embrionária. Os animais diagnosticados como positivos devem ser descartados do rebanho; Tricomonose – dentre seus sintomas estão: infecções pós monta, repetição de cios, morte embrionária e abortos. A principal fonte de transmissão do parasita é o touro que pode receber tratamento que muitas vezes é descartado pelo alto custo; IBR (rinotraqueíte infecciosa bovina) e BVD (diarreia viral bovina) – são viroses transmitidas através: coito, placentária, secreções, fetos abortados e fezes. A prevenção é feita através de vacinas polivalentes, aos três meses de idade, com reforço 30 dias e revacinação anual. Manejo dos bezerros

O desempenho produtivo de um rebanho e da produção de carne e carcaça começa com os cuidados com o bezerro. Como regra geral os bezerros neonatos devem receber o colostro da mãe nas primeiras oito horas de vida. O colostro além de ser rico em proteínas, minerais, enzimas, vitaminas, ter efeito antitóxico e energético, confere ao bezerro uma imunidade passiva através dos anticorpos maternos. O umbigo do neonato é uma porta de entrada para agentes infecciosos, podendo causar infecção local ou sistêmica e miíases (bicheiras), por isso o umbigo deve ser cortado em aproximadamente 4 cm e submerso por dois minutos em solução de iodo 10% ou produto similar. Em regiões onde ocorre o botulismo deve vacinar os animais aos quatro meses, repetindo após 40 dias e revacinação anual e contra paratifo ou salmonelose com 15 a 20 dias de idade.

P á g i n a | 71

As clostridioses são toxi-infecções causadas por bactérias. Dentre elas a mais importante no Brasil o carbúnculo sintomático é uma doença típica de animais jovens gera grandes prejuízos, pela alta mortalidade dos bezerros. A vacinação deve ser feita nos bezerros com quatro a seis meses de vida, revacinando seis após. Cuidados com as vacinas

Alguns cuidados importantes devem ser tomados para a correta preservação das vacinas garantindo assim toda sua qualidade na imunização: - Conservar a vacina refrigerada entre 2 a 8 ºC. Não congelar; - Observar a data de fabricação e prazo de validade; - Seguir atentamente a via de aplicação e dosagem; - Obedecer o prazo de carência para o consumo de leite e carne; - Transportar em caixa isopor com gelo, protegendo do calor e sol. Combate às verminoses

Uma das práticas mais importantes no manejo sanitário de uma produção de gado de corte trata-se dos combates aos ectoparasitas (parasitas externos) quanto os endoparasitas (parasitas internos). As parasitoses são as grandes vilãs responsáveis pela baixa produtividade da bovinocultura por prejudicarem o crescimento, e podendo levar o animal a morte. O controle deve ser estratégico dependendo do clima de cada região. Normalmente o combate é feito no período da seca, porem o criador deve saber que seu efeito só é notado a médio e longo prazo. Os endoparasitas localizam-se em diversos órgãos do animal e sugam os nutrientes debilitando e causando o emagrecimento. Para o combate dos vermes deve se usar vermífugos de largo espectro (atuam na maioria das espécies de vermes) e de longa ação, sempre que possível usando princípios ativos diferentes. Um controle estratégico para os vermes deve ser realizado no período da seca em três etapas: 1ª aplicação no inicio da seca para remover os vermes que se instalaram nas chuvas. 2ª aplicação no meio da seca que elimina os vermes que sobreviveram a aplicação anterior e a 3ª aplicação no final da seca prevenindo a contaminação no período das chuvas. Ainda pode-se fazer uma 4ª aplicação durante o período das chuvas como prevenção de combate a proliferação das larvas.

P á g i n a | 72

Os ectoparasitas se alimentam do sangue do bovino além de serem vetores de doenças como a Tristeza Parasitária Bovina entre outras. A mosca do chifre (Haematobia irritans),o carrapato (Boophilus microplus) e o berne (Dermatobia hominis) são os principais parasitas externos de importância no Brasil. O controle dos parasitas externos deve ser feita quando o animal está infestado com uso repelentes químicos “pour-on”, de pulverização ou banhos de aspersão. Uma medida que esta demonstrando resultados positivos no combate a mosca do chifre é a introdução de besouros “rola-bosta” e utilizando produtos que não os matem, pois estes destroem os bolos fecais que são verdadeiros criatórios das larvas da mosca. O estratégico controle do carrapato deve ser iniciado no início do período das chuvas, sendo importante repetir por três vezes a aplicação do produto a cada 21 dias, que e o período que compreende o ciclo reprodutivo do carrapato.

P á g i n a | 73

DISCUTINDO RAÇA/RACISMO NA SALA DE AULA DE LÍNGUA INGLESA: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA Edilson Alves de SOUZA (UEG/ Esp.) ([email protected]) Palavras-chave: Letramento Crítico, Língua Inglesa, relações de poder, raça/racismo.

O ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras e os novos e diversificados contextos educacionais atenderam as necessidades que, em seus diferentes momentos sociais e históricos, eram-lhes inerentes (OKAZAKI, 2005; COX; ASSIS-PETERSON, 2008; LIBERALI, 2009, p. 9). Assim, foram sendo desenvolvidos os processos educacionais e, dentre eles, as metodologias e técnicas viáveis e “apropriadas” para cada situação e/ou época (RICHARDS; RODGERS, 2001). Na contemporaneidade, verifica-se que o ensino deve estar conectado a busca imperativa de questionar e colocar à prova certas ideologias que constroem, hegemonicamente, hierarquias de poder por meio dos produtos discursivos da língua (PENNYCOOK, 2001; CONTRERAS, 2002; OKAZAKI, 2005; PESSOA; URZÊDA FREITAS, 2012b). Tendo em vista essa tendência, quando se trata do ensino de línguas, comumente, faz-se muita referência à utilização de técnicas/métodos variados com o fim de obter um ensino/aprendizagem que contribua para a formação crítica do alunado. Por isso, muito se critica o retardo da forma estruturalista e mecânica focalizada na gramática. Esse modelo de comportamento pedagógico, geralmente, desconsidera o uso das habilidades que conduzem a uma abordagem crítica de temas importantes na formação de um indivíduo. Ao se proceder de uma maneira diferente dessa, é visível uma prática educativa que atinge proficuamente a pessoa e a compreende como um ser que, socialmente, age e interage dentro de certos contextos ideologicamente constituídos (LIBERALI, 2009). É diante desse contexto que se verifica a possiblidade de usar as aulas de inglês para formar uma sociedade consciente do seu papel para o desenvolvimento do homem, ao invés de realizar estudos metalinguísticos centralizados na gramática. Os PCNs, ao tratarem da importância da Língua Estrangeira, afirmam que:

A aprendizagem de Língua Estrangeira no ensino fundamental não é só um exercício intelectual em aprendizagem de formas e estruturas lingüísticas em um código diferente; é, sim, uma experiência de vida, pois amplia as possibilidades de se agir discursivamente no mundo. O papel educacional da

P á g i n a | 74 Língua Estrangeira é importante, desse modo, para o desenvolvimento integral do indivíduo [...] (BRASIL, 1998, p. 38, grifos nossos).

Nessa perspectiva, tratamos a língua na concepção de Moita Lopes (1996 apud PESSOA; URZÊDA FREITAS, 2012a, p. 61), na qual, o discurso, socialmente, constrói identidades, realidades de privilégio e de inferiorização. Por isso, no contexto do ensino de línguas, é importante “fazer uso da linguagem para desconstruir e/ou reescrever esses processos que tanto afetam as sociedades contemporâneas” (PESSOA; URZÊDA FREITAS, 2012a, p. 60). A escola, assim como os variados espaços da sociedade, é um ambiente onde muitos aspectos da formação dos indivíduos são cultivados (GOMES, 2002) e deve buscar entender as ideologias que privilegiam certos valores culturais em detrimento de outros. Diante disso, percebe-se a necessidade de valer-se do ensino/aprendizagem, no caso o de língua, para formação do cidadão – que interfere e produz significados na sua realidade e na do mundo. E, dessa forma, problematizar, desconstruir e transformar, constante e criticamente, certos paradigmas de privilégio e exclusão que produzem, por sua vez, desigualdades e injustiças sociais sobre gênero, raça, etnia entre outros (MCLAREN, 1997, p. 192; FREIRE, 2011; PESSOA; URZÊDA FREITAS, 2012b, p. 146). Ou seja, é preciso entender a língua como prática social para questionar as relações de poder e ideologia disfarçadas nos discursos (PENNYCOOK, 2001; CONTRERAS, 2002). Sendo assim, a sala de aula de língua estrangeira não será apenas um ensaio da vida, mas, sim, um ambiente que “atende” as necessidades dos sujeitos na vida que se vive, pondo-a em questão (LIBERALI, 2009; PESSOA; URZÊDA FREITAS, 2012a, p. 57). A sala de aula é um lugar, no qual há troca de experiências. Segundo Herzila Maria de Lima de Bastos (2010, p. 32), muitos valores e crenças dentro da sala de língua estrangeira, podem, ideologicamente, firmar e construir certos estereótipos às pessoas e a “cada povo”. Uma pluralidade de elementos pode servir para classificar, eugenicamente, um grupo, estereotipando-o, a partir de traços genótipos, fenótipos e culturais. É interessante ressaltar que, mesmo os documentos oficiais – tal como os Temas Transversais (BRASIL, 2001) – apontando uma direção diferente, isso é uma realidade comum nas escolas. Estereótipos são caracterizações e impressões pré-concebidas para representação de alguém ou algo. Essas representações estão relacionadas ou fazem parte do processo educacional, principalmente, nos instantes em que as diferenças e a diversidade cultural deixam de ser respeitadas, ou seja, passa-se a existir os preconceitos, que tanto reprimem e atingem o âmbito escolar (CAVALLEIRO, 2001; GOMES 2001a; LOPES, 2001). Sobre

P á g i n a | 75

estes, pode-se dizer, também, que convergem e influenciam na maneira de se conceber as relações de gênero, de raça, de etnia e, também, as condições socioeconômicas dos indivíduos, tendo por base certos padrões. A raça é uma das temáticas mais vitimadas por estereótipos. Quando se fala de relações étnico-raciais é importante destacar que houve uma ampliação do quadro de discussões dentro dos ambientes sociais em geral, principalmente por parte dos professores (GOMES, 2001a; FERREIRA, 2012). No entanto, esta ampliação está bem longe de mudar o panorama atual, visto as (re)ações serem ainda insuficientes para reverter a situação discriminatória dentro da escola. Essa realidade é visível, principalmente, no Brasil, onde se nega o racismo. Entretanto, ele é mantido “presente no[s] sistemas de valores que regem o comportamento da nossa sociedade, expressando-se através das mais diversas práticas sociais” (GOMES, 2001a, p. 142). Segundo Eliane Cavalleiro (2001, p. 7), “[f]alar sobre discriminação no ambiente escolar não é realizar um discurso de lamentação. Mas dar visibilidade à discriminação de que crianças e adolescente negros8 são objetos”. Essa é uma necessidade que, no entanto, ainda é atendida pela escola com um trabalho ineficiente, especialmente, na desconstrução e reconstrução da identidade negra (GOMES, 2001a, 2002). Nessa direção, acontece a naturalização e consequente perpetuação do racismo com o auxílio daquela que deveria desvelar as máscaras, a comunidade escolar (GOMES, 2002; FERREIRA, 2012). Destarte, as aulas de língua inglesa, além de um espaço para o ensinoaprendizagem de língua, podem ser um meio de problematização das relações étnico-raciais (CONTRERAS, 2002; MOITA LOPES, 2006; PESSOA; URZÊDA-FREITAS, 2012a; FERREIRA, 2012). Nessa esteira, como forma de mostrar que essa possibilidade é viável, realizamos uma pesquisa, sobre a qual relatamos os resultados da experiência a seguir. No processo de realização, abordamos questões sobre as relações de raça a partir da implementação da Lei nº 10. 639, de 9 de janeiro de 2003; das Orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2005); e de estudos os quais debatem sobre o tema (CAVALLEIRO, 2001; GOMES, 2002; FERREIRA, 2012). Foram analisadas as percepções dos alunos do 8º ano de uma escola pública do município de Senador Canedo-GO, suscitadas por meio de debates e questionários.

8

Consideramos “negro(s)”, nesse trabalho, os “pretos e pardos”, segundo a classificação do IBGE.

P á g i n a | 76

A pesquisa foi realizada durante o segundo semestre de 2012, sendo que a maior parte das atividades se concentrou no mês de novembro – mês de efervescência do assunto por causa do dia nacional da consciência negra, celebrado em 20 de novembro. O públicoalvo dessa pesquisa foi um grupo de 31 pessoas, alunos e alunas do 8º ano de uma escola pública do município de Senador Canedo-GO. Dentre esses, 18 eram meninas e 13 eram meninos. Para tanto, foram desenvolvidas atividades, discussões e aplicado um questionário. Todos estavam fundamentados numa abordagem que proporcionasse uma experiência de Letramento Crítico, conforme as noções apresentadas acima (CERVETTI; PARDALES; DAMICO, 2001; FREIRE, 2011). As atividades se basearam na leitura de textos curtos na língua inglesa. Estes, depois de lidos e compreendidos, foram usados de forma a conhecer e a contestar os padrões sociais raça e etnia, e alimentar questionamentos e opiniões diversos por parte dos alunos e alunas, oportunizando os debates. Após as discussões foi aplicado um questionário como culminância das sessões dialógicas entre alunas e alunos e o professor durante as aulas. Dentre as indagações formuladas no questionário proposto, os/as aluno/as deveriam responder: “Em sua opinião, existe racismo hoje? Por quê?”. Todos, unanimemente, disseram que sim, ressalvando posicionamentos bastante ricos. Vejamos:

Aluno/a 1: Sim, por que até hoje tem gente que ainda se acha melhor que o outro, que ainda se acha diferente de todos. Racismo pela cor, pelo peso e pela classe social. Aluno/a 2: Sim, por que as pessoas ainda não tem a capacidade de raciocinar e ver que cor não faz diferença nas atitudes. Aluno/a 3: Sim, existe. Por que algumas pessoas não tem a noção do que é racismo. Elas não sabem que isso pode ofender as pessoas. Aluno/a 4: Sim, infelizmente, isso ainda não acabou. [...] Pelo menos hoje têm as lei[s] para a defesa do discriminado.

Estes/as alunos/as, conforme vemos na transcrição acima, estão cientes da permanente divisão das pessoas causada por meio da cultura de raça ou de criar raças – o que também causa o racismo. O termo raça é utilizado com frequência nas relações sociais brasileiras, para informar como determinadas características físicas, como cor da pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira (BRASIL, 2005, p.13, grifos nossos). A raça, como se vê, está intimamente ligada com o “lugar social dos sujeitos”, o que é convergente com a ideia de que não houve políticas de inserção do negro – “jogado à

P á g i n a | 77

liberdade” pela Lei Áurea – na sociedade (VALENTE, 1987, p. 22-23). O negro não foi e não é tratado como um contribuinte para construção do desenvolvimento étnico, cultural e econômico do Brasil e do Mundo (VALENTE, 1987). Essa situação manteve e mantém o negro à margem das oportunidades de ascensão que, consequentemente, alimentou a veiculação de discursos de inferioridade do negro (VALENTE, 1987). Por isso, “hoje tem gente que ainda se acha melhor que o outro”, como bem discute o/a Aluno/a 1. Nessa direção, vemos o racismo produzir outros preconceitos, como, por exemplo, os relacionados à “classe social”, além de verificar que os racistas são “pessoas [que] não tem a noção do que é racismo”, isto é, não tem noção do mal que causam, como afirma o/a Aluno/a 3. É importante destacar que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos na Constituição Federal do Brasil, de acordo com o exposto no artigo 3º é: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 2011a, p. 20, grifos nossos).

Mas, o que se verifica, depois de mais de 20 anos da Constituição, é que o cumprimento dessa lei não atinge a todas as pessoas, como deveria ser. Essas são algumas das inúmeras falhas da concretização de políticas que, por não serem cumpridas e “nem existirem” instrumentos para sua real efetivação, geram mais problemas sociais, como os preconceitos, infelizmente, comuns relacionados à raça e também ao sexo. Indubitavelmente, a “[...] raça está sempre presente em todas as configurações sociais de nossas vidas” (LADSON-BILLINGS 1998 apud FERREIRA, 2012, p. 42) mesmo que alguns, conscientemente, façam de conta que isso não existe (VALENTE, 1987, p. 6; LOPES, 2001). É principalmente nesse tipo de situação que a escola deve interferir, propondo alternativas e reflexões críticas, transformando os discursos e, por conseguinte, a visão de mundo do alunado e, numa amplitude maior, da sociedade (GOMES, 2001a, 2001b, 2002; LOPES, 2001; FREIRE, 2011). Perante o exposto, pudemos compreender a busca, tão necessária, de se construir novas formas de pensar o ensino da língua estrangeira, no caso o inglês. Esses novos pensamentos estão circundados, é claro, com a ação de também repensar o papel da escola quando trata problemas sociais, tal como o das questões étnico-raciais (GOMES, 2001a,

P á g i n a | 78

2001b). Como se percebeu nos relatos, foi e é possível construir diálogos dentro da sala de aula sobre temas críticos tão importantes quanto raça/racismo na sociedade. No entanto, verifica-se, igualmente, que é preciso deixar mais claro e concreto qual deve ser o vínculo entre a escola e a vida do educando. Um dos passos é propor discussões que circundam o contexto e se aproximem da atuação social dos alunos e sua visão de mundo (LIBERALI, 2009), como se verifica nesse breve estudo. Este é um aspecto educacional bastante basilar – a contextualização do ensino – que é complementada com a orientação de Paulo Freire (2011) que podemos encontrar no livro Pedagogia da autonomia. Neste, vemos a apresentação da Educação com um novo olhar, o da educação vista, não apenas como um ambiente que se passa conteúdo, mas, como uma forma de intervir no mundo. Para tanto, usamos as aulas de língua inglesa como um espaço propício para debates como “formas de ensinar pautadas por uma reflexão sobre a vida” (LIBERALI, 2009, p. 12), mostrando a responsabilidade que há em usar o discurso em favor da construção de uma humanidade melhor. REFERÊNCIAS: BASTOS, Herzila Maria de Lima de. Identidade cultural e o ensino de línguas estrangeiras no Brasil. In: PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e (Org.). Ensino de língua inglesa: reflexões e experiências. 4. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2010. BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental: Temas Transversais. Brasília: MEC/SEF, 2001. ______. Lei Federal nº 10. 639, de janeiro de 2003. Ensino sobre história e Cultura AfroBrasileira. MEC – Ministério da Educação, Brasília, 2003. ______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de Histórica e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Secretaria Especial de Política de Promoção de Igualdade Racial, MEC – Ministério da Educação, 2005. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. 12. ed. Belo Horizonte: Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 2011a. ______. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Brasília: Centro de Documentação e Informação/ Coordenação Edições Câmara, 2011b. CERVETTI, G.; PARDALES, M. J.; DAMICO, J. S. A tale of differences: comparing the traditions, perspectives and educational goals of critical reading and critical literacy. Reading Online, v. 4, n. 9, 2001. Disponível em: <

P á g i n a | 79

http://www.readingonline.org/articles/art_index.asp?HREF=/articles/cervetti/index.html Acesso em: 19 maio 2013

>.

CAVALLEIRO, Eliane (Org.). Racismo e anti-racismo na educação: repensando a escola. 3. ed. São Paulo: Selo Negro, 2001 CONTRERAS, J. Contradições e contrariedades: do profissional reflexivo ao intelectual crítico. In: ______. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002. p. 133-188. COX, Maria Inês Pagliarini; ASSIS-PETERSON, Ana Antônia. O drama do ensino de inglês na escola pública brasileira. In: ASSIS-PETERSON, Ana Antônia. (Org.). Línguas estrangeiras: para além do método. Cuiabá: 2008. p. 19-54. FERREIRA, Aparecida de Jesus. Identidades sociais de raça/etnia na sala de aula de língua inglesa. In: ______. Identidades sociais de raça, etnia, gênero e sexualidade: práticas pedagógicas em sala de aula de línguas e formação de professores/as. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012. p. 19-50. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011. GOMES, Nilma Lino. Educação e relações sociais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília: MEC – Ministério da Educação, secretaria de educação Fundamental, 2001a. p. 137-150. ______. Educação cidadã, etnia e raça: o trato pedagógico da diversidade. In: CAVALLEIRO, Eliane (Org.). Racismo e anti-racismo na educação: repensando a escola. 3. ed. São Paulo: Selo Negro, 2001b. p. 83-96. ______. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? In: Revista Brasileira de Educação. Belo Horizonte, 2002, n. 21, p. 40-51, Set/Out/Nov/Dez. LIBERALI, Fernanda Coelho. Atividade social nas aulas de língua estrangeira. São Paulo: Moderna, 2009. LOPES, Véra Neusa. Racismo, preconceito e discriminação. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília: MEC – Ministério da Educação, secretaria de educação Fundamental, 2001. p. 137-150. MCLAREN, Peter. A vida nas escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos fundamentos da educação. 2. ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 1997. MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Lingüística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que tem orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da. (Org.). Por uma lingüística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 85-107. OKAZAKI, Takayuki. Critical consciousness and critical language teaching. Second Language Studies, Mãnoa, v. 23, n. 2, p. 174-202, Spring 2005. Disponível em:

P á g i n a | 80

http://www.hawaii.edu/sls/sls/wp-content/uploads/2011/06/10-Okazaki-Taka.pdf. Acesso em: 06 dez. 2012. PENNYCOOK, Alastair. Critical applied linguistics: a critical introduction. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 2001. PESSOA, Rosane Rocha; URZÊDA FREITAS, Marco Túlio de. Ensino crítico de línguas estrangeiras. In: FIGueiredo, Francisco José Quaresma de (Org.). Formação de professores de línguas estrangeiras: princípios e práticas. Goiânia: Editora da UFG, 2012a. p. 57-80. ______. Gênero, sexualidade e ensino crítico de línguas estrangeiras: intersecções com a formação de professores/as. In: FERREIRA, Aparecida de Jesus. Identidades sociais de raça, etnia, gênero e sexualidade: práticas pedagógicas em sala de aula de línguas e formação de professores/as. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012b. RICHARDS, Jack C.; RODGERS, Theodore S. The natural approach. In: ______. Approaches and methods in language teaching. 2. ed. New York: Cambridge University Press, 2001. VALENTE, Ana Lúcia E. F. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo: Moderna, 1997.

P á g i n a | 81

ANÁLISE DA METODOLOGIA DE ENSINO DE INGLÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA NA REDE PÚBLICA DE ENSINO DO SUDESTE DO TOCANTINS Edilson Alves de SOUZA (UEG/Esp.) ([email protected]) Luciano Alves FEITOSA (UEG) ([email protected])

Palavras-chave: Língua Inglesa, Ensino de ILE, Metodologia de ensino, ensinoaprendizagem.

Sabe-se, perante a história do ensino de língua inglesa (LI) no mundo, que as metodologias permanecem em constante transformação, obedecendo, de certa forma, às necessidade educacionais de cada época (LEFFA, 1999; RICHARDS; RODGERS, 1992). Dentro do contexto histórico brasileiro do ensino de língua estrangeira (LE), o processo de desenvolvimento metodológico não foi diferente e, infelizmente, demonstrou-se como uma trajetória decadente, principalmente, no que diz respeito à valorização do ensino e da aprendizagem da LE, como assegura Vilson José Leffa (1999). Contudo, ante a decadência, indubitavelmente, na atualidade, há no Brasil mais pessoas falando inglês do que em épocas passadas. Sobre essa questão, é importante considerar que a democratização do ensino e a comercialização do idioma – representado pelo aumento considerável da criação de escolas de línguas – influenciaram tal resultado. Diante desse quadro, o que suscita preocupação é o retardo e a falta de atualização do ensino da LI em comparação com outros países e com o que é exigido pelas novas necessidades da globalização do mundo contemporâneo. No Brasil, não faltam argumentos que reforcem a visão de que o inglês é importante e abre janelas para um mundo de oportunidades. A língua inglesa está presente na tecnologia, nos meios de comunicação, na oportunidade de emprego dentro ou fora do país e em todo o cotidiano. No que concerne à situação do inglês como língua estrangeira hegemônica, os PCN’s de LE (1998, p. 39-40, grifos nossos) sustentam que:

A posição do inglês nos campos dos negócios, da cultura popular e das relações acadêmicas internacionais coloca-o como a língua do poder econômico e dos interesses de classes, constituindo-se em possível ameaça para outras línguas e em guardião de posições de prestígio na sociedade.

P á g i n a | 82

Levando em conta essas considerações, é importante destacar que faz parte da rotina escolar ter o entendimento de que, quem fala inglês, desfruta de prestígio nas várias áreas da sociedade. Do mesmo modo, tornou-se uma espécie de clichê afirmar que não aprender inglês é sinônimo de insucesso. Não obstante tais ponderações fazerem parte do âmbito escolar, podemos dizer que elas são discrepantes da realidade, uma vez que o discurso não corresponde com a prática, ou seja, é comum alunos se formarem sem o domínio básico da LI. Como se observa no English Proficiency Index (Índice de Proficiência em Inglês) da Education First (2013), lentamente, o Brasil tem melhorado os seus índices de proficiência. Mesmo assim, percebe-se que o Brasil é um dos países que possuem problemas no ensino e na aprendizagem da LI, figurando entre aqueles que apresentam baixa proficiência. A dificuldade de lidar com a LE no contexto da prática pedagógica tem causado graves problemas, desde a escolaridade básica até as universidades, gerando, numa escala preocupante, a insuficiência de falantes fluentes da LI, até mesmo entre os profissionais que a ensinam. Ao longo dos anos, muito se tem discutido sobre o fracasso do ensino brasileiro de idiomas (LIMA, 2011). Apesar disso, tal realidade pouco mudou, posto que foram irrisórias as ações de mudança efetiva desse quadro que, gradualmente, vem agravando. Em outras palavras, podemos afirmar que os problemas são muitos e as soluções permanecem timidamente em um estado de invisibilidade negligente. É verdade que as especulações realizadas sobre essa situação resultam em uma espécie de jogo, no qual não se encontra uma saída. Por esse motivo, enquanto não se toma decisões apropriadas, os resultados do ensino revelam a imaturidade pedagógica, política e cultural. A respeito desse assunto, Leffa (2011) destaca que procuramos criar “bodes expiatórios”, os quais alegorizam a responsabilização do fracasso. Dessa forma, os “bodes” são o aluno, o professor, o governo, o que demonstra uma preocupação maior em separar inocentes e culpados do que buscar soluções para os problemas, ficando, nessa direção, a aprendizagem de LE em segundo plano. Por outro lado, de acordo com Leffa (2011, p. 16), é gerado, igualmente, um estado de carnavalização, no qual prevalece o “domínio do mundo sem culpa, em que administradores, professores e alunos circulam impunemente da ordem para a desordem e vice-versa. Nada é feito, e tudo fica por isso mesmo”. Ao citar essa problemática, o pesquisador nos passa a ideia de que no ensino de línguas, ao invés de procurarmos um culpado pelo fracasso, devemos nos preocupar em propor soluções para acabar com o insucesso. Enquanto a sociedade, como praxe, foge ou

P á g i n a | 83

esconde-se dos problemas, o malogro na aprendizagem de LE é bem visível dentro da realidade brasileira. O contexto atual do ensino de Inglês como uma LE e o constante descrédito atribuído a ele em escolas públicas têm levantado questionamentos sobre a prática pedagógica dos professores em sala de aula. Tal problemática mobiliza a existência do presente trabalho, que busca focar a prática educativa, evidenciando suas necessidades e apontando possibilidades de solução. Para tanto, nosso trabalho, que é fruto de uma pesquisa ainda em andamento, está organizado em dois momentos: pesquisa teórica e pesquisa de campo. A primeira intenta mostrar os métodos é técnicas existentes para o ensino de Língua Inglesa, retomando-os diacronicamente. A segunda tem como intuito constatar e ponderar, por meio de questionários direcionados aos professores, as metodologias para o ensino de Inglês usadas na Educação Básica e, por conseguinte, a sua influência no processo de ensino-aprendizagem. Um dos questionamentos iniciais para os professores diz respeito ao que eles pensam sobre as pesquisas que expõem a situação atual do ensino de línguas no Brasil e como se posicionam frente aos desafios que emergem. Optamos por estudar a metodologia dos docentes de LI, seguindo a sugestão de pesquisadores como Leffa (2011) e Siqueira (2011), que atribuem ao professor um significativo papel no processo de mudança do quadro crítico do ensino de línguas no Brasil. Destarte, para este trabalho que tem como objeto de estudo as escolhas metodológicas de professores, selecionamos, como recorte, a rede pública de ensino de uma cidade no sudeste do Tocantins. A partir dos dados coletados e das considerações feitas pelos participantes da pesquisa, buscaremos apresentar caminhos possíveis para o ensino de LI.

