Anais do Simpósio de Pesquisa em Música 2006 | SIMPEMUS 3 | UFPR

September 26, 2017 | Autor: Norton Dudeque | Categoria: Music, Music History, Musicology
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Descrição do Produto

Universidade Federal do Paraná Reitor Carlos Augusto Moreira Júnior Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Maria Benigna Martinelli de Oliveira Diretora do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes Maria Tarcisa da Silva Bega Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Música Rosane Cardoso de Araújo Editora do DeArtes Diretor Rogério Budasz Conselho Editorial Álvaro Carlini Beatriz Ilari Norton Dudeque Paulo Reis Walter Lima Torres Neto Zélia Chueke

anais do simpósiodepesquisaemmúsica2006 simpemus3

rogério budasz (organizador)

editora deartes | ufpr curitiba | 2006

anais do simpósiodepesquisaemmúsica2006 simpemus3

© 2006 os autores listados no sumário

Simpósio de Pesquisa em Música (3.:2006:Curitiba) Simpósio de Pesquisa em Música: Anais / Organização Rogério Budasz - Curitiba: DeArtes-UFPR, 2006. xi, 287p. : il. ; 29 cm. x 21 cm. ISBN 85-98826-10-8

1. Musicologia-Congressos-Brasil. 2. Música-Pesquisa.3-Música Popular Brasileira.4-Música-Composição.5-Música-Análise. I.Budasz, Rogério.II.Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Paraná.II.Título. CDD – 780.01

DeArtes UFPR Editora do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná Rua Coronel Dulcídio 638 80420-170 Curitiba PR (41) 3222-6568 www.artes.ufpr.br Printed in Brazil 2006

simpósiodepesquisaemmúsica2006 comitê organizador | Rogério Budasz | Norton Dudeque | Álvaro Carlini |

comitê científico e editorial Acácio Tadeu Piedade | UDESC Álvaro Carlini | UFPR Carlos Sandroni | UFPE Elizabeth Travassos | UNIRIO Norton Dudeque | UFPR Paulo Castagna | UNESP Rodolfo Coelho de Souza | USP Rogério Budasz | UFPR Rosane Cardoso de Araújo | UFPR Roseane Yampolschi | UFPR

moderadores | Acácio Tadeu Piedade | Álvaro Carlini | Maria Bernardete Castellán Póvoas | | Maria Ignez Cruz Mello | Marcos Tadeu Holler | Maurício Dottori | | Norton Dudeque | Rodolfo Coelho de Souza | Rogério Budasz | | Rosane Cardoso de Mello | Roseane Yampolschi |

monitores | Bernardo Grassi | Caio Nocko | Charlene Neotti | Daniella Gramani | | Daniele Franco | Fernando Menon | João Marcelo Gomes | Lilian Nakahodo | | Luís Bourscheidt |

apoio

realização

| sumário | x

| apresentação |

xi

| programação | | comunicações | história

1

Pianolatria nacional: gênese e desenvolvimento - Rita de Cássia Fucci Amato

7

A cantora Lapinha e a presença musical feminina no Brasil colonial e imperial - Alberto José Vieira Pacheco, Adriana Giarola Kayama

13

SAFO NOVELLA: a voz da poeta grega reapropriada por Barbara Strozzi (Veneza, 1619 – 1677) - Silvana Ruffier Scarinci

21

O mito da música nas atividades da Companhia de Jesus no Brasil colonial - Marcos Tadeu Holler

27

Evidências evolucionistas na historiografia musical sobre os jesuítas - Dalton Martins

cultura e sociedade | música popular 32

Políticas públicas para cultura e produção musical em Curitiba - 1971 a 1983 - Ulisses Quadros de Moraes

40

Música e identidade dekassegui - Beatriz Senoi Ilari

48

Globalization and Brazilian jazz artists - Afonso Cláudio Segundo de Figueiredo

51

Juventude e seus referenciais rítmico-melódicos: estilos musicais - Rosemyriam Cunha

56

Laurindo Almeida e o jazz de samba: uma outra história sobre as origens da concepção harmônica da bossa nova - Alexandre Francischini

63

Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise musical - Acácio Tadeu de Camargo Piedade

69

Relações de gênero e musicologia: reflexões para uma análise do contexto brasileiro - Maria Ignez Cruz Mello

75

Aspectos da oralidade na atual produção musical nordestina: a relação palavra e música na obra de Elomar - Nivea Lazaro dos Santos

estética 81

Os estilos e as idéias em Villa-Lobos - José Ivo da Silva

88

A atualidade da estética musical de Adorno - Igor Tadeu Baggio da Silva

análise 95

A Bar Form nas canções de Nepomuceno - Rodolfo Coelho de Souza

105

La doble génesis del concepto de textura musical - Pablo Fessel

113

Forma musical e referencialidade: uma análise comparativa entre Mortuos Plango, Vivos Voco de Jonathan Harvey e Points de Fuite de Francis Dhomont - Arthur Rinaldi e Edson Zampronha

118

Uma aproximação matemática para variações de agógica em frases: Furtwängler e os scherzos de Beethoven - Ricieri Carlini Zorzal

122

Dahlhaus e a análise de segunda ordem - Antenor Ferreira Corrêa

128

O uso do cromatismo como gerador de unidade na mazurka op. 68 de Frédéric Chopin - Mauricy Martin e Tarcísio Gomes Filho

133

Poucas Linhas de Ana Cristina de Silvio Ferraz: a performance da clarineta e suas transformações em contexto eletroacústico - Flávio Ferreira da Silva, Maurício Alves Loureiro, Sérgio Freire

139

Transformações e funções motívicas: uma análise do enérgico - 1º movimento da Sonata Breve para piano de Oscar Lorenzo Fernandez - Maria Bernardete Castelan Póvoas

performance 150

A preparação do ambiente da livre improvisação: antecedentes históricos, as categorias do objeto sonoro e a escuta reduzida - Rogério Luiz Moraes Costa

157

Emoção: a essência da expressividade na performance musical - Marcia Kazue Kodama Higuchi

163

Estrelinhas brasileiras: um paralelo entre canções folclóricas brasileiras e internacionais - Maria Ignês Scavone de Mello Teixeira

166

Significação musical: produções a partir do ‘fazer musical’ e de histórias de relação com a música - Patrícia Wazlawick

173

A voz na arte e a sensualidade na expressão - Lara Janek Babbar

tecnologia 178

O instrumentista interface - Fabiana Moura Coelho

183

O papel das alturas numa abordagem composicional baseada em temporalidades musicais - Ticiano Albuquerque de Carvalho Rocha

188

Atribuições de aspectos musicais nos efeitos sonoros - André Luis Battaiola, Daniel Avilez

193

Gesto & interpretação mediada para marimba - Cesar Adriano Traldi, Jônatas Manzolli

200

O processo de produção musical na indústria fonográfica: questões técnicas e musicais envolvidas no processo de produção musical em estúdio - Frederico Alberto Barbosa Macedo

206

Improvisação & interpretação mediada - Cleber da Silveira Campos, Cesar Adriano Traldi, Jônatas Manzolli

212

Implementação de um visualizador algorítmico de notação musical microtonal para o programa Pure Data - Marcus Alessi Bittencourt

simpósio de alunos de graduação e iniciação científica 218

Schoenberg e o progresso: o projeto estético de Arnold Schoenberg segundo Theodor Adorno - Valéria Muelas Bonafé, Marcos Branda Lacerda (orientador)

225

Razão e nostalgia: o lugar da música no pensamento moderno - Enrique Valarelli Menezes

232

O que é (pode ser) música? uma análise fenomenológica das atitudes de escuta segundo Pierre Schaeffer - José Estevão Moreira, Rogério Costa (orientador)

239

Comentários sobre o choro atual - Adriano Maraucci Réa, Acácio Tadeu de Camargo Piedade (orientador)

245

Acompanhamento instrumental do canto gregoriano: três níveis de desconfiguração - Tadeu Paccola Moreno

249

Código Morse em música - Samantha Batista

253

As obras de Alberto Nepomuceno compostas entre 1890 e 1894 - Igor Simões Correia, Norton Dudeque (orientador)

265

Análise de improvisações na música instrumental: em busca da retórica do jazz brasileiro - Marina Beraldo Bastos, Acácio Tadeu Piedade (orientador)

272

Conservação e restauração de partituras: a problemática da coleção Renée Devrainne Frank de música paranaense do Museu da Imagem e do Som de Curitiba - Charlene Neotti Gouveia Machado

276

Música: linguagem formadora de identidades sociais - Auro Sanson Moura

pôsteres 283

A aplicação de elementos modais nas aulas de música - Luís Bourscheidt

283

Meus caros pianistas - Raimundo Fortes Filho e Diana Santiago (orientadora)

283

Maracá: instrumento da feitiçaria da pajelança indígena à cura maranhense - Cláudia Padilha

284

O Fino da Bossa e Zimbo Trio: uma perspectiva histórica e suas repercussões na moderna música popular brasileira (1965 - 1067) - Cristina Gomes Machado

286

Pequeno panorama utilização da viola e da rabeca no fandango dos litorais sul de São Paulo e norte do Paraná - Daniella da Cunha Gramani

| conferência | 287

Um objeto fugidio: voz e conhecimento musicológico - Elizabeth Travassos

| apresentação |

A terceira edição do SIMPEMUS – Simpósio de Pesquisa em Música, realizado nos dias 4 e 5 de novembro de 2006, coincide com a implantação do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Paraná. Antigo anseio de pesquisadores em música e áreas afins no Estado do Paraná, o curso de Mestrado em Música atende a uma demanda por vários anos reprimida e já iniciou o processo de seleção para a segunda turma, que inicia as aulas em março de 2007. O Programa de Pós-Graduação em Música realiza agora o SIMPEMUS3, contando com uma comissão científica e editorial formada por pesquisadores de várias instituições brasileiras. O SIMPEMUS 3 permanece fiel às diretrizes que nortearam as edições anteriores, constituindo-se em um fórum científico dedicado à discussão e reflexão de questões relativas às áreas da história, criação, análise e interpretação musical. Dentre as áreas sugeridas para este ano, destacam-se: 1. Musicologia, privilegiando abordagens históricas, culturais, sociais e antropológicas da música, com ênfase no contexto nacional; 2. Teoria e análise musical, enfocando a análise tradicional de obras do repertório canônico, bem como novos métodos de análise da música popular; 3. Tecnologia musical, incluindo estudos sobre a interação entre tecnologia e música, e priorizando áreas como música e computador, música e multimeios, e música e cinema. Para esta edição foram selecionados 50 trabalhos de pesquisadores oriundos de 14 instituições do Brasil (USP, UFMG, UNIRIO, UNESP, UFPR, UNICAMP, UDESC, UEM, UFPB, FAP, PUC-PR, UFSC, EMM-SP, UFBA, UFF) e uma da Argentina (UNL). O número de trabalhos é pouco superior ao do evento passado (47), mas contamos com mais comunicações orais e menos pôsteres (apenas 5, contra 24 do SIMPEMUS2), o que exigiu a organização de sessões paralelas. Em nome da comissão organizadora do SIMPEMUS3, agradeço a todos os pareceristas, mediadores de sessões e alunos monitores, funcionários do DeArtes, e também à Fundação Araucária, à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, à Coordenação do PPG-Música e ao Departamento de Artes da UFPR. Sem o apoio destas pessoas e instituições, o SIMPEMUS3 jamais teria sido realizado.

Rogério Budasz Coordenador do SIMPEMUS3

| programação |

sábado 04/11

domingo 05/11

8:00 inscrições e boas vindas

9:00 – 12:00 sessão de estudantes SALAS 1 e 2

9:00 abertura 10:30 – 12:00 comunicações SALA 1 -HISTÓRIA

12:00 almoço 13:30 – 15:30 comunicações SALA 1 - MÚSICA POPULAR SALA 2 - ESTÉTICA

15:30 café 16:00 – 18:30 comunicações SALA 1 - ANÁLISE SALA 2 – PERFORMANCE / TECNOLOGIA

20:00 jantar (por adesão)

12:00 almoço 13:30 – 15:30 comunicações SALA 1 - TECNOLOGIA SALA 2 - HISTÓRIA

15:30 café 16:00 – 18:00 comunicações SALA 1 - CULTURA E SOCIEDADE SALA 2 - PERFORMANCE

18:00 sessão de Pôsteres 18:30 conferência Profa. Dra. Elizabeth Travassos 20:00 encerramento

| comunicações | Pianolatria nacional: gênese e desenvolvimento Rita de Cássia Fucci Amato Universidade Estadual Paulista / Faculdade de Música Carlos Gomes Resumo O presente artigo busca relatar o desenvolvimento da cultura musical e pianística no Brasil, desde suas primeiras manifestações até a primeira metade do século XX: o desenvolvimento da música na corte, a criação do Conservatório de Música do Rio de Janeiro e do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, a escola de Luigi Chiaffarelli e as trajetórias de Guiomar Novaes e Magdalena Tagliaferro. O desenvolvimento da educação pianística no Brasil foi um fator proeminente na criação de um novo padrão de ensino de música que repercutiu por décadas o esmerado refinamento estético destas grandes pianistas, com a expansão de conservatórios e escolas de música altamente especializadas. Palavras-chave: Pesquisa histórica, memória musical, cultura pianística.

Introdução A reconstrução histórica da cultura pianística e musical busca enfocar alguns dos aspectos mais relevantes do ponto de vista da cultura nacional e, ao mesmo tempo, ater-se a algumas práticas educativo-musicais que promoveram novos padrões para a arte no Brasil. A partir da investigação, objetiva-se compreender como a cultura musical, especialmente a divulgação da pianolatria brasileira dentro e fora do país, contribuiu para formar uma nova configuração cultural nacional e, assim, incentivar o estudo do piano em escolas especializadas ─ os conservatórios musicais. A atenção dada a alguns aspectos educativo-musicais que emergiram durante o processo histórico nacional também se inserem nessa perspectiva de compreensão. O referencial metodológico adotado baseia-se em uma revisão bibliográfica de temas relativos à cultura musical nacional, coordenados a fim de se obter uma reconstrução fiel do passado musical brasileiro. A música no Brasil: do descobrimento ao século XVIII Várias manifestações artístico-musicais ocorreram no Brasil desde o seu descobrimento: em relação à música indígena, a referência mais antiga encontra-se na Carta a El Rey Dom Manuel, de Pero Vaz de Caminha, com o comentário de que, após a pregação, os índios levantaram-se, tangeram corno e buzina e começaram a saltar e dançar. Com a chegada dos jesuítas no Brasil (1549), ocorreu um

aproveitamento das aptidões musicais dos indígenas para os trabalhos de catequese: a facilidade desse povo para aprender os cânticos dos autos (forma dramática originária do teatro medieval) e das celebrações das missas surpreendeu os próprios missionários. Neide Esperidião (2003) aponta que a preocupação com o aprendizado musical nas escolas de “cantar e tanger” estava intimamente relacionada ao trabalho de catequese e às necessidades musicais das celebrações dos ofícios: a música européia passou a dominar a música nativa, dando mais um exemplo da preponderância da metrópole sobre a colônia e contribuindo para o descaminho da cultura indígena. Acrescentou-se a esse cenário a formação humanística dos jesuítas, missionários que auxiliaram a coroa e a aristocracia nos seus interesses e aspirações. O surgimento dos primeiros centros musicais, no Brasil do século XVI, esteve relacionado à ação educativa dos mestres de capela, função exercida por padres e leigos (portugueses e brasileiros natos), a qual se constitui em um fator de fundamental relevância para o ensino musical àquela época. O centro musical mais antigo foi a Bahia, onde, no ano de 1551, por Carta d’El Rey, foram criados os cargos de chantre e de moço de coro, na Sé de Salvador. O desenvolvimento do ensino musical esteve ligado a diversos padresmúsicos, devido à sede do episcopado estar localizada na Bahia nesse período, à figura de Antonio Rodrigues Lisboa (considerado o patrono dos educadores musicais no Brasil) e, já no século XVII, pela presença do padre João de Lima. Em 1763, a Bahia perdeu sua posição de centro

2 eclesiástico do Brasil com a transferência da capital para o Rio de Janeiro. Minas Gerais foi outro centro significativo na vida musical do período colonial, cuja produção musical da Escola de Compositores da Capitania Geral das Minas Gerais foi descoberta pelo musicólogo Curt Lange, que incorporou novas fontes, fatos e documentos comprovando o dinamismo musical nessa região, com a presença de músicos brasileiros natos − mestiços, em sua grande maioria. Nessa época, o ensino da música restringia-se a algumas iniciativas particulares com os mestres de música em suas residências. No interior destes “conservatórios privados” ou destas “escolas de música”, floresceram vários compositores e músicos mestiços na Minas Gerais colonial. No final do século XVIII, com o declínio da mineração, Minas foi vitimada pela decadência de suas atividades musicais e, no início do século XIX, o centro de desenvolvimento artístico e musical passou a ser o Rio de Janeiro. Faz-se necessário reportar também as atividades musicais realizadas no Pará, com um dos grandes músicos da catedral de Belém, Lourenço Álvares Roxo de Potflix, que, em 1735, criou uma escola de música para desenvolver aptidões vocais em meninos com o intuito de que eles participassem no coro da catedral. No período colonial, São Paulo, por sua vez, apresentou variações na expressividade musical, atingindo o apogeu a partir de 1774, com a importante presença do mestre de capela português André da Silva Gomes na nova Sé, o qual havia vindo ao Brasil para organizar e dirigir o coro da catedral. Ele deu uma contribuição significativa ensinando música, inclusive para crianças pobres, e criou obras importantes como a Missa a 8 vozes e instrumentos, cujo manuscrito foi descoberto por Régis Duprat. Destaca-se, portanto, que no Brasil colonial as possibilidades de aprendizado musical estiveram ligadas primeiramente aos jesuítas; depois com um mestre de solfa, nos seminários; posteriormente com um mestre de capela nas matrizes e catedrais; e, finalmente, com um mestre de música independente. Nesse sentido, Neide Esperidião (2003, p. 74) coloca que o ensino informal de música nas casas de famílias abastadas foi uma tradição que se conservou até o segundo Império. D. João VI e a música Com a vinda de D. João VI para o Brasil (1808), a cidade do Rio de Janeiro – sede da

SIMPEMUS3 corte – despontou como importante centro musical, em uma época de significativo florescimento social e cultural. O padre José Maurício Nunes Garcia foi uma das figuras de maior destaque desse período, ocupando a função de mestre de capela da Capela Real até a chegada do músico português Marcos Portugal, que foi dominando a cena artística carioca. O padre José Maurício era mestre de música, compositor, regente, organista e, como educador musical, fundou um curso de música que perdurou por aproximadamente vinte e oito anos, qualificando musicalmente algumas das figuras mais insignes do Rio de Janeiro: D. Pedro I, Francisco Manuel da Silva e muitos outros. Faz-se relevante destacar que a vinda da missão francesa ao Brasil, por meio de solicitação do Conde da Barca, ministro de D. João, em 1816, concorreu para um rompimento dos padrões artísticos coloniais, influenciando de maneira categórica o desenrolar das artes brasileiras. Devido a essas influências, já se esboçava um processo de laicização da música ainda na época de D. João VI, com o desenvolvimento da vida urbana. Entretanto, após o regresso de D. João a Portugal, o nível das atividades musicais sofreu um rápido decrescendo: a sociedade fluminense com seus ideais liberais possibilitou um crescimento no processo de independência e, após esse acontecimento e o agravamento da situação financeira do país, o declínio das atividades musicais foi inevitável. A música sacra desgastou-se em relação à música profana, que se deflagrava pela nação. Desse modo, as atividades musicais que se concentravam em comunidades sacras passaram a se transferir para os teatros. A iniciativa particular promovia uma educação musical elitista, comumente importando professores e artistas estrangeiros. Nesse momento de transição, com a estagnação da produção musical nacional, surgiu o gosto pela cultura pianística, reiniciando um novo crescendo artístico. Após um período de fermata, a música renasceu e difundiu-se por toda a nação. Na capital fluminense, os pianos se tornaram ainda mais comuns, chegando até aos domicílios mais modestos. O Conservatório de Música do Rio de Janeiro A criação do Conservatório de Música (1841) por Francisco Manuel da Silva (1795-1865), discípulo do compositor austríaco Sigismundo Neukomm e de Marcos Portugal, foi uma contribuição ímpar para o campo da educação musical, sistematizando a estrutura pedagógica em sólidas bases. Vasco Mariz (2000) referenda que Francisco Manuel deve ser

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simpósio de pesquisa em música 2006 celebrado não somente pela composição do Hino Nacional, mas também pela intensa atividade que desenvolveu. Exemplo disso é a Sociedade Beneficiente Musical por ele fundada, que divulgou a música de 1833 a 1890. Essa associação foi responsável por solicitar à Assembléia Legislativa do Império a subvenção para a criação do Conservatório, apoiada por D. Pedro II. A concretização do projeto foi aprovada em 1841, mas tardou-se a realizar por falta de fundos. Em 1948, após a realização de duas loterias, seis docentes foram responsáveis pelo início das aulas. Sete anos depois, os professores passaram a ser contratados por meio de concursos e os alunos mais destacados começaram a ser agraciados com viagens. Todo esse processo foi encabeçado por Francisco Manuel, que, em gratidão ao imperador, dedicou-lhe um compêndio de música (MARIZ, 2000). Esse Conservatório, segundo Fernando de Azevedo (1971), passou por três fases: na primeira fase (1841-55), foi autorizada a sua fundação por Francisco Manuel, mas apenas começou a funcionar em 13 de agosto de 1848, numa dependência do Museu Imperial e em conformidade com o decreto n°. 496 de 21 de janeiro de 1847. Conservou, porém, o caráter de instituição particular, reconhecida e subvencionada pelo governo. Na segunda fase (1855-90), o Conservatório foi inteiramente reorganizado, passando de instituição privada a instituição oficial, incorporada à Academia Imperial de Belas-Artes. O Imperial Conservatório de Música continuou dirigido por Francisco Manuel até seu falecimento (1865). Depois da proclamação da República, o velho Conservatório, desligado da Academia de Belas-Artes, transformou-se no Instituto Nacional de Música, com uma nova organização, inspirada por Alfredo Beviláqua, José Rodrigues Barbosa e Leopoldo Miguez. O Instituto Nacional de Música passou por nova reforma (decreto n°. 934, de 24 de outubro), mas continuou a funcionar no mesmo local (Rua Luís de Camões). Na última fase (1890-1940), o Instituto foi reestruturado em novas bases pela reforma Francisco Campos (decreto n°. 19.852, de 11 de abril de 1931) e anexado à Universidade do Rio de Janeiro, passando a denominar-se Escola Nacional de Música, segundo a lei n°. 452, de 5 de julho de 1937, que criou a Universidade do Brasil. Este foi o período mais fecundo e brilhante dessa instituição. Foram seus diretores os grandes nomes: Leopoldo Miguez (1890-1902),

Alberto Nepomuceno (1902-1903, 1906-1916), Henrique Oswald (1903-1906), Luciano Gallet (19301931) e outros.

O piano em São Paulo O segundo Império foi um momento particular para a história do piano no Brasil com a vinda de dois fundadores da virtuosidade pianística nacional: Artur Napoleão, que em 1878 fundou, associado a Leopoldo Miguez, uma casa de pianos e de músicas no Rio de Janeiro, e Luigi Chiaffarelli, o fundador da escola de piano em São Paulo. Na sociedade paulista, o piano só começou a se tornar mais presente quando o café forneceu recursos para sua importação. A questão cafeeira foi bem posta por Ivan Ângelo (1998, p. 18): “os negócios do café – abrir fazendas, plantar, exportar, financiar, beneficiar, comercializar haviam mudado o estado, a capital, o trabalho e as cabeças”. A valorização do piano, instrumento caro e não-portátil, gerou novos hábitos sócio-culturais: o surgimento de professores particulares (geralmente imigrantes), de cursos, saraus, recitais de piano, sociedades, lojas de música e a criação dos conservatórios musicais. A mulher neste início de século não tinha direito ao voto ou à participação política, e suas aptidões deveriam desenvolver-se apenas no que se referisse a tarefas essencialmente domésticas: cozinha, bordados, crochês, familiaridade com a língua francesa e com a música, especialmente com a execução pianística. A cultura paulistana caminhou nos seus crescendi e diminuendi característicos de uma época de transição. A criação do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, em 1906, inseriu-se exatamente na perspectiva cultural traçada por Chiaffarelli e outros professores contemporâneos seus e ligados ao sonho de uma escola de música consistente e paulistana. Luigi Chiaffarelli (1856-1923) nascera em uma família de músicos, na cidade italiana de Isernia; iniciara seus estudos sob a orientação de seu pai, dedicando-se intensamente ao estudo do piano, em Bologna com o prof. Gustavo Tofano, posteriormente transferindo-se para o Conservatório de Stuttgart, na Alemanha, na classe do prof. Sigmund Lebert. Chiaffarelli, segundo Maria Francisca Junqueira (1982), optara pelo magistério e interrompera sua carreira de concertista, seguindo para a Suíça, onde conhecera o casal Sebastiana e Francisco Paula Machado (fazendeiros de Rio Claro), que mais tarde convidaram-no para vir para o

4 Brasil, com o intuito de tê-lo como professor de seus filhos. Depois de permanecer em Rio Claro, decidira transferir-se para São Paulo. A atividade musical que Chiaffarelli desenvolveu em nosso país durante quase quarenta anos rendeu-lhe frutos de mérito nacional e internacional: transformou São Paulo no centro musical mais adiantado do Brasil e desenvolveu o talento artístico de Guiomar Novaes, que, ingressando no Conservatório de Paris, já tinha as suas bases teóricas e práticas estabelecidas pelo grande mestre italiano. Maria Stella Orsini (1988) lembra que o insigne professor pôde, com o seu talento e sua intuição, realizar uma das mais louváveis trajetórias de educador musical no Brasil, já que, segundo ele, os elementos musicais do país eram tão vastos como a riqueza de sua fauna e flora e a terra brasileira era o enfant prodige latino-americano. Pianistas de porte magnífico foram por ele formados: Antonieta Rudge, as irmãs Alice, Victoria e Antonieta Serva, Maria Edul Tapajós e Souza Lima são os mais relevantes exemplos. A fundamentação da escola pianística de Luigi pode ser vista sob seis aspectos, segundo Orsini (1988), baseada nas palestras do próprio mestre: o profundo respeito que cada aluno deveria ter frente aos progressos de seus colegas era o princípio da escola de música e caracterizava o restante; em segundo lugar, a importância de fazer bem tudo o que o aluno pretendesse estudar; como terceiro aspecto, ressaltava-se a necessidade de querer aprender cada vez mais, de progredir e, sobretudo, não esmorecer diante das dificuldades. Guiomar Novaes A escola de piano de Chiaffarelli burilou um dos maiores talentos nacionais: Guiomar Novaes, que está inevitavelmente vinculada à tradição musical de São Paulo. É importante destacar que, em 1902, aos oito anos de idade, o nome de Guiomar era associado ao de Luigi Chiaffarelli, seu exímio professor do Conservatório Dramático e Musical. Mário de Andrade era da opinião de que certamente não havia sido Chiaffarelli quem produzira a genialidade intrínseca de Guiomar, no entanto, reconheceu que a vinda desse professor italiano possibilitou a “floração magnífica com que a escola de piano de Cafelândia ganhou várias maratonas na América” (ORSINI, 1988, p. 10910). A carreira de Guiomar deu um salto internacional no ano de 1909, ao ser admitida no

SIMPEMUS3 Conservatoire National de Musique et de Déclamation, em Paris, com bolsa de estudos do governo paulista. O governador nessa época era Manuel Joaquim de Albuquerque Lins (1908-1912), que contribuiu significativamente para o êxito da talentosa menina. A petite Novaès incorporou-se ao mundo musical parisiense: o público francês pôde ouvi-la em 1911, durante um recital na Sala Érard, o qual se precedeu ao término do seu curso de piano. Ao concluir seus estudos no Conservatório de Paris, no mesmo ano, a pianista foi agraciada com o Primeiro Prêmio. A partir do ano seguinte, ela já era uma artista consagrada e uma intérprete brilhante. O encadeamento histórico das figuras de Chiaffarelli e Novaes deu-se pela expressiva e rigorosa atuação do mestre italiano, pela criação do Conservatório do Dramático e Musical de São Paulo e seu modelo francês. O Dramático e Musical teve, portanto, inspiração no Conservatório de Paris, fundado em 1795 e considerado uma das principais escolas de música do mundo. Foram seus diretores: Cherubini, Dubois, Fauré. Seus renomados professores transformaram-no em gênesis da maior parte da música francesa moderna: Berlioz, Gounod, Frank, Saint-Saëns, Debussy, Ravel, Cortot (LEITE, 1999). A Sociedade de Cultura Artística Posterior ao surgimento de Chiaffarelli e Guiomar Novaes, mas pertencentes à mesma esfera artística borbulhante, exuberante e criativa da cidade de São Paulo, fundou-se a Sociedade de Cultura Artística, em 1912. O primeiro sarau da Sociedade realizou-se no salão do Conservatório Dramático e Musical, em 26 de setembro de 1912, com uma palestra sobre Raimundo Corrêa e um concerto organizado e dirigido pelo maestro João Gomes de Araújo. No entanto, essa triunfante noite não protegeu a Sociedade de sérios problemas que assolaram seu encaminhamento nos anos de 1913/14. Um ano mais fecundo, entretanto, foi o de 1915, quando foi promovido um concerto com uma orquestra integrada por oitenta professores de musica, sob a regência do maestro Francisco Braga, autor do Hino à Bandeira. Momentos difíceis devido à Grande Guerra refletiram-se no Brasil, pois, em 1916, terceiro ano do conflito, não se encontravam soluções para findá-lo. São Paulo diminuiu seu ritmo de crescimento e o café, taxado como supérfluo nos Estados Unidos, perdeu mercado. As iniciativas foram paralisadas sob a imposição de Wenceslau Brás e a produção tornou-se cada vez mais de

simpósio de pesquisa em música 2006 subsistência interna, ignorando as importações: as indústrias têxteis e calçadistas paulistas abasteciam os países aliados e ainda conseguiam prosperar; a ascensão cultural resistia, sendo originada pelos músicos e intelectuais, como bem comenta Ivan Ângelo (1998). Passados os primeiros anos da Sociedade, agora era moda ser sócio e tinha-se prestígio por pertencer a tão restrita associação. Concertos internacionais, nacionais e conferências deram continuidade aos eventos da Cultura: na primavera de 1919, foi a vez de Guiomar Novaes realizar um concerto no Theatro Municipal para os seus sócios. Aos dezessete anos de idade, ela já havia dado recitais em Paris, em Londres, na Suíça e na Alemanha. Esteve presente ao evento o maestro Chiaffarelli, que, aos 63 anos de idade, estava fulgurante pela apresentação de sua aluna, que, desde o 7 anos, desfrutara de seus melhores ensinamentos. Ele ainda lecionava piano no Conservatório Dramático e Musical e em aulas particulares e atuava como solista e maestro em concertos da Sociedade de Cultura Artística e do Conservatório, editor de partituras, sócio e conselheiro musical da Casa Beethoven. ma colaboração de valor passou a ser estabelecida, a partir de 1922, entre a Cultura e Villa-Lobos, quer na direção de vários concertos sinfônicos e de câmara, quer como instrumentista. Todos os concertos patrocinados pela Cultura apresentando as obras de VillaLobos contribuíram eficazmente para divulgar a sua vasta obra. Alguns concertos foram executados por Souza Lima, Antonieta Rudge e Guiomar Novaes. Sociedade de Cultura Artística também atraiu para seu famoso rol de intérpretes a pianista Magdalena Tagliaferro (1893-1986), que, dentre pianistas como Rubinstein, Arrau, Horowitz, Cortot, Marguerite Long, se destacava como uma das mais completas representantes da figura do moderno mestre de música, como discursa Edson Leite (1999). Magdalena Tagliaferro Magdalena Tagliaferro nasceu em Petrópolis, filha de pais franceses que vieram passar algum tempo em nosso país, e arrebatou o premier prix do Conservatório de Paris em 1907, aos 14 anos de idade. Além deste importante prêmio, ganhou um imenso piano de cauda e o primeiro concerto na tradicional Sala Érard, em Paris, onde eram realizados magníficos recitais com “monstros” da música: Chopin havia tocado

5 lá. Conviveu com celebridades musicais francesas como Fauré, Cortot, Debussy, Ravel e outros mais. Alfred Cortot, seu professor, foi, no entanto, a grande e decisiva influência que ela recebeu em Paris, conclusão elaborada pela própria Magda. Leite (1999, p. 33) relembra que, em suas memórias, a pianista comenta que Cortot dava mais ênfase ao ensino técnico, crendo que ela detinha competência para obter êxito nesse trabalho; o professor revelava os segredos da interpretação, da harmonia e das vibrações sonoras, completando suas aulas com exemplos musicais, quando “tudo se iluminava, e ele nos tornava mais inteligentes”, nas palavras de Magdalena Tagliaferro (citada por LEITE, 1999, p. 33). Um momento particular da carreira de Tagliaferro foi quando, em 1937, tornou-se professora catedrática do Conservatório Nacional de Paris, sucedendo a Isidore Philipp. Esse novo trabalho fez com que ela passasse a refletir sobre sua performance e colaborasse para o desenvolvimento de uma escola de piano com forte rigor pedagógico. Naquele momento, a pianista se tornava uma educadora inovadora, que adotava um método natural de interpretação pianística, conjugando os ensinamentos de Cortot às suas experiências musicais. Após um ano de aulas com a artista, quatorze alunos foram premiados no concurso final (LEITE, 1999, p. 43). A vigorosa carreira internacional de Magda incluiu quase todos os países do mundo e suas principais orquestras e regentes. Foi enviada aos Estados Unidos pelo governo francês em 1939, em uma missão pelo Ministério Des Affaires Étrangères para divulgar as obras dos compositores franceses. Em 1940, no início da guerra, ainda em missão nos Estados Unidos, Tagliaferro resolveu voltar ao Brasil e deixar para trás seu cargo de professora no Conservatório de Paris e seu casamento: aceitou o convite do ministro da Educação do governo Vargas, Gustavo Capanema (LEITE, 1999). Sua permanência no Brasil, por dez anos, foi um sucesso, tendo ela ministrado cursos públicos de interpretação pianística no Rio e em São Paulo. Esse sucesso deveu-se à sua experiência nas conferências da Université des Annales e, particularmente, à sua palestra Un Bouquet d’Auteurs Modernes, como ela própria afirma em suas memórias, citadas por Leite (1999). Os cursos de virtuosidade e interpretação musical proporcionaram a jovens pianistas brasileiros, alunos de professores residentes no Brasil e impedidos pela guerra de cursarem os conservatórios europeus, o contato com a excepcional pianista e professora. A aula pública a fascinava tanto quanto sua performance num concerto,

6 porque nesses momentos ela tinha a oportunidade de receber tudo o que os alunos lhe ofereciam, segundo comenta. Magdalena permanecia sempre atenta, buscando, de acordo com a qualidade da execução do educando, tecer comentários produtivos, fazendo conhecer o seu ponto de vista a respeito da interpretação de uma obra. Tagliaferro interpretou muitos autores nacionais em primeira audição e se mostrava otimista com a música brasileira. Em suas declarações solicitava que os compositores nunca esquecessem da riqueza e da beleza de nosso folclore. Foi uma das figuras mais representativas da música brasileira, levando-a aos grandes salões de concertos e a um alto nível de reconhecimento na Europa. Sua pedagogia criou uma nova escola pianística no Brasil e desenvolveu discípulos que até hoje figuram como grandes mestres do piano. Ela levou a pianolatria brasileira às terras européias e ao Conservatório de Paris, assumindo perspectivas pedagógicas que deram aos músicos nacionais um outro ritmo de desenvolvimento, uma outra esfera de compreensão do mundo musical, adiantados no tempo e aperfeiçoados na estética, particularmente herdada dos mestres da escola parisiense. Considerações finais As primeiras manifestações musicais no solo brasileiro se desenvolveram com a chegada dos jesuítas e passaram a tomar um novo caminho com a chegada de D. João VI e com a produção do padre José Maurício. A criação do

SIMPEMUS3 Conservatório de Música do Rio de Janeiro tratou-se de um dos fatos mais relevantes para a educação musical e píanistica no Brasil, que se somou às chegadas de diversos professores europeus no cenário artístico nacional. A criação do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo encarregou-se da difusão do piano por todo o estado. A escola de Luigi Chiaffarelli deu o primeiro passo em direção à internacionalização do piano brasileiro, na medida em que dentre seus brilhantes discípulos formou a pianista Guiomar Novaes, desbravadora brasileira nas terras norteamericanas. Magdalena Tagliaferro, levando a pianolatria brasileira às terras européias e ao Conservatório de Paris, desempenhou um importante papel na história do piano no Brasil e influenciou dezenas de intérpretes e professores. O desenvolvimento da cultura musical possibilitou uma motivação a grande parte da população brasileira. Em especial, a divulgação do piano nacional e internacionalmente criou um novo desejo de busca pelo conhecimento musical. Motivo coadjuvante, a veiculação e o ensino de música (teoria musical, canto orfeônico, solfejo e outras noções básicas) nas escolas públicas e privadas do Brasil, especialmente entre as décadas de 1940 e 1960, possibilitou aos seus discentes um desenvolvimento cognitivo musical inicial, que, em muitos casos, gerou impactos no desejo de aperfeiçoamento em instituições especializadas, como os conservatórios. Dessa forma, essas instituições educativomusicais puderam desenvolver-se durante décadas, divulgando o conhecimento musical e formando músicos destacados e amantes da música.

Referências ÂNGELO, Ivan. 85 anos de cultura: História da Sociedade de Cultura Artística. São Paulo: Nobel, 1998. AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo: Melhoramentos, EDUSP, 1971. ESPERIDIÃO, Neide. Conservatórios: Currículos e programas sob novas diretrizes. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2003. JUNQUEIRA, Maria Francisca Paez. Escola de música de Luigi Chiaffarelli. Tese (Doutorado) – Universidade Mackenzie São Paulo, São Paulo, 1982. LEITE, Edson Roberto. Magdalena Tagliaferro: Testemunha de seu tempo. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. ORSINI, Maria Stella. Guiomar Novaes: Uma vida, uma obra. Tese (Livre-Docência) - Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988.

A cantora Lapinha e a presença musical feminina no Brasil colonial e imperial Alberto José Vieira Pacheco, Adriana Giarola Kayama Universidade Estadual de Campinas Resumo Esboço biográfico da cantora brasileira Joaquina Maria da Conceição da Lapa, ou Lapinha, à luz de documentos da Biblioteca Musical do Paço Ducal de Vila Viçosa, periódicos portugueses e relatos de viajantes e cronistas no Brasil e em Portugal de fins do século XVIII e início do século XIX.

Em finais do século XVIII e início do XIX, viveu aquela que parece ter sido a primeira cantora brasileira a alcançar sucesso na Europa: Joaquina Maria da Conceição da Lapa, mais conhecida por Lapinha. Segundo Ayres de Andrade, não se tem notícia de outra cantora profissional naquela época. “É a única de quem a História guardou o nome” (ANDRADE, 1967, v. 2, p. 184). Infelizmente, pouco se sabe sobre suas origens. O local e a data de seu nascimento são ignorados. Tampouco se sabe qual teria sido sua formação musical e dramática. Na verdade, as notícias mais antigas a seu respeito que se conhece são de quando a cantora já se aventurava em Portugal. Trata-se de três notas da Gazeta de Lisboa que evidenciam seus primeiros recitais públicos além-mar. A primeira, de janeiro de 1795, anuncia um concerto da brasileira no mais importante teatro português: A 24 do corrente mês fará no Real Teatro do S. Carlos um Concerto de Musica vocal e instrumental Joaquina Maria da conceição Lapinha, natural do Brasil, onde se fizeram famosos os seus talentos músicos, que têm já sido admirados pelos melhores avaliadores desta capital. Os bilhetes e chaves dos camarotes se acharão em sua casa na rua dos Ourives da Prata na véspera, e na noite do indicado dia no mesmo Teatro (Suplemento à Gazeta de Lisboa, n. II, 16/01/1795).

Em fevereiro de 1795, o mesmo jornal publica uma breve crítica, aliás, bastante favorável, sobre esta apresentação: A 24 do mês passado houve no Teatro de S. Carlos desta cidade o maior concurso que alli se tem visto, para ouvir a célebre cantora Americana Joaquina Maria da Conceição Lapinha, a qual na harmoniosa execução do seu canto excedeu a expectação de todos; foram gerais e muito repetidos os aplausos que

expressavam a admiração que causou a firmeza, e sonora flexibilidade da sua voz, reconhecida por uma das mais belas, e mais próprias para o Teatro. Por tais testemunhos de aprovação deseja ela por este meio mostrar ao Público o seu reconhecimento (Suplemento a Gazeta de Lisboa, n. 5, 06/02/1795).

No mesmo mês do ano seguinte, a Gazeta informa sobre sua apresentação na cidade do Porto, onde teria feito dois concertos com grande sucesso: Do porto avisam que no teatro daquela cidade houvera a 29 de Dezembro um benefício a favor da Célebre Cantora Joaquina Maria da Conceição Lapinha, no qual todas as pessoas presentes admiraram a melodia da sua voz, e a sua grande execução, de sorte que ela a 3 de janeiro se viu obrigada a voltar ao Teatro, prestando-se aos instantes rogos das pessoas, que por não caberem ali da primeira vez a não tinham ouvido (Gazeta de Lisboa, 02/02/1796).

Vale lembrar aqui que, baseados nestas mesmas fontes, Ernesto Vieira (1900) e A. de Andrade (1967) afirmam que Lapinha teria feito os dois concertos no Porto em 1794 e somente depois teria ido para Lisboa1. No entanto, as notas acima transcritas a partir dos originais – não confirmam esta versão dos fatos. Trata-se obviamente de algum engano cometido por Vieira e que acabou sendo reproduzido por A. de Andrade. Por outro lado, Francisco da Fonseca Benevides está em concordância com os testemunhos da Gazeta de Lisboa: a afamada brasileira, Joaquina Maria da Conceição Lapinha, que possuía uma voz de grande extensão e extrema agilidade; cantou em um concerto que deu em 24 de janeiro de 1795. Posteriormente cantou também na cidade do 1

A Enciclopédia da Música Brasileira, em seu verbete “Lapinha”, comete o mesmo engano (ver MARCONDES, 2000).

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SIMPEMUS3 Porto; temos notícia de ali haver agradado imensamente em dois concertos que deu no teatro, um em 29 de dezembro de 1795, e outro em 3 de janeiro de 1796 (BENEVIDES, 1883, p. 48).

Confusão cronológica desfeita, é bom salientar que poucos anos antes a cantora não teria tido permissão para realizar tais concertos. Como nos lembra Benevides (1883, p. 18), em 1777, subiu ao trono D. Maria I e “não tardou para que a devota rainha proibisse que representassem mulheres nos teatros”. No entanto, em 1792, com a sanidade mental da Rainha irremediavelmente perdida, o príncipe regente D. João assume o governo português e a dita proibição acaba sendo revogada. Ou seja, os concertos de Lapinha anunciados pela Gazeta de Lisboa em 1795 e 1796 só foram possíveis graças ao futuro D. João VI, monarca que tanto iria contribuir para a música brasileira durante sua estada no Rio de Janeiro. Carl Israel Ruders, que esteve em Portugal entre 1798 e 1802, enumera as cantoras que foram contratadas logo após o príncipe regente ter liberado a presença de mulheres nos palcos, entre elas podemos ver a Lapinha: A terceira atriz chama-se Joaquina Lapinha. É natural do Brasil e filha de uma mulata, por cujo motivo tem a pele bastante escura. Este inconveniente, porém, remedia-se com cosméticos. Fora disso, tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento dramático (RUDERS, 1981, p. 93).

No entanto, apesar de ter tido uma recepção tão boa em Portugal, o que nos confirma ter sido ela uma cantora de mérito, não podemos perder de vista que ela não parecia ser páreo para Crescentini (1762 – 1846), castrato italiano que dominava as produções da ópera portuguesa no período em questão. Fato bem conhecido é que o reinado de Crescentini só foi ameaçado por Angélica Catalani:

Nenhum de nós, antes de ouvir cantar a Catalani, seria capaz de conceber que uma mulher pudesse comparar-se em agilidade, em força e em suavidade a do célebre cantor castrado Crescentini; e menos ainda que, em certos casos, pudesse excedê-lo (RUDERS, 1981, p. 212).

Isso em nada desmerece a intérprete, pois poucas cantoras na Europa poderiam ser páreo para um dos melhores castrati de todos os tempos. Além disso, isso não diminui o sucesso que teve em Portugal, nem sua importância histórica como intérprete brasileira pioneira. Lapinha parece ter dito uma participação bastante ativa no meio musical lisboeta. Graças à ajuda inestimável do musicólogo David Cranmer, pudemos ver na biblioteca do Palácio Ducal de Vila Viçosa muitas partituras manuscritas nas quais o nome desta cantora aparece notado. Cranmer, profundo conhecedor do acervo deste Palácio, afirma que este grupo de partituras seria o espólio da Lapinha, sem que fique claro, no entanto, por que razões e de que forma “terá sido adquirido pela família real e depositado no Paço Ducal” (CRANMER, 2005, p. 159). Um exemplo deste repertório é um Demofoonte, atribuído a Marcos Portugal no catálogo do referido palácio, mas que, segundo Cranmer, é de autor desconhecido. Esta versão de Demofoonte – um pastiche de árias emprestadas de óperas diversas – teria “sido ‘cozinhada’ por volta de 1780 para uso no Teatro do Bairro Alto, Lisboa, mas parece que o material foi subseqüentemente adquirido por Joaquina Lapinha [que atuou no] Teatro do Salitre na primeira década do século XIX” (CRANMER, 2005, p. 162). Outro exemplo é a farsa “Gatto por Lebre” de António José do Rego, de 1804. Como podemos ver na parte vocal do soprano, uma “Cavatina”, uma “Modinha Brasileira” e o dueto “Doce Prisão” são cantados pela cantora “Joaqna Lapinha”. Abaixo podemos ver um pequeno trecho da cavatina:

A canção com o título “Modinha Brasileira” é acompanhada de traversos, violinos, viola, e baixo, possuindo o seguinte texto:

Nhonhozinho và se embora q´minha may acordou Ponha se aquelle cantinho q´dormindo jà là vou.

Vejamos um pequeno trecho:

Podemos citar ainda outros exemplos do repertório da cantora, guardados no Palácio Ducal de Vila Viçosa, e listados por data de composição: De 1808: Coro em 18081, composto pelo Pe. José Maurício Nunes Garcia, para o benefício de Lapinha De 1809: O Triunfo da América e o drama eróico Ulissea de 1809, ambos do Pe. José Maurício Nunes Garcia; e Le Donne Cambiate de Marcos Portugal, todos com dedicatória. De 1811: Elogio de 17 dezembro de 1811 de Marcos Portugal Sem data: Temos a dedicatória na parte do 1º soprano do Elogio da Senhora Rainha de Marcos Portugal. As partituras datadas que citamos acima já são repertório composto no Brasil. A cronologia mostra que ela já estava no Rio em 1808, apesar de não se saber ao certo quando esta cantora teria retornado ao Brasil. Seja como for, nos primeiros anos em que a corte portuguesa esteve no Brasil, Lapinha foi bem requisitada nos espetáculos da corte e da burguesia, como nos revelam a obras citadas acima e o seguinte anúncio que pudemos encontrar na Gazeta do Rio de Janeiro: Madama D´Aunay, cômica cantora novamente chegada de Londres, em cujos teatros, assim como nos de Paris sempre apresentou, informa respeitosamente aos cidadãos desta corte, que ela pertende (sic) dar um concerto de música vocal, e instrumental na casa N. 28 na Praia de D. Manoel, no dia 14 do corrente. Nele 1

Temos uma edição moderna desta obra, assim como do Triunfo da América e Ulissea, publicadas pela FUNARTE (BERNARDES, 2002).

cantarão ela, e a senhora Joaquina Lapinha a mais bem escolhida musica dos melhores autores, e tocarão os senhores Lansaldi, e Lami concertos de rebeca, e executar-se-ão em grande orquestra as melhores overtures de Mozart. Vendem-se bilhetes em sua casa N. 8 rua de S. José a preço de 4$000 reix (Gazeta do Rio de Janeiro, N. 113 – Quarta-feira 11 de outubro de 1809, grifo do original).

Daí se vê que ela também foi uma pioneira na execução de concertos públicos de música. Além disso, segundo A. de Andrade, após seu retorno ao Brasil, ela teria atuado freqüentemente “como primeira atriz do Teatro Régio, de Manuel Luís. Seu grande sucesso era em Erícia ou A vestal, tragédia de Dubois Fontenelle, traduzida do francês pelo poeta português Manuel de Barbosa du Bocage, diziam que expressamente para ela em 1805” (ANDRADE, 1967, v. 2, p. 185). A presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro favoreceu bastante a produção musical carioca, o que acabou beneficiando as atividades da Lapinha como intérprete, principalmente nos primeiros anos após a chegada. Afinal, a corte trouxe consigo poucos músicos europeus: aqueles que viriam acabaram chegando com o passar dos anos. No que diz respeito à prática do canto especificamente, os castrati - que seriam trazidos ao Rio por D. João e que se tornariam as maiores estrelas do cenário musical carioca - só começariam a chegar no Rio de Janeiro a partir de 1810. Desta forma Lapinha pôde se beneficiar de um momento que, além de propício para a produção musical no Rio de Janeiro, praticamente não apresentava intérpretes que pudessem ser seus concorrentes. Podemos fazer agora uma cronologia de suas atividades musicais, listando-a pela data provável das apresentações:

10 Sem datas – Parte solista em Le Donne Cambiate de Marcos Portugal. - Primeiro soprano do Elogio da Senhora Rainha de Marcos Portugal. - Demofoonte de autor desconhecido. 1804 – Participação na farsa Gatto por Lebre de António José do Rego, em Lisboa. 1808 – Parte solista no Coro em 1808 do Pe. José Maurício. Sem data de estréia2 – Gênio de Portugal no drama heróico Ulissea do Pe. José Maurício, composto em 1809. 18103 - Parte solista em O Triunfo da América do Pe José Maurício, escrita em 1809. 1811 – Carlotta em L´Oro non compra amore de Marcos Portugal, no Teatro Regio, no Rio de Janeiro4. - Parte solista no Elogio de 17 dezembro de 1811 de Marcos Portugal 1811(?) – A Verdade em A verdade triunfante de autor indeterminado, no Real Theatro da Corte do Rio de Janeiro5.

Não se sabe quando ela faleceu. No entanto, Andrade nos lembra que “depois da inauguração do Real Teatro de S. João, em 1813, não mais o seu nome aparece nos anúncios dos espetáculos líricos” (ANDRADE, 1967, v. 2, p. 185). Desta forma, talvez tenha falecido por volta de 1812; ou se retirado para outra cidade, ou país; ou, quem sabe, até abandonou a carreira artística em favor de um bom casamento. Afinal, a profissão de cantora não era algo muito bem visto pela sociedade conservadora luso-brasileira. Por outro lado, o fato de Lapinha ter sido mulata pode nos explicar muito sobre sua carreira. É fato bem conhecido que as mulheres brasileiras daquela época, apesar de ter pouco acesso à educação formal, costumavam receber alguma instrução musical. Segundo a historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva, a instrução mais comum que recebiam era de coser e bordar. No entanto, a historiadora ressalta que a música foi o elemento que mais prevaleceu na educação feminina. “Muitas moças sabiam tocar algum instrumento e se conseguiam prender os maridos em casa faziam-no certamente com sos seus talentos musicais e disposição para a dança” 2

Cleofe Person de Mattos especula que esta peça talvez nunca tenha sido cantada no Rio de Janeiro (MATTOS, 1970, p. 327).

3

A data da apresentação é dada pelo Padre Perereca (SANTOS, 1943).