REFERÊNCIAS: BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. Brasília: MEC/SEF, 1998. EF English Proficiency Index. 2013. Disponível em: http://www.ef.com.br/__/~/media/efcom/epi/2014/full-reports/ef-epi-2013-report-br.pdf. Acesso: 20 set. 2014. LEFFA, Vilson J. O ensino de línguas estrangeiras no contexto nacional. Contexturas, APLIESP, n. 4, p. 13-24, 1999. Disponível em: http://www.leffa.pro.br/textos/trabalhos/oensle.pdf. Acesso em: 20 set. 2014.

P á g i n a | 84

______. Criação de bodes, carnavalização e cumplicidade: considerações sobre o fracasso da LE na escola pública. In: LIMA, Diógenes Cândido de (Org.). INGLÊS em escolas públicas não funciona?: uma questão, múltiplos olhares. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. LIMA, Diógenes Cândido de (Org.). INGLÊS em escolas públicas não funciona?: uma questão, múltiplos olhares. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. RICHARDS, Jack C.; RODGERS, Theodore S. Approaches and Methods in Language Teaching: A description and analysis. Cambridge: Cambridge Language Teaching Library, 1992. SIQUEIRA, Sávio. O ensino de inglês na escola pública: do professor postiço ao professor mudo, chegando ao professor crítico-reflexivo. In: LIMA, Diógenes Cândido de (Org.). INGLÊS em escolas públicas não funciona?: uma questão, múltiplos olhares. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.

P á g i n a | 85

“QUEM AMA O FEIO BONITO LHE PARECE”: O CICLO DO NOIVO ANIMAL NAS NARRATIVAS FEÉRICAS DE A BELA E A FERA, DE JEANNE-MARIE LEPRINCE DE BEAUMONT; A DAMA E O LEÃO, O REI SAPO E HANS, O OURIÇO DOS IRMÃOS GRIMM; E ENTRE AS FOLHAS DO VERDE O, DE MARINA COLASANTI Edilson Alves de SOUZA (UEG/Esp.) ([email protected]) Vanessa Gomes FRANCA (UEG/Dra.) ([email protected]) Bruna do Nascimento SANTOS (UEG) ([email protected])

Palavras-chave: Ciclo do noivo animal, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, Irmãos Grimm, Marina Colasanti.

Os contos de fadas alcançam diversos tipos de públicos. Mesmo assim, ainda é comum ouvirmos que tais narrativas são destinadas apenas ao público infantil, o que não é verdade, pois elas “percorrem amplamente pelo sentimento de cada leitor, invadindo universos indizíveis, mas repletos de significação” (CAVALCANTI, 2004, p. 45). É por essa razão que o conto de fadas “[...] é um dos gêneros literários mais admirados tanto por crianças como por adultos” (FRANCA; SOUZA; DIAS, FARIAS, 2009, p. 75), visto que ele desvela o ser humano. As narrativas feéricas são histórias oriundas da tradição oral, sendo, desse modo, impossível definir, claramente, em qual momento elas teriam surgido. No que concerne a esse assunto, Nelly Novaes Coelho (1998, p. 16-17, grifo da autora) salienta que pesquisadores, ao tentarem descobrir a gênese dos contos de fadas, constataram que os vestígios ancestrais dessas narrativas nos levam a períodos antes de Cristo, tendo origens orientais e célticas que “[...] a partir da Idade Média, foram assimiladas por textos de fontes europeias. A despeito das muitas pesquisas desenvolvidas, foi impossível determinar quais teriam sido os textos matrizes ‘puros’, tal amálgama de fontes que se fundiam nas narrativas recolhidas”. Tal amálgama ocorreu, provavelmente, devido ao fato de essas histórias serem contadas e recontadas pelo povo, sendo “[...] adaptadas em cada região e a cada geração, de forma que suas características básicas sempre existissem e fossem ajustadas somente em seus detalhes” (KRAEMER, 2008, p. 6).

P á g i n a | 86

Devido à existência dessas características básicas, Vladimir Propp apresenta, em seu livro Morfologia do conto maravilhoso, publicado em 1928, a estrutura narrativa que compõe os contos de fadas, evidenciando suas variantes e invariantes. Para desenvolver seu estudo, o pesquisador russo não realiza sua análise tendo como base a observação das diferentes personagens que compõe a efabulação. Ele a efetiva a partir “[...] das ações das personagens, e nelas se fundamenta para definir a especificidade do conto popular maravilhoso como gênero. E por essa via tenta chegar à possível explicação histórica de sua uniformidade em todas as regiões do mundo” (COELHO, 2003, p. 110). De acordo com Propp (2001, p. 19-36), após a situação inicial, as personagens de tais contos (o herói, o antagonista (ou agressor), o doador, o auxiliar, a princesa (ou seu pai), o mandante e o falso herói) vivenciam as seguintes situações: afastamento; proibição; transgressão; interrogatório; informação; ardil; cumplicidade; dano; carência; mediação; início da reação; partida; primeira função do doador; reação do herói; fornecimento - recepção do meio mágico; deslocamento no espaço entre dois reinos, viagem com um guia; combate; marca, estigma; vitória; reparação de dano ou carência; regresso; perseguição; salvamento, resgate; chegada incógnito; pretensões infundadas; tarefa difícil; realização; reconhecimento; desmascaramento; transfiguração; castigo, punição; casamento. Além das funções citadas por Propp, há ainda nas narrativas feéricas há presença do ciclo do “noivo-animal” ou “marido-animal”, também conhecido como “noiva-animal”. De acordo com Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso (2006, p. 129), os textos que apresentam tal ciclo são aqueles

em que os percalços da relação começam por haver algo de repulsivo, animalesco ou indomado em um dos membros do casal – geralmente no homem. Na maioria das vezes, o aspecto terrível deve-se a algum feitiço que o amor finalmente vencerá, porém antes esse sentimento terá de se provar como algo maior que a atração física, deverá transcender as aparências.

Diversas narrativas apresentam o ciclo do/a noivo/noiva animal. Por esse motivo elegemos tal tema para a composição do nosso trabalho. Ademais, corroborou nossa escolha o fato de esse objeto de estudo, apesar de sua relevância, ainda ser pouco explorado. Desse modo, para a efetivação de nossa pesquisa, inicialmente, procedemos ao levantamento de referências acerca do assunto tratado. Em seguida, realizamos as leituras iniciais e fichamentos das obras literárias e crítico-literárias que farão parte do nosso estudo. Selecionamos como corpus de análise os textos: A Bela e a Fera, de Jeanne-Marie Leprince

P á g i n a | 87

de Beaumont; “A Dama e o Leão”, “O Rei Sapo” e “Hans, o Ouriço”, dos irmãos Grimm; e “Entre as folhas do Verde O”, de Marina Colasanti. Sobre as narrativas que apresentam o ciclo do/a noivo/noiva animal, Bruno Bettelheim (1980, p. 298), pondera que nelas há três características peculiares, quais sejam: Em primeiro lugar não se sabe “como” nem “porquê” o noivo foi transformado em animal, embora na maioria dos contos de fadas seja costume fornecer informações a esse respeito. Em segundo lugar, é uma feiticeira quem efetua a transformação. Em terceiro, é o pai quem faz a heroína unir-se a fera; a filha o faz por amor ou obediência ao pai; abertamente a mãe não tem papel significativo.

Em todas as narrativas selecionadas, constatamos que um dos consortes se encontra em estado “animalesco”. Nos contos de fadas de Jeane-Marie Leprince de Beaumont e os dos irmãos Grimm, anteriormente citados, verificamos que a personagem a qual se encontra em estado animalesco é a figura masculina. Já no texto de Marina Colasanti, quem apresenta a figura animalesca é a personagem feminina, ou seja, a noiva-animal. Em A Bela e a Fera, uma das narrativas mais lembradas sobre esse assunto, temos a história de um uma jovem que por ser tão bonita e meiga é chamada de Bela. Seu pai, um comerciante, vai até a cidade e pergunta para suas três filhas o que elas queriam que ele trouxesse da viagem, suas irmãs só se preocupam com joias e vestidos, enquanto Bela pede uma rosa. No caminho de volta, o pai de Bela vê uma rosa em um jardim de um castelo e a colhe. Fera, dona do castelo, aparece e o informa que só o perdoaria, caso outra pessoa pagasse a dívida no lugar dele. Dessa maneira, ao saber o que aconteceu, Bela decide ficar no lugar de seu pai, passando a morar com a Fera. A partir da convivência, Bela e Fera se aproximam e a repulsa inicial que ela sente por ele se transforma em amor. Em consequência disso, a aparência monstruosa e repugnante de Fera já não significa nada. O amor de Bela quebra o feitiço sofrido por Fera, libertando-o da metamorfose e dando-lhe de volta sua aparência humana de príncipe. O texto finaliza com o casamento das personagens, que vivem felizes para sempre. Em “A dama e o Leão”, um pai de três filhas vai viajar e pergunta a elas o que querem. A mais nova pede ao pai uma cotovia cantante e saltitante as outras jovens pedem joias e pérolas preciosas. Por causa do pedido da filha mais nova, o pai invade o jardim do Leão que o surpreende e o deixa ir embora com uma condição: dar ao Leão a primeira coisa que ele encontrasse quando chegasse em casa. Para a tristeza do pai, a filha mais nova foi a primeira que ele encontrou. Assim, ela parte para encontrar o Leão que, na realidade, era um

P á g i n a | 88

príncipe encantado. Ele e toda a sua Corte, durante o dia, eram leões. Durante a noite, eles assumiam suas formas humanas. A moça e o príncipe se casam e vivem felizes. No entanto, ele sofre outra metamorfose, transformando-se em pombo. Eles passam por diversas provações e, ao final da narrativa, com o tempo e a com bondade da jovem, o príncipe Leão retoma a sua forma humana. No conto “Hans, o ouriço”, dos Grimm, temos a história de um camponês que desejava ter um filho, não importava como ele fosse. No entanto, Hans é rejeitado por seus pais, visto ele ter nascido metade homem metade ouriço. Por causa da rejeição, Hans sai de sua casa e vai morar na floresta. Ali tem a oportunidade de ajudar alguns reis a sobreviverem e um deles lhe promete o recompensar com a primeira coisa que encontrasse ao chegar em sua casa. Como na história de “A dama e o Leão”, a primeira coisa que o rei vê é sua filha. Esta, assim como Bela, está disposta a se sacrificar para cumprir a palavra do pai, não se importando com a aparência de Hans. Dessa forma, eles se casam e, nas núpcias, o ouriço se transforma em um belo rapaz. O conto “O Rei Sapo”, como nas histórias anteriores, apresenta a personagem masculina metamorfoseada. Em tal narrativa, a princesa estava brincando com sua bola de ouro e a deixa cair no poço. Com o intuito de recuperar sua bola, a princesa faz um acordo com um sapo. Ela seria sua amiga e até dividiria seu pratinho de ouro com ele, caso conseguisse recuperar aquele objeto. O sapo consegue pegar a bola, mas a princesa vai embora e não cumpre a promessa. Então, o sapo a segue e cobra o que ela havia prometido. O rei, ao saber que a filha havida dado sua palavra, faz com que ela a cumpra. A princesa sente repulsa por aquele ser e, quando fica sozinha com ele, joga-o na parede. “Mas quando ele caiu, já não era mas um sapo, mas um príncipe de belos olhos carinhosos. Agora ele ficou sendo, pela vontade do pai da princesa, seu companheiro amado e esposo. E ele contou-lhe, na mesma hora, que tinha sido enfeitiçado por uma bruxa malvada” (GRIMM, 1989, p. 12). Aqui percebemos que não ocorre a famosa cena em que a princesa beija o sapo. A respeito da transformação ocorrida nesse conto, Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso (2006, p. 130), salientam que “[a] possibilidade de um sapo virar príncipe é um bom argumento para o fato de que as aparências não devem ser impedimento para uma relação”. No texto “Entre as Folhas do Verde O”, de Marina Colasanti, encontramos a história de um príncipe que, em um belo dia, durante as suas caçadas se deparou com uma mulher-corça. A mulher, que era linda, ele amou. No entanto, a corça ele desejou matar. Foi assim que ele acertou com uma de suas flechas a pata direita da mulher-corça, levando-a para seu castelo. O casal, que havia se apaixonado à primeira vista, não conseguia se entender, pois

P á g i n a | 89

um não sabia falar a língua do outo. Em seus silêncios, cada um desejava fazer do outro parte de seu mundo. Assim, o príncipe chama o feiticeiro e o pede que a transforme completamente em mulher. Quando se vê transformada, a corça fica triste e foge para a floresta. Lá, procura a Rainha das corças e sai “da floresta, só corça, não mais mulher. E se [põe] a pastar sob as janelas do palácio” (COLASANTI, 1999, p. 40). Consoante averiguamos, nos textos A Bela e a Fera, de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont; “A Dama e o Leão”, “Hans, o Ouriço” e “O Rei Sapo”, dos irmãos Grimm, os quais pertencem a temática da jovem que é forçada a se unir a um noivo animal, a figura do pai tem papel importante para o desenrolar da história. Nos três primeiros, o pai é o responsável pelo noivado da filha, pois é ele quem a promete ao noivo-animal. No último, é a princesa quem dá a palavra. No entanto, ao tentar não cumpri-la, o rei a lembra da importância de se realizar o que foi prometido. Somente no conto colasantiano não há a presença do pai. Ao ler os contos A Bela e a Fera, “A Dama e o Leão”, “Hans, o Ouriço” e “O Rei Sapo”, verificamos também que não ocorre o amor “a primeira vista”. Sobre esse assunto, Diana Corso e Mário Corso (2006, p. 129) sustentam que “[...] há um lapso de tempo entre o momento em que o príncipe e a princesa se olham e se apaixonam e aquele em que enfim ficam a sós no leito nupcial”. Inicialmente, o sentimento das jovens é o de resignação, já que o pai empenhou a palavra, ou o de repulsa pelo estado animalesco do consorte. Para que esse estado seja quebrado, a princesa deve se apaixonar, deve amar as qualidades do seu noivoanimal tal como ele é/está. A partir da convivência do casal, nasce o amor verdadeiro e esse é capaz de quebrar o feitiço que se encontra o noivo-animal. Devido ao enredo apresentado por tais histórias, elas podem ser vistas como “[...] um conto de conquista do amor e da humanidade. Afinal, também não se nasce homem, torna-se um” (CORSO; CORSO, 2006, p. 139). No conto de Marina Colasanti, temos o amor “a primeira vista”. O príncipe, ao avistar a mulher-corça (noiva-animal), apaixona-se por ela. A partir da convivência, ela também passa a amá-lo. Não obstante se “amarem”, eles não aceitam a aparência física do outro, posto que:

Ele queria dizer que a amava tanto, que queria casar com ela e tê-la para sempre no castelo, que a cobriria de roupas e joias, que chamaria o melhor feiticeiro do reino para fazê-la virar toda mulher. Ela queria dizer que o amava tanto, que queria casar com ele e levá-lo para a floresta, que lhe ensinaria a gostar dos pássaros e das flores e que pediria à

P á g i n a | 90 Rainha das Corças para dar-lhe quatro patas ágeis e um belo pêlo castanho (COLASANTI, 1999, p. 21-22).

No entanto, como um não entende o outro, pois falam línguas diferentes, não conseguem se comunicar. Assim, uma vez transformada em mulher, a jovem não consegue se adaptar aquele estilo de vida e, quando consegue dar alguns passos, foge para a floresta. Ali, pede para que a Rainha das corças faça novo encantamento, saindo da floresta totalmente corça. É importante observarmos que, diferentemente do que ocorre nas outras narrativas em que o traço animalesco é causado por algum feitiço, a mulher-corça, inicialmente, não se encontra sob o efeito de nenhum encanto. Ela é uma mulher-corça e vivia feliz com sua aparência. Por não aceitarem suas essências, o príncipe e a mulher-corça acabam se separando e o amor verdadeiro não se realiza. Pelo exposto, tentamos evidenciar nos contos selecionados algumas características das narrativas que apresentam o ciclo do noivo-animal ou da noiva-animal. A partir das leituras realizadas, percebemos que o amor, quando é verdadeiro, não tenta transformar o consorte, posto que o aceita como ele é, não importando sua aparência. É justamente por esse motivo que nosso trabalho se intitula: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”, pois quem ama, ama a essência e o aspecto físico.

REFERÊNCIAS: BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. CAVALCANTI, Joana. Caminhos da literatura infantil e juvenil: dinâmicas e vivências na ação pedagógica. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004. (Pedagogia e educação). COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. 3. ed. São Paulo: Ática, 1998. ______. O conto de fadas: símbolos mitos arquétipos. São Paulo: DCL, 2003. COLASANTI, Marina. Entre as folhas do verde O. ______. In: Uma ideia toda azul. 20. ed. São Paulo: Global, 1999. p. 20-22. CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006. FRANCA, Vanessa Gomes; SOUZA, Edilson Alves de; DIAS, Luciana Santos Barbosa; FARIAS, Vanderléia dos Santos. A literatura infantil e juvenil brasileira: um estudo dos contos de fadas de Marina Colasanti. In: CAMARGO, Flávio Pereira; FRANCA, Vanessa Gomes (Org.). Estudos sobre literatura e linguística: pesquisa e ensino. São Carlos: Claraluz, 2009. p. 75-104.

P á g i n a | 91

GRIMM, Jacob. Os contos de Grimm. Tradução de Tatiana Belinky. 6. ed. São Paulo: Paulus, 1989. KRAEMER, Maria Luiza. Histórias infantis e o lúdico encantam as crianças: atividades lúdicas baseadas em clássicos da literatura infantil. Campinas, SP: Autores Associados, 2008. (Formação de professores). LEPRINCE DE BEAUMONT, Jeanne-Marie. A Bela e a Fera e outros contos de fadas. Tradução e apresentação de Renata Cordeiro. São Paulo: Princípio, 2007. PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: CopyMarket.com, 2001.

P á g i n a | 92

IMAGENS SIMBÓLICAS EM A BOLSA AMARELA, DE LYGIA BOJUNGA E ANA Z. AONDE VAI VOCÊ, DE MARINA COLASANTI Edilson Alves de SOUZA (UEG/Esp.) ([email protected]) Vanessa Gomes FRANCA (UEG/Dra.) ([email protected]) Edilene Santos de JESUS (UEG) ([email protected])

Palavras-chave: Lygia Bojunga, Marina Colasanti, A bolsa amarela, Ana Z. aonde vai você?, Imagens simbólicas.

O símbolo, assim como a alegoria, é a recondução do sensível, do figurado, ao significado; mas, além disso, pela própria natureza do significado, é inacessível, é epifania, ou seja, aparição do indizível, pelo e no significante. Gilbert Durand

As construções simbólicas são uma realidade constante dentro dos mais variados campos da vida humana, manifestando-se de diversas maneiras e em níveis diferentes, pois se trata de algo que é “consubstancial ao ser humano” (ELIADE, 1996, p. 8). A literatura é portadora da expressão do signo das experiências humanas e, como tal, é, de igual forma, um repositório dos símbolos criados, individual ou coletivamente, pelo próprio homem. Nessa direção, concebem-se os produtos da atividade poética como espaços significantes de representação do símbolo, como é perceptível na Literatura infantil e juvenil. Ante a atividade analógica, representacional e interpretativa dos contextos, o símbolo é entendido como um meio de transcender uma realidade convencional. Conforme Carl G. Jung (1964, p. 55), seja material ou mesmo uma construção abstrata, “o símbolo significa sempre mais do que o seu significado imediato e óbvio”. Ainda para o estudioso suíço, o símbolo – variado em forma e expressão – abrange, oculta e, igualmente, desvela os significados importantes e latentes sobre a vida do homem (JUNG, 1964). A literatura vai ao encontro desse fenômeno com ou sem intencionalidade. Na verdade, há uma introjeção, por meio das imagens e metáforas, entre aquele que lê uma obra literária e aquilo que é lido e, nessa relação os sentidos, o símbolos são instituídos com base no referencial da cada indivíduo. Segundo Ana Rosa Cândido (2003, p. 17), na “literatura, a linguagem que se enriquece com imagens simbólicas permite diversos níveis de leituras das apenas superficiais às mais profundas, de acordo com o conhecimento de mundo de leitor”.

P á g i n a | 93

Esses movimentos são muito comuns na literatura infantil e juvenil, pois “há uma relação essencial entre as invariantes que estruturam” esse tipo de literatura “[...] e as exigências básicas que a vida faz a cada um de nós, para que nos realizemos plenamente como indivíduos e seres sociais” (COELHO, 2009, p. 116, grifos da autora). Isso é perceptível nas obras de Marina Colasanti e de Lygia Bojunga, autoras de inegável destaque no cenário da literatura infantil e juvenil brasileira. Com o lançamento de Eu sozinha, em 1968, Marina Colasanti estreia na literatura brasileira. Desde a sua primeira experiência de publicação literária, Colasanti produziu dezenas de livros com um gama variada de gêneros, dentre os quais somam contos e minicontos, novela juvenil, crônicas, poemas, ensaios e contos de fadas. A qualidade de seus textos fez com que ela ganhasse diversos prêmios, tais como: o prêmio Melhor para o Jovem, da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), em 1979, por Uma ideia toda azul, em 1993, por Entre a espada e a rosa, em 1994, por Ana Z, aonde vai você ?, em 2001, por Penélope manda lembranças, em 2002, por A casa das palavra e em 2010, por Com certeza tenho amor; o Prêmio Jabuti – Melhor Livro Infantil ou Juvenil – pela Câmara Brasileira do Livro, em 1993, por Entre a espada e a rosa; o prêmio Altamente Recomendável para Jovens, da FNLIJ, em 1982, por Doze reis e a moça no labirinto do vento, em 1998, por Longe como meu querer. As obras colasantianas são marcadas por uma sensibilidade peculiar nas palavras e também pela leitura multifacetada (SILVA, 2003). Na verdade, percebe-se que suas obras são carregadas de simbolismo, de sorte a fazer com que o leitor adentre no processo imaginativo e se recorde ou experimente personagens comum às narrativas feéricas, bíblicas e míticas (FRANCA, 2003). Lygia Bojunga publica sua primeira obra, intitulada Os colegas, em 1972. A partir de então, lança vinte e duas obras, as quais trazem temáticas variadas e, por vezes, inusitadas para o público infanto-juvenil, tais como o estupro, a morte, a separação. Bojunga é aclamada pela crítica como umas das escritoras mais traduzidas, conceituadas e premiadas dentro e fora do Brasil. Pela qualidade literária, a escritora vem colecionando muitos prêmios. Dentre eles está o Prêmio Jabuti, recebido em 1973; o Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantil e juvenil, conquistado em 1982, pela obra A Bolsa amarela; o Prêmio Astrid Lindgren Memorial Award (ALMA), obtido em 2004, pelo conjunto de sua obra. Utilizando-se de uma forma lúdica, as recorrências dos símbolos nas narrativas bojunguianas é uma marca identificável e registrada da autora, possibilitando assim a

P á g i n a | 94

discussão de temas tão polêmicos (como os citados acima) de forma mais suave e também dando margem a discussões distintas sobre suas obras. Os trabalhos realizados por Lygia Bojunga e Marina Colasanti contribuíram e têm contribuído bastante para o crescimento e enriquecimento da literatura. A partir dos textos de ambas, pode-se emergir várias formas de leitura. Colasanti (2004, p. 123) afirma que a leitura e a interpretações têm fronteiras e limites indefinidos, sendo renovadas a cada instante, por mais que expressem a aparência de esgotamento das possibilidades de leitura. Tanto em A bolsa amarela quanto em Ana Z. aonde vai você?, a fantasia se mistura com a realidade. Ademais, é nítido nos textos dessas escritoras o uso constante de imagens simbólicas. No texto bojunguiano, a personagem Raquel combina o que vive nos fatos do cotidiano de sua família com o universo e a imaginação atrelados a sua bolsa amarela. Como imagem simbólica, ela pode figurar o útero materno, ou seja, um local seguro, haja vista que nela Raquel abriga as suas aspirações e os seus sonhos. Ademais, a “[...] bolsa representa, sem dúvida, o interior da personagem, lugar onde a protagonista guarda e esconde os seus desejos e os seus segredos, protegendo-os da interferência dos adultos que se recusam a compreendê-la” (CRISTÓFANO, 2009, p. 73). Nas narrativas colasantianas, há a repetição de imagens simbólicas como, por exemplo, o fio, o poço, o colar, o jardim, o tear – já presentes nos contos de fadas tradicionais. Outra imagem, igualmente simbólica e recorrente, é o espelho. Para Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 393), o espelho reflete a verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Encontramos esse elemento nos contos “A primeira só”, de Uma idéia toda azul, e em “À procura de um reflexo”, de Doze reis e a moça no labirinto do vento. Em Ana Z. aonde vai você?, Ana Z. vive entre a realidade de ter caído no poço e as viagens no mundo que se encontravam além do poço. Este, também uma imagem simbólica, relaciona-se a evolução espiritual e autocontrole. “Por ele Ana desce ao mundo subterrâneo e, após superar as provas que lhe são impostas, emerge para a realidade novamente” (SILVA, 2008, p. 257). Descer no poço significa entrar em si mesmo, conhecerse já que o poço é o próprio homem (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 727). Nos textos bojunguianos e colasantianos, consoante observamos, a linguagem metaforizada produz alegorias e essas alegorias, por sua vez, valem-se de imagens que simbolizam e criam formulários que carregam a obra literária a uma leitura diferente. Por esse motivo, objetivamos, por meio do presente estudo, evidenciar tais imagens nas obras A bolsa amarela, de Lygia Bojunga, e Ana Z. aonde vai você?, de Marina Colasanti.

P á g i n a | 95

REFERÊNCIAS: CÂNDIDO, Ana Rosa. As imagens simbólica em Ofélia, a ovelha. In: SILVA, Vera Maria Tietzmann. E por falar em Marina...: estudos sobre Mariana Colasanti. Goiânia: Cânone Editorial, 2003. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Tradução de Vera da Costa e Silva et al. 23. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 7. ed. rev, atu. São Paulo: Editora Moderna, 2009. COLASANTI, Marina. Fragatas para terras distantes. Rio de Janeiro: Record, 2004. CRISTÓFANO, Sirlene de Lima Corrêa. O itinerário simbólico em A bolsa amarela de Lygia bojunga: fantasiar para incluir. 2009. 96 f. Tese (Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes) – Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, 2009. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução de Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1996. FRANCA, Vanessa Gomes Franca. A vida por um fio. In: SILVA, Vera Maria Tietzmann. E por falar em Marina...: estudos sobre Mariana Colasanti. Goiânia: Cânone Editorial, 2003. JUNG, Carl G. Chegando ao inconsciente. In: ______. O homem de seu símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fontreira, 1964. SILVA, Vera Maria Tietzmann. E por falar em Marina...: estudos sobre Mariana Colasanti. Goiânia: Cânone Editorial, 2003. ______. Literatura infantil brasileira: um guia para professores e promotores de leitura. Goiânia: Cânone Editorial, 2008.

P á g i n a | 96

CAMPONESAS, FADAS, TECELÃS E PRINCESAS: AS PERSONAGENS FEMININAS NOS CONTOS DE FADAS TRADICIONAIS E COLASANTIANOS Edilson Alves de SOUZA (UEG/Esp.) ([email protected]) Vanessa Gomes FRANCA (UEG/Dra.) ([email protected]) Jéssica Fernanda Soares dos SANTOS (UEG) ([email protected])

Palavras-chave: Contos de fadas, Marina Colasanti, personagens femininas.

Toda vez que me aproximo do universo dos contos de fadas, quer como autora, quer para reflexões teóricas, minha boca seca, a garganta aperta, o coração acelera o ritmo. Eu sinto medo e sedução. E reluto em avançar, como se os vastos espaços que se estendem a minha frente, e que me convocam, escondessem poços de areia movediça, distâncias verticais sem fim. Marina Colasanti

Assim como fascinam a escritora Marina Colasanti, os contos de fadas, desde o seu surgimento, tem fascinado crianças, jovens e adultos do mundo todo. Tais narrativas seduzem os leitores, pois “[...] de maneira simbólica ou realista, direta ou indiretamente, lhe falam da vida a ser vivida ou da própria condição humana” (COELHO, 1998, p. 10). No que se refere ao surgimento das narrativas feéricas, Joana Cavalcanti (2004, p. 46) afirma que “[...] é praticamente impossível determinar as origens dos contos, uma vez que eles se originaram dos relatos primordiais”. Além disso, a estudiosa expõe que, constantemente, são realizadas pesquisas a respeito do caminho percorrido pelos contos até chegarem a nós. Muitas dessas pesquisas fazem o seguinte questionamento: E como tais histórias foram disseminadas além de suas origens? Sobre esse assunto, Ana Lúcia Merege, em seu livro Os contos de fadas: origens, história e permanência no mundo moderno, ressalta a existência de três hipóteses. De acordo com a primeira, os contos de fadas foram contados além das fronteiras, a partir da relação entre povos que possuíam diferentes costumes e que absorveram as tradições uns dos outros. A segunda discorre a respeito dos arquétipos, asseverando que a constituição da imaginação e as vivências cotidianas dos homens suscitam elucidações narrativas que se identificam, ainda que não tenha ocorrido qualquer comunicação. Além das hipóteses mencionadas, há uma

P á g i n a | 97

terceira em que os estudiosos elegem alegorias científicas para justificarem a propagação das narrativas feéricas. Uma delas é a teoria das ondas, a qual expõe a ideia de que se diversas pedras forem lançadas na água constituirão círculos concêntricos e estes irão ter contato. Do mesmo modo ocorreria com os contos de fadas que, surgidos em diferentes regiões e ocasiões, acabariam comungando de um traço comum (MEREGE, 2010, p. 19-20). Assim, contados e recontados ao longo dos séculos, na beira das fogueiras, nas cortes, nos salões, de pais para filhos, tais contos “[...] criados pela imaginação coletiva e depurados na oralidade durante séculos, chegaram-nos por meio dos escritos de Perrault, na França, dos Irmãos Grimm, na Alemanha, e de outros autores” (SILVA, 2008, p. 71). O escritor francês Charles Perrault, ao recolher contos que faziam parte da tradição oral francesa e publicá-los na obra Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades, em 1697, será o responsável por provocar “[...] uma preferência inaudita pelo conto de fadas, literarizando uma produção até aquele momento de natureza popular e circulação oral, adotada doravante como principal leitura infantil” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2003, p. 15). Perrault reproduz em seu livro oito contos: “Bela Adormecida no bosque”, “Chapeuzinho Vermelho”, “O Barba Azul”, “O Gato de Botas”, “As fadas”, “A Gata Borralheira”, “Henrique do Topete” e “O Pequeno Polegar”. Um dado importante sobre a obra perraultiana é que, a princípio, “[...] tais contos foram publicados em nome do filho de Perrault, Pierre d‟Armancourt. Somente mais tarde as narrativas são atribuídas ao verdadeiro autor que, na época, era um dos ilustres membros da Academia Francesa” (FRANCA; SOUZA; DIAS, FARIAS, 2009, p. 75). Alguns estudiosos da área acreditam que o escritor francês tenha publicado o livro no nome do filho, pois não queria associar seu nome a uma literatura menor, como era julgada a literatura popular. Os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, folcloristas e filólogos alemães, também recolhem contos pertencentes à tradição oral, os quais são lançados entre os anos de 1812 e 1822. Dessa recolha nasce o livro Contos da infância e do lar, cuja primeira edição data de 1812, que apresenta as histórias: “O Chapeuzinho Vermelho”; “Os Sete Anões e a Branca de Neve”; “A Bela Adormecida”; “Rapunzel”; “O Rei Sapo”; “A Gata Borralheira”; “Joãozinho e Maria”, dentre outras. Assim como Charles Perrault e os Irmãos Grimm, Hans Christian Andersen, escritor dinamarquês, também recolheu contos que faziam parte da tradição oral do seu povo. No entanto, além de coletar tais narrativas, ele cria as suas próprias histórias, por essa razão Propp (1984, p. 134-135) afirma que “[...] seus contos brotam de sua própria substância”.

P á g i n a | 98

Ademais, por meio de seus textos, imortaliza personagens como O Patinho Feio, a Sereiazinha ou a Pequena vendedora de fósforos. Além dos escritores citados, destacamos a autora brasileira Marina Colasanti, que possui cinco livros de contos de fadas: Uma ideia toda azul; Doze reis e a moça no labirinto do vento; Longe como o meu querer; Entre a espada e a rosa e 23 histórias de um viajante. Nessas narrativas feéricas, Colasanti “[...] revela com mestria os sentimentos mais profundos do ser humano. Por meio de sua linguagem metafórica, a autora desnuda nossas máscaras ao representar o universo complexo que é o ser humano” (FRANCA; SOUZA; DIAS, FARIAS, 2009, p. 78-79). Os contos de fadas apresentam “[...] como eixo gerador uma problemática existencial. Ou melhor, têm como núcleo problemático a realização essencial do herói ou da heroína, realização que, via de regra, está visceralmente ligada à união homem-mulher” (COELHO, 1998, p. 13). As personagens que povoam as narrativas feéricas são tipos ou caricaturas, tais como: o rei, a rainha, a princesa, o príncipe, a bruxa malvada; a fada benfazeja; o duende. De acordo com Sonia Salomão Khéde (1986, p. 20-22), encontramos nessas narrativas a personagem criança, que simboliza a fragilidade, a inocência, os processos iniciáticos; as personagens maravilhosas, como as fadas, as bruxas, os ogros; bem como as personagens de linhagem real. Ainda no que diz respeito às personagens dos contos tradicionais, Adolfo José de Souza Frota (2003, p. 14) salienta que elas, geralmente, “[...] são personagens arquetípicas, caracterizam-se pelas posições políticas, sociais ou familiares que ocupam, não por seus nomes ou individualidades”. Por esse motivo, encontramos as denominações: o rei, a tecelã, a fiandeira, a princesa, a rainha, a fada, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida, A pequena vendedora de fósforos, o pobre, o rico. Nos contos colasantianos, as personagens “[...] são todas de estirpe simbólica: tecelãs princesas, fadas, sereias, corças e unicórnios, em palácios, espelhos. florestas e torres, não têm nenhum compromisso com a realidade imediata” (LAJOLO, ZILBERMAN, 2003, p. 159). Como uma autora assumidamente feminista, muitas vezes, em seus textos, Marina Colasanti apresenta personagens mulheres: “[...] princesas, fadas, camponesas, meninas, mulheres jovens, mulheres adultas, donas de casa, bordadeiras, tecelãs, fiandeiras de seu próprio destino” (FRANCA; SOUZA; DIAS, FARIAS, 2009, p. 80), contrariando o que ocorre em diversos contos de fadas, em que a figura feminina é submissa e somente tem seu final feliz ao se casar.

P á g i n a | 99

Pelo exposto, salientamos que nossa pesquisa tem como objetivo verificar, por meio da leitura de contos de fadas tradicionais e colasantianos, como são apresentadas e construídas as personagens femininas.

REFERÊNCIAS: CAVALCANTI, Joana. Caminhos da literatura infantil e juvenil: dinâmicas e vivências na ação pedagógica. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004. (Pedagogia e educação). COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. 3. ed. São Paulo: Ática, 1998. FRANCA, Vanessa Gomes; SOUZA, Edilson Alves de; DIAS, Luciana Santos Barbosa; FARIAS, Vanderléia dos Santos. A literatura infantil e juvenil brasileira: um estudo dos contos de fadas de Marina Colasanti. In: CAMARGO, Flávio Pereira; FRANCA, Vanessa Gomes (Org.). Estudos sobre literatura e linguística: pesquisa e ensino. São Carlos: Claraluz, 2009. p. 75-104. FROTA, Adolfo José de Souza. “Entre a espada e a rosa” e “Pele de Asno”, uma análise comparativa. In: SILVA, Vera Maria Tietzmann (Org.). E por falar em Marina: estudos sobre Marina Colasanti. Goiânia: Cânone Editorial, 2003. p. 11-15. KHÉDE, Sonia Salomão. Personagens da literatura infanto-juvenil. 2. ed. São Paulo: Ática, 1986. (Princípios). LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história & histórias. São Paulo: Ática, 2003. MEREGE, Ana Lúcia. Os contos de fadas: origens, história e permanência no mundo moderno. São Paulo: Claridade, 2010. (Saber de tudo). PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. Tradução de Jasna Paravich Sarhan. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984. SILVA, Vera M. Tietzmann. Literatura infantil brasileira: um guia para professores e promotores de leitura. 2. ed. Goiânia: Cânone Editorial, 2008.

P á g i n a | 100

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS RITOS INICIÁTICOS NOS CONTOS DE FADAS E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS INFANTIS Edilson Alves de SOUZA (UEG/Esp.) ([email protected]) Vanessa Gomes FRANCA (UEG/Dra.) ([email protected]) Karyna Ferreira GONÇALVES (UEG) ([email protected])

Palavras-chave: Contos de fadas, ritos iniciáticos, Chapeuzinho Vermelho.

Ao estudarmos a respeito dos contos de fadas, é comum ouvirmos que a origem destes se perde na “poeira dos tempos”, tendo em vista que delimitar uma data precisa para sua aparição é, basicamente, impossível. Isso ocorre, uma vez que que as narrativas feéricas foram colhidas da tradição oral e, por essa razão, não se sabe onde nasceram, nem quem as contou/criou primeiro. No que diz respeito a esse assunto, Joana Cavalcanti (2004, p. 46) salienta que há distintas teorias que discutem a respeito da origem das narrativas feéricas. Segundo a pesquisadora, Theodor Benfey, considera que os contos de fadas são originários da Índia; os irmãos Grimm, expõem as origens indo-europeias de tais histórias; fundamentados nas investigações de Pierre Saintyves, especialistas norteiam seus trabalhos a partir da teoria ritualista; Vladimir Propp, estruturalista russo, propõe a análise dessas narrativas como superestruturas. Ainda no que concerne a esse tema, Nelly Novas Coelho (2010, p. 6) sustenta que diversos “[e]studiosos de todos os pontos da Terra e pertencentes às mais diferentes áreas de pesquisa (Filologia, Linguística, Folclore, Etnologia, Antropologia, História, Literatura, Pedagogia, etc) têm tentado descobrir os misteriosos caminhos seguidos por essa Literatura Popular”. Apesar dos variados estudos sobre a origem dos contos de fadas, não foi possível constatar sua gênese. Destarte, especialistas da área aventaram pressuposições, tendo como base o cotejo de invariantes e variantes dessas histórias, bem como documentos, compostos por “[...] inscrições em pedras, em tabuinhas de argila ou de vegetal; e escrituras em papiro ou pergaminho, em rolos ou em folhas presas por um dos lados ou ainda em grossos livros manuscritos” (COELHO, 2010, p. 6, grifos da autora). Apesar de não se poder afirmar a fonte ou a origem de tais textos, ficou visível que haveria “[...] um fundo comum a todas elas” (COELHO, 1998, p. 17). Assim, por causa

P á g i n a | 101

desse fundo comum, encontramos várias narrativas, provindas de diferentes países, que possuem semelhanças em seus acontecimentos e em seus motivos. Exemplo clássico é o conto “Chapeuzinho Vermelho” e suas versões francesa, publicada por Charles Perrault, e alemã, divulgada pelos irmãos Grimm. Em ambas, temos uma menina conhecida por seu capuz vermelho, dado pela avó. Um dia, a pedido de sua mãe, vai levar bolo e manteiga (ou vinho) para a sua avó, a qual vivia na floresta. No meio do caminho, a menina encontra um lobo que, ao saber o destino dela, elabora um plano, a fim de comer a neta e sua avó. Na variante perraultiana, o animal chega a casa desta e a devora e, quando a menina chega, ele a devora também, finalizando a história. Sobre o que acontece com as personagens, Bruno Bettelheim (1980, p. 203, grifo do autor) comenta que: “A imagem de uma menina ‘inocente’ e encantadora sendo engolida por um lobo deixa uma marca indelével na mente [...] em ‘Chapeuzinho Vermelho’ o lobo engole realmente a avó e a menina”. Na variante grimminiana, que constitui nosso objeto de análise, o lobo engole as duas personagens. No entanto, diferentemente do que ocorre na versão de Perrault, na dos irmãos Grimm, as duas são salvas por um lenhador que, ao passar pelo local escuta o ronco do lobo, corta a barriga deste, retirando vivas dali Chapeuzinho e sua avó. Os três, então, enchem o ventre do lobo com pedras e este, ao acordar, morre afundando na água. Como averiguamos, apesar de o final de tais contos serem diferentes, o início deles é bastante semelhante. Na versão dos irmãos Grimm, a menina, como vimos, sai de casa e aventura-se pelos perigos da floresta. A ação de Chapeuzinho é comum nas narrativas feéricas. Nestas, na maioria das vezes, encontramos uma personagem que deixa sua casa e vai para o mundo, passando por diversas provas. Sobre esse ponto, Ana Maria Machado (2002, p. 70) expõe que: “Várias histórias têm a estrutura de uma série de provas que devem ser vencidas pelo herói – muitas vezes perdido no bosque tendo que encontrar seu caminho, como faziam algumas sociedades com os adolescentes, para depois recebê-los no seio do mundo adulto”. Machado (2002, p. 69) evidencia que a relação entre os ritos iniciáticos e narrativas feéricas é muito antiga, uma vez que estas, “[p]ara muitos estudiosos, estão associadas a alguns ritos das sociedades primitivas – sobretudo ritos de passagem de uma idade a outra, ou de um estado civil a outro. Por isso, guardariam tantas marcas simbólicas da puberdade e do início da atividade sexual”. Os contos que estão relacionados aos ritos de iniciação do herói oferecem às crianças um retrato da sociedade, evidenciando “[...] o que se passa em sua mente de modo inconsciente, abordam de forma simbólica as dificuldades do crescimento, sugerem soluções

P á g i n a | 102

e maneiras de lidar com as experiências internas e ensinam que se a criança souber enfrentar as adversidades, poderá superá-las” (NÓBREGA, 2009, p. 19-20). Chapeuzinho Vermelho precisa passar pelo ritual iniciático, precisa enfrentar as adversidades, a fim de despertar para a fase adulta, uma vez que “[...] é na realidade uma criança que já luta com problemas pubertais, para os quais ainda não está preparada emocionalmente” (BETTELHEIM, 1980, p. 208). O enfrentamento das situações vividas pelas personagens durante esse período é um rito de passagem da fase infantil para a fase adulta. Desse modo:

O herói como mediador, ao enfrentar as provas que o confrontam com a antítese bem-mal, atinge um novo estado. As provas – clara reminiscência das provas iniciáticas – são essenciais para uma leitura do mito que se esconde por detrás do conto de fadas. Isso nos remete, de modo fundamental, ao drama do homem sobre a terra. As provas, que se repetem até serem compreendidas, aceitas e assumidas, conduzem a um despertar (PAZ, 1995, p. 57, grifos nossos).

Esse despertar da personagem, a sua iniciação acontece por meio de sua morte simbólica, a qual ocorre quando a menina é engolida pelo lobo. De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 506), “[i]niciar é, de certo modo, fazer morrer, provocar a morte. Mas a morte é considerada uma saída, a passagem de uma porta que dá acesso a outro lugar. A saída, então, corresponde uma entrada. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 506). No caso de Chapeuzinho vermelho sua morte representará o nascimento de um novo ser, a sua passagem de menina para moça, a sua entrada no mundo adulto, o seu amadurecimento. Além da viagem empreendida pela personagem, outro elemento que pode ser relacionado aos ritos iniciáticos é a cor vermelha. No texto em análise, vemos a cor vermelha ganhar destaque na identificação da personagem. “O vermelho é a cor que significa as emoções violentas, incluindo as sexuais. O capuz de veludo vermelho que a avó dá para Chapeuzinho pode então ser encarado como o símbolo de uma transferência prematura da atração sexual” (BETTELHEIM, 1980, p. 209). Assim, Chapeuzinho vermelho, como nos ritos de passagem da antiguidade, simboliza a menina que se transforma em mulher por meio da menstruação ou do ato sexual. A criança, ao ler essa narrativa, “começa a entender – pelo menos num nível préconsciente – que só as experiências esmagadoras despertam sentimentos internos correspondentes com os quais não podemos lidar. Dominando-os, não precisamos temer o encontro com o lobo, nunca mais” (BETTELHEIM, 1980, p. 217). Como percebemos, as

P á g i n a | 103

narrativas feéricas contribuem para a formação da criança. Por esse motivo, em nosso trabalho, intentamos tecer considerações sobre os ritos iniciáticos presentes nos contos de fadas e a contribuição deles para a resolução dos conflitos infantis, posto que problematizam questões que fazem parte da realidade dos pequenos.

REFERÊNCIAS: BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. CAVALCANTI, Joana. Caminhos da literatura infantil e juvenil: dinâmicas e vivências na ação pedagógica. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004. (Pedagogia e educação). CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Tradução de Vera da Costa e Silva et al. 23. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. 3. ed. São Paulo: Ática, 1998. ______. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das origens indo-europeias ao Brasil contemporâneo. 5. ed. Burueri, SP: Manole, 2010. MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. NÓBREGA, Lyéde Ruggero de Barros. Educar com contos de fadas: vínculo entre realidade e fantasia. São Paulo: Mundo Mirim, 2009. PAZ, Noemí. Mitos e ritos de iniciação nos contos de fadas. Tradução de Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Cultrix; Pensamento, 1995.

P á g i n a | 104

A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA LITERATURA ERÓTICA ESCRITA POR MULHERES: MARINA COLASANTI E MAYA BANKS Edilson Alves de SOUZA (UEG/Esp.) ([email protected]) Vanessa Gomes FRANCA (UEG/Dra.) ([email protected]) Luziene Taveira dos SANTOS (UEG) ([email protected])

Palavras-chave: Literatura erótica, representação da mulher, Marina Colasanti, Maya Banks.

Durante séculos, a mulher foi submetida ao marido e a um ambiente extremamente patriarcal, no qual ela era educada para ser meiga, passiva, submissa, dentre outras “qualidades” obrigatórias para a classe feminina. Esses e outros aspectos são construções sociais e históricas compartilhadas por algumas sociedades, as quais também partilham estereótipos que revelam “[...] paradigmas do ser frágil ou forte, dominador ou submisso, racional ou intuitivo” (PUGA DE SOUSA, 2002, p. 138), arquitetando, sobretudo, a moral e as relações de poder que devem funcionar e reger os comportamentos. Nesse contexto, à mulher foi atribuída uma culpabilização bíblica que a silenciou durante anos. As instituições familiares, religiosas, governamentais, aderindo ao modelo de sociedade patriarcal pregado pela religião, conferiram ao homem privilégios, ao passo que, legaram à figura da mulher o segundo plano ou, em muitos casos, plano nenhum, o que denota a tamanha derrogação e a anulação da mulher enquanto ser humano (PUGA DE SOUSA, 2002). Situações como essas impulsionaram o surgimento de movimentos que procuravam a libertação da mulher oprimida por esse sistema, apresentando um caráter de defesa da igualdade de direitos e de busca por melhores condições de vida para as mulheres. Destarte, entre as décadas de 30 e 60, floresceram novos ideais, alimentados principalmente por pensadoras, entre os quais se destacam aqueles da vertente francesa, tendo Simone de Beauvoir como ícone intelectual de maior força, e aqueles da vertente americana, demarcada pelos pensamentos de Betty Friedan. Simone de Beauvoir, em meados de 1949, realiza a primeira publicação do seu livro O segundo sexo, no qual ela “[...] estabelece uma das máximas do feminismo: ‘não se nasce mulher, se torna mulher’” (PINTO, 2010, p. 16, grifo da autora). Com tal afirmação, Beauvoir provoca polêmicas e uma profunda ruptura no modelo de sociedade, pois dá uma nova interpretação àquele modelo pregado e sustentado

P á g i n a | 105

pelas entidades religiosas. Em 1963, Betty Friedan lança o livro que ficou conhecido como “[...] uma espécie de ‘bíblia’ do novo feminismo: A mística feminina” (PINTO, 2010, p. 16, grifo da autora), que acaba por incitar o diálogo e a mudança de discursos e posicionamentos sobre as relações de poder entre homem e mulher. Assim, um conjunto de fatos imbricados, associados aos pensamentos dessas autoras, e o patrocínio ideológico do comunismo, fortaleceram as lutas em favor da mulher na Europa e na América. Durante o período militar do Brasil, a partir dos anos de 1970, manifestações, com o apoio de organizações feministas e da Organização das Nações Unidas (ONU), fizeram com que as mulheres mostrassem o desejo de igualdade dentro de um âmbito nacional e internacional (PINTO, 2010, p. 16-17). Além disso, nos anos de 1980, serão feitas alianças entre grupos feministas e outros coletivos, o que contribuirá para impulsionar as lutas pelos direitos das mulheres. Estes grupos se organizam, a fim de abordarem uma série de temas, tais como “[...] violência, sexualidade, direito ao trabalho, igualdade no casamento, direito à terra, direito à saúde materno-infantil, luta contra o racismo, opções sexuais” (PINTO, 2010, p. 17). A partir da luta do feminismo brasileiro, foram criados o Conselho Nacional da Condição da Mulher (CNDM), em 1984; as Delegacias Especiais da Mulher, a Lei Maria da Penha (Lei n. 11 340, de 7 de agosto de 2006) e diversas Organizações Não-Governamentais (ONGs) que, com o apoio da Constituição Federal (CF) de 1988, têm colocado em discussão o papel da mulher na sociedade brasileira de uma maneira que nunca havia sido tratado (PINTO, 2010, p. 17). Como respaldo dessa gama de ações, ocorreram alterações nos padrões tradicionais sociais a partir das novas concepções de sujeito. Em consequência disso, a “nova” mulher transforma (e vê transformada) a sua realidade. Ela também começa a ocupar vários espaços na sociedade, como na educação, na política, passando a tomar decisões sobre sua própria vida. Os pensamentos de Simone de Beauvoir aliados aos de Judith Butler, filósofa norte-americana, desmontam os discursos sobre o corpo do homem e da mulher de modo a criar novos valores sexuais e morais, dando a mulher a liberdade de ter o poder de decisão não apenas sobre a direção da sua vida, mas, sobre como usar seu corpo. Conforme Céli Regina Jardim Pinto (2010, p. 15), “[p]ode se conhecer o movimento feminista a partir de duas vertentes: da história do feminismo, ou seja, da ação do movimento feminista, e da produção teórica feminista nas áreas da História, Ciências Sociais, Crítica Literária e Psicanálise”. Na década de 80, por exemplo, os estudos de Gênero,

P á g i n a | 106

contribuíram para que houvesse uma abertura para uma nova leitura da mulher e do homem e de seus papeis simbólicos na sociedade. Ainda no que concerne à produção teórica – o que nos interessa de modo especial nesse trabalho –, é importante destacar que o ideário feminista demostrou ser um profícuo e fecundo olhar, o qual penetrou nas diversas áreas do conhecimento, sobretudo na crítica literária e na Literatura, ocasionando o surgimento de movimentos literários na Europa, nos Estados Unidos e igualmente no Brasil. A produção literária, então, não ficou indiferente ao que estava acontecendo. Por esse motivo, as personagens femininas passam a aparecer na literatura com um novo cariz. Dessa maneira, além do estereótipo do papel doméstico, biológico (maternidade), vemos delineada uma mulher preocupada consigo mesma e com as questões sociais. Ademais,

[a] literatura contemporânea é rica, sobretudo, em figuras de mulheres do tipo transitório. É rica em heroínas que tem simultaneamente as características da mulher antiga e da mulher nova [...] O antigo e novo encontram-se em contínua hostilidade na alma da mulher. Logo, as heroínas contemporâneas tem que lutar contra um inimigo que apresenta duas frentes: o mundo exterior e as suas próprias tendências, herdadas de suas mães e avós (KOLONTAI, 1978, p. 21).

À vista disso, a mulher não é representada somente no papel de vilã, como se constata na literatura misógina medieval. Ela agora ganha representações consoantes a de uma heroína. Não de uma heroína de contos de fadas que, geralmente, só é feliz quando se casa com o príncipe encantado; mas de uma mulher capaz de escrever/determinar a sua própria história/vida, conforme vemos no livro A moça tecelã, de Marina Colasanti. Em tal narrativa, a personagem exerce a autonomia de tecer/decidir sua vida em oposição a subjugação do marido. Nessa direção, comumente, encontramos estudos que desvelam a maneira inferiorizante pela qual a mulher foi/é tratada e produções literárias que demostram uma nova face da figura feminina, como ocorre na Literatura Erótica. Marina Colasanti, escritora brasileira, é “[...] assumidamente feminista e defensora dos direitos da mulher” (FRANCA; SOUZA; DIAS; FARIAS, 2009, p. 79). A autora tem se destacado no cenário nacional e internacional por suas narrativas intrigantes, que problematizam o universo feminino. Podemos dizer que em seus textos,

Mariana Colasanti dá voz às personagens femininas. Desse modo, ao perscrutarmos as histórias colasantianas ouvimos ecos de vozes femininas, vozes silenciadas, impedidas, proibidas por vários anos de repressão, que em suas narrativas manifestam-se e ao manifestar-se clarificam/corporificam

P á g i n a | 107 seus desejos, seus medos, seus anseios, suas paixões (FRANCA; SOUZA; DIAS; FARIAS, 2009, p. 81).