4

Informação retirada de CARVALHAES (1910) e KÜHL (2002).

5

Informação retirada de KÜHL (2002).

SIMPEMUS3 (SILVA, 1993, p. 26). A historiadora nos esclarece que era considerado dever das moças aprenderem a “arte de prender” seus maridos. Ou seja, elas precisavam entreter e encantar os maridos, ou eles iriam procurar diversão em outra parte. Assim, pode não parecer tão surpreende que uma mulher pudesse ter a formação musical da Lapinha, mas daí até ser uma cantora profissional havia uma grande distância. Mesmo como ouvintes, somente na segunda metade do século XIX as mulheres começam a freqüentar as platéias do teatro. Uma mulher com carreira artística não era vista com bons olhos, e certamente teria uma reputação bastante baixa. Seria algo realmente impensável para as moças da “boa família” carioca. Mesmo os homens brasileiros músicos profissionais eram geralmente das classes mais baixas, pois, como nos lembra Vasco Mariz (2002, p. 10), o músico “era nivelado socialmente aos criados ou empregados”. Muitos deles eram mulatos que viam na música uma ótima forma de inclusão social. Assim, a condição de Lapinha como mulata de origem provavelmente humilde explica sua opção pela carreira musical. Caso fosse de família abastada, certamente não teria atuado profissionalmente como cantora. Na verdade, a participação da mulher no meio musical brasileiro da época é pouco estudada e talvez até subestimada. Vejamos, por exemplo, o texto de uma carta escrita no Rio de Janeiro por Luiz Joaquim dos Santos Marrocos a seu pai, em sete de outubro de 1812: Marcos António Portugal está feito hum Lord com fumos mui subidos. Por certa Aria, q. elle compoz, pa cantarem Trez Fidalgas em dia d´annos de outra, fez-lhe o Conselh.ro Joaqm Joze de Azevedo hữ magnífico presente, q consistia em 12 duzias de garrafas de vinho de Champagne (cada garrafa do valor de 2$800 res), e 12 duzias das de vinho do Porto (MARROCOS, 1812)

Vemos então que mesmo como intérpretes amadoras, as mulheres influenciavam na produção musical dos compositores mais importantes. Balbi cita também algumas brasileiras que teriam sido boas músicas: Dona Mariana é uma senhora renomada no Rio de Janeiro por sua grande habilidade ao piano, ele mesma compôs belas modinhas6 [grifo do autor, BALBI, 1822, v.2, p. ccxij].

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“Dona Marianna est une dame renommée à Rio-Janeiro pour sa grande force sur le piano; elle a même composé de jolies modinhas”.

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Senhora Gardiner, filha do médico Francisco Antonio Pereira, e esposa do professor de química da academia militar do Rio de Janeiro. Ela toca piano quase tão bem quando dona Mariana, e compôs também algumas belas modinhas 7[BALBI, 1822, v. 2, p. ccxiij].

Ou seja, mesmo não sendo músicas de profissão, algumas senhoras chegaram a compor música no Rio de Janeiro com algum mérito. Fica patente, portanto, a necessidade de estudos mais aprofundados sobre estas intérpretes, compositoras e consumidoras de música impressa. Com este artigo se espera, além de divulgar novos dados a respeito da pioneira Lapinha, estimular pesquisas sobre a presença feminina no meio musical do Brasil colonial e imperial.

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«Madame Gardiner, fille du médecin Francisco Antonio Pereira, et épouse du professeur de chimie de l´académie militaire de Rio-Janeiro. Elle touche du piano presque aussi bien que Dona Marianna, et a composé aussi quelques jolies modinhas.»

Este artigo é resultado parcial de nossa pesquisa de doutorado em música no Instituto de Artes da UNICAMP. Esta pesquisa conta com o apoio financeiro da FAPESP.

Referências ALEGRIA, José Augusto (org.). Catálogo dos fundos musicais: Biblioteca do Palácio Real de Vila Viçosa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. BALBI, Adrien. Essai statistique sur le Royaume de Portugal et d’Algarve, comparé aux autres états de l’Europe, et suivi d’un coup d’oeil sur l’état actuel des sciences, des lettres et des beaux-arts parmi les Portugais des deux hémisphères. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2004. _____ Essai statistique sur le Royaume de Portugal et d’Algarve, comparé aux autres états de l’Europe, et suivi d’un coup d’oeil sur l’état actuel des sciences, des lettres et des beaux-arts parmi les Portugais des deux hémisphères. Paris: Rey e Gravier, 1822. BENEVIDES, Francisco da Fonseca. O real Theatro de S. Carlos de Lisboa, desde sua fundação em 1793 até a actualidade. Lisboa: Typografia Castro Irmão, 1883. Disponível em: Acessado em 18 de setembro de 2006. BERNARDES, Ricardo (org.). Música no Brasil, séculos XVIII e XIX, v. 3: Obras profanas de José Maurício Nunes Garcia, Sigismund Ritter von Neukomm, Marcos Portugal. Rio de Janeiro: Funarte, 2002. CARVALHAES, Manoel Pereira Peixoto d´Almeida. Marcos Portugal na sua música dramática. Lisboa: Typographia Castro Irmão, 1910.

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CRANMER, David John. O fundo musical do Paço Ducal de Vila Viçosa: surpresas esperadas e inesperadas. Separata da Revista de Cultura Callipole, n. 13, 2005. Câmara Municipal de Vila Viçosa, Portugal. KÜHL, Paulo Mugayar. A ópera da corte portuguesa no Rio de Janeiro – 1808-1822. Manuscrito. Campinas: Instituto de Artes da Unicamp, 2002. MARCONDES, Marcos (org.). Enciclopédia da música brasileira. São Paulo: Art Editora / Publifolha, 2000. Disponível em: Acessado em 18 de setembro de 2006. MARIZ, Vasco. A música clássica brasileira. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2002. MARROCOS, Luiz Joaquim dos Santos. Carta de Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, para seu Pai, no Rio de Janeiro 8 de Setembro de 1818. Biblioteca da Ajuda (cota 54 – VI – 12, no 129). MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático das obras do Padre José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: MEC, 1970. RUDERS, Carl Israel. Viagem em Portugal (1798-1802). Trad. António Feijó. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1981. SANTOS, Luiz Gonçalves dos (Padre Perereca). Memórias para servir à história do Reino do Brasil. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1943 (original de 1825). SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiano no Brasil na época de D. Maria I e D. João VI. 2. ed. Lisboa: Referência/Stampa, 1993. VIEIRA, Ernesto. Diccionário biographico de musicos portuguezes: história e bibliographia da musica em Portugual. Lisboa: Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900.

SAFO NOVELLA: a voz da poeta grega reapropriada por Barbara Strozzi (Veneza, 1619 – 1677) Silvana Ruffier Scarinci Escola Municipal de Música de São Paulo

Resumo O presente trabalho aproxima-se da obra da compositora seiscentista italiana Barbara Strozzi através de uma ótica interdisciplinar e crítica, na qual sua música é vista como um texto que se entrelaça a outros textos, buscando compreender significados culturais, sociais e ideológicos que permeiam toda sua obra. Sua forte afirmação forse detta sarò Saffo novella (talvez chamada serei a nova Safo) - exórdio de toda sua produção – leva-nos a compreender de que maneira sua obra ligava-se à voz da poeta grega.

O primeiro dos oito volumes de Cantatas de Barbara Strozzi inicia-se com um dueto para duas sopranos e baixo-contínuo, no qual a protagonista – mulher – canta: Mercé di voi, mia fortunata stella, volo di Pindo in fra i beati cori e coronata d’immortali allori forse detta sarò Saffo novella. Graças a ti, minha estrela afortunada, em vôo de Píndaro entre coros divinos e coroada com louros imortais, talvez chamada serei - a nova Safo.

Os textos do primeiro livro de Madrigais são de autoria do poeta e libretista Giulio Strozzi, pai elettivo1 de Barbara. É extremamente significativo o fato de Strozzi iniciar sua obra anunciando-se como uma nova Safo, aquela a quem o pai entrega uma voz, feminina, autora, re-encarnando a voz da poeta grega. Sem poder ignorar a força de tal exórdio, perguntamo-nos que significado esconde-se atrás da identificação de Strozzi com Safo. Como se dá a recepção de Safo na Itália seiscentista e que importância podemos inferir de sua forte afirmação? À grandeza de Safo já se referia Platão, que a chamava de “a décima musa.” O próprio Aristóteles dizia que ao passo que Homero era considerado “o poeta”, Safo seria “a poeta”, “honrada pelo povo de Mytilene, apesar de ser uma mulher”. As traduções das obras de Platão e Aristóteles já circulavam na Itália desde o século XVI, mas a verdadeira Safo é introduzida pela primeira vez numa tradução de Francesco Robortello (Veneza, 1554) do tratado de 1

Aos dez anos de idade, Barbara Strozzi é adotada pelo pai biológico, e este passa a se referir a ela como filha elettiva.

Longinus, Sobre o sublime2. Sua tradução para o latim da Ode II circulou na Itália do século XVI, assim como seu comentário a respeito do poema, no qual elogia a capacidade de Safo em descrever sensações físicas com total ausência de mediação. Não podemos concluir positivamente que Barbara Strozzi conhecesse a tradução de Robortello e os comentários de Longinus. Mas já há quase um século a sombra inspiradora de Safo fazia-se presente na vida intelectual veneziana e só assim a compositora poderia ter invocado o nome da poeta grega de forma tão contundente. Seu pai revela intimidade com a poesia de Safo, ao citá-la, na descrição de uma missa de Monteverdi em memória do Grande Duque Cosimo II de’ Medici, em abril de 1621: “As solenidades de luto começaram com uma queixosa sinfonia, capaz de arrancar lágrimas, e ainda provocar pesar, imitando o antigo modo Mixolídio redescoberto por Safo na Antigüidade” 3. Eis a seguir a Ode II traduzida para o português4: Igual dos deuses esse homem me parece: diante de ti sentado, e tão próximo, ouve a doçura da tua voz, e o teu riso claro e solto. Pobre de mim: o coração me bate de assustado. Num ápice te vejo e a voz me vai;

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Hoje sabe-se que a obra é de autor anônimo, porém, na época de Robortello, era conhecida como de autoria de Denys Longinus (In: LEBÈGUE, H. Du sublime. Paris: Les Belles Lettres, 1997)

3

FABBRI, P. Monteverdi. Trad. Tim Carter. Cambridge University Press, 1994. Pg 179.

4

ALVIM, P. tr. Safo de Lesbos. São Paulo: Ars Poética, 1992.

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SIMPEMUS3 a língua paralisa; um arrepio de fogo, fugaz e fino, corre-me a carne; enevoados os olhos; tontos os ouvidos. O suor me toma, um tremor me prende. Mais verde sou do que uma erva – e de mim não me parece a morte longe…

É estonteante a violência erótica do poema e a descrição de sintomas físicos que Safo constrói. Comentadores da antiguidade referiamse ao poema como um texto de diagnóstico médico: sintomas de amor, segundo Plutarco e de medo, segundo Lucretius. O poema cria um triângulo agudo: a persona poética que observa, em sofrimento, a moça e o homem que sentam juntos, numa cena de intimidade amorosa. O observador5 encontrase excluído da cena de amor, paralisado em seu desejo e sofrimento devastador. A felicidade do par força o observador a admitir sua própria impotência, sua solidão e anseio frustrado. Safo inaugura uma tradição retomada por muitas outras autoras que lhe sucederam: o tema da exclusão, ou do abandono em seu sentido etimológico, o sentir-se banido da relação amorosa6. A poesia feminina e o abandono parecem intrinsecamente relacionados e inúmeras foram as mulheres que usaram o mesmo motivo até os nossos dias: de Gaspara Stampa a Sylvia Plath, de Mariana Alcoforado a Emily Dickinson. A persona poética Safo oferece uma voz que suas sucessoras tomam emprestada, e seu poema torna-se um poema arquétipo feminino. A dor da perda transforma-se em força criadora – a mulher assume-se autora no espaço solitário do abandono. Neste sentido, o abandono possui uma força extremamente libertadora: a mulher que se vê banida, nada mais tem a perder, e as leis do decoro que lhe impingem o silêncio podem, enfim, ser quebradas. Não somente mulheres dedicaram sua poesia ao tema do abandono: homens também o

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6

No poema original em grego não há nenhuma referência quanto ao gênero do/a observador/a. Tornou-se lugar comum confundi-la com a própria Safo, criando assim uma ligação não necessariamente verdadeira entre a poeta e o lesbianismo. Sem descartar esta possibilidade, prefiro pensar que Safo fala da sensação do desejo e rejeição muito além do gênero, justamente oferecendo a homens e mulheres uma voz que expresse essa sensualidade extraordinária aliada à dor física do desejo não realizado. A idéia de uma tradição do abandono na poesia a partir de Safo é desenvolvida por LIPKING, em Abandoned Women and poetic tradition (The University of Chicago Press, 1988).

fizeram, mas raramente mantiveram sua identidade masculina. Ovídio criaria um novo gênero literário, no qual inaugura a presença da heroína na literatura, entregando a palavra à mulher. As suas Heroídes consistem numa série de cartas de mulheres abandonadas a seus amantes: Penélope a Ulisses; Ariadne a Teseu; Dido a Enéias; Safo a Fáon. Ovídio perpetuou uma imagem arquetípica do amor feminino já criada por Safo e aqui potencializada nas vozes de tantas heroínas. Em Ovídio, o herói, símbolo da lealdade masculina em relação à pátria e seus deveres civis, é paradoxalmente um homem incapaz de manter sua lealdade em relação à mulher amada. Em Ovídio, a intensidade da dor traduz-se em todas as possíveis manifestações corporais. Sua Safo entrega-se à dor física com a mesma veemência com que a personagem da poeta grega entregava-se à violência de seu desejo: “não tive receio de ferir meu peito nem de soltar gritos, arrancando meus cabelos, como uma mãe que vê ser levado para a pira fúnebre o corpo inanimado do filho querido que ela perdeu”7. As flutuações entre o desejo furioso de vingança e a sintomatologia da dor física do abandono estarão ainda presentes nos lamentos femininos do século XVII - podemos lembrar as imprecações contra Teseu da Arianna de Rinucinni contrapostas a súbitas contrações de arrependimento a que se entrega imediatamente. A poeta e (provável) cortesã Gaspara Stampa (1523-1554), cerca de cem anos antes de Barbara Strozzi, era já reconhecida como “a nova Safo de nossos dias, à altura dos gregos na língua toscana, mais casta que ela, e muito mais bela”8. Desde seu primeiro poema reconhecemos uma ambição semelhante a Petrarca: instituir uma obra exemplar da própria vida e do próprio amor. Ecoando Petrarca, Stampa abre sua Rime com idênticas palavras: Voi, ch’ascoltate... Trata-se de um texto no qual um autor adota as vozes de mulheres e cria um modelo do “feminino” sobre o qual autoras do início do período moderno irão se basear. Já na epístola dedicatória de sua Rime, em despedida a seu amante, Stampa alinha-se com a tradição do abandono: “ao receber este pobre livreto, tu poderás oferecer-me a cortesia de um simples suspiro, o qual, de tão longe, poderá refrescar a memória de tua esquecida e abandonada Anaxilla.” 9 Estas linhas ecoam o arquétipo feminino criado 7

Idem.

8

Na primeira edição póstuma da Rime de Gaspara Stampa (1554), sua irmã, Cassandra, lhe dedica o moto.

9

Citado em: GASPARA, Selected Poems. Editado e traduzido por Laura Anna Stortoni e Mary Prentice Lillie. New York: Italica Press, 1994.

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simpósio de pesquisa em música 2006 por Ovídio: “Parte, afortunada carta, gritei, ela te estenderá depressa sua bela mão... que em meu lugar, até lá, esta carta passe a noite contigo” 10. Nas vozes de tantas heroínas, o autor latino faz da epístola um meio de exercitar uma voz que rompe o silêncio ao qual o abandono amoroso as forçou. A conquista de uma voz feminina realiza-se neste paradoxo: se por um lado o abandono as faz calar, é neste espaço de interioridade silenciosa que surge o poder de uma voz própria, autora, realizando-se plena na carta amorosa - ou, na ópera barroca, no monólogo feminino: il duol che sí mi punge / non mandasse in oblio, / e l’udisse ei, per cui pianti e cantai11... (a dor que assim me fere / porque não pode o olvido levar / que ele escutasse, por quem eu chorei e cantei...). Ao seguir o modelo de Petrarca e seus poemas dedicados a Laura, Stampa ao mesmo tempo inverte o papel do autor petrarquista sobrepondo o modelo das Heroídes - uma mulher escrevendo epístolas ao homem que a abandona. Trabalhando nesta tradição, através de seu temperamento apaixonado e tempestuoso, sua naturalidade, Stampa a expande além dos limites da linguagem delicada e contida de Petrarca. A paixão pelo Conde de Treviso, Collaltino Collalto, tem papel similar à paixão por Laura na poesia de Petrarca; ambos os autores usam os nomes dos amantes metaforicamente: soave colle (suaves montes) ou l’aura serena (o ar/Laura serena). No Canzoniere, o tema principal é o do amor por uma mulher chamada Laura, que, ao contrário de Stampa, permanece intocada e inacessível. Já Stampa relata sua vivência amorosa, na qual a descrição do amor físico é declarada sem rodeios, sua paixão é “agressiva e os versos que a expressam, diretos e vigorosos” 12 . Gaspara Stampa, em todos os tempos passado, presente e futuro - cantará. Como Safo, cantará sobre seu ardor e seu pranto, que se transformam no elemento fundador de sua poesia: Arsi, piansi, cantai; piango, ardo e canto; piangerò, arderò, canterò sempre (fin che Morte o Fortuna o tempo stempre a l’ingengo, occhi e cor, stil, foco e pianto)

10

OVÍDIO, Carta XVIII, de Leandro a Hero.

11

GASPARA S., Ibid., p. 57.

12

PHILLIPPY, P. ‘Altera Dido’: the model of Ovid’s Heroides in the Poems of Gaspara Stampa and Veronica Franco. Italica, v. 69, n. 1 (spring 1992), p. 1-18.

Ardia, chorava e cantava; ardo, choro e canto; chorarei, arderei, cantarei sempre (até que a Morte ou Fortuna ou o tempo lave o engenho, olhos, coração, estilo, fogo e pranto)

Assim também a Safo de Ovídio proclamava a criação poética como resultado das lágrimas: Elegia flebeli carmen (a elegia é uma poesia de lágrimas). A única solução para o apaziguamento da angústia provocada por tal dilema é a morte, que a tudo igualaria: engenho, olhos, coração, estilo, fogo e pranto. Em novo contexto, encontramos o antigo traço sáfico no primeiro Soneto de Rime amorose (1602) de Giovan Battista Marino, poeta que influenciaria todas as esferas da cultura italiana em sua época: Proemio del Canzonieri Altri canti di Marte e di sua schier gli arditi assaltie l’onorate imprese, la sanguigne vittorie e le contese, i trionfi di Morte orrida e fera. I’ canto, Amor, da questa tua guerrera quant’ebbi a sostener mortali offese, come un guardo mi vinse, un crin mi prese: istoria miserabile ma vera. Duo begli occhi fur l’armi onde traffitta giacque, e di sangue in vece amaro pianto sparse lunga stagion l’anima afflitta. Tu, per lo cui valor la palma e ‘l vanto Ebbe di me la mia nemica invitta, Se desti morte al cor, dà vita al canto. Primeiro poema do Cancioneiro Que outros cantem sobre Marte e suas tropas, sobre seus corajosos ataques e feitos gloriosos, as vitórias sangrentas e os combates, os triunfos da Morte horrenda e feroz. Eu canto, Amor, sobre tua guerreira de quem suportei mortais ataques, e sobre um olhar que me venceu, e como suas melenas história infeliz mas verdadeira me prenderam: Dois belos olhos foram as armas, onde trespassada jaz a alma aflita, e ao invés de sangue, meu pranto amargo corre, por longo tempo.

Tu, por cujo valor as palmas e o orgulho fez reinar sobre mim a invencível inimiga, Se deste a morte ao coração, dás vida ao canto.

16 Em Marino, a tópica do abandono gerando música/poesia se expressa claramente no final epigramático do Soneto, na linha 14. Um epigrama - uma solução engenhosa que explica e cria um clímax - revela a solução do que se anunciou no início do poema: à colocação antitética de morte (canti de Marte) e amor (I’ canto, Amor) surge a única possibilidade de vida, a do canto poético, que se opõe à morte do coração. Alinhando-se com a tradição ovidiana, o poema declara uma poética que se opõe ao tradicional motivo épico: que outros cantem a guerra, aqui caberá cantar o amor. A guerreira de Marino distancia-se radicalmente da guerreira de Tasso: Clorinda é uma personagem de profundidade trágica, a guerreira de Marino é uma mulher anônima e sedutora que brinca com um assunto anterior-mente tão grave, o amor. Agora presenciamos, numa guinada jocosa e irônica, uma perda de subjetividade da personagem e da própria cena amorosa. A cena passa a ser relatada pelo autor, que nos olha de dentro do poema, com um meio sorriso, num gesto puramente teatral: istoria miserabile ma vera. O amor transfigura-se em puro jogo erótico, no qual os sentidos substituem o sentimento: a guerreira flerta com as armas de seu olhar, aprisiona com os próprios cabelos. A tendência na poesia marinista de transformar o que era de âmbito interior em objeto exterior, de usar imagens para acessar uma subjetividade tão intelectualizada a ponto de se anular, fez com que Marino fosse rotulado como “o poeta dos cinco sentidos”: o amor não era mais o estímulo para emoções interiores, mas uma fonte de delícias sensuais. O que está em jogo em Marino não é mais a retórica introspectiva de Petrarca, que abrangia uma vasta gama de nuances psíquicas. Mesmo alinhando-se a tradições anteriores e ainda reproduzindo antigos topos, a sua obra inserese em uma nova estética. O novo estilo cria uma relação ativa entre autor e leitor. Agora vemos-nos obrigados a reagir intelectualmente à nova poesia, decifrando seu jogo artificial de meraviglia. O poeta passa a observar furtivamente o espectador de dentro de sua obra, tornando-se quase um voyeur desta relação. Este fenômeno é recorrente na obra de Strozzi e, como vimos, desde sua primeira peça estabelece-se esta clara relação entre autora/obra/espectador. Barbara Strozzi encontra-se neste vértice estético: no ambiente cosmopolita, sofisticado e coquete da Serenissima, o gosto maneirista pelo novo e artificial e o desejo de causar surpresa no espectador marcam profundamente sua obra.

SIMPEMUS3 Ligada através do pai à Academia degli Incogniti, na qual Marino era admirado como o maior poeta daqueles tempos, Strozzi pode ser mais bem compreendida ao percebermos o que está em jogo na obra do inventor da meraviglia. Com Marino surge uma mudança decisiva na perspectiva sentimental, íntima, psicológica e humana da poesia. Aspectos jocosos e lúdicos permeiam a poética marinista em oposição à antiga gravità e mesmo piacevolezza de Petrarca. O grave e profundo tornou-se engenhoso, superficial, e aparente; o agradável e ameno tornou-se sensual, coquete e sedutor. O autor maneirista não busca mais emocionar, mas provocar um prazer de ordem intelectual; o espectador não “sente” determinadas emoções, mas pensa e deleita-se quando compreende o jogo da meraviglia. O último livro de Cantatas de Barbara Strozzi é repleto de exemplos desta ordem. Em seu L’Astratto, presenciamos o antigo topos do abandono, revestidos dos conceitos marinistas traduzidos engenhosamente em sua música. Talvez a peça mais caracteristicamente maneirista de Strozzi, L’Astratto, justapõe a idéia da criação poética/musical às dores do abandono amoroso: Voglio sì, vo' cantar: forse cantando trovar pace potessi al mio tormento! A roupagem musical que a autora dá ao poema vai ainda além do que Marino fez em seu Proemio del Canzonieri. Estamos aqui assistindo a uma cena puramente teatral, na qual a presença de um eu narcíseo salta aos olhos (podemos dizer que salta mais aos olhos que aos ouvidos, em função de seu forte apelo cênico). É possível pensar que L’Astratto constitui-se numa peça auto-referencial, correspondendo à tentativa de Stampa e seu Rime em criar uma obra exemplar da própria vida. Deparamo-nos com uma personagem que incansavelmente tenta encontrar a música certa para anular a dor, e nesta busca incessante, descobre-se produzindo centenas de canções, mas nunca encontrando o fim de seu tormento.

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L'Astratto

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O Distraído

Voglio sì, vo' cantar: forse cantando trovar pace potessi al mio tormento! Ha d'opprimere il duol forza il concento. Sì, sì, pensiero, aspetta: a sonar cominziamo e a nostro senso una canzon troviamo.

Quero sim, quero cantar: pois talvez cantando, encontrar paz poderia a meu tormento! O poder da música oprimirá a dor. Sim, pensamentos, esperem: comecemos a tocar e de acordo com nosso sentimento, uma canção encontremos.

"Ebbi il core legato un dì d'un bel crin..." La stracerei: subito ch'apro un foglio sento che mi raccorda il mio cordoglio.

“Estivesse meu coração preso um dia aos seus belos cabelos...” Já os rasguei: assim que inicio a página sinto que só relembro minha dor.

"Fuggia la notte e sol spiegava intorno..." Eh sì, confondo qui la nott'e 'l giorno!

“Partia a noite e o sol espalhava sua luz...” E sim, confundo aqui a noite e o dia!

"Volate, o Furie e conducete un miserabile al foco eterno!" Ma che fo nell'inferno.

“Voai, ó fúrias e conduzi um miserável ao fogo eterno.” Mas já estou no inferno!

"Al tuo ciel vago desio spiega l'ale e vanne a fè..."

“A teu céu, meu belo desejo, abre as asas e vamos com confiança...”

Che quel che ti compose poco sapea dell'amoroso strale! Desiderio d'amante in ciel non sale.

Pois aquele que te criou pouco sabia da flecha do amor! Desejo de amante ao céu não sobe.

"Goderò sotto la luna..."

“Gozarei sob a lua...”

Or questa sì ch'è peggio! Sa il destin degl'amanti e vuol fortuna! Misero! I guai m'han da me stesso astratto e cercando un soggetto per volerlo dir sol cento n'ho detto.

Agora esta ainda é pior! Conhece o destino dos amantes e ainda espera sorte! Infeliz! Meus problemas me distraíram de mim mesmo, e buscando um tema de canção, encontrei uma centena.

Chi nei carcere d'un crine i desiri ha prigionieri, per sue crude aspre ruine nemmen suoi sono i pensieri.

Quem no cárcere de melenas Os desejos aprisionou, por sua crua e áspera ruína nem mesmo seus são os pensamentos.

Chi, ad un vago alto splendore die' fedel la libertà schiavo alfin tutto d'amore nemmen sua la mente avrà.

Quem a um belo e inacessível esplendor entrega confiante sua liberdade escravo total, ao fim, do amor nem mesmo sua a mente terá.

Quind'io, misero e stolto, non volendo cantar, cantato ho molto. (Giuseppe Artale13)

Quando eu, miserável e estúpido, sem querer cantar, muito cantei.

Giuseppe Artale (1628-1679) foi um poeta marinista de importância.

O distanciamento arguto se cria já no compasso 5, quando a Venus canora rompe o discurso aparentemente sério, melismático e arioso do primeiro verso com uma frase que se situa claramente em outro registro. Trovar pace potessi surge em recitativo parlato, seco e rítmico,

18 contrastante com a abertura intimista e lírica, exórdio de uma gravità que nunca se realizará. O verbo potere (poder), no condicional, aparece delineado musicalmente como uma pergunta pela frase ascendente, e o ponto de interrogação é traduzido pela pausa de semicolcheia. O gesto é novamente afirmativo da presença de um forte “eu”: um autor que sai de uma interioridade (indicado pelo uso implícito do dêitico “io” [voglio]), de um monólogo interior, para distanciar-se, ironicamente, mirar o público e sorrir coquetemente de sua própria dor (Fig. 1). O mesmo artifício é usado diversas vezes na peça: os repetidos rompimentos com o registro sério e uma súbita intervenção para fora desta interioridade auto-reflexiva e burlesca, transformam a peça em puro exercício da arguzia marinista. Para suscitar maior meraviglia, o efeito do imprevisto é obtido com as mudanças bruscas e inesperadas, a mobilidade das situações e gestos dramáticos repentinos. Após outra frase que suspende o fluxo coerente do discurso pela intromissão da consciência do autor (Sí, sí, pensiero aspetta), começa a canção/ária em ritmo pendular, dançante (compasso 20). A peça compõe-se de retalhos de situações, reminiscências e motivos musicais. Estes elementos superpostos, fragmentados e aparentemente casuais revelam um caráter próprio do repertório maneirista14, num exercício de meta-literatura, artificialmente construída sobre si mesma (Fig. 2). A peça termina com uma confirmação frenética do moto que permeia a tradição do abandono transformando-se em música: non volendo cantar, cantato ho molto (sem querer cantar, muito cantei) (Fig. 3). Como Safo, Stampa e tantas outras, a dor do abandono em Strozzi transforma-se em elemento propulsor de sua música. Aqui transfigurada pela ironia maneirista, inserida no cenário intelectual dos Incogniti, a dor revertese em canto como na poesia de suas antepassadas. No entanto, este canto surge revestido de uma aparência jocosa e coquete, com um sorriso sedutor mascarando uma interioridade que raras vezes se vislumbra. Não poderia ser diferente, pois no ambiente de uma cortesã veneziana, como teria recitado a própria Barbara Strozzi na “Polêmica do canto e das lágrimas”, um belo rosto cantando será mais

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Utilizo-me do termo “maneirista” a partir dos conceitos de Arnold Hauser em seu livro Maneirismo: a crise da renascença e o surgimento da arte moderna. São Paulo: Perspectiva, 1993.

SIMPEMUS3 poderoso para seduzir do que um belo rosto em lágrimas15. A música de Barbara Strozzi, sempre na voz masculina, coloca-a em diálogo estreito com os freqüentadores da Accademia degli Unisoni. As academias de intelectuais em Veneza, com raras exceções, não eram freqüentadas por mulheres. A Accademia degli Unisoni, portanto, estabelecia-se como um espaço de normas violáveis, ecoando o clima transgressor da Accademia degli Incogniti. Os intelectuais que freqüentavam a academia da Venere Canora, dedicavam seus poemas a ela. Barbara Strozzi responde a tais poemas musicandoos e cantando-os. Apropria-se da voz masculina, estando ela mesma numa posição normalmente reservada a um homem, ao presidir uma academia. Podemos ver esta apropriação, por um lado, como uma afirmação deste lugar viril e afirmativo que a autora escolhe, de uma mulher que se vê como sujeito que se auto-constrói. Por outro lado, Barbara Strozzi brinca com estes homens que lhe dedicam tais poemas, responde-lhes jocosamente com uma música que provoca, seduz e reafirma corajosamente seu lugar de cortesã. Outro exemplo claro desta forte presença autoral surge na Cantata Apresso ai molli argenti (Fig. 4). A autora existe – afirma e reafirma sua existência, nos espia, num duplo flerte, de dentro da sua obra: flerte com o autor do poema (Barbara Strozzi, a cortesã, responde jocosa à provocação de um homem que lhe dedica o poema da Cantata) e com o espectador, que subitamente se depara com um personagem inesperado na peça. A música da Virtuosissima Cantatrice mostrase profundamente autoral, desde sua primeira obra, Mercè di voi até sua produção mais tardia e madura, como L’astratto. A música em geral, como arte temporal e evanescente, possui um aspecto fenomenológico particular em relação a outros textos. Sua existência realiza-se somente no momento da performance, e intérpretes fortes costumam usurpar o lugar do autor naquele instante. Barbara Strozzi torna-se, portanto, dupla autora: responsável pela criação original, recria sua música a cada aparição pública. A superposição particular dos papéis de cantora e compositora convida-nos a estratégias hermenêuticas distintas das que se abordaria com outros compositores: não podemos ignorar como estas duas vozes tornam-se indissolúveis. Como vimos, o público que escutava sua música é o público da Accademia degli Unisoni,

15

Em minha tese de doutoramento, encontra-se este documento traduzido, o qual relata um discurso sobre a polêmica entre o poder do canto ou das lágrimas recitado na Accademia degli Unisoni, em Veneza, 1638.

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papéis tradicionais e valores hegemônicos, banida de uma sociedade que simultaneamente a admira e inveja. L’astratto é, portanto, um manifesto de sua própria condição, expressando a uma só vez a longa tradição de vozes que transformam a solidão do abandono em música com a bravura poética de uma nova estética carregada de erotismo e sedução.

homens da refinada intelligenza veneziana que freqüentavam a academia para presenciar a música da cortesã Barbara Strozzi. Música e autora tornam-se uma só, e os atributos da cortesania – inteligência, sedução, sofisticação intelectual, coqueteria – fazem-se presentes em sua música. De forma similar a Gaspara Stampa, a obra de Strozzi torna-se assim uma obra exemplar de sua própria vida. A cortesã é uma mulher inerentemente abandonada, subvertendo

Fig. 1

Fig. 2

Fig 3a

20

SIMPEMUS3

Fig. 3b

Fig. 4

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O mito da música nas atividades da Companhia de Jesus no Brasil colonial Marcos Tadeu Holler Universidade do Estado de Santa Catarina Resumo A atuação musical dos jesuítas na América Espanhola deixou vários legados, como partituras, instrumentos e representações iconográficas, o que permite uma reconstrução mais precisa da música do período. Por esse motivo, geralmente se associa à Companhia de Jesus a imagem de uma ordem na qual a música desempenhava um papel importante. Até que ponto essa imagem corresponde à realidade? Algumas respostas a essa questão podem ser encontradas na própria documentação jesuítica referente ao Brasil colonial. Para este trabalho foi realizado um levantamento de referências à música em textos jesuíticos dos sécs. XVI a XVIII, em sua maior parte manuscritos, encontrados em acervos brasileiros e europeus, sobretudo no Arquivo da Companhia de Jesus em Roma.

A atuação dos padres da Companhia de Jesus na América colonial é geralmente associada à imagem de uma ordem na qual a produção musical desempenhava um importante papel, sobretudo devido à vasta documentação encontrada sobre a América Espanhola; a leitura dos documentos jesuíticos sobre o Brasil revela, porém, uma outra realidade. O presente trabalho baseia-se em um levantamento de documentos de autoria jesuítica com informações sobre a prática e o ensino musical no Brasil colonial. O levantamento foi realizado em acervos brasileiros e europeus, sobretudo no Arquivo da Companhia de Jesus (ARSI), em Roma. Os documentos encontrados abrangem uma vasta área geográfica, que vai das aldeias da Amazônia até o extremo sul dos domínios portugueses, e um período de mais de dois séculos; além disso, as informações sobre música são esparsas, o que não possibilita uma observação detalhada da prática musical em cada estabelecimento jesuítico, durante todo o período de sua atuação. Entretanto, a leitura dos documentos nos permite entrever algumas características comuns à atuação da Companhia de Jesus no Brasil colonial. Jesuita non cantat Os regulamentos estabelecidos nas primeiras décadas de existência da Companhia de Jesus foram determinantes para a atuação musical dos jesuítas nos séculos seguintes, ao menos nas assistências de Portugal. Observando-se o processo de formação desses regulamentos e a documentação sobre missões jesuíticas em outras regiões de domínio

português, podem-se compreender vários aspectos da música praticada nos estabelecimentos jesuíticos do Brasil colonial. A música nos regulamentos da Companhia de Jesus Antes da criação oficial da Companhia de Jesus, a música já era objeto de preocupação do Padre Inácio de Loyola. O primeiro regulamento da Companhia foi a Prima Societatis IESU Instituti Summa, que consistia de cinco capítulos ou parágrafos, elaborados em Roma por Loyola e seus seguidores, em 1539. Segundo a Summa, nos estabelecimentos jesuíticos não se deveriam usar, “na missa e em outras cerimônias sacras, nem o órgão e nem o canto” (SUMMA, 1539, p. 19). Os capítulos da Summa serviram de esboço para a elaboração de um documento mais extenso, a Formula Institutis Societatis IESU, que foi revisada e incorporada em 1540 à bula Regimini militantes ecclesiæ, do Papa Paulo III, que oficializou a criação da Companhia de Jesus, e em 1550 à bula Exposcit debitum, do Papa Julio III, que a confirmou. Na elaboração da Formula, a proibição à música foi considerada demasiadamente restritiva pelo revisor papal, o Cardeal Ghinucci, principalmente porque o uso extensivo da música nas práticas da igreja luterana era um atrativo para os fiéis, e assim essa proibição foi excluída dos textos incorporados às duas bulas. Em 1547, após ter sido eleito Superior da Companhia, Loyola dedicou-se, com a ajuda de seu assistente, o Padre Juan Alfonso de Polanco, à elaboração do que viria a ser o principal conjunto de regras da Companhia: as Constituições da Companhia de Jesus. A primeira versão das Constituições foi promulgada em 1552 e publicada

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em 1558, em latim. Sem a sanção de externos à Companhia, as restrições à prática musical nos estabelecimentos jesuíticos voltaram a surgir. O capítulo 3, com o título “do que se devem ocupar e do que se devem abster os membros da Companhia”, proíbe expressamente o coro nos ofícios e Horas Canônicas: Porquanto as ocupações assumidas com vistas à assistência das almas são de grande importância e próprias da nossa Instituição, e muito freqüentes, e como por outro lado nossa residência neste ou naquele lugar seja incerta, que os Nossos não usem o coro para Horas Canônicas ou Missas e para outras coisas que se entoam num ofício, uma vez que há lugares de sobra onde se satisfaçam aqueles a quem sua devoção mover a ouvi-las.1 (CONSTITUTIONES, 1583 [1558], p. 209-210)

Um comentário a esse trecho proíbe o uso do canto: Se for indicado em algumas Casas ou Colégios, [...] poderia ser dito somente o ofício vespertino. Assim também de ordinário nos domingos e dias de festa, sem o chamado canto figurato ou firmo,2 mas em tom devoto, suave e simples: [...] No mesmo tom poder-se-ia dizer o ofício que se costuma chamar ‘das trevas’, com as suas cerimônias, na Semana Santa. (CONSTITUTIONES, 1583 [1558], p. 209n-210n)

O texto veta ainda a entrada de instrumentos musicais, assim como de mulheres, nas casas e colégios da Companhia: Deve-se cuidar para que não entrem mulheres nas Casas nem nos Colégios da Companhia. [...] e instrumentos de qualquer espécie que sejam para recreação ou mesmo para a música e também livros profanos e outros objeto desse tipo. (CONSTITUTIONES, 1583 [1558], p. 96-97)

A restrição à prática musical não provinha de um gosto pessoal do Padre Loyola. O Padre Luís Gonçalves da Câmara, a quem Loyola ditou sua Autobiografia, afirma que em Manresa, ele “ouvia todos os dias a missa maior e as Vésperas e Completas, tudo cantado, e sentia nisso grande consolação” (Act.LuGon, 1553-1555, p. 388). Os motivos para as restrições à música tinham um fundo prático: desde sua 1

Os trechos das Constituições transcritos neste capítulo foram traduzidos por Fernando Ota.

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O termo canto figurato significa música polifônica, ou, em alguns documentos jesuíticos, fabordão, o que será discutido mais adiante; canto firmo refere-se ao canto monódico, ou gregoriano.

criação, um aspecto importante da Companhia de Jesus era o que chamavam de “cuidado dos bens espirituais”, ou seja, as atividades como catequese, pregação, confissão, comunhão e administração de sacramentos e a atuação junto ao povo, através da educação e obras assistenciais. Segundo Loyola, a música absorveria os padres e tiraria sua atenção do trabalho cotidiano. O próprio texto das Constituições deixa claro que haveria lugares de sobra para os que desejassem ouvir música em um ofício, mas “aos nossos, porém, convém que tratem do que é mais próprio à nossa vocação para a glória de Deus” (CONSTITUTIONES, 1583 [1558], p. 210). Diversos textos traduzem a reação dos padres diante do afastamento do povo das igrejas devido à ausência da música nos cultos, mas não se encontrou outra justificativa para a proibição à prática musical além das apresentadas por Loyola. A imposição do Papa Paulo IV Em 1555 o Cardeal João Pedro Carafa foi nomeado Papa Paulo IV, o que alteraria as restrições à música na Companhia de Jesus. Segundo o Padre Gonçalves da Câmara (Mem.LuGon, [1555], p. 712), Loyola já havia manifestado seu temor pelo Cardeal Carafa, que ameaçava obrigar a Companhia a instituir o coro em suas práticas, o que realmente ocorreu. Em 6 de agosto de 1558, O Padre Diego Lainez, que fora eleito Superior após a morte de Loyola, foi chamado à presença de Paulo IV e advertido com relação à proibição ao coro; dois dias depois, a ordem foi levada oficialmente aos jesuítas pelo Cardeal Afonso Carafa, sobrinho do Papa (CULLEY; MCNASPY, 1971, p. 226). Não existem registros escritos dessa ordem, a qual foi transmitida verbalmente pelo Cardeal Carafa. De acordo com a Crônica de Polanco, em 1555, antes mesmo das ordens expressas do Papa Paulo IV, Loyola decidiu permitir o uso do coro na igreja do Colégio da Companhia em Roma, ainda que sob determinadas circunstâncias, para que a iminente decisão do Papa não se chocasse com os preceitos da Companhia: Para que o Pontífice não modificasse uma característica da Companhia, este ano o Padre Inácio espontaneamente decidiu que os ofícios das Vésperas deveriam ser cantados em nossa igreja aos domingos e dias festivos, assim o Pontífice talvez ficasse satisfeito e não ordenasse a introdução do coro na Companhia. Dessa forma, após debater com os precursores da Companhia, decidiu-se pela introdução de um canto que não fosse contra os preceitos das Constituições; a

simpósio de pesquisa em música 2006 escolha foi feita pelo próprio Padre Inácio e constituía do canto figurado (chamado de falsum bordonem) para a edificação do povo. (Cro.JoPol.1, 1555, p. 33)

Segundo Murray Bradshaw (apud KENNEDY, 1982, p. 23-24), o fabordão encaixava-se perfeitamente nas idéias do Concílio de Trento sobre a música litúrgica, pois era um repertório constituído basicamente de peças corais, homofônicas, construídas sobre melodias do canto gregoriano, tornando-se por essas características a prática musical mais comum nos colégios jesuíticos na Europa, embora nenhum exemplo tenha sido preservado. Além do uso do fabordão, a Crônica do Padre Polanco deixa claro que a música deveria ser realizada em ocasiões determinadas: nas Vésperas dos domingos e dos dias festivos. Além disso, a música deveria ser executada pelos alunos dos colégios: segundo Polanco, Loyola optou pelo fabordão porque “muitos alunos do nosso colégio e do Colégio Germânico, e dentre os que vêm do Norte, conhecem bem este tipo de canto” (Cro.JoPol.1, 1555, p. 33). O Padre Polanco, por comissão do Padre Loyola, descreveu os ofícios realizados com música algumas semanas mais tarde, deixando claro que a música havia sido realizada pelos estudantes, sem que os padres tivessem deixado suas funções: O ofício, que se começou a cantar na Quarta-Feira Santa e as Vésperas que se começaram no dia de Páscoa, tiveram muito sucesso, e de grande maneira conquistaram as almas de muitos; mas não por isso diminuíram os confessores ou pregadores, porque os colegiais bastam para fazer esta festa. (Car.JoPol.1, 1556, p. 245)

Esse relato mostra uma característica marcante da Companhia de Jesus até a sua extinção: a prática musical não deveria ser realizada por padres, para que estes pudessem continuar com sua atuação junto aos “bens espirituais”. Permissões e restrições após 1556 Loyola faleceu em 1556 e, segundo Tejón, “a atitude da Companhia de Jesus a respeito da música passou a depender não somente da maior ou menor compreensão do carisma do fundador, mas também de cada Padre Geral, seu caráter e qualidades” (2001, p. 2776). Além disso, em 1559, um ano após ter instruído a Companhia sobre o uso do coro, o Papa Paulo IV faleceu, mas a Companhia de Jesus não retornou às

23 proibições anteriores relativas à música, mantendo a permissão de seu uso em ocasiões especiais, como mostram muitos documentos. As restrições à prática musical tornaram-se uma constante entre os jesuítas pelos séculos seguintes e, segundo MacDonnel (1995, cap. 3), deram origem ao mote “jesuita non cantat”, que se tornou comum entre os clérigos católicos. Jesuítas no Brasil Observando-se as proibições ao uso da música nos regulamentos da Companhia de Jesus, parece um paradoxo que a documentação sobre a música na atuação dos jesuítas nas Américas seja tão abundante. Pouco tempo após a chegada de Nóbrega no Brasil (e décadas antes do início da atuação dos jesuítas na América Espanhola) as referências à música eram freqüentes, e não existe indícios de uma contradição com os preceitos da Companhia de Jesus. Como isso pode ter ocorrido? A resposta pode ser encontrada nos documentos sobre a Companhia de Jesus na Índia. Jesuita non cantat in Provincia Indica Como no Brasil, as missões da Companhia de Jesus na Índia estavam sob a assistência de Portugal. Os documentos do séc. XVI sobre essas missões mostram grande semelhança com os relatos sobre o Brasil do mesmo período; em número consideravelmente maior, sua leitura pode fornecer informações relevantes também sobre a atuação dos jesuítas na América Portuguesa. O acesso a esses documentos foi facilitado graças à sua publicação em 18 volumes da série Monumenta Historica Societatis IESU, com o título Documenta Indica, editados pelo Padre Joseph Wicki. Em 1543 os jesuítas portugueses chegaram à Índia e antes mesmo da vinda do Padre Nóbrega ao Brasil, já se haviam dado conta da utilidade da música no processo de conversão dos gentios. Os documentos jesuíticos referentes ao Brasil não deixam claro qual era o encaminhamento da Companhia no que concerne ao uso da música na catequese, o que, por outro lado, é evidente nos documentos relativos à atuação dos missionários na Índia. Em uma carta de Goa de 1545, o Padre Antônio Criminalis expressa a Loyola a sua preocupação com o fato de os meninos cantarem nos ofícios, apesar de ser do agrado dos locais: Eu gostaria que [os meninos] não cantassem coisa alguma, mas dizem que isso escandalizaria o povo, porque já têm este costume, e que isso parece agradar muito ao Senhor Deus. Meus companheiros dizem que aprenderão a cantar, mas eu lhes digo que não lhes prometam tal coisa, porque vai um pouco além do meu sentir, e me parece que não devemos cantar. (Car.AnCri, 1545, p. 20-21)

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Não foi encontrada a resposta de Loyola a essa consulta do Padre Criminalis, mas é evidente que as práticas musicais continuaram, e em instruções de 1558 o Padre João de Polanco permite o canto na Índia, já que ele atrai o gentio: Deve-se permitir o canto na Índia e em outros lugares distantes, mesmo que isso não seja permitido à Companhia na Europa, se nesses locais isso for um auxílio para o culto de Deus e para o proveito espiritual, como se observou em Goa e na Etiópia. (Instr.JoPol.2, 1558, p. 77)

Os textos sobre a Índia posteriores aos séc. XVI não foram consultados, pelo fato de existirem somente em manuscritos, e por não serem o objeto principal deste trabalho. Nota-se a ausência de estudos musicológicos que envolvam a Companhia de Jesus em Portugal e suas assistências, e trabalhos adicionais sobre o tema poderão contribuir para uma compreensão mais acurada da música feita pelos jesuítas no Brasil. Jesuita non cantat in Provincia Brasilica Por meio dos documentos mostrados acima percebe-se que algumas regras da Companhia de Jesus relativas à música foram mantidas em Portugal e nas missões da Índia. A prática musical é permitida como uma ferramenta de conversão do gentio; nos estabelecimentos urbanos, pode ser utilizada em eventos sacros, desde que seja restrita a determinadas ocasiões, e que não seja realizada pelos padres, para que estes possam ocupar-se do cuidado com o bem espiritual. A leitura dos documentos mostra que essas características são também presentes na atuação dos jesuítas no Brasil colonial, desde a sua chegada até o momento da expulsão. A utilização do canto e de instrumentos pelos jesuítas junto aos índios foi o aspecto mais rico e influente da sua atuação musical no Brasil colonial. A influência da atuação jesuítica no período colonial provavelmente pode ser ainda hoje percebida no uso das rabecas e gaitas na música popular e folclórica no Norte e Nordeste do Brasil; porém, devido à interrupção de suas atividades com a expulsão dos padres em 1759, é difícil determinar até que ponto a atuação dos jesuítas influenciou a formação da cultura brasileira ou de identidades culturais regionais contemporâneas.

As instruções do Padre Inácio de Azevedo, em sua primeira visita ao Brasil, mostram que as restrições à prática musical expressas nas Constituições deveriam ser seguidas, exceto nas aldeias: Acerca de cantar missas e outros ofícios divinos, e procissões, etc., nas partes onde há curas e vigários que o fazem em nossa igreja, os nossos guardem as Constituições, procurando ajudar as almas com as confissões, e pregações, e ensinar a doutrina cristã, e evitar-se-á a emulação dos curas. Nas partes onde não há outros sacerdotes, como é Piratininga ou em aldeias entre os índios, ali poderão fazer, segundo ver o Provincial que convém para a edificação do povo, mas de maneira que não faltem por isso nos ministérios já ditos. (Vis.IgAzev, [1566], f. 137v)

Diferentemente do que ocorre com outras ordens, são bastante escassas as referências à prática musical realizada por padres jesuítas, o que coincide com esses regulamentos. Essas referências surgem geralmente nos primeiros anos da Companhia de Jesus e são comuns no séc. XVI, sempre associadas à atividade junto aos índios, porém tornam-se mais raras nos documentos posteriores. Nos estabelecimentos jesuíticos voltados para a formação da população urbana, fora do âmbito da catequese indígena, as restrições à prática musical eram obedecidas mais rigorosamente. Vários documentos descrevem eventos realizados com música nos colégios e seminários e, em quase sua totalidade, esses documentos mencionam a participação de externos à Companhia de Jesus, como religiosos de outras ordens (sobretudo mercedários e carmelitas), músicos contratados, seminaristas e estudantes dos colégios. Assim como a prática, também o ensino da música nos colégios e seminários do Brasil deveria ser realizado por externos, e não por padres. Dentre os estabelecimentos jesuíticos urbanos do Brasil colonial, o único sobre o qual se encontraram repetidas referências ao ensino musical foi o Seminário de Belém da Cachoeira, na Bahia. O Regulamento do Seminário, um documento único e relevante para a história do ensino no Brasil, menciona o ensino de solfa, canto e instrumentos aos internos, porém estabelece que “de nenhuma maneira os Nossos ensinem solfa nem toquem instrumentos, nem cantem e muito menos na Igreja e no côro”, e que o “mestre de música seja um secular” (Ord.SemBel, [1696], p. 183). O Regulamento parece ter sido realmente seguido. O professor externo de música é mencionado pelo Padre Manoel Correia em sua visita ao Seminário, já

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simpósio de pesquisa em música 2006 em 1693 (Vis.ManCor, 1693, f. 327v), e a Ânua da Província do Brasil de 1699, do Padre João Antonio Andreoni, Reitor do Colégio da Bahia, menciona o canto músico com um professor externo, após os estudos de letras, para que sirvam nos dias festivos no templo à religião e à piedade, com o prazer santo e doce dos que ouvem aquela melodia, e admiram a discrição conjunta e com ordem. (An.JoAnd.1, 1699, f. 443)

Um documento extremamente elucidativo é uma carta do Padre Jodoco Peres, Superior das missões no Maranhão, ao Padre Geral, relatando a expulsão dos jesuítas do Maranhão pela população em 1684, na revolta de Bequimão, e o seu reestabelecimento em 1685. O Padre Peres demonstra sua preocupação com o fato de padres seculares e de outras ordens terem realizado ofícios nas suas igrejas com música, durante a sua ausência: Os religiosos de outras ordens esforçaram-se contra nossa infame expulsão [...] e serviramnos com seu trabalho, cantando os ofícios divinos nas nossas igrejas; me pergunto agora se depois (quando então faltarem os clérigos, ou outros músicos seculares) continuaremos a celebrar nossas comemorações com missas recitadas, sem canto algum. (Car.JodPer, 1685, f. 125)

Por meio desse documento percebe-se que ainda no final do séc. XVII a música não era uma prática usual nos estabelecimentos jesuíticos urbanos, ainda que fosse bastante utilizada nas aldeias. Considerações finais. Dentro dos preceitos da Companhia de Jesus a música não ocupava uma posição de destaque, diferentemente do que ocorria em outras ordens, como a dos beneditinos. Além disso, a música tinha um caráter funcional, de atuação externa, e não devocional; por essas características, a atuação dos jesuítas nas Américas foi também mais conseqüente. Mesmo que a produção musical nos estabelecimentos jesuíticos, sobretudo da América Espanhola, tenha sido bastante intensa, ela se restringiu às aldeias ou reduções, voltadas para ao trabalho junto aos índios, e não é uma ocorrência observada nos estabelecimentos urbanos, como colégios e seminários. De qualquer modo, a música na atuação dos jesuítas no Brasil ainda é um tema que não foi esgotado, e futuros estudos poderão revelar importantes aspectos dos primórdios da história da música no Brasil.

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Evidências evolucionistas na historiografia musical sobre os jesuítas Dalton Martins Universidade Estadual Paulista Resumo Este texto pretende fazer algumas considerações sobre algumas evidências de um pensamento evolucionista em textos de historiografia musical sobre os jesuítas. O período abordado é de 1908 à 1954, orientado em função das fontes estudadas. O evolucionismo introduz-se no Brasil aproximadamente em 1870, oferecendo pressupostos para a compreensão do “atraso” brasileiro em relação ás nações européias “civilizadas”. Após o Modernismo, os pressupostos evolucionistas vão sendo substituídos por outros que privilegiavam a construção de uma “cultura brasileira”. No entanto, mesmo após o advento do Modernismo, podemos permanecer um traço evolucionista em nossa historiografia musical dedicada aos jesuítas, e, demonstrá-lo é o objetivo deste texto.

Introdução O objetivo deste texto é discutir sobre algumas evidências de um pensamento evolucionista nos textos de historiografia musical produzidos no período de 1908 a 1954, que tratam da contribuição dos jesuítas na história da música de São Paulo. O período estudado correspondente às datas de publicação das fontes utilizadas: 1908 é o ano de publicação de A música no Brasil, de Guilherme de Melo; em 1954, ano das comemorações do IV Centenário da fundação da cidade de São Paulo, foram publicados vários textos sobre a música de São Paulo. José Honório Rodrigues afirma, em Teoria da História do Brasil que há “uma estreita conexão entre a historiografia de um período e as predileções e características de uma sociedade” (RODRIGUES, 1978, p. 32). Assim, através de uma aproximação das principais idéias presentes na sociedade brasileira neste período, poderíamos conseguir elementos para a compreensão de nossa historiografia musical. O principal indício do que chamaremos traço evolucionista na historiografia musical dedicada à contribuição dos jesuítas na história da música de São Paulo, a nosso ver, se manifesta através do jogo de oposições que ocorre entre o jesuíta (civilizado, culto, erudito, cristão etc) e o indígena (selvagem, inculto, grosseiro, pagão etc). A partir dessas oposições, base para a nossa compreensão dos textos, se desenvolve toda uma série de considerações que, até aproximadamente meados da década de 1950, considerava os jesuítas como “formadores” e “civilizadores” do Brasil. Combinaremos o método histórico - para a análise das relações entre historiografia musical

e o pensamento brasileiro - combinado à hermenêutica, para a análise do conteúdo dos textos. Evolucionismo no pensamento brasileiro Dentre as teorias européias que tinham como pressuposto comum a evolução dos povos três delas tiveram um impacto real no Brasil: o positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer. Tais teorias foram utilizadas como fundamento científico por nossos historiadoressociólogos - dentre eles, Silvio Romero, Capistrano de Abreu, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha desde o declínio do Romantismo até o Modernismo, ou seja, entre 1870 e 1922. O pressuposto básico do evolucionismo pode ser grosseiramente apresentado da seguinte maneira: o “simples” evolui para o “complexo”; sob tal pressuposto, as sociedades “primitivas” evoluem para as sociedades “civilizadas”. Através de vários experimentos empíricos, os primeiros sociólogos e etnólogos procuravam estabelecer as leis que governavam o processo evolutivo dos povos (ORTIZ, 1985, p. 14). A partir dessas teorias, nossos pensadores tentavam compreender as diferenças entre o brasileiro e o europeu, o processo de formação e evolução da civilização brasileira e as possibilidades do Brasil se constituir uma nação “civilizada” (ORTIZ, 1985, p. 14-15). Vejamos a seguir o reflexo do evolucionismo na historiografia musical. Os intelectuais brasileiros de fins do século XIX e início do século XX procuravam, através das teorias evolucionistas, compreender as características do povo brasileiro, e suas diferenças em relação ao povo europeu. Esta questão se consubstanciava nas investigações sobre o “caráter nacional”:

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SIMPEMUS3 O dilema dos intelectuais desta época [o fim do século XIX e início do século XX] é compreender a defasagem entre teoria e realidade, o que se consubstancia na construção de uma identidade nacional. (ORTIZ, 1985, p. 15).

Assim, ao contrário das teorias evolucionistas européias, nas quais os conceitos de raça e meio tinham alcance limitado, no Brasil estes conceitos são largamente utilizados pelos nossos pensadores, pois viriam a especificar as “particularidades” da nossa “evolução” (ORTIZ, 1985, p. 16). na medida em que a realidade nacional se diferencia da européia, tem-se que ela adquire no Brasil novos contornos e peculiaridades. A especificidade nacional, isto é, o hiato entre teoria e sociedade, só pode ser compreendido quando combinado a outros conceitos que permitem considerar o porquê do ‘atraso’ do país (ORTIZ, 1985, p. 15).

O evolucionismo na historiografia musical Em Teoria e História Peter Burke trata das dissensões ocorridas ao longo do século XIX entre duas classes básicas de profissionais que tinham como objeto o estudo da sociedade: historiadores e teóricos sociais. Os historiadores estavam interessados nos aspectos que tornavam seu objeto particular, distinto, singular, e assim, trabalhavam sobre “fatos”; os “teóricos” estavam interessados nas “leis” que presidiam os estágios de evolução da sociedade, e assim, se orientavam para a compreensão dos aspectos gerais, para a elaboração de “leis” (BURKE, 2002, p. 14). Este antagonismo entre teóricos e historiadores proporcionou uma nova perspectiva à historiografia da música. Segundo Dwight Allen, o evolucionismo de Spencer ofereceu à historiografia musical uma nova abordagem, pois, ao invés de permanecer biográfica e factual, poderia tornar-se “científica”, na medida em que, semelhantemente à nascente sociologia, encarasse a música como um organismo que se cria, desenvolve e transforma em virtude de certas leis ou princípios (ALLEN, 1962, p. 110). Como se sabe a historiografia musical que se desenvolveu neste período estava tradicionalmente ligada a ideologias nacionais e religiosas, e talvez por tal motivo permanecia principalmente biográfica; ela procurava narrar a vida e a obra daqueles considerados “grandes indivíduos” ligados à sua nação ou à sua religião, e, além disso, era realizada, principalmente, por

membros da mesma pátria ou comunidade do biografado (KERMAN, 1985, p. 38-39). Assim, as teorias evolucionistas proporcionaram novas abordagens para a historiografia musical, que enfatizaram, por exemplo, o estudo da gênese das formas e dos gêneros musicais. A partir do Modernismo, os conceitos de raça e meio são substituídos pelo de cultura (LAHUERTA, 1997, p. 96), o qual, aparentemente, minimiza as contradições sociais e a latente impossibilidade das três raças formarem um povo. Isso se dá em razão de que o Modernismo abandona a “explicação do atraso brasileiro”, e propõe um projeto de âmbito nacional, que visava, em primeiro lugar, criar uma “literatura brasileira”, e posteriormente, organizar as diversas manifestações populares, unificando-as sobre o conceito de cultura nacional. A reforma brasileira, que terá de modernizar e nacionalizar o país, não é um fenômeno simplesmente estético. Se começou sob este aspecto, porque, pela sensibilidade, é que se iniciam as reações em toda parte, não se deve confinar, por isso, neste argumento fechado. Antes é preciso que se alastre e opere em seus centros de vida ativa, econômicos e sociais [...]. Para esse esforço é chamada a inteligência brasileira. O estudo de nossos problemas, a análise profunda de nossas camadas sociais, a indagação dos seus desejos e necessidades, a psicologia exata do povo são elementos de verificação indispensáveis para qualquer obra construtora neste sentido [...]. Para a realização dessa obra nacional é que o país reclama o esforço de todos os homens de inteligência e ação. (ALMEIDA, 1928, p. 3).

Embora o evolucionismo vá, gradativamente, perdendo sua força em outros setores do pensamento brasileiro – como na sociologia, por exemplo - sua influência parece permanecer em nossa historiografia da música paulista até aproximadamente fins da década de 1960, como veremos a seguir. O evolucionismo na historiografia musical brasileira Se no âmbito da historiografia musical internacional o evolucionismo proporcionou o surgimento de novas abordagens e novos objetos, no Brasil, porém, ele se adapta à problemática da contribuição das três raças na formação do povo brasileiro, questão que se desdobra na historiografia através da investigação sobre a criação de uma música “brasileira”. No entanto, é interessante observar a permanência do que chamamos de evidências evolucionista, em nossa historiografia musical, quando estes pressupostos passam a ser paulatinamente substituídos a partir

simpósio de pesquisa em música 2006 da assimilação dos novos pressupostos do movimento modernista. É de se notar ainda que a historiografia da música brasileira parece não ter sido tratada como uma ciência, com fontes, métodos e fundamentos e objetivos próprios, mas que, ao nosso ver, constitui-se uma espécie de “literatura”. Evidentemente, essa questão é bastante controversa. Porém, o fato desta historiografia musical não veicular através de livros especializados – salvo raras exceções – mas em revistas e jornais, e dirigir-se para um público leigo, nos parece reafirmar este caráter “literário”, o que confirmaria sua tendência à generalizações e conclusões sem o devido estudo dos problemas. O primeiro aspecto desse traço evolucionista, ao nosso ver, se manifesta através do jogo de oposições que ocorre entre o jesuíta (civilizado, culto, cristão etc) e o indígena (selvagem, inculto, pagão etc). A partir dessa oposição se desenvolve toda uma série de considerações que nos levam a crer na influência de um traço evolucionista na historiografia da música brasileira do início do século XX até aproximadamente a década de 1960. Em A música no Brasil (1908), Guilherme de Mello afirma que as manifestações teatrais utilizadas pelos jesuítas na catequese - os autos - representam “a primeira exibição da arte musical brasileira baseada no sistema diatônicocromático dos povos cultos” (MELO, 1908, p. 7). O que nos interessa aqui é que este autor situa historicamente, segundo ele, a primeira manifestação de um sistema musical “culto” em solo brasileiro. A evidência de um traço evolucionista, que se manifesta através da expressão “povos cultos”, é clara, no entanto requer um maior esclarecimento: se entendermos um sistema musical como expressão de uma determinada cultura, admitindo que tal sistema “delimita” os limites de “mundo sonoro” desta cultura, poderíamos entender, segundo a afirmação de Guilherme de Melo, que os jesuítas trouxeram o sistema musical se uma cultura “superior”. Ou seja, reconhecer o sistema musical dos jesuítas como “culto” (cultivado) implica necessariamente em reconhecer o sistema musical dos índios como “inculto” (não cultivado); se, segundo o pressuposto evolucionista, o que é cultivado é mais complexo do que o que é cultivado – pois o “simples” evolui para o “complexo” - então, a cultura dos jesuítas é “superior” à cultura dos indígenas. Guilherme de Melo escreveu sua obra em 1908, o que torna compreensível se sua visão de

29 mundo o faz expressar-se em termos de “evolução”. Porém, os casos mais interessantes, ao nosso, ver são aqueles de autores que escrevem a partir da década de 1920, portanto, já durante o Modernismo, e ainda mais, daqueles autores ligados diretamente à reflexão sobre as diretrizes, questionamentos e tendências do movimento, como é o caso de Renato Almeida. Outro artigo que nos oferece importantes considerações para a compreensão da influência de um pensamento evolucionista na historiografia dos jesuítas é A música em São Paulo, de João da Cunha Caldeira Filho, publicado no suplemento literário de O Estado de S.Paulo, em 25 de janeiro de 1954, para as comemorações da IV Centenário da cidade: Assim, a civilização do Planalto do Piratininga acordou ao som da música, e da música da Igreja católica. A garganta rude do selvagem e os lábios eruditos dos padres cantavam acompanhados por instrumentos grosseiros tangidos pelas mãos desajeitadas dos pequenos brasís, realizando a primeira manifestação musical da história de S. Paulo. (CALDEIRA FILHO, 1954, p. 129).

Como se pode ver acima, na visão do autor, os padres da Companhia de Jesus são homens que possuem “lábios eruditos”, e o indígena, por sua vez, possuiu “garganta rude” e “mãos desajeitadas” que tangem “instrumentos grosseiros”. Mais adiante, se referindo ao uso dos autos na catequese, o autor nos diz que estas peças eram “destinadas a moldar a alma rude do índio segundo os princípios eternos da espiritualidade cristã” (CALDEIRA FILHO, 1954, p. 129). O jogo de oposições entre as expressões “lábios eruditos” e “princípios eternos da espiritualidade cristã”, da parte dos jesuítas, e, “garganta rude” e “alma rude”, da parte dos indígenas, nos sugere certa idéia de “escala evolutiva”, em que a espiritualidade do índio é “primitiva”, e a do jesuíta “civilizada”, pois é alicerçada sobre “princípios eternos”. Outro aspecto onde se manifesta esse traço evolucionista na historiografia dos jesuítas, ao nosso ver, reside nas considerações em torno da boa receptividade da música pelos indígenas. Praticamente todos os autores que se detiveram sobre a contribuição dos jesuítas á música brasileira chamam a atenção para este fato. Renato Almeida, por exemplo, nos diz dos jesuítas: Dispostos a conquistar novos servos para Deus [...] esses homens extraordinários compreenderam que lhes deveriam falar à sensibilidade. Percebendo esse domínio da música sobre o gentio, os jesuítas

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SIMPEMUS3 empregaram-na para a catequese. (ALMEIDA, 1926, p. 189-190).

O mesmo autor continua, dizendo que os acentos da música trazida pelos jesuítas empolgavam os indígenas “que, desde a primeira missa, se deixaram enleiar pelas suas melodias” (ALMEIDA, 1926, p. 189). Caldeira Filho, por sua vez, nos diz que o pendor dos indígenas para a música dos jesuítas [grifo nosso] fora responsável pelo êxito da catequese (CALDEIRA FILHO, 1954, p. 129). Gastão de Bittencourt, diz que os jesuítas, “certos da grande verdade a que se refere Simão de Vasconcelos, ‘a suavidade do canto fazia entrar nas almas a inteligência das coisas do céu’, iniciaram com a sua catequese, a divulgação do gosto pela música” (BITTENCOURT, 1945, p. 20). Como veremos a seguir o que estes textos parecem difundir é a idéia de que, por mais distantes que estivessem os índios dos jesuítas, em termos “evolutivos”, havia algo que os atraía e que os ligava àquela música. Segundo Renato Almeida: “Havia uma influência indefinível e instintiva que atuava sobre a sensibilidade grosseira dos índios e aqueles cantos e aqueles hinos lhes pareciam vozes celestiais” (ALMEIDA, 1926, p. 189). Por sua vez, Vicenzo Cernicchiaro nos diz que em cada raça humana se encontra o fundamento de todas as outras manifestações artísticas, e assim, presume que “a música deva interessar igualmente todo espírito humano de grau superior ou inferior, no desenvolvimento e perfeição da arte que o circunda” (CERNICCHIARO, 1926, p. 27)1. Segundo nos parece, tais textos evidenciam uma idéia de que há uma espécie de “fundamento comum” às diferentes raças, ou seja, de que criaturas da mesma ”espécie”, distintas apenas pela raça, estariam sujeitas às mesmas “leis evolutivas”. Se Renato Almeida prefere se manifestar em termos de uma “influência indefinível e instintiva”, Cernicchiaro é mais explícito ao afirmar, indiretamente, que o espírito humano subdivide-se em “graus” inferiores ou superiores. Conclusão Ao se concentrar na cronologia e narrativa da vida dos “grandes homens” e dos “formadores” do Brasil, a historiografia musical brasileira, que surge no início do século XX, 1

“... la musica debba interessare in pari ogni spirito umano di grado inferiori o superiori, nello svolgimento e perfezione dell’arte che lo circunda”.

parece ignorar os fatores históricos relacionados à catequização, e assim, costuma tratar a ação jesuítica como uma “necessidade natural”, ou seja, a cristianização dos povos selvagens e a criação da futura nação brasileira. Além disso, tais autores trabalharam num contexto onde estavam presentes diversas teorias evolucionistas, que consideravam que povos “primitivos” evoluem para povos “civilizados”. Apesar do declínio de tendências evolucionistas no estudo dos problemas brasileiros, com o Modernismo, que cedem espaço a abordagens que visavam, antes de tudo, a unificação da cultura brasileira, a historiografia musical dedicada aos jesuítas mantém um traço evolucionista em textos produzidos de 1908 até aproximadamente meados da década de 1950. Contradições à parte, se poderia dizer, finalmente, que a tendência verificada em nossa historiografia musical, que lança mão do recurso dos “heróis-civilizadores” que “nacionalizam” o Brasil, está em perfeita consonância com a tendência musical modernista, que, a partir da síntese de um fundamento harmônico europeu aos elementos nativos, com a predominância do primeiro, deveria construir a verdadeira música “brasileira”.

simpósio de pesquisa em música 2006

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Referências ALLEN, Dwight. Philosophies of music history: a study of general histories of music 1600-1960. New York: Dover, 1962. ALMEIDA, Renato. Compêndio de história da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1948. _____ História da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1926. ALMEIDA, Renato. Amplitude do espírito moderno. Movimento. Revista de crítica e informação, v. 1, n. 2, nov. 1928. BITTENCOURT, Gastão de. História breve da música no Brasil. Lisboa: Seção de intercâmbio do S. N. I, 1945. BURKE, Peter. História e teoria social. Trad. Klauss Brandini e Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Editora da UNESP, 2002. CALDEIRA FILHO, João da Cunha. A Música em São Paulo. O Estado de S.Paulo; Edição do IV Centenário. São Paulo, v. 75, n. 24.145, 25 de janeiro de 1954, p. 129-131. CERNICHIARO, Vicenzo. Storia della musica nel Brasile dai tempi coloniali sino ai nostri giorni (1549-1925). Milano: Fratelli Riccioni, 1926. LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os anos 20: Moderno, modernista, modernização. In: LORENZO, Helena Carvalho de; COSTA, Wilma Pereira da (org.). A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Editora da UNESP, 1997. KERMAN, Joseph. Musicologia. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1987. MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. A música no Brasil desde os tempos coloniaes até o primeiro decênio da República por Guilherme Theodoro Pereira de Mello. Bahia: Typographia de S. Joaquim, 1908. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985. RODRIGUES, José Honório. Teoria da história do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1978. 5. ed. ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira, 2. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1902.

Políticas públicas para cultura e produção musical em Curitiba - 1971 a 1983 Ulisses Quadros de Moraes Universidade Federal do Paraná

Resumo Este trabalho apresenta uma proposta metodológica de análise de fontes em relação às políticas públicas para a área da música popular e para a produção musical curitibanas, no período que se estende entre os anos de 1971 e 1983, com a utilização dos conceitos de campo, habitus e capital Simbólico, desenvolvidos por Pierre Bourdieu. O recorte temporal definido se deve, principalmente, por ser relativo aos mandatos de Jaimer Lerner (1971 a 1974), Saul Raiz (1975 a 1979) e novamente Jaimer Lerner (1979 a 1983), período de implementação do que se tornaria conhecido por “lernismo” na capital paranaense, e que promoveu profundas modificações urbanísticas e culturais em Curitiba. A utilização dos conceitos de campo, habitus e capital simbólico, como norteadores teóricos da pesquisa, se deram graças a contribuições dos professores doutores Dennison de Oliveira, meu orientador, e Judite Maria Trindade e Luiz Carlos Ribeiro, professores do departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Durante toda a sua carreira intelectual, Bourdieu manteve estreitos laços com questões relativas à educação, cultura, arte, comunicação e política. Suas obras As regras da arte, Economia das trocas simbólicas, O poder simbólico e razões práticas, são onde o autor desenvolve com brilhantismo os conceitos aqui utilizados, principalmente no que se refere à noção de práticas sociais, as relações de poder nelas existentes e os limites e as regras de atuação individuais e coletivos. De posse desses conceitos, vamos abordar nossas fontes dentro da perspectiva de Campo Artístico-Cultural (onde nossos atores agiram) o qual abarcará os Sub-Campos Político (gestores públicos), Artístico e Cultural (músicos populares e produtores) e da Imprensa (jornalistas ligados às artes e à cultura). Por fim, os resultados práticos das políticas públicas Lernistas para a promoção da musica curitibana nos cenários local e nacional serão analisadas à luz das fontes disponíveis.

Marcar época é, inseparavelmente, fazer existir uma nova posição para além das posições estabelecidas, na dianteira dessas posições, na vanguarda, e, introduzindo a diferença, produzir o tempo. - Pierre Bourdieu

Introdução O presente trabalho tem por objetivo a discussão metodológica para um estudo sobre as políticas públicas para a cultura voltadas para a música popular em Curitiba entre os anos de 1971 a 1983, correspondes aos mandatos dos prefeitos Jaime Lerner (1971 a 1974), Donato Gulin (presidente da Câmara Municipal de Curitiba que assumiu interinamente a prefeitura em 1974), Saul Raiz (1975 a 1979) e novamente Jaime Lerner (1979 a 1983), período de implementação do que viria a ser conhecido por “lernismo” na capital do estado do Paraná, com a promoção de mudanças urbanísticas e culturais significativas. A escolha desse recorte se deveu aos seguintes fatores: a) a inauguração, em 1971, no primeiro ano do primeiro governo do então

jovem arquiteto Jaime Lerner1, do Teatro Paiol, o qual se tornaria um dos símbolos das ações públicas para a área da música2; b) a criação, em 1973, da Fundação Cultural de Curitiba3, responsável pela implementação das ações culturais municipais; c) a promoção – num movimento conjunto dos músicos e compositores curitibanos e poder público municipal – do Movimento Artístico do Paiol – MAPA4, um dos 1

A respeito do Paiol, ver www.fundacaoculturaldecuritiba.com.br: “Antigo Paiol de Pólvora transformado em teatro em 1971, o Teatro do Paiol é um símbolo cultural e histórico de Curitiba. Sua criação foi o marco das reformas urbanísticas e culturais implementadas na cidade a partir da década de 70.” (grifo nosso).

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A imagem do Teatro Paiol se tornaria posteriormente o símbolo da Fundação Cultural de Curitiba.

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Lei Ordinária 4545/1973 de 05/01/1973, que cria a Fundação Cultural de Curitiba.

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O MAPA, desenvolvido ao longo dos anos 1974 e 1975, foi uma grande ferramenta para a projeção local de alguns dos nomes ainda hoje considerados como de expressão na música popular curitibana. Com o objetivo de estabelecer mecanismos de

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simpósio de pesquisa em música 2006 acontecimentos mais marcantes da década de 70 no campo da música popular; e d) os resultados efetivos dessas ações e sua relação com as iniciativas governamentais estadual e federal, contextualizadas num cenário nacional de grande efervescência social e política. Considerando que qualquer ação que objetive a inserção de uma produção artística num mercado consumidor e dar condições de viabilidade a seus produtores – subsistência e capacidade de investimento, devemos pensar nos valores simbólicos produzidos por essas ações e na conseqüente existência de demanda para esses valores. Dada à concentração dos agentes da indústria cultual no eixo Rio – São Paulo5, qualquer atividade que se efetivasse fora desses limites encontrava dificuldades para sua manutenção e subsistência plenas. Desse modo, os investimentos públicos mostraram-se como uma espécie de salva-guarda para a música de regiões periféricas àqueles centros. Para a música de Curitiba, por exemplo. Lançaremos mão de documentos escritos, registros em áudio e fontes orais, utilizando para sua análise conceitos propostos pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, especificamente no que concerne à noção de campo, com incorporações também das noções de habitus e capital simbólico. Pierre Bourdieu Pierre Bourdieu, nascido na França em 1930, foi um dos principais intelectuais de sua época. Professor de sociologia no Collège de France, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e diretor da revista Actes de Recherche en Sciences Sociales, suas contribuições para o pensamento contemporâneo foram inúmeras, sempre com enfoque para questões de educação, cultura, arte e, em seus últimos anos de vida, também para os estudos de comunicação e política. Intelectual atuante tanto nos meios acadêmicos quanto políticos, Bourdieu se manteve intransigente aos limites existentes entre sua militância política e o rigor acadêmico de suas pesquisas.

Dentre suas inúmeras publicações ao longo de mais de 30 anos de carreira, sua obra rompeu os limites das ciências sociais, abrangendo áreas da história e filosofia principalmente, influenciando um universo consideravelmente amplo das ciências humanas. Nas palavras de Habermas, “com Pierre Bourdieu, desaparece um dos últimos grandes sociólogos do século XX, indiferente às fronteiras entre as disciplinas”. Entretanto, a despeito do vasto alcance bourdieuniano, optamos por nos atermos a três conceitos fundamentais de seu pensamento, no que se refere à noção de praticas sociais, suas relações de poder e os limites e as regras de atuação individuais e coletivos que se traduzem nas estruturações de estruturas estruturadas e estruturantes. Falamos dos conceitos de campo, habitus e capital simbólico, que encontram sua fundamentação em três importantes obras de nosso autor: A economia das trocas simbólicas, O poder simbólico e As regras da arte6. Sobre o conceito de habitus Não é tarefa fácil a compreensão do pensamento de Pierre Bourdieu, dada sua extrema complexidade de raciocínio e uma exposição bastante rebuscada de idéias e princípios. Entretanto, numa leitura mais atenta de seus escritos, nos deparamos com uma coerência e solidez impressionantes vindos de sua erudição e da abrangência de suas influências intelectuais. Iniciamos nosso trabalho abordando o conceito de habitus, nos utilizando primeiramente de um alerta do próprio Bourdieu: a noção de habitus exprime, sobretudo, a recusa a toda uma série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo, etc. (BOURDIEU, 2003, P. 60).

Norteando-nos por essa recomendação, esboçamos nosso entendimento acerca desse habitus, que pode ser entendido por um conjunto de propensões que permitem aos indivíduos agirem dentro de uma estrutura social determinada com 6

produção e divulgação da música curitibana, do movimento resultou um LP, lançado em 1975, com canções de seus principais atores. 5

Gravadoras e distribuidoras, jornais e revistas de circulação nacional, além de redes de televisão, têm suas sedes, mesmo nos dias atuais, concentradas em sua quase totalidade nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

Essas obras, de suma importância para a compreensão do pensamento de Pierre Bourdieu no que se refere à noção de Campo, Habitus e Poder Simbólico, podem ser assim resumidas: O Poder Simbólico, onde o autor discorre sobre a gênese dos mecanismos de ação e coerção em uma sociedade; A Economia das Trocas Simbólicas, um estudo da simbologia social presente em práticas nos diversos níveis de poder em uma sociedade; e As Regras da Arte, uma análise sobre a autonomização do fazer artístico, tendo como foco “A educação sentimental”, de Gustave Flaubert.

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vistas à manutenção de sua dinâmica organizacional. Desse modo, o habitus adquire uma conotação conservadora na dinâmica social. Seguindo a definição de Bourdieu, o habitus deve ser pensado como sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturantes, constituem o principio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes. (BOURDIEU, 2005, p.191).

Procuramos o conhecido, o seguro. É claro que não podemos desprezar o dinamismo das ações individuais ou coletivas, dinamismo esse que encerra em seu bojo a luta pela prevalência de determinadas idéias em relação a outras e que pode se constituir na luta pela dominação o que, consequentemente, resulta em modificações das estruturas sociais. Entretanto, “o habitus [...] indica a disposição incorporada, quase postural” (p. 61), disciplinando comportamentos, do que deriva campos estruturados e estruturantes dos mais diversos. Em nossa pesquisa, a identificação dos habiti de nossos atores em seu campo distinto, será de extrema relevância para que possamos compreender as “regras da arte” constituídas ao longo de 12 anos de história.

que sofrem influências – e, portanto, modificações – de seus atores. Entretanto, os campos têm de ser entendidos relacionalmente no conjunto social. Sendo efetivamente forjados através de ações e reações, campos determinados relacionam-se entre si, estabelecem ligações com outros campos e formam, por conseqüência, espaços sociais mais abrangentes, conexos, influenciadores e influenciados. A respeito dessas relações, temos, mais uma vez, o auxílio do próprio Bourdieu, O campo, no seu conjunto, define-se como um sistema de desvio de níveis diferentes e nada, nem nas instituições ou nos agentes, nem nos actos ou nos discursos que eles produzem, têm sentido senão relacionalmente, por meio do jogo das oposições e das distinções. (BOURDIEU, 2003, p. 179).

Para nossa pesquisa, o aspecto relacional dos campos será de extrema valia. Entendendo que nosso “objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o essencial de suas propriedades” (idem, p. 27), a dinâmica interna de um campo, as inter-relações de seus vários agentes e as reações resultantes desse processo, nos fornecerão clareza e abrangência quanto às conceituações Bourdieunianas7. 7

Sobre o conceito de campo A começar pela idéia bourdieuniana de campo, vamos encontrar nas palavras de Roger Chartier uma definição bastante elucidativa a respeito de sua amplitude conceitual, a sua natureza relacional e sua abrangência metodológica. Para Chartier Os campos, segundo Bourdieu, têm suas próprias regras, princípios e hierarquias. São definidos a partir dos conflitos e das tensões no que diz respeito à sua própria delimitação e construídos por redes de relações ou de oposições entre os atores sociais que são seus membros. (CHARTIER, 2002, p. 140).

Os campos são, pois, caracterizados por espaços sociais, mais ou menos restritos, onde as ações individuais e coletivas se dão dentro de certa normatização criada e transformada constantemente por essas próprias ações. Dialeticamente, esses espaços, ou estruturas, trazem em seu bojo uma dinâmica própria determinada e determinante, na mesma medida em

“Uma das dificuldades da análise relacional está, na maior parte dos casos, em não ser possível apreender os espaços sociais de outra forma que não seja a de distribuições de propriedades entre indivíduos. É assim porque a informação acessível está associada a indivíduos. Por isso, para apreender o sub-campo do poder econômico e as condições econômicas e sociais de sua reprodução [por exemplo,] é na verdade obrigatório interrogar os duzentos patrões franceses mais importantes. Mas é preciso, custe o que custar, precaver-se contra o retorno à “realidade” das unidades pré-construídas. Para isso, sugiro-vos o recurso a esse instrumento de construção do objecto, simples e cômodo, que é o quadro dos caracteres pertinentes de um conjunto de agentes ou de instituições: se se trata, por exemplo, de analisar diversos desportos de combate (luta, judô, aikidô, etc.) ou diversos estabelecimentos de ensino superior, ou ainda diversos jornais parisienses, inscreve-se cada uma das instituições em uma linha e abre-se uma coluna sempre que se descobre uma propriedade necessária para caracterizar cada uma delas, o que obriga a pôr a interrogação sobre a presença ou ausência dessa propriedade em todas as outras – isto, na fase puramente indutiva da operação; depois, fazem-se desaparecer as repetições e reúnem-se as colunas que registram características estrutural ou funcionalmente equivalentes, de maneira a reter todas as características – e essas somente – que permitem descriminar de modo mais ou menos rigoroso as diferentes instituições, as quais são, por isso mesmo, pertinentes. Esse utensílio muito simples tem a faculdade de obrigar a pensar relacionalmente tanto as unidades sociais em questão como as suas propriedades, podendo estas ser caracterizadas em termos de presença ou de ausência (sim/não). Mediante um trabalho de construção dessa natureza – que se não faz de uma só vez, mas por uma série de aproximações – constoem-se, pouco a pouco, espaços sociais os quais – embora só se ofereçam em forma de

simpósio de pesquisa em música 2006 Faremos, assim, uma análise das relações entre os meios políticos, artísticos e culturais da cena curitibana dos anos 70, procurando entender a atuação de seus agentes, suas limitações e suas estratégias para efetivar ações visando interferir nos rumos da produção musical de então. Essa idéia nos auxiliará a definir diferentes aglutinações de atores que constituirão nosso conceito de campo. Assim, nosso trabalho estará voltado para a construção do campo artístico-cultural (onde nossos atores agiram) o qual abarcará os sub-campos político (gestores públicos), artístico e cultural (músicos populares e produtores) e da imprensa (jornalistas ligados às artes e à cultura). Nessa perspectiva, analisaremos as relações entre as personagens dentro e fora desse campo8, as tensões de seus diferentes agentes entre si, e, por fim, os resultados dessas relações para a construção de um ambiente de atuação artística e política visando à exposição e a valorização da produção musical de Curitiba. Sobre o conceito de capital simbólico Antes de falarmos sobre o capital simbólico, é necessária uma breve explanação acerca do processo de autonomização dos agentes artísticos. É sabido que as artes musicais não gozaram ao logo dos séculos do mesmo status que gozam em nossos tempos. Até o século XVIII, a dependência que os “trabalhadores dessas artes” tinham em relação à nobreza ou à igreja, interferia sobremaneira em sua produção. Além disso, e com sua atuação limitada às necessidades de seus financiadores, os “artistas” de então não possuíam ampla liberdade criativa9, nem tampouco essa liberdade era requerida ou almejada por eles. O fazer artístico nada mais

relações objetivas muito abstractas e se não possa tocá-los nem apontá-los a dedo – são o que constitui toda a realidade do mundo social”. (BOURDIEU, 2003, p. 29–30). 8

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É preciso que entendamos que tanto no interior quanto na órbita de nosso campo artístico-cultural, gravitam atores com objetivos diversos. Se há, é certo, um esforço para a manutenção das estruturas de poder e organização nos seus mais variados aspectos dentro de cada campo, há também esforços de agentes ainda excluídos desse campo, no sentido de promover sua inserção e, por conseqüência, participação efetiva na consolidação dessa estrutura. Um jogo de forças, às vezes com objetivos similares, às vezes antagônicos, que constituem a natureza dos campos. Podemos pensar que essa “liberdade criativa”, ainda não estava presente nos anseios artísticos. Pelo contrário, a autonomização das produções artísticas e intelectuais é que viria a favorecer, mais adiante, o aparecimento do chamado valor artístico como o entendemos hoje.

35 era do que uma dentre outras tantas atividades a serviço de uma ordem maior. Mas como poderemos identificar a gênese do “mundo das artes” ou da autonomização de seus agentes, o que levou à elaboração ideológica do que entendemos hoje por arte e/ou artista? Uma resposta possível nos é dada por Bourdieu: o processo conducente à constituição da arte enquanto tal é correlato à transformação da relação que os artistas mantêm com os nãoartistas e, por esta via, com os demais artistas, resultando na constituição de um campo artístico relativamente autônomo e na elaboração concomitante de uma nova definição da função do artista e de sua arte. (BOURDIEU, 2005, p. 101).

Para ser possível a construção de um campo artístico autônomo, foi necessária uma nova definição do artista e da própria arte na sociedade, o que se deu como resultante da modificação gradativa da idéia social da própria arte. Agora não mais um ofício como outro qualquer, mas sim um ofício com um status especial, ligado à erudição e a distinção. Como conseqüência, essa elaboração tem de ser observada num jogo determinado de poder, com suas ações e contradições. Se à força de uma ação ou de um poder de ação para a efetivação desse capital simbólico está vinculado seu enraizamento numa determinada estrutura – força essa aceita tanto pelos que a exercem quanto pelos que desse exercício sofrem suas influências – seu reconhecimento por todos os agentes de uma sociedade é condição primeira para sua introjeção como valor social. O capital simbólico – outro nome da distinção – não é outra coisa senão o capital, qualquer que seja a sua espécie, quando percebido por um agente dotado de categorias de percepção resultantes da incorporação da estrutura da sua distribuição, quer dizer, quando conhecido e reconhecido como algo de óbvio. (BOURDIEU, 2003, p. 145).

Aceito por todos como ingrediente natural da estrutura social, desse capital simbólico deriva um poder simbólico que é um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com que ele o credita, um fide, uma auctoritas, que lhe confia pondo nele a sua confiança. É um poder que existe porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe. (idem, p. 177).

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SIMPEMUS3

Novamente nos cabe recorrer à Bourdieu para entendermos o que é realmente esse poder simbólico: O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, “uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências”. (ibidem, p. 9).

A esse poder simbólico, reconhecível e reconhecido pelos atores de seu tempo, cabem as análises mais cuidadosas, à luz das fontes disponíveis. Quem exerce esse poder? Em nome de quem? Sobre quem? Quais seus objetivos? Quais suas limitações? Quais suas conseqüências? Onde ele está localizado? A todas essas questões, precisamos relacionar o valor atribuído às ações dos agentes sociais e o poder que dessas ações emana. Na construção do campo artístico-cultural abrangendo os gestores públicos, artistas e produtores culturais e jornalistas ligados à arte e a cultura na Curitiba dos anos 70 e 80, investigaremos as condições em que esse campo se constituiu, suas conseqüências para a efetivação de práticas e valores políticos, artísticos e culturais e sua interferência nos rumos das ações artísticas musicais de então. Procurar o poder simbólico resultante das práticas sociais desses agentes e o real significado desse Poder, suas origens e seu reconhecimento pelos atores de nosso “palco”. Isso constitui, em última instância, a tarefa mais importante de nossa pesquisa. Tipologia das fontes Construir o objeto supõe também que se tenha, perante os factos, uma postura activa e sistemática. Para romper com a passividade empirista, que não faz senão retificar as préconstruções do senso comum, não se trata de propor grandes construções teóricas vazias, mas sim de abordar um caso empírico com a intenção de construir um modelo – que não tem necessidade de se revestir de uma forma matemática ou formalizada para ser rigoroso –, de ligar os dados pertinentes de tal modo que eles funcionem como um programa de pesquisas que põe questões sistemáticas, apropriadas a receber respostas sistemáticas; em resumo, trata-se de construir um sistema coerente de

relações, que deve ser posto à prova como tal. (BOURDIEU, 2003, p. 32).

A construção de nosso modelo de pesquisa está baseada, como já dissemos, em fontes documentais escritas, arquivos de áudio e depoimentos orais (fontes orais). Abordaremos as relações entre as políticas públicas para a música popular e as ações dos agentes artísticos (músicos, produtores e jornalistas culturais), no campo político-cultural curitibano, procurando entender o esforço conjunto dos atores de um tempo determinado por nosso recorte, em construir um mercado para a produção de seus bens simbólicos, sem restringir nosso raciocínio a um pensamento economicista. Pelo contrário, buscaremos nas ações sociais as práticas de seus diferentes agentes, seus objetivos, seus fundamentos e suas conquistas. Dividimos nossas fontes em dois grandes grupos, a saber: fontes documentais, que se subdividem em fontes escritas e registros em áudio; e fontes orais, que construiremos com entrevistas realizadas com alguns dos nomes mais atuantes de nosso recorte temporal. Fontes documentais As fontes documentais escritas que serão utilizadas são bastante abundantes. Em relação às ações públicas municipais, os arquivos da Câmara Municipal de Curitiba disponibilizam toda a legislação da capital paranaense desde 194710. Contendo decretos legislativos, emendas à lei orgânica, leis complementares, leis ordinárias e resoluções, os documentos são sinais importantes dos rumos da política cultural levada a cabo pelos gestores públicos no período estudado. Os Anais da Câmara, documentos impressos disponíveis em arquivos na Câmara Municipal de Curitiba, também serão consultados como fontes sobre os debates ocorridos acerca dos processos legislativos concernentes ao nosso tema. Nos arquivos da Casa da Memória - Fundação Cultural de Curitiba - há uma vasta documentação composta de publicações oficiais, relatórios anuais da Fundação Cultural e da Prefeitura Municipal de Curitiba, dentre outros. Nesses documentos, nossas atenções estarão voltadas para a visão dos gestores sobre as características culturais da capital paranaense, sua relação com os demais órgãos públicos (Secretaria de Estado da Educação e Cultura e Teatro Guaira, principalmente) e a elaboração e efetivação de projetos para a música popular. 10

Disponível digitalmente no sítio

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simpósio de pesquisa em música 2006 Os gestores públicos municipais comporão, portanto, nosso sub-campo político do período lernista, sobre o qual vamos proceder a um estudo de práticas administrativas bem como de suas relações com outras esferas do poder público. No que diz respeito ao sub-campo artístico e cultural, concentraremos nossas atenções também nos arquivos da Casa da Memória, além do acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS), este último vinculado à Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. Na Casa da Memória, há registros em 11 áudio de eventos ocorridos no Teatro do Paiol, que serão úteis para conhecermos as características estéticas da produção musical curitibana, além de serem uma mostra do poder de aglutinação de público que essa produção detinha. Alguns outros registros em áudio e uns poucos em vídeo estão sob responsabilidade do Museu da Imagem e do Som, principalmente os referentes a espetáculos realizados no auditório Salvador de Ferrante. Essa documentação nos dará indícios preciosos a respeito da produção da música popular dos anos 70 e 80. Por último, ainda estarão sob nossos olhares os arquivos dos meios de comunicação da imprensa escrita, que comporão nosso sub-campo jornalístico. As produções de seus agentes contêm pistas sobre sua relação com as expectativas dos artistas e gestores públicos de então e sua contribuição para a exposição das ações políticas voltadas para a música popular e da produção musical dos talentos curitibanos. Nesse sub-campo, elegemos como foco de nossas atenções o jornalista Aramis Millarch12, um dos mais importantes e atuantes profissionais da área, que esteve em plena atividade nas décadas de 70 e 80. Já temos catalogados centenas de artigos assinados por ele em diversos cadernos principalmente do jornal O Estado do Paraná, com boa parte de seus escritos disponíveis para consulta13. Esses textos nos darão um indício do volume das produções musicais do período em questão e serão bons exemplos da atenção

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Estão disponíveis para consulta na Casa da Memória de Curitiba, fitas de rolo e cassete com o registro em áudio de muitos espetáculos realizados no Teatro Paiol desde sua inauguração no final de dezembro de 1971.

12

Alem de jornalista atuante, Aramis Millarch foi o primeiro presidente da Fundação Cultural de Curitiba, quando de sua fundação em 1973.

13

Dos milhares de artigos escritos por Aramis Millarch ao longo de sua carreira, muitos foram já digitalizados e estão disponíveis no sítio

despendida pela imprensa local às investidas musicais curitibanas. Não obstante Aramis Millarch ter sido apenas um dentre vários jornalistas a escreverem sobre música, seus textos requerem um cuidado especial por sua paixão pelas artes e por sua ligação com a valorização dos movimentos artísticos e culturais locais, além de seu nome ser um dos mais expressivos da imprensa local, lembrado com unanimidade por todos os atores, seus contemporâneos. Não podemos deixar de lado outro veículo de comunicação da imprensa escrita que teve um papel importante em nosso recorte temporal. Falamos do periódico Gazeta do Povo, que também guarda preciosidades relativas ao nosso tema. Com essa documentação, comporemos nosso acervo de fontes escritas, que será complementado com a realização de entrevistas, conforme descrito a seguir. Fontes orais Após o levantamento prévio da documentação mencionada, achamos que poderíamos ter um acréscimo de conteúdo mediante realização de entrevistas com alguns dos protagonistas da cena musical curitibana. Elaboramos um mapeamento de nomes que apareceram com mais freqüência nos textos jornalísticos e em cartazes e panfletos de divulgação de espetáculos musicais realizados no Teatro Paiol, administrado pela prefeitura de Curitiba, e no Auditório Salvador de Ferrante14. Elegemos num primeiro momento os artistas Paulo Vitola, Marinho Galera, Celso Pirata, Aderbal Fortes, Sergio Maluf, Euclides Cardoso, Gerson Fisben e Carlos Amaral15, todos eles personagens bastante atuantes na cena musical dos anos 70. Desses, realizaremos entrevistas com Paulo Vitola, Marinho Galera, Celso Pirata e Sergio Maluf, por se tratarem de nomes de destaque no Movimento Artístico Paiol – MAPA, foco artístico de nossas atenções, e cujas obras obtiveram maior repercussão junto ao público e à critica especializada. Também realizaremos uma entrevista com o ex-prefeito de Curitiba, Jaime Lerner, cujo depoimento deverá acontecer no primeiro semestre de 2007. 14

Além desses dois teatros, destacava-se também, nos anos 70 e 80, o Teatro do SESI. Localizado próximo ao passeio público, área central de Curitiba, o espaço foi destruído por um incêndio no final dos anos 80.

15

Mais dois nomes teriam presença obrigatória em nossas entrevistas, não fosse o fato de terem prematuramente falecido. São eles Paulo Leminski e Palminor Rodrigues, o Lápis.

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SIMPEMUS3

O que justifica nossa opção pela elaboração de entrevistas com algumas das personagens dessa história, pode ser apreendido pelas palavras de Robert Frank: A história é, entre outras coisas, um inquérito quase no sentido policial do termo, com indícios, depoimentos e testemunhas. O depoimento oral não constitui necessariamente uma prova, mas pode ser uma boa contribuição para a busca da prova ou das provas (FRANK, 1999, p. 106).

Ao lado da análise das fontes documentais, os depoimentos de agentes da cena musical curitibana dos anos 70 serão de extrema importância. De um lado, músicos e produtores culturais, com seus anseios, seus projetos de vida e sua relação com a burocracia, já que o MAPA também era uma associação que possuía uma estrutura organizacional que demandava afazeres distintos – embora conexos – aos artísticos. De outro os gestores públicos, com sua visão administrativa “inovadora” e, obviamente, detentora dos recursos financeiros e de infraestrutura disponíveis na Curitiba da época.

resultantes, são de suma importância para construirmos um panorama sobre um lado da história curitibana ainda muito pouco explorado pela historiografia. A exceção de artigos e pesquisas acadêmicas publicadas recentemente sobre o tema16, pouco se sabe desse cenário. É nesse contexto que procederemos ao estudo das fontes, procurando decifrar os enigmas que nos propõe as ações políticas, musicais e jornalísticas na década de 70. Por último, vale lembrar que nossa pesquisa não negligenciou a importância de outras vertentes musicais. A música erudita, a música folclórica, a música regional ou sertaneja são extremamente relevantes para uma construção mais fiel desse passado. Entretanto, deixamos essa tarefa para projetos futuros que, imbuídos do ideal de entender a participação da produção musical curitibana num contexto nacional, almejarem avaliar suas ações, suas limitações e, é claro, suas realizações, que foram muitas.

Assim, sabendo que Os depoimentos não só auxiliam na reconstrução de organogramas administrativos e no esclarecimento das funções dos diferentes órgãos, como permitem novas análises sobre suas relações e sobre os processos de tomada de decisão. Possibilitam também refletir sobre tremas como o esprit de corps dos funcionários, permanências e transformações em seus conflitos geracionais, em seus projetos e representações. Permitem em suma que a descrição das grandes estruturas dê lugar a uma história dos homens. (FERREIRA, 1994, p. 7 e 8),

as fontes orais serão ferramentas-chave para um entendimento das ações, conquistas e limitações resultantes de um complexo de relações entre os agentes da musica popular, os gestores do poder público local em suas várias instâncias e a imprensa, suas inter-relações num contexto regional, onde se inserem principalmente os órgãos públicos estaduais e federais, e suas conseqüências para a visibilidade da produção da música popular curitibana em âmbito local, estadual e nacional, num período de consolidação da indústria cultural no Brasil. Entendemos que o estudo das políticas públicas para cultura e as relações da produção artística local com essas políticas bem como as conseqüências, êxitos e fracassos delas

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Referimo-nos às publicações dos professores Marcelo Sandmann, do Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculos acerca de aspectos da produção musical dos anos 90; e Dennison de Oliveira, do Departamento de História, abordando o suposto sucesso do planejamento urbano implementado em Curitiba nos anos 60 e 70, ambos do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. (op. cit.)

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Música e identidade dekassegui Beatriz Senoi Ilari Universidade Federal do Paraná Resumo O movimento Dekassegui – que em japonês significa ‘movimento daqueles que trabalham longe de casa’ – se tornou popularmente conhecido em 1990, quando a lei de imigração japonesa permitiu a contratação de nipo-descendentes para trabalhar em empresas japonesas. Apesar de haver um grande número de trabalhadores brasileiros residindo atualmente no Japão, a adaptação à terra do sol nascente continua sendo difícil para a maioria dos nipo-brasileiros, e o idioma japonês a primeira barreira. Assim que chegam ao Japão, muitos nipo-brasileiros passam por uma profunda crise de identidade já que possuem características físicas “japonesas”, mas são, culturalmente falando, uma mistura de japonês e brasileiro. Tais conflitos, aliados às dificuldades inerentes a qualquer processo migratório, representam um desafio para a sociedade japonesa. Considerando que a música exerce um papel importante na identidade, é importante compreender seu papel na construção (e reconstrução) das identidades pessoal, cultural e nacional dos nipobrasileiros residentes no Japão. O presente estudo foi baseado em observações de campo e entrevistas realizadas com crianças e adultos nas municipalidades de Kariya-Shi e Homi-Danchi (província de Aichi-Ken) em julho e agosto de 2005, com financiamento da Fundação Japão. Os resultados sugerem que o uso da música por dekasseguis está diretamente ligado a questões identitárias. Enquanto a música brasileira pareceu servir como forma de preservação da identidade brasileira, a música japonesa esteve presente no cotidiano dos dekasseguis somente quando foi percebida como sendo semelhante à música brasileira ou quando foi vista como via de acesso à vida japonesa. Implicações do presente estudo para as áreas de psicologia social e relações internacionais são apresentadas ao final do texto. Palavras-chave: Dekassegui, música, identidade, relações internacionais Brasil-Japão

Em 2008, o Brasil comemora o centenário da imigração japonesa no país. Foi exatamente em 18 de junho de 1908 que o navio japonês Kasato Maru atracou no porto de Santos com 781 imigrantes, dando origem a uma longa e rica história de relações internacionais entre os dois paises (NINOMIYA, 2000; SATO, 2003). A década de 1990 foi particularmente importante para as relações Brasil-Japão. O Brasil vivia a ascensão e subseqüente crise da Era Collor, e atravessava um período de grave crise econômica, apresentando uma taxa altíssima de desemprego. Ao mesmo tempo, o Japão sofria uma grande crise de mão de obra em sua indústria, por possuir um índice elevado de mão de obra qualificada e sem interesse para o trabalho “braçal” pesado (HIGUCHI & TANNO, 2003; KAWAMURA, 2003). Foi exatamente nesta época que o país viu crescer exponencialmente o número de ofertas de empregos conhecidos por 3K1 (KITAGAWA, 1998; ROTH, 2002). Desprezados pelos japoneses, os anúncios começaram a atrair milhares de imigrantes ilegais. Com o intuito de regularizar a entrada de trabalhadores estrangeiros no país, o governo japonês aprovou um adendo à lei de imigração que permitia a 1

Kiken-kitsui-kitanai, ou, perigoso-pesado-sujo.

contratação de nipo-descendentes até a terceira geração para as empresas japonesas (KAWAMURA, 2003). Segundo HIGUCHI & TANNO (2003), a preferência por nipo-descendentes foi tanto racial quanto etnocultural. O imenso contingente de trabalhadores nipo-brasileiros rapidamente ficou conhecido como movimento dekassegui, ou, ‘movimento de pessoas que trabalham longe de casa’. Breve histórico do movimento dekassegui O movimento dekassegui é mais antigo do que se costuma pensar. Kitagawa (1998) considera quatro fases principais:

2



1964: Vinda de uma grande massa de trabalhadores de Okinawa ao Japão para trabalhar na construção do parque olímpico para os jogos de 1972;



1985: Supervalorização da moeda japonesa (o iene) no mercado internacional, o que gerou um aumento de 13.000 estrangeiros trabalhando ilegalmente no país;



1987: Início das intermediações, via agências de empregos2, das relações entre trabalhadores nipobrasileiros e empresas japonesas;

Também conhecidas como brokers.