Os aspectos arrolados na citação acima são constantes nos contos do livro O leopardo é um animal delicado, de Colasanti. Da mesma forma, encontramos características similares nos romances da autora americana Maya Banks. Dentre as dezenas de publicação de Banks, destacam-se os romances eróticos, muitos traduzidos para o português. Na cama com um Highlander, por exemplo, o primeiro livro da trilogia dos McCabe, possui personagens marcantes, revestidos de sensualidade e bem construídos. Em ambas as autoras, percebemos que as personagens femininas são envolvidas em uma trama e uma atmosfera eróticas. A mulher é objeto de uma descrição que a mostra sujeita ou sujeitando-se ao desejo sexual. Tanto Colasanti quanto Banks, cada uma dentro de um peculiar estilo narrativo, trazem representações inusitadas do desejo sexual feminino, desconstruindo padrões sobre a atividade sexual, convencionalmente, estabelecidos para a mulher. Em visto disso, nesse trabalho, pretendemos desvelar representações da mulher na Literatura Erótica, tendo como corpus de pesquisa os livros O leopardo é um animal delicado, de Marina Colasanti, e Na cama com um Highlander, de Maya Banks.

Referências: BANKS, Maya. Na cama com um Highlander. Tradução de Ana Cunha Ribeiro. Lisboa: Bertrand Editora, 2013. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. São Paulo: Nova Fronteira, 2009. COLASANTI, Marina. O leopardo é um animal delicado. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ______. A moça tecelã. In: ______. Doze reis e a moça no labirinto do vento. 6. ed. São Paulo: Global, 2001. p. 81-87. FRANCA, Vanessa Gomes; SOUZA, Edilson Alves de; DIAS, Luciana Santos Barbosa; FARIAS, Vanderléia dos Santos. A literatura infantil e juvenil brasileira: um estudo dos contos de fadas de Marina Colasanti. In: CAMARGO, Flávio Pereira; FRANCA, Vanessa Gomes (Org.). Estudos sobre literatura e linguística: pesquisa e ensino. São Carlos: Claraluz, 2009. p. 75-104. KOLLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. Tradução de Roberto Goldkorn. São Paulo: Global Editora, 1978 PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, história e poder. Revista de sociologia e política, Curitiba, v. 18, n. 36, p. 15-23, jun. 2010.

P á g i n a | 108

PUGA DE SOUZA, Vera Lúcia. Gênero e cultura: descortinando sujeitos e violências. ArtCultura, Uberlândia, v. 4, n. 4, p. 137-143, jul. 2002.

P á g i n a | 109

PERSPECTIVAS CRÍTICAS EM MACBETH, DE WILLIAM SHAKESPEARE Everton Gomes CHAGAS (UEG/G) ([email protected])

Palavras-chave: Tragédia, destino, ambição, manipulação. William Shakespeare é, sem dúvida, um dramaturgo talentoso, o maior escritor de língua inglesa e um dos maiores de todos os tempos. Nas palavras de Bárbara Heliodora (2009), um verdadeiro “fenômeno”. Já o crítico Daniel Sibony (1992) afirma ser ele o poeta da natureza humana, por descrever, com maestria, o comportamento do ser humano em todas as suas peças. Em suas obras há várias possibilidades interpretativas no que tange ao comportamento do ser humano. Dentre as várias peças, Macbeth foi a última das consideradas grandes tragédias de Shakespeare a ser encenada. Foi escrita, provavelmente, no ano de 1606, época em que Shakespeare já era um dramaturgo mais experiente. É uma das melhores e mais encenadas peças de todos os tempos. Macbeth é uma tragédia que aborda vários temas da natureza humana. Dentre as várias perspectivas de análise, se destacam temas como o do destino, da ambição, da manipulação e da traição. O destino é, de acordo com o dicionário Houaiss (2004, p. 242), uma sequência de fatos em que uma pessoa está sujeita, independente da sua vontade, ou seja, uma série de acontecimentos inevitáveis. Isso pra quem acredita que um ser humano pode nascer com uma vida traçada, por aquilo que, por inevitabilidade, terá que acontecer. Em Macbeth, o personagem principal cometeu muitos crimes acreditando que o seu destino era ser o soberano da Escócia, porém ele não esperou os fatos acontecerem naturalmente, ele resolveu escrever o seu próprio destino, de maneira forçada, acreditando nas palavras de feiticeiras. A tragédia do destino, em Macbeth, começa a partir do momento da revelação das bruxas, quando Macbeth e seu amigo Banquo as encontram perto de uma charneca e são saudados pelas bruxas que fazem várias previsões, uma delas o saúda chamando-o pelo seu título: “Salve, Macbeth! Salve, Tane de Glamis!” A outra bruxa antecipa o seu destino ao chamá-lo pelo título que ainda não havia conquistado. A bruxa o saúda: “Salve, Macbeth! Salve, Tane de Cawdor!” A terceira bruxa, surpreende Macbeth ao fixar a fortuna do general. Ela vaticina: “Salve, Macbeth! Salve, que rei sereis um dia!” (SHAKESPEARE, 1996, p.15).

P á g i n a | 110

Por alguns segundos, Macbeth fica aturdido, visto que não consegue entender e explicar as mensagens das bruxas. Como elas sabiam que ele era Tane de Glamis e por que nomeá-lo Tane de Cawdor se já havia alguém neste posto? Perplexo, Macbeth indaga várias coisas. A mensagem das bruxas impressiona Macbeth, as suas palavras são justamente aquilo que ele queria ouvir. Elas povoam a sua mente incessantemente fazendo-o delirar e prever o seu futuro, o seu destino. Depois que as bruxas foram embora, chegam dois mensageiros do rei e o informam que ele foi condecorado Tane de Cawdor, cumprindo a previsão de uma das feiticeiras, e então Macbeth fica ainda mais perplexo. A tragédia do destino de Macbeth irá acontecer através da palavra das mulheres, da mensagem das feiticeiras que sabem muito. Macbeth tem o destino traçado e não importa como este irá se cumprir. Porém, Lady Macbeth encoraja o seu marido a tomar o caminho mais curto. Pode até ser que Macbeth permitisse que o destino se encarregasse de se cumprir sozinho, mas, encorajado pelas palavras de sua esposa, assassina Duncan. Após tudo isto, Macbeth tenciona desconstruir uma das profecias das bruxas. A partir daí ele deseja construir o seu próprio destino, e o destino agora é matar Banquo e seus filhos. Com esses crimes, Macbeth não se sentiria ameaçado de perder o trono. Macbeth se caracteriza como uma tragédia do destino em toda a extensão da obra. Essa perspectiva é sugerida porque Macbeth não consegue mudar o que fora revelado pelas feiticeiras, mas tenta, de todas as formas, escrever a sua própria história, buscando eliminar quem lhe cause qualquer ameaça. Com a morte de Banquo, mais um capítulo do trágico destino de Macbeth se concretiza. Todavia, por mais uma vez, Macbeth vai à procura das bruxas, quer saber mais sobre a sua vida, o que aconteceu e o que virá a acontecer. Ele tem medo, pelo motivo do seu destino ter tomado rumos diferentes e querer fugir do seu campo de controle. Imediatamente, as bruxas invocam e atraem os maus espíritos da noite, com presságios que, novamente, trarão conforto a Macbeth. A primeira aparição, uma cabeça armada de capacete, adverte: “Macbeth! Macbeth! Macbeth! Cuidado com Macduff! Cuidado com o Tane de Fife! É só: dispensai-me” (SHAKESPEARE, 1996, p. 82). A segunda aparição, uma criança ensanguentada, grita o nome de Macbeth por três vezes também, e, em seguida, ordena: “sê sanguinário, audaz e resoluto! Ri da força dos homens, pois nascido de mulher nenhum foi, que possa um dia causar dano a Macbeth!” (SHAKESPEARE, 1996, p. 83). A terceira aparição, também uma criança, com uma coroa a cingir-lhe a cabeça e uma árvore na mão,

P á g i n a | 111

ordena e pressagia: “sê fero como o leão. Não se te dê de quem conspira e onde conspira: até que a floresta de Birnam não avance rumo de Dunsinane e não se lance contra ti; não serás, Macbeth, vencido!” (SHAKESPEARE, 1996, p. 84). A peça é uma tragédia de destino do início ao fim. Considerando que destino é um suposto poder que pré-determina o curso da vida do ser humano, a obra apresenta-se com dezenas de personagens cujas ações são previamente determinadas. O destino de Macbeth se cumpre quando a floresta de Birnam sobe a colina, ou seja, as tropas de Macduff, fantasiadas de árvores, se movem em direção à Dunsinane comprovando a previsão uma das aparições de que Macbeth só seria vencido quando o bosque de Birnam marchasse contra ele. E, finalmente, o destino se completa no momento em que Macbeth é morto por Macduff, um homem nascido por cesariana, confirmando assim a predição de outra das aparições ao afirmarem que nenhum homem nascido de parto normal poderia atingir Macbeth. Outro tema muito forte em Macbeth é a ambição, quando falamos em ambição, estamos falando de um desejo intenso que nos impulsiona à conquista de riqueza e poder, ou seja, um anseio forte de obter algo que satisfaça nosso ego (HOUAISS, 2004, p. 37). A partir do momento que uma pessoa deseja fortemente algo para satisfazer a si próprio, ele já está cultivando, dentro de si, o sentimento de ambição. Todos os acontecimentos trágicos que há na tragédia de Macbeth ocorreram pela ambição exacerbada de Macbeth e de sua esposa, Lady Macbeth. A ânsia pelo poder o fez tramar a morte de pessoas bem próximas a eles, sem qualquer remorso, no primeiro momento, visando apenas os benefícios que a coroa lhes proporcionariam. A tragédia da ambição se faz presente pela primeira vez na peça quando Macbeth ouve o enunciado das feiticeiras de que seria rei. Neste instante, Macbeth se vê coroado, ambiciona o trono, porém visualiza, diante de si, um abismo, um obstáculo entre o desejo e a realização desse desejo. Lady Macbeth, após ter lido a carta de Macbeth sobre as previsões das bruxas, também deseja o trono para o seu marido e, ao saber que o rei iria dormir em sua residência, dirige-se ao esposo e diz: “Grande Glamis! Nobre Cawdor! Maior que os dois no título com que serás saudado no futuro! Tuas cartas transportaram-me do cego presente aos dias que virão, e eu sinto-os como se já chegados” (SHAKESPEARE, 1996, p. 26). Mais adiante, também percebe-se a ambição desmedida de Macbeth quando ele menciona: “outro acicate não possuo para os flancos picar do meu intento se não esta ambição, que ao arrojar-se com demasiado impulso, vai cair do outro” (SHAKESPEARE, 1996, p. 30).

P á g i n a | 112

Não há como negar que Macbeth é uma tragédia da ambição, visto que todos os acontecimentos produzidos pela família Macbeth são consequências dos desejos: desejo ardente de usurpar o trono, de ser coroado, de ser admirado como rei, de possuir o poder absoluto. A peça aborda a questão de até onde a ambição pode levar, e o que esta pode fazer com o ser humano. Quando a ambição é por demais cega, gera a obsessão, que gera a loucura, que leva ao ato impensado, cujo legado é a morte do outro ou de si mesmo. Outro tema bastante importante em Macbeth é a manipulação. Segundo o dicionário Houaiss (2004, p. 477) manipular é “influenciar para seguir comportamento e interesses que não os próprios; controlar”. Sendo assim, pode-se afirmar que ser manipulado é deixar que os outros comandem e direcionem os rumos da vida que uma pessoa deve tomar. Quem é manipulado deixa simplesmente se levar por alguém que se diz mais inteligente. O anúncio das feiticeiras e as palavras incentivadoras de Lady Macbeth foram fundamentais no decorrer de toda a trama. Macbeth é ambicioso, porem é fraco, e não tem pensamento próprio, por isso é totalmente influenciável. Ele não é capaz de fazer o que é preciso para se tornar rei se não for por incentivo de alguém. Em Macbeth, a manipulação se faz presente nas palavras das feiticeiras, nos seus anúncios, nas suas previsões. O saber que elas possuem é verdadeiro, não deve ser ignorado, pois elas possuem todo o conhecimento do passado, do presente e do futuro, por isso devem ser ouvidas, respeitadas e obedecidas. Lady Macbeth percebe que seu marido, apesar de ambicioso, possui o “leite da ternura humana”. Ela então encoraja o marido a ganhar a coroa deslealmente argumentando que o sobrenatural desejaria vê-lo coroado. Nesse momento, a tragédia da manipulação em Macbeth atinge o seu ponto máximo, já que é justamente o momento em que ele é influenciado e estimulado por palavras que ele gostaria de ter ouvido, por ser ambicioso. Lady Macbeth se figura como principal agente da manipulação do esposo, ardilosa no jogo da sedução e bastante eloquente no uso as palavras, não dá tréguas a Macbeth, cerca-o por todos os lados, tenta incutir-lhe a coragem, espantar o medo que obstrui o caminho para o trono. As bruxas também tiveram seu papel fundamental nesta manipulação. Elas levaram os Macbeth a acreditar que eles herdariam o trono, os manipulando para construir um destino, destino que fora previsto por elas, como se as mesmas já conhecessem a mente ambiciosa de Macbeth e sua esposa, tanto que no final, quando Macbeth descobre que Macduff foi arrancado da barriga de sua mãe antes do tempo, ou seja, de uma cesariana, e que assim ele poderia o matar, ele lamenta:

P á g i n a | 113

Amaldiçoada língua a que o revela! Pois assim me acobarda a melhor parte de homem em mim. Ninguém mais fie agora desses dúbios de demônios, que se riem de nós com seus equívocos; que sopram a palavra aliciante ao nosso ouvido e não a cumprem. Não combaterei contigo. (SHAKESPEARE, 1996, p. 123)

Macbeth se deu conta de que as bruxas com as aparições blefaram. No momento em que ele aponta que elas “sopram palavra aliciante ao nosso ouvido” e as chama de “demônios”, ele tem a plena consciência de que foi um objeto de manipulação das bruxas, pois se estas não tivessem feito as previsões, é provável que ele, talvez, não tivesse feito tantas atrocidades. Há em Macbeth um rol de conspirações que fazem desta obra uma tragédia de traições e que se faz notar por ocasião em que Ross, um mensageiro e nobre escocês, comunica a Macbeth que veio saudá-lo, em nome do rei como Tane de Cawdor. A partir desse instante, rumores de traições veiculam pelos salões do castelo de Macbeth. No momento dos cumprimentos, pela nomeação de Macbeth, Angus, outro nobre da Escócia, comenta:

Vive ainda quem foi Tane de Cawdor, mas pendente de pesada sentença traz a vida, que merece perder. Se acumpliciado era com os de Noruega, ou fornecia secreta ajuda e préstimo ao rebelde, ou se, feito com ambos, trabalhava na ruína do país, não sei. Mas certo é que traições confessas e provadas o perderam. (SHAKESPEARE, 1996, p. 18)

Percebe-se aí a primeira traição explicita na obra, a deslealdade do antigo Tane de Cawdor, que se aliou às tropas inimigas, traindo o rei Duncan. Por outro lado, ao se falar de fidelidade, o que menos falta à família Macbeth é lealdade. Macbeth e esposa são unânimes no quesito traição, tanto é que eles traem a confiança do rei, quando este vai pernoitar no castelo do casal. Assim como traiu Duncan, Macbeth, com medo de perder o reino, assassina Banquo, outro amigo seu. Macbeth traiu a confiança de pessoas muito próximas a ele, a sua ambição o conduziu a estes trágicos acontecimentos. Todavia, essas ações perniciosas não foram o suficiente para ele permanecer no poder. A peça também pode ser considerada como uma tragédia de imaginação, realidade e fantasia. Macbeth é, segundo Bloom (2001, p. 633), por sugestão de seu enredo, uma tragédia da imaginação. O seu personagem mais importante é dono de uma mente prodigiosa, cuja imaginação o transforma em um joguete de si mesmo, fazendo-o vagar entre a realidade e a fantasia. A imaginação de Macbeth é tão fecunda que “ele chega a ponto” de conversar com fantasmas, a dialogar consigo mesmo e a ouvir vozes. Na noite do banquete, após o

P á g i n a | 114

assassinato de Banquo, Macbeth parece delirar ao ver o fantasma de Banquo sentado em sua cadeira, ele fica atordoado, Lady Macbeth acha estranha as palavras do marido quando ele coloca: “Foram se os tempos em que aberto o crânio o homem morria e pronto! Tudo estava acabado. Hoje a vítima, com vinte ferimentos mortais, sai de seu túmulo, toma a nossa cadeira! É mais estranho do que o próprio homicídio” (SHAKESPEARE, 1996, p. 69). Macbeth não entende como Banquo, já morto, poderia estar em sua cadeira. Esses acontecimentos dão a entender que as visões são frutos da imaginação de Macbeth, já que somente ele conseguia vê-las. Bloom (2001) descreve Macbeth como o protagonista mais imaginativo de toda a obra de Shakespeare. As vozes, as cenas dos crimes e os fantasmas surgem em virtude de sua imaginação fantasiosa. Quando Macbeth percebe que o seu desejo não gera a satisfação, ele nota que tudo está perdido e também percebe claramente o quanto foi inútil a sua luta na tentativa de se manter poder.

REFERÊNCIAS BLOOM, Harold. Macbeth. In: ______. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 632-665. HELIODORA, Barbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2009. HOUAISS, Antônio. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Moderna, 2004. SHAKESPEARE, William. Macbeth. Tradução de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. SIBONY, Daniel. Na Companhia de Shakespeare: fúria e paixão em doze peças. Tradução de Maria de Lourdes Meneses. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

P á g i n a | 115

PROPOSTAS METODOLÓGICAS PARA TRABALHAR EDUCAÇÃO INFANTIL Fábio de Melo BANDEIRA (Esp./UEG) ([email protected])

Palavras-chave: Educação Infantil, currículo, prática pedagógica, metodologias. A visão de infância e sua singularidade: o direito à educação

A infância é um conceito construído historicamente e mostra-se de diferentes modos. Na Grécia Antiga não havia designação de infância. A partir da Idade Média é que a ideia sobre esta fase da vida começa a ser construída, quando já diferenciava-se a mesma, com a compreensão de que as crianças eram adultos em miniatura. Apenas na Idade Moderna as crianças passaram a ser vistas como ser social, com papel central nas relações familiares e da sociedade. A partir daí se intensificaram as lutas pelos direitos da infância e, especificamente no Brasil, na década de 1980 foram alcançadas as garantias legais para tal fase. O artigo 29 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional prevê que, como etapa da Educação Básica, a Educação Infantil tenha como objetivo o desenvolvimento integral da criança até 05 anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social. Foram fixadas, em 2009, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – (DCNEI) (BRASIL, 2010). As DCNEI acompanham o que há de mais avançado nas discussões sobre Educação Infantil. Oferecem um avanço significativo no modo de conceber a infância, o espaço escolar e o currículo, pensados sob a ótica política. Se aplicada corretamente, esta legislação proporciona grande melhoria educacional. Nestas legislações a criança é vista como sujeito de direitos sociais, obrigatoriamente matriculada numa instituição educacional a partir dos 04 anos de idade. A instituição, por sua vez, deve ser garantida pelo Estado, seguindo princípios políticos, éticos e estéticos. Os princípios éticos dizem respeito à autonomia, à responsabilidade, à solidariedade e ao respeito pelo bem comum, pelo meio ambiente e pelas diferentes culturas, identidades e singularidades. Os princípios políticos são: dos direitos de cidadania, do exercício da criticidade e do respeito à ordem democrática. Os princípios estéticos são

P á g i n a | 116

relacionados à sensibilidade, à criatividade, à ludicidade, à liberdade de expressão nas diferentes manifestações artísticas e culturais. A criança deve ser o centro do processo educativo. Portanto, o currículo tem de articular as experiências e os saberes das crianças por meio da interação e da brincadeira, sem antecipar conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental. Os conteúdos a se trabalhar devem promover o progressivo domínio de linguagens (artes, matemática, tecnologia, tradições culturais, oralidade e escrita dentre outras) e o conhecimento de si e do mundo. Neste sentido deve-se reconhecer, respeitar, valorizar e se relacionar com a diversidade de etnias e culturas locais, combatendo o racismo e a discriminação. A autonomia das crianças tem de ser estimulada ampliando o encantamento, questionamento e vivenciando a estética, a biodiversidade natural e respeitando outros sujeitos e o planeta. Para avaliar este processo são efetuados registros que não intencionam a promoção ou seleção, mas a integração com as séries iniciais do Ensino Fundamental. A criança sempre está inserida num determinado contexto social e seus comportamentos são influenciados pelo mesmo. Por meio das relações estabelecidas com o meio e com outros indivíduos a criança vai se formando. Atualmente as diversas instituições sociais, como escola, mídia e família, não tem propiciado uma boa formação lúdica para as crianças, visto que falta espaço e tempo para tanto. Conforme se desenrola seu desenvolvimento a criança será capaz de significar o mundo de modo simbólico, mediado pela cultura a que pertence. As relações e vínculos entre a criança e o adulto (pai, mãe, professor etc.) desenvolvem a humanidade de ambos. A indisponibilidade dos adultos tem sido um fator de influência negativa para esta relação, pois são estes que tem papel de mediação e promoção do desenvolvimento. Neste sentido, o profissional de Educação Infantil tem importante papel desde que considere o cuidar e o educar, que dizem respeito a promover o aconchego e bemestar das crianças ao mesmo tempo em que impulsiona-se o desenvolvimento destas. Neste processo é importante: deixar de lado atividades que tem por objetivo a submissão, o disciplinamento, o silêncio, a obediência; não oferecer uma prática que proporcione a escolarização precoce; superar a rotina tradicional de atividades com lápis e papel para a alfabetização ou numeralização precoce, com rigidez dos horários e da distribuição das atividades em rotinas pobres e empobrecedoras; oferecer às crianças condições para as aprendizagens que ocorrem nas brincadeiras e adivinhas; auxiliar o desenvolvimento e conhecimento das potencialidades corporais, afetivas emocionais, estéticas

P á g i n a | 117

e éticas; criar situações significavas de aprendizagem para alcançar o desenvolvimento de habilidades cognitivas, psicomotoras e socioafetivas; oferecer experiências desafiadoras; respeitar as manifestações da criança; seguir os princípios de promoção da saúde; respeitar e reconhecer a cultura e nível econômico da criança, estando informado de todo seu contexto histórico.

A organização

A organização do cotidiano das crianças na Escola Infantil implica refletir que a instituição é, antes de qualquer coisa, o resultado da leitura que é feita das crianças, de acordo com suas necessidades. A organização do tempo deve presumir o surgimento de diversas possibilidades de atividades, em grupo ou individuais, considerando as necessidades biológicas, psicológicas, sociais e históricas da criança. As atividades diversificadas para livre escolha permitem que as crianças escolham o que desejam fazer, desde que o ambiente em termos de materiais e espaços o permita, sendo um momento adequado para interações e observações significativas do adulto junto às crianças. O espaço físico e social é fundamental para o desenvolvimento das crianças, estruturando suas funções motoras, sensoriais, simbólicas, lúdicas e relacionais. Ao pensarmos no espaço para as crianças devemos levar em consideração que o ambiente é composto por gosto, toque, sons e palavras, regras de uso do espaço, luzes e cores, odores, mobílias, equipamentos e ritmos de vida. Através do uso do espaço pode-se promover a identidade pessoal das crianças; promover o desenvolvimento da competência; promover a construção de diferentes atividades; promover oportunidades para o contato social e a privacidade.

Promovendo o desenvolvimento do faz-de-conta

Por envolverem extrema dedicação e entusiasmo, os jogos das crianças são fundamentais para o desenvolvimento de diferentes condutas e também para a aprendizagem de diversos tipos de conhecimentos. Nos primeiros meses de vida, a atividade do bebê é bastante limitada e suas possibilidades de exploração são reduzidas; à medida que descobre novas possibilidades de movimento, novas capacidades perceptivas e motoras vão se desenvolvendo, e o contato com o mundo se amplia através de experiências que transformam a mente e o corpo do bebê.

P á g i n a | 118

Os jogos simbólicos ocorrem a partir da aquisição da representação simbólica, impulsionada pela imitação. A criança bem pequena só é capaz de imitar um modelo que esteja presente, pois não é capaz de imaginar; mais adiante, na etapa simbólica, a criança passa a imitar modelos ausentes, ou seja, ela reproduz um modelo interiorizado (imaginado). É necessário que estejam previstos na rotina escolar períodos de tempo consideráveis destinados ao jogo livre, permitindo, assim, que as crianças interajam entre si e com os objetos de forma espontânea. Certa quantidade e variedade de materiais, organizados de maneira a oportunizar a fácil manipulação pelas crianças, também é um fator fundamental para estimular o faz-de-conta. A sala de aula da escola infantil deve, antes de qualquer coisa, ser um espaço visualmente limpo e claro, permitindo que as crianças desenvolvam suas capacidades de criação e imaginação. É fundamental que o professor dedique alguns minutos para organizar o espaço de sua sala de aula e contar com ajuda das crianças que, com enorme prazer e dedicação, se envolvem nas tarefas propostas, criando um ambiente de cooperação. O adulto tem a função de “observação”, intervindo o mínimo possível, de maneira a garantir a segurança e o direito à livre manifestação de todos. A segunda função é a de “catalisador”, procurando, através da observação, descobrir as necessidades e os desejos implícitos na brincadeira, para poder enriquecer o desenrolar de tal atividade. E, finalmente, de “participante ativo” nas brincadeiras, atuando como um mediador das relações que se estabelecem e das situações surgidas, em proveito do desenvolvimento saudável e prazeroso das crianças.

Na escola infantil todo mundo se você brinca

O brincar proporciona a troca de pontos de vista diferentes, ajuda a perceber como os outros os veem, auxilia a criação de interesses comuns, e esta é uma razão para que se possa interagir com o outro. A crianças pensam e se expressam pelo ato lúdico e é através dele que a infância carrega consigo as brincadeiras. Elas perpetuam e renovam a cultura infantil, desenvolvendo formas de convivência social, modificando-se e recebendo novos conteúdos, a fim de se renovar a cada nova geração. À medida que a criança cresce, as brincadeiras vão tomando uma dimensão socializadora. Os participantes se encontram, têm uma atividade comum e aprendem a coexistência com tudo que lhes possibilita aprender, como o lidar com o respeito mútuo, partilhar brinquedos, dividir tarefas e tudo aquilo que implica uma vida coletiva.

P á g i n a | 119

Compreende-se que para o desenvolvimento infantil acontecer de forma plena, abrangendo todos os seus aspectos, faz-se necessário que o educador considere a criança como um ser único, rico em experiência, que tenha conhecimentos referentes à organização do tempo e espaço, e que saiba incluir de forma prazerosa, mas, visando um objetivo a ser alcançado o faz-de-conta e as brincadeiras, brinquedos e jogos na educação infantil.