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simpósio de pesquisa em música 2006 •

1990: Data da modificação da lei de imigração japonesa, que permitiu a entrada de milhares de trabalhadores nipo-descendentes (sobretudo brasileiros e peruanos) no Japão.

Segundo as estatísticas do Governo do Japão, há aproximadamente 360.000 nipobrasileiros trabalhando nas fábricas do país. Por esta razão, diversos pesquisadores têm investigado o movimento dekassegui e seu impacto sobre os indivíduos e sobre as sociedades japonesa e brasileira (CARIGNATTO, 2002; GALIMBERTTI, 2002; HIGUCHI & TANNO, 2003; KAWAMURA, 2003; KITAGAWA, 1998; MIYASAKA et al, 2002; ROTH, 2002). Mais recentemente, alguns estudos têm investigado o ajuste das famílias nipo-brasileiras ao estilo de vida japonês (veja KAWAMURA, 2003; LINGER, 1999). O que a maioria desses estudos sugere é que, apesar de haver um grande número de trabalhadores brasileiros residindo atualmente no Japão, a adaptação à terra do sol nascente continua sendo difícil para a maioria dos nipobrasileiros. Isso ocorre porque, ao cruzar fronteiras, o indivíduo carrega consigo traços étnicos, lingüísticos, religiosos e culturais (KITAGAWA, 1998), que têm um impacto direto sobre a identidade em pelo menos três níveis: nacional, cultural e pessoal. Definindo identidades Ainda que as nações sejam facilmente traçadas num mapa geográfico, o mesmo não ocorre quando o assunto é a identidade nacional ou a identidade cultural. De acordo com MurphyShigematsu (2004), a nacionalidade de um indivíduo não é mais que um artefato legal. Segundo Folkestad (2002), o conceito de nacionalidade é constituído a partir de um processo ‘de cima para baixo’ e pode ser compreendido como uma espécie de elo que mantém indivíduos de diferentes origens culturais e étnicas num mesmo grupo. Já a identidade cultural advém de um processo ‘de baixo para cima’ porque freqüentemente se baseia em manifestações que são bastante tradicionais, e, em muitos casos, mais antigas que muitos limites territoriais. Por esta razão, fica fácil compreender o porquê de muitas pessoas possuírem mais de uma identidade cultural (FOLKESTAD, 2002). E como não poderia deixar de ser, a identidade pessoal refere-se a atributos pessoais altamente idiossincráticos, tais como personalidade, traços físicos e intelectuais, entre outros (veja TARRANT et al, 2002). Assim que chegam ao Japão, muitos nipobrasileiros passam por uma profunda crise de

identidade, já que possuem características físicas japonesas3, mas são, culturalmente falando, uma mistura de japonês e brasileiro (LINGER, 1999; MIYASAKA et al, 2002; ROTH, 2002). Como sugere Sato (2003, p. 1), os dekasseguis são ‘japoneses aqui, brasileiros lá’. Tal conflito leva muitos dekasseguis a um questionamento profundo acerca de suas identidades nacional, cultural e pessoal. Mas como se definem a identidade japonesa e a identidade brasileira? Estas duas identidades podem mesmo co-existir? Murphy-Shigematsu (2004) argumenta que ser japonês não é nem uma questão biológica ou de nacionalidade, mas sim uma questão de experiência e de conhecimento cultural. Entretanto, sua visão contradiz todo o conceito de Nihonjinron – uma ideologia bastante controversa que enfatiza a homogeneidade japonesa e seu caráter singular em todos os aspectos da vida (KANNO, 2000). Para muitos seguidores desta ideologia, os japoneses que não se parecem japoneses são chamados de haafu4, muito embora tal descrição pouco tenha a ver com suas identidades (MURPHY-SHIGEMATSU, 2004). A definição de uma identidade japonesa é ainda mais difícil quando se consideram os indivíduos que têm ascendência japonesa, mas não possuem nacionalidade ou qualquer vivência cultural semelhante àquela dos japoneses que habitam o Japão (como é caso de muitos nipo-brasileiros). Em outras palavras, apesar de sua aparência monolítica, a identidade japonesa é muito mais multifacetada do que se costuma pensar (MURPHYSHIGEMATSU, 2004). No entanto, a tarefa se torna ainda mais árdua quando o assunto é a identidade brasileira. A história do Brasil contribuiu para criar um país mestiço, com grandes variações culturais e muitos contrastes (RIBEIRO, 1972/1994). Muitos antropólogos e historiadores têm escrito sobre o temperamento e a identidade dos brasileiros. Buarque de Hollanda (1936), por exemplo, descreve o brasileiro como sendo cordial; alguém que gosta de agradar a todo custo, e que não mede esforços para fazê-lo. Já Da Matta (2001) fala sobre o caráter malandro dos brasileiros, que são freqüentemente relapsos e preguiçosos no trabalho, apesar de serem ótimos amigos. É interessante notar, porém, que os nipobrasileiros nem sempre combinam com as definições supracitadas. No Brasil, são freqüentemente vistos como um grupo diferenciado de brasileiros, com identidades e manifestações 3

Entende-se por características físicas japonesas todos os atributos que nos fazem reconhecer um japonês como tal (os olhos puxados, o cabelo preto e a cor da pele, entre outros).

4

Haafu vem do inglês half.

42 culturais próprias, inclusive preferências e práticas musicais. Sobre música e identidade Na vida cotidiana, a música é freqüentemente usada para construir e expressar identidade (HARGREAVES et al, 2002). Preferências e gostos musicais servem para ilustrar valores pessoais e de grupos, atitudes e estratificação social (ILARI, 2006), e para indicar questões referentes à identidade em seus três níveis principais. Isso ocorre porque os gêneros e estilos musicais são passíveis de associações estereotípicas que, por sua vez, afetam a identidade em muitos níveis. Hammarlund (1990, apud FOLKESTAD, 2002), sugere que há muitas funções para a música que faz menção à nacionalidade, embora cada uma delas dependa de contextos sócio-culturais e de circunstâncias particulares, bem como das identidades étnicas e culturais dos indivíduos que participam das diferentes práticas musicais. Ou seja, a relação entre música e identidade nacional é bem mais complicada do que parece. Segundo Hargreaves et al (2002), é necessário fazer uma distinção entre identidade em música (ou identidade musical) e música na identidade. O presente estudo concentrou-se na segunda distinção, isto é, nos possíveis efeitos da música sobre a identidade. Especificamente, este estudo investigou o papel da música no processo de construção (e reconstrução) da identidade – nacional, cultural e pessoal – de crianças e adultos dekasseguis, residentes na província de Aichi-Ken, Japão. Discursos dekassegui: Coletando dados no Japão As longas horas de trabalho, bem como sua natureza árdua, dificultam o acesso do pesquisador ao universo do dekassegui (vide KAWAMURA, 2003). Para o presente estudo, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas e não-estruturadas, gravações em áudio e observações e anotações de campo em comunidades dekassegui nas cidades de KariyaShi e Homi-Danchi, durante o mês de julho de 2005. Entre os entrevistados estavam 11 crianças em idade-escolar e 7 adultos; a maioria residente no Japão por mais de uma década. Apenas 4 das 7 crianças eram nascidas no Japão. Os demais entrevistados (crianças e adultos) eram todos nascidos no Brasil e residiam em cidades de São Paulo, Paraná, Alagoas e Mato Grosso antes da vinda ao Japão. Todas as

SIMPEMUS3 crianças cursavam normalmente a escola e falavam japonês. Diferentemente, apenas 3 adultos declararam ser completamente fluentes em japonês. Com exceção de uma senhora que era professora de língua japonesa para estrangeiros, todos trabalhavam como dekasseguis, atuando em linhas de montagem de automóveis, fábricas de alimentos e na construção civil. A maioria das entrevistas ocorreu na residência dos participantes e durante um churrasco da comunidade nipo-brasileira de AichiKen, bem como em uma escola. Durante a entrevista, cada participante foi convidado a falar sobre sua vida antes e depois da chegada ao Japão, sua ocupação atual (e anterior, quando era o caso), seus conhecimentos musicais, suas habilidades com o idioma japonês, suas impressões de ambos os paises, e a expressão de sua identidade brasileira no Japão. O entrevistado também foi convidado a gravar uma canção de sua preferência, em português ou japonês. As questões centrais presente estudo foram:

que

nortearam

o

• Qual o papel da música na construção da identidade em crianças e adultos dekasseguis residentes no Japão? • Quais os repertórios que as crianças e adultos dekasseguis selecionam para ouvir no dia-a-dia? • Há alguma relação entre o repertório escolhido pelos dekasseguis e o processo de adaptação ao Japão? • De que maneira a fluência no idioma japonês influencia os comportamentos musicais dos dekasseguis? Os dados das entrevistas foram transcritos e analisados, através da categorização e ordenação de temas recorrentes (vide VAN MANEN, 1990). As anotações e fotografias tomadas no Japão e as fitas de DAT contendo as gravações das canções também foram usadas para enriquecer e validar os dados obtidos através das entrevistas. Japonês aqui, brasileiro lá: Mudança, adaptação e identidade Como é comum em histórias de imigrantes, a maioria dos entrevistados imigrou para o Japão por motivos financeiros, isto é, com o intuito de ganhar muito dinheiro para garantir um futuro melhor no Brasil. Apesar de a maioria dos adultos dekasseguis estar no Japão por mais de uma década, todos expressaram o desejo de retornar ao Brasil ‘algum dia’. Embora alguns entrevistados tenham feito

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simpósio de pesquisa em música 2006 referências a incertezas quanto ao futuro, nenhum dekassegui falou em imigrar permanentemente, e muitos falaram no desejo de serem enterrados no Brasil - talvez como uma última tentativa de preservação da brasilidade. Conforme sugeriu Murphy-Shigematsu (2004), a combinação entre cidadania estrangeira e residência permanente é algo pragmático; muitas pessoas que ficam longe de seus países por muito tempo compreendem o processo de naturalização ou residência permanente como uma ameaça à sua identidade nacional. Aparentemente, foi o que ocorreu aqui. Assim como em outras pesquisas (LINGER, 1999), as crianças entrevistadas para o presente estudo também tinham opiniões contraditórias acerca de um possível retorno ao Brasil. Somente aquelas que tinham nascido ou imigrado para o Japão antes dos 5 anos de idade e eram completamente fluentes em japonês expressaram o desejo de permanecer no país. Esse dado confirma que o conhecimento de uma língua continua sendo uma espécie de ‘passaporte’ para uma nova cultura e, possivelmente para uma nova identidade, conforme sugerem alguns estudos sobre bilinguismo (KANNO, 2000). Vale notar que todos os adolescentes e adultos dekassegui mencionaram suas dificuldades de adaptação no Japão, e que a falta de fluência no idioma japonês tornava tudo ainda mais difícil. Muitas crianças e adultos falaram a respeito da dificuldade em estabelecer relações cordiais no Japão, não apenas com os japoneses, mas, sobretudo, com seus compatriotas (vide MEIHY, 1998). Segundo Abbey (2002), a identidade do imigrante está freqüentemente situada num cruzamento de culturas, o que gera ambigüidades tanto em relação à cultura do ‘novo país’ quanto à cultura de origem. Em sua dissertação, Saito (2003, p. 64) registrou uma fala muito presente no discurso dos dekassegui entrevistados para este estudo: A primeira coisa que a gente aprende aqui no Japão é que somos brasileiros. A segunda é odiar todo e qualquer brasileiro que vive aqui.

De acordo com alguns entrevistados, a maioria dos brasileiros ‘muda completamente’ de identidade depois que chega ao Japão. Segundo eles, talvez isso ocorra por conta do isolamento, das dificuldades pessoais ou da aspereza da vida num país estrangeiro. Entretanto, a explicação pode estar mais relacionada com a noção de ‘homem cordial’

proposta por Buarque de Hollanda (1936), já que, nem sempre é fácil ou possível ser cordial em momentos difíceis. Enquanto no Brasil o dekassegui pode relaxar no trabalho ou em casa, no Japão isso não é possível já que não há familiares ou amigos que possam ampará-lo em momentos difíceis, o que provavelmente o torna mais retraído e competitivo, e possivelmente menos relaxado e confiável. O famoso ‘jeitinho brasileiro’ discutido por DaMatta (2001) parece não encontrar muitos espaços no âmbito da vida cotidiana no Japão. Negociando identidades sertanejo, enka e axé

e

gêneros

musicais:

No entanto, um aspecto do jeitinho brasileiro parece se manter quase intacto no Japão: o jeitinho musical. A música foi citada, tanto pelas crianças quanto pelos adultos, como forma de conforto e pertencimento durante o interminável período de adaptação à terra do sol nascente. Isso ficou especialmente evidente nos discursos dos adultos, conforme as palavras de uma das entrevistadas: Assim que eu cheguei no Japão, eu decidi que iria ouvir muita música japonesa – para ver se eu conseguiria aprender o japonês e conhecer a música daqui, para curtir com meus ‘futuros amigos’ japoneses. Mas depois de um tempo, eu desisti. Era muito difícil cantar numa língua que eu não compreendia e, além disso, eu comecei a ter saudade de tudo e de todos do Brasil. Foi aí que eu comecei a assistir ao canal brasileiro [TV a cabo], a ouvir rádio brasileira na internet e a me enturmar somente com brasileiros. Eu disse para mim mesma: - ‘Por que eu deveria tentar cantar uma canção japonesa? Nenhum dos meus colegas de trabalho [japoneses] vai me convidar para uma festa mesmo!’

Todos os entrevistados disseram cantar ou ouvir música brasileira como forma de permanecer ‘mais perto’ do Brasil, e para manter suas identidades brasileiras – individualmente ou em grupos. De acordo com eles, a música brasileira sempre acompanha festas e churrascos da comunidade, bem como momentos de descanso e lazer em casa. Muitos gêneros musicais foram mencionados, mas o gênero sertanejo despontou como o favorito dos entrevistados. Nos grandes centros urbanos do sudeste e sul do Brasil, o gênero sertanejo é freqüentemente associado a pessoas de origem humilde que migraram do campo para a cidade. A música sertaneja também está bastante associada a pessoas sentimentais (vide ILARI, 2006). Considerando que grande parte dos entrevistados provinha de grandes centros urbanos do sudeste e sul do Brasil, a preferência pelo gênero sertanejo

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SIMPEMUS3

pode oferecer pistas acerca dos estados psicológicos e possivelmente, das condições sócio-econômicas dos participantes. Segundo Higuchi e Tanno (2003), o perfil sócio-econômico dos dekassegui vem mudando consideravelmente nas últimas décadas, com um contingente maior de pessoas de classes mais desfavorecidas buscando por trabalho no Japão. É interessante notar que a maioria dos adultos que citou o gênero sertanejo como sendo o seu favorito, falou também de sua preferência por enka5, argumentando serem gêneros ‘praticamente idênticos’. Como disse um dos entrevistados: Antes de vir para o Japão eu detestava enka porque eu achava muito cafona. Eu detestava quando eu ia aos matsuris [festivais japoneses] na comunidade nikkei6 e todo mundo ficava cantando. Eu achava meio ridículo. Como sou um grande fã do Amado Batista e do Zezé de Camargo e Luciano, trouxe todos os meus CDs deles comigo, e costumava ouvir o tempo todo. Depois que eu aprendi algumas palavras em japonês e comecei a ir aos karaokês com meus colegas da construção, eu comecei a perceber que enka é muito parecido com sertanejo. Então eu escuto de vez em quando. Eu ainda prefiro o sertanejo do Brasil, mas enka também é bom!

Além de sertanejo e enka, outros gêneros musicais foram citados pelos entrevistados. Porém, muitos deles encontravam-se defasados em relação às ‘paradas de sucesso’ da atualidade. Por exemplo, axé foi um gênero altamente citado pelos participantes, e Daniela Mercury foi citada como sendo sua principal representante; nenhum participante citou nomes de artistas da atualidade. É pouco provável que tal fato esteja relacionado ao acesso aos recursos midiáticos, já que todos os entrevistados possuíam TV brasileira (canal a cabo com a programação atual da Rede Globo) e computador com internet. Tal fato pode estar mais relacionado ao trabalho excessivo de grande parte dos entrevistados, que passam muito tempo no interior de fábricas ou na construção civil e têm pouco tempo livre ou interesse para explorar novos gêneros musicais. Contudo, a explicação mais plausível pode residir no 5

Enka é uma balada sentimental japonesa, muito popular no Japão e no Brasil, inclusive em versões cover (YANNO, 2005). Uma característica do gênero é a constante repetição de motivos melódicos, além da hiperexpressividade vocal.

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Nipo-brasileira.

‘deslocamento temporal’, que acompanha o cotidiano de muitos imigrantes. A idéia de deslocamento temporal vai de encontro com os estudos que sugerem uma mudança gradativa (e muitas vezes drástica) na percepção que os imigrantes têm de suas culturas e países de origem (vide BAR-YOSEF, 1968; HOLLERAN, 2003; RUMBAUT, 1997). Muitas vezes, as percepções que o imigrante passa a ter de sua terra natal tornamse dicotômicas (idílicas ou detestáveis). Para se sentir ‘em casa’, alguns entrevistados descreveram a necessidade de reviver – de alguma maneira – situações e eventos passados, inclusive de natureza musical. Para eles, ouvir canções do passado constituía-se muitas vezes como uma maneira de voltar no tempo, e manter suas ‘identidades antigas’. A música pareceu prover ou até mesmo facilitar o surgimento de uma zona de conforto, através da qual os dekasseguis ‘podiam ser quem de fato eram’ – sem restrições. Em busca de uma identidade musical brasileira: funções da música nacional e estereótipos Muitos dekasseguis que tinham algum envolvimento na comunidade japonesa, também descreveram usos diversos da música, que variavam de acordo com seus acompanhantes. Entre brasileiros, eles se sentiam livres para explorar seus estilos favoritos. Entretanto, na presença de colegas japoneses, alguns relataram uma preferência por estilos que fossem mais estereotípicos, como o samba, a bossa-nova, axés e outros ritmos/canções sugestivos de movimentos corporais sensuais (como no caso da canção ‘Na boquinha da garrafa’ do grupo É o tchan). Este resultado está em sincronia com a idéia de duas funções para a música nacional em território estrangeiro: emblemática e catalítica (vide HAMMARLUND, 1990 apud FOLKESTAD, 2002). Enquanto a função emblemática da música está direcionada para fora, isto é, para imprimir idéias (e estereótipos) nacionais para aqueles que não pertencem àquela cultura, a função catalítica da música serve para produzir uma sensação de pertencimento de um indivíduo ou grupo de indivíduos a uma nação. Ambas as funções apareceram no contexto da presente pesquisa, mas foi principalmente quando a música pareceu exercer uma função emblemática que emergiram diversos estereótipos do Brasil e dos brasileiros. A criação e o reforço de tais estereótipos parecem seguir um modelo de causalidade circular ou retroalimentação (SOARES & PEREIRA, 2005), conforme ilustrado na figura 1:

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simpósio de pesquisa em música 2006

musical em casa, já que as crianças não eram nascidas na época em que estas canções eram populares. É bem provável que as crianças tenham aprendido tais canções com seus pais e parentes próximos que, possivelmente, usavam a música como forma de acalmar a saudade e mantê-las mais próximas do Brasil ou como forma de imprimir idéias e sentimentos nacionais nas identidades de seus filhos. Comentários finais De maneira geral, o presente estudo sugere que a música exerce um papel importante na manutenção da identidade brasileira dos dekasseguis residentes no Japão. Além de criar uma zona de conforto, a música constitui uma importante forma de expressão, através da qual o dekassegui expressa sua brasilidade. Entretanto, é interessante notar que, enquanto a música brasileira serve para preservar a identidade brasileira do dekassegui, a música japonesa só aparenta ser incorporada à rotina por aqueles que a concebem como uma rota de acesso à vida e à cultura japonesas (veja DeFERRANTI, 2002). Figura 1. Modelo de causalidade circular dos estereótipos de música nacional.

Ainda em relação à música e à identidade nacional, foi interessante notar que todos os adultos optaram por cantar em português. Somente uma criança se recusou a cantar; todas as demais cantaram em português e a maioria cantou também uma canção em japonês. A análise do repertório documentado revelou algumas surpresas. Com relação à música japonesa, as crianças que se definiram como sendo completamente bilíngües cantaram canções e vinhetas de abertura de animés7; as demais cantaram canções aprendidas na escola. Novamente, há uma indicação da importância do idioma no acesso à música (e, portanto, cultura), com as crianças bilíngües encontrando-se mais aculturadas aos bens culturais comuns à infância japonesa da atualidade (vide KANNO, 2000). Também vale notar que, ao registrar uma canção em português, vários adultos e crianças cantaram canções patrióticas de épocas remotas, como Eu te amo meu Brasil e Este é um país que vai prá frente, que remontam ao governo militar (19641984). Meihy (1998) encontrou resultados semelhantes em sua pesquisa sobre os brasileiros residentes em Nova Iorque. Tais escolhas podem estar diretamente relacionadas ao ambiente 7

Animé é um tipo de desenho animado japonês, muito apreciado pelas crianças japonesas.

Para muitos dekasseguis, a incorporação da música japonesa aos hábitos musicais cotidianos parece representar um passo na direção da adaptação ao Japão. Esses indivíduos geralmente apresentam expectativas e pensamentos mais positivos em relação ao Japão que seus compatriotas, e vislumbram-se como membros da comunidade local, o que, de acordo com Chavez (1994), exerce uma influência enorme sobre o sucesso de sua adaptação e fixação no país. Porém, apesar da ascendência japonesa, a maioria dos dekassegui ainda passa por um grande choque cultural quando chega ao Japão (veja LINGER, 1999). Talvez por falta de informações atualizadas, alguns viajam para o país esperando encontrar a terra que seus ancestrais deixaram para trás – um Japão rural e estereotipado (e com alguns aparatos tecnológicos) – que muitas vezes tem mais a ver com a nostalgia de seus parentes do que com o país em si. Outros esperam encontram no Japão uma vida idílica, tanto em termos da tranqüilidade cotidiana quanto em termos econômicos. No entanto, o Japão ‘ideal’ é rapidamente substituído por um Japão ‘real’ – com todos os seus aspectos positivos e negativos. Esse choque, que é ao mesmo tempo um choque de expectativas e um choque cultural, cria um deslocamento temporal que tem um impacto direto sobre a identidade em seus diversos níveis. O presente estudo reforça a idéia de que a questão identitária é latente no caso dos

46 dekassegui. Como ficou dito, os dekassegui são ‘japoneses aqui e brasileiros lá’. Lidar com esta ‘mudança’ de identidade é uma tarefa difícil, sobretudo porque ela implica no reconhecimento do fato de que, em seu próprio país de origem, os nipo-brasileiros são freqüentemente considerados como um grupo à parte e que se encontra numa intersecção identitária entre brasileiro e japonês. Como não poderia deixar de ser, isso se reflete também na indústria cultural, já que há muitos ídolos dekassegui, como o cantor brasileiro Joe Hirata, que permanecem pouco conhecidos dos brasileiros e dos japoneses, mas que são idolatrados pela comunidade nikkei, aqui e lá. Como sugere Kitagawa (1998), embora o conceito de fronteira/borda esteja se diluindo a cada dia, as bordas étnicas e culturais que existem entre os indivíduos não desaparecem assim tão facilmente. Por ser tão importante na vida diária, o conhecimento da língua é certamente um passaporte para a adaptação do indivíduo e reconstrução de sua identidade em um novo país, já que é através da língua que muitas trocas simbólicas vão ocorrer. Além disso, em tempos de globalização e de constantes migrações humanas, o estudo da identidade em seus três níveis é demasiado importante, sobretudo se considerarmos suas implicações para as questões de imigração e cidadania. Castles (2004) nos provoca sugerindo uma

SIMPEMUS3 reconceituação do termo cidadania. Segundo ele, isso só é possível se estendermos nossos pensamentos para além da idéia de multiculturalismo8, chegando ao transnacionalismo9, que sugere uma ênfase na ação humana, vindo a ‘permitir’, inclusive, a coexistência de múltiplas identidades em um único indivíduo. Obviamente, a compreensão do mundo através de um viés transnacional tem um impacto direto sobre os conceitos de naturalização e cidadania. Por se tratar de uma forma de arte bastante democrática, a música pode servir para fomentar o pensamento transnacional e, possivelmente, ajudar os dekasseguis (e muitos outros migrantes e imigrantes pelo mundo afora), no infindável processo de negociação, construção e reconstrução de suas identidades.

______________________ 8

Multiculturalismo – a idéia de que nações ou estados homogêneos e monoculturais não existem.

9

Transnacionalismo – a idéia de que as diferenças só podem ser compreendidas se ultrapassarmos as barreiras territoriais ou de nação.

Agradecimentos O presente estudo faz parte de um projeto de pesquisa intitulado Documenting songs and chants of Japanese and Japanese-Brazilian children, financiado pela Fundação Japão (órgão cultural do governo japonês), que me concedeu o ‘Japan Foundation Fellowship 2005’, oferecendo todas as condições necessárias para a realização da pesquisa de campo no Japão, entre julho e agosto de 2005. Sou grata à Dra. Yoko Minami (Universidade Kinjo-Gakuin de Nagoya), Kimi Kodama (Escola Elementar de Homi-Danchi), Emi Antunes (Kariya-Shi) e Luciana Kimie Eguti (Birdo Studio) pelo auxílio durante a coleta de dados. Agradeço ainda ao Prof. David J. Hargreaves (Universidade de Surrey-Roehampton, Inglaterra) por seus inúmeros comentários a uma versão preliminar deste artigo.

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simpósio de pesquisa em música 2006

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Globalization and Brazilian jazz artists Afonso Cláudio Segundo de Figueiredo Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Abstract The 90’s introduced to the world the reality of globalization where technologies like internet and digital recordings became part of any mucian’s life musician, regardless the type of music created. There were drastic changes in the way artists presented, sold and advertised their music. Almost as important was the hope that, alongside with those changes, new opportunities would be presented for jazz artists who were traditionally left out of the standard outlets for musical production. It was a time for expectations of renewed. In Brazil, famous for its music, mostly non-classical, musicians were excited because globalization could provide a chance to bring new audiences to their music; a process that started in the 60’s but had come to a stall in the 80’s. Whichever these expectations were, globalization worked in the opposite way for Brazilian jazz musicians. Those artists saw their opportunities shrink dramatically not only inside their own country but specially abroad, where international jazz festivals started to fill their roasters with Brazilian pop singers being touted as “jazz artists” when, strangely enough, they try to stay away from the label jazz when performing in Brazil. What could be done to bring the real Brazilian Jazz once again to Europe?

Introduction Brazilian music is known and has been gaining praise around the western world, especially since the second half of the last century. In the late 50’s, with the huge success of bossa nova the music of Brazil almost became present in the main venues such as movies, music festivals and record stores worldwide. Since then, Brazilian music has been associated with jazz and tunes like Desafinado, Girl from Ipanema and Quiet Nights (Corcovado), and as it is now, these songs have become part of the main core of the jazz standard repertoire. The widespread presence in the 60’s and 70’s of bossa nova created a new interest in the music of a land that even though a bit far away could offer new possibilities for the jazz audiences around the globe. In that period, when globalization was a word not present in anybody’s mind and the music industry executives were still mesmerized by the power that rock and pop music could have in their sales, the main attraction that Brazilian music offered was in its musical elements such as harmony, melody, and rhythm making an immediate connection with jazz. Songs would work better in instrumental versions whereas once only someone who could understand Portuguese would understand. Artists like Egberto Gismonti, Hermeto Paschoal, and fusion group Azimuth were regular features in jazz festivals worldwide but specially in Europe. From the mid 80’s on the situation changed and not only Brazilian jazz music but Brazilian music as a whole, although still associated with jazz,

moved away from the Brazilian jazz artists to focus (only), (this time) for commercial reasons, on pop artists with reasonable success in Brazil. Much has been discussed among Brazilian jazz musicians about the reasons why, instead of their music, pop music and pop artists are now presented as jazz attractions in jazz festivals, rather than Brazilian pop artists being shown in pop venues and Brazilian jazz artists appearing in jazz festivals. The actual reason is probably the most obvious, the language barrier. Because Portuguese – the language we speak and of course, the language that the local pop artists use for their singing – is not well spread or spoken fluently in many countries in Europe, it will be a bit difficult to sell Brazilian singers to European pop audiences. For a jazz audience, used to more subtle artistic messages, that barrier would not be impossible to overcome. But why forget the Brazilian jazz artists altogether? Well, that is what we will attempt to discuss here. Brazilian Jazz Scene First of all, we need to understand that the world Brazilian jazz is not used to describe the music produced in Brazil that shares roots with the jazz music worldwide. Brazilian jazz inside the country goes with the label of música instrumental – in English, instrumental music. The first question any foreigner will ask is: and what about vocal jazz, or when the music, although still jazz, is sung? Well, we do not have plenty of that and most of all; there are commercial reasons that will be discussed later on that can illustrate more on that specific case. But for our purpose here, Brazilian jazz is

simpósio de pesquisa em música 2006 mainly instrumental music or, as the expression might imply, the music created by instrumentalists. That music is not only closely associated with jazz but also has some of the basic structures of jazz like rhythm, and improvisation. It is a musical art form, similarly to jazz itself that except for short periods of time, when it caught major media attention for different reasons, relies on alternative means to be produced, promoted, and performed. We can say that the local jazz scene in Brazil offered three main outlets for the production of Brazilian jazz musicians. The first is the local club scene that, although still available, it has not only declined in the last ten years or so but also provides very low income for musicians. The appeal to perform in clubs is only artistic freedom and a place for meeting and getting together with others fellow musicians. The second outlet would be the opportunity to perform in music festivals around the country. Even though there are not many festivals where the main or only focus is only jazz, we can say that most festivals will have in their roster, al least a few Brazilian jazz artists. However, these festivals rely mostly on corporate sponsorships or government support and many times the support can be withdrawn without further explanation. Festivals happen every year but most of them do not last for many editions, whatever the reasons for that may be. The third and most impressive outlet for the production of local jazz artists is in the form of an effervescent independent CD production. Here, the advent of digital media for recording and reproducing music has allowed musicians to record and sell, despite lacking efficient distribution, their music. Having a CD out is, for the Brazilian jazz musician, a chance to be heard and let his/her music go beyond borders. The CD makes their music more respectable and also create a situation so where their music will not die when the performance ends or performance opportunities shrink. It is reasonable to believe that more than 90% of the Brazilian jazz music available on CD is independent endeavors once we do not have a strong record company with its focus on jazz. Even the major jazz companies that had jazz divisions during the 60’s, 70’s and part of the 80’s simply closed those divisions due to lack of, reasonable profits, according to their view. The actual numbers of the independent music production in Brazil is not known because research made on the subject were funded by the major labels and those companies, for obvious reasons, decided to simply ignore the

49 subject of independent production. The last research made public credited to instrumental music less than 1% of the market for recording products. Globalization and Major Record Labels in Brazil Most of recording companies present in Brazilian marketplace are multi-nationals like EMI, PolyGram, Warner, Sony, etc. They are responsible for the core of the music recorded since the first half of last century. These companies had for many years divisions dedicated to instrumental music and such artists like, for example, Egberto Gismonti (signed for years with EMI), Hermeto Paschoal (signed with Warner) and Victor Assis Brasil (signed also with EMI) were recorded and released by the majors. It all disappeared in the late 80’s when the divisions dedicated to that music were put to rest. During the period the Brazilian jazz artists had support from the majors they had good distribution and promoting. These artists had opportunities to play inside and outside the country and Brazilian jazz was perceived, around the globe, mainly as an instrumental music. Few singers like Milton Nascimento, who had a strong connection with the jazz world, would do artistic projects in the jazz style. Milton Nascimento for example, released a record with Wayne Shorter where Brazilian and American musicians shared the chairs rather evenly. Around that time, it was fairly common for Europeans promoters to organize and bring to tours in Europe artists like Pau Brasil – a jazz group from São Paulo – Egberto Gismonti, Wagner Tiso, Hermeto Paschoal and some others. Every year a hand full of Brazilian jazz artists would come to Europe and do a series of concerts, some of them in jazz festivals. The situation would change completely in the 90’s when possibly, encouraged by the growing interest in the new trend called world music, the major record companies in Brazil started to promote Brazilian pop music around world in a more aggressive way. The music from Brazil is a bit too present and already fairly known to be labeled world music, a term applied to more exotic forms of music. Because its historic association with the jazz audience, the preferred way to promote and present Brazilian pop music around the world chosen was to labeled it as jazz and bring those artists to jazz festivals. It is important to consider that jazz festivals themselves had already become multicultural events and basically anything nowadays can be presented in a jazz festival. The marketing strategy was very simple with European jazz promoters and record companies working together with Brazilian based branches of multi-

50 national recording companies. CDs of Brazilian pop artists are being released in Europe by their companies’ affiliates – most of the times as jazz – while the subsidiaries in Brazil would cover some of the traveling expenses like plane tickets and even in some cases, housing, and musician’s dues making those artists very attractive in the cost-benefit column. Gradually even promoters that used to bring Brazilian jazz artists to Europe to play in the continent started to shift and in a short period of time the interest was only on singers, blocking the way for a whole new generation of jazz artists from Brazil to play in European jazz festivals. The situation got to a point that a famous jazz drummer in Brazil who was trying to book gigs in Europe for his band when approached the local representative of one of the agents that book Brazilian acts received a reply that said “Brazilian jazz has to have vocals.” Strangely enough this was the same agent who brought Hermeto Paschoal and Egberto Gismonti to Europe in the seventies. Apparently, he had a change of heart. The Brazilian jazz musician situation From the view point of a Brazilian jazz musician the most frustrating aspect of this situation is to see that pop artists are perceived and labeled as jazz musicians worldwide, while inside their own country they go to incredible lengths to dissociate themselves from anything even remotely related to jazz. Sometimes even explicitly declaring in interviews their completely dislike for jazz music. So, in Brazil they are pop artists but abroad they are jazz musicians, how can that be? For a singer to be perceived as a jazz singer means less opportunity in performance venues and certainly almost no chance to land a fat recording contract. There are some singers that present themselves as jazz acts but in that case they will face the same situation as any jazz musician, meaning less opportunities and basically total independent production, promotion, and managing of their art. For a Brazilian jazz musician, singer or instrumentalist, who finance independently his/her CD and has to be responsible for their own booking, seeing that the same people that despise jazz in their country having a chance to perform in jazz festivals abroad and being presented as jazz musicians is a terrible fact to

SIMPEMUS3 simply disregard, but what can they do? Basically nothing. When I sent a few friends an email asking if they want to send me a CD for me illustrate my presentation, I was surprised to be contacted by people that I had never had even met expressing sympathy and saying they wanted to be part of it. I had not called anyone, but my email spread as people forwarded it to each other traveled. People called me on the phone and even some Brazilian jazz musicians living and working abroad wanted to pitch in. Unfortunately, I had to travel light and just chose just CDs that I could assemble in few days to bring in with me. Globalization and Brazilian jazz music At first globalization seemed to be, for a Brazilian jazz musician, a more democratic approach to promote and sell their music, but what really happened is that globalization changed the perception of the Brazilian jazz music to something not even close to jazz. If pop artists are now jazz musicians, what is, or how, an actual jazz musician will be perceived? The answer is…, well, we do not need to answer because they are not perceived at all. There has been few Brazilian Jazz artists to manage somehow to play in few venues in Europe but in most cases, they had to cover their own expenses for traveling and touring can be a very gruesome experience due to lack of a local support. To change that we might have to start using the globalization to do what it promised to do in the first place, create a democratic venue to let people who are not heard to develop a voice. The jazz community is by definition a minority, sharing a small percentage of the global music market. So we need to connect this scattered minority to make it a collective effort. Although jazz is also by definition an open art form that survived and developed through the decades by accepting everyone with his/her own style and cultural background, making that probably the reason why jazz is everywhere. By having a definition of jazz that will not created an exclusion, but will rather draw a clearer line between pop and jazz, maybe we can bring to the scene artists that are, right now, truly excluded.

Juventude e seus referenciais rítmico-melódicos: estilos musicais Rosemyriam Cunha Faculdade de Artes do Paraná Resumo As experiências sonoras, rítmicas e melódicas que as pessoas vivenciam no decorrer de suas trocas sociais podem se configurar em preferências que irão se circunscrever dentro de estilos musicais. Tais estilos não se limitam apenas ao tipo de música que as pessoas gostam de escutar. Parece que a influência ultrapassa os limites das estruturas musicais abrangendo a construção de valores, as posturas perante o mundo, as maneiras de adornar o corpo, de vestir-se e de situar-se corporalmente no mundo. Essa escolha, porém, não é arbitrária. Ela se constrói de acordo com os elementos sócio-culturais e afetivos com os quais a pessoa interage no decorrer de sua vida. Em se tratando de jovens, estes buscam referenciais para a formação de seus repertórios sonoro-afetivo-culturais nos ambientes onde transitam. O objetivo desse trabalho foi o de conhecer os estilos musicais preferidos dos jovens e o significado do repertório musical por meio do qual eles expressam esses estilos. Como resultado, encontramos que o grupo de rapazes estudado escolheu três estilos musicais. As letras das canções que se inserem nos estilos aproximam-se da descrição da realidade em que vivem, trazem elementos para o entendimento de contradições emocionais e ainda servem como base rítmica para a expressão de sonoridades coletivas. Palavras chave: estilo musical, jovens, musicoterapia

Este trabalho nasceu do pressuposto de que a música com seus componentes ritmo, intensidade e poesia, poderia se constituir em um meio de expressão dos significados e sentidos que as pessoas constroem no decorrer se sua trajetória histórica. Considerando a música como um elemento de expressão social e cultural do qual a juventude se apropria para falar de si e do mundo em que vive, decidiu-se estudar o universo dos jovens e suas sonoridades. O objetivo que norteou essa pesquisa foi o de conhecer os estilos musicais preferidos desses jovens e o significado do repertório musical por meio do qual eles concretizam esses estilos. Para tanto foi planejado um processo científico de musicoterapia que, de acordo com Bruscia (2000), consta de um processo musicoterapêutico com início e fim pré-determinados durante o qual o grupo interage por meio de atividades musicias e o musicoterapeuta colhe os dados para seu estudo. Vamos entender musicoterapia como a utilização científica da linguagem musical com o objetivo de “aumentar as possibilidades de ação” da pessoa no âmbito individual como social (RUUD, 1998). Os dados dessa pesquisa foram coletados junto a um grupo de 18 rapazes, cuja idade variava entre 13 e 17 anos. Esses jovens eram egressos da rua e participavam de um programa de sócio-educativo. Todos eles moravam com suas famílias e pertenciam a um nível sócioeconômico baixo. A coleta foi efetivada por meio da investigação-ação num processo que somou 18 encon-

tros. Boggdan e Biklen (1994) propõem esse tipo de intervenção defendendo uma postura ativa do pesquisador que se envolve ativamente na ação das pessoas traçando os objetivos de seu estudo. O primeiro encontro foi destinado a entrevistas orientadas para o conhecimento das preferências musicais e das histórias das vidas dos rapazes. Os encontros subseqüentes, com freqüência de duas vezes por semana, durando em média uma hora e meia, se constituíram em atividades criativas que tinham por base intervenções e técnicas musicoterapêuticas. A expectativa era a de estimular da expressão musical dos rapazes de forma que eles se expressassem em atividades dirigidas à percussão de instrumentos musicais, audição de músicas gravadas e à expressão e interpretação de canções. Os encontros se realizavam na sede do programa. Dois estagiários do curso de musicoterapia colaboraram na coleta de dados e o educador dos jovens permanecia na sala no decorrer dos encontros. As sugestões e pedidos musicais dos jovens, sua expressões sonoras e rítmicas, seus depoimentos foram acatados e gravados em fitas K7 e posteriormente transcritos. Todas as ações produzidas durante os encontros tiveram por base os conteúdos e interesses revelados pelo grupo. O grupo e a musicoterapeuta se reuniam ao redor do material preparado para o trabalho: aparelho de som, instrumentos musicais, letras de canções e CDs. Alí tinham a oportunidade de tocar, cantar e sugerir suas músicas. Muitas vezes o pedido era o de ouvir. Recostavam-se nos tatames ao chão, ouviam as canções e logo em seguida

52 refletíamos sobre a música e os temas que recordavam mediante a ação da escuta. Suas solicitações de músicas e CDs foram atendidas. A cada sessão, novos pedidos eram anotados e trazidos no encontro seguinte. Assim os rapazes puderam construir e se apropriar de um repertório de musical que foi se formando por meio de suas próprias sugestões. Ao requisitar músicas específicas, cantores preferidos, conjuntos de seu interesse, o grupo revelou sua vivência musical. Também revelaram referências e escolhas por meio das canções que interpretavam durante os encontros e das expressões verbais que realizaram. Todas as formas de expressão concretas objetivadas no decorrer do processo foram consideradas como dados relevantes para esta pesquisa como ritmos, intensidades, letras de músicas, relatos orais e improvisações musicais. Os dados foram classificados em categorias de codificações, analisados e interpretados sob o apoio de teóricos da psicologia e da musicoterapia. Para a análise dos discursos sonoros foi utilizada a perspectiva da reconstrução da emoção estética proposta por Vygotsky (1999), indicando um estudo dos elementos concretos e da estrutura que constitui a própria expressão, passando para a análise funcional dos mesmos, reconstruindo assim a emoção estética. Também Bauer e Gaskell (2002) apontaram os passos para a análise das manifestações musicais. Esses autores oferecem um enfoque que apresenta a música e o ruído como dados sociais quando relacionados ao contexto social onde são produzidos e assimilados. Nesse sentido, a linguagem sonora é considerada um indicador cultural que reflete os valores e o mundo vivencial daqueles que a produzem. Os autores recomendam que, para fins de análise, os eventos sonoros e suas dimensões de ritmo, melodia e sonoridades sejam registrados e transcritos e, por fim, relacionados ao grupo social que a produz (p. 366). Nos primeiros encontros o grupo deixou claro, por meio de nove solicitações para o rap, quatro para o samba e sete para o pop rock, os estilos musicais que costumavam vivenciar. Esses territórios musicais previamente delimitados nos primeiros encontros foram se confirmando no decorrer do processo. Dentre todo o conjunto de músicas citadas e interpretadas no decorrer da pesquisa, três raps, três rocks e dois sambas permaneceram presentes em todos os encontros. Canções de outros estilos entraram e saíram de

SIMPEMUS3 cena deixando de ser mencionadas ou requisitadas. Em meio a protestos e desqualificações manifestadas por adeptos de um ou outro estilo, ao ter que escutar elementos não pertencentes ao “seu território”, o que se estabeleceu foi uma tolerância na qual aceitava-se a presença sonora do outro, na expectativa de que o “seu território” logo se faria presente.Também a linha que separava esses espaços foi virtual, pois alguns jovens transitavam entre os territórios, aceitando mais do que um estilo musical. Os estilos Estilo, do grego stûlos ou coluna, pode ser entendido como o conjunto de tendências, gostos, modos característicos de comportamento de um grupo, ainda, o conjunto de traços que identificam determinada manifestação cultural de acordo com definição do Dicionário Houaiss (2001). O grupo de rapazes trouxe para as atividades musicoterapêuticas, manifestações sonoro-musicais em diferentes estilos. Porém, no decorrer dos encontros, três estilos se destacaram pela sempre presença configurando-se na opção dos jovens quanto a sua maneira de apresentar-se e expressarse ao mundo. Tanto é que, esses jovens adornavam-se em cortes de cabelo, adereços e vestimentas, procurando imitar ídolos que representavam seus estilos de preferência. Quando percebiam a presença de seus territórios sonoros e musicais prediletos, adotavam posturas corporais diferenciadas, denotando talvez sua identificação. Nas audições e interpretações do rap, os jovens que acolhiam com mais ênfase esse tipo de música, ficavam em pé, estufavam o peito e aumentavam a intensidade da voz enquanto cantavam as rimas. Quando o rock era solicitado e entrava em cena, recostavam-se nos tatames ao chão e sua postura assumia maneiras de cantar em voz suave, de pouca intensidade, confessando os versos que cantavam, numa atitude meditativa. Já quando o samba fazia presença, todos ficavam em pé e o interesse era direcionado para a percussão intensa do ritmo sincopado. Esses dados são confirmados por Maheirie, estudiosa da música e suas implicações sociais, quando indica que “o estilo é vivenciado em todos os setores da vida, inclusive na produção e desenvolvimento dos valores adotados pelo sujeito” (2001, p. 71). Para oportunizar um maior entendimento sobre esse assunto, segue uma articulação entre a construção histórica dos estilos preferidos desses jovens e de suas manifestações

simpósio de pesquisa em música 2006 enquanto expressavam-se por meio das canções que constituíam o seu repertório. O rap A origem musical do rap foi o canto falado da África ocidental adaptado à música jamaicana da década de 1950 e à influência da cultura negra dos guetos dos Estados Unidos no pós guerra. È considerado o estilo que iniciou a constituição de uma identidade musical negra, já que serviu como forma de extravasar sentimentos de revolta. No Brasil, na década de setenta, surgiu a primeira manifestação da juventude negra, nos subúrbios do Rio de Janeiro. O resgate da identidade negra foi se infiltrando nos bailes da época inspirando a mistura de batidas brasileiras ao soul e funk. Desse germe desenvolveu-se o rap brasileiro evoluindo em temas que vão da exaltação da cultura até a voz de protesto atual (CASSEANO et al, 2001). Como resultado temos um estilo particular que funciona como estímulo à juventude negra, veiculando informações que visam a formação de ouvintes críticos e engajados. O rap é um estilo de música que apresenta frases declamadas e rimadas sobre uma base rítmica instrumental. A base rítmica resulta de técnicas específicas de discotecagem. As letras falam de exclusão, violência social, discriminação racial, descrevendo o dia a dia das favelas. A realidade que o rap desfila em suas rimas marcadas é dura. Dentre os raps trazidos pelo grupo, o mais solicitado foi Domingo no Parque, composto e interpretado pelo conjunto Os Racionais. A canção traça um paralelo entre o mundo dos brancos que se divertem nos parques e o negro que não possui espaços de lazer nas favelas. Denuncia o difícil acesso aos brinquedos modernos e o fácil contato com as armas de fogo. Foi difícil ingressar nesse mundo de denúncias e protestos ao lado dos rapazes, quase crianças. Retornando aos dados de suas histórias de vida, levantadas na entrevista inicial, entendemos que a mensagem veiculada nessas rimas se assemelhavam aos fatos vivenciados nos seus cotidianos. Havia uma relação entre a experiência concreta de suas existências e as letras cantadas nas poesias do rap (CUNHA, 2003). O Rock meio

Ao considerar que a música pode ser um efetivo para comunicar valores e

53 identidades grupais, Ruud (1990) cita o rock como uma proposta juvenil de contradição aos consensos culturais. Explica que o sentido invertido de estética, ou seja, com os sons distorcidos e amplificados, grande parte da música do rock “ criou o pânico necessário para sacudir o código de valores burgueses da estética do som” (p. 45). Nesse sentido o rock se constitui num ruído cultural que desmantela o vínculo entre o poder econômico e a constituição ideológica da naturalidade das emoções despertadas por meio da música. Ao se impor como uma linguagem sonora eletrônica barulhenta, amplificada e distorcida, o rock abalou o sentido de beleza na música. Os ouvidos das gerações anteriores acostumados aos sons acústicos dos instrumentos estranhou aquela nova música. “Se alguém desafia meu sentido do que é beleza em música, está desafiando as verdadeiras raízes da minha identidade” (RUUD, 1990, p. 45). Essa suposição indica que a percepção dos códigos musicais não é natural, neutra. A música está imersa em noções de classes sociais e culturais, razão pela qual as pessoas passam por experiências emocionais diferentes quando expostas ao mesmo estilo sonoro. No Brasil o rock vocal aparece mais marcadamente no movimento Jovem Guarda, na década de 70. Explodindo depois da Bossa Nova e do Tropicalismo, vem para o cenário musical como um projeto dedicado quase que exclusivamente à juventude, è a música de voz jovem. Os comentários de Tatit (1996) a respeito desse projeto apontam para o apelo mercadológico associado à figura do ídolo, à vendagem de discos, uma ênfase na concepção musical simples, no que tange à harmonia e arranjo instrumental, provocando estímulos diretos ao físico e exigindo pouca elaboração intelectual. Em meados dos anos setenta, seguindo o sucesso dos Beatles, grupos vocais proliferaram no Brasil. Em 1985 refletindo o movimento punk, surgiu o conjunto Legião Urbana, trazendo uma mensagem musical caracterizada por gritos de independência, do faça por você mesmo, tirando proveito de uma sociedade que precisava de ilusões para sobreviver e incluindo ídolos rebeldes. Titãs, Paralamas do Sucesso foram bandas requisitadas para incrementar o repertório das canções. Mas, Legião Urbana foi a mais marcante do processo. A canção Pais e Filhos foi solicitada no sexto encontro sendo, daí em diante, cantada em todas as reuniões. A letra da canção traz o apelo da presença dos pais, a necessidade de ser aceito e amado, a problemática das relações familiares.

54 Quando percebiam a presença sonora do território do rock, os rapazes sentavam-se ao redor do aparelho de som e acompanhavam o intérprete. Permaneciam concentrados, ouvindo e cantando, introspectivos. As canções por eles solicitadas, dentro desse estilo supostamente barulhento e estridente, trouxeram mensagens românticas, linguagem leve, fazendo com que a presença do estilo do rock significasse momentos de calma e reflexão. Entravam em contato, nesse momento, com questões de amor familiar, relações de pertencimento e sexualidade. Suscitando uma estética nova e emoções diferentes, o rock permite ao jovem o trânsito entre as transgressões sonoras e sentimentais próprias à fase de suas vidas, desafiando o equilíbrio de sua personalidade ao sinalizar alterações comportamentais. Parece que para esses jovens, a música de sua época proporcionou uma experiência capaz de ampliar e aprofundar suas percepções emotivas possibilitando que eles se apoderassem dos seus próprios sentimentos (TEPLOV, 1977). O Samba Originário das rodas de canto, nas quais uma voz improvisava a frase melódica e o coro respondia, o samba se caracterizava pelo meneio corporal com o qual o improvisador, ao projetar para frente a região do umbigo, indicava a outro componente sua vez de cantar. Daí a denominação semba ou umbigada (TRAMONTE, 2001). É um gênero de canção popular, de ritmo sincopado e compasso de dois tempos. Surgiu a partir do século XX aproveitando estribilhos repetidamente cantados ao som de palmas e batuques, aos quais se acrescentavam versos declamatórios. O samba determinou a forte influência do negro na cultura brasileira e colaborou para o progresso longo e penoso da sua inserção na sociedade brasileira. Ainda no início dos anos de 1900, as reuniões e batuques dos negros eram alvo de perseguição e proibição por parte das autoridades. A resistência negra representada por grupos culturais que reivindicavam o direito de tocar a sua música e praticar sua religião, exigiu dos negros táticas de não-violência, modelos de ação adotados por futuros movimentos pacifistas. Essa estratégia adotada na busca pela hegemonia cultural expressa o querer do negro: ser um cidadão global, não viver em guetos fechados, ser considerado um igual. No Brasil, o

SIMPEMUS3 samba é um exemplo de tática de resistência, movimento de afirmação dos valores culturais da raça negra (p. 29). O estilo do samba era agradável ao grupo que se manifestava executando o ritmo nos instrumentos de percussão disponibilizados durante os encontros: pandeiros e atabaques. Os sambas foram aparecendo no cenário musical do grupo colaborando com melodias para a sonorização instrumental. A batida do samba era algo que pertencia ao grupo. Alguns demonstravam facilidade em interpretar esse estilo de canções. Produziam o som como se fosse uma extensão de seus corpos, com domínio e segurança. O ritmo sincopado do samba agregava os jovens na execução instrumental. Cantar era pouco interessante nesse momento, percutir o ritmo era o que importava. Na sua trajetória histórica o jovem tem lançado mão da intensidade sonora intuindo maneiras particulares de defender seu espaço social e de reafirmar valores culturais. Nessa preocupação de afirmar e representar o próprio território, a expressão mais explicita da cultura juvenil foram os sinais sonoros de forte intensidade como forma de auto-representação. A manifestação sonora tem sustentado práticas que permitem ao jovem reivindicar seu papel no meio social, reafirmando-se como a pessoa que, ao tomar consciência de si exige que o outro tenha também consciência de sua existência. Parece que essa foi a estratégia adotada pelo grupo no que tange à percussão do samba. A perspectiva histórica nos traz o conhecimento de que a prática abusiva do som em intensidades fortes não é exclusividade do jovem contemporâneo. Desde os primórdios da era moderna a força sonora é característica da juventude. Também os rapazes foco deste estudo, lançaram mão de uma batida rítmica em forte intensidade, representativa do seu meio sóciocultural, apara marcar presença, delimitar espaço, mostrar força e poder, aproveitando as possibilidades e os momentos da musicoterapia. Conclusão Por meio da música e dos estilos musicais eleitos como de sua preferência, esse grupo de rapazes constituiu territórios sonoros delimitados pelo rap, rock e samba. Por entre esses limites sonoros e rítmicos eles transitavam e expressavam valores pessoais, intensidades sonoras, atitudes e posturas corporais, protagonizando suas identidades.