Temas de saúde em instituições de educação infantil

Saúde envolve a busca do equilíbrio físico, mental e social, bem como a relação do indivíduo com seu ambiente. Saúde é movimento, ação. Por isso, falar sobre saúde nas Instituições de Educação Infantil implica promover ações de higiene, prevenção de doenças e de acidentes e a realização de atividades que busquem o crescimento e o desenvolvimento da criança em sua totalidade. Em linhas gerais, é vital que a instituição tenha informações sobre o ambiente de moradia das crianças, bem como de seu histórico de saúde e remédios ou tratamentos que faz. Também é importante manter a sala de aula bem ventilada, aproveitando a iluminação natural e o sol fora da sala em horários até às 10h:00min e depois das 17h:00min., assim como tomando cuidados básicos com relação à higiene da criança (troca de fraldas, limpeza na alimentação, roupas adequadas, limpeza de colchonetes e roupa de cama etc.). Com relação aos problemas de saúde, há maior frequência de febre, convulsão, assadura, piolhos, sarna, conjuntivite, diarreia, verminose e sapinho. É necessário que o educador esteja atento a sinais indicativos destes problemas e comunique a família e os serviços de saúde para o tratamento mais breve possível. O sono não deve ser entendido sempre da mesma maneira para cada faixa etária, pois cada criança possui um ritmo próprio em relação às horas de sono de que necessita para descanso. Os cuidados com acidentes (intoxicação, queimaduras, quedas, choques elétricos, engasgamentos, afogamentos etc.) também são necessários. É preciso ter noção de primeiros socorros e ter uma caixa de primeiros socorros para caso de emergência, e a falta desta muitas vezes pode ser fatal. Primeiros socorros é a parte inicial do atendimento que a vítima recebe até que seja atendida por um profissional especializado para o caso. Quem lida com crianças deve-se ter um cuidado redobrado, tendo a criança sempre no seu campo de visão.

P á g i n a | 120

Sexualidade

A educação para a sexualidade acontece há tempos nas escolas brasileiras, ainda que inicialmente o foco estivesse na questão reprodutiva. Especialmente depois do advento da AIDS e do incremento das taxas de fecundidade entre as mulheres jovens, a temática da sexualidade passou a conquistar um espaço maior na agenda escolar. Os PCN apontam como as escolas, os educadores e a comunidade escolar – famílias e responsáveis – devem se posicionar no trabalho em relação ao tema da sexualidade junto às crianças, abordando assim a temática da sexualidade nas escolas. A escola deve informar e discutir os diferentes tabus, preconceitos, crenças e atitudes existentes na sociedade, buscando uma condição de maior distanciamento pessoal por parte dos professores para empreender essa tarefa.

Como trabalhar a música e a arte na educação infantil

A educação através da arte é um movimento educativo e cultural que busca a constituição de um ser humano completo, total, dentro dos moldes do pensamento idealista e democrático. Valoriza no ser humano os aspectos intelectuais, morais e estéticos, procura despertar sua consciência individual, harmonizando o grupo social ao qual pertence. O papel do professor é buscar atividades artísticas que, além de prazerosas, possam contribuir para o crescimento da criança. Algumas sugestões são: fazer massa de bolo enroladinho de polvilho para ser assado, criar massinha de modelar comestível, pintar a parede com arte das crianças, reciclar para fazer artes. Os sons do cotidiano podem ser trabalhados de forma bem interessante. Basta que saibamos ouvi-los para que possamos nos conectar com o mundo sonoro. O educador pode pedir que as crianças fiquem em silêncio e observem os sons ao seu redor, depois peça que eles descrevam e imitem os sons que ouviram, assim como é possível reproduzir sons, realizalos ou observá-los em passeios.

Falando em literatura

A educação preocupa-se em contribuir para a formação de um indivíduo crítico e atuante na sociedade, perante o nosso cotidiano onde o contato social acontece de forma rápida e instantânea, seja pela leitura, escrita, ou linguagem oral e visual: “Numa escola em

P á g i n a | 121

que todos os educadores se ocupassem da formação de leitores assim, todo livro e todas as vivências seriam instrumento humanizador e libertador” (REZENDE, 2003, p. 15). Há formas que contribuem para que a criança desperte o gosto pela leitura: a curiosidade e o exemplo. Neste sentido é importante começar desde os costumes diários presente em casa. Iremos ter sucesso na formação de leitores se propiciarmos às crianças uma relação prazerosa com a literatura, inserindo desde muito cedo um contato frequente com livros, também o ato de ouvir e contar histórias com diversas ilustrações de forma agradável. Dos zero aos dois anos é importante que o livro seja tocado pela criança, folheado de forma que ela tenha um contato mais íntimo com o objeto, vendo-o também como um brinquedo agradável. Aos três anos os contos de fadas têm espaço singular nas suas histórias preferidas, pois as mesmas auxiliam a organizar suas experiências de vida, ajudando as crianças em qualquer contexto seja ele social, econômico, cultural, ou racial. Pode-se até mesmo discutir as leituras realizadas. Na faixa dos quatro anos de idade os livros podem conter uma linguagem simples com começo, meio e fim. Ainda com imagens predominantes, é importante trabalhar com outros gêneros portadores de textos. Os pais podem ser chamados para uma exposição das crianças, obtendo a participação e a cooperação na construção do sujeito leitor. A sala de aula pode ter espaço para uma biblioteca pequena, expondo os livros de forma variada e deixando os livros acessíveis em locais ventilados e iluminados. A oralidade, assim como o universo do livro, é campo rico que pode ser trabalhado desde muito cedo. Sabe-se que cada criança tem seu próprio ritmo de aprendizagem, porém, não é por isso que devemos deixá-la sem estímulo. Sabendo das limitações das crianças e respeitando as suas etapas, os educadores que trabalharem na área podem fazer do lúdico e da literatura fontes ricas para o desenvolvimento da oralidade. Na Educação Infantil se está lendo e escrevendo sempre com as crianças, ou seja, começaremos a exploração da linguagem escrita com ela. Continuaremos a fazê-lo sem compromisso ou o objetivo de alfabetiza-los até o final deste período de escolaridade. É importante criar e garantir que professores e alunos leiam e escrevam por meio da confecção de livros, troca de cartas, atividades culinárias com receitas, cópia ou criação de poesias, elaboração de jornais ou revistas.

P á g i n a | 122

O ensino de ciências pode propiciar o contato com a diversidade de formas de vida e de ambientes procurando-se incluir a espécie humana entre as demais espécies e superar visões utilitaristas e antropocêntricas da natureza. Outro aspecto importante a ser considerado é que esta proposta incentiva a busca permanente de informações, o desassossego. Pode-se observar a natureza, desenvolver trabalhos a partir de literatura infantil, estudar o próprio corpo e a importância do cuidado com o lixo e sustentabilidade da Terra, superando a fragmentação dos conhecimentos.

REFERÊNCIAS:

ALVES, Rubem. O desejo de ensinar e a arte de aprender. Campinas: Fundação Educar Dpaschoal, 2004. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 21. ed. Tradução Arelene Caetano. São Paulo: Paz e Terra, 2007. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC, SEB, 2010. CRAIDY, Carmen Maria; KAERCHER, Gládis Elise P. Da Silva. (org.) Educação Infantil: pra que te quero? Porto Alegre: Artmed, 2001. FUSARI, Maria Felismina de Resende e; FERRAZ, Maria Heloisa Correira de. Arte na educação escolar. São Paulo: Cortez, 2011. ELIAS, Marisa Del Cioppo. Celéstin Freinet: uma pedagogia de atividade e cooperação. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. MACHADO, José Ricardo Martins; NUNES, Marcos Vinicius da Silva. 100 jogos psicomotores: uma prática relacional na escola. 2. ed. Rio de Janeiro: Wak E., 2011. RESENDE, Vânia Maria. Literatura Infantil & Juvenil: vivências de leitura e expressão criadora. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

P á g i n a | 123

A EDUCAÇÃO PARA O TRÂNSITO: VIVENDO E APRENDENDO NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL Fábio de Melo BANDEIRA (Esp./UEG) ([email protected]) Ludimilla Ribeiro de ALMEIDA (UEG/G) ([email protected]) Patrícia Pereira DAMASCENA (UEG/G) ([email protected]) Rosilene Antônio dos SANTOS (Discente UEG/G) ([email protected])

Palavras-chave: Educação, trânsito, cidadania, Ensino Fundamental. Este trabalho busca refletir sobre a importância de trabalhar o “trânsito como tema transversal” nos anos iniciais do Ensino Fundamental e fazer uso dos temas abordados como suporte na formação das crianças: Quanto mais cedo se tem contato com a legislação de trânsito e as normas gerais de circulação e conduta, mais fácil é formar hábitos civilizados compatível com que a nossa sociedade clama. Para conhecer o CTB não é necessário ser condutor habilitado e nem maior de idade. As normas de trânsito foram feitas para todos, portanto, todas as pessoas devem entrar na luta pela paz no trânsito, embasado nas conquistas de todos no direito de ir e vir com liberdade e segurança. (MACIEL, 2008, p. 116)

Pode-se observar que o processo educativo deve criar indivíduos com condições suficientes para que possam compreender com criticidade o mundo atual, a sociedade, e o espaço que estão inseridos. Nesse sentido, a educação para o trânsito desenvolvida em paralelo à educação formal permite que os alunos desenvolvam hábitos e construam valores significativos para a qualidade da vida no trânsito. Partindo dessa perspectiva, é intuito desenvolver em sala de aula nos anos iniciais do Ensino Fundamental o reconhecimento das leis de trânsito, o respeito, a ética, a educação, o companheirismo, a cooperação, a tolerância, a solidariedade e conscientizar as crianças da importância de um trânsito seguro que prioriza sempre a vida: “A convivência humana harmônica entre as pessoas é importante, pois para se locomoverem no trânsito se faz necessário. [...] organização, respeito dos direitos e deveres individuais e de grupos ” (MARTINS, 2004, p. 47).

P á g i n a | 124

Importante ressaltar que a implementação do tema na grade curricular dos anos iniciais do Ensino Fundamental, se faz necessário na medida em que ações educativas permanentes, que perpassam apenas

a assimilação de regras, normas e leis de trânsito

proporcionam um aprendizado capaz de promover a circulação nas ruas de forma consciente e criar situações que demonstrem o significado dos valores sociais que devem serem valorizados no trânsito. Com isso, trabalhar em favor de uma educação que contribua para o desenvolvimento de comportamentos em prol da socialização consciente no trânsito enquanto espaço público é um grande desafio, e o compromisso a ser assumido pelos professores do Ensino Fundamental. A seguir, desenvolveremos o trabalho definindo e conceituando teoricamente o trânsito, educação e a formação de valores, e a importância dos mesmos nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Conceito: trânsito

A nosso ver, não é fácil encontrar uma definição sobre o trânsito que contemple todas as suas vertentes. É uma tarefa bastante complexa, visto que, cada autor, trabalha com pontos de vista diferentes. Segundo o Código de Trânsito Brasileiro (1997), o trânsito é a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga e descarga. Por ser um espaço coletivo, todos que nele estão inseridos tem direitos e deveres, por isso, é preciso haver compreensão e respeito mútuo por todos. Através dessas condições, se viu necessário criar leis, normas e sinais que sistematizados, garantem o equilíbrio de todos, e dele que se faz uso. Além da questão técnica, o trânsito também é uma questão social e política. Sendo assim, quando discutimos sobre o trânsito, devemos descrever as características da sociedade na qual se insere, e ao refletimos sobre elas, o trânsito deverá trazer debate sobre a questão socioeconômica e psicossocial, e, além disso, é preciso compreender sobre o comportamento de cada sujeito integrante que faz uso desse destino de circulação, para que possa permitir ou assegurar o direito a todos de sua utilização. Partindo de tais pressupostos, pode-se compreender que o trânsito é caracterizado por pessoas de uma determinada sociedade com suas diversas diferenças. De acordo com Vasconcelos (1988), todos fazem parte da circulação geral, cada um com sua condição de deslocamento, seus interesses e necessidades.

P á g i n a | 125

Segundo Batista (1985), o fenômeno “trânsito” é produzido a partir de comportamentos de indivíduos e de seus efeitos no ambiente, sendo que estes ambientes, por suas características físicas, possibilitariam a ocorrência de certos comportamentos impedindo a ocorrência de outros. Rozestraten afirma que o trânsito é “o conjunto de deslocamentos de pessoas e veículos nas vias públicas, dentro de um sistema convencional de normas, que tem por fim assegurar a integridade de seus participantes” (1988, p. 4), e prossegue afirmando que o sistema funciona através de uma série bastante extensa de normas e construções que são constituídos de vários subsistemas, dentro os quais os três principais são: o homem, a via e o veículo. O homem aqui é o subsistema mais complexo e, portanto, tem maior probabilidade de desorganizar o sistema como um todo. (ROZESTRATEN, 1988, p. 5). Em relação à sociedade, podemos dizer que ela é uma obra dos homens, por isso estão nas mãos deles as possibilidades de transformá-la. É nossa responsabilidade tornar o trânsito um bem social e transformá-lo. Está claro que essa responsabilidade se deve a nós; é ai que entra o papel da educação. Esta tem por finalidade o aprofundamento e a tomada de consciência da realidade, fazendo questionar a “naturalidade” dos fatos sociais, entre eles o trânsito. A educação para o trânsito deve, portanto, promover o desenvolvimento do aluno de forma sistemática, fornecendo-lhe conteúdos desde o pré-escolar até o ensino superior por meio de discussões, campanhas e, principalmente, sensibilização fundamentais para o trânsito, como uma atividade humana, a exercer sua cidadania consciente de seus deveres, direitos e responsabilidades. Conceito da educação

A educação, enquanto processo humano e de socialização, contribui no processo de pensamento do sujeito sobre diferentes problemas, auxiliando no crescimento intelectual e na formação de cidadãos capazes de gerar transformações positivas na sociedade. Ao receber a educação, a pessoa assimila, adquire e transforma conhecimentos. A educação também envolve uma sensibilização cultural, comportamental e de valores, favorecendo o desenvolvimento dos indivíduos na dinâmica sociocultural do seu meio. Dentro do espaço escolar, o processo educativo é materializado numa série de habilidades e valores, que ocasionam mudanças intelectuais, emocionais e sociais no ser humano. De acordo com o grau de sensibilidade alcançado, e havendo diálogo entre os envolvidos, esses valores ajudarão a formar sujeitos críticos e conscientes.

P á g i n a | 126

No caso das crianças, a educação visa fomentar o processo da estruturação do pensamento e das formas de expressão. Contribui para o processo de maturidade crítica e estimula a integração e o convívio em grupo. A educação formal escolar, por sua vez consiste na apresentação sistemática de ideias, fatos e técnicas aos alunos. Uma pessoa exerce uma influência ordenada e voluntária sobre outra com a intenção de formá-la. Assim, o sistema escolar é a forma pelo qual uma sociedade transmite e preserva a sua existência coletiva entre as novas gerações. Paulo Freire (2011) nos diz que “a educação tem caráter permanente. Não há seres educados e não educados, estamos todos nos educando. Existem graus de educação, mas estes não são absolutos”. Esta afirmação nos faz refletir que sempre estamos em processo de aprendizagem continua.

Educação para o trânsito como tema transversal O tema trânsito pode ser trabalhado em todas as disciplinas, tanto como tema principal, como também para ilustrar os demais conteúdos, sem anular a importância do curriculum escolar. O objetivo é ampliar o entendimento dos alunos para o exercício da cidadania nas vias públicas e fazer com que eles levem os conhecimentos adquiridos na escola para dentro de suas casas de forma que, esta ação, ganhe significado na medida em que a qualidade de suas vidas e da comunidade mude para melhor: As Diretrizes Nacionais da Educação para o Trânsito no Ensino Fundamental são referências e orientações pedagógicas para a inclusão do trânsito como tema transversal ás áreas curriculares e ancoram-se nos seguintes fundamentos: I-priorizar educação para a paz a partir de exemplos positivos que reflitam o exercício da ética e da cidadania no espaço público; II-desenvolver posturas e atitudes para a construção de um espaço público democrático e equitativo, por meio do trabalho sistemático e contínuo, durante toda a escolaridade, favorecendo o aprofundamento de questões relacionadas ao tema trânsito; III-superar o enfoque reducionista de que ações educativas voltadas ao tema trânsito sejam apenas para preparar o futuro condutor; (CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO, 2009)

A educação para o trânsito, de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, pode ser definida como uma ação para desenvolver no ser humano, capacidades de uso e participação consciente do espaço público uma vez que, ao circular, os indivíduos estabelecem relações sociais, compartilham os espaços e fazem opções de circulação que interferem direta ou indiretamente na sua qualidade de vida e nas daqueles com quem convive

P á g i n a | 127

nesse espaço. É importante ressaltar que o Código de Trânsito, com suas leis e normas, não mudam a sociedade sozinha. É necessário haver o envolvimento da sociedade. Sendo assim, as Diretrizes Nacionais de Educação nos fornecem instrumental eficaz para a realização de um trabalho eficiente e voltado para a construção de valores, que contribuem para conscientizar os indivíduos do seu papel na redução dos acidentes de trânsito e na valorização da vida. A escola tem como responsabilidade ajudar a despertar, nas crianças, a importância da ação individual na “construção” do espaço coletivo e que os mesmos sejam capazes de conseguir abstrair aquilo que é o dia a dia de sua vida, das questões que acontecem no lugar em que vivem. Diante disso, a escola deve constituir-se em espaço de planejamento de atividades de situações problemas e significativas, promovendo uma educação preocupada com a formação de cidadãos mais conscientes com as problemáticas do trânsito e mais comprometida em buscar soluções para mudanças de valores e atitudes, tendo como base de formação a solidariedade, o companheirismo, a responsabilidade e respeito para com outro. Os trabalhos sobre o trânsito nas escolas requer a elaboração de projetos próprios, que incluam ações educativas de trânsito como: atitudes cooperativas, elaboração de materiais em grupos, troca de informações, programas de educação com longa duração, ferramentas adequadas. Neste sentido, encontra-se o papel do professor responsável pela mediação dos conhecimentos. Para isso, é necessário que os educadores estejam em processo contínuo de pesquisa e atualização profissional. É importante esclarecer que os temas transversais não são novas áreas ou disciplinas. Eles têm por objetivo trazer à tona, em sala de aula, questões sociais que possibilitem a construção da democracia e da cidadania. Eles devem ser incorporados ao projeto pedagógico das escolas, por isso, têm caráter de transversalidade, sendo parte integrante das áreas e não algo estanque que entra no ensino para ser refletido e analisado a partir de um trabalho compartilhado entre alunos e professores. Nesse sentido, o tema trânsito é compreendido de modo abrangente, podendo ser inserido de forma transversal e trabalhado em todas as disciplinas, pois faz parte da realidade e do cotidiano de todas as pessoas, enquanto condutores, passageiros ou pedestres, em todos os tempos, em todos os lugares.

Valores

P á g i n a | 128

A educação deverá estar baseada na prática de valores éticos, habilidades e autoestima, onde o valor a vida seja o foco principal. E é com o envolvimento da família que se busca alcançar este objetivo. Os pais são modelos para seus filhos, que assimilam e reproduzem seus hábitos e atitudes, inclusive no trânsito. Se o exemplo que a criança tem é de um comportamento civilizado e prudente, provavelmente ela vai adotar uma conduta semelhante quando adulta for. A construção do conhecimento acontece de maneira significativa, pois quanto mais o aluno está envolvido em um processo que adota uma abordagem integradora, a qual inclua, além dos conteúdos do tema em si, os problemas contemporâneos, os interesses do aluno e sua vivência. Trabalhar o tema trânsito nessa concepção permite que os alunos analisem os problemas, as situações e os acontecimentos em sua globalidade, utilizando, para isso, os conteúdos do tema e a sua experiência. É importante que se envolvam e se conscientizem os pais sobre o trabalho que será realizado na escola e sobre a necessidade de que, em casa, estas orientações sejam reforçadas. Só um processo contínuo de educação poderá fornecer ao ser humano meios de se adaptar as rápidas e constantes mudanças, pois, à medida que os membros de uma sociedade forem criando hábitos corretos, é natural que esses cidadãos passem a cobrar uns dos outros um comportamento correto no trânsito. A educação de valores humanos deve proporcionar ao aluno experiências solidárias e cooperativas na sala de aula e no trânsito, transformando a visão fragmentada em visão integradora de mundo. Com isso, o aluno deixa de ser apenas um memorizador de regras de trânsito, pois ele é um ser em desenvolvimento e se apropriando, ao mesmo tempo, de um determinado objeto de conhecimento (no nosso caso se formando como sujeito). Deve-se buscar a construção de uma prática pedagógica compatível com a formação global dos alunos, objetivando não somente a redução dos acidentes, mas a redução dos riscos presentes nas vias. Por fim, acredita-se que o educador tenha competência para identificar o que seu aluno pensa, se este tem ou não uma visão crítica sobre determinado assunto. O mais importante para o educador, no entanto, não é somente conhecer seu aluno, mas principalmente “trabalhar” sua percepção e sentimentos, criando oportunidades para que ele se expresse e divida, com seus colegas, suas expectativas e medos. O educador também deverá posicionar-se nas discussões, por exemplo, mostrando-se indignado com a violência, sem receios de não ter respostas prontas.

P á g i n a | 129

Criança, trânsito e educação

Desde o ventre materno, estabelecemos formas de interação social. A educação possibilita a interação do indivíduo ao meio social e a prevenção de acidentes. Os pais ou responsáveis tem importância fundamental na educação de seus filhos..., através de uma avaliação, perceberem que as crianças demonstram maior expansão de aprendizagem e de serem futuros responsáveis por um trânsito mais consciente e seguro. Devemos considerar que o trânsito comporta grupos diferentes de pessoas que transitam de um lado para o outro. Dentre esses grupos, podemos destacar o das crianças, que merece atenção especial. As crianças fazem parte de um grupo de risco, pois estão mais vulneráveis e propensas às ocorrências de acidentes, e poucos delas se encontram preparadas para lidar seguramente com o trânsito. Conforme Rozestraten (1998), as crianças encontram-se em risco quando estão no trânsito, pois: Não reagem como adultos; Não enxergam e não percebem como os adultos quanto à maneira como um carro se aproxima; Confundem o “ver” com o “ser visto”; Tem um campo visual mais estreito; Confundem tamanhos com distâncias; São distraídas.

REFERÊNCIAS:

BATISTA, C. G. Estudo observacional das relações comportamento/ambiente no trânsito. Psicologia e trânsito. Uberlândia: 1.1, p.6-19, 1985. BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro: Instituído pela Lei nº 9.503 23/09/97 – 1ª Ed. Brasília: Denatran, 2009. BRASIL. Departamento Nacional do Trânsito. Diretrizes Nacionais da Educação para o trânsito no Ensino Fundamental/ texto de Juciara Rodrigues; Ministério das Cidades. Departamento Nacional de Trânsito, Conselho Nacional de Trânsito. Brasília: Ministério das Cidades, 2009. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais, ética. Brasília: MEC/SEF, 1997.

P á g i n a | 130

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 43ª. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. MACIEL, Marilene de Sousa. Trânsito e educação numa proposta transversal. Caderno Discente do Instituto Superior de Educação – Ano 2, n. 2. Aparecida de Goiânia, 2008. MARTINS, João Pedro. A educação de trânsito: campanhas educativas nas escolas. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. ROZESTRATEN, R. J. A. Psicologia do trânsito: Conceitos e processos básicos. 1ª Ed. São Paulo: EPU: Editora da Universidade de São Paulo. 1988

P á g i n a | 131

O DUPLO EM O MÉDICO E O MONSTRO, DE ROBERT LOUIS STEVENSON Grazielle Vieira GARCIA (IFTO/Esp.) ([email protected])

Palavras-chave: Duplo, Stevenson, imortalidade, desdobramento de personalidade

O romance The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde é a obra mais conhecida do escritor escocês Robert Louis Stevenson. A primeira edição surgiu em meados de 1886 e foi traduzida para o português com o título de O médico e o monstro, que trata, principalmente, do tema do desdobramento da personalidade, nas figuras de Dr. Jekyll, funcionando como o eu original e do Sr. Hyde, o seu duplo. A partir do histórico do duplo relatado por Nicole Bravo, em seu verbete “Duplo” presente no Dicionário de mitos literários, ele pode ser divido em dois momentos: o homogêneo, que vai da Antiguidade até o século XVI (2000, p. 263), e o heterogêneo, que vai do século XIX até o século XX (2000, p. 264), com isso, podemos considerar que a obra O médico e o monstro de Robert Louis Stevenson está no segundo contexto, pois é nessa segunda fase que há a “divisão do eu”, quer dizer, o duplo não é representado por duas figuras homogêneas, e sim por duas que se opõem. Assim, a caracterização de Jekyll e Hyde funcionará como um paradoxo, já que um representará a “boa” personalidade enquanto o outro será o lado “ruim”. Por ser gerado através de uma fórmula, Hyde é um duplo que surge de dentro para fora, o que nos remete a Carla Cunha, em seu verbete “Duplo”, no qual ela faz referência a dois tipos: o exógeno e o endógeno. O duplo exógeno se refere a um “outro eu”, que tem as mesmas características e as mesmas representações do eu originário. São os espelhos de si mesmos, e só através de um “julgamento tridimensional” do primeiro “eu” que pode ser reconhecido o “outro”, havendo uma “identificação (duplo positivo) ou uma oposição (duplo negativo)” (CUNHA, 2014). O endógeno designa um desdobramento, em que pode ou não haver harmonia entre o “eu” e seu duplo. A negação do duplo pode ocorrer se houver uma oposição ou uma relação “bilateral” entre eles. Tendo em vista que o duplo tem sua gênese determinada em um sujeito, sendo esse uma mimese, ele não pode desfrutar das mesmas leis que são subjacentes ao “eu” do qual se originou. Esse duplo ainda constitui um compromisso entre a exterioridade e a interioridade do sujeito, refletindo o seu interior e admitindo o seu exterior, pois

P á g i n a | 132

independente, já o difere do “eu” original. A criação do duplo obedece ainda um princípio de autoconsciência que tem um papel determinante, já que nenhum duplo surge do nada. O “outro” surge do “eu” que contém um conhecimento satisfatório de sua interioridade, para exteriorizar através de uma imitação. Porém, sendo uma cópia do primeiro, ele não pode ser exatamente o sujeito original. A partir do momento em que é gerado, ganha independência e possui outra essência, o que o faz diferenciar do “eu” passando a ser o “outro” (CUNHA, 2014). Observamos que a teoria do duplo “endógeno” está ligada ao duplo relatado em O médico e o monstro, pois Hyde é o outro ser de Jekyll, originou-se dele por meio de uma fórmula, e assim teve vida própria e características particulares. Jekyll é um homem honrado, que cumpre corretamente seus direitos e deveres de cidadão enquanto Hyde é um assassino que utiliza da mais pura crueldade, não respeita o ser humano e nem as leis da humanidade. Hyde e Jekyll, apesar de serem a mesma pessoa, são criaturas completamente opostas. Jekyll, que é um homem envolvido com a ciência, tem conhecimento a respeito da dualidade humana, e ele tenta, por meio de uma poção, separar o bem do mal, como ele mesmo diz na sua confissão final: “ia-se cavando em mim, mais do que na maioria dos mortais, esse profundo fosso que separa o mal do bem e divide compõe a dualidade de nossa alma” (STEVENSON, 2005, p. 71). Ele então coloca em prática seu desejo de dividir o lado bom do mal, aplicar na prática a sua teoria da dualidade humana, através de um experimento científico. Ao obter sucesso na experiência, Jekyll conseguiu expor o seu lado negro puro, sem qualquer indício de bondade. A ideia de pureza não significa, necessariamente, estar livre de qualquer mal ou impureza. O dicionário Oxford apresenta o vocábulo pure (puro) como algo não misturado, livre de qualquer substância adicionada. Isso significa que Hyde se tornou o lado mau, na sua essência, pura, da maldade de Jekyll, reconhecida pelo próprio médico:

[A]rriscara-me na experiência enquanto estava sob o império de aspirações generosas e científicas [...] E daí resultou Edward Hyde. Portanto, se tinha dois caracteres e duas aparências, uma dessas era inteiramente inclinada ao mal, a outra era ainda o velho Henry Jekyll. (STEVENSON, 2005, p. 75)

Concordamos com Nicole Bravo (2000, p. 277), em seu verbete sobre o duplo, quando diz que o mal se “desenvolve com pleno vigor” e que a virtude de Jekyll vai se tornando fraca, pois este, limitado entre o “Id = Hyde e o superego = o médico, o ego reduz-se a uma espessura mínima”. Afinal, Hyde é tudo aquilo que o doutor não pode ser, no sentido

P á g i n a | 133

em que este age sem nenhum escrúpulo, age com severidade, enquanto Jekyll é um homem íntegro, e bem relacionado na sociedade. Contudo, não podemos esquecer que, de forma alguma, Jekyll é o lado bom de Hyde. Jekyll é a reunião dessas duas categorias distintas, a soma do bem e do mal. O mal, de forma alguma, é prejudicial para Jekyll, já que é uma característica inerente ao ser humano. A coexistência de princípios que se opõe é até tido como fator de equilíbrio em algumas religiões, como o caso do símbolo do Yin e Yang, da filosofia do Tai Chi. O que provocou desequilíbrio foi Jekyll viver plenamente apenas com um dos seus lados. Fica subentendido que a coexistência dos dois princípios, de forma conflitante no ser humano, de acordo com Jekyll, é que constitui o ser humano:

E aconteceu que o sentido dos meus estudos científicos, que me conduziam à mística e às coisas transcendentes, suscitou e derramou imensa claridade nesse caráter de guerra permanente entre o bem e o mal em que me debatia. Em cada dia, as duas partes da minha inteligência, a moral e a intelectual, atraiam-me mais e mais para essa verdade, cuja descoberta parcial fora em mim condenada a tão pavoroso naufrágio: que o homem não é realmente um, mas duplo. (STEVENSON, 2005, p. 72, grifo nosso)

Para além do conflito entre bem e mal, Otto Rank discute que a ideia de duplo vem pela necessidade do eu de lutar contra o problema ontológico da finitude existencial. Assim, ele (o duplo) apresentará sempre características desenvolvidas para combater, muitas vezes de forma inconsciente, a morte do eu original. Em O médico e o monstro, Edward Hyde é essa tentativa de Jekyll de se distanciar da morte. O seu outro lado tem aparência mais jovem, com estatura menor e com mais vigor físico, inclusive com mais vontade de viver, mesmo que para isso, cometa alguns crimes. O próprio médico reconhece essas características: “Edward Hyde parecia mais novo, mais ágil, mais leve do que Henry Jekyll” (STEVENSON, 2005, p. 74). O fato de Hyde ser mais novo implica nessa fuga, pois quanto mais jovem, mais tarde chegará a morte. Por esse motivo, o monstro foi aos poucos se tornando mais forte que Jekyll. A teoria de Rank a respeito do duplo, em que este é a fuga da morte do eu, é criticada por Clément Rosset (1999, p. 77- 78), que defende que a preocupação da criação do duplo está além da fuga da morte, pois o medo da não existência é o fator determinante. Por esse motivo, o pior erro seria matar o outro, pois estaria matando a si mesmo. E a solução para esse problema de desdobramento não está na mortalidade do ser, e sim na sua própria

P á g i n a | 134

existência. O eu é único, não pode se ver, e as coisas do mundo são caracterizadas pela sua unicidade, se o outro morre, não há mais nenhum. Não discordamos da teoria de Rank, pois o duplo é visto sim como uma tentativa de fuga da morte. Contudo, consideramos a teoria de Rosset, pois na obra O médico e o monstro, como já foi dito, o Sr. Hyde é uma tentativa de Dr. Jekyll de escapar da morte, porém com o fim do duplo, o eu original também é extinto. Jekyll percebe a vitalidade de Hyde é o desejo dele de viver intensamente, o seu amor pela vida: E se não fosse o seu medo da morte, há muito ter-se-ia destruído para me envolver na sua própria ruína. O amor pela vida, contudo era extraordinário. Direi mais: eu, que adoecia e gelava de horror só em pensar nele, quando compreendi a abjeção e a persistência desse seu amor pelo mundo e quando percebi o receio que tinha de que o inutilizasse pelo suicídio, principiei a sentir compaixão por ele. (STEVENSON, 2005, p. 85)

Essa é a parte pela qual Dr. Jekyll declara o medo que o Sr. Hyde tem em relação à morte. Se pensarmos de acordo com Rank, o medo da morte não é algo exclusivo de Hyde, o reflexo de Jekyll. Estamos querendo dizer que Hyde, sendo a projeção do Id de Jekyll, o medo da morte é inconscientemente representado pelo próprio desdobramento. E, ao pensar no suicídio, automaticamente o médico sabe que os dois morrem, tanto seu eu quanto seu duplo. Daí a unicidade das coisas. Os dois são, portanto, uma só pessoa. O romance O médico e o monstro tem um desfecho trágico porque Hyde comete suicídio quando percebe que não tem como escapar das investidas do Sr. Utterson e do mordomo Poole, quando estava preso dentro do laboratório. Os dois veem o corpo de Hyde e procuram o médico. Eles ainda não sabiam que os dois eram, na verdade, um. Quem se matou não foi o médico, e sim o monstro. Com a sua morte, morreu também o eu original, quer dizer, o Dr. Jekyll. Segundo Rosset (1999, p. 83), a relação do eu com o outro pode ocasionar dois itinerários: a aceitação ou a recusa do duplo. No caso da obra de Stevenson, percebemos que, no início da vida independente do duplo, houve aceitação de Dr. Jekyll. O problema da vida independente de Hyde foi o controle que Jekyll provou não ter e que começou a ficar perigoso tanto pra ele quanto para Hyde. Por isso, Jekyll, no momento em que sentiu mais a sua vida ameaçada, optou por si:

Era preciso escolher entre os dois. As minhas duas naturezas possuíam memória comum, mas outras faculdades comportavam-se de forma desigual.

P á g i n a | 135 Jekyll, o ser composto, às vezes com bastante apreensão, às vezes com desejo impetuoso, projetava e compartilhava dos prazeres e das aventuras de Hyde. Mas Hyde era indiferente a Jekyll, ou, se o recordava era como os bandidos das montanhas ao lembrarem-se da caverna em que se refugiam da justiça [...] Muitas vezes os mesmos incitamentos e sobressaltos conduzem à morte um pecador tentado e medroso. E aconteceu-me, como à maioria dos meus semelhantes, que optei pela parte sã e procurei defendê-la com unhas e dentes. (STEVENSON, 2005, p. 78-79, grifo nosso)

De acordo com Rosset (1999, p. 96- 97), a perda do duplo, iniciada na era dos românticos, representava a morte. Com isso, queremos dizer que, o embate entre Jekyll e Hyde precipitou o fim dos dois, já que a existência apenas de um dos princípios provocaria desequilíbrio. Ao viver como Hyde e experimentar plenamente um dos lados, Jekyll ficou afetado pela influência do seu duplo ao ponto de não mais conseguir vencê-lo. O desequilíbrio foi provocado quando ele experimentou um dos seus lados de forma pura e, ao tentar recompor o “equilíbrio” de sua vida, Hyde passou a assediá-lo insistentemente, ao ponto de o duplo surgir sem que houvesse necessidade de Jekyll tomar a fórmula:

[D]aquele dia em diante, só por um enorme esforço e sob o estímulo imediato do remédio é que eu conseguia conservar a fisionomia de Jekyll. A todas as horas do dia e da noite, sentia o tremor fatal a advertir-me. Sobretudo, se adormecia, ou dormitava por alguns momentos na poltrona, era sempre na forma de Hyde que acordava. (STEVENSON, 2005, p. 84)

A morte de Jekyll/Hyde foi provocada porque, sem os ingredientes necessários para a composição da fórmula, não haveria mais como Hyde se transformar em Jekyll. O médico reconheceu que não iria mais viver. Porém, sabemos que Hyde deixaria de existir de qualquer forma. Hyde toma veneno e se suicida para não ser preso e morto. Mesmo que não tomasse veneno e mesmo que não fosse preso, Hyde estaria fadado a um destino trágico pelo seu caráter maléfico e por ser a manifestação do duplo de Jekyll. Hyde é o desdobramento de Jekyll, a sua parte escondida, o seu lado mais estranho. O nome Hyde vem do verbo hide que significa esconder. Por isso, o próprio nome dessa personagem denota, em si, algo que estava escondido em Jekyll, mas que é revelado. A ideia de que algo está escondido e que é revelado provocando o estranhamento foi competentemente estudada por Freud (1976, p. 276) no seu ensaio “O estranho”. O estranho está ligado ao que é assustador, ao que provoca medo, terror, enfim, está relacionado com tudo aquilo que desperta medo em geral. E é essa a impressão que se tem da fisionomia 

O romance de Stevenson é de uma época posterior ao Romantismo. Nem por isso, podemos dizer não encontrar a mesma problemática.

P á g i n a | 136

de Hyde, como as pessoas que o veem o descrevem. No primeiro capítulo intitulado “A história da porta”, Enfield diz a Utterson que Hyde “não era bem um homem: parecia uma encarnação de algum demônio terrível” (STEVENSON, 2005, p. 19). A sensação de repugnância é aumentada quando Enfield não consegue descrever uma característica em Hyde que mais lhe chama atenção. Enfield não consegue verbalizar algum aspecto presente na fisionomia de Hyde:

Não é fácil descrever. Tinha algo falso na aparência, muito de desagradável, alguma coisa de profundamente odioso. Nunca vi homem tão antipático, nem sei bem dizer a razão. Parecia ser vítima de alguma deformação: era a sensação que dava, ainda que não possa especificar em que parte do corpo. Uma figura extraordinária, e no entanto não sei precisar de que maneira. Não, meu amigo, de modo nenhum. É-me impossível descrevê-lo. (STEVENSON, 2005, p. 21-22, grifos nossos)

O estranho está ligado ao que é de natureza negativa, o qual traz repulsa. Em O médico e o monstro, a figura negativa de Hyde está ligada à essa condição de estranho, pois ele é a oposição do que é belo. Ele é repugnante aos olhos de quem o descreve. Sendo a teoria de Jekyll a dupla natureza do ser humano e sendo Hyde a prova de que é possível isolar uma das duas faces da mesma moeda, tanto Utterson quanto Enfield, na verdade, ao não conseguirem descrever aquilo que mais lhe provocavam repugnância na aparência de Hyde, estão confirmando a teoria de Jekyll, da natureza ambivalente, presente em todo mundo. Eles estão, também, confirmando o sentido da palavra Unheimlich (estranho, o conceito utilizado por Freud), ou seja, de algo que estava oculto e que foi revelado, e estão reconhecendo que essa característica é familiar e, ao mesmo tempo, estranha para aqueles que não admitem. Estão confirmando, ao mesmo tempo, a palavra Heimlich (familiar). Nenhuma das personagens admite isso. Dr. Lanyon chega a ridicularizar Jekyll. Apenas o médico aceita a sua ambivalência. É por isso que Jekyll diz, ao se ver (Hyde) no espelho: “Pois se era eu também!” (STEVENSON, 2005, p. 74). Outra consideração a ser feita a respeito do “estranho” na obra de Stevenson é que Hyde é a personalidade reprimida de Jekyll, que está oculta e que veio à tona por meio de uma fórmula. A figura marginalizada de Hyde realiza todos os desejos reprimidos do doutor, assim, nada ali é estranho, porque, de certa forma, esses desejos já se encontravam no inconsciente do médico. Freud, na sua segunda observação a respeito do estranho, defende que a personalidade reprimida está relacionada à sua natureza oculta, pois o estranho não é nada novo ou diferente, mas sim algo familiar já estabelecido na mente e que se alienou desta

P á g i n a | 137

por meio de repressão (FREUD, 1976, p. 301). O que podemos confirmar na obra de Stevenson quando Jekyll faz uma revelação ao seu amigo Utterson:

Os prazeres a que me entregava, sob o disfarce, eram, como disse, indignos; eu não conseguiria fazer uso de um termo mais baixo. Porém, na pele de Edward Hyde esses prazeres atingiam a monstruosidade [...] Por vezes Jekyll ficava horrorizado com os atos praticados por Hyde. Mas a situação estava à margem da lei e fora do alcance da consciência. Afinal, era Hyde e só Hyde o culpado. Jekyll não ficava pior por isso: regressava, íntegro, às suas boas qualidades, e procurava, sempre que possível, desfazer o mal causado por Hyde. Assim, sua consciência ficava adormecida. (STEVENSON, 2005, p. 76)

Observa-se, portanto, que o médico concretiza seus desejos em Hyde, sem levar nenhuma punição moral. O duplo nesse romance também serve para a realização de desejos que ao médico estariam proibidos ou inalcançáveis. Há uma metáfora literária competentemente usada por Stevenson ao descrever a fórmula que Jekyll usava para se transformar e “destransformar”: o sal, que era impuro. Dessa forma, o sal impuro era o componente necessário para que o lado mal de Jekyll viesse à tona assim como era o mesmo ingrediente que o fazia voltar ao normal. Isso se deve ao fato de que Jekyll não é o representante do bem. Ele, em si, representa também a impureza. É por esse motivo que quando o estoque da primeira amostra de sal se esgota, Jekyll nunca mais conseguiu comprar sal impuro, pois todas as novas amostras sempre eram de sal puro, portanto, impossível obter a “destransformação”:

Mandei comprar outra quantidade e procedi à mistura; produziu-se a efervescência e a primeira mudança de cor, porém não a segunda. Tomei-a, e não senti resultado nenhum. Poole deve ter lhe contado, como o mandei vasculhar Londres. Foi tudo inútil. E estou agora persuadido de que a primeira remessa é que era impura e que foi essa impureza que deu a eficácia à minha descoberta. (STEVENSON, 2005, p. 85, grifo nosso).

Jekyll, de forma alguma era puro, pois o sentido da palavra significa algo que não foi misturado. Jekyll era um “duplo”, era a mistura do bem e do mal, a coexistência de uma natureza “dupla”. O médico e o monstro é, sem dúvida, uma das histórias mais intrigantes da literatura em língua inglesa, motivo de debates e muitas análises. Não pretendemos esgotar o assunto ao analisar o romance. Esta é, sem dúvida, uma narrativa que extrapola qualquer teoria devido a sua complexidade estrutural e a forma como alguns personagens foram

P á g i n a | 138

caracterizados. O romance ocupa e ocupará, sem dúvida, um lugar entre as obras mais discutidas e, com mérito, mais bem realizadas da literatura anglo-saxônica e ocidental.

REFERÊNCIAS: BRAVO, Nicole. Duplo. In: BRUNEL, Pierre. Dicionários de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio & UnB, 1997, p. 73-126. CUNHA, Carla. Duplo. Disponível em: . Acesso em: 09 de Ago de 2014. FREUD, Sigmund. “O estranho”. In:______. Obras completas. Tradução sob dir. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, Vol. XVIII, p. 275-318. RANK, Otto. O duplo. Tradução Mary B. Lee. Rio de janeiro: Coed & Brasílica, 1939. ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Trad. José Thomaz Brum. Porto Alegre: L& PM, 2001. STEVENSON, Robert Louis. O médico e o monstro. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: L&PM, 2005.

P á g i n a | 139

MELANCOLIA NA CONTÍSICA DE CAIO FERNANDO ABREU. BREVE ANÁLISE DO CONTO “SOB O CÉU DE SAIGON” Luan Carlos Dias Alves de SOUZA (UEG/ G) ([email protected])

Palavras-chave: melancolia, literatura brasileira contemporânea, conto, Caio Fernando Abreu. Caio Fernando Abreu foi um escritor contemporâneo, brasileiro, que se dedicou a escrever principalmente contos. Sua criação literária deu-se entre as décadas de 1970 e de 1990. Sua obra é considerada única, por possuir uma enorme variedade de características que lhes são peculiares. No entanto, o que nos chamou a atenção nos contos de Caio Fernando Abreu foi sua caracterização “aparentemente” melancólica. Haja vista que sua escrita é marcada por uma carga emocional muito forte e que, em dados momentos, deixa transparecer algumas particularidades aparentes a esse respeito. Tais especificidades podem ter se tornado marcas de sua obra, motivados por diversos fatos, que ocorreram em sua vida e que marcaram sua existência como, por exemplo, o que cita Paula Dip (2009, p. 88-89), em seu livro Para sempre teu, Caio F. sobre a vida do referido autor. Ela escreve sobre a difícil relação que ele tinha com sua mãe, a quem ele, ironicamente, chamava de Jocasta e castradora de homens; refere-se também à ausência do pai em sua vida e revela que o contista passou boa parte de sua vida fazendo análise, para superar períodos depressivos. Além disso, podemos aludir também ao fato de o autor ser homossexual e ter vivido num período bem hostil para as pessoas dessa “minoria” e a repressão vivida por ele na Ditadura Militar. Com o objetivo de compreender a melancolia e dar consistência à nossa proposição, utilizamos diversos autores e estudiosos que explanam sobre esse assunto. Dentre estes, estão: Moacyr Scliar (2003) e Sigmund Freud (2013). Segundo Moacyr Scliar (2003, p. 63-67), em seu livro Saturno nos trópicos, a melancolia acompanha a humanidade já há muito tempo. Da mesma forma, é antiga a preocupação do homem e sua análise sobre o tema que é de tão difícil compreensão e explicação. Ao longo da história humana, foram surgindo várias definições para esse sentimento e o que o causava. Alguns acreditavam que se tratava de uma obsessão demoníaca; outros, que se tratava de uma doença. Havia também aqueles que consideravam uma condição para o desenvolvimento de talento artístico. A Bíblia, por exemplo, já no

P á g i n a | 140

primeiro testamento, apresenta um dos primeiros personagens com traços melancólicos da história; na Idade Média a melancolia era atribuída a espíritos ruins; na Idade Moderna, durante o Renascimento, inspirou muitos artistas num dos momentos mais férteis da humanidade para as artes e as ciências; no princípio do século XX com Sigmund Freud, a melancolia se torna uma patologia. Para exemplificar a possível característica melancólica na literatura cultivada por Caio Fernando Abreu, analisamos o conto “Sob o céu de Saigon”. Nesse sentido, apesar de existirem vários conceitos e explicações sobre esse assunto (melancolia); nestas análises, resolvemos tomar como base, o que dizem Sigmund Freud e Moacyr Scliar a esse respeito. O conto “Sob o céu de Saigon” é ambientado na cidade de São Paulo, especificamente no cruzamento entre a avenida Paulista e a rua Augusta. Nele, são perceptíveis características melancólicas tanto no narrador quanto no rapaz e na moça que ele descreve. Nesse sentido, podemos nos ater na capacidade de romper barreiras espaciais que a melancolia possui, podendo contagiar grupos de pessoas em diferentes locais. Já no início do conto, ao descrever o rapaz da história, o narrador lhe dá uma série de predicados característicos dos melancólicos, demonstrando certo desleixo e uma acentuada falta de interesse para com as coisas do mundo:

Ele era um desses rapazes que, aos sábados, com a barba por fazer, sobem ou descem a rua Augusta. Aos sábados quase sempre à tarde, pois pelos óculos muito escuros e o rosto um tanto amassado por baixo da barba crescida, quem olhasse para um deles mais detidamente, mas poucos o fazem, perceberia que dormiu mal ou demais, bebeu na noite anterior, acabou de chorar ou qualquer coisa assim. Costumam usar jeans desbotados, esses rapazes, tênis gastos, camisetas e, quando mais frio, alguma jaqueta ou suéter geralmente nos cotovelos. Quase sempre levam as mãos nos bolsos, o que torna impossível a qualquer um que passa ver melhor suas unhas roídas, seus dedos indicador e médio da mão direita, ou da esquerda se forem canhotos, amarelados pelo excesso de fumo. (ABREU, 2005, p. 178)

No trecho acima exposto, podemos destacar, além do que foi dito anteriormente, o fato de o referido conto se passar num sábado, e esse ser geralmente um dia de lazer. Por outro lado, o sábado também é o dia de Saturno (Saturday, em inglês), o rei da melancolia. No entanto, o rapaz segue com sua monotonia sem se divertir, aqui vemos a falta de atividades. Sua falta de interesse pelas coisas do mundo pode ser evidenciada por ele andar com a barba crescida e seu rosto amassado. São destacáveis também as possibilidades de ele ter dormido pouco ou demais; bebido na noite anterior ou mesmo acabado de chorar. Isso nos remete a pensar que se ele dormiu pouco, pode ter sido uma “insônia” ocasionada por

P á g i n a | 141

lembranças tristes; se dormiu demais, pode ter sido pelo fato de não ter muitas motivações para se levantar, e se bebeu na noite anterior, pode ter sido numa tentativa de esquecer o fato de ter perdido algo ou alguém. Além disso, ainda no referido excerto, podemos destacar também na descrição do rapaz feita pelo narrador, suas vestimentas gastas, evidenciando uma ausência de vaidade e, por conseguinte, de interesse por outras pessoas (perda da capacidade de amar e falta de libido). Prosseguindo com nossa análise, objetivando evidenciar a melancolia, nos atentamos para o fato de o narrador escrever: “esses rapazes”. Isso, nos mostra que, de certa forma, ele fala o quão são comuns rapazes assim, o que pode reforçar a ideia de a melancolia propagar-se e disseminar-se no espaço e desse modo, contagiar as pessoas. Encontramos também no referido conto o olhar do rapaz voltado para baixo: “Eles olham para baixo” e a grande ênfase do narrador em dizer que o céu da cidade de São Paulo é escuro. O olhar do rapaz direcionado para baixo pode demonstrar sua falta de interesse no mundo que o cerca e a enfática forma em dizer que o céu fica a maior parte do tempo escuro ou acinzentado, dá uma ideia de tristeza por parte do narrador. Além do olhar do rapaz voltado para baixo, é descrito também no conto pelo narrador “seu olhar às vezes direcionado para cima procurando encontrar ‘coisas’ ou mesmo horizontes no emaranhado de prédios”. Portanto, seu interesse não é nas pessoas e seu olhar voltado para o horizonte representa, talvez, sua esperança de superar o que lhe aconteceu, ou de alcançar dias melhores:

Mas às vezes olham também para cima, e quando o céu está claro, o que é raro na cidade, pode-se imaginar que suas peles brancas procuram desesperadas e quase automaticamente pela luz do sol. E quando o céu está escuro, o que é bem mais comum, sobretudo nesses sábados em que rapazes assim costumam subir ou descer a rua Augusta, pode-se imaginar que procurem balões juninos, objetos voadores não identificados, pára-quedistas, helicópteros camuflados, zepelins ou qualquer outra coisas pouco prováveis de serem encontradas sobrevoando ruas como a Augusta num sábado à tarde. Ou horizontes, talvez busquem horizontes entre o emaranhado de edifícios refletidos nas lentes negras dos óculos que escondem o brilho ou a intenção do fundo dos olhos no momento em que um desses rapazes pára na esquina, como se tanto fizesse dobrar a esquerda ou à direita, seguir em frente ou voltar atrás. Por serem como são, seguem sempre em frente, subindo ou descendo a rua Augusta. (ABREU, 2005, p. 178-179)

Muitas dessas características atribuídas ao rapaz pelo narrador são encontradas também na moça que é o outro personagem do conto:

P á g i n a | 142

Ela era uma dessas moças que, aos sábados, com uma bolsa pendurada no ombro, sobem ou descem a rua Augusta. Aos sábados quase sempre à tarde, pois pelos óculos muito escuros e o rosto um tanto amassado que a ausência total de maquiagem nem pensou em disfarçar, quem olhar para uma delas mais detidamente, e alguns até o fazem, pedindo telefone ou dizendo gracinhas sem graça, às vezes grossas, porque, porque elas caminham devagar, olhando as coisas, não as pessoas, mas quem olhar com atenção perceberá que dormiu mal ou demais, bebeu na noite anterior, acabou de chorar ou qualquer coisa assim, sem muita importância. Costumam, elas também, usar jeans desbotados, sapatos de salto baixo, às vezes tênis gastos, camisetas ou alguma blusa de musselina, seda, crepe outro tecido assim fino, que um rápido olhar mais arguto perceberia de imediato não se tratar de uma prostituta ou empregada doméstica. Pois têm certa nobreza, essas moças, não se sabe se pela maneira altiva como fingem não ouvir as gracinhas que alguns dizem, se pelo jeito firme de segurar a alça da bolsa com seus dedos e unhas sem pintura, conscientes de que são fêmeas e estão na selva. (ABREU, 2005, p. 179)

A moça descrita pelo narrador, assim como o rapaz, também perambula num sábado à tarde sem rumo pela cidade de São Paulo, com o rosto amassado e com as possibilidades de ter dormido mal ou demais, bebido na noite anterior ou acabado de chorar. Além disso, outros aspectos interessantes a serem citados, em relação, a ela são a ausência total de maquiagem no seu rosto e seu olhar focado nas coisas e não nas pessoas. A ausência de maquiagem no rosto da moça e seu olhar podem evidenciar respectivamente seu desleixo e sua falta de interesse nas pessoas (falta de libido e diminuição da autoestima). Outra coisa que pode reforçar essa ideia de ausência de interesse nas pessoas são suas unhas sem pintura e suas vestimentas que, como as do rapaz, algumas se encontram gastas, porém, pela descrição do narrador são de boa qualidade, o que indica que a moça não é pobre e sim está tão deprimida, que não liga para o que está vestindo. Também é interessante para nossa análise o que o narrador fala em relação às coisas que um ladrão encontraria se roubasse a bolsa da personagem:

[S]e alguém arrebatasse a bolsa a uma dessas moças para depois rasgá-la num terreno baldio, ficaria decepcionado com o dinheiro escasso, o talão de cheques sem saldo, uma agenda com poucos compromissos, tickets de metrô, algum livro de poesia, esoterismo ou psicologia, uma foto de criança, raramente de homem, quem sabe um cartão de crédito vencido e entradas para teatro ou show, já usadas. Essas moças não olham para baixo nem para cima: com passo decidido, olham direto para frente, como se visualizassem além do horizonte um ponto escondido para esses outros que passam quase sempre sem vê-las, para onde se dirigem com seus jeans gastos, suas peles de nenhum artifício. (ABREU, 2005, p. 179)

P á g i n a | 143

Os objetos citados podem evidenciar o apego da referida personagem a coisas do passado e a coisas que, de certa forma, tentem sanar ou abrandar essas tristezas, isso, no caso dos livros de poesia, esoterismo ou psicologia. Finalizando as atribuições direcionadas à moça, o narrador menciona que seu olhar não é para cima e nem para baixo, ela olha para frente, além do horizonte, olhando para um ponto que os outros que a cercam não veem, indicando sua esperança de melhoras futuras. Outra coisa exposta nesse trecho pelo narrador é a possibilidade de serem várias, essas moças, o que se encaixa com o que foi dito anteriormente em relação à capacidade de propagação que a melancolia possui. No momento em que o narrador põe os dois personagens descritos por ele no mesmo local, que foi em frente ao cinema, surgem mais alguns aspectos melancólicos para reforçar nossa tese. O filme que está em cartaz chama-se “Love Kills”. Esse filme conta uma história repleta de rebeldia jovem, drogas e culmina com a morte de um personagem importante. A música de Frank Sinatra, que a moça cantarola, conta a história de um homem que se sente nostálgico ao lembrar-se das coisas boas que havia feito ao longo de sua vida. Ou seja, o filme e a música remetem à tristeza. No ápice da narrativa, ao contar como foi o encontro de olhares entre o rapaz e a moça, o narrador nos faz imaginar que esse momento foi mágico:

E porque o mundo, apesar de redondo, tem muitas esquinas, encontram-se esses dois, esses vários, em frente ao mesmo cinema e olham o mesmo cartaz. Love kills, love kills, ele repete baixinho, sem perceber a moça a seu lado. And this is my way, ela cantarola em pensamento, na versão de Frank Sinatra, não de Sid Vicious, sem perceber o rapaz a seu lado. Outros entram e saem, sem vê-los nem ver-se, remanescentes punks, pregos nas jaquetas, botas pretas, intelectuais de óculos, aros coloridos, paletós xadrezes, adolescentes japonesas, casais apertadinhos, elas comendo pipocas, senhoras de saia justa, gente assim, de todo tipo. E talvez porque rapazes e moças como ele e ela aos sábados à tarde raramente ou nunca se enfiam pelos cinemas, preferindo subir ou descer a rua Augusta olhando as coisas, não as pessoas, os dois se encaminham para as entradas em arco do cinema. Então param e olham para cima, suspirando em suave desespero, um céu tão cinza, como se fosse chover, oh céu tão triste de Sampa. E então como se um anjo de asas de ouro filigranado rompesse de repente as nuvens chumbo e com seu saxofone de jade cravejado de ametistas anunciasse aos homens daquela rua e daquele sábado à tarde naquela cidade a irreversibilidade e a fatalidade da redondeza das esquinas do mundo ─ Ele olhou para ela e ela olhou para ele. (ABREU, 2005, p. 180)

Podemos reparar que o instrumento tocado pelo anjo é um saxofone e não uma trombeta, o que convencionalmente dizem que os anjos tocam, por outro lado, o saxofone é

P á g i n a | 144

um instrumento essencial na execução de estilos musicais como o Jazz e o Blues, que são bem melancólicos. Outra coisa que chama a atenção são os materiais que compõem o saxofone do anjo: “o jade e a ametista”, ambas têm muita significação mística: a ametista, no Brasil, é utilizada para acabar com a insônia e curar a depressão e o jade, na Ásia, que entre outras coisas é utilizado como amuleto para atrair alegria e proporcionar equilíbrio emocional. Ou ainda, quem sabe, pelo fato de o jade ser uma pedra que é encontrada mais comumente na Ásia, continente onde se localiza Saigon e a ametista ser uma pedra encontrada abundantemente em terras brasileiras e, obviamente, é no Brasil que se localiza São Paulo. Por esse motivo, o autor pode ter feito uma associação nesse sentido. Nesse conto, a melancolia é encontrada também na descrição do cenário ao longo da história. O narrador fala da degradação das calçadas, do céu escuro de São Paulo com suas cores cinza e chumbo e da tristeza a que ele remete. E vendo por esse lado, talvez seja pelo fato de esse céu ser tão escuro e triste que os personagens da moça e do rapaz comparam-no com o de Saigon (cidade do Vietnã que foi palco de uma grande guerra). É falado ainda pelo narrador que não seria surpresa que, a qualquer momento, no céu de São Paulo, explodisse um cogumelo atômico, fazendo surgir uma chuva radioativa ou então desabasse uma rajada de napalm (material liquido altamente inflamável, utilizado em armas). Não seria coisa mais mórbida e melancólica de se dizer, quando se encontra uma possível paixão, do que falar do céu de um lugar que foi arrasado por uma guerra? E findando nossa análise dessa narrativa, vemos seu final igualmente triste como seu começo, pois os dois personagens seguem seus caminhos solitários, sem rumo, flanando pela cidade. No decorrer de nossa pesquisa, ao realizarmos nossas análises, conseguimos identificar diversos traços que são remetentes à melancolia em personagens, nos narradores e em ambientes dos contos investigados. Desse modo, percebemos que, por diferentes fatores, a escrita do autor é marcada por uma carga emocional muito forte. E que, apesar de se tratarem de obras de ficção, conseguem transcender a essência melancólica de Caio Fernando Abreu. Portanto, com essas constatações, concluímos que, de fato, o legado contístico de Caio Fernando Abreu possui inúmeras nuances que sugerem melancolia.

REFERÊNCIAS:

ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: o essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

P á g i n a | 145

DIP, Paula. Para sempre teu, Caio F.: cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Abreu. Rio de Janeiro: Record, 2009. FERRARI, Ilka Franco. Melancolia: de Freud a Lacan, a dor de existir*. Disponível em: . Acessado em: 04 de Nov. 2012. FISCHER, Luís Augusto. Caio F.: herdeiro e inventor. Bravo!, São Paulo: Editora Abril, n. 102, ano 9, fev. 2006. p. 53-61. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Tradução de Joan Rivieri. Disponível em: . Acesso em: 25 Ago. 2013, às 10 horas. FROTA, Adolfo José de Souza. Poesia da dor: Luto e melancolia em Edgar Allan Poe e Carlos Drummond de Andrade. Disponível em: . Acessado em: 17 de Set. 2013. HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Tradução, introdução e notas de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 2006. MOZZAQUATRO, Luziane Boemo. Literatura e autoritarismo: o processo de construção da memória coletiva em Caio Fernando Abreu. Literatura e autoritarismo: a voz dos oprimidos, Santa Maria, n. 3 nov. 2010. NÓBREGA, Clóvis Meireles Júnior. Melancolia e solidão em contos de Caio Fernando Abreu. 2011. 109 f. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Letras, Goiânia, 2011. PORTO, Luana Teixeira. Um olhar melancólico: O conto de Caio Fernando Abreu. Disponível em: . Acesso em: 15 Out. 2013. RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de estado da cultura. Instituto Estadual do Livro. Caio Fernando Abreu. 2 ed. Atual. Porto Alegre: IEL; ULBRA; AGE, 1995. (Autores Gaúchos, v. 19). SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

P á g i n a | 146

O MAL-ESTAR NA EDUCAÇÃO: INQUIETAÇÕES FILOSÓFICAS Ronivaldo de Oliveira REGO SANTOS (UEG/Esp.)

([email protected]) Palavras-chave: Mal-estar, educação, ensino, desconhecido.

Muitos são os problemas e desafios que emergem na escola, uma instituição que se encontra no bojo de uma sociedade humana que faz apologia a uma falsa ideia igualdade em detrimento das diferenças. O grande desafio ocorre na medida em que a igualdade apresenta-se como padrão, nivelamento, circunstância na qual tudo que foge aos padrões é deixado de lado. Circunscritos por este clima hostil, o ambiente escolar acaba por se tornar também o lugar fecundo para o mal-estar se apresentar. Contudo, o mal-estar aqui toma outros contornos, deixa de ser sinônimo de decadência e passa a representar afirmação da vida e da educação. Para evidenciar e problematizar estas questões usa-se como metodologia a análise bibliográfica em consonância com observações realizadas (indiretamente) em instituições escolares e com educadores. Para isso endossam esse trabalho autores como: Freud e sua obra O mal-estar na cultura e Bauman, em seu O mal-estar na pós-moernidade, como profícuos debatedores da condição de mal-estar na humanidade. Posteriormente, por meio de um recurso hermenêutico e extemporâneo, Nietzsche é colocado à mesa de discussão como difusor da validade do indivíduo e de suas singularidades, além de defensor de uma educação para a cultura, e não para lucro. Nesta perspectiva analisa-se O mal estar na cultura, obra na qual o pai da psicanálise mostra uma das mais proveitosas reflexões acerca da condição humana, aleém de condicionar o leitor atento a notar as semelhanças entre filosofia, psicanálise e a formação do ser humano. Freud trata com persuasão a maneira pela qual o ser humano é lavado a acreditar em sentimentos condutores, guias de novos sentimentos unilaterais e dogmáticos, cujo sentido “oceânico” limita a crítica necessária à sua própria existência. A situação de Mal-estar é para o pensador de Viena, o resultado tanto das condições psíquicas, sociais e culturais em conjunto, quanto da falta de estímulos para o desenvolvimento de certo senso crítico. Dito de maneira mais clara, a cultura ocidental vem, há muito tempo, construindo a ideia de realização, inclusive do inconsciente, por meio de

P á g i n a | 147

mecanismos formativos, cujo meio é a negação do mundo real em prol de um mundo ideal no qual não aja sofrimento, somente felicidade. A busca pela felicidade e a permanência nesta condição tende, segundo Freud, a conduzir a humanidade na procura do prazer e à refutação ao desprazer. Efetiva-se este fenômeno no memento de negação deste mundo, pois, supostamente imperfeito, carregado de negatividade e sofrimento. Busca-se o mundo ideal, como um eremita. Segundo Freud “O eremita vira as costas para este mundo, não quer ter nada a ver com ele” (2011, p. 72). Há, ainda, outro mecanismo que visa transformar, adequar esta existência aos modelos de vida eremita. Freud examina o caminho pelo qual a humanidade deseja chegar ao seu mundo ideal. Este subterfúgio metafísico, nada mais é, como frisa o psicanalista, um delírio que não será alcançado. E mais, só há tal procura por que os desejos estão presentes nos seres humanos e a felicidade talvez seja o maior deles. Ela deve ainda ser eximida de toda e qualquer espécie de sofrimentos para atingir sua plenitude. Logo, não pode existir neste mundo, daí o apreço pelo céu, pelo mundo que não é, isso no tangente a termos materiais e melancólicos, tendo em vista a pesada realidade, uma carga pesadíssima para o ser humano suportar (FREUD, 2011, p. 72). A cultura cumpre um papel fundamental na formação do ser humano. Dizer isso é inclusive redundância, tal a unanimidade por parte tanto das pessoas ditas intelectuais quanto das supostamente leigas. Freud vai além disso. Possibilita que os seus leitores problematizem as relações e criações culturais tendo como ponto de partida a função religiosa e cristã e o papel exercido pelo homem como pretenso substituto de Deus, especialmente por meio da ciência, da negação do sofrimento, da quase indelével busca pelo prazer e felicidade. O homem, diz Freud (2011), não está confortável com este lugar, mas também não consegue encontrar outro, que não o além. Não aceita sua condição de humano e tenta se enveredar pela metafísica e tautologias, meios pelos quais usa como subterfúgios da realidade tal como ela se apresenta: trágica e sofrível, por isso mesmo humana. O outro viés abordado para uma reflexão sobre o mal-estar encontra-se em Bauman. Em O mal-estar na pós-modernidade, texto do final da década de 1990, o polonês além de resgatar com segurança algumas reflexões freudianas, as amplia e reorienta. A condição agora, argumenta Bauman, é desprestigiar o coletivo humano destacado por Freud, como primeiro ponto de aculturação, e privilegiar (por influência dos modernos mecanismo ideológicos) o indivíduo.

P á g i n a | 148

Passados quase noventa anos após da primeira edição do livro de Freud “a liberdade individual reina soberana: é o valor pelo qual todos os outros valores vieram a ser avaliados e a referência pela qual a sabedoria acerca de todas as normas e resoluções supraindividuais devem ser medidas” (BAUMAN, 1997, p. 9). O sonho de felicidade, beleza e racionalidade coletivas serão descartados nesta nova sociedade? O sociólogo polonês não se esquece de responder, e o faz de maneira provocativa:

Isso não significa, porém, que os ideias de beleza, pureza e ordem que conduziram os homens e mulheres em sua viagem de descoberta moderna tenham sido abandonados, ou tenham perdido um tanto do brilho original. Agora, todavia, eles devem ser perseguidos – e realizados – através da espontaneidade do desejo e do esforço individuais. (BAUMAN, 1997, p. 9)

Aqui reside a chave para se entender a concepção baumaniana acerca do mal-estar no mundo. Daí ele corroborar sua posição mais adiante em seu texto: “A liberdade individual, outrora uma responsabilidade e um (talvez o) problema para todos os edificadores da ordem, tornou-se o maior dos predicados e recursos na perpétua autocriação do universo” (BAUMAN, 1997, p. 9). Este suposto predicado, esta qualidade é questionável, pois muito é feito em prol de vontades individuais que são transformadas em pseudovontades coletivas. É o próprio Bauman, em outra obra, Modernidade e Ambivalência, quem exemplifica tal questão. Ele destaca que em busca de uma homogeneização, um ideal de igualdade individualista, Hitler matou milhões de pessoas. Este é, inclusive, um ideal democrático, diga-se de passagem, dos mais contraditórios, pois ao mesmo tempo prega a igualdade e a diversidade. Paradoxalmente, sabe-se que as diferenças estão cada vez mais acentuadas e evidenciadas. Estas “Naus dos diferentes”9 diuturnamente deixam os portos dos iguais, dos modelados ao paradigma de sociedade em que o indivíduo deve ser uniformizado. Senão na cor, na cultura, no gosto, pelo menos na forma de ser aculturado. Por isso Bauman (1997) chama a atenção para o conceito de ordem. Segundo ele cria-se uma ordem na qual as coisas têm seu lugar pré-determinado, cuja disposição está aí, não podendo ser transportada ou modificada. Quando alguém sai do lugar pré-estabelecido há sempre outro a reprimi-lo e hostilizá-lo, realocando o diferente em seu lugar supostamente natural. Há, 9

Parafraseamos aqui um trecho de Michel Foucault encontrado em A História da Loucura. Vejamos: “Um objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos” (p. 12 Edição digital)

P á g i n a | 149

porém, coisas para as quais o “lugar certo” não foi reservado em qualquer fragmento da ordem preparada pelo homem. Elas ficam “fora do lugar” em toda parte, isto é, em todos os lugares para os quais o modelo de pureza tem sido destinado. O mundo dos que procuram a pureza é simplesmente pequeno demais para acomodá-las. Ele não será suficiente para mudá-las para outro lugar: será preciso livrar-se delas uma vez por todas – queimá-las, envenená-las, despedaçá-las, passá-las a fio de espada. [...] Baratas, moscas, aranhas ou camundongos, que em nenhum momento podem resolver partilhar um lar com os seus moradores legais (e humanos) sem pedir permissão aos donos, são por esse motivo, sempre e potencialmente, hóspedes não convidados, que não podem, desse modo, ser incorporados a qualquer imaginável esquema de pureza. (BAUMAN, 1997, p. 14-15 aspas do autor)

A

liberdade

individual,

quando

elevada

ao

extremo

causa

situações

constrangedoras, como a tentativa de purificar, consequentemente de excluir as pessoas consideradas estranhas e excêntricas. Por isso, o que fazer com as pessoas e coisas que não tem o seu lugar natural pré-estabelecido? Ou será que a pergunta deve ser outra: quem criou o lugar privilegiado onde muitos não têm um lugar naturalmente seu? Bauman (1997, p. 27) responde que: “Todas as sociedades produzem seus estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável”. Diz ainda: “Os estranhos tipicamente modernos foram o refugo do zelo de organização do estado. Foi a visão da ordem que os estranhos modernos não se ajustaram” (p. 28, grifos do autor). As palavras de Zygmunt Bauman deixam o seu leitor perplexo, pois indica as estratégias de anulação dos estranhos:

Nessa guerra [...] duas estratégias alternativas, mas também complementares, foram intermitentemente desenvolvidas. Uma era antropofágica: aniquilar os estanhos devorando-os e depois, metodicamente, transformando-os num tecido indistinguível do que já havia. Era esta estratégia da assimilação: tornar a diferença semelhante; abafar as distinções culturais ou linguísticas; proibir todas as tradições e lealdades, exceto as destinadas a alimentar a conformidade com a ordem nova e que tudo abarca; promover e reforçar uma medida, e só uma, para a conformidade. (BAUMAN, 1997, p. 29 grifos do autor)

No afã destes procedimentos de anulação e, até mesmo extinção dos estranhos, estes continuam seres sem lugar, seres concretos e, paradoxalmente, liquefeitos para atender as vontades de determinados segmentos. Os aspectos peculiares e individuais são sagazmente manipulados, tornando-se semelhanças arraigadas no sujeito.

P á g i n a | 150

Para dialogar com as inquietações anteriores faz-se agora um retorno a Nietzsche, em especial aos textos nos quais ele versa de forma contundente sobre a educação: Schopenhauer como educador e Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino. Dando sequência aos debates iniciados anteriormente, embora direcionado para o âmbito educacional, falar-se-á, inicialmente, sobre a questão da igualdade. Para Nietzsche, uma educação que promova a igualdade, principalmente aos moldes que se vê hoje, é mais um estado de decadência que uma postura passiva de ser elogiada. Nesta medida, as palavras do pensador alemão são contundentes, uma vez que apontam para a finalidade e o sentido do ensino na Alemanha do século XIX. Nesta medida, tal é a relevância e atualidade do pensamento nietzschiano que uma pessoa desatenta pode confundir com uma análise das escolas em pleno século XXI. Vejamos: A verdadeira tarefa da cultura seria então criar homens “correntes” quanto possível, um pouco no sentido em que se fala de “moeda corrente”. Quanto mais houvesse homens correntes, mais um povo seria feliz; e o propósito das instituições de ensino contemporâneas só poderia ser justamente o de fazer progredir cada um até onde sua natureza o conclama a se tornar “correntes”, formar os indivíduos de tal modo que, do seu nível de conhecimento e de saber, ele possa extrair a maior quantidade possível de felicidade e de lucro. (NIETZSCHE, 2011, EE, p. 73, aspas do autor)

E continua, nas linhas seguintes, esboçando sua perspectiva imoralista: Segundo esta perspectiva, se chega mesmo a odiar toda cultura que torne solitário, que proponha fins para além do dinheiro e do ganho, ou que demande muito tempo; aqui, se tem o costume de descartar as tendências divergentes [diferentes], que apelam para um “egoísmo superior” ou para o “epicurismo imoral da cultura”. (NIETZSCHE, 2011, EE, p. 73, aspas do autor)

Quando a escola propõe um modelo de educação na qual pretende exclusivamente tornar as pessoas iguais, ela apenas produz homens que são consumidos pelo estado, são moedas, visam somente lucro, este, por sua vez gera uma pseudofelicidade. Sendo assim, busca-se formar o homem do qual possa ser extraído o máximo possível de sua incapacidade de pensar. Nega-se, portanto, as diferenças, suprimem-se as possibilidades efetivas da individualidade, de buscar o avesso da moralidade constituída e requerida pelo estado e pela cultura de rebanho. Outra inquietação evidenciada versa em torno da relação entre teoria e prática. Nas escolas, âmbito do ato docente, há alguns professores frequentemente negando a reflexão, a crítica, a teoria.

P á g i n a | 151

Segundo a perspectiva aqui descrita, tal condição causa certo mal-estar em alguns professores, uma vez que estes não apreciam um olhar que procura superar o pragmatismo e ostracismo aos quais muitos se encontram. Muitos destes não estão preocupados em ler sequer um bom texto, outros sequer leem. Ao destacar este aspecto não se quer dizer que Nietzsche defenda o eruditismo. Muito pelo contrário, ele é seu algoz. Como salienta Rosa Maria Dias (2003, p. 26):

Nietzsche, como educador, não tinha interesse em se tornar um vasculhador de textos antigos, fechado em seu gabinete, nem em criar um círculo de alunos atentos, que seguissem indiferentes à vida que os rodeava. Pretendia, isso sim, incentivá-los a um olhar singular sobre determinada ciência, conduzi-los de modo a poderem criar uma humanidade rica e transbordante de vida.

Com estes aspectos destacados pode-se dizer, a respeito da leitura, que ela é essencial, não somente a quem forma, mas também, para quem é formado. Sem leitura o professor não pode formar, nem tão pouco se autoformar. Segundo os rastros trilhados até aqui o último elemento a ser destacado é a (in)disciplina. Esta é uma das questões que mais afligem os educadores na escola contemporânea, em especial no limiar do século XXI. Há uma tendência em falar da autonomia, da liberdade do educando. Esses direitos, contudo, tiveram como resultado, segundo alguns educadores no interior das escolas, uma total indisciplina no ambiente escolar. Alunos que não respeitam e são violentos, com os professores e colegas, se torna cena ordinária nas escolas. Nietzsche entende que o aluno deve possuir, sim, certa liberdade, embora não seja um defensor ferrenho da autonomia, haja vista a falta de maturidade das crianças e jovens. Por isso ele diz ser o educador responsável por libertar o aluno da posição ordinária a qual se encontra e ao mesmo tempo saber o momento certo de “cortar suas asas”.

Teus verdadeiros educadores, aqueles que te formarão, te revelarão o que são verdadeiramente da tua essência, algo que resiste absolutamente a qualquer educação e a qualquer formação, qualquer coisa em todo caso de difícil acesso, como um feixe compacto e rígido: teus educadores não podem ser outra coisa senão teus libertadores. (NIETZSCHE, 2011, SE/Co. Ext. III, p. 165)

Feita a leitura do supracitado trecho, não se pode confundir libertação com libertinagem, tendo em vista o poder de interpretação e a polifonia que Nietzsche emprega aos termos. Portanto, somente é aceitável compreender a autonomia-libertação por meio da

P á g i n a | 152

perspectiva nietzscheana na medida em que esta seja interpretada como libertação dos alunos de seus próprios impropérios e rudezas, de sua falta de sensibilidade. Finalmente, deve-se ressaltar que os desafios contemporâneos são os mais variados possíveis e exigem do educador uma série de ações para que os desafios sejam entendidos de forma trágica (no sentido nietzscheano), isto é, como meio pelo qual o ser humano faça de si mesmo um sentido de vida, de potência, de vitalidade, que faça da vida um valor supremo, de cujo o conhecimento passa a ser entendido como o mais potente de todos os afetos10.

REFERÊNCIAS: BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Tradução Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. São Paulo: Jorge Zahar Editora, 1998. ______. Modernidade e ambivalência. Tradução Marcos Penchel. São Paulo: Jorge Zahar Editora, 1999. DIAS, Rosa Maria. Nietzsche educador. São Paulo: Scipione, 2003. GIDDENS, Antoni. As consequências da modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. FOUCAULT, Michel. História da Loucura. Tradução José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Editora Perspectiva. Disponível em: http://www.uel.br/projetos/foucaultianos/pages/arquivos/Obras/HISTORIA%20DA%20LOU CURA.pdf. FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Tradução Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011. NIETZSCHE, Friedrich. II Cinsideração Intempestiva Schopenhaur como Educador. In:______. Escritos sobre educação. Tradução Noéli Correia de Melo Sobrinho. 5.ed. - Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: ed. Loyola, 2011. ______. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino. In:______. Escritos sobre educação. Tradução Noéli Correia de Melo Sobrinho 5. ed. - Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: ed. Loyola, 2011.

10

Aqui nos inspiramos em MARTINS, André (org.) O mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche. 1. Ed. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009.

P á g i n a | 153

LITERATURA E CATÁSTROFE NOS ROMANCES O QUINZE, DE RACHEL DE QUEIROZ, E OS FLAGELADOS DO VENTO LESTE, DE MANUEL LOPES Silvania Ferreira Nunes MANDÚ (UEG/Esp.) ([email protected])

Palavras-chave: Catástrofe, influência, literaturas, regionalismo, sertanejo

Este texto possui como objetivo apresentar uma análise referente ao romance brasileiro O quinze, de Rachel de Queiroz, comparando-o ao romance cabo verdiano Os flagelados do vento leste, de Manuel Lopes, detectar elementos específicos que sugerem uma aproximação entre a literatura brasileira e a de Cabo Verde relacionado ao regionalismo de 30, bem como a representação dos problemas sofridos pelos sertanejos, devido às questões climáticas (tema constante presente nas obras). Outro objetivo é explicitar o embasamento teórico de cunho crítico-literário em estudos comparados de literaturas de língua portuguesa. E, por fim, é intenção fazer a comparação de algumas peculiaridades presentes nas obras supracitadas, através de fatores como: o regionalismo, a caracterização dos ambientes físicos, questões discursivas entre os textos e denúncia da realidade dos sertanejos que vivem em condições sub-humanas em sua terra, e que passam a sobreviver em difíceis circunstâncias naturais por causa da aridez da terra, das secas e mesmo das torrentes de chuvas, dos ventos fortes e da falta de alimentos, bem como as condições precárias de migração, fatos que dificultam a sobrevivência desses sertanejos retirantes.

Comparando os romances

Ao iniciar a escrita desse trabalho, objetivou-se a comparação de algumas peculiaridades presente nas obras O quinze, de Rachel de Queiroz e Os flagelados do vento leste, de Manuel Lopes, de modo que, com essa análise, possa se verificar a aproximação temática entre os romances, através de fatores como: o regionalismo de 30, a caracterização dos ambientes físicos, questões discursivas engajada entre os textos e denúncia da realidade dos sertanejos, que vivem em condições sub-humanas em sua terra, e que passam a sobreviver sob difíceis circunstâncias naturais, como a aridez da terra, as secas e mesmo as torrentes de

P á g i n a | 154

chuvas, ventos fortes e a falta de alimentos, bem como as condições precárias de migração, fatos que dificultam a sobrevivência desses sertanejos retirantes. Segundo os autores Benjamin Abdala Junior (1989), Coutinho (2004), Hollanda (2004) e Lopes (1959), faz-se perceptível as informações expostas nessa pesquisa, pois as peculiaridades tanto sobre as obras quanto sobre a história de ambos os países envolvidos nas obras literárias, bem como o conhecimento pertinente a tais fatos históricos e aos escritores envolvidos, até então se mantinham fragmentados. Segundo Michelangelo Bezerra Batista (2011), o espaço territorial do nordeste é um fator que impõe condições ao homem daquela região, pois o clima não é favorável a uma vida sossegada, e a esse fator, tem-se como consequência a seca, que castiga a vegetação, os animais e as pessoas que por lá vivem. Sendo assim, o homem sofrerá alterações provocadas pelo meio em que vive, tais como são apresentadas no romance de Rachel de Queiroz. Desse modo, a demonstração da seca, através da literatura, foi bem representada tanto pela escritora Rachel de Queiroz quanto pelo escritor Manuel Lopes, pois, em suas obras, a seca e a degradação da natureza, de homens e animais são temas constantes. Com os objetivos gerais e específicos presentes nessa pesquisa, viabiliza-se evidenciar os aspectos comparativos entre uma obra de literatura brasileira e uma obra de literatura portuguesa (Cabo Verde) e ainda demonstrar que a história e literatura contribuem para o conhecimento e formação do leitor, bem como detectar elementos específicos que sugiram uma aproximação entre a ambas literaturas, relacionar as obras ao regionalismo de 30, com uso de temas como a representação dos problemas sofridos pelos sertanejos devido às questões climáticas. Os críticos Assis (2009), Castello (2004), Jane Tutikian (2007) e Roberto Reis (1998) concordam com a ideia de que história e literatura, quando interligadas, conseguem transportar e comover o leitor para um plano da ficção e lhes munir de informações de cunho histórico. Sendo assim, para Silverman, “[o] retorno à prosa realista ocorreu rapidamente com a Geração de 1930. Seus vários membros eram todos nordestinos que misturavam o protesto político com fortes acentos regionalistas” (1995, p. 19). Quanto à metodologia para essa pesquisa, utilizou-se de pesquisa bibliográfica em vários documentos de cunho teórico crítico literário, os quais contribuíram para traçar melhor os paralelos presentes nas obras, bem como, para uma melhor compreensão da historiografia e ficção. Sendo assim, essa pesquisa está estruturada em três capítulos. Abdala Junior (2001, p. 5) em seu trabalho Os cravos de abril e os encontros da história, cita que, em algumas obras, pode ocorrer um entrecruzamento entre a história e a

P á g i n a | 155

ficção, e um dimensão de realidade pode existir entre ambas. Afirma ainda que os fatos em uma obra podem transformar-se em matéria universal, fato que ocorreu com os romances Os flagelados do vento leste e O quinze. Para a comparação entre as obras pertencentes às nacionalidades brasileira e caboverdiana, procurou-se analisar alguns elementos literários e discursivos, observou-se, baseando-se em Alcmeno Bastos (2004), que esses romances obedecem a matrizes regionais em seu aproveitamento literário, fato que pode ser confirmado através do uso das temáticas, as quais estão voltadas para temas rurais e regionais com descrição minuciosa dos ambientes físicos e sociais. Segundo Abdala (1989), no Brasil, a representação do nacional e do regional ocorreram anteriormente a outros países, fato esse que influenciou a literatura em outros países de língua oficial portuguesa, como exemplo, os países africanos, pois esses contatos culturais podem dinamizar cada literatura desde que esse não possua intenção ideológica alienante. De acordo com Alcmeno Bastos (2004), existe uma proximidade entre as obras O quinze e Os flagelados do vento leste, tanto pelo uso da língua portuguesa, quanto na temática voltada para os problemas locais e sociais. Há ainda as semelhanças ambientais, devido à proximidade da localização geográfica. Abdala (2003) cita que outra similaridade entre os romances em questão está no fato de ambas pertencerem ao movimento regionalista de 30, bem como o pioneirismo do Brasil em relação a uma obra própria, que retrata, desde os problemas sociais às denúncias de uma realidade dura e castigada pela seca e suas consequências. Sendo assim, Assis (2009) menciona que há a possibilidade de o Brasil ter influenciado a criação literária nas ilhas Cabo Verde, até porque o fato do Brasil e de Cabo Verde terem sido colônias de Portugal, reforça a ideia de similaridades. Bosi (1994), em sua obra História concisa da literatura brasileira, e ainda Carlos Alberto (2000) citam alguns dos aspectos de uma nova literatura pertencente à literatura dos anos trinta, e alguns pontos como o interesse pelas realidades regionais e a negação a modelos alienatórios. Alguns escritores de renome fazem parte desse período dos romances regionalistas ficcionais, os quais se opõem ao sistema colonizador, “os ficcionistas dos anos de 30 e 40 inovaram no temário e no léxico, assim como no progresso rumo à oralidade. Esses vão mais longe e entram pela própria natureza do discurso ficcional” (CANDIDO, 2000, p. 213).