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simpósio de pesquisa em música 2006 As rimas do rap oferecem referenciais identificatórios para a juventude da periferia. Os dados indicaram que, para esses rapazes, os versos desse estilo de canção narraram de forma organizada e clara a realidade concreta em que viviam. Embora conscientes da conotação sóciopolítica desse estilo musical, os jovens se apropriaram dessa linguagem como forma de entender o meio em que viviam. Parece que tomaram as letras mais como uma explicação do que como um apelo social.

A intensidade com que as percussões foram feitas indicou que a juventude está sempre envolvida em sonoridades fortes, timbres distorcidos e em produções vocais potentes. Por meio da expressão de canções, da delimitação de estilos musicais, esses jovens expressaram o momento histórico em que viviam. A música configurou-se como um signo impregnado da cultura e do meio social onde viviam.

O rock, mesmo sendo caracterizado como um estilo musical de sonoridade estridente e pelas idéias de contestação, proporcionou ao grupo os momentos mais românticos, intimistas e reflexivos. Foi por entre melodias lentas do rock nacional que esses jovens expressaram sentimentos contraditórios de amor e ódio e temas de relacionamento amoroso.

Os rapazes desse grupo construíram, por meio do repertório de estilos e canções, um conjunto de significados e sentidos afetivo-culturais que se concretizou nas melodias, letras, ritmos, intensidades e verbalizações por eles produzidas. A música como manifestação humana, revelou fatos de um determinado tempo e espaço social ao mesmo tempo em que oportunizou aos jovens a busca pelo entendimento das contradições que vivenciavam em seu cotidiano concreto.

O samba foi o estilo que reuniu o maior número de adeptos. O ritmo do samba foi o ritmo do grupo. A percussão do samba proporcionou aos rapazes momentos de prazer e alegria. Durante a produção sonora, o samba mediou a expressão das raízes culturais e sociais do grupo. Agregados no fazer comum, na ação coletiva, os jovens integraram-se à cultura por meio de signos musicais.

Por essa ótica, os estilos musicais como manifestação de um determinado contexto sóciohistórico revela os sujeitos concretos que vivenciam o cotidiano de determinada época. A música como manifestação construída pelo homem e para o homem destinada, revela as tendências estéticas, as formas de expressão, os traços de comportamentos e as dinâmicas afetivo-emocionais da sociedade da qual emerge.

Referências BAUER, Martin e GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2002. BOGDAN, R. e BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto Editora, 1994. BRUSCIA, Kenneth. Definindo musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros, 2000. CASSEANO, P. DOMENICH, M. & ROCHA, J. Hip-hop: a periferia grita. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. CUNHA, Rosemyriam. Jovens no espaço interativo da musicoterapia; o que objetivam por meio da linguagem musical. Dissertação de Mestrado. Setor de Ciências Humanas: Psicologia da Infância e da Adolescência. Universidade Federal do Paraná, 2003 DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. RUUD, Even. Los caminos de la musicoterapia. Buenos Aires: Bonum, 1990. MAHEIRIE, Kátia. Sete mares numa ilha: a mediação do trabalho acústico na construção da identidade coletiva. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001. TATIT, Luiz. O cancionista. São Paulo: EDUSP, 1996. TEPLOV, M. Aspectos psicológicos da educação artística. Em LURIA, LEONTIEV et al. Psicologia e Pedagogia II (p. 123-153). Lisboa: Estampa. TRAMONTE, C. O samba conquista passagem: as estratégias e a ação educativa das escolas de samba. Petrópolis: Vozes, 2001. VYGOTSKY, Liev Semionovitch. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Laurindo Almeida e o jazz de samba: uma outra história sobre as origens da concepção harmônica da bossa nova Alexandre Francischini Universidade Estadual Paulista Resumo Este trabalho tem como objetivo fazer um breve levantamento biográfico e uma análise musical de suas composições populares correspondentes ao período de 1949 a 1958, com o intuito de reconhecer os elementos musicais que supostamente continham a gênese da Bossa Nova. Para isso, a pesquisa pretende trabalhar com uma metodologia histórica, com um enfoque na análise musical. E como referencial teórico buscaremos autores como Ruy Castro, José Ramos Tinhorão, Jomard Muniz de Britto, Walter Garcia, Marcos Napolitano e outros autores que sob diferentes pontos de vista, analisam o “fenômeno” Bossa-Nova.

Um brasileiro que o Brasil desconhece A história de Laurindo José de Araújo Almeida Nóbrega Neto começa em uma vila chamada Prainha, hoje, cidade de Miracatu, localizada no Vale do Ribeira a 120 quilômetros de São Paulo, no dia 2 de setembro de 1917, e termina em Los Angeles, Califórnia, nos Estados Unidos, no dia 26 de julho de 1995. Durante os seus setenta e oito anos de vida, Laurindo Almeida, nome com o qual ficou conhecido mundialmente, acumulou uma vasta produção musical, gravou mais de cem discos de carreira – entre música popular e música erudita – participou compondo ou tocando em mais de oitocentas trilhas sonoras para filmes de Hollywood, tais como O Poderoso Chefão, Os Imperdoáveis, Os Dez Mandamentos, A Song Star, Fogo em Maracaibo e centenas de outras. Foi agraciado com diversos prêmios em reconhecimento ao seu trabalho como compositor e instrumentista. Dentre eles, destacam-se cinco Grammy’s Awards, sendo quatro por álbuns de composições de peças clássicas e um por álbum de performance jazzística, além de um Oscar1 por composição de trilha sonora. Oriundo de uma família de músicos, Laurindo Almeida iniciou seus estudos de violão aos nove anos, mesma idade em que começou a acompanhar seu pai em serestas pela cidade de Santos, e a tomar aulas de piano com sua mãe, fatos que talvez expliquem sua versatilidade tanto na música popular quanto na música erudita. Sua carreira musical começou efetivamente em 1936, quando juntamente com 1

Refere-se trilha sonora do filme “The Magic Pear Tree", e trata-se do único Oscar ganho por um brasileiro na história deste prêmio.

Carmem Miranda, Pixinguinha (Alfredo da Rocha Viana) e Garoto (Aníbal Augusto Sardinha), Laurindo integrou o Regional da Rádio Mayrink Veiga – principal veículo de comunicação do Brasil na época – onde permaneceu por onze anos. Neste período gravou mais de vinte discos pela Odeon e RCA Victor, acompanhando artistas como Carmen Costa, Dorival Caymmi, Alvarenga e Ranchinho, Ary Barroso, Aracy de Almeida e Orlando Silva. Na área da música erudita, gravou inúmeros concertos de Villa-Lobos e Radamés Gnattali, compositores com os quais cultivou grande amizade por toda a vida. Laurindo seria, inclusive, o grande divulgador da obra de Villa-Lobos no exterior, e também um dos coresponsáveis pelo período em que este permaneceu nos Estados Unidos da América. Em decorrência do fechamento dos cassinos pelo governo Dutra em 1946, Laurindo Almeida, um músico então já consagrado aqui no Brasil, viuse obrigado a tentar a sorte em terras desconhecidas, assim em março de 1947, Laurindo desembarcou nos Estados Unidos somente com a roupa do corpo e um violão. Neste período de adaptação, Laurindo trabalhou com o grupo Carioca Boys, que mais tarde se chamaria Samba Kings, do qual participavam também antigos companheiros do Brasil, como Nestor Amaral e Joe Carioca2. Foi através deste grupo que fez seu primeiro trabalho em Hollywood, tocando e atuando no filme “A Song is Born”, de Danny Kaye, do qual participaram também Benny Goodman, Tommy Dorsey, Ella Fitzgerald, Louis Armstrong e Nat King Cole.

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Músico brasileiro que inspirou Walt Disney a compor o personagem Zé Carioca.

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simpósio de pesquisa em música 2006 Outro fato de grande importância para Laurindo Almeida foi o seu ingresso como solista na banda de Stan Kenton, uma das grandes orquestras americanas da época.

Laurindo Almeida é mais do que um violonista eclético, ele é o violonista mais completo de sua geração, provavelmente do mundo inteiro. Ele possuía toda técnica dos violonistas clássicos, além de ser um grande violonista de Música Popular Brasileira. O seu violão reproduzia todos os valores rítmicos, todos os maneirismos de uma música popular brasileira rica ao mesmo tempo sendo um grande violonista de Jazz.

Em seu livro O jazz do rag ao rock, o crítico musical Joachim E. Berendt relata este fato da seguinte forma: Outro guitarrista que ocupa uma posição toda especial no jazz é o brasileiro Laurindo Almeida, um músico do nível dos grandes concertistas deste instrumento – de um Andrés Segovia ou Vicente Gómez. Almeida introduziu a guitarra tradicional no jazz; melhor dizendo, reaplicou a tradição da guitarra nãoeletrificada no jazz moderno. Quando integrante da banda de Stan Kenton na segunda metade dos anos 40, Laurindo Almeida realizou uma série de solos, os quais irradiavam tanto calor como poucas vezes se viu em gravações desta orquestra (BERENDT, 1975, p. 228)

A partir de 1960, Laurindo Almeida montou sua própria banda, com a qual tocaria até pouco antes de sua morte. Este grupo, o L.A. Four, cuja característica principal era a fusão de música erudita e jazz, gravou mais de dez álbuns e tinha como integrantes o saxofonista Bud Shank, com o qual Laurindo já tocara desde o começo da década de cinqüenta, o contrabaixista Ray Brow e o baterista Shelly Manne, substituído depois por Jeff Hamilton. Laurindo Almeida pertence a um grupo de elite de violonistas brasileiros que compuseram trabalhos importantes para este instrumento e, juntamente com Canhoto (Américo Jacomino), Paraguassú (Roque Ricciardi), Armandinho (Armando Neves), Dilermando Reis e Garoto (Aníbal Augusto Sardinha), contribuiu para a emancipação do violão, com status de merecedor de sério estudo musical. Contudo, por algum motivo não teve o mesmo reconhecimento de seus contemporâneos em nosso País. No Brasil, sua obra é pouco conhecida e seu nome pouco divulgado, porém, exerceu grande influência, tanto em relação aos músicos brasileiros quanto aos americanos, que o têm como precursor da bossanova, visto que dez anos antes de seu surgimento – atribuído a João Gilberto e Tom Jobim – suas composições já sintetizavam ritmos brasileiros de várias localidades com o jazz norte-americano. A grande polêmica

Júlio Medaglia3

Do ponto de vista musical, sabe-se que, grosso modo, a Bossa Nova foi uma fusão de ritmos brasileiros, especificamente do Samba com o Jazz norte-americano. Sob esta ótica, existe a hipótese – como dito anteriormente – de que Laurindo Almeida tenha sido um dos precursores deste movimento, por já misturar, muito antes de seu advento, ritmos brasileiros com harmonias jazzísticas. Isto em decorrência de já viver nos Estados Unidos desde o começo da década de cinqüenta, sobretudo quando integrante (solista) da orquestra de Stan Kenton, uma das grandes orquestras que influenciariam Tom Jobim e João Donato na fase pré-bossa-nova. Em depoimento ao documentário Laurindo Almeida “Muito Prazer”, Oscar Castro Neves afirma: É impossível se falar de Bossa Nova sem falar de Garoto, de Radamés Gnattali, de Laurindo Almeida... não só porque o Laurindo era um guitarrista de impecável técnica, mas também porque era um guitarrista moderno, já com acordes de Jazz, vivendo dentro do Jazz.

Ainda que estas afirmações restrinjam-se aos aspectos musicais da obra de Laurindo Almeida que supostamente contribuíram para o surgimento da Bossa Nova, elas andam na contramão de tudo que se sabe a respeito das origens deste movimento. Em decorrência destes fatos, surgem algumas perguntas, tais como: teria sido Laurindo Almeida realmente um dos precursores da Bossa Nova? Caso tenha sido, de que maneira especificamente se deu sua contribuição para este movimento musical? Por outro lado, quais os fatores políticos, econômicos, sociais e musicais que contribuíram para que Laurindo permanecesse esquecido em seu próprio País? Por que a 3

Depoimento transcrito do documentário Laurindo Almeida “Muito Prazer”, escrito e dirigido por Leonardo Dourado, Rio de Janeiro: Telenews, 1999.

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musicologia brasileira (talvez imbuída de uma perspectiva nacionalista) nunca deu a devida atenção ao seu trabalho? Estas questões revelam a problemática de nossa pesquisa e no decorrer deste trabalho procuraremos respondê-las. Uma lacuna na historiografia da MPB O Brasil não gosta mesmo de quem faz sucesso lá fora. O Laurindo é respeitadíssimo pela nata da música americana, e aqui, ‘babau’. Eu mostrei há pouco o Guitar from Ipanema, LP gravado em Nova York que lhe valeu o Grammy em 1964 a um jovem músico que me perguntou que Laurindo era esse... - Tom Jobim

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Este comentário serve bem ao propósito de ilustrar o curioso fato de que um músico brasileiro, consagrado internacionalmente, e como descrito anteriormente, com mais de cem discos de carreira, além de cinco Grammy’s Awards e um Oscar, tenha passado despercebido, tanto pela crítica especializada, quanto pelo meio acadêmico brasileiro. Outro dado a ser considerado é que estas afirmações acerca de Laurindo Almeida na gênese da Bossa Nova, fazem parte de uma polêmica e nunca foram objeto de estudo no meio acadêmico, de forma sistemática, lançando mão de recursos metodológicos que possam proporcionar uma visão mais amadurecida sobre este assunto. Para confirmar este fato, fizemos uma pesquisa em bancos de teses e dissertações das três universidades públicas do Estado de São Paulo (USP, UNESP e UNICAMP), em bancos nacionais como o da CAPES e CNPq, e internacionais como o RILM e o ProQuest, e constatamos que já existem inúmeros trabalhos sobre a temática bossa-nova, porém, não encontramos qualquer trabalho que tenha como objeto de pesquisa o violonista Laurindo Almeida. No entanto, sobre seus contemporâneos brasileiros, pode-se encontrar a dissertação de mestrado de Luciano Linhares Pires, com o título Dilermando Reis: o violonista brasileiro e suas composições, apresentada a UFRJ em 1995; a dissertação de mestrado de Andréa Paula Picherzky com o título Armando Neves: choro no violão paulista, apresentada a 4

Comentário acerca de Laurindo Almeida, feito por Tom Jobim em almoço com Ricardo Cravo Albin, o idealizador do dicionário da Música Popular Brasileira. (extraído do site www.dicionariompb.com.br)

UNESP em 2004; a dissertação de mestrado de Marcelo Alves Brazil, com o título Baden Powell e o Jazz na Música Brasileira, apresentada a UNESP em 2004 e a dissertação de mestrado de Gilson Antunes, com o título Américo Jacomino “Canhoto” e o desenvolvimento da arte solística do violão em São Paulo, apresentada à ECA/USP em 2000. No Brasil, o material disponível sobre a vida e a obra de Laurindo se resume em um documentário chamado Laurindo Almeida: “Muito Prazer”, escrito e dirigido por Leonardo Dourado, pela Telenews do Rio de Janeiro em 1999, exibido em três episódios pela GNT no ano 2000, e em pequenas citações em livros de história da música popular brasileira. Dada a importância de sua obra e sua representatividade no exterior como legítimo representante de uma escola violonística brasileira, gozando do prestígio por ser o único músico não-americano a ser citado nas três edições da famosa Enciclopédia do Jazz, do crítico musical Leonard Feather, julgamos necessária uma pesquisa que possa, de certa maneira, contribuir tanto para a memória de Laurindo de Almeida quanto para a construção da história da Música Popular Brasileira. Acerca da bossa-nova A Bossa Nova não é considerada somente um gênero musical, mas sim um movimento musical. Deste modo, para o seu advento, foi necessária uma conjunção de fatores, dentre eles os históricos, políticos, econômicos e sociais, além dos musicais. Não se pode atribuir, portanto, a uma única pessoa – seja ela quem for – a responsabilidade por seu acontecimento. Em decorrência deste fato, torna-se importante esclarecer que este projeto de pesquisa não tem como objetivo imputar a criação da Bossa Nova a Laurindo Almeida, mas sim analisar como se deu sua contribuição para este movimento musical. Com o propósito de formar um referencial teórico para as questões extra-musicais, buscaremos autores como Ruy Castro, José Ramos Tinhorão, Jomard Muniz de Britto, Marcos Napolitano e outros autores que sob diferentes aspectos e pontos de vista, analisam o “fenômeno” Bossa-Nova. Outro dado a se considerado, é que as inovações que a Bossa Nova introduziu na Música Popular Brasileira percorrem além dos aspectos interpretativos que estão mais ligados à performance musical, os aspectos harmônico, melódico e

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simpósio de pesquisa em música 2006 rítmico, este último em especial. Vejamos este comentário feito por Tom Jobim, extraído do livro Música Popular Brasileira, de José Eduardo Homem de Mello: Eu tinha uma série de sambas-canção de parceria com [Newton] Mendonça mas a chegada do João abriu novas perspectivas: o ritmo que o João trouxe. A parte instrumental - harmonia e melodia – essa já estava mais ou menos estabelecida (GARCIA, 1999, p. 20).

Se pudéssemos separar estes três elementos estruturais da música, notaríamos que o advento da Bossa Nova se deu em função da criação de uma “batida de violão”. Esta nova concepção rítmica, criada e consagrada por João Gilberto, marcaria o início da Bossa Nova com o disco Chega de Saudade de 1958. Como resultado da influência do Jazz sobre o Samba – fator co-responsável pela concepção musical da Bossa Nova – a “simplificação do ritmo harmônico5” se deu em função da valorização do emprego de dissonâncias acrescidas aos acordes. Em seu livro Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto, Walter Garcia – um dos autores que adotaremos como referencial teórico para as questões musicais – se atém especificamente ao ritmo harmônico da Bossa Nova, traçando sua gênese, tanto do ponto de vista histórico, quanto do ponto de vista técnico-musical, analisando todo o processo de confecção desta nova batida. Com relação à melodia, de modo geral, as inovações não estavam contidas em maior parte nos aspectos estruturais, e sim na maneira de emissão desta melodia através do canto falado, deixando assim, voz e instrumentação, com o mesmo grau de importância. Como exemplo, basta pensar em cantores como Roberto Menescal e Nara Leão, e cantores de períodos anteriores à Bossa Nova como Orlando Silva e Elizete Cardoso, que notaremos diferenças significativas na emissão da melodia. Sobre o aspecto harmônico da Bossa Nova existe somente o consenso sobre a influência das harmonias jazzísticas que gradualmente foram incorporadas pelo Samba, principalmente na fase pré-Bossa Nova por

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Neste caso nos referimos a redução ou síntese da batucada do samba pelo violão, como já apontado no livro Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto de Walter Garcia.

Johnny Alf e João Donato. O Jazz, por sua vez já exercia influência sobre música brasileira sob outros aspectos muito antes disso, e segundo o pesquisador Alberto T. Ikeda com a temporada de Harry Kosarin Jazz-Band em São Paulo, no período que vai de agosto de 1919 até fevereiro de 1920, fica fora de qualquer dúvida a presença da música jazzística entre nós.(p. 117)6

O próprio Laurindo, em entrevista ao escritor e jornalista Sérgio Augusto7, afirmou que seria fortemente influenciado pelo Jazz quando em uma turnê com o Regional da Mayrink Veiga, em um cruzeiro pela Europa em 1936, em visita a um bar francês chamado Rock Club, teria assistido a uma apresentação com o guitarrista Django Reinhardt e o violinista Stephane Grappelly que seria decisiva em sua fusão de música brasileira e jazz. Isto pode ser facilmente observado na série de discos Brazilliance, volumes 1, 2 e 3 gravados pela Word Pacific Jazz Records, em 1953. E segundo consta – e há de se verificar – foi o primeiro registro, nos Estados Unidos, de improvisação jazzística sobre ritmos brasileiros. Deste modo, torna-se importante verificar sob que aspecto se deu a sua contribuição para o advento da Bossa Nova, e talvez, de modo análogo ao caso da batida de João Gilberto, delimitar o marco inicial da concepção harmônica da Bossa Nova. Inicialmente não com pretensões de atribuir sua criação a Laurindo Almeida, mas somente verificar em que nível se deu a sua contribuição à linguagem musical deste movimento. Objetivos da pesquisa Objetivos gerais Contribuir para um melhor conhecimento da história da Música Popular Brasileira nas décadas de 50 e 60, tendo como enfoque a vida e obra do compositor, arranjador e instrumentista Laurindo Almeida. Objetivos Específicos 1.Fazer uma análise musical, especificamente de algumas de suas composições populares correspondentes ao período de 19498 a 19589,

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IKEDA, Alberto T. Apontamentos históricos sobre o jazz no Brasil: primeiros momentos. Artigo publicado pela Escola de Comunicação e Artes (USP) v. 13, 1984, p. 111-124.

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Sérgio Augusto foi repórter especial da Folha de São Paulo de 1981 a 1996, e atualmente escreve no Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo e na revista Bravo.

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Ano do lançamento de seu primeiro LP nos E.U.A. denominado Concert Criation for Guitar.

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com o intuito de reconhecer os elementos musicais que supostamente continham a gênese da Bossa Nova.

Mais adiante:

2.Realizar um breve levantamento biográfico e contextual, a fim de verificar quais os fatores políticos, econômicos e sociais que, de certo modo contribuíram para que Laurindo Almeida passasse despercebido em nosso País, e ao mesmo tempo ser considerado um precursor da Bossa Nova. 3.Fazer o levantamento e a catalogação da discografia de Laurindo Almeida, com o intuito de obter uma visão mais abrangente de sua obra musical10. Questões, teorias e procedimentos metodológicos Com relação aos métodos, nossa pesquisa pretende trabalhar com uma abordagem musicológica histórica, porém, não apenas descritiva, mas interpretativa como propõe Joseph Kerman em seu livro Musicologia: O que sustento e procuro praticar é uma espécie de musicologia orientada para a crítica, uma espécie de crítica orientada para a história (KERMAN, 1987, p. 13).

Deste modo, a obtenção dos resultados desta pesquisa deve passar não somente por uma análise de partituras, ou seja, uma análise musical, mas também por uma análise dos fenômenos históricos, políticos e sociais que contribuíram tanto para o advento da Bossa Nova, quanto para hipótese de que Laurindo Almeida seja um dos precursores deste movimento musical. Em decorrência deste fato, pretende-se neste trabalho, dialetizar determinados conceitos que, diante de uma concepção nacionalista, por muito tempo foram difundidos nos debates sobre música popular brasileira, tais como: Historicamente, o aparecimento da bossa nova na música urbana do Rio de Janeiro marca o afastamento definitivo do samba de suas raízes populares (TINHORÃO, [s.d.], p. 230). 9

Ano do lançamento do disco Impressões do Brasil, juntamente com o álbum Chega de Saudade de João Gilberto, reconhecidamente o marco inicial da Bossa-Nova.

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Visto o grande volume de discos lançados no Brasil e E.U.A., e em decorrência do difícil acesso, e a inexistência de uma catalogação destes álbuns, julgamos necessário este levantamento.

Esse divórcio, iniciado com a fase do samba tipo bebop e abolerado de meados da década de 40, atingiria o auge em 1958, quando um grupo de moços, entre 17 e 22 anos, rompeu definitivamente com a herança do samba popular, modificando o que lhe restava de original, ou seja, o próprio ritmo (p. 231).

Estas citações, de José Ramos Tinhorão, extraídas de seu livro Pequena História da Música Popular, revelam no melhor dos casos, um certo descontentamento do historiador com o “afastamento do samba de suas raízes populares” e com a “perda de sua originalidade”, na medida em que sofre influências de outros gêneros musicais, tais como bolero e o be-bop.11 Diante desta perspectiva de valorização do “puro”, e sendo Tinhorão, durante muito tempo, um dos principais formadores de opinião da música popular brasileira, pode-se imaginar as razões do completo descaso da musicologia brasileira em relação a Laurindo Almeida, afinal, um músico que compõe choros e valsas, ao mesmo tempo em que grava concertos de Bach, e ainda vai para os Estados Unidos promover a “tão famigerada” fusão de samba com jazz, não poderia ser transformado em um ícone nacional. Com relação aos procedimentos metodológicos, esta pesquisa prevê a captação de entrevistas com pessoas ligadas direta ou indiretamente ao violonista, além de consultas a acervos públicos e particulares, livros, artigos, sites, documentários e teses de autores que nos forneçam dados que possibilitarão uma análise posterior, com o intuito de extrair elementos que possam aprofundar nossa pesquisa. Além disso, faremos o levantamento de discos e partituras de Laurindo Almeida, e após uma audição crítica, serão selecionadas as peças musicais que serão analisadas, com o propósito de verificar, principalmente, sob quais aspectos podese dizer que tenha sido um dos precursores da Bossa Nova. Para as questões relacionadas à análise musical, em decorrência da inexistência de uma metodologia brasileira adequada para análise de música popular, adotaremos os quatro volumes do método Harmony, dos autores Barrie Nettles e Alex Ulanowsky, editados pela Berklee College of Music 1987 e 1988. 11

Be-bop é um estilo de Jazz que predominou nos E.U.A. na década de 40.

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Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise musical Acácio Tadeu de Camargo Piedade Universidade do Estado de Santa Catarina Resumo O presente artigo pretende comentar a aplicação da “teoria das tópicas” em análise musical para o caso da música brasileira. A retomada do plano expressivo-retórico na análise musical se deu recentemente, com autores que se dedicaram ao período clássico da música européia, como Leonard G. Ratner, V. Kofi Agawu e Robert S. Hatten. Esta perspectiva ilumina de forma importante a compreensão das músicas pelo fato de, através da análise musicológica e da interpretação de pontos expressivos no texto musical, apresentar nexos culturais da musicalidade em foco. O objetivo principal desta comunicação é discutir a aplicabilidade desta teoria no campo da música popular brasileira.

Introdução A quantidade de estudos acadêmicos sobre música popular brasileira tem crescido rapidamente desde a década de 80. Estas investigações, produzidas tanto no Brasil como no exterior, têm se fundamentado numa vasta quantidade de práticas através de variadas perspectivas teóricas e metodológicas1. Uma parcela destas pesquisas trabalha sob a perspectiva musicológica utilizando um de seus recursos mais típicos: análise musical a partir de partituras. Ocorre que o papel da partitura no mundo da música popular é bastante particular, e envolve sistemas de notação e conceitos específicos, como cifragem de acordes, leadsheet, edição de songbooks, etc. Além disso, grande parte da música popular não está perpetuada em partitura, mas sim em gravações fonográficas2. Por isso, o analista musical muitas vezes tem que transcrever gravações e criar sua partitura de trabalho para empregar os métodos analíticos. Em geral, o foco da análise é a esfera melódica (e sua segmentação em temas, frases, motivos, etc.) e a forma (organização da apresentação das estruturas musicais no tempo), porém a compreensão da música popular muitas vezes exige a abordagem de vários outros aspectos como, por exemplo, a performance e a recepção. Mesmo assim, a análise musical é uma ferramenta fundamental no estudo de qualquer repertório musical, pois ilumina de forma reveladora o texto musical propriamente. No âmbito da música popular, contudo, só recentemente os estudos começaram a empregar 1

Por ex. BASTOS (2005), ULHÔA e OCHOA (2005), e DUNN (2001) e McCANN (2005).

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Note-se que a música popular, em sua dimensão histórica, não pode ser compreendida isolada da história da fonografia: fonografia e música popular se desenvolvem de forma irmanada ao longo do século XX.

de forma intensiva os recursos analíticos das várias teorias de análise musical3. De fato, a análise musical foi, durante muitos anos, pensada como válida somente para a música erudita, pelo fato de que esta circula através de suporte escrito, a partitura, objeto representacional que serve de base para a análise. Muitos autores comentam os aspectos culturais e ideológicos que estão por trás da preferência pela música erudita e exclusão da música popular do horizonte musicológico, alegando uma suposta inferioridade musical no que tange à complexidade formal e harmônica típicas da música erudita4. Nesta direção, muitos autores se apóiam nas idéias de ADORNO (1983, 1994), em busca de consistência para um discurso que já se encontra extremamente desgastado no início do século XXI5. A partir dos anos 80, surgem diversas críticas e movimentos de desconstrução e oposição ao formalismo na análise musical, entre eles o que se convencionou chamar de Nova Musicologia. Desta forma, os nexos sócioculturais e históricos se tornaram pontos relevantes na análise musical, abrindo o campo para a música popular. O paradigma atual na área envolve um pluralismo de tendências (AGAWU, 2004)6. Propostas de elaboração de uma musicologia da música popular já foram elaboradas, como a proposta de análise semiótica de Philip Tagg (TAGG, 1987). Um dos pontos importantes dos estudos de música popular é a descrição e análise 3

Dois exemplos: BERLINER (1994) para o jazz, e LUCAS (2002) para o congado mineiro.

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Não é o caso adentrar este debate aqui: remeto o leitor a MIDDLETON (1990, 1993), HAMM (1995), entre muitos outros.

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Em geral, há aí uma simplificação do pensamento adorniano que ignora as profundas contribuições deste filósofo para a estética (ver BÜRGER, 1988; JAMESON, 1991). Ver também SHUKER (1998).

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Para alguns autores, a Musicologia atual atravessa uma crise devido ao seu próprio crescimento (NATTIEZ, 2005).

64 dos gêneros musicais. Gêneros como o heavy metal (WALSER, 1990) ou a canzona italiana (FABBRI, 1982) são manifestações do mundo empírico que são compreendidas pelos nativos como gênero. Como no mundo literário (DUCROT e TODOROV, 2001), no universo musical gêneros e estilos constantemente se formam ou se transformam, sendo que análises sincrônicas tornam a discussão muitas vezes infértil. Por isso, a perspectiva de tratar os gêneros musicais da forma como Bakhtin trata os gêneros de fala (BAKHTIN, 1986), ou seja, como discursos, temse revelado uma ferramenta teórica interessante para abordar o tema (ver PIEDADE, 1999). Retórica musical e tópicas No século XVII, muitos teóricos basearamse nos escritos de Aristóteles e Cícero sobre Retórica para descrever a oratória da música, configurando uma disciplina que se chamou Musica Poetica (principalmente com Joachim Burmeister). Estas idéias desembocaram, no século seguinte, nos estudos da Teoria dos Afetos (principalmente com Joahann Mattheson). Fundamental na filosofia aristotélica é a noção de topoï, entendidos como lugares-comuns (locicommunes) produzidos acerca de silogismos retóricos e dialéticos. Os topoi formam a “Tópica”, as fontes que estão na base de um raciocínio. Uma retórica musical sugere uma visão da música como discurso, ancorando-se na idéia de figuras da retórica musical. Na retórica tradicional, figura é todo fragmento de enunciado cuja “configuração aparente não está conforme à sua função real”, resultando em uma transformação ou transgressão “codificada do próprio código” (ANGENOT, 1984, p. 97). A retórica, sobretudo na elocutio, distingue as figuras de palavras (ou tropos) das figuras de pensamento, que intervêm mais diretamente na organização do conjunto do discurso. Conforme Moisés, figuras de palavras dizem respeito à formação lingüística e consistem na transformação desta, por meio de categorias da adiectio, detractio, transmutatio, enquanto figuras de pensamento dizem respeito aos pensamentos (auxiliares), encontrados pelo sujeito falante para a elaboração da matéria e, por conseguinte, são, em princípio, objeto da inventio. Estas últimas, portanto, distinguem-se dos tropos, visto que estes implicam na mudança semântica dos vocábulos. As figuras de retórica não são meros ornatus adjacentes ao pensamento, mas um trabalho específico sobre a própria significação (MOISÉS, 2004, p. 188).

SIMPEMUS3 A idéia de figura e de retórica musical pressupõe, portanto, uma compreensão da música enquanto discurso. As unidades musicais deste discurso são, muitas vezes, atribuídas de qualidade ou ethós, isto por meio de convenção cultural (diga-se, histórica e tácita)7. O encadeamento destas unidades compõe parte do discurso musical e sua lógica. Para Meyer, por exemplo, o uso de convenções deste tipo se dá como controle da expectativa, da satisfação ou suspensão das tensões musicais geradas nos processos formais da música tonal, o que comprovaria a importância da emoção e do significado na música (MEYER, 1956). Nesta direção, recentemente retomou-se uma perspectiva de compreender a música em sua dimensão retórica: destaco aqui o que alguns autores denominam oportunamente topics, e que envolve uma teoria da expressividade e do sentido musical que se pode chamar de “teoria das tópicas” (RATNER, 1980; AGAWU, 1991; HATTEN, 1994, 2004). O universo estudado nestas obras é o da música européia do período clássico, e algumas das tópicas trabalhadas por estes autores são: alla breve, aria, brilliant style, empfindsamkeit, fanfare, hunt style, learned style, pastoral, Sturm und Drang, entre outras. Trata-se aqui de tópicas de um período refletindo a weltanschauung de uma época. Há uma distância muito grande deste universo de tópicas para o caso da música brasileira, pensada como uma unidade sóciocultural em consolidação ao longo dos séculos XIX e XX. Porém, creio que há aqui também uma visão de mundo que permeia este longo período e este território simbólico, e que esta teoria é uma interessante via para a compreensão da significação musical e da musicalidade em geral, sendo perfeitamente adequada para o estudo da música brasileira, principalmente no âmbito da construção de identidades. Resta encontrar as tópicas que entram em ação neste universo. Tópicas seriam, portanto, as figuras da retórica musical. Gostaria de enfatizar que as tópicas são também topológicas, ou seja, sua plenitude significativa se dá não apenas por sua feição interna, mas também pela posição de sua articulação no discurso musical. Entendo que deve haver alguma significação implícita na progressão destas posições na cadeia sintagmática de um discurso musical8. Isto tem implicações na análise 7

Estou enfatizando o caráter simbólico, portanto, o que não quer dizer que não haja também significação de ordem icônica ou indexical.

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Configurando aquilo que Agawu chama de “plot”, ou seja, um “roteiro”, “a coherent verbal narrative that is offered as an analogy or metaphor for the piece at hand” (AGAWU, 1994:33).

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simpósio de pesquisa em música 2006 do processo temático, para além dos desenvolvimentos de RETI (1951), ou seja, do processo temático e desenvolvimento motívico em direção à unidade formal. Assim, pode-se supor que se pode recompor uma espécie de “roteiro”, ou esquema narrativo, que se encontra em um nível mais abstrato do que aquele do próprio motivo (MEYER, 2000). O trabalho de visualizar uma tópica envolve uma hermenêutica que não é estrangeira ao campo da análise musical. Porém, o problema não se limita a encontrar, interpretar ou nomear as tópicas encontradas no discurso musical, mas a explicar como estes governam a sucessão dos afetos e gestos9. No caso de música escrita, a cadeia de tópicas expressivas se encontra determinada pela própria partitura, onde figuras podem se articular diversas vezes em diferentes momentos e ordenações. Já em improvisações, as posições das tópicas podem ser móveis, tendo o caráter de espaço de possibilidade que se abre em determinados pontos do discurso musical10. Creio que as tópicas de um discurso musical (entendido como posições estruturais dotadas de qualidade sígnica determinadas) são experimentadas pelos próprios intérpretes na sua prática musical, bem como pela audiência. Os estudos da retórica musical devem incluir, portanto, a esfera da recepção como nexo teórico (CANO, 1998). Enfim, tópicas são objetos analíticos da significação musical, signos que podem ser comparados ao que Tagg chama de museme, especialmente o que ele define como genre sinecdoche (TAGG, 2005). Tenho me dedicado ao estudo das relações entre retórica, poética e música, bem como à busca de possíveis tópicas da musicalidade brasileira., isto através de análises de partituras de música brasileira popular e erudita, bem como de transcrições de improvisações (PIEDADE, 2006). Comentarei aqui alguns conjuntos de tópicas que venho estudando. Em busca de tópicas da música brasileira Há na musicalidade brasileira um estilo simultaneamente brincalhão e desafiador, exibindo audácia e virtuosismo, isto de forma graciosa e, principalmente, interesseira, individualista e maliciosa. Trata-se de um gesto profundo, impresso já na gênese de alguns gêneros, como o choro. Por exemplo, no final do 9

Ver MEYER (2000:263).

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Um exemplo é o que chamei de ‘citação em contexto’ (ver PIEDADE, 2005).

século XIX e início do XX, período de gênese do choro, o flautista, solista do grupo, usualmente era o único músico que sabia ler partitura, e sua performance era marcada por frases modificadas em relação ao original, como que desafiando seus acompanhantes a segui-lo (DINIZ, 2003). Alguns mecanismos e frases musicais revelam este lado brincalhão, isto de forma a exibir algum virtuosismo instrumental. De fato, trata-se de um conjunto de tópicas que chamarei de brejeiro. O brejeiro na musicalidade brasileira é brincalhão, difere do gesto que se entende por scherzando, por seu caráter menos infantil e mais malicioso e desafiador. A figura do malandro na cultura carioca e brasileira em geral alude a este tópico: o malandro que ginga com os pés, é esperto e competente (na ginga), desafiador (quem me pega?). A expressão musical deste caráter da brasilidade se dá através das tópicas brejeiro, que envolvem transformações musicais presentes, inicialmente, no choro. Os flautistas de choro e suas variações melódicas que desafiam seus acompanhantes a não se perder na música, alguns temas de Pixinguinha (o início e certas passagens de “Um a zero”), Ernesto Nazareth (“Apanhei-te cavaquinho”; aliás, este título expressa a brejeirice do cavaquinho). Muitas vezes está em jogo um tipo de “ataque falso” de nota, no qual um “deslize” cromático no agudo faz crer que houve erro, e no entanto se trata de uma transformação brejeira. Outras vezes, o tópico se manifesta mais na dimensão rítmica, como é o caso de certas “quebras” e deslocamentos irregulares que parecem brincadeiras rítmicas que, desafiadoramente (para os acompanhantes e ouvintes), atravessam os tempos como que brincando, sem se deixar perder. Há um outro conjunto de tópicas, que estou designando “época de ouro”, no qual reinam os maneirismos das antigas valsas e serestas brasileiras, impera a nostalgia de um tempo de simplicidade e lirismo, de ruralidade e frescura. Um pouco do mundo lusitano está presente aqui, nas evocações do fado e na singeleza das modinhas. Como se fosse um mito, manifesta-se aqui um Brasil profundo, vindo do passado através de volteios e floreios melódicos (vários tipos de apojaturas e grupetos), padrões rítmicos (maxixe, polka, dobrado estilo “banda”) e certos padrões motívicos (escala cromática descendente atingindo a terça do acorde em tempo forte) que estão fortemente presentes no mundo do choro e em vários outros repertórios de música brasileira, tanto na camada superficial quanto em estruturas mais profundas11. 11

Estruturas mais profundas no sentido da perspectiva schenkeriana, como aliás adota AGAWU (1991).

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Das “Valsas de Esquina”, de Francisco Mignone, a certos trechos de composições de Hermeto Pascoal, as tópicas época de ouro se apresentam com melodias em primeiro plano, em estilo cantabile, sempre com lirismo e nostalgia. Outro conjunto de tópicas é o nordestino: a musicalidade nordestina é um recurso fortemente empregado na expressão da brasilidade (PIEDADE, 2003). Desde cedo este Nordeste profundo se apresentou musicalmente ao Brasil em diversos repertórios musicais. O baião e a escala mixolídia, usada mediante uma série de padrões, se tornaram índice da identidade brasileira, por exemplo, nas composições nacionalistas de Camargo Guarnieri e de outros compositores que se opunham ao atonalismo do movimento Música Viva dos anos 4012. A análise brejeiro, época articuladas de repertórios da popular.

musical mostra que tópicas de ouro e nordestino são forma intensa em diversos música brasileira erudita e

Além deles, pode-se apontar para alguns outros conjuntos: a presença da musicalidade do jazz permeia várias esferas da música brasileira. Na investigação da chamada “musica instrumental”, ou jazz brasileiro, caminha-se em direção a um conjunto de tópicas bebop, de acordo como uso específico deste termo entre músicos brasileiros (ver PIEDADE, 2003, 2005); o universo afro-brasileiro constitui um conjunto de tópicas afro, presente nos batuques, lundus, jongos, etc13. Outros conjuntos a serem mencionados são: tópicas sulinas (envolvendo a música tradicional das terras gaúchas e gêneros musicais argentinos, uruguaios e paraguaios tais como guarânia, chacarera, milonga, tango, etc., envolvendo especialmente a superposição rítmica de 3 contra 2 tempos); tópicas caipiras (que evocam o mundo rural conforme a imaginação do Brasil do sudoeste e central, tendo a figura do caipira e seus duetos em terças e sextas paralelas, bem como os ponteios da viola caipira como referenciais mais evidentes); outros possíveis conjuntos a serem investigados: tópicas ameríndios (principalmente no uso de flautas nativas e de percussão do tipo “pau-dechuva”); árabe (mais recentes, com a influência da world music, principalmente através de escalas e ornamentações); oriental 12

Ver NEVES (1981).

13

Neste caso, há um interessante artigo que busca levantar tópicas afro no repertório pianístico brasileiro (CAZARRÉ, 1999).

(pentatonismo); experimental (especialmente na exploração timbrística); atonal (evocando um cultivo erudito de “vanguarda”); tropical (estratégias icônicas denotando as florestas e a exuberância tropical, como os pássaros em VillaLobos). A listagem certamente não se esgota aqui, dada a dimensão continental da musicalidade brasileira. Acredito que na música brasileira, independentemente da oposição popular/erudito, uma retórica se faz presente, articulando tópicas que colocam em jogo identidades e referências culturais que constroem um universo musical entendido como brasileiro. Assim, creio que se pode levantar conjuntos de figurações que se apresentam tanto em Egberto Gismonti, Chico Buarque e Pixinguinha quanto em Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Cláudio Santoro, entre tantos outros. Afirmo, portanto, o rendimento de investigações da dimensão expressiva da música brasileira, bem como da análise musical detalhada dos textos musicais deste vasto repertório, desta forma contribuindo para dissolver as fronteiras entre o mundo erudito e popular. A perspectiva retórica e a “teoria das tópicas” representam orientações de análise musical que superam o mero formalismo, ao envolver simultaneamente conhecimentos musicais e interpretações histórico-culturais. Desta forma, funcionam como via de acesso à significação e aos nexos culturais em jogo na música brasileira.

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Relações de gênero e musicologia: reflexões para uma análise do contexto brasileiro Maria Ignez Cruz Mello UDESC Resumo Este trabalho parte de uma discussão sobre música e relações de gênero no contexto da música indígena no Brasil, passando por um recorte bibliográfico da literatura atual sobre questões de gênero na musicologia e na teoria musical ocidental, inserindo tais reflexões dentro de uma perspectiva de crítica pós-moderna que pretende se aproximar de uma análise feminista no campo musicológico. Trabalhos da área da antropologia, como o de Maria Mello (2005), e da musicologia, como os de Susan McClary (1994) e Susanne Cusick (2001) servem de base para esta reflexão, que ao final, aponta caminhos para futuras pesquisas que tratem da dimensão das relações de gênero no cenário da música brasileira.

>|< É muito comum se ouvir falar da inexistência ou, ao menos, da irrelevância da mulher no cenário da composição musical no meio erudito da música ocidental. Também não se observa uma quantidade expressiva de mulheres no campo da regência orquestral ou coral, da teoria musical ou da musicologia. Indo mais adiante, vê-se que as mulheres, também no cenário da música popular, vão merecer algum destaque como compositoras somente a partir da segunda metade do século XX e, ainda assim, em número consideravelmente inferior aos homens. Pretendo nesta comunicação refletir sobre o que há por trás destes fatos que, ao mesmo tempo em que naturalizam uma série de “incapacidades femininas”, mascaram as estratégias que dão sustentação a esta realidade estatística. O papel da mulher, sob o prisma de diferentes áreas do conhecimento, tem sido sistematicamente revisto nos últimos vinte anos, compondo um campo de estudos que se passou a conhecer por “estudos feministas”. O universo musical, tanto no que concerne à produção quanto aos estudos sobre estas produções, tem sido, por longo tempo, uma prerrogativa masculina. Contudo, nas últimas décadas, pesquisas originadas no campo dos estudos culturais, da antropologia, da musicologia e da história têm mostrado novos caminhos para se pensar tanto o trajeto feminino ao longo das transformações e da consolidação de várias narrativas que permeiam a música ocidental, quanto as implicações que as relações de gênero têm sobre a política e a produção musical mundial. Sob este angulo, algumas áreas ainda não trataram suficientemente do assunto, como é o caso dos estudos sobre a produção musical

feminina no Brasil. Nesta comunicação, partindo de uma discussão sobre música e relações de gênero em um contexto que difere radicalmente daquele da musica ocidental, a saber, o da música indígena das terras baixas da América do Sul, passando por um recorte bibliográfico da literatura atual sobre questões de gênero no campo da musicologia e da teoria musical ocidental, pretendo apontar alguns caminhos para futuras pesquisas que possam ajudar a preencher a lacuna existente em relação ao caso brasileiro, ainda pouco estudado. Tais reflexões se inserem dentro de uma perspectiva pós-moderna de crítica a conceitos como “música em si” e “música absoluta”, aproximando-se de uma análise feminista no campo musicológico. >|< Em minha tese sobre os Wauja (MELLO, 2005), um dos grupos indígenas que vivem no Alto Xingu, apresento uma densa etnografia de um ritual musical, o ritual de iamurikuma, realizado exclusivamente pelas mulheres. Este ritual é analisado em seus aspectos musicais e sob o ponto de vista das relações de gênero, dentro dos marcos teóricos da antropologia social. Procuro mostrar que entre os Wauja, bem como entre outros grupos indígenas, as questões de gênero estão ligadas indissociavelmente à música, desde o que se observa na mitologia quanto o que se vê nas práticas rituais. No Alto Xingu todas as aldeias possuem uma “casa das flautas”, também chamada por “casa dos homens”, que ocupa o centro de uma aldeia circular e não pode ser freqüentada pelas mulheres. As flautas que esta casa abriga, chamadas kawoká, não podem ser vistas pelas mulheres, sob pena de virem a sofrer um “estupro coletivo”. Se num primeiro momento pensamos em dominação masculina, não se pode dizer que as mulheres simplesmente se submetam a ela, pois,

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durante o iamurikuma elas ocupam também o centro da aldeia e ameaçam os homens com seus cantos, entoando provocações e denúncias. Elas colocam de forma poético-musical sentimentos individuais em um plano coletivo e assumem o domínio de seus corpos através da música. Partindo da afirmação das mulheres Wauja de que “música de iamurikuma é música de flauta”, e com base nas análises de mitos e em análises musicológicas, é apresentada a ligação entre a música vocal do ritual de iamurikuma e a música instrumental das flautas kawoká. Destas análises, ressalta a complexidade das construções composicionais (MELLO, 2006) que tanto as músicas de iamurikuma quanto as das flautas kawoká apresentam, bem como surpreende o grau de imbricação entre os dois repertórios. Estas operações musicais complexas exigem uma excelente memória e alto grau de conhecimento tanto por parte das mulheres cantoras quanto dos flautistas mestres. Como os motivos rítmicos e melódicos dos cantos de iamurikuma podem ser vistos como uma versão cantada e feminina daqueles apresentados nas músicas de kawoká, fica evidente que o aspecto sonoro do repertório das flautas não é objeto de proibição, mais sim, que são estes sons comuns “que unem a extrema masculinidade, exclusiva e interdita às mulheres, representada pelo complexo simbólico das flautas kawoká, e a feminilidade em sua expressão mais marcante, o iamurikuma” (2005, p. 11), formando um único complexo míticomusical. Trazer estes dados para a discussão em torno do papel da mulher e do feminino no campo da musicologia atual tem como objetivo principal desconstruir certas formulações universalizantes que tanto o discurso comum quanto o discurso acadêmico se esforçam por manter. Ao tratar de povos que vivem e pensam as relações de gênero de forma tão peculiar e tão explicitamente associadas ao campo da música, nos vemos forçados a reformular nossas próprias idéias a este respeito em nossa sociedade1. >|< De modo geral, nos estudos sobre relações de gênero, é consenso que há uma condição biológica dada para toda a humanidade que liga 1

Devemos também considerar que não estamos tratando de povos presos a um passado inatingível, muito pelo contrário, estes povos estão nos dias de hoje vivendo seus rituais de forma plena, mesmo que em contato com a sociedade envolvente, tão repleta de ofertas de bens, como CDs, DVDs, e outras mídias a que eles têm acesso.

a diferença de sexo à capacidade reprodutiva, assim como há também em toda parte uma construção social feita sobre estes dados elementares que, no entanto, não se traduz da mesma forma em todo lugar (HÉRITIER, 1996, p. 22). Sabe-se que o sistema das relações de gênero está ligado às atribuições sociais de papéis, poder e prestígio, sendo sustentado por ampla rede de metáforas e práticas culturais associadas ao masculino ou ao feminino. Desde Platão, vê-se uma preocupação no Ocidente com o poder exercido pela música e, em torno desta ansiedade, muito se tem elaborado em termos de metáforas de gênero, diferença sexual, atração e repulsa sexual. Apresento a seguir uma reflexão sobre parte da bibliografia da musicologia e da teoria musical atuais, no sentido de inserir as discussões em torno das relações de gênero neste campo. Como aponta Joseph Kermann (1985), a tradição musicológica esteve sempre muito mais voltada para análises formais do que para questões sensíveis às humanidades, e isto se deve muito ao fato de que, no desenvolvimento da música ocidental tonal, surgiu todo um conjunto de pressupostos teóricos, explicitados através de convenções e construções retóricas repletas de metáforas sexuais. Estas se ligam a questões de gênero que estão na base de um paradigma narrativo poderoso, em cujo âmago está o ponto de vista masculino. Contudo, apesar da centralidade destas questões, a disciplina não parece tratá-las de modo consciente (McCLARY, 1994). Por exemplo, neste modelo androcêntrico, os tempos fortes de um determinado trecho musical são considerados “masculinos”, enquanto que os fracos, “femininos”; sobre as tríades maiores, é dito que elas exercem atração, em oposição às menores, ligadas à repulsão; também percebe-se “ímpetos procriativos” ocorrendo por meio das qualidades dinâmicas da música tonal; ou ainda a idéia prevalente, desde o século XVII, do processo desencadeado pela expectativa (clímax) e resolução da expectativa, também chamado de tensão vs. relaxamento, presente no cerne da música ocidental, o que parece uma forte metáfora da atividade sexual. A forma sonata-allegro é estruturalmente um exemplo deste modelo: o tema de abertura deve ter um “caráter masculino”, enérgico, determinado, heróico, enquanto que o tema subsidiário é “feminino”, flexível, considerado o “outro”. Todos estes pontos são “naturalizados”, de modo a que “o feminino” nunca dê a última palavra neste contexto: no mundo da narrativa musical tradicional não há terminações femininas (McCLARY, 1994, p. 16).

simpósio de pesquisa em música 2006 Como nos lembra Susan McClary, para o bem ou para o mal, a música nos socializa. Ela contribui fortemente na formação das identidades de indivíduos, pois os ensina a experimentar emoções, desejos e até mesmo seus próprios corpos (1994, p. 53). Se boa parte dos estudos que tratam do universo da música pop já têm claro que a música lida direta e deliberadamente com a sexualidade (WALSER, 1993; COHEN, 1991), não se pode dizer o mesmo dos estudos sobre a música erudita. Estes, especialmente os realizados pelo viés de uma musicologia presa aos moldes do pensamento social do final do século XIX, gostam de afirmar que a música clássica trata apenas de coisas “superiores”, que ela não seria contaminada pelo “libidinal”, ou quem sabe, mesmo pelo social (McCLARY, 1994, p. 54). Para alguns autores, orientados por um posicionamento mais ideológico em relação ao campo de estudos musicológicos (cf. HATTEN, 2004, ver adiante), seria imprescindível revelar as construções de gênero, sexualidade e poder que estão presentes tanto no texto musical quanto no discurso sobre a música que o meio teórico e o musicológico se esforçam por desenvolver (p. 4-5). Nesta esteira, o trabalho de Susanne Cusick (2001) analisa os primeiros movimentos da academia norte-americana em torno da fundação da New York Musicological Society, em 1930, e da American Musicological Society, em 1934. Cusick apresenta uma breve história de como a compositora Ruth Crawford, na época uma proeminente estudante de composição que já possuía várias obras publicadas, se interessou em estudar contraponto atonal com o Prof. Charles Seeger e teve seu ingresso barrado ao se candidatar para compor o quadro da New York Musicological Society. Sua exclusão deliberada foi, anos mais tarde, assumida por Seeger2, pois ele acreditava que, com isso, estaria evitando que chamassem a então emergente musicologia de “trabalho de mulher”. Este pequeno episódio serve a Cusick para mostrar como a questão de gênero está no âmago da identidade da musicologia norte-americana e, por extensão, da musicologia contemporânea em geral. O medo levantado por Seeger era de que a musicologia fosse associada à posição que a mulher ocupava (e ainda ocupa em muitas áreas) na “vida real”, ou seja, inferior, sem poder, caracterizada pela emocionalidade, sensualidade, frivolidade, todas 2

Que se tornou marido de Ruth algum tempo depois deste episódio.

71 as características que há muito estão ligadas ao próprio objeto da musicologia, a música. Esta antiga associação da música com o universo feminino faz com que os musicólogos tentem sistematicamente manter as mulheres longe do campo, na tentativa de atingir um reconhecimento como ciência, de serem vistos como racionais, sérios e objetivos. Desta forma, a marginalidade do gênero na musicologia acentuou a marginalização histórica das experiências musicais das mulheres, bem como reforçou a ocultação do que é tido como feminino na “vida real”. Entender o porquê da misoginia impregnada na musicologia nos faz ir mais fundo na rede de metáforas pelas quais nossas idéias de gênero são constantemente reforçadas. Cusick enfatiza que, para os homens da associação norte-americana, a presença das mulheres traria à tona a similitude entre música e poder erótico (p. 478). Haveria, portanto, uma necessidade de controle sobre o fluxo do desejo para que a objetividade da musicologia fosse afirmada. A exclusão do prazer seria então importante para a aceitação no campo das ciências, lembrando que a ciência, particularmente nos Estados Unidos, é o campo legitimador das profissões. Assim sendo, a musicologia, posta como a ciência da música, busca disciplinar e treinar compositores, intérpretes e ouvintes a se separarem da intuição, sentimentos e imaginação, todos aqueles atributos femininos associados à arte musical. Seguindo de perto as pesquisas musicológicas ao longo da história, McClary (1994) observa que há uma constante tentativa de dissociação da atividade musical de uma carga supostamente “feminilizadora”: talvez pelo fato desta arte, assim como a dança, estar ligada aos prazeres sensuais, os musicólogos parecem assumir, ao longo da história da música ocidental, uma postura extremamente formalista. Definem a música como a mais ideal (em oposição à física ou material) das artes, insistindo na dimensão racional da música, e clamam por virtudes tidas como masculinas, tais como objetividade, universalidade e transcendência, além de lançarem mão, em diferentes épocas e ocasiões, da proibição da participação feminina. Neste caminho de cientificização, observa-se claramente o projeto hegemônico do “homem branco”, heterossexual, classe-média ocidental, de ditar os cânones que devem ser aceitos e de provocar a exclusão do que crê ser inadequado, projeto já tão contestado pelas correntes pósmodernas do pensamento contemporâneo que vêm

72 nas grandes narrativas3, formas exacerbadas de exclusão social. Segundo Ellen Koskoff, a construção de cânones - estes pensados como conjunto de trabalhos que corporificam valores que são medidos e controlados como um discurso - que advêm desta postura universalizante da música ocidental por si só não representaria um problema: a questão surgiria com o processo de canonização, ou seja, “the institutionalization of certain works over others through the imposition of hierchies of self-invested values upon other people and their musics” (KOSKOFF, 2001, p. 547). Dentro desta narrativa masculina da musicologia estabelece-se implicitamente uma hierarquia na vida acadêmica musical que sistematicamente desvalorizou a performance e a educação musical em prol da valorização da ciência da música. Os instrumentistas e educadores necessitariam de outros que pudessem falar em seu lugar, ou seja, dos musicólogos. Estes, por sua vez, proclamariam o que deveria ser a mais alta forma de música, a “música absoluta” ou a “música em si”, elevando a Forma Musical ao verdadeiro prazer que a música pode oferecer, o prazer da mente. Toda esta discussão parece remontar às idéias de Adorno sobre música, que mereceram longa análise de Richard Middleton (1990). Este autor, ao mesmo tempo em que reitera a importância do pensamento de Adorno para os estudos sobre música, critica duramente seu pessimismo diante do desenvolvimento das sociedades industriais e ataca sua utilização do “método imanente” para criar uma autonomia da música em relação à esfera sócio-cultural, revelando sua perspectiva etno e eurocêntrica (p. 44-45). Como exemplo da riqueza de um repertório repudiado por Adorno, Middleton analisa uma canção da Tin Pan Alley - famoso reduto nova-iorquino de produtores de hits das primeiras décadas do século XX - e avalia como o etnocentrismo do pensador da Escola de 3

O termo “pós-moderno” aparece nos anos 80, para dar conta da exaustão dos pressupostos modernistas, como o fim daquilo que Lyotard chama de grandes narrativas (LYOTARD, 1986) e com mudanças na ordem da economia e da produção industrial (HARVEY, 1993). Já GIDDENS (1991) afirma que o que vivemos hoje não corresponde ao fim da modernidade, mas sim a uma radicalização e universalização das conseqüências da modernidade, embora possamos ver relances da emergência de novos modos de vida e formas de organização social. Algumas características desta modernidade radicalizada seriam: a dissolução dos grandes relatos e, com eles, do evolucionismo; o desaparecimento da teleologia histórica; o reconhecimento da reflexividade constitutiva da modernidade; por fim, a evaporação da posição privilegiada do Ocidente.

SIMPEMUS3 Frankfurt o impediu de ver a importância da música popular e das grandes mudanças que ocorriam no mundo da música ocidental. Já Charles Hamm (1995) detecta os modelos narrativos modernistas sobre música popular que têm sido construídos a partir dos fins do século XVIII, que se ligam às lutas e estruturas de classe européias. Estes escritos são construções que têm em sua base uma estrutura hierárquica e excludente, que privilegia um gênero musical (e sexual) em detrimento de outros. São narrativas como a da autonomia musical -ligada ao idealismo germânico que explicita divisões como highbrow e lowbrow-, a narrativa da cultura de massa -todos aqueles que produzem, criam e/ou consomem os produtos de massa são de classe, etnia ou moral “inferiores”-, as narrativas da autenticidade valorização da música folclórica ou da música de culturas diferentes a partir de seu grau de “nãocontaminação”. Com o desvendamento destas narrativas, torna-se possível perceber que elas estão sendo articuladas ainda hoje em relação a diferentes fenômenos no mundo da música. Voltando à questão da autonomia da musicologia em relação aos “encaixes” sociais, vêse que esta postura é amplamente aceita por teóricos da música de um modo geral, e que todas as narrativas e posturas por eles assumidas estão de acordo com o proclamado ideal do “homem-branco classe-média norte-americano ou europeu”, ou seja, que através da objetividade e da exclusão da sensualidade, pode-se alcançar a “forma pura” e o prazer que o entendimento desta provoca na mente. Fred Maus (1993), em seu ensaio sobre teoria musical relacionada ao discurso masculino, trata as idéias de Hanslick, descritas em seu clássico livro O belo na música (HANSLICK, 1989), como que ressoando as poderosas características do patriarcado ocidental - exaltação da dominação masculina (heterossexual) sobre todas as outras formas de relacionamento humano. Na crítica a Hanslick, Maus observa que a “música absoluta” deixa de fora de suas fronteiras toda música que não corresponde ao modelo proposto. Márcia Citron (1991), por sua vez, também relaciona a idéia de “música absoluta” à representação cultural da masculinidade, pois esta se caracterizaria por considerar seus pressupostos como universais. Ela crê que cultuar a “música absoluta” é cultuar a masculinidade, ou seja, a experiência da “música em si” não pode ser considerada inocente, livre das relações de gênero e livre da política que lhe dá sustentação. Também para Cusick, destronar a “música em si” é um dos objetivos de uma musicologia feminista, visto que cultuá-la significaria cultuar a

simpósio de pesquisa em música 2006 imagem da masculinidade. Para ela, este destronamento representaria uma ameaça à mais profunda crença das democracias capitalistas ocidentais: a idéia de indivíduo liberal, aquele que se vê como livre para escolher o que quiser, quando quiser. A experiência encorajada pelo culto da “música absoluta” é a de uma experiência estética onde o indivíduo pode imaginar a si próprio como um anjo, até mesmo um Deus, em um espaço que seria como o éter onde não haveria gênero, sexualidade ou corpos (2001, p. 494). Contudo, os musicólogos não se perdem no éter da fruição, pois eles são os guias das viagens musicais. Para Maus, a audiência, de um modo geral, pode ser descrita como bottom, os “de baixo”, enquanto que os musicólogos seriam vistos como top, os “do alto”. Com isso, esta audiência (nós, a maioria) parece gostar de assumir uma posição de subordinada, de aprendiz dos superiores, ao mesmo tempo em que aprende a confundir sua subordinação com uma participação imaginária na divindade através da identificação com a entidade chamada “música em si”. Cusick, por sua vez, faz um paralelo entre esta relação da audiência com a “música em si” e a leitura de novelas, afirmando que em ambas existiria uma fantasia de mobilidade e controle social. A imobilidade física imposta pela sala de concerto nos coloca na posição de top e bottom simultaneamente, momento em que há uma liberação de nossos rígidos papéis sexuais, políticos, de etnia e de classe. Tudo estaria projetado na “música em si”, que nos fornece o modelo sônico da imagem de Deus, nos termos como o indivíduo da classe média o concebe, aquele indivíduo liberal descrito pela teoria política clássica (p. 495). Cusick apresenta, por fim, o que poderia ser uma musicologia feminista, observada em dois planos explicitamente políticos de salvamento do feminino na música: o primeiro, chamado de “Onde estão as mulheres?”, que busca retirar as mulheres compositoras e intérpretes do obscurantismo. O segundo plano, chamado de “Como as mulheres e o feminino têm sido representados?”, tem como intenção salvar o poder expressivo, sensual e erótico da música. Neste sentido, a prática musical poderia ser vista como relacionada ao aprendizado da prática erótica, dos relacionamentos sociais e sensuais. Segundo Robert Hatten, toda a discussão das últimas décadas em torno de uma busca do significado musical foi orientada e afetada basicamente por duas correntes musicológicas às

73 quais chamou de crítica e ideológica (HATTEN, 2004). A primeira, representada por musicólogos como Joseph Kerman, Leo Treitler e Leonard Meyer, buscou superar o positivismo e o formalismo em prol de análises e interpretações com uma crítica historicamente mais informada. Na segunda orientação, que envolve um posicionamento mais ideológico, Hatten coloca Lawrence Kramer e Susan McClary, envolvendo a crítica pós-moderna, a desconstrução, a hermenêutica e o feminismo, revelando as construções de gênero, sexualidade e poder no texto musical (p. 4-5). Como se pode depreender do que foi escrito até aqui, esta comunicação centrou-se claramente nesta segunda orientação, por concentrar autores e trabalhos que questionam as relações de gênero no campo da música. Os dados apresentados sobre a música indígena servem aqui de contraponto para nos ajudar a pensar questões que rotineiramente temos como claras e certas, como por exemplo: (1) em geral se crê que sociedades indígenas não possuem música estruturalmente elaborada, enquanto que na sociedade ocidental, principalmente no meio da música erudita, falar de tal elaboração é quase uma obviedade; (2) uma sociedade que coloca a “casa dos homens” em seu centro e proíbe as mulheres de freqüentá-la pode ser vista como machista e autoritária, enquanto que a sociedade em que vivemos é tida como “idealmente” liberal e democrática. Contudo, depois do que foi dito sobre a música ocidental e o papel das mulheres neste cenário, dificilmente poderíamos comparar a atuação das mulheres na música erudita àquela das mulheres indígenas que tomam o centro da aldeia e impõe suas idéias e anseios através das músicas que criam e executam publicamente. Neste contexto indígena, homens e mulheres produzem, interpretam e absorvem a música de forma equilibrada e entrelaçada, procurando expor e conter o que há de mais conflitante nas relações sociais, enquanto que na sociedade ocidental, através de um discurso universalizante, impõem-se significados claramente “generizados”. A dimensão das relações de gênero no cenário brasileiro revela-se em estruturas institucionais que não têm sido estudadas sob esta perspectiva, tais como Academia Brasileira de Música, Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, Sociedade Brasileira de Musicologia. Há uma carência de pesquisas musicológicas produzidas no Brasil que problematizem pontos como: faixa etária das mulheres que atuam no cenário da música pop/rock, em grupos folclóricos e na música erudita; questões étnicas e raciais que perpassam os grupos musicais; produções individuais e

74 coletivas; formas de organização dos grupos; visões da mídia sobre as mulheres na música, entre outros. O estudo das trajetórias de vida de mulheres emblemáticas da música brasileira, tais como Chiquinha Gonzaga, Carmem Miranda, Guiomar Novaes, Dolores Duram, revistas sob a ótica de uma musicologia orientada pelos estudos de gênero, representaria também um

SIMPEMUS3 passo importante a ser dado. O estudo da musicalidade brasileira revista sob tal perspectiva poderá revelar como o “feminino” e o “masculino” se projetam e se constroem através do discurso musical, tanto no nível das estruturas composicionais, dos arranjos instrumentais e vocais, bem como no plano das letras das canções. >|<

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Aspectos da oralidade na atual produção musical nordestina: a relação palavra e música na obra de Elomar Nivea Lazaro dos Santos Universidade Federal Fluminense

Resumo O trabalho propõe uma reflexão em torno da relação palavra e música na obra do cantor e compositor Elomar Figueira. Partindo-se do conceito de oralidade, define-se a premissa sobre a qual se pensará a obra deste compositor. Compreende-se que são duas as acepções da palavra: uma oralidade discursiva e outra, formal. A obra elomariana é analisada respeitando-se tal distinção. Do ponto de vista formal, observa-se como a linguagem escolhida por Elomar se relaciona com sua música. Quanto ao discurso, a reflexão reside nos traços de oralidade presentes em sua obra. A análise realizada aponta caminhos para uma melhor compreensão da relação entre composição e cultura e de como palavra e música se imbricam atendendo às intenções do compositor. Palavras-chave: oralidade; palavra; música; Elomar.

Houve um tempo em que a fronteira entre literatura e música era tão tênue a ponto do ofício do poeta não denotar uma clara distinção entre falar e cantar, o que indica a estreita relação entre as duas artes por via da voz. Partindo-se desta asserção, neste trabalho pretende-se mostrar a íntima relação entre literatura e música da atual produção musical nordestina acentuando as marcas da oralidade na obra do compositor, cantador e violeiro Elomar Figueira como representante deste segmento musical. Seguindo a distinção no conceito de oralidade apresentada neste trabalho, a obra de Elomar se revela um exemplo peculiar (e bem diferente dos cantadores pesquisados pelos pioneiros em folclore no Brasil). Apesar da aversão à exposição midiática, Elomar teve e tem contato com diversos outros mundos. É homem estudado e, ao mesmo tempo, resgatador das antigas lendas, contos, mistérios e valores que, não raro, ainda figuram o imaginário nordestino, sincretizando influências folclóricas e eruditas em sua música. Em vista dos estudos encontrados sobre oralidade e música nordestina (em sua maioria, a cantoria e seus estilos) cujo foco é quase que exclusivo no aspecto discursivo desta relação, propõem-se aqui caminhos para uma análise não restritiva ao aspecto discursivo do texto, mas uma análise que também considere os aspectos formais da palavra e da voz como elemento que dialoga com o significado musical de uma obra.

Do conceito de oralidade. Duas acepções a serem observadas Dentre as acepções do vocábulo "oralidade", podem-se encontrar tanto traços semânticos relacionados ao discurso e à condição do que é oral em si. No artigo de Luciana Ferreira M. Mendonça sobre literatura e oralidade, por exemplo, encontram-se os pares oralidade / audibilidade e poeta / compositores. Tais relações podem ser manifestas na tradição temática da cantoria nordestina e na performance desta. Os estudos de Paul Zumthor (ZUMTHOR, 1993) sugerem que, houve um tempo, estas duas artes – literatura e música – não apresentavam contornos rígidos e aparentemente estáticos como nos nossos dias. Em seu livro "A letra e a voz", Zumthor difere os tipos de oralidade e enfatiza a funcionalidade da voz em relação ao texto. Desta forma, o autor distingue os tipos de oralidade: oralidade primária, mista, segunda e a dos meios de comunicação. Na oralidade primária, não há contato com a escrita e a base da comunicação é exclusivamente oral. Na mista, há uma influência da escrita, mas tal influência é parcial e externa. A oralidade segunda parte de uma cultura já letrada, apresentando um caminho de retorno à oralidade. E a última refere-se à oralidade pertencente à cultura de massa. À luz desta classificação, a música de Elomar será observada sob a definição da oralidade mista. Diante destes conceitos de oralidade, é possível compreender o termo em vista de dois aspectos: o discursivo e o formal. No primeiro, o conceito em questão atrela-se à própria temática da produção musical e no segundo, este se analisa

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na medida em que se observam as relações formais entre palavra e música. Retomando Zumthor, este propõe o conceito de índices de oralidade. Os índices de oralidade constituem-se de indicações sobre o uso da voz no texto, são marcações que indicam a intervenção da voz no texto (ZUMTHOR, 1993). O autor coleta textos entre os séculos X e XV contendo notações musicais sugerindo a íntima relação entre voz/ música e poesia. É na observação da intenção de voz que se estabelece uma relação mais estrutural entre música e palavra/ literatura. Como, por exemplo, compreender o que motivou a modificação da versão portuguesa da lenda da Donzela Teodora de prosa para verso na versão brasileira e qual a relação intrínseca na escolha das palavras, na forma de falar que alteram o significado do "texto musical". Seriam tantos os exemplos que cabe agora dissecar uma amostra da música nordestina através do bardo sertanejo Elomar. Relação palavra/ literatura e música na obra de Elomar Análise da oralidade formal A primeira observação a respeito da linguagem empregada nas canções de Elomar acontece nas palavras do próprio cantador: "uma vez que a gente canta em linguagem dialetal sertaneza" [sic]. Mas qual o diferencial dessa "linguagem dialetal sertaneza" para que o músico a chame "dialetal"? Uma breve comparação desta linguagem com a norma culta do português pode sugerir tal resposta. Em relação ao português pertencente à dita norma culta, observa-se, no dialeto sertanejo usado por Elomar, um dado conservador em certa medida. Este fenômeno refere-se às nasalizações e de como estes se diferenciam da norma culta do nosso português. Tomando-se, por exemplo, os vocábulos "lũa", "madĩa", "mĩa" e "cumpaĩa", observamos, nos três últimos exemplos, a queda do fonema representado pelo dígrafo "nh", mas não da nasalização. Há, nestes exemplos, uma redução que remonta do português arcaico (TARALLO, 1994). No caso de "lũa", houve a queda de outro fonema (/n/), ainda assim, mantendo-se a nasalização tal qual nos outros vocábulos. Além dos exemplos citados, ocorrem diversos outros tipos de supressão de fonemas. Desconsiderando a apócope observada nos verbos empregados no infinitivo por não se constituírem

realização exclusivamente nordestina, a supressão do fonema /d/ em "veno", "prossiguino", dentre outras formas gerundivas, é característica do nordeste do Brasil. O próprio léxico também aponta respostas. As alusões à lua, aos animais, à vida no campo em si indicam um estilo de vida que não é comum aos grandes centros. Como afirma o compositor: Então decidi que, ao tratar de temas ligados à sociedade rural, dos roçadianos, sempre iria escrever na sua variação lingüística." (ELOMAR, in GOBBI, 2005 )

Assim posto, é preciso relembrar a diferenciação baseada no conceito de oralidade. Para fins de análise, empregarei o termo "oralidade discursiva" para a oralidade que se refere ao conteúdo temático do texto propriamente dito em oposição à "oralidade formal" que se relaciona com o aspecto formal da língua portuguesa. Passo ao aspecto que denominei por oralidade formal, sobre o qual a análise de como as palavras e a melodia de uma canção se relacionam constituem um dos fatores determinantes à feitura e interpretação de uma obra. Na canção "Faviela", por exemplo, observa-se a sincronia da sílaba tônica com a mudança de acorde. Trata-se de uma composição em compasso quaternário que, via de regra, apresenta um tempo inicial forte, o seguinte sendo fraco, outro, mezzo forte e o seguinte também fraco, seguindo a fórmula F f Mf f. Embora se reconheça a mensuração da música, é interessante observar que o intérprete (o próprio Elomar) não a segue fielmente como afirma Mário de Andrade a respeito dos cantadores: O cantador aceita a medida rítmica justa sob todos os pontos de vista a que a gente chama de Tempo mas despreza a medida injusta (puro preconceito teórico as mais das vezes) chamada Compasso. (Mário de Andrade, apud CASCUDO, 1939: 145).

Neste sentido, Andrade distinguiu os termos tempo e compasso ao tratar dos cantadores. Em Faviela observa-se que o compositor interpreta sua canção exatamente nestes moldes, sendo recorrente em todas as estrofes em que há uma leve precipitação do tempo inicial, o tempo forte (F) onde recai a sílaba tônica das palavras1. 1

Para o aprofundamento de uma análise musical de Elomar, seria ideal utilizar suas partituras. No entanto, estas não estão disponíveis para venda. Um songbook contendo cerca de dez óperas escritas pelo compositor está sendo produzido pela

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simpósio de pesquisa em música 2006 Observa-se também o ralentar do acompanhamento da viola de Elomar, sempre marcante nas finalizações de cada verso e, por vezes, no início destes. Ainda, nas palavras do mesmo pesquisador sobre o tempo da cantoria: São movimentos livres acentuados por fantasia musical, virtuose pura, ou por ocasião prosódica. Nada tem com o conceito tradicional da sincopa e com o efeito contratempado dela. Criam um compromisso sutil entre o recitativo e o canto estrófico. (Mário de Andrade in CASCUDO, 1939: 145).

Afora a questão do contratempo, presente na música de Elomar, o "compromisso entre o recitativo e o canto estrófico" é evidente em suas composições. A presença deste efeito "contratempado" não apaga a imbricação concernente aos limites entre música e palavra na obra de Elomar. Bem ao contrário. O falar não segue estas normas rítmicas. Daí um dos laços da música de Elomar com a cantoria nordestina estudada pelos folcloristas, haja vista que já é consenso classificar cantoria como gênero poéticomusical por diversos autores (RAMALHO, 2000). Retomando o compromisso mencionado por Mário de Andrade, é na viola de "Cantiga do Estradar" e "Faviela" (ELOMAR, 1984: Faixas 7 e 9) que se revela esta conjugação entre o canto e acompanhamento. Em primeira instância, é possível que se precipite em dizer que o instrumental na música de Elomar esteja sujeito à palavra, às suas estrofes. Contudo, a exemplo do rojão, do ponteio da viola entre suas estrofes, percebe-se que o instrumental na música de Elomar adquire feições próprias, distintas das estrofes, sem estar isoladas destas. Os dois elementos coocorrem e dialogam um com o outro, sendo enfatizados individualmente, cada um ao seu tempo e à sua intenção. Em "Faviela", por exemplo, dentro da estrofe inicial, ao final de cada verso, o tempo musical é preenchido com um pequeno solo de viola, estrutura harmônica que se revela como característica do músico.

Dentro do mesmo exemplo, outro elemento que sugere a relação do texto (como um todo) com o jogo harmônico instrumental, referem-se aos graus de tensão da harmonia e de como estes se conjugam com a tensão da história narrada pela música. Assim, tem-se uma canção desenvolvida no tom Fá maior. Que encerra todos os ciclos harmônicos da música, apresentando uma resolução própria do sistema tonal indicado nas finalizações conjugadas com as palavras "chegá", "lá". Com o monossílabo "pai" há uma preparação para um outro ciclo, uma mediação para o momento de tensão na música indicado na mudança do acorde de um grau maior para o menor (Fá menor), acentuado por ser justamente o acorde que indica o tom da música. Este outro ciclo apresenta seu ponto de partida na sílaba tônica de "tomem". E, encerrando este ciclo de tensão, a tônica de "priguntá". Visualizando a letra, torna-se mais compreensível esta mudança na narrativa do texto: A bença madĩa cabei de chegá Do rêno das pedra das banda de lá Meu pai mando queu vince aqui te salvá Tomem queu subesse das nova de cá De nada isquecesse de li priguntá (ELOMAR, 1984).

Algumas elucidações sobre esta estrofe corroboram para a compreensão dessas alterações harmônicas. A canção narra a jornada de um "malonguinho" de 15 anos cujo pai pede que vá à casa de sua madrinha levar notícias de sua família e também trazer notícias de lá ao seu pai. Ao chegar à casa de sua madrinha, ele a saúda e pede sua benção. Nos versos seguintes, ele esclarece os objetivos de sua viagem. Essa divisão é claramente acompanhada pela harmonia da canção. A exemplo de "Faviela", o mesmo jogo rítmico que conjuga palavra e música se apresenta em “Cantiga do Estradar”. Observe-se a estrofe: Tá fechando sete tempo qui mia vida é camiá pulas istradas do mundo dia e noite sem pará (ELOMAR, 1984, Faixa 7)

Casa de Cultura de Vitória da Conquista. Um projeto de catálogo digital de todas as suas gravações e outras partituras foi selecionado por um programa da Petrobrás e aguarda, somente, a liberação do patrocínio para sua elaboração.

Excetuando o vocábulo “istradas”, todos os outros unem sílaba tônica à acentuação do compasso (quaternário) e à mudança de acordes. Esta mesma combinação segue a estrofe seguinte, no entanto, a melodia e a harmonia assinalam o aumento da tensão descrita na letra. A divisão

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rítmica seguem sílabas mesma música.

à qual se submetem os acordes que dos versos sete ao dez acompanham as das palavras concordando com esta tensão que coopera com o texto da

Além destes elementos, outro parece ainda mais marcante nesta canção e nas obras de Elomar de modo geral: os solos que ocorrem no decorrer das estrofes acompanham a melodia da música, reafirmando assim seu texto poético, unindo-o ainda mais à música. Tratou-se até esta etapa de uma oralidade formal, intrínseca à música e ao texto. Uma oralidade que revela um movimento interno no poema-canção (ou canção-poema). Oralidade discursiva ou textual A despeito da oralidade discursiva ou textual, considere-se uma breve interpretação acerca de outra obra deste cantador: Cada pedaço desta canção, que se delimita musicalmente em trechos de caráter diferente, se apóia na força ancestral e contundente da tradição oral, transmite um clima de magia permanente da primeira à última linha [...] Misteriosamente, como numa colagem, surge o tema do veadinho branco, que aparece no mundo do romance de encantamento medieval e que é também transmitido pela História do Imperador Carlos Magno, um dos textos matrizes de nossa cultura popular e sertaneja. (FERREIRA, Jerusa Pires, apud XANGAI, 1984: Faixa 1).

Segundo, Cascudo, a História do Imperador Carlos Magno, ao lado de outras obras como a Donzela Teodora, Lunário Perpétuo dentre outras, compõem fonte de erudição dos cantadores. Como o comentário sugere, o compositor tem conhecimento das obras de base da tradição folclórica do sertão. Diz-se de Figueira Mello o seguinte: Daqui leu todos os poetas, escritores e profetas hebreus; leu os mélicos e os clássicos gregos; os latinos, incluindo Esopo e o Fedro; os italianos, franceses, ingleses, espanhóis, russos e, por último, os alemães, tendo, é claro, antes disto perpassado pelos essenciais patrícios. (ELOMAR, 2006)

No intuito de esclarecer tal afirmação é preciso explicitar alguns dados biográficos do compositor.

Elomar nasceu em Vitória da Conquista, Bahia em 1937. Aos sete anos de idade, deixou a vida urbana e rumou para São Joaquim de onde saiu apenas para estudar em Salvador. Entre suas chegadas e partidas da terra natal, teve contato com a música dos cantadores Zé Krau, Zé Guelê e Zé Serradô. Além dos cantadores é preciso ressaltar, na sua infância, a presença das músicas do hinário cristão de base evangélica (profissão de fé de sua família por parte de mãe). Mas é na capital que descobre a música de câmara. Figueira Mello compõe desde os onze anos de idade, entretanto, é aos dezessete que inicia suas "composições literárias e musicais" no formato que se consolidou posteriormente. Já nessa época adquire fluência na leitura musical, ao passo que sua escrita musical precisa ainda ser desenvolvida. Somente no início da década de 80, abre mão da arquitetura como sustento no, passando a dedicar a maior parte do seu tempo ao exercício da composição. Radicado em Vitória da Conquista, além da música, Elomar ocupa-se de atividades agro-pecuárias em suas fazendas. Daí percebem-se traços distintivos entre os cantadores/ repentistas pesquisados por Cascudo, Mota entre outros folcloristas e músicos que se encaixariam em uma outra categorização como Elomar. Contudo, observa-se que, o discurso musical de Figueira remete ao mesmo legado da música dos cantadores. A temática elomariana é predominantemente a respeito da vida do homem do campo, o homem sertanejo. A exemplo do que ele mesmo diz ao afirmar que trata de temas da sociedade rural. Mas que temas, em sua obra, constituem amostras do arcabouço da tradição oral nordestina? Em seu álbum solo, Cantoria Brasileira 3, a primeira canção "Donzela Teodora" trata da história de uma donzela que desafiou todos os sábios de um rei, obtendo por recompensa "mili dobra de oro". Segundo Cascudo, a origem árabe do conto é indiscutível e chegou a nós, via Espanha e Portugal, através da tradução de Carlos Ferreira Lisbonense (CASCUDO, 1939). Tal narrativa encontra-se nas edições do Lunário Perpétuo e do Manual Enciclopédico (fontes literárias da cantoria nordestina). A versão sertaneja está em verso, enquanto as demais se mantêm em prosa. A respeito desta alteração, uma das motivações que podem tê-la favorecido está na adequação da forma narrativa à música. Os registros mais antigos da música ocidental (que datam da Idade Média) apontam a preferência da poesia, da versificação para a musicalização das estrofes (ZUMTHOR, 1993).

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simpósio de pesquisa em música 2006 Também desta forma, a relação entre texto e música se estabelece. Trata-se de uma melodia nos moldes descritos por Andrade, revelando o compromisso entre o recitativo e as estrofes, de acompanhamento instrumental que conjuga acordes e sílabas tônicas. A música de Elomar comporta uma harmonia que sugere a influência da música medieval (CÂNTICOS, 1996). Em História de Vaqueiros (XANGAI, 1986) o tema se aproxima mais do presente: uma espécie de "louvação" aos heróis do sertão: Mas foi tanto dos vaquero que rênô no meu sertão Qui cantano um dia intero num menajo todos não (XANGAI, 1986, Faixa 9)

É um mote revelador de traços que remetem às canções de gesta (um dos temas de base da cantoria tradicional). Uma narrativa da saga dos vaqueiros, contando o corpo a corpo dos heróis com animais (no caso, o boi) ou outros elementos do imaginário nordestino (nesta canção, o lobisomem). Em se comparando esta canção com a anterior, a primeira, aponta uma aproximação maior das raízes medievais ibéricas, mas, ambas apresentam melodias recitativas. As duas constituem narrativas, bem como grande parte da obra de Elomar.

sugerindo este clima de melancolia vivido pela personagem. Os elementos religiosos presentes no texto remetem a uma das fontes da cantoria sertaneja: Menos lido, mas inseparável dos cantadores letrados, todos campeões do ortodoxismo católico. Os recursos de orações, explicações de fácil teologia... catecismo, regras morais, tudo vinha da ‘Missão Abreviada’ (CASCUDO, 1939, p. 92).

Em todo caso, não se desconsidere o histórico familiar de Elomar, ascendente de uma família de cristãos novos (daí o sobrenome "Figueira"). Nesta parte da análise, é possível observar que, a influência cultural da capital, não anulou em Elomar as raízes de uma oralidade tipicamente "sertaneza". Seja consciente (como ele afirmou ser) ou não, suas canções revelam muito da vida, do contexto do homem do campo cujo elo com o legado colonizador europeu é mais evidente quando comparado ao "urbanóide" (usando a terminologia do próprio compositor). Tal elo se expressa no diálogo entre temas e música. O jogo harmônico de suas canções, os instrumentos utilizados em suas composições (todos à base da viola e do violão), heranças do contato com o europeu (SOLER, 1978 in RAMALHO, 2000), diferenciam-no da música urbana e o aproximam da produção ibérica medieval.

Considere a letra de Patra Véa do Sertão: Considerações finais Patra véa do sertão Terra donde eu nasci Teus campo de solidão Me alembra ôtro sertão Qui a sagrada letra canta E muitu longiu daqui Pl’as banda da Terra Santa Nos campo de Abraão No sertão do Rei Davi (ELOMAR, 1991, Faixa 3)

O trecho corresponde a uma das árias de Elomar. Trata-se de uma mulher que, após aceitar a proposta de fuga de sua prima, lança um lamento, um grito de dor despedindo-se de sua terra. Primeira observação de como o texto dialoga com o significado da harmonia da canção, ocorre na tonalidade desta. É uma melodia triste com finalizações em intervalos descendentes (PRIOLLI, 1979), cujo tom é menor

Ao nos deparar com uma obra musical ou literária, muitas vezes, surge a pergunta de como o compositor ou autor chegou àquela forma, qual o significado dela, daquele conteúdo. Uma melhor compreensão em torno da questão da oralidade pode elucidar algumas respostas de como a intenção de um intérprete (seja ele músico ou poeta) atua em uma determinada obra. Segundo Ramalho, "os estudos sobre tradição oral e cultura escrita têm revelado aportes importantes para se entender melhor a confluência de modos de pensar com os quais convivemos no momento atual." Ratifico: os estudos sobre oralidade apontam diretrizes para a compreensão do arcabouço ideológico do homem atual, tanto no seu aspecto conservador, quanto no seu aspecto transformador. E, de um modo intrínseco, compreender melhor a relação palavra/ literatura e música nos dá pistas de como o contexto histórico-social se manifesta nas características de um dado estilo musical, de um dado artista. A obra se revela, então, um microcosmos de seu contexto social que,

80 através dos elementos próprios da arte (formais e discursivos como a denúncia e a descrição, por exemplo), corroboram com uma melhor compreensão da ideologia que transmite. Em se tratando de oralidade, poderia se pensar que a escolha de Elomar enquanto corpus para a análise não constituísse um bom exemplo, por se tratar de um compositor que deliberadamente escolheu o linguajar de suas canções e seu modo de vida também, posto que teve opções outras que não a música. Mas, não seria também justamente essa escolha pessoal do cantor provocadora da reflexão sobre os

SIMPEMUS3 motivos que o levaram a regressar ao campo, constituindo assim, um modo de chamar a atenção para o modus vivendi e o modo de pensar do homem proveniente de uma região tão peculiar do país? Creio que é nesse aspecto que o cantadorviolêro-poeta-compositor Elomar Figueira tem seu lugar, sua voz e vez de evidenciar a cultura nordestina. Mostrando que nem só de reprodução vivem os cantadores, mas, criando e revisitando seu imaginário, seu folclore, penetram em traços da alma brasileira que o homem "urbanóide" costuma sufocar.

Nota da autora: As partituras de Elomar não estão disponíveis para venda. Um songbook contendo cerca de dez óperas escritas pelo compositor está sendo produzido pela Casa de Cultura de Vitória da Conquista. Um projeto de catálogo digital de todas as suas gravações e outras partituras foi selecionado por um programa da Petrobrás e aguarda, somente, a liberação do patrocínio para sua elaboração.

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Os estilos e as idéias em Villa-Lobos José Ivo da Silva Universidade Estadual Paulista Resumo A partir de conceitos estético-musicais lançados por Arnold Schoenberg em seu artigo “New Music, Outmoded Music, Style and Idea”, presente no livro “Style and Idea”, procede-se a uma abordagem da obra de VillaLobos com o objetivo de refletir sobre a pertinência de tais conceitos na obra do compositor brasileiro, levando-se em consideração a contemporaneidade dos dois artistas e suas diferentes posturas frente à música do século XX. A síntese do artigo de Schoenberg e seus conceitos fundamentais sobre estilo e idéia é o primeiro passo. Posteriormente, o dimensionamento do conjunto da obra de Villa-Lobos em seus aspectos composicionais e estéticos, apoiados em análises, tese e dissertações sobre o compositor brasileiro, feitas por alguns estudiosos e pesquisadores das últimas décadas. Por meio de reflexão sobre estes trabalhos serão apresentados conceitos e tendências que delinearam as características do compositor Heitor Villa-Lobos, às quais sublinham-se as convergências e divergências com o pensamento do criador do sistema dodecafônico. O contexto histórico vivido pelo compositor brasileiro desempenha igual importância e propicia abordar outros conceitos como o nacionalismo, o “manifesto antropofágico” do modernismo brasileiro e as tendências contemporâneas modernas absorvidas em sua música. E por fim, conclui-se, baseado neste exercício reflexivo, se esta apreciação tornaria os estilos e idéias de Villa-Lobos em Estilo e Idéia no âmbito do pensamento universal.

Abordar Villa-Lobos a partir de Schoenberg parece um contrasenso, mas a intenção é contextualizar a obra de Villa-Lobos sob a ótica de alguns conceitos lançados por Arnold Schoenberg em “Estilo e Idéia”, no capítulo “Música Nova, Música Antiquada, Estilo e Idéia”1, e ampliar esses conceitos para outros autores. (SCHOENBERG, 1963, p. 67-84) Schoenberg, no artigo acima citado, trata separadamente de cada um dos termos do título do artigo, isto é, música nova, música antiquada, estilo e idéia. Faz duras críticas aos pseudohistoriadores, como profetas estéticos, que lançam slogan como “Música Nova”, tentando incentivar a produção de novidades, mas não possuem a menor responsabilidade como criadores. Posteriormente, relaciona os termos do título considerando suas significações, interrelações e historicidade, e traz conceitos pessoais aos quais condiciona as transformações para uma nova música a resultados conquistados por verdadeiros artistas, ou seja, por aqueles que possuem a “Idéia”. O conceito de “Idéia” trabalhado por ele engloba mais do que a simples 1

Trata-se da palestra intitulada “Neue und veraltet Musik oder Stil um Gedanke”, proferida por Schoenberg no Kulturbund de Viena em janeiro de 1933 (W.R.). Seu texto está incluído nos escritos reunidos de Schoenberg, publicados por Leonard Stein, sob o título Style and idea. Possui, portanto uma versão em inglês (Belmont Music/Faber & Faber) outra em francês (Buchet/Chastel) e também em espanhol (Taurus).

idéia temática. A “Idéia” para Schoenberg constitui o aspecto mais importante para a obra de arte, tal conceito é exposto por ele da seguinte maneira: “Em sua mais corrente acepção, o termo “idéia” se dá como sinônimo de tema, melodia, frase ou motivo. Quanto a mim, considero a peça em sua totalidade como idéia: a idéia que seu criador quis realizar”. Um sistema de sucessão de notas produz um estado de inquietude causado pela dúvida de sua direção tonal:2 O sistema mediante o qual se restabelece o equilíbrio é para mim a idéia real da composição. É possível que a freqüente repetição de temas, grupos, e inclusive partes mais extensas, tenha de ser considerada como intentos para conseguir um equilíbrio prévio para a correspondente tensão. [...] Uma idéia não perece nunca. (SCHOENBERG 1963, p. 82-83)

A concepção de idéia em Schoenberg parece aproximar-se de uma visão metafísica, quando diz que ela nunca perece; isto faz lembrar Schopenhauer e a filosofia de Platão: em que os objetos do mundo não eram mais que aparências, meras sombras das coisas verdadeiras, as quais o homem não podia conhecer neste mundo, feito todo ele de representações imperfeitas. Entendendo que para Platão as coisas 2

Todas a citações em outras línguas foram traduzidas pelo autor.

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SIMPEMUS3 perfeitas e absolutas existiam no mundo das idéias, onde as almas, antes de se encarnarem nos corpos, puderam vislumbrá-las. No mundo das idéias existe a beleza total e completa, mas coisas belas do mundo eram belezas incompletas, eram apenas representações imperfeitas da verdadeira beleza, que estava fora do alcance e da compreensão do homem. No entanto Schopenhauer pondera que existe uma coisa absoluta que o homem conhece totalmente: a vontade. [...] A vontade aqui nada tem a ver com a decisão racional por uma opção de agir, mas trata-se de um ser absoluto, essência primeira, a coisa em si, o noumeno, que é irredutível e gera todas as coisas deste mundo (COBRA, 2003).

Schopenhauer fazia parte da biblioteca de Schoenberg. No entanto, Anton Webern, em uma de suas aulas reunidas em “O Caminho para a música nova”, comenta a busca de Schoenberg por uma definição da palavra “idéia” inserida em um contexto aplicável à compreensão deste termo no universo musical. Isto aconteceu justamente quando ministrou a palestra intitulada “Música Nova, Música Antiquada, Estilo e Idéia”, em janeiro de 1933. (WEBERN, 1984, p. 106-107) Mais adiante, neste capítulo, Schoenberg traça uma linha de compositores germânicos, começando com Bach e seguindo até alguns de seus contemporâneos, para demonstrar a transformação musical de todo esse período. Ele utiliza o termo “Variação em Desenvolvimento” para compreender a estrutura em sua complexidade de relações internas e construtivas da tradição musical. O conceito de “Variação em Desenvolvimento” de Schoenberg traz consigo a idéia do universal, e é introduzido para ilustrar a transformação homofônico-melódica do fim do Barroco para o Classicismo, que continua durante o século XIX. Esse conceito fundamenta o princípio de unidade, coerência e inteligibilidade, considerados por Schoenberg necessários para sustentar a qualidade artística da música como obra de arte: “O que quer que aconteça em uma peça de música não é nada além de reestruturação infinita de uma mesma idéia básica” (SCHOENBERG, 1984, p. 208). Uma crítica comum feita à obra de VillaLobos é a de utilizar uma sucessão de idéias sem desenvolvimento, o que lhe confere um caráter episódico. O emprego de estruturas não reiterativas evidencia uma busca de modelos de composição por músicos no início de século XX, principalmente com Debussy e Stravinsky. Isso envolve uma elaboração criteriosa de montagem

que difere dos modelos utilizados por Schoenberg, tido como conservador em relação ao aspecto formal (SALLES, 2005, p. 77). Villa-Lobos, em várias ocasiões, demonstra não ter uma busca formal preconcebida. O inusitado está presente como um estigma de sua originalidade. Para Schoenberg, a idéia, como fundamento mais importante de uma composição, moldará o estilo. Nunca partirá de um estilo preconcebido: “O estilo é a qualidade da obra e se baseia nas condições naturais que definem quem as realizou. Com efeito, aquele que conhece suas faculdades poderá dizer de antemão como será exatamente a obra terminada quando, todavia, não a está vendo mais que em sua imaginação”. Aqui atribui ao compositor, compreendido como verdadeiro artista, o status de artífice e conhecedor da natureza do material com que trabalha. (SCHOENBERG, 1963, p. 80) Villa-Lobos, em suas inquietações, tinha presente essa responsabilidade de artífice e trazia consigo o domínio do material musical. A quantidade e variedade de composições contidas em sua trajetória extrapolam qualquer expectativa. Alguns musicólogos e pesquisadores sublinham nesta obra, ao analisarem aspectos composicionais, a multiplicidade estilística e sua inventividade temática como traços característicos de seu trabalho composicional. Como, então, abordar estilo e idéia em seus procedimentos composicionais? Lisa Peppercorn expõe sua dificuldade em estabelecer um desenvolvimento na trajetória de Villa-Lobos, porque não há uma linha contínua de evolução em sua obra. A autora condiciona essa dificuldade a fatores da personalidade do compositor brasileiro e a outras razões de ordem externa: Ele pode, por um tempo, aderir a certos estilos ou subitamente pular para trás, utilizando uma forma de expressão própria, aparentemente abandonada, ou começar uma linha inteiramente nova. Ele parece gostar de fazer o inesperado, embora isto possa atualmente torná-lo intranqüilo e impedi-lo de estar atado a algum estilo ou tipo especial por um longo tempo. Se chamado em alguma ocasião para um novo trabalho, ele responderia a este chamado, mesmo que isto significasse mudar completamente para uma nova forma ou deixar um trabalho inacabado (PEPPERCORN, 1992, p. 16-17).

O que ela quer dizer com estilos nesta frase? Não parece se tratar de um traço da individualidade artística do compositor, mas sim

simpósio de pesquisa em música 2006 uma roupagem que se molda conforme uma necessidade premente, estabelecida por situações externas. O estilo como conjunto de características de um autor ou de uma época é a acepção mais comum que se encontra nos dicionários. No trecho acima, Peppercon não deixa muito claro se essa mudança estilística na escrita musical de Villa-Lobos está ligada ao domínio da linguagem musical, na história do compositor, para um amadurecimento, quando diz que ele retoma algo não terminado, ou uma simples mudança no tratamento musical dado às suas composições, ou mesmo uma mudança de gênero. Nestes casos haveria uma diferença entre estilo ou estilos. Schoenberg diz mais sobre estilo: As regras positivas e negativas se deduzem de uma obra terminada como constitutivas de um estilo. Cada pessoa possui suas próprias impressões digitais, e a mão do artífice tem sua personalidade; fora dessa subjetividade se estendem os traços que determinam o estilo do produto terminado. [...] De suas faculdades naturais depende o estilo de tudo quanto faça, e seria um erro esperar que uma ameixeira desse ameixas de cristal, ou pêras, ou chapéus de feltro (SCHOENBERG, 1963, p. 79).

O conceito de estilo em Schoenberg acena para uma marca individual construída por meio de um ambiente que propicie escolhas pessoais, às quais ele chamou regras positivas e negativas de uma prática musical de um determinado período. Antes de expor o conceito de estilo como marca individual, Schoenberg faz uma listagem de características negativas contextualizadas na época em que escreveu este artigo: Ao lado destas proibições oficialmente autorizadas, tenho observado características negativas, tais como: notas pedais (em lugar dos baixos melódicos e harmonia resolutiva), ostinatos, seqüências (em lugar de variações progressivas), fugatos (com igual finalidade), dissonâncias (para encobrir a vulgaridade dos motivos temáticos), objetividade (neue Sachlichkeit), e uma espécie de polifonia, substitutiva do contraponto, a qual, por suas imitações inexatas, tivera merecido antigamente a repulsa, ao qualificá-la de “Kapellmeistermusik”, ou o que eu chamo de “contraponto Rhabarber” (um contraponto carente de significação temática). (SCHOENBERG, 1963, p. 78-79)

83 Ao se observarem esses procedimentos incluídos nesta listagem, constatam-se traços de uma prática importante de muitos compositores do início do século XX, entre eles Igor Stravinsky e, sem nenhuma dúvida, também Villa-Lobos. As inquietações de Stravinsky não correspondiam, contudo, às de Schoenberg estreitamente ligadas à tradição germânica. Em Stravinsky, a riqueza rítmica irregular e a manipulação tímbrica da massa sonora predominavam como características essenciais de sua música, ainda assim, ele trabalhava o material sonoro dialogando com a tradição tonal, porém, criando uma complexidade de sobreposição tonal. Suas repetições transformadas, organizadas em fragmentos, abriram possibilidades estruturais na forma musical comparadas aos mosaicos cubistas de Picasso. Alguns desses traços foram retirados dos caminhos trilhados pela música russa e francesa, atingindo dessa maneira uma estética pessoal antiromântica, negando a idéia de desenvolvimento alinhada com a tradição germânica. Considera-se também em seu primeiro período criativo a utilização de temas de caráter nacional. Villa-Lobos, em sua trajetória de compositor, passou por essas duas escolas, porém fez sua escolha. O conceito de estilo, pensando-se na obra de Villa-Lobos, agora consiste em uma espécie de base de sustentação caracterizada por um conjunto de práticas estabelecidas em um determinado período histórico, filtradas por escolhas pessoais para resoluções de questões musicais de um compositor, perfazendo “suas impressões digitais”, como diria Schoenberg. Seguindo este raciocínio, Gil Jardim identifica em Villa-Lobos, na sua Bachianas 7, a presença de J. S. Bach, I. Stravinsky e L. V. Beethoven, em um processo que denominou “Estilo Antropofágico” (JARDIM, 2005). Nesta abordagem, feita por meio de análise dos procedimentos composicionais utilizados por Villa-Lobos na Bachianas 7, notam-se de Bach os aspectos formais e a textura contrapontística no último movimento “Conversa”; de Stravinsky, o material rítmico e uso do ostinato da Tocata (Desafio), e finalmente, na aproximação formal do scherzo beethoveniano, a Giga (Quadrilha Caipira). No entanto, Jardim relaciona “Estilo Antropofágico” ao Modernismo brasileiro pensado na figura de Oswald de Andrade em seu “Manifesto Antropofágico”, quando enfatiza o caráter crítico do primitivismo brasileiro a devorar e digerir a cultura do colonizador, e vê o resultado disso em obras singulares como as de Villa-Lobos. Nesta mistura digestiva de estilos variados, a utilização do material nacional traz unidade ao conjunto.