P á g i n a | 156

Observa-se que existe proximidade entre a literatura de Cabo Verde, do escritor africano Manuel Lopes com a literatura dos escritores brasileiros do ciclo nordestino, como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Érico Veríssimo e José Lins do Rego, pois, tais escritores, representavam o regionalismo de 30. Sendo assim, em suas obras, se destaca a representação temática que se faz semelhante, bem como algumas particularidades presentes nelas. Os temas abordados pelas obras O quinze e Os flagelados do vento leste estão ligados ao movimento regionalista, fator analisável quanto ao uso da temática, da verossimilhança, de uso dos personagens que representam tipos sociais, e ainda, do uso de assuntos voltados ao cotidiano local, a caracterização de ambientes físicos, bem como a representação de fenômenos naturais, sociais e políticos. A representação da seca, bem como a caracterização do ambiente físico, se faz presente nas obras dos escritores Rachel de Queiroz e Manuel Lopes. Os espaços físicos, que permeiam os romances..., a seca que castigava, demonstram as semelhanças ambientais existentes entre ambas as obras, onde se encontram a destruição e a fome em decorrência das condições climáticas. As calamidades e as catástrofes que acometem o arquipélago e o sertão nordestino são assuntos que permeiam os romances. Tem-se ainda o longo período de escassez de chuva e o excesso da mesma que também provoca destruição, as pragas, e fome que obrigam o sertanejo a migrar para outras localidades em busca de alimento para sua sobrevivência. Vale ressaltar que os assuntos retratados nos romances O quinze e Os flagelados do vento leste fazem referência a fatos reais vividos, que são transportados para a ficção pelos autores das obras. Como exemplo, tem-se, dentre outros, a oralidade presente nos romances, e que é representada fielmente conforme a fala original de cada região. Dessa forma, nota-se no romance Os flagelados do vento leste, o uso de vários diálogos; o oposto ocorre na obra O quinze, pois nela, o diálogo entre os personagens aparece mais limitado. Outro fato real que ocorre em ambos os romances é a transitação entre os espaços rural e urbano. A junção desses ambientes acontece em decorrência dos problemas enfrentados pelas catásrofes naturais, onde os personagens transitam em busca de amenização do sofrimento, até que finde o período crítico. Ao analizar-se o período de crise dentro das obras de Rachel de Queiroz e de Manuel Lopes, nota-se um tipo de violência: a de dimensão interior, na qual a violência é conduzida cegamente pelo ato de desespero do personagem, diante de uma situação angustiante, que o levará a tomar atitudes drásticas diante dos problemas, como é o caso do roubo, (ato cometido por personagens de ambas às obras), com o mesmo objetivo: o de se

P á g i n a | 157

alimentar. Outra forma de violência é a de dimensão interior “inespacial e psicológica na qual a violência é conduzida cegamente por desespero e angústia, sem alvo exterior justificado” (ALBERTO, 2000, p. 238). Aproveitando-se das ideias de Benjamin Abdala Junior (2003), justifica-se que, tanto Rachel de Queiroz quanto Manuel Lopes retratam, em suas obras, a valorização da cultura local. Nota-se que há, nas obras, o uso de temática regionalista, que pode se referir como “amor local” fortemente representado pelas canções populares, pelas comidas típicas, bem como pela esperança de dias melhores e a alegria dos sertanejos diante da chegada da chuva, pois, com ela, surge a normalidade da vida cotidiana. A similaridade entre os romances de Rachel e Manuel pode ainda ser justificada pela situação de passividade do homem sertanejo diante dos problemas sofridos, visto que a realidade vivida por eles, em contraste com a natureza, diante do seu destino, lhes promove um estado de conformidade. Sendo assim, percebe-se que todos os acontecimentos, bons e ruins, são atribuídos por eles à vontade divina. Observou-se em análise, tanto na obra Os flagelados do vento leste, quanto na obra O quinze estruturas de romances idealizados, porém, não concluídos. Entre os personagens Miguel Alves e a professora Maria Alice, bem como o romance não concretizado entre a professora Conceição e o vaqueiro Vicente, por causa da diferença entre a formação rude e a culta e sua consequente falta de diálogo. E ainda, na obra de Manuel, observa-se outro romance entre Leandro e Libânia (que se concretizou, embora as catástrofes aos flagelados e suas consequências desfaçam a possibilidade de continuidade desse romance, e esse acaba por ter um final trágico com a morte de Leandro). Ao analisar os romances Os flagelados do vento leste e O quinze, percebem-se questões como a semelhança entre as personagens. Sendo assim, notou-se que Leandro se assemelha ao personagem Chico Bento quando ambos cometem desvio moral, provocado pelas catástrofes, com a finalidade de promoção da subsistência; já Cordulina se assemelha a Zepa, pois ambas vivem em condições semelhantes (mulher e mãe passiva), passam por conflitos similares. Tem-se ainda Chico Bento e José da Cruz semelhantes, por serem sertanejos sonhadores e provedores do sustento necessário para a sobrevivência de sua família. Em outro ponto há semelhança entre José da Cruz e o vaqueiro Vicente, pois ambos demonstram coragem e esperança diante das mazelas enfrentadas pelas duras condições de estiagem. E por último, observa-se semelhança entre as professoras Maria Alice e Conceição, pois ambas, além de possuir a mesma profissão, são solteiras, solitárias, carentes e ainda são dadas a caridade, ambas possuem um romance irrealizado.

P á g i n a | 158

Em comparação, ambas as obras revelam uma confusão de pensamentos por parte de alguns personagens diante das tragédias ocorridas. Percebe-se que, em determinados momentos, Chico Bento, Zepa, e ainda José da Cruz passam por alucinações ao recordarem de outros tempos (os da juventude), tempos em que não havia a crise. Segundo Tutikian (2006), os temas voltados para a terra buscam a prevenção das fontes da cultura popular e das raizes nacionais autênticas. Com essa afirmação, reforça-se que a obra Os flagelados do vento leste possui essa temática voltada para a cultura popular de suas origens, priorizando a autenticidade de seus escritos, ou seja, uma literarura que retrata seu país e suas mazelas. Nota-se que ocorre fatos similares com a obra O quinze. Após a pesquisa feita, a partir da leitura dos romances, chega-se à conclusão que os elementos encontrados e aqui expostos reafirmam e reforçam a possibilidade de ligação entre a literatura brasileira e a cabo-verdiana.

REFERÊNCIAS: ABDALA JÚNIOR, Benjamin. Utopia e dualidade no contato de culturas: O nascimento da literatura Cabo-verdiana. In: ______. De voos e ilhas: literatura e comunitarismos. São Paulo: Ateliê editorial, 2003. __________. Literatura história e política: literaturas de língua portuguesa no século XX. São Paulo: Ática, 1989. __________. Os cravos de abril e os encontros da história. In: ______. Semear n. 5, Revista da Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses. Rio de Janeiro: 2001, p. 56-62. ASSIS, Maria Isabel Azevedo. Os flagelados do vento leste e Vidas secas: o espelho da realidade social e psicológica dos ambientes e sua gente como um laço entre a literatura brasileira e a cabo-verdiana. Revista Crioula n. 6 – Novembro de 2009. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/06/Artigos%20e%20Ensaios%20%20Maria%20Isabel%20Assis.pdf. Acesso em: 08 set. 2011. BASTOS, Alcmeno. Poesia brasileira e estilos de época. 2 ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. BATISTA, Michelangelo Bezerra. “Vidas Secas”, “Nordeste Seco”: uma construção regionalista em Graciliano Ramos. Disponível em: http://www.anpuhpb.org/anais_xiii_eeph/textos/ST%2017%20%20Michelangelo%20Bezerra %20Batista%20TC.PDF. Acesso em: 20 set. 2011. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. BRASIL, Luiz Antônio de Assis; TUTIKIAN, Jane (Orgs.). Mar horizonte: literaturas insulares lusófonas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007. Disponível em: . Acesso em: 21 ago. 2011. CAMARGO, Patrícia. Os flagelados do vento leste, de Manuel Lopes, um ícone da literatura caboverdiana. Revista África e Africanidades - Ano I - n. 2 – Agosto. 2008. Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2011. CANDIDO, Antônio. A educação pela noite: e outros ensaios. 3 ed. São Paulo: Ática, 2000. CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960). São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 2004. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2011. LOPES, Manuel. Os flagelados do vento leste. Disponível . Acesso em: 15 jun. 2011.

em:

QUEIROZ, Dinah Silveira de. Discurso de posse: As vozes d’ África. Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 29 ago. 2011. QUEIROZ, Rachel. O quinze. 85. ed. Rio de Janeiro: José Olympio LTDA, 2008. QUEIROZ, Rachel de. Seleção e prefácio Heloisa Buarque de Hollanda. São Paulo: Global, 2004. REIS, Roberto. (Re) Lendo a história In: ______. Discurso histórico e narrativa literária. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1998. (Coleção Momento). SILVERMAN, Malcolm. O Protesto e o novo romance brasileiro. Tradução: Carlos Araújo. Porto Alegre/São Carlos: Ed. Universidade/ UFRGS/Ed. Universidade de São Carlos, 1995.

P á g i n a | 160

MORTE, AMOR E TRAGÉDIA EM ROMEU E JULIETA, DE WILLIAM SHAKESPEARE Simone da Silva OLIVEIRA (UEG/G) ([email protected])

Palavras-chave: Teatro, William Shakespeare, Romeu e Julieta, amor cortês/amor trágico. Romeu e Julieta é uma das mais famosas criações de Shakespeare, que através de sua história, reflete sobre temas que até hoje são atuais e presentes, mesmo no século XXI. A peça é considerada pelo crítico Harold Bloom (2001, p. 24) a primeira tragédia autêntica escrita por Willian Shakespeare (1564-1616); é também uma tragédia de aprendizado, concebida entre os anos de 1595 e 1596. Segundo ele, a peça é fonte de inspiração para a criação de outras cinco grandes tragédias, entre elas Hamlet. O bardo inglês foi um dramaturgo com grandes e várias habilidades sendo uma delas a da escrita artística, pois ele criou comédias, dramas, tragédias de aprendizado, poemas, peças-problema entre outras. Por ser considerado o maior escritor de língua inglesa de todos os tempos, Shakespeare é uma figura de interesse para pesquisadores, já que, a seu respeito, são publicados a cada ano centenas de estudos no mundo todo (BRYSON, 2008, p. 1). Suas obras apresentam várias possibilidades de interpretação relacionadas, principalmente, no que se refere ao comportamento humano. Diante de tais possibilidades, decidimos analisar, em Romeu e Julieta, os principais conflitos durante o desenvolvimento do enredo, sendo eles de suma importância para compreensão de toda a tragédia. Abordamos sobre o contexto histórico em que Romeu e Julieta foi escrito, ou seja, no período elisabetano (entre os séculos XVI e XVII). Analisamos também a importância que a rainha Elizabeth I (1533-1603) teve, suas contribuições para criação dos teatros e como ela conduziu a Inglaterra durante o seu reinado. Acreditamos que seja importante abordar esse período para uma melhor compreensão do contexto histórico favorável para o surgimento de um grande e genial escritor, e também para melhor compreensão da peça que contém elementos que estão ligados a época. O período elisabetano nos mostra como surgiu as companhias teatrais, entre elas a que Willian Shakespeare participou e pôde encenar suas grandiosas peças, como são consideradas por muitos críticos e escritores. É possível também apreciar as condições e estruturas dos palcos, estilos do figurino usado na época, elementos usados no cenário da apresentação das peças, além de conhecer outros atores e dramaturgos que exerciam um papel importante e que contribuíram, de alguma forma, para o grande sucesso de William

P á g i n a | 161

Shakespeare e de suas obras que continuam sendo apreciadas, analisadas e utilizadas como fonte de estudo em várias universidades. Nesta peça, uma ação sempre está ligada à outra, o que nos leva a entender como um conflito é responsável pelo surgimento de um novo conflito, e assim, é gerado o conflito maior: o final trágico dos dois jovens amantes. Esses jovens amantes nascem de duas famílias inimigas (Montecchio e Capuleto), porém iguais em nobreza e que, impulsionadas por antigos rancores, desencadeiam entre si novas discórdias, cujas desventuras e lamentáveis ruínas serão enterradas com suas mortes. A obra é uma tragédia de aprendizado porque, através de seus filhos, estas duas famílias inimigas aprenderão a grande lição de que antigas discórdias só geram novas discórdias e um fim trágico, como aconteceu com os jovens amantes Romeu e Julieta, que perderam suas vidas para que os seus pais percebessem os erros cometidos, acarretando graves problemas e comprometendo a vida de algumas outras personagens, como Mercúcio, Páris, Tebaldo, entre outros. Apesar de a rivalidade entre as famílias comprometer a vida de outras pessoas, percebemos que, com a morte dessas personagens, existia um objetivo, uma intenção para dar sequência à peça e consequentemente retratar algo que estava acontecendo na época, como por exemplo, a desastrosa guerra civil (entre os Lancasters e os Yorks) que a Inglaterra sofreu no período de 1422-1485. Talvez as famílias rivais da peça representassem os povos envolvidos no conflito. Além de retratar a guerra civil, a peça tem outros fatores a serem analisados: o amor, a morte e a tragédia. Na peça Romeu e Julieta, está presente o mito do amor cortês, termo usado para explicar o comportamento dos cavaleiros da época elisabetana, quando estavam apaixonados por uma mulher que não retribuía a tal sentimento, e será a partir desse mito que analisaremos os três tipos de amor presente na obra que nos traz reflexões sobre o quão trágico pode ser a vida do ser humano em envolvimento amoroso, pois a peça também retrata essa questão de que nem sempre o homem terá sucesso por ter seus sentimentos correspondidos. Na época de William Shakespeare, a convenção do amor cortês estava mais ligada à classe média, que tinha ligação com o casamento definitivo, e os aspectos visivelmente sexuais de tais relações eram explorados de forma bem mais ampla. A partir dessa convenção, o amor, em Romeu e Julieta, abrange formas diferenciadas sendo elas de três tipos:

Primeiro, a convenção petrarquiana ortodoxa no amor confesso de Romeu por Rosalina, no início da peça. Segundo, o amor menos sublimado para o

P á g i n a | 162 qual a única solução digna seria o casamento, representado pelo principal tema da peça. Terceiro, a perspectiva mais cínica e vulgar que obtemos nos comentários de Mercúcio, e talvez nos da Ama também. (FRYE, 2011, p.

35) Além do mito do amor cortês, abordamos sobre o amor menos sublimado, mostrando opiniões divergentes entre os críticos Harold Bloom e Barbara Heliodora, e por fim respondemos baseando-nos nas críticas, a questão do amor morrer com os amantes ou permanecer vivo. Muitos acreditam que a obra é famosa somente por se tratar de amor, mas, após as análises feitas, compreendemos que a história tem muito mais a oferecer do que simplesmente uma história de amor entre um jovem casal que pertencia a famílias inimigas. A partir do mito do amor cortês, analisamos três tipos de amor que estão presentes na obra: o amor não correspondido, o amor trágico, justamente por ter sido correspondido, e o amor voltado para a sexualidade. William Shakespeare nos faz refletir sobre o quão trágico pode ser a vida de um ser humano, quando se deixa levar pelo ódio ou quando coloca os interesses próprios acima de qualquer interesse que pertença a outro ser. Romeu e Julieta foram vítimas do ódio que suas famílias carregavam desde tempos passados, e para que esse sentimento ruim deixasse de dominar essas duas famílias, o amor nasce em Romeu e em Julieta para cumprir a sina de destruir o ódio com o amor. Mesmo eles morrendo no final da história, o amor nasce no coração dos Montecchios e dos Capuletos, que só com a tragédia que se deu com seus filhos, puderam enxergar os erros que estavam cometendo. A peça, mesmo sendo criada há tanto tempo atrás, aborda o comportamento humano presente em qualquer época, pois a impressão é que a história poderia acontecer na atualidade. Talvez esse seja um dos motivos que a peça tenha alcançado muitos admiradores. O bardo inglês foi um dramaturgo genial em sua época e essa genialidade permanece até a atualidade.

REFERÊNCIAS: BLOOM, Harold. Macbeth. In: ______. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 124-143. BRYSON, Bill. Shakespeare: o mundo é um palco: uma biografia. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 13-193.

P á g i n a | 163

HARRIS, Peter James. A alvorada do drama. Entre livros & Entre clássicos: William Shakespeare. São Paulo: Duetto Editorial, 2006, n. 2. p. 24-33. HELIODORA, Barbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2009. KOGUT, Vivien. Renascentista e moderno. Entre livros & Entre clássicos: William Shakespeare. São Paulo: Duetto Editorial, 2006, n. 2. p. 14-23. FRYE, Northrop. Sobre Shakespeare. Tradução de Simone Lopes de Mello. São Paulo: EDUSP, 2011. p. 13-51. RESENDE, Aimara da Cunha. Entre nobres e aldeões. Entre livros & Entre clássicos: William Shakespeare. São Paulo: Duetto Editorial, 2006, n. 2. p. 6-13. SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Tradução de María José Martins. Chile: América do Sul LTD, 1988.

P á g i n a | 164

A IMPORTÂNCIA DA VALORIZAÇÃO DO PROFESSOR NA FORMAÇÃO ESCOLAR (Entrevista) Os Anais do II SEPEG (Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão na Graduação) tem o privilégio de encerrar o seu primeiro número com a entrevista concedida pelo professor José Carlos Libâneo, um dos maiores estudiosos da educação no Brasil. Reconhecido nacionalmente pela sua carreira marcada por importantes contribuições à área de educação e formação de professores, Libâneo se tornou defensor ferrenho da consolidação de uma escola pública com excelência na qualidade. É mestre em Filosofia da Educação (1984), pela PUC/SP, doutor em Filosofia e História da Educação (1990), pela mesma instituição, pósdoutor pela Universidade de Valladolid (2005). É autor de vários livros sobre o tema, com destaque para os títulos Democratização da escola pública – A pedagogia crítico-social dos conteúdos, Didática e Adeus professor, adeus professora? Novas exigências educacionais e profissão docente. Foi professor titular da UFG onde se aposentou. Atualmente, é professor titular da PUC/Goiás. Convidado a dar a palestra de encerramento do II SEPEG, evento que contou com a participação de 700 pessoas no Rotary Club da cidade, entre elas estudantes e professores da UEG (Universidade Estadual de Goiás – Campos Belos) e UFT (Universidade Federal de Tocantins – Arraias), ex-egressos de ambas as universidade, professores da região e autoridades locais ligadas à educação, Libâneo, gentilmente, deu a seguinte entrevista à Rádio Atividade, de Campos Belos. Ivan Almeida: Professor, eu queria que o senhor sintetizasse para a comunidade de Campos Belos e região, através do programa “Cidade em Foco”, a palestra proferida no evento II SEPEG. Libâneo: Eu queria cumprimentar os ouvintes da rádio, eu estou muito feliz de estar aqui com os professores e professoras de Campos Belos e da região. Eu aceitei com muito prazer esse convite porque luto muito por uma boa formação de professores e que, ao mesmo tempo, atenda às exigências do mundo contemporâneo. Eu mostrei aqui [na palestra] as transformações pelos quais o mundo está passando, e como esse fenômeno da globalização, que é uma globalização econômica, política, social em todos os sentidos, faz surgir problemas para a Escola, pois estamos vivendo um tipo de “catarata informativa” no mundo. E nós temos aí as tecnologias digitais, que são objetos de uso das crianças e jovens, especialmente, e que são um poderoso meio de informação, mas não somente de informação para o bem, mas também fonte de informação para ideias inadequadas, ou para costumes, ou práticas que não são positivamente educativas. Contudo, ao mesmo tempo, eu também quis dizer aos professores que eles têm papel fundamental na melhoria das escolas públicas. Eu especialmente luto muito pelo papel da escola pública para os pobres. Eu disse hoje aqui que, pelos dados do próprio Ministério da Educação, 56% das crianças e jovens matriculados nas escolas públicas do nosso País, pertence às camadas mais pobres da população e são essas crianças e jovens que precisam mais da escola pública. Isso porque a classe média e a classe alta pagam o ensino para os seus filhos, o que não quer dizer que essas escolas sejam melhores porque sejam pagas. Não, é claro que não! Mas, eu quero dizer que a oportunidade que crianças e jovens de famílias pobres da nossa sociedade têm de poder usufruir o conhecimento, desenvolver o seu pensamento, sua capacidade de pensar com autonomia e capacidade, também de poder se preparar para o emprego, para participar da política, para participar da vida cultural, para a vida cotidiana, para a vida pessoal, familiar... A escola pública é que é o lugar adequado para o ensino e a formação dessas crianças e jovens. Então, eu vim aqui exatamente dizer aos professores o que eu penso sobre como eles devem colocar

P á g i n a | 165

o seu trabalho, o seu esforço. Ivan: O senhor fez questão, inclusive, de colocar exatamente como os dois principais pilares a questão da gestão escolar e, principalmente, da formação do educador. Libâneo: Exatamente. A escola precisa ser bem gerida, bem organizada e sempre a serviço do trabalho dos professores. Uma escola boa... Eu disse aqui hoje que uma escola boa seria aquela que criasse as melhores condições para que os professores possam trabalhar com as crianças, e com isso propiciar melhor a aprendizagem dos alunos. A responsabilidade pela formação escolar, pela formação da personalidade dos alunos, está nas mãos dos professores, e é por isso que eu vim incentivar as faculdades a melhorar a formação. Também reclamei dos salários dos professores, porque os professores... como se diz, o professor forma para cidadania. Mas, primeiro, o professor tem que ser cidadão e para ser cidadão ele tem que ter um salário digno. No nosso país, há um conjunto de condições que eu vejo como necessárias para que a nossa escola pública seja melhor, que ela seja realmente um lugar onde as crianças possam aprender coisas, se preparar para vida, se preparar para o futuro e se tornar pessoas dignas, honestas e que possam participar do debate político, da cultura e cidadania. Ivan: Doutor José Carlos Libâneo, não forma cidadão quem não é cidadão: como formar cidadãos neste mundo globalizado, da economia, política e ideologia? Libâneo: Uma das condições básicas e imprescindíveis da cidadania é a escola, então, isso não quer dizer que resolvendo esse problema da escola, nós resolvamos todos os problemas do nosso país, porque há muitas outras coisas a serem resolvidas, como o emprego, benefícios na área da saúde, do saneamento. É um absurdo que nós tenhamos ainda municípios em nosso país, que não tenham condições de saneamento básico. A Bolsa Família é uma coisa ótima, tem tirado muita gente da fome, mas, o que adianta se temos ainda condições precaríssimas de saneamento, prejudicial à saúde das pessoas? Quer dizer, ela pode se alimentar melhor, pode comprar coisas, mas as condições de saneamento e de saúde não possibilitam que ela possa evitar doenças. E enfim, há muitos outros problemas que precisam ser resolvidos, mas eu creio que a escola é uma exigência de uma sociedade democrática, especialmente para as famílias mais pobres. Ivan: Eu,há poucos dias, ouvi da diretora do Colégio Estadual Polivalente professora Antusa, a professora Verânia, que não conseguiríamos nada sem educação, e hoje o senhor confirma essa frase com a ideia de que nada é feito sem os professores. Libâneo: Claro, porque o coração da escola é a aprendizagem, e a garantia da aprendizagem são os professores. Então, quer dizer, se você valoriza a escola, você tem que valorizar os professores: vamos pagar um salário decente aos professores, vamos oferecer a eles uma carreira digna, vamos também oferecer uma ótima formação e vamos ter, na escola, boas condições para que os professores possam fazer o seu trabalho. Ivan: Nós queremos agradecer em nome da comunidade escolar de Campos Belos, de um modo geral em nome da nossa Cidade, em nome da nossa região à pessoa da mais alta respeitabilidade. O senhor se dispôs e veio aqui trazer conhecimento para todos nós, e a gente abre os microfones da Rádio Atividade FM, através do programa A cidade em foco. Gostaria que o Sr. tecesse suas considerações finais sobre a sua visão da educação como especialista da área, para toda a comunidade campobelense e região.

P á g i n a | 166

Libâneo: Eu quero dizer aos ouvintes da Rádio, que estão nos ouvindo neste momento, que tive muita alegria em conhecer sua cidade e conhecer os seus professores. Eu quero dizer que as famílias que estão me ouvindo, as comunidades... que coloquem na cabeça que as famílias merecem uma escola boa, merecem bons professores. E que isso é uma luta em que as famílias podem exigir das autoridades públicas, exigir dos governantes que deem mais atenção ao ensino e à educação, e que deem mais atenção ao ensino. Educação é valorizar mais os professores. É essa mensagem que eu quero deixar... que a escola que vocês têm faça diferença na vida de seus filhos, e para isso, são necessários os professores.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.