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Pode-se, então, chamar este procedimento composicional de “estilo nacionalista”? Sabe-se que, quando Villa-Lobos chegou a Paris, pela primeira vez, levando debaixo do braço suas composições e dizendo que não estava lá para aprender, mas sim, para mostrar seu trabalho, essa música era marcadamente de uma estética francesa, mais precisamente influenciada por Debussy. Mesmo tendo em sua produção peças de características nacionais, isso não era um diferencial em sua obra até aquele momento. Paulo Guérios conta que, logo após a chegada de Villa-Lobos a Paris, houve um almoço no estúdio da pintora Tarsila do Amaral, cercado por pessoas como o poeta Sérgio Milliet, o pianista João Souza Lima, o escritor Oswald de Andrade, o poeta Blaise Cendrars, o músico e compositor Erik Satie e o poeta e pintor Jean Cocteau, entre outros. Logo depois do almoço houve uma conversa animada e o assunto se desviou para a arte da improvisação musical. Villa-Lobos sentou-se ao piano e começou a improvisar. Ao terminar, Cocteau criticou o que ouviu, dizendo tratar-se de uma emulação dos estilos de Debussy e Ravel, e prosseguiu-se uma discussão acalorada. Guérios levanta a hipótese de que, a partir deste momento, Villa-Lobos tenha percebido que um diferencial para sua produção musical, em solo estrangeiro, seria uma inflexão de caráter nacional. (GUÉRIOS, 2003b) Entretanto, esse fato isolado, embora significativo, tem por trás de si uma conjunção de fatores que direcionará a obra villalobiana a seus estilos musicais ou estilo: a influência da música popular urbana; o contato com outros fenômenos regionais pesquisados ou não por ele, de uma incontestável variedade; várias orquestras européias, no início do século XX, trazendo um repertório com obras de Debussy, Stravisnky, Pucinni, Wagner, Strauss e Mahler; a participação na Semana de Arte Moderna em 1922; os encontros com Darius Milhaud e Arthur Rubinstein e outras variantes que não se tem como identificar. Esse emaranhado de acontecimentos estaria em consonância com o conceito de estilo de Schoenberg, caso se pensasse que todos esses fatores estão na construção de um estilo pessoal de Villa-Lobos. Schoenberg, no mesmo capítulo, faz o seguinte comentário: À parte os afãs nacionalistas em exportar música com que até as pequenas nações

aspiram a conquistar o mercado, existe um traço comum apreciável em todos esses movimentos: nenhum deles se preocupa de oferecer novas idéias, mas sim tão só de oferecer um novo estilo. (SCHOENBERG, 1963, p. 78)

Quando Schoenberg fala de nações pequenas que aspiram a um mercado, referindo-se a afãs nacionalistas, estabelece uma distinção entre a hegemonia musical universal de uma parte da Europa, formada por Alemanha, Áustria, Itália e França, e uma Europa periférica, fora dessa hegemonia, composta por Rússia, Escandinávia, Bohemia, Inglaterra e Espanha. Essa hegemonia consolidada na noção de “música absoluta” traz consigo o conceito idealista da autonomia da música que, por sua vez, se opõe à música nacionalista, tida como dependente de um sistema musical externo. Com isto, o valor artístico atribuído às obras nacionalistas sofre uma depreciação, independentemente de sua qualidade intrínseca, justificada por razões extramusicais, e definida por elementos de uma música de estilo nacional extraídos da cultura de seu compositor. Há na afirmação de Schoenberg sobre os “afãs nacionalistas” uma clara oposição entre nacional e universal. Quando Carl Dahlhaus se volta ao classicismo vienense para confirmar este caráter universal, contextualizado no Iluminismo, constata sua desintegração causada por particularismos no século XIX: A dialética do nacionalismo e universalidade na música não pode ser capturada em uma simples fórmula. A noção de comunidade humana, cosmopolitismo, nacionalismo e individualismo estão todos incluídos na estética musical no século XIX, e isto é, precisamente, porque o pensamento do século XIX foi circulando em volta destas categorias antropológicas, de forma que as relações entre elas eram muito emaranhadas. Uma das características reivindicadas pelo século XIX refere-se à individualidade verdadeiramente original enraizada no ‘espírito nacional’. [...] Esperava-se que um compositor fosse original, levasse em frente o novo na maneira que, ao mesmo tempo, manifestasse as “origens” de sua existência. Na estética de Schumann, esta originalidade era oposta, de um lado, pelo epigonismo, e de outro, pela justa medida (juste milieu) musical, significando uma mistura cosmopolita de elementos de vários estilos nacionais (DAHLHAUS, 1989, p. 37).

Outro ponto importante tratado por Dahlhaus, a respeito do conceito histórico do nacionalismo no século XIX, quando situa a Europa

simpósio de pesquisa em música 2006 para fazer uma distinção entre estilo nacional e nacionalismo: O Nacionalismo, a crença no espírito de um povo como uma ativa força criativa, é uma idéia com um caráter e uma função as quais é simples para identificar com o fenômeno de estilo nacional: em outras palavras, eles não serão com sucesso obrigados a uma definição pelo mero ato de descrever características musicais tangíveis (apud BÉHAGUE, 1994, p. 147).

O estilo nacional é visto pelo senso comum como nacionalismo, o que impede que se veja claramente tudo que inclui o conceito de nacionalismo musical. Essa maneira de ver pode funcionar em alguns casos, especialmente no Romantismo, no qual o nacionalismo estava limitado ao estilo nacional. Contudo o fato de Maurice Ravel ter escrito Bolero ou Rapsódia Espanhola não faz dele um nacionalista, já que o conceito de nacionalismo abrange uma maior significação, inclusive ideológica. A idéia do nacionalismo como um fator estético, colocado por Dahlhaus (p. 147), discute a aceitação dos ouvintes de uma obra musical feita por um compositor que deseje que ela seja nacional em seu caráter, sendo que a história deve aceitá-la como um fato estético, mesmo que uma análise estilística fracasse para produzir evidências. Não se pode isentar Schoenberg de compactuar com essa visão hegemônica configurada na tradição germânica. Sua famosa frase quando vislumbrou o sistema dodecafônico “Com esse sistema estaremos garantindo a hegemonia da música alemã por mais 100 anos” demonstra que a idéia nacionalista está presente em sua contextualidade. Em todo esse período de predomínio germânico nos séculos XVIII e XIX não faltaram em suas músicas temas populares de suas regiões, como também não faltaram estruturas musicais européias com temas populares de outras regiões. Não obstante, a noção de originalidade presente na música de caráter nacional ou os “afãs nacionalistas” eram vistos de maneira indistinta, tratados eufemisticamente como “exóticos”. Isto é, tudo o que estava fora dos paradigmas musicais europeus, neste momento, entrava em um cesto desqualificado chamado “exotismo”. As mais diversas escalas, organizadas de maneiras distintas, a irregularidade rítmica, os instrumentos diferentes de regiões distantes dos centros europeus, tudo entrava no mesmo compartimento – o “exótico”.

85 O século XX apresenta o nacionalismo gerado por um idioma popular, vindo ainda da música folclórica, mas utilizando uma linguagem moderna. Dentre os compositores destaca-se Béla Bartók ao lado de Villa-Lobos. O aproveitamento do material folclórico, utilizado por esses dois compositores, apresenta alguns aspectos comuns nos procedimentos composicionais, um deles é o emprego de sistemas conjugados, nos quais tonalidade, atonalidade e modalidade convivem no mesmo contexto composicional. Há, porém, um método diferente na aplicação desses conceitos nos processos composicionais deles, como, por exemplo, aproveitamento da “secção áurea” como um sistema composicional por Bartók (MOLINA, 2004, p. 80-117). Villa-Lobos, embora não articulasse claramente uma metodologia de trabalho, possuía um poder de assimilação incomum, voltado aos acontecimentos musicais que o cercavam, e dotava a sua música de uma complexidade sempre atualizada com as manifestações musicais de seu tempo, claro que com particularidades que o interessavam. Além disso, utilizava suas fontes musicais (música indígena, popular urbana, regional, de origens africanas, música universal como chamava música da tradição européia) aparentemente, sem fazer reflexão metodológica. Em conseqüência disto, quando interrogado sobre a presença de temas folclóricos em sua música, VillaLobos respondia: “o folclore sou eu”. A constatação de que os modelos da música européia eram vistos por Villa-Lobos como universais e de que houve uma intervenção direta ou indireta do folclore na sua música se encontra em um artigo na revista “Diapason”, feito por Maria Alice Volpe, quando ela cita uma classificação realizada pelo próprio compositor sobre sua obra: o musicólogo Adhemar Nóbrega [...] afirma que o próprio Villa-Lobos classificou a sua obra em cinco grupos, segundo o nível de aproveitamento do folclore, independentemente de uma linearidade cronológica. No primeiro grupo, obras “com intervenção indireta do folclore”, entre as quais figuram o Ciclo brasileiro (1936); no segundo, as obras “com alguma intervenção direta do folclore”, entre as quais a Prole do Bebê (1918, 1921); no terceiro, obras “com influência folclórica transfigurada e permeada com atmosfera musical de Bach”, nas quais se incluem as Bachianas brasileiras e os Prelúdios para violão; e, finalmente, obras “em controle total do universalismo”, incluídas aí as Sinfonias n.º 6 e n.º 7 (1944, 1945) e várias obras camerísticas da década de 40 (VOLPE, 2006, p. 33).

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Embora sejam apresentados quatro grupos de obras em vez de cinco, este trecho ilustra como Villa-Lobos pensava sua produção musical. A denominação de uma parte de suas composições como “controle total do universalismo”, pautada por formas tradicionais tais como concertos, sinfonias, quartetos de cordas, demonstra consciência dessa direção formal para modelos clássicos. O período dos últimos quinze anos de sua vida ficou marcado por encomendas, principalmente de entidades e orquestras norte-americanas, período no qual há uma grande quantidade de obras com essas características. A distinção feita por Dahlhaus entre o estilo nacional, universal e o nacionalismo faz parte da reflexão feita por Béhague, quando aborda o conjunto de aspectos inclusos na obra de Villa-Lobos. Aponta para um compositor de um “nacionalismo eclético”, com uma linguagem moderna, principalmente no período de sua segunda estada em Paris, ocasião em que se deu o importante contato com Edgar Varèse, época em que se vê uma preocupação com texturas musicais, e comenta a série dos Choros: construído gradualmente de um simples gênero urbano (Choros n.° 1), as mais complexas formas e expressões em uma amálgama de pulsos e peças da tradição musical nativa e afro-brasileira, melodias de cirandas das crianças (cantigas de roda), outros gêneros de danças populares urbanas, acontecendo em uma freqüente atmosfera carnavalesca, mas tudo com um decidido vocabulário técnico moderno (BÉHAGUE, 1994, p. 156).

Arnold Schoenberg é uma referência incontestável na música do século XX. Representa um investigador incansável de questões musicais colocadas para o sedimentário histórico desta arte durante todo período que viveu, seja no campo estético, seja na composição musical, seja como professor. Os conceitos de Schoenberg refletem algumas características do idealismo alemão, são pertinentes para a compreensão de alguns pontos

aqui expostos, no entanto apontam para um caminho estético diferente do assumido pelo compositor brasileiro, que é claramente nacionalista permeado de modernidade. O nacionalismo presente na obra de VillaLobos espelha um processo histórico definido por uma opção pessoal consciente, mas também por uma necessidade premente estabelecida por fatores de identidade. Já o sentido antropofágico e o nacionalismo eclético, sugeridos por Gil Jardim e Gerald Béhague, convergem para aspectos da diversidade cultural apresentada ao século XX, e indicam que todos estes aspectos somados confundem o propósito de definir o estilo e a idéia na obra de Villa-Lobos, porque só ressaltam pluralidade. As fontes múltiplas que formam a cultura brasileira apontam para essa pluralidade: desde materiais folclóricos, indígenas, música urbana até herança européia. Contudo há um traço característico que define o gesto villalobiano presente nas tintas de sua orquestração e instrumentação, na edificação de sua harmonia, na criação de seus temas, no espelhamento descritivo da fauna e flora brasileiras, no alinhamento lúdico da cultura infantil brasileira etc. Indica um estilo pessoal marcado por uma variedade temática incomum. A característica essencial de um compositor, afirmada por Schoenberg, está presente em VillaLobos, isto é, a de um artífice que utiliza seu material com a consciência de um inventor, não só pautado pelo instinto, imaginação e assimilação, mas também por muito trabalho, assumindo as contradições implicadas no fato de ter sido um homem de atitudes e não um formulador reflexivo. Essas atitudes se transformaram em uma gigantesca produção, na qual se encontram obras-primas incluídas no repertório de orquestras de todo o mundo, integradas ao repertório universal, que ficaram como lições importantes para as gerações subseqüentes de compositores, brasileiros ou não.

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GUÉRIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos e o ambiente artístico parisiense: convertendo-se em um músico brasileiro. Mana, v. 1, n. 9, p. 81-108, 2003b Disponível em: Acesso em 27 de junho de 2006. JARDIM, Gil. O Estilo antropofágico de Heitor Villa-Lobos. São Paulo: Philarmonia Brasileira, 2005. MOLINA, Sergio Augusto. Os sistemas conjugados de Bela Bartók: as técnicas de composição empregadas no Quarteto IV. Dissertação (Mestrado) - Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2004. PEPPERCORN, L. M. Villa-Lobos collected studies. Aldershot: Scolar Press, 1992. SALLES, Paulo de Tarso. Processos composicionais de Villa-Lobos: um guia teórico. Tese de Doutorado do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, 2005. SCHOENBERG, Arnold. El estilo y la idea, Madrid: Taurus, 1963. _____ Style and idea. Berkeley: University of California Press, 1984. STRAVINSKY, Igor. Poética musical em 6 Lições. Trad. Luiz Paulo Horta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. VOLPE, Maria Alice. O mito: “A música brasileira começa comigo”. Diapason, n. 3, p. 34-35, 2006. WEBERN, Anton. O Caminho para a música nova. Trad. Carlos Kater. São Paulo: Novas Metas, 1984.

A atualidade da estética musical de Adorno Igor Tadeu Baggio da Silva Universidade Estadual Paulista

Resumo Trata-se de sugerir a atualidade e pertinência de algumas noções fundamentais da reflexão estética adorniana sobre a música para o contexto atual de criação musical. Através das idéias de música radical e de música informal, ambas centrais no pensamento de Adorno sobre a música da primeira metade do século XX, será esboçado um questionamento acerca de alguns princípios norteadores da poética musical recente. O foco desse questionamento será a implicação ideológica de algumas reflexões sobre música que se propõem pós-modernas. Palavras-chaves: estética musical, música contemporânea, modernismo, pós-modernismo.

A visão de Theodor Adorno em relação à produção musical da primeira metade do século XX é intrigante, ainda hoje, sob vários aspectos. Em sua grande maioria, suas idéias continuam tendo um valor inegável, mesmo que entendidas a partir de um certo distanciamento histórico. A reflexão adorniana sobre arte e, especificamente, sobre música, opera sempre sob a figura da ruptura existente entre os homens e os fenômenos artísticos no contexto socioeconômico e político do mundo ocidental de então, principalmente no continente europeu e nos EUA. No âmbito da criação musical, essa ruptura será sempre veiculada, em diversos de seus escritos, como uma crise que afeta a música que se recusa a nascer sob os auspícios da indústria cultural, almejando refletir imanentemente o status quo de maneira crítica. A posição crítica que a arte deveria assumir é concebida por Adorno como a única postura possível aos artistas que ainda quisessem conservar a integridade de suas orientações estéticas e filosóficas frente ao mecanismo do capitalismo avançado, que visa incorporar toda e qualquer manifestação artística através da lógica de mercado amparada na absolutização do valor de troca frente ao valor de uso. Em Adorno, o conceito de música radical, que provém desse estado de coisas e da conseqüente necessidade crítica no domínio da criação artística, será sempre, ao longo dos escritos sobre música, a idéia que nortearia uma possível emancipação intelectual dos sujeitos, o desdobramento da verdade, que é histórica, bem como a concepção de uma transformação social utópica. Emancipação, verdade e utopia são as categorias que formarão o télos nunca alcançado, porém, sempre vislumbrado pela filosofia crítica da sociedade e da arte como concebidas pelo pensador frankfurtiano.

Valorizando o aspecto contingente do material musical, ou seja, seu estado histórico atual e, opondo toda e qualquer pretensão de totalidade por parte daquele material musical proveniente da tradição musical austro-germânica do passado, essa música radical soará, muitas vezes, como o veículo de resistência das vanguardas que se debatiam em uma relação intransigente com o público. Para entendermos melhor essa virada em direção a um conteúdo de caráter contingente na arte moderna, devemos nos voltar a Hegel. Em seus Cursos de Estética, ao levantar a tese a respeito da “autonomia formal das particularidades individuais”1 na arte do romantismo tardio, Hegel não só está analisando a questão da perda da orientação tradicional nessa arte, comparando os conteúdos formalizados pela arte dos períodos históricos anteriores com os formalizados pela arte de seu tempo, como está refletindo sobre as possibilidades de existência e subsistência para uma arte que deveria estar fundada, dali por diante, sobre pressupostos tão frágeis e contingentes. Essa autonomia formal das particularidades individuais significa para Hegel o processo histórico pelo qual a arte romântica chegara a um ponto onde não possuía mais compromissos com conteúdos provenientes de valores históricos de caráter absolutizantes. Ou seja, a arte de seu tempo não se propunha mais a refletir e representar conteúdos de ordem mítica, religiosa e metafísica. A autonomia no domínio do fazer estético, que nasce nesse momento, estará fundada sobre os conteúdos que melhor repre-sentam o que é contingente e efêmero: o homem e seu interior, isto é, a subjetividade. Essa análise de Hegel sobre a progressão histórica que o espírito absoluto faz em direção ao âmbito da contingência da subjetividade 1

HEGEL, G.W.F. Cursos de estética. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: EDUSP, 2000, v. 2, p. 309-346.

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simpósio de pesquisa em música 2006 humana, culminará na famosa tese sobre “o fim da arte”, ou melhor, sobre a dissolução da forma de arte romântica.2 É importante lembrar que dentro do sistema filosófico hegeliano, a arte cede lugar, depois de sua auto-reflexão e tomada de consciência histórica como manifestação do espírito absoluto, à religião. Esta, por sua vez, dá lugar para a filosofia, depois de um percurso em direção à determinação fenomenal que é semelhante ao anteriormente levado a cabo pela arte.3 A partir do que acaba de ser exposto através da tese sobre a autonomia formal das particularidades individuais no domínio do fazer artístico, Hegel constata uma mudança histórica qualitativa no domínio das relações entre os artistas e os conteúdos possíveis de serem formalizados nas obras de arte pós-românticas. Adorno interpretará essa mudança como uma secularização da arte atrelada à dialética do esclarecimento e, portanto, como um resultado do crescente processo de racionalização pelo qual vem passando a civilização ocidental em todos os seus domínios. Ele refletirá sobre essa mudança de paradigma equalizando a aura de liberdade individual frente aos materiais artísticos herdados, que parece ser a conseqüência primeira desse momento de ruptura, com uma noção de necessidade histórica imanente contida nos mesmos materiais. Nessa reflexão, insistirá na perda da imediatidade da música e da arte em geral em relação ao homem como uma conseqüência do processo de alienação proveniente da relação contraditória existente entre o caráter autônomo da arte e o caráter heterônomo da sociedade baseada nos pressupostos da economia de mercado. Nesse ponto, volta-se a tocar na questão referente à impossibilidade da arte que quer manter sua autonomia ceder aos mecanismos de incorporação e de fetichização materiais próprios à indústria cultural. Como já exposto anteriormente, a possibilidade crítica no domínio estético instala-se como uma necessidade para aqueles criadores que ainda acreditam no conceito de arte tal como este havia sido fundado pela tradição filosófica ocidental. Para 2

Ibidem, p. 338-346.

3

Dentro do sistema filosófico de Hegel, o espírito absoluto é a origem e o fim último de toda e qualquer determinação histórica. Esse espírito absoluto progride dialeticamente, ao longo da história e através dos diferentes empreendimentos e instituições humanas, em direção à unidade e à consciência de si. Cf. HEGEL, Enciclopedia de las ciencias filosoficas: lógica, filosofia de la naturaleza, filosofia del espíritu. Trad: Eduardo Ovejero y Maury. Ciudad de México: Juan Pablo, 1974, p. 382-400.

Adorno, essa crítica só é legítima e capaz de escapar da incorporação mercadológica de uma maneira: como crítica imanente, uma crítica ao nível do próprio material. Dessa forma, uma crítica estética imanente é o processo pelo qual uma obra de arte toma e desenvolve os materiais artísticos da tradição histórica que lhe é anterior, sejam estes materiais de cunho técnico, formal ou estético. A não legitimidade de uma liberdade total frente ao material herdado da tradição é justificada aqui a partir do entendimento de que através dos diversos problemas técnicos, referentes a cada área de criação artística, se faz presente um conteúdo imanentemente social. Tal conteúdo social é interpretado como o descompasso existente, a nível social, entre as forças e as relações de produção.4 Advém dessa interpretação a noção da necessidade em se compor música com o material historicamente mais avançado para que a crítica ao nível da forma estética seja possível. Como exemplos dessa arte que se opõe imanentemente à sociedade, Adorno ressalta, desde os anos trinta, principalmente as obras da fase do atonalismo livre provenientes da segunda escola de Viena. Contudo, para não se ter uma visão unilateral da reflexão adorniana sobre música, faz-se necessário examinar alguns momentos dessa reflexão que são portadores de perspectivas distintas quanto ao desenvolvimento da Nova Música no contexto da primeira metade do século passado. A primeira tentativa de Adorno de reunir suas reflexões sobre música em um único texto é o seu ensaio de 1932 Zur gesellschaftlichen Lage der Musik (Sobre a situação social da música). Aqui o autor apontará quatro caminhos possíveis para a composição de uma música que nega, em sua lei formal, a lógica da mercadoria que compõe e define a maioria das demais manifestações musicais da época. Para ele, a música do período do atonalismo livre de Schoenberg, e as composições de Berg e Webern do mesmo período, são as mais avançadas e radicais naquele momento. Isso porque 4

Adorno apropria-se desses dois conceitos fundamentais da filosofia marxista para explicitar o caráter fragmentado da sociedade e a relação de dependência do material musical em relação àquele caráter social. Em Marx os conceitos dizem respeito à contradição própria à dinâmica do modo de produção capitalista. Simplificadamente temos que “essa contradição explica a existência da história como uma sucessão de modos de produção, já que leva ao colapso necessário de um modo de produção e à sua substituição por outro. E o binômio forças produtivas / relações de produção subjaz, em qualquer modo de produção, ao conjunto dos processos da sociedade, e não apenas ao processo econômico.” HARRIS, Laurence. Forças produtivas e relações de produção. In: BOTTOMORE, Tom. (org.). Dicionário do pensamento marxista. Trad: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 157.

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essas obras tratavam o material musical de maneira dialética visando uma depuração dos elementos tradicionais herdados que ainda possuíssem resquícios comunicativos passíveis de banalização. As outras três perspectivas são exemplificadas pela música de Stravinsky, Bartók, Hindemith e Eisler. Perspectivas menos avançadas em relação ao uso dado ao material musical, afirma Adorno, mas que ainda assim são consideradas como potencialmente críticas. Os procedimentos do Stravinsky neoclássico, por exemplo, são tratados como um objetivismo musical, algo como uma proposta irreal e impossível de ser levada a sério na sociedade cindida de então. Visando escapar ao estado de alienação que aflige a música, tais procedimentos irão buscar amparo em formas musicais arcaizantes na crença de que as mesmas escaparam ao processo de reificação, que seria um fenômeno recente. Tal atitude é considerada uma ilusão devido ao fato de que, o compositor que procedesse dessa maneira, em relação ao material, teria em mente uma sociedade reconciliada, que não existiu no passado e que está longe de ser a sociedade do presente, não estando ao alcance de nenhuma forma estética promover tal reconciliação por conta própria. Em outras palavras, a arte não tem o poder de romper o estado de alienação social que a separa dos sujeitos através de procedimentos criativos imanentes, restando a ela, arte, uma missão crítica. Bártok também é mencionado nessa categoria, mesmo tendo sido considerado em escritos anteriores, do início da carreira de Adorno, como uma segunda opção, em termos de potencial crítico, à música da segunda escola de Viena. A terceira possibilidade de composição é aquela apontada por Adorno como um tipo híbrido entre as duas formas de composição mencionadas anteriormente. Misturando alguns elementos materiais avançados historicamente com outros advindo da cultura popular administrada, o autor descreve tal música como guardando semelhanças com alguns procedimentos próprios ao surrealismo francês. Essa é a categoria utilizada para explicar obras como as da fase de L’histoire du soldat em Stravinsky. Finalmente, as composições de Hindemith e Eisler são enquadradas, respectivamente, nas categorias de Gebrauchmusik e Gemeinschaftsmusik5 por ignorarem as exigências materiais e formais que são colocadas imanentemente pelo processo de composição das

obras. A orientação estética desses dois compositores, devido às suas posturas de exoneração subjetiva frente à história, é entendida por Adorno como diretamente advinda da estética própria aos produtos e mercadorias da indústria cultural.6

6

ADORNO, Theodor W. On the social situation of music. Trad. Wes Blomster. In: LEPPERT, Richard (org.). Essays on music. Berkeley: Cambridge University Press, 2002, p. 396-397.

5

7

PADDISON, Max. Adorno’s aesthetics of music. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 266.

Literalmente música para uso e música da comunidade ou comunitária, respectivamente.

Uma perspectiva diferente da presente no ensaio que se acaba de analisar é lançada pela Filosofia da nova música de 1949, obra que particulariza as idéias presentes no livro Dialética do esclarecimento no âmbito da música. Nessa obra de 49, Adorno parece ver o panorama musical de uma maneira drasticamente polarizada. Na introdução do livro temos que a única maneira de abordar os problemas levantados pela Nova Música é através da análise de seus extremos através de um método dialético. Assim, Schoenberg e Stravinsky são colocados lado a lado como os epígonos das duas correntes mais representativas da música daquele momento: a música dodecafônica e o neoclassicismo. Como pano de fundo para essa polarização está presente a idéia do progresso do material musical associada ao desdobramento de um conteúdo de verdade (Warheitgehalt) através das composições. Por sua vez, este conteúdo de verdade será o que garantirá o papel crítico da música dentro da lógica social que, agora, é vista por Adorno através de lentes ainda mais negras. O que se coloca hoje como mais importante, na interpretação da Filosofia da nova música, obra que é, sem dúvida, a mais mal entendida das que Adorno escreveu sobre música, é o entendimento imparcial das teses ali contidas. Antes de tudo, é preciso entender que essa obra não se trata de uma defesa sem mais da música de Schoenberg em detrimento da de Stravinsky. Ambas as músicas são encaradas como caminhos distintos que levaram a uma mesma perspectiva de bloqueio criativo e de fetichização através do desenvolvimento lógico de suas potencialidades composicionais. Schoenberg, depois da fase expressionista, onde efetua a emancipação do compositor como “sujeito expressivo”7, se vê compelido, seguindo a lógica desse material emancipado, a objetivar essa nova possibilidade expressiva através de um princípio construtivo totalizante, desembocando assim na racionalização do material através da técnica serial. Tudo isso visando a preservação da autonomia do sujeito através de procedimentos composicionais dialéticos que visariam fazer frente às contradições sociais

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simpósio de pesquisa em música 2006 encarnadas pelos diferentes aspectos do material musical. Por outro lado, a música de Stravinsky é apresentada como não dialética devido a não tomada de consciência, por parte do sujeito criador do compositor, de sua condição de alienação junto às possibilidades expressivas que ele julgaria estar dando vazão. Adorno analisa a postura deixada transparecer pelas composições neoclássicas do compositor se utilizando de categorias psicanalíticas como repressão e despersonalização. Esse sacrifício do sujeito, que está contido de maneira programática no texto da Sagração da Primavera, estaria baseado em uma crença na possibilidade de se poder saltar ao longo da história em direção a uma condição social idealisticamente objetivada e caracterizada pela relação reconciliada entre o homem, a coletividade e a natureza. Esse é o quadro interpretativo dominante utilizado na Filosofia da nova música para entender os processos composicionais presentes ao longo da produção stravinskyana. Tais processos seriam, então, artificiosos, mas consistiriam, em última análise, numa impossibilidade para aqueles que não quisessem abrir mão de sua consciência histórica e social. Por último, como uma perspectiva proveniente do fim da vida de Adorno, poderíamos mencionar o ensaio de 1961, Vers une musique informelle, no qual, o filósofo frankfurtiano faz uma reflexão acerca das principais tendências que despontam no contexto da música pós-1950, revisando seus conceitos de forma e material musicais. Nesse momento, se faz presente um vislumbre de que talvez o paradigma iniciado com o contexto descrito por Hegel, comentado acima, aponte para uma nova direção. Nesse ensaio de 61, já se delineia uma resposta estética alternativa ao enrijecimento ocorrido na música por conta do serialismo integral, por um lado, e da música composta sob os princípios da indeterminação, por outro. Mostra-se aqui um programa estético um pouco mais aberto em relação a uma música que não se baseasse tão estritamente na categoria do material, e que estivesse, portanto, mais voltada para a liberdade subjetiva do compositor; uma proposta que aproximava-se do ideal expressivo daquelas criações da fase atonal de Schoenberg. Por óbvio, não se tratava de retomar a estética expressionista, mas sim, o espírito de renovação presente em tal estética. Em um momento no qual a relação com o público se tornava cada vez mais problemática para os compositores vanguardistas, as reflexões de Adorno parecem se voltar para aquelas músicas que começavam a

se desvincular das propostas típicas da estética do modernismo clássico. A propósito, hoje, em meio a um contexto artístico dito pluralista, teria lugar na história uma música que se propusesse radical? A arte imanentemente responsável, como concebida por Adorno parece ter mesmo acabado, juntamente com os movimentos das vanguardas, que já tomamos como históricas. A relação problemática que muitas das obras contemporâneas estabelecem com a História parece ser sintomática. O heroísmo da música de Schoenberg, contemporânea aos gritos expressionistas, mostra-se, muitas vezes, aos ouvidos de ecléticos compositores pós-modernos, como algo anacrônico e estereotipado. Como entender isso, já que as contradições sociais que essa música visava refletir, segundo Adorno, em sua lei formal mais íntima, não foram resolvidas e sim incrementadas? A atualidade de uma obra como Erwartung, nesse sentido, estaria garantida. Sendo assim, o que estaria sendo refutado da estética musical de Adorno pelos compositores do mundo ocidental pós-1950? A resposta possível passa pela reflexão de que talvez o público nunca tenha estado preparado para abdicar do caráter de linguagem da música, presente nela, como uma segunda natureza, graças ao uso sistemático do tonalismo ao longo de trezentos anos de história. Essa reflexão encontra eco nas atuais tentativas de se configurar uma estética pós-moderna que teria em vista obras concebidas, quase que unilateral-mente, sob o princípio da comunicabilidade do bem soar e de uma volta à figuração amparada em uma retomada do sistema tonal. Como réplica a essa postura, que parece tomar o som de maneira fetichista, voltemos um instante às palavras do próprio Adorno: Os compositores têm a agonizante escolha. Eles podem se fingir de surdos e continuar marchando como se a música ainda fosse música. Ou eles podem alcançar o nivelamento por conta própria, transformando a música em uma condição normal e no processo buscar por qualidade, quando possível. Ou eles podem, por último, se opor a tendência com uma guinada ao extremo, com a perspectiva de mesmo assim serem incorporados e nivelados apesar de tudo8.

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ADORNO, Theodor. W. The relationship of Philosophy and Music Trad. Wes Blomster. In: LEPPERT, Richard (org.). Essays on music. Berkeley: Cambridge University Press, 2002, p. 135-161. Tradução nossa.

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A criação artística crítica e autônoma que Adorno defendia, não precisa ser entendida, necessariamente, como uma categoria histórica e datada. Antes, deveria se constituir em um ponto passível de reflexão para todo e qualquer compositor de qualquer época. A postura contemporânea, em muitos momentos, parece aparentada daquela já descrita na Filosofia da nova música e que acaba escamoteando o sujeito na esperança de objetivar uma obra de arte que teria o poder sobrenatural de solucionar, por conta própria, o estado de alienação que se interpõe entre a sociedade e os fenômenos artísticos.9 Claro está que as soluções desse problema fogem às possibilidades de qualquer arte, estando, antes, no âmbito da própria sociedade e de suas instituições constituintes. De qualquer maneira, muitas escolhas estéticas maneiristas de hoje parecem se enquadrar na segunda escolha possível apontada por Adorno no parágrafo citado acima. Como apontado logo no início desse texto, ao tratar-se da passagem dos Cursos de Estética de Hegel, a ilusão de uma extrema liberdade em relação ao passado acaba por limitar ainda mais as verdadeiras opções estéticas de uma época e pode levar toda uma geração, ou mais, de artistas criadores a um estado de contínua crise de identidade histórica. Porém, o ecletismo elevado a estilo parece desembocar numa concepção ideológica do que seria uma real estética contemporânea e a determinação de tal postura como pós-moderna parece apenas desabonar ainda mais a tentativa de se estabelecer algo como uma produção artística consciente de si mesma e plena de valor. Nesse sentido, vale à pena, uma última vez, a admoestação adorniana: O que outrora foi verdadeiro numa obra de arte e foi desmentido pelo curso da história, só pode de novo vir à luz quando se modificarem as condições em virtude das quais aquela verdade foi liquidada: tão profunda é, no plano estético, a penetração recíproca do conteúdo de verdade e da história. 10

A atitude cética, em relação ao passado recente, que deixam transparecer alguns desses criadores aparentemente independentes de hoje, parece ser devida, em grande medida, a uma 9

negação das relações existentes entre as diferentes formas de arte e as demais manifestações humanas e sociais, como se a música e as demais artes constituíssem um setor isolado e incomunicável com o restante das instituições e práticas sociais. Essa comparti-mentação dos diversos setores da vida social e cultural vivenciada atualmente, parece levar, nesse caso, a uma forma pejorativa de l’art pour l’art. Confundindo arte responsável e crítica com arte engajada, muitos compositores correm para um abraço vazio com um público hipotético com medo de serem tachados sob o signo de um anacrônico vanguardismo. Seria precipitado, pois, lermos os escritos que compõe a estética musical de Adorno como reflexões limitadas ao contexto do modernismo artístico da primeira metade do século vinte. Sua reflexão acerca de uma música responsável, primeiro como uma música radical e, posteriormente, como uma música informal, mostra que ele não mantinha uma postura unilateral em relação às composições de Schoenberg, Berg e Webern, mas que estava alerta para a dialética da história. Nesse sentido, sua própria noção de autenticidade, quanto às composições musicais, sofreu algumas alterações quantitativas ao longo de sua vida, como pode-se depreender do estudo aprofundado dos seus principais escritos sobre música. Para Adorno, que também fora compositor, se a sociedade se fragmenta ainda mais, a música que surgir desse contexto deverá acolher imanentemente aspectos dessa fragmentação de maneira a reflexionar essa heteronomia social.11 Ou seja, a contradição entre o material musical, que, desde Vers une musique informelle já era tomado como algo que se desintegrava e que perdia sua resistência frente ao domínio da técnica composicional e, a necessidade de se compor novas formas musicais capazes de estabelecer alguma noção de unidade através da síntese entre os seus materiais continua atual. Adorno oferece reflexões interessantes nesse sentido em suas monografias sobre Mahler e Berg. Para o filósofo, esses compositores compunham com ruínas, ou seja, com um material musical historicamente gasto. Mesmo assim, não abdicaram da integridade subjetiva e, tampouco, da noção de uma forma musical sintética e auto-reflexiva. Para tornar mais concreto o que nesse momento se questiona, é válida a receita do cozido musical pós-moderno, dada pelo compositor belga Boudewijn Buckinx:

ADORNO, Theodor. W. Filosofia da Nova Música. 2.ed. Trad: Magda frança. São Paulo: Perspectiva, 1989, p. 109-165.

10

ADORNO, Theodor. W. Teoria estética. Trad: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, [s.d.], p. 54-55.

11

PADDISON, Max. Adorno’s Aesthetics of Music. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 275-276.

simpósio de pesquisa em música 2006 ? Então o pomo fez um grande cozido com um q de expressionismo, um q de neoclassicismo, um q de vanguarda, um q de modernismo moderado? * Um q de romantismo, um q de classicismo, um q de barroco, um q de Idade Média, um q oriental, um q de cultura africana, um q de pop e de rock. 12

Depois desse banquete, a autonomia das composições que visavam refletir a heteronomia social passa a afirmar tal heteronomia como se essa constituísse o seu em-si. Há, assim, uma renúncia ao caráter sintético e auto-reflexivo da forma musical e do momento de possibilidade crítica, na composição musical, em troca de um caráter de pastiche, que se acredita comunicativo e que acaba sendo incorporado como entretenimento junto ao público, mesmo quando muitas dessas composições ostentam alguma pretensão mais séria. Aqui, se tornam oportunas as palavras de Rainer Rochlitz em seu ensaio sobre Adorno e o modernismo: “A modernidade artística é assim um teste para a integridade do sujeito estético frente ao insignificante e ao não-estético”.13 para uma atitude despreocupada frente à história da primeira metade do século XX e, que toma o material musical de maneira pré-crítica como algo dado pelo simples rótulo estilístico das mais diversas experiências estéticas de épocas passadas, seria necessário que as antinomias presentes em todos os domínios da música e, principalmente da sociedade, ao fim desse período, tivessem sido resolvidas. Sabemos que em muitas instâncias isso não aconteceu. A arbitrariedade composicional acaba por se erigir em estilo pessoal e tal atitude acaba por se cristalizar em músicas cuja pretensão a um valor estético reside, unicamente, no fato de essas acreditarem estar manifestando o espírito dos tempos e um retorno a um estado anterior de proximidade junto ao público. Ao se tomar aparência estética heterônoma por conteúdo histórico e social autônomo, a arte perde não só sua pretensão à verdade, mas, principalmente, sua pretensão crítica contra a incorporação como entretenimento.

12

BUCKINX, Boudewijn. O pequeno pomo: ou a história da música do pós-modernismo. Trad: Álvaro Guimarães. São Paulo: Ateliê, 1998, p. 128.

13

ROCHLITZ, Rainer. Language for One, Language for All: Adorno and Modernism. Trad. Roberta Brown. In: RAHN, John (org.). Perspectives on Musical Aesthetics. New York: Norton, 1994, p. 27. Tradução nossa

93 A estética musical de Adorno conseguiu alcançar o que nenhuma outra reflexão teórica anterior conseguira, no âmbito da música, ao desvelar o mecanismo complexo das inter-relações e dependências existentes entre a música e a sociedade histórica que a vê nascer. Nesse processo, entendeu que as artes e, principalmente a música, possuem um papel social muito grande frente às contradições existentes entre os estados de desenvolvimento intelectual e material da humanidade. Antes de acatarmos irrefletidamente a proposta de uma estética musical pós-moderna, nada melhor que voltarmos aos Musikalischen Schriften (Escritos musicais), que constituem quase metade de toda a obra adorniana, para dar-lhes sua merecida atenção. Se não por outro motivo, ao menos para que possamos seguir em frente em busca de uma verdadeira identidade estética contemporânea.

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Referências ADORNO, Theodor W. Essays on music. Trad. Wes Blomster. Berkeley: Cambridge University Press, 2002. _____ Filosofia da nova música. 2. ed. Trad. Magda França. São Paulo: Perspectiva, 1989. _____ Teoria estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, [s.d.]. BUCKINX, Boudewijn. O pequeno pomo, ou a história da música do pós-modernismo. Trad. Álvaro Guimarães. São Paulo: Ateliê, 1998. HARRIS, Laurence. Forças produtivas e relações de produção. In: BOTTOMORE, Tom. (org.). Dicionário do pensamento marxista. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. HEGEL, G. W. F. Cursos de estética. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: EDUSP, 2000. _____ Enciclopedia de las ciencias filosoficas: lógica, filosofia de la naturaleza, filosofia del espíritu. Trad: Eduardo Ovejero y Maury. Ciudad de México: Juan Pablo, 1974. PADDISON, Max. Adorno’s Aesthetics of Music. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. ROCHLITZ, Rainer. Language for One, Language for All: Adorno and Modernism. Trad. Roberta Brown. In: RAHN, John (org.). Perspectives on Musical Aesthetics. New York: Norton, 1994.

A Bar Form nas canções de Nepomuceno Rodolfo Coelho de Souza Universidade de São Paulo

Resumo Tomando como ponto referência a "Bar Form" - uma forma poético-musical característica da canção alemã este trabalho discute a hipótese de que Nepomuceno teria utilizado modelos europeus para o desenvolvimento de um projeto de canções brasileiras de câmara. A análise de duas canções, "O wag'es nicht" e "Coração indeciso", estabelece a existência de uma ponte de ligação entre as formas utilizadas nos repertórios compostos em língua estrangeira e em português. Essa constatação circunscreve alguns limites para a referida hipótese. Palavras-chave: Música Brasileira, Análise Musical, Forma Musical

Introdução A historiografia musical brasileira tem postulado que, em princípios do século vinte, a partir da emulação do Lied europeu, apareceu no Brasil um novo gênero: a canção de câmara erudita brasileira. Esse gênero teria nascido do desafio de utilizar poemas em português, e a seguir encontrado sua essência com a incorporação de elementos musicais considerados autênticamente brasileiros. Embora essa historiografia reconheça a existência de precursores na obra dos românticos do século dezenove, considera que a formação desse gênero ocorreu somente a partir da obra de Alberto Nepomuceno. José Maurício, Francisco Manuel da Silva e Carlos Gomes escreveram belas modinhas que ainda hoje gozam de certa popularidade, mas os seus trabalhos jamais foram incluídos nos estranhos programas dos virtuosi de então. A aceitação da música brasileira, da canção em língua nacional, nos concertos do repertório erudito, data do começo do século XX, graças aos esforços de Alberto Nepomuceno, a primeira grande figura do Lied no Brasil. (MARIZ 2002, p.30).

A tese implícita nessa afirmação - que com conteúdo similar circula em textos de outros autores da nossa musicologia - é que Nepomuceno, posicionando-se em defesa do canto em português numa polêmica travada com críticos da época, teria se sentido desafiado a compor canções tipicamente brasileiras. Para realizar esse projeto teria adaptado modelos da canção erudita européia, especialmente do Lied alemão, e, a seguir, incorporado materiais musicais de caráter nacional.

Uma das dificuldades para demonstrar a primeira parte dessa tese é conseguir individualizar características nas canções de Nepomuceno que fossem marcantes no repertório do Lied europeu e ao mesmo tempo ausentes da tradição da canção brasileira anterior, isto é, nas modinhas e nas árias de influência italiana. Uma possibilidade surgiu quando, analisando a canção de Nepomuceno O wag'es nicht, sobre poema em alemão de Nikolaus Lenau, verificamos que ela tem a estrutura de uma Bar Form, uma forma muito antiga e marcante na tradição do Lied alemão. Esta peça, datada de 1894, da fase de estudos do compositor na França, comprova que naquele momento ele estava absorvendo conhecimentos composicionais típicos da tradição do Lied. A seguir escrutinamos o repertório de canções em português de Nepomuceno para verificar a ocorrência de utilização dessa mesma forma. Encontrou-se apenas uma canção, escrita em 1903, que utiliza a Bar Form. A análise comparativa dessas duas canções, que expomos a seguir, pode ajudar a esclarecer a gênese da canção de câmara brasileira realizada na obra de Nepomuceno. O modelo Bar Form A Bar Form é uma forma poético-musical cuja origem remonta à poesia medieval alemã. Os minnesingers, trovadores pertencentes às classes nobres, que exerceram sua arte nos séculos XII ao XIV, escreveram poemas e canções de amor cortês utilizando a forma Bar. Os Meistersinger, que os sucederam nos séculos XIV a XVI, continuaram a usar essa forma. A Bar Form cristalizou-se na tradição do Lied pela utilização do padrão formal AAB.

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SIMPEMUS3 Na Bar Form - AAB - a frase melódica A é cantada duas vezes sobre o texto dos dois primeiros versos de cada estrofe (chamados de Stollen), o último, B (chamado de Abgesang), geralmente mais longo e cantado apenas uma vez, contém material melódico novo. (GROUT 1996, p.67).

Uma das razões pelas quais essa forma assumiu grande importância na cultura alemã protestante é que os corais luteranos são frequentemente compostos em Bar Form. No século dezenove, os Meistersingers e as formas musicais a eles associadas, ganharam, na ópera Os Mestres Cantores de Nurenberg de Wagner, valor de símbolo da cultura alemã. Também em diversas outras situações, algumas menos previsíveis, como no dueto "Là ci darem la mano" do Don Giovanni de Mozart, encontramos o uso dessa forma. É importante ressaltar as diferenças entre a Bar Form AAB e os modelos binário AB e ternário ABA, entre os quais ela se situa. A Bar Form não é um binário que apenas repete a primeira parte, porque sua seção final B (Abgeseng) quase sempre incorpora segmentos das partes anteriores A (Stollen) para promover uma mudança intrínseca no sentido daquele material. Há na seção final da Bar Form um sentido de contraposição às partes anteriores que não é característico da forma binária. Por outro lado, conforme enfatiza Julio Bas (BAS 1947, p.170), a estrutura tonal da Bar Form, diferentemente da forma ternária, deve permanecer numa única tonalidade. A segunda seção é uma repetição sem transposição da primeira, com eventuais mudanças ornamentais. A terceira deve apresentar algum contraste com as seções anteriores para ser considerada uma seção diferente, e muito embora reaproveite fragmentos delas, não pode servir-se da estratégia de uma modulação global para alcançar esse contraste porque nesse caso a peça terminaria fora da tônica. Por isso é frequente que breves modulações ou tonicizações ocorram transitoriamente, especialmente na terceira parte. Que autores teriam servido de modelo a Nepomuceno na utilização da Bar Form? Cogitamos, inicialmente, que tivesse existido uma influência dos Lieder de Hugo Wolf sobre Nepomuceno, tão próximas e avançadas para o período, pelo uso de alterações cromáticas, nos pareciam as respectivas linguagens harmônicas. A constatação de que a Bar Form aparece com

frequência nas canções de Wolf - por exemplo nas canções Der Gärtner (No.17) e Gebet (No.28) do primeiro ciclo de Wolf, sobre poemas de Möricke, de 1888 - poderia confirmar este elo entre Nepomuceno e Wolf. Todavia Lawrence Kramer esclarece que as canções de Wolf só obtiveram repercussão pública a partir da "atividade da WolfVerein (Sociedade Wolf) em Viena, a qual em oito anos de existência (1897-1905) promoveu vinte e seis concertos das canções de Wolf" (KRAMER 1996, p.196). Nesses concertos Wolf declamava os poemas e a seguir fazia executar sua versão musicada. A canção de Nepomuceno, objeto de nosso estudo, é de 1894. Embora seis anos posterior às primeiras canções de Wolf sobre textos de Möricke, é três anos anterior ao início da repercussão pública da sua obra. Portanto é pouco plausível advogar influências de Wolf sobre Nepomuceno. Se há coincidências de estilo é porque ambos estavam sintonizados com as inquietações da linguagem musical do seu tempo. Nos Lieder de Brahms a Bar Form também aparece, porém com muito mais frequência numa variante em que há no final uma breve recorrência parcial do material inicial, como uma reminiscência, que altera o sentido da forma, aproximando-a das estruturas ternárias. Anteriormente a Brahms a forma ternária parece não ter tido uma tradição forte no Lied alemão. Musgrave aponta que um tipo de forma ternária no qual "a idéia central da primeira estrofe é sutilmente variada para criar uma segunda estrofe (ou grupo central), contrastante mas relacionada à primeira, antes de ser recapitulada por uma reprise variada da primeira, é talvez a mais característica contribuição de Brahms à tradição germânica" (MUSGRAVE 1985, p.44). Essa propensão de Brahms a promover o retorno do material inicial na conclusão da canção justifica que, ao usar a Bar Form, ele tenha preferência por essa variante chamada de Reprisenbar. Hancock, analisando a canção Die Trauernde Op.7 No.5 de 1852 (e também, com resultados semelhantes, Schön war, das ich dir weihte Op.95 No.7 de 1884) comenta: As três estrofes estão na forma Reprisenbar (AABa) em Lá menor. Cada uma das duas primeiras estrofes constitue uma previsível e até monótona Stollen. Quando a Abgesang começa, contudo, o registro desloca-se para o agudo, ... culminando num inesperado, ou mesmo chocante acorde de Lá maior, ...e a canção termina com um retorno da parte final do Stollen, uma volta à resignação. (HANCOCK 1996, p.126).

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simpósio de pesquisa em música 2006 Deve-se ressaltar que a variante Reprisenbar AABa não deve ser confundida com a forma AABA. Esta pode ser considerada uma variante da forma ternária ABA, com a mera repetição da primeira estrofe. O retorno de materiais na Reprisenbar (indicada pelo 'a' minúsculo na fórmula AABa) faz-se geralmente por uma breve citação de parte do material da Stollen (seja de seu início, seja do fim), como fechamento da Abgesang. Formalmente esse retorno não pode ser considerado uma nova seção, apenas um prolongamento da última parte. Verifica-se que em O Wag'es Nicht Nepomuceno escolhe usar a variante Reprisenbar, o que nos permite presumir uma influência de Brahms. Já a canção Coração Indeciso, além de apresentar características fraseológicas diferentes de O Wag'es nicht, tem uma forma geral que segue o modelo clássico AAB da Bar Form. Comentários analíticos sobre O Wag'es Nicht O wag' es nicht, mit mir zu scherzen, zum Scherze schloss ich keinen Bund; o spiele nicht mit meinem Herzen, weisst du noch nicht, wie sehr es wund? Weil ich so tief für dich entbrannte, weil ich mich dir gezeigt so weich, dein Herz die süsse Heimat nannte, und deinen Blick mein Himmelreich. O rüttle nicht den Stolz vom Schlummer, der süsser Heimat sich entreisst, dem Himmel mit verschwiegnem Kummer, auf immerdar den Rücken weist.

Não ouses brincar comigo, Por graça não travo união; Não troces com meu imo, Pois machuca! sabes não? Por ti tão forte queimava, E assim mostrei-me passível; Teu coração, doce morada, Teu olhar chamei paraíso. Não perturbes o prazer do enlevo Que da doce morada se livra, Ao céu, em tom-desalento, Para sempre as costas vira.

A estrutura em três estrofes do poema de Lenau (tradução de Ricardo Hiendlmayer Neto),

com as duas primeiras estrofes em tom de queixa amorosa (seções A: comp. 1-9 e A': comp 10-18), e a última com o sujeito mudando para uma atitude de rejeição da amada (seção B: comp.19-25, a: comp.26-31), sugeriria naturalmente a Bar Form que Nepomuceno utilizou na música desta canção. A coincidência com a variante da Reprisenbar preferida de Brahms, nos faz supor que, também aqui, Nepomuceno tenha utilizado modelos brahmsianos, como em outras obras do período em que foi composta esta canção (como a Sonata para piano em Fá menor Op.9, do ano anterior, que é eloquente nesse sentido). Os estudos em Berlim, poucos anos antes, com Heinrich Herzogenberg, um ardoroso admirador de Brahms (CORRÊA, 1985), ainda deviam estar fortemente presentes no espírito do jovem compositor. As três seções permanecem centradas em torno de uma tonalidade, Si menor, um requisito que já justificamos acima. Entretanto, na seção A, Nepomuceno realiza uma breve tonicização da dominante e a seção B inicia-se com uma modulação para a tônica relativa, que a seguir caminha, cromaticamente (enfatizando a mudança de atitude do poema), de volta à tônica Si menor. Os encadeamentos típicos do cromatismo póswagneriano nos permitem enquadrar o estilo harmônico desta canção dentro das tendências de vanguarda da música européia do fim do século dezenove. Diversas passagens merecem destaque pela sua criatividade harmônica. Na passagem dos compassos 7-8, o baixo cromático suporta uma resolução de engano: o acorde de sétima diminuta, que cria a expectativa de progredir para a subdominante, resolve na subdominante napolitana. Já no compasso 20, a condução cromática ao acorde da napolitana tem caráter meramente ornamental, como um "acorde bordadura". Nas passagens dos compassos 20 para 21, e 21 para 22, o encadeamento das harmonias se dá por mero deslizamento cromático, ignorando as expectativas de funcionalidade tonal dos acordes. Ressalve-se que estas passagens de harmonia cromática certamente permitiriam outras interpretações. O que importa salientar é, que nesses encadeamentos, Nepomuceno estende a funcionalidade da harmonia aos limites de sua dissolução. Digna ainda de registro é, no compasso 23, a suspensão sobre o acorde de Tristão, de sabor tipicamente pós-wagneriano. O modelo Bar Form nas canções em português Percorrendo as 45 canções em português da obra completa para voz e piano de Nepomuceno (PIGNATARI, 2004), encontramos uma única canção

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que utiliza o modelo Bar Form. Trata-se da canção Coração Indeciso, publicada em vida do compositor pela Editora Sampaio Araujo & Cia do Rio de Janeiro, como seu Op.30 No.2, sobre o poema de Frota Pessoa transcrito abaixo. Ao princípio era apenas simpatia, já bem perto do amor, e minha alma vibrava; a alma fulgia num festivo esplendor. E tu tão meiga e doce e terna eras então... Tomei como se fosse meio sim, meio não! Depois já era mais que simpatia, muito mais, era amor um palpitar perpétuo; a alma sofria num perpétuo terror. Mas teu olhar espera! dizia. E que expressão! Comigo tinha que era meio sim, meio não! Finalmente foi mais que simpatia e foi mais do que amor; foi paixão, desvario; eu não vivia senão por seu favor. Mas tu quando eu por fim te abri meu coração, não me disseste sim nem me disseste não.

Obviamente não se trata de um poema da grande qualidade literária, mas, tal como Brahms, Nepomuceno muitas vezes preferiu recorrer a versos sugestivos, embora literariamente medianos, de autores contemporâneos, de suas relações pessoais, hoje quase desconhecidos, sobre os quais ele se sentia à vontade para escrever música com força expressiva que sobrepuja o poema. O crítico Otávio Beviláqua, contemporâneo de Nepomuceno, referiu-se a esta canção como "uma modinha metida a besta" (MARIZ 2002, p. 62). Esse comentário me parece um equívoco. Não existe nesta canção o caráter típico da modinha. O estilo melódico é declamatório, quase recitativo, em oposição ao cantabile das modinhas. Sob o ângulo formal, a modinha tenderia a enfatizar o caráter estrófico do poema, enquanto o uso estrito da Bar Form introduz uma modificação radical de sentido na última estrofe. Portanto não há aqui elementos formais que nos remetam ao estilo das modinhas, nem há traços de pedantismo que justifiquem o comentário pejorativo de Beviláqua, aparentemente endossado por Mariz.

As duas primeiras estrofes repetem seus materiais musicais com variações mínimas. A mudança mais sugestiva é, no compasso 28, a introdução de um Fá# como ponto culminante da melodia da segunda estrofe, realizada como apogiatura superior. A linguagem harmônica é francamente tonal, com muito menos recurso aos cromatismos wagnerianos que a canção em alemão. A estrutura tonal alterna, nas duas primeiras estrofes, os modos menor e maior da tonalidade de Mi. A terceira estrofe, que se inicia com um desenho igual ao das duas estrofes anteriores, já no segundo compasso apresenta um desenho melódico diferente, embora a harmonia continue sempre semelhante. A frase final, cujo equivalente na Stollen contrastava pelo modo maior, sugerindo o sentimento de esperança do sujeito, na Abgesang permanecerá em menor, para acentuar a desilusão do sujeito. Afora o uso ocasional de antecipações e suspensões que turvam sutilmente a clareza funcional dos acordes, e uma passagem cromática não-funcional no compasso 16, pouco há para comentar a respeito da inventividade harmônica desta música. Embora não se possa generalizar a partir de um único caso, verifica-se nesta canção a validade de nossa hipótese de que a complexidade do tecido harmônico-melódico de Nepomuceno se rarefaz nas canções em português, comparativamente à ambição aventurosa das primeiras canções em línguas estrangeiras. Conclusões A tese de que Nepomuceno desenvolveu a canção de câmara brasileira baseando-se no seu conhecimento da canção erudita européia, especialmente do Lied alemão, comporta duas leituras. A primeira, cuja prova é quase autoevidente pela mera audição de suas obras, é que Nepomuceno pretendeu compor canções brasileiras com a mesma ambição artística que o Lied tinha na cultura européia. Em outras palavras, canções com uma relação intrínseca entre música e poesia extraida de fontes literárias, canções com uma escrita harmônico-melódica comprometida com as linguagens musicais avançadas em seu tempo. A segunda leitura, mais sutil, que requer comprovação, é que para a realização do seu projeto de canções em língua portuguesa, Nepomuceno teria transplantado modelos da tradição européia, para dar conta dos objetivos acima referidos. Uma maneira que encontramos de testar esta segunda hipótese foi selecionar uma característica marcantemente idiomática da canção européia, verificar sua ocorrência nas poucas canções que

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simpósio de pesquisa em música 2006 Nepomuceno escreveu em língua estrangeira e, com sorte, encontrá-la também nas canções em português. Um dos modelos idiossincráticos da canção alemã é a chamada Bar Form. Esta pesquisa demonstrou que Nepomuceno de fato conhecia este modelo porque empregou-o numa canção composta sobre poema em alemão, numa variante chamada de Reprisenbar pela qual Brahms tinha preferência. Essa coincidência nos permite afirmar que as canções de Brahms são a fonte provável dos modelos que Nepomuceno utilizou quando se deixou influenciar pelo Lied alemão. A pesquisa constatou também que, em pelo menos uma, mas apenas em uma de suas canções

em língua portuguesa, Nepomuceno utilizou o modelo formal clássico da Bar Form. Como essa canção pertence ao período central de sua produção, e não às primeiras tentativas de escrever sobre poemas em português, não se pode deduzir desse achado que a assimilaçao de modelos europeus tenha sido a chave imediata do caminho que ele utilizou para criar o gênero da canção erudita em língua portuguesa. Pode-se porém afirmar que suas canções em língua materna continuaram a dialogar com os modelos das canções européias ao longo de sua carreira, como se esses modelos fossem um repositório de signos carregados de conotações significantes, pertinentes à nossa cultura, que eram resgatados à medida que as relações intrínsecas da composição justificavam.

Referências BAS, Julio. Tratado de la forma musical. Buenos Aires: Ricordi, 1947. CORRÊA, Sergio N. A. Alberto Nepomuceno: catálogo geral. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. GROUT, Donald e PALISCA, Claude. A history of Western music. New York: W.W. Norton. 5a.ed, 1996. HANCOCK, Virginia. Johannes Brahms: Volkslied/Kunstlied. In: HALLMARK, Rufus (org.) German Lieder in the nineteenth century. New York: Schirmer, 1996. KRAMER, Lawrence. Hugo Wolf: Subjectivity in the Fin-de Siècle Lied. In: HALLMARK, Rufus (org.) German Lieder in the nineteenth century. New York: Schirmer, 1996. MARIZ, Vasco. A Canção brasileira de câmara. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002. MUSGRAVE, Michael. The Music of Brahms. Londres: Clarendon, 1985. PIGNATARI, Dante; COELHO de SOUZA, Rodolfo (org.). Alberto Nepomuceno: Canções para Voz e Piano. São Paulo: EDUSP, 2004.

Partituras analisadas O wag’es nicht. Alberto Nepomuceno (música); Nicolau Lenau (letra). Coração indeciso. Alberto Nepomuceno (música); Frota Pessoa (letra).

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La doble génesis del concepto de textura musical Pablo Fessel Universidad Nacional del Litoral, Argentina Resumen El desarrollo histórico del concepto de textura en la teoría de la música despliega contenidos relevantes para su determinación ulterior, el primero de los cuales está dado por su origen. El concepto cuenta con una doble génesis. La transposición del término desde su acepción plástica al metalenguaje musical se produjo en dos momentos históricos distintos, en lenguas distintas y, presumiblemente, de modo independiente en cada una de ellas. La “primera” génesis del concepto se produjo en el ámbito de la crítica musical inglesa hacia comienzos del sigo XX, por parte de críticos como C. Hubert Parry y George Dyson. Parry (1911) caracteriza la textura como un entramado que puede incluir su correspondiente armonización: la textura remite así a una simultaneidad no necesariamente “consistente”. Dyson (1923) identifica el concepto con las propiedades armónicas de las sonoridades de la música moderna. La textura ocupa el lugar tradicionalmente asignado a la armonía en la caracterización de las propiedades de la música. Estos enfoques establecen las líneas generales sobre las cuales será caracterizado en adelante el concepto en la musicología de habla inglesa. La “segunda” génesis del concepto de textura se produce en el ámbito de la teoría de la música en lengua alemana, en el marco de las discusiones del círculo de Darmstadt sobre la música post-serial. Se reiteran aquí los dos rasgos característicos de la introducción del concepto en el ámbito de la musicología anglosajona: su vinculación con la problemática de la música contemporánea, así como la doble perspectiva de que es objeto. La representación de la simultaneidad musical será interpretada mediante los conceptos de Struktur y Textur. György Ligeti (1960) introduce estos conceptos en el marco de una reflexión crítica de la composición serial y de sus consecuencias formales. Con Helmut Lachenmann (1970) estos conceptos se integran en una tipología jerárquica de materiales. Gianmario Borio (1993) ubica esa contraposición en el marco de la renovación de materiales y procedimientos compositivos desarrollada hacia fines de la década del ‘50, en el contexto de la música informal. La textura se constituye como concepto general de los materiales musicales.

Una de las expresiones de la articulación reciente entre historia y teoría de la música está dada por la consideración, dentro de esta última, de su propia historicidad, entendida en un sentido doble como el modo en que sus formulaciones registran los desarrollos compositivos que le son contemporáneos y como expresión de su propio desenvolvimiento histórico. Ese es el marco que vuelve relevante un estudio de los orígenes del concepto de textura musical, los cuales ponen en evidencia una articulación entre problemas de teoría de la música, de composición y de recepción histórica. La reconstrucción histórica del concepto de textura hace posible identificar una doble génesis. La transposición del término “textura” al metalenguaje musical se produjo en dos momentos históricos distintos, en lenguas distintas y, presumiblemente, de un modo independiente en cada una de ellas. En el primer caso se trata de la introducción del término en la crítica inglesa de la primera mitad del siglo XX. En el segundo, el concepto se incorpora al pensamiento musical alemán, por parte de

compositores como György Ligeti y Helmut Lachenmann, en el contexto de una discusión sobre la música post-serial. La “primera génesis” del concepto de textura: La crítica musical inglesa La primera consideración teórica del concepto de textura se produjo en el ámbito de la crítica musical inglesa, en las primeras décadas del siglo XX. Hasta entonces el término “textura” había sido empleado, en la crítica inglesa y angloparlante en general, simplemente como una categoría de escritura, en expresiones como “textura polifónica” o “textura homofónica”.1 El término “texture” carece de una entrada propia en la primera edición del diccionario editado en 1900 por George Grove2 (una situación que no se modificará hasta la edición

1

Cf. por ejemplo PARRY, C. H. The art of music (Londres: Kegan Paul, 1893), p. 193 y 295; y GOETSCHIUS, P. Counterpoint applied in the invention, fugue, canon and other polyphonic forms (New York: Schirmer, 1902), p. 82.

2

A dictionary of music and musicians. Londres: Macmillan, 1900.

106 de 19803), donde se lo emplea sólo como traducción del vocablo italiano “tessitura” en su sentido corriente – a falta, según Henry Collins Deacon, el autor de la entrada correspondiente, de un equivalente directo en inglés.4 La representación teórica de la simultaneidad había estado caracterizada hasta entonces por una orientación tipológica, basada en un reducido conjunto de “categorías estilísticas” (en la denominación de Guido Adler)5 tales como polifonía, homofonía, entre otras. La formulación del concepto de “textura” en el contexto de la crítica inglesa puede entenderse como resultado de la inadecuación de las categorías tradicionales de escritura musical para dar cuenta de sonoridades nuevas, propias del lenguaje del postromanticismo alemán.6 Esas nuevas texturas pusieron en evidencia tanto la inadecuación de las categorías estilísticas existentes, como la insuficiencia del conjunto de todas ellas para su representación teórica.

SIMPEMUS3 líneas melódicas, sino que pueden incluir su correspondiente armonización, posibilidad ilustrada con fragmentos de Ein Heldenleben y Elektra de Richard Strauss. Se presenta así el caso, expresado en términos figurados, de un entramado de armonías. En segundo lugar, la textura remite a una simultaneidad musical no necesariamente “consistente”: [L]os desarrollos más extremos de la textura que se presentan ahora con frecuencia son tales que varias melodías o figuras representativas corren simultáneamente sin consideración alguna del hecho de estar en la misma tonalidad, o de representar armonías consistentes. Los compositores alemanes han arribado a la más extrema extravagancia en lo que podría denominarse verdaderamente un libertinaje positivo en la aplicación de los principios de la textura, los cuales han evolucionado hasta nuestro tiempo. Ellos seguramente no lo consideran como un problema de textura; sin embargo, su posición es fundamentalmente explicable sobre esa base. Las varias partes que componen la textura están tratadas con tal independencia que parecen ir por su cuenta sin consideración alguna de lo que las otras están haciendo. […] la tendencia parece ser no sólo hacer que las varias líneas individuales prosigan sus cursos independientes, sino adjuntarse las armonías que les corresponden, y emplear sucesiones de acordes como ingredientes de la textura, sin poner la menor consideración en las falsas relaciones y choques de notas subordinadas que resultan [de este modo] 9

En 1911 el crítico Charles Hubert Parry tituló “Texture” dos capítulos de su libro Style in musical art, originado en clases dictadas en la Universidad de Oxford.7 El sentido que el término asume entonces es actual en más de un aspecto. En primer lugar, Parry caracteriza la textura, en coincidencia con la etimología del término, como un entramado, como “el modo en el cual las hebras se entretejen”8. Sin embargo, tales “hebras” no se identifican sin más con 3

The New Grove dictionary of music and musicians. Stanley Sadie org. Londres: Macmillan, 1980. Cf. ‘Texture’, v. 18, p. 709.

4

Cf. DEACON, H. C. Tessitura. A dictionary of music and musicians, v. 4, p. 94. El término no aparece tampoco en diccionarios como los de CARMICHAEL, S. (A new dictionary of musical terms. With a short prefatory explanation of the elementary rules of music. Londres, Augener, 1878) o BAKER, T. (A dictionary of musical terms, 9. ed. New York: Schirmer, 1905). Como en el caso del Grove, se lo identifica con la tesitura en diccionarios como los de WOTTON, T. (A dictionary of foreign musical terms and handbook of orchestral instruments. Leipzig: Breitkopf & Härtel, 1907, p. 199) y DUNSTAN, R. (A cyclopaedic dictionary of music. Londres: J. Curwen, 1908, p. 429).

5

ADLER, Guido. Der Stil in der Musik. Leipzig: Breitkopf & Härtel, 1911. Reimpresión de la 2 ed. de 1929: (Walluf: Sändig, 1973).

6

La música de Richard Strauss desempeña un papel significativo en este contexto: contaba a comienzos del siglo XX en Inglaterra como representación paradigmática de lo contemporáneo.

7

PARRY, C. H. Texture. Style in musical art (Londres: Macmillan, 1911), p. 173-206.

8

PARRY, op. cit., p. 185. Las citas fueron traducidas expresamente. Agradezco a Gerardo Sachs su revisión de mis traducciones del alemán.

Pueden reconocerse dos elementos de actualidad en el concepto de textura de Parry. Por un lado, el valor agregado que el concepto representa con respecto a las categorías estilísticas tradicionales (categorías como polifonía, homofonía, etc., definidas siempre con presupuestos lineales), valor dado por la posibilidad de representar un entramado compuesto de elementos no lineales. Por otro lado, la legitimación de la simultaneidad en cuanto tal, independientemente de la consistencia mutua entre sus elementos componentes.10 La caracterización de Parry 9

Ibíd., p. 204-205.

10

La presentación simultánea de materiales cuya relación aparece como no consistente en música de la primera década del siglo XX está tematizada por Guido Adler en el contexto de una universalización del término ‘heterofonía’. Cf. ADLER, G. Über Heterophonie. Jahrbuch der Musikbibliothek Peters für 1908 (1909), p. 17-27. Véase asimismo las consideraciones de E. J. Dent sobre la autosuficiencia de las sonoridades ‘modernas’, ‘consideradas por sí mismas’. Cf. DENT, E. Harmony. A dictionary of modern music and musicians (Arthur Eaglefield-Hull [org.] Londres: J. M. Dent, 1924), p. 215.

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simpósio de pesquisa em música 2006 destaca, de este modo, multiplicidad del concepto.

el

elemento

de

Una década más tarde, en un artículo denominado “La textura de la música moderna”, George Dyson identifica el concepto con las propiedades armónicas de las sonoridades de la música moderna.11 La textura ocupa el lugar asignado tradicionalmente a la armonía en la caracterización de las propiedades de la música.12 Al igual que en Parry la música moderna se caracteriza como un desarrollo de la textura,13 desarrollo cuyo antecedente se retrotrae a la música de Johann S. Bach. Ambos momentos históricos se distinguen, no obstante, en el carácter en última instancia horizontal de la textura bachiana, contrapuesto al carácter esencialmente vertical de las texturas contemporáneas. La textura moderna es normalmente vertical, armónica, una trama [fabric] de salpicaduras de sonido. Las partes orquestales parecen ahora secciones horizontales cortadas a través de un paisaje. Son como las líneas de contorno de un mapa de artillería. Aparecen cuando la trama alcanza un grado particular de elevación. Desaparecen cuando la textura es delgada. Su función en la técnica es ocasional, casi casual. Incluso cuando el aparato orquestal es relativamente constante, como en las partes de cuerda de una orquesta, o, verdaderamente, en

11

12

13

Cf. DYSON, G. The texture of modern music. Music & Letters, v. 4, n. 2, 1923, p. 107-18; n. 3 (1923), p. 203-18; y n. 4 (1923), p. 293-312. Dyson emplea indistintamente los términos ‘moderno’, ‘nuevo’ y ‘contemporáneo’, los cuales asumen de este modo un valor estrictamente cronológico, desprovisto de significación estética. Esto se pone en evidencia todavía más claramente en la reedición del artículo, al año siguiente, en el contexto de un libro dedicado a la música moderna. Cf. DYSON, G. The new music (Londres: Oxford University Press, 1924), p. 55116. Allí, el capítulo sobre textura aparece a continuación de un capítulo sobre “Melodía y ritmo”, y en forma inmediatamente anterior a un capítulo sobre forma, denominado “Problemas de arquitectura”. El capítulo está dividido por su parte en tres fragmentos, tal como había aparecido en Music & Letters, fragmentos que serán ahora denominados “La expansión de la tradición”, “Múltiple tonalidad” y “Cromatismo”, respectivamente. Dyson volverá a publicar partes completas del trabajo, así como algunos de los ejemplos musicales, en el artículo “Harmony” en la tercera edición del Grove. Cf. DYSON, G. Harmony. Grove’s dictionary of music and musicians, 3. ed., (H. C. Colles [org.], Londres: Macmillan, 1927), v. 2, p. 527-39. Cf. DYSON, G. The Texture of Modern Music, p. 108. La caracterización de la música moderna por su desarrollo de la textura se corresponde con una caracterización del ‘período sinfónico’ por su ocupación con los problemas de arquitectura musical, y del ‘período del drama musical’ con los del tematismo. Cf. ibíd., p. 108.

aquellas de un cuarteto, puede no haber reales partes en el sentido contrapuntístico del término. Todo está sujeto a exigencias verticales y armónicas. [...] Explotamos masas y contrastes, y el medio es el color más que la línea; la trama es empapelado más que tapicería. Y la efectividad del discurso de un compositor contemporáneo puede depender casi exclusivamente de la delicadeza u osadía de sus métodos armónicos. 14

La metáfora que sustituye la tapicería por el empapelado pone en evidencia un elemento de ilusionismo en la textura, en la cual la sonoridad desempeña un papel más importante que el entramado.15 El énfasis en el enfoque de Dyson está dado por las nuevas sonoridades de la música contemporánea. Esta concentración en el contenido de altura de los materiales conduce, significativamente, al problema de la consistencia entre los elementos componentes de la textura. Mientras que Parry formulaba el problema de la consistencia a partir de una concepción de la textura entendida como entramado, Dyson llega al mismo como resultado de su tratamiento de la múltiple tonalidad. Strauss podía hacer a menudo modificaciones detalladas en sus sucesiones de acordes a efectos de producir el efecto total dentro de una distancia comparativamente respetable de lo que solía llamarse armonía. Nuestros contemporáneos no tienen esas reservas. Las columnas armónicas siguen atrevidamente su propio curso, e ignoran o desafían las buenas maneras tradicionales del mismo modo como lo hicieran los primeros pioneros del contrapunto.16

La remisión a los orígenes del contrapunto se sigue de la analogía que establece Dyson entre el desarrollo de este “contrapunto armónico” moderno y “los experimentos tentativos que elaboraron el organum a partir del canto llano, y el contrapunto a partir del organum.”17 El contrapunto armónico, ejemplificado con pasajes de Salome de Strauss, está definido como una textura en la cual “las fibras melódicas de los contrapuntistas han devenido corrientes armónicas 14

Ibíd., p. 109. Los subrayados son nuestros.

15

Ese elemento de ilusionismo ligado a la textura reaparece en enfoques posteriores como los de de Jonathan DUNSBY (Cf. Considerations of Texture. Music & Letters, v. 70, n. 1, 1989, p. 46-57.) y Federico MONJEAU (Cf. Forma. La invención musical. Ideas de historia, forma y representación. Buenos Aires: Paidós, 2004, p. 69-127.).

16

Ibíd., p. 215.

17

Ibíd., p. 213.

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compuestas, las cuales pueden aproximarse y retirarse, combinarse o chocar, tal como lo hacían las partes individuales de la polifonía”.18 En síntesis, los enfoques de Parry y de Dyson establecen las líneas generales sobre las cuales será caracterizado ulteriormente el concepto de textura en la musicología de habla inglesa.19 Se trata, en el caso de Parry, de una caracterización de tipo formal, centrada en la representación de la constitución en sí de la simultaneidad musical, y en el otro, de una caracterización del contenido de los materiales; en el caso particular de Dyson, de su contenido de altura. La “segunda génesis” del pensamiento musical alemán

concepto:

El

La “segunda génesis” del concepto de textura se produce en el ámbito de la teoría de la música en lengua alemana, en el marco de las discusiones del círculo de Darmstadt sobre la música post-serial.20 Se reiteran aquí los dos rasgos característicos de la introducción del término en el ámbito de la musicología anglosajona: la 18

Ibíd., p. 213.

19

Más allá de las recurrencias de un empleo del concepto simplemente como denominación comprensiva del conjunto de categorías estilísticas.

20

Al igual que en el caso de la crítica musical inglesa, se registra al menos una mención anterior del término en la literatura musical alemana. En 1832, en el contexto de un debate sobre la logicidad armónica de la introducción del Cuarteto en do, K. 465 de W. Mozart, Gottfried Weber introduce el término Textur para designar un entrelazado completo de melodía y armonía: “Un comprehensivo análisis de toda la textura armónica y melódica del pasaje en cuestión nos permitirá identificar todas esas causas, tanto individuales como en sus relaciones, y asimismo dar cuenta de qué es esto, que con esas resonancias tanto nos extraña y llama la atención tan rudamente a nuestro oído.” WEBER, G. Über eine besonders merkwürdige Stelle in einem Mozart’schen Violinquartett aus C. Caecilia v. 14, n. 53-54, 1832, p. 10. (Los subrayados son de Weber.) Sobre los protagonistas y las vicisitudes del debate, cf. VERTREES, J. Mozart’s String Quartet K.465: the History of a Controversy. Current Musicology, v. 17, 1974, p. 96-114. El empleo no parece haber tenido precedentes ni continuidad inmediata en la tradición crítica alemana. De hecho, el término aparece en el contexto de un uso pronunciado de expresiones latinas, lo que Ian Bent asocia a una remisión por parte de Weber al paradigma retórico como instancia explicativa del pasaje. (Weber habla de la ‘significación retórica del pasaje’.) Cf. BENT, I. Music analysis in the nineteenth century, v. 1: Fugue, Form and Style (Cambridge: Cambridge University Press, 1994), p. 157-60. Es sugestiva, no obstante, la recurrencia de un patrón: la introducción del término parece asociada en todos los casos (tanto en éste, como en el caso de Parry y el de Ligeti, que se trata a continuación) al problema de representar simultaneidades musicales impropias con relación a las categorías analíticas vigentes en cada momento histórico y para cada tradición.

vinculación del concepto con la problemática de la música contemporánea, así como la doble perspectiva de que el concepto es objeto. Esta dualidad de perspectivas obtiene aquí una correspondencia inmediata en la terminología.21 La representación de la simultaneidad musical será interpretada mediante los conceptos de Struktur y Textur.22 György Ligeti, en un ensayo escrito en 1959 y titulado “Metamorfosis de la forma musical”,23 introduce estos conceptos en el contexto de una reflexión crítica del estado de la composición serial y de sus consecuencias formales. En ese marco, y con una consideración relativamente marginal,24 la “estructura” queda caracterizada como un entramado [Gefüge] cuyos elementos constitutivos son distinguibles, y que se conforma como producto de las interrelaciones entre aquellos. El concepto de “textura” designa en cambio un complejo más homogéneo, menos articulado, en el cual apenas pueden discernirse sus elementos constitutivos.25 Mientras que la estructura se analiza en términos de sus componentes, la textura se describe en 21

Hasta entonces, la terminología musical alemana presentaba como equivalente aproximado de texture un término cargado de la misma duplicidad. Tal es el caso del término Satz, considerado en algunas de sus acepciones, aquellas homologables a las del término texture, y con exclusión de aquellas otras, en las cuales es entendido como categoría formal. El término remite por una parte a problemas de contenido, cuando alude a aspectos ligados a diferentes figuraciones instrumentales (como en Klaviersatz), o, en un sentido general, a la disposición del material musical. (Satz como musical setting. Cf. LEUCHTMANN, H. Dictionary of Terms in Music = Wörterbuch Musik [5ta. ed. Stuttgart, 1998], p. 263.) Remite por otra parte a elementos ligados al número de partes involucradas en la textura (como en Zweistimmigensatz) así como a la relación entre éstas en términos fundamentalmente rítmicos (en los casos de Homophonensatz, o Polyphonensatz). Cf. DRABKIN, W. e I. PFINGSTEN. Satz. The New Grove Dictionary of Music and Musicians (2. ed. Stanley Sadie org., Londres: Macmillan, 2001), v. 22, p. 322-23.

22

El término Struktur asume en la terminología musical alemana múltiples sentidos, entre ellos uno vinculado a la lógica compositiva, sentido que, si bien no es completamente independiente del que se relaciona con el problema de la simultaneidad musical, no es tampoco homologable con éste. Sobre la multiplicidad de sentidos del término Struktur, cf. , E. Was heißt strukturell? Melos, v. 31, n. 6-7, 1964, p. 220-26; y Zum Terminus ‘Strukturell’. Terminologie der neuen Musik (Berlin: Merseburger, 1965); y KROPFINGER, K. Bemerkungen zur Geschichte des Begriffswortes ‘Struktur‘ in der Musik. Zur Terminologie der Musik des 20. Jahrhunderts (H. Eggebrecht, org. Stuttgart: Musikwissenschaftliche Verlags-Gesellschaft, 1974), p. 188-204.

23

LIGETI, G. Wandlungen der musikalischen Form. die Reihe 7, 1960, p. 5-17.

24

La distinción se formula en una nota al pie de página. Cf. ibíd., p. 13.

25

La distinción de Ligeti refigura para los materiales contemporáneos esa antigua distinción, establecida por la musicología histórica en el marco de las categorías lineales, entre las einstimmige y las mehrstimmige Kategorien.

109

simpósio de pesquisa em música 2006 términos de rasgos estadísticos generales.26 Con Helmut Lachenmann la contraposición entre los conceptos de Textur y Struktur adquiere valores adicionales. En su ensayo “Tipos sonoros de la nueva música”, escrito en 1966,27 estos conceptos se integran como los grados superiores de una tipología jerárquica de materiales. A los parámetros tradicionales de descripción tales como la altura, el timbre, la duración y la intensidad, Lachenmann agrega una distinción entre los conceptos de sonoridad como “estado” y de sonoridad como “proceso”. Caracteriza a la “sonoridad-textura” [Texturklang] el hecho de que puede cambiar continuamente desde el punto de vista de sus particularidades acústicas sin recurrencias de ninguna clase, lo que la distingue de la “sonoridad-fluctuación” [Fluktuationsklang], emplazada un escalón más abajo en la jerarquía de materiales, cuyas modificaciones son, de una u otra forma, recurrentes. La textura, si bien prolongable discrecionalmente, se constituye no obstante como un material estático, en la medida en que esas modificaciones operan en el plano de los elementos componentes y no de su resultante global. Esa distinción entre propiedades parciales y globales de la textura da lugar a una especificación ulterior del material. Las propiedades globales derivan de una combinación estadística de las propiedades parciales de la sonoridad. La resultante global de la textura es, en consecuencia, más pobre que los elementos particulares que la componen. la característica general de una textura no es ya en ninguna parte necesariamente idéntica a las características de los detalles audibles en ese momento, excepto en el sentido negativo de que el carácter general, calificado como resultado estadístico, se sigue del nivel de los detalles – así como precisamente la masa es más primitiva que sus miembros individuales.28

Se trata, como en el caso de Ligeti, de un 26

La textura se va a constituir en el pensamiento compositivo alemán como designación de cierto tipo de materiales musicales. Karlheinz Stockhausen emplea el término por esos mismos años para caracterizar los materiales que componen su obra Gesang der Jünglinge, materiales entendidos como unidades formales. Cf. STOCKHAUSEN, K. Musik und Sprache III. In: Texte, v. 2: Aufsätze 1952-1962 (Köln: DuMont, 1964), p. 58-68.

27

Cf. LACHENMANN, H. Klangtypen der neuen Musik. Zeitschrift für Musiktheorie , v. 1, n. 1, 1970, p. 21-30. Reimpreso en LACHENMANN, H. Musik als existentielle Erfahrung. Schriften 1966-1995 (J. Häusler org. Wiesbaden: Breitkopf & Härtel, 1996), p. 1-20.

28

Ibíd., p. 28.

material complejo, pero en última instancia homogéneo.29 En la “estructura”, en cambio, las propiedades parciales adquieren una función en el resultado global del material. Esa originalidad se debe más bien precisamente al hecho de que en tales estructuras de sonido [Klang-Struktur] no son las puras cualidades de los sonidos detallados las que vuelven a su efecto heredado, sino que esos detalles son funciones de un orden y miembros de disposiciones precisas, y como tales despliegan entre ellas una diversidad inmediatamente efectiva de parentescos y relaciones de contraste de diferentes niveles, y a partir de tal interdependencia se comprenden y comunican en forma totalmente nueva. De la interacción intencional de tales relaciones de sonidos resulta ese carácter global único e inconfundible de una estructura [Struktur-klang].30

La diferenciación entre textura y estructura se manifiesta asimismo en lo relativo a sus respectivas propiedades temporales. La temporalidad propia [“Eigenzeit”] de la textura, como la de la sonoridad-timbre [Farbklang] y de la sonoridad-fluctuación, es todavía independiente de la duración efectiva de que los materiales son objeto. Estos tres materiales se ordenan en una escala en la cual su duración efectiva ocupa un lugar de relevancia creciente. En la sonoridadestructura [Strukturklang] la ensambladura temporal interna del material se vuelve tan diferenciada, que éste adquiere implicancias no sólo sonoras sino formales. La sonoridad-estructura se constituye como proceso, y su duración efectiva se vuelve una propiedad esencial de su constitución en tanto que material. Su temporalidad propia se vuelve idéntica de su duración efectiva. En virtud de estas dos propiedades, la funcionalización de sus momentos parciales, así como la incidencia efectiva del tiempo, la estructura se presenta como síntesis posible del dualismo entre sonoridad (material) y forma. La distinción de Lachenmann entre los conceptos de textura y estructura pone en juego de este modo un conjunto complejo de elementos. Por un lado, mantiene la oposición formulada por Ligeti entre materiales homogéneos (la textura) y materiales estratificados (la estructura). Esa oposición adquiere en Lachenmann determinaciones ulteriores, con la oposición entre la constitución puramente estadística de la textura 29

Lachenmann menciona como ejemplo de una textura el final de Sonant, de Mauricio Kagel.

30

Ibíd. Lachenmann menciona como ejemplo de estructura la pieza completa Structure Ia para dos pianos de Pierre Boulez.

110 y la constitución funcional de la estructura. Una tercera determinación está dada por el grado de evolución interna genuina de los materiales, esto es, su carácter estático o dinámico (procesivo). La determinación más precisa de que estos conceptos son objeto por parte de Lachenmann deriva en una reducción en el alcance descriptivo de la distinción misma. Lo que en Ligeti tenía la forma de una contraposición entre dos clases de materiales, cuya distinción estaba fundada sobre la presencia o ausencia de estratificación, se transfigura en Lachenmann en una contraposición que identifica, en el caso de la estructura, dicha estratificación con una funcionalización de las relaciones entre los elementos componentes del material. Esta reducción se pone particularmente de manifiesto en la crítica de Gianmario Borio a la contraposición de Lachenmann, crítica que se plantea en el marco de una historización de la discusión.31 Borio ubica la contraposición entre textura y estructura en el marco de la renovación de materiales y procedimientos compositivos desarrollada hacia fines de la década del ‘50, en el contexto de lo que, adoptando la caracterización de Adorno, denomina música informal.32 Borio identifica un trasfondo organicista en la jerarquización de Lachenmann de la estructura por sobre la textura, así como en la asignación de propiedades funcionales a la primera. Dicho enfoque, señala Borio, presupone en última instancia que la inclusión de los elementos individuales en un complejo entramado funcional, en el cual quedan relegadas a un plano secundario sus cualidades materiales, garantiza por sí misma el sentido y valor estético de la obra musical. Pero es precisamente tal primacía de la estructura, esto es, el valor abstracto de las relaciones funcionales sobre las propiedades materiales de la sonoridad, lo que la obra musical informal pone en cuestión. Esa preeminencia de las relaciones sobre la materialidad de las sonoridades se extiende asimismo a la relación entre los estratos identificables en la simultaneidad sonora. El carácter funcional de la estructura representa 31

Cf. BORIO, G. Überlegungen zu Struktur und Textur. Musikalische Avantgarde um 1960. Entwurf einer Theorie der informellen Musik (Laaber: Laaber, 1993), p. 92-101.

32

Cf. ADORNO, Th. W. Vers une musique informelle. Darmstädter Beiträge zur Neuen Musik 4 (1961), p. 73 ss. Trad. de A. Brotons Muñoz y A. Gómez Schneekloth. Vers une musique informelle. Escritos musicales I-III. (Obra completa, v. 16. Madrid: Akal, 2006), p. 503-549.

SIMPEMUS3 una negación del momento de genuina multiplicidad contenido en el concepto. Hace de tal multiplicidad una forma mediata de la unicidad. Requiere de las sonoridades concurrentes cierta forma de complementación. Así, pueden identificarse dos elementos de organicidad en el concepto de Struktur de Lachenmann. El primado de las relaciones por sobre la materialidad misma de las sonoridades, identificado por Borio, y la negación del momento de multiplicidad. La creciente autosuficiencia estética del material en tanto que material en la música informal termina por disolver la dicotomía entre estructura y textura. Borio toma en consideración dos pasajes correspondientes a obras separadas por algo más de una década: Kreuzspiel (1951), de Karlheinz Stockhausen y Fluktuationen (1964) de Isang Yun. El primer pasaje33 es caracterizado como una textura compleja compuesta de múltiples estratos de diferente timbre y movimiento. Esos elementos, sin embargo, remiten en Kreuzspiel a una meta-estructura, dentro de la cual no representan simplemente componentes de una sonoridad compleja, sino que asumen una función en una totalidad coherente.34 En Fluktuationen35 en cambio, las relaciones funcionales no dan cuenta de la totalidad de los materiales. Un análisis detenido de la obra, concluye Borio, no puede separar los elementos funcionales del complejo sonoro mismo que compone la textura.36 El concepto de textura asume de este modo el elemento de multiplicidad del concepto de estructura, y pone entre paréntesis el aspecto relativo a la funcionalidad de los elementos que la componen. Textura se constituye así como concepto general de los materiales musicales. Conclusiones La genealogía del concepto de textura revela significativas particularidades. Una de ellas está dada por su doble génesis. El concepto surgió en forma independiente en dos contextos teóricos distintos. El primero es el contexto de la crítica musical inglesa de comienzos del siglo XX, en autores como Parry y Dyson. El segundo está dado por la discusión en el pensamiento musical alemán alrededor de la música post-serial, en autores tales como Ligeti, Lachenmann y Borio. En los dos casos 33

La referencia es a los cc. 46-53.

34

Cf. BORIO, G. Op. cit., p. 95-97.

35

Borio analiza los cc. 1-21.

36

Cf. BORIO, G. Op. cit., p. 97-99.

simpósio de pesquisa em música 2006 el concepto se revela en su naturaleza antinómica. La contraposición entre una concepción de la textura entendida como entramado, en el caso de Parry, con una concepción de la textura como nueva categoría de la verticalidad en sustitución de la armonía, en el caso de Dyson, puede ser caracterizada como una contraposición entre una concepción formal (formal en tanto centrada en la constitución en sí del entramado más que en las hebras que lo componen) y una concepción material, concreta, de la textura. Una contraposición análoga se establece entre los conceptos de Struktur y de Textur de Ligeti; el primero asociado a una idea de multiplicidad, el segundo a una particular conformación del material musical.37 Cada una de estas orientaciones cuenta con sus propios antecedentes en la historia de la teoría. Los enfoques que entienden la textura como representación de la constitución de la simultaneidad se inscriben en la tradición de las categorías estilísticas. Estas categorías conforman una tipología, elaborada de acuerdo con principios relativos al número de partes, así como a las relaciones melódicas, armónicas o rítmicas entre las mismas. Una característica tan general como inexpresada de esta tradición está dada por la presuposición de linealidad como atributo fundamental de los componentes últimos de la textura,38 así como por una identificación acrítica de éstos con las partes vocales o instrumentales implicadas. La segunda orientación, la representación de la textura entendida como caracterización de los materiales, encuentra su antecedente en tratados de composición o de instrumentación, donde algunas configuraciones texturales son consideradas bajo la forma de “efectos de disposición” de los materiales. Tal es el caso del tratado de instrumentación de Carl Czerny de 1848.39

37

La doble génesis descubre asimismo una constante epistemológica. En ambos casos el concepto resulta de una inadecuación de las categorías existentes para dar cuenta de una nueva concepción de la simultaneidad y los materiales musicales. Incluso el caso aislado de Gottfried Weber, considerado en la nota 20, se ajusta a esta constante.

38

Cf. la crítica de esta presuposición en FICKER, R. Primäre Klangformen. Jahrbuch der Musikbibliothek Peters für 1929, v. 36, 1930, p. 21-34.

39

CZERNY, Carl. School of Practical Composition. Trad. de J. Bishop. (Londres: R. Cooks, c1848) 3 Vols. op. 600. Cf. la reseña del parágrafo “Of Unusual Combinations of Different Instruments” en TODD, R. Orchestral texture and the art of orchestration. The orchestra: Origins and transformations (Joan Peyser, org. New York: Scribner,

111 Se presenta así en la historia del pensamiento musical en el siglo XX una dualidad de perspectivas en lo que respecta a la representación de la textura musical. Esta dualidad distingue y mantiene como antagónicos los elementos de multiplicidad y de concreción contenidos en el concepto. La introducción del término “textura” en la terminología musical supone una articulación teórica significativa. No es accidental que esa articulación haya tenido lugar con relación a la caracterización de la música contemporánea. Se trata de una nueva conceptualización, a partir de una perspectiva más amplia que la que brindaban las antiguas categorías, de un problema teórico que se hizo visible una vez que su premisa – la constitución de la simultaneidad musical – se volvió objeto de una pronunciada diversificación en el plano de la composición musical. Es en dicho marco, el de la renovación de los materiales musicales y sus ordenamientos formales, en el cual el concepto de textura asume plena entidad.

1986), p. 191-226; y RATNER, L. New Sounds. Romantic Music. Sound and Syntax (New York: Schirmer, 1992), p. 1-129.

112

SIMPEMUS3

Referências BORIO, G. Überlegungen zu Struktur und Textur. In: Musikalische Avantgarde um 1960: Entwurf einer Theorie der informellen Musik, Laaber: Laaber, 1993, p. 92-101. DYSON, G. The Texture of Modern Music. Music & Letters v. 4, n. 2, 1923, p. 107-18; v. 4, n. 3, 1923, p. 20318; v. 2, n. 4, 1923, p. 293-312. LACHENMANN, H. Klangtypen der neuen Musik. Zeitschrift für Musiktheorie v. 1, n. 1, 1970, p. 21-30. LIGETI, G. Wandlungen der musikalischen Form. Die Reihe v. 7, 1960, p. 5-17. PARRY, C. H. Texture. In: Style in musical art. Londres: Macmillan, 1911, p. 173-206.

Forma musical e referencialidade: uma análise comparativa entre Mortuos Plango, Vivos Voco de Jonathan Harvey e Points de Fuite de Francis Dhomont Arthur Rinaldi e Edson Zampronha Universidade Estadual Paulista

Resumo Neste artigo apresentamos os resultados de uma análise comparativa feita entre as obras eletroacústicas Mortuos Plango, Vivos Voco, de Jonathan Harvey, e Points de Fuite, de Francis Dhomont. Primeiro comentamos cada obra individualmente, e em seguida comparamos os resultados obtidos. As características mais relevantes encontradas são: ambas apresentam uma íntima relação entre a referencialidade das fontes sonoras e forma musical; ambas empregam uma construção formal similar próxima às construções tradicionais, e ambas usam sons específicos com o objetivo de articulação de seus segmentos. Conclui-se realizando breves considerações sobre o uso da relação íntima entre referencialidade e forma musical na música contemporânea recente. Palavras-Chave: Forma – Referencialidade – Análise – Música Eletroacústica

Introdução Nesse artigo realizamos uma análise comparativa de duas importantes peças eletroacústicas compostas no início da década de 1980: Mortuos Plango, Vivos Voco, de Jonathan Harvey, e Points de Fuite, de Francis Dhomont. Ambas composições são relevantes dentro do cenário musical eletroacústico, mas advindas de linhas estéticas e influências diferentes. Jonathan Harvey nasceu em 1939 na Inglaterra. Durante seus estudos universitários teve contato com a música atonal, dodecafônica e serial pós-1950. Segundo Griffiths, “a concepção weberniana de serialismo é fundamental” para Jonathan Harvey: “uma concepção de música em constante movimento, mas que permanece sempre no mesmo lugar” (GRIFFITHS, 1984, p. 88). Sua obra Mortuos Plango, Vivos Voco foi composta em 1980 e é octofônica. Esta peça ganhou notoriedade pelos processos de tratamento, especialmente os processos de re-síntese sonora1, utilizados na manufatura da peça. Digno de nota é a similaridade entre esta peça e Gesang der Jünglinge, de Stockhausen. Ambas utilizam como material musical a voz de um 1

Re-síntese é o nome genérico dado a um conjunto diversificado de técnicas de síntese sonora. Estas técnicas possuem de três etapas básicas: a análise de um som gravado (freqüentemente uma análise de espectro), a modificação das informações obtidas através desta análise, e finalmente a síntese de um novo som a partir destas informações modificadas.

menino, ambas inserem esta voz num contexto artificial composto de sons eletrônicos, e ambas utilizam textos sacros (GRIFFITHS, 1984, p. 99). Francis Dhomont nasceu em 1929, na França. Desde 1963 dedica-se exclusivamente à composição de obras eletroacústicas, cujas primeiras experiências pessoais remontam ao final da década de 1940. Sua música é fundamentalmente acusmática, incluindo em seu discurso musical as múltiplas referencialidades de um som. Para tanto, se baseia na síntese que François Bayle realiza entre a concepção de objeto sonoro de Pierre Schaeffer e a concepção sígnica do fenômeno sonoro segundo C. S. Peirce, incluindo em seu discurso musical as múltiplas referencialidades de um som. Sua obra Points de Fuite é estereofônica. Foi composta em 1982, e faz parte de um ciclo, denomidado Cycle de l´errance. Este ciclo é composto de três peças: Points de fuite, ... mourir un peu e Espace / Escape. Comentários analíticos sobre as obras analisadas Nossa análise tem como foco principal a organização formal e sua relação com outros aspectos da composição. Analisamos cada obra individualmente e posteriormente comparamos os resultados obtidos. Ambas análises foram realizadas a partir da escuta das obras, utilizando como ponto de partida o conhecimento prévio das linhas estético-composicionais às quais os compositores mais se aproximam.

114 Mortuos Plango, Vivos Voco, de Jonathan Harvey Os principais materiais sonoros da obra derivam da voz de um menino e de sons de sinos. A análise espectral do sino mais grave da Catedral de Winchester serviu de elemento estrutural nesta obra. Seu som fundamental e seus oito primeiros harmônicos servem para polarizar as alturas de cada uma das partes da obra. No entanto, embora Harvey tenha dividido a obra em oito partes, é muito destacado o agrupamento delas em três partes distintas. A primeira parte estende-se do início da peça até 1’41”, e apresenta uma importante divisão em 0’50”. Até 0’50” há o predomínio de sons com pouca modificação, muito próximos dos sons originalmente gravados. Além disso, é nítida a presença de um centro harmônico2 sobre a nota Dó, acentuada pelos pedais graves presentes tanto na voz como nos sons de sinos. Esta camada está composta por sons de sinos que se rarefazem e que, em 0’50”, dão lugar a uma camada composta por sons sintetizados do tipo massa harmônica3. Estes sons do tipo massa harmônica se contrapõem a uma camada de sons de voz elaborada de modo similar à camada anterior de sons de sinos. A segunda parte da peça começa em 1’41” e termina em 6’34”. Nesta parte predominam sons que são transformações dos principais sons apresentados inicialmente. Eles geram um contraste com os sons iniciais, principalmente porque os sons perdem muito de sua referencialidade. Além disso, também são introduzidos sons ruidosos, como sons de consoantes secas (“k”, “t” etc.), glissandos e sons do tipo massa complexa inarmônica4. A segunda parte se divide em seis trechos distintos. Cada trecho explora centros harmônicos diferentes e apresenta materiais sonoros também diferentes. É importante observar que o início de cada trecho ou é pontuado por um evento sonoro, ou está separado do trecho anterior por

2

O termo centro harmônico é utilizado neste artigo para indicar a clara relação de subordinação existente entre as freqüências encontradas num determinado trecho a uma freqüência fundamental predominante.

3

O termo massa harmônica se refere a sons cujas principais freqüências componentes seguem a ordenação encontrada na série harmônica.

4

O termo massa complexa inarmônica se refere a sons com altura indefinida, resultado de suas principais freqüências componentes não seguirem a ordenação encontrada na série harmônica.

SIMPEMUS3 uma pausa. Os trechos desta segunda parte estão organizados do seguinte modo: • Trecho 1 (1’41” a 2’13”) – predominância de centro harmônico sobre Dó, mas com forte polarização sobre Sol; constituído por sons consonantais secos e por sons harmônicos contínuos; • Trecho 2 (2’13” a 3’31”) – predominância de centro harmônico sobre Fá, com passagens em torno de Si e Dó; constituído predominantemente por sons do tipo massa harmônica em glissando; • Trecho 3 (3’31” a 4’10”) – predominância de centro harmônico sobre Sib; constituído por sons contínuos, tanto sons de vozes como sons do tipo massa harmônica; • Trecho 4 (4’10” a 5’00”) – predominância de centro harmônico sobre Dó; constituído predominantemente por sons do tipo massa harmônica fixa e massa harmônica variável (glissandos); • Trecho 5 (5’00” a 5’34”) – predominância de centro harmônico sobre Lá; constituído por sons do tipo massa harmônica combinados com ataques de sons de sinos, assim como pelos sons de vozes ao final; • Trecho 6 (5’34” a 6’34”) – predominância de centro harmônico sobre Mib; constituído por uma camada de massa harmônica e por sons de sinos modificados, assim como pelos sons de sinos no início;

Esta segunda parte apresenta, assim, características de um desenvolvimento realizado a partir dos materiais iniciais. A terceira parte começa em 6’34” e termina no final da peça, em 9’01”. Uma de suas principais características é a retomada da sonoridade presente na primeira parte. Esta retomada consiste na utilização dos materiais sonoros com pouca modificação, tal como apareceram na primeira parte, assim como no retorno do centro harmônico sobre Dó. Outra de suas principais características é a apresentação de materiais formando camadas: uma camada de som de sino forma um pedal grave, regular e repetitivo sobre Dó; uma camada de sons de vozes forma uma massa sonora que se repete com certa regularidade, e uma camada de sons sintetizados altera os harmônicos do pedal grave realizado pela camada de sons de sinos. Points de Fuite, de Francis Dhomont A peça apresenta diversas articulações formalmente importantes. Em nossa análise, segmentamos a peça em três partes. A primeira parte estende-se do início da peça até 6’01”, e apresenta dois materiais contrastantes conectados por uma transição. Do início da peça até 1’17” aparece um primeiro material composto exclusivamente por sons do tipo massa harmônica

115

simpósio de pesquisa em música 2006 contínua que apresentam o mesmo envelope dinâmico (aumento e decréscimo de dinâmica) e espectral (início mais ruidoso transformando-se em um espectro mais harmônico) (ROY, 1996, p. 32). De 1’07” a 1’17” predomina um som ruidoso, do tipo massa complexa inarmônica, que realiza um glissando descendente. Este som produz uma articulação e permite a introdução de um trecho com junção de transição. A transição tem início em 1’17” e está composta predominantemente por sons do tipo massa harmônica granular5 com envelopes dinâmico e espectral semelhantes ao trecho anterior. Além disso, destacam-se neste trecho os sons de altura variável descendente (glissandos). Em 2’40” surge um som com maior destaque, novamente realizando um glissando descendente, que encerra esta transição. De 2’43” a 6’01” surge um segundo material contrastante no qual há a predominância de sons complexos inarmônicos em grande parte com claras referencias às suas fontes sonoras (automóveis, aviões, trens). De 2’43” até 3’06” os sons aparecem de forma mais isolada, com poucas sobreposições. De 3’06” a 3’25” surge um som ruidoso, do tipo massa complexa inarmônica (som de uma bola deslizando), realizando um glissando descendente. Tal como nas duas vezes anteriores, este tipo de som gera uma articulação e, a partir de 3’28” ocorre uma maior densidade de eventos, resultado da justaposição e sobreposição de diversos sons complexos, inclusive de sons de altura variável descendente (glissandos). Na conclusão deste trecho novamente está presente o mesmo som de massa complexa inarmônica que realiza um glissando e conclui os trechos anteriores. Logo após a apresentação desse som, a primeira parte da peça é encerrada através de uma rápida diminuição da densidade de eventos. A segunda parte estende-se de 6’01” a 11’11”. Sua principal característica é a reutilização dos sons das partes anteriores, combinando-os e modificando-os de um modo similar a um desenvolvimento musical tradicional. No primeiro trecho, de 6’01” a 8’54”, aparecem quase que exclusivamente sons oriundos do primeiro material da peça, mas agora combinados de modo mais diversificado e com maior número de sobreposições. De 8’48” a 8’54” surge novamente um som ruidoso do tipo massa 5

O termo granular é empregado para descrever a percepção globalizada de um conjunto de diversos sons de duração muito curta. Nesses casos, a escuta foca a percepção global dos eventos sonoros, em detrimento da percepção individualizada dos sons componentes.

complexa inarmônica (som de uma bola deslizante em glissando), recurso outra vez utilizado para articular esta segunda parte em dois trechos. A partir de 8’54” há uma sobreposição diversificada de sons provenientes dos dois materiais contrastantes da primeira parte da peça. Neste trecho destaca-se o retorno dos sons complexos referenciais e dos sons de altura variável (aqui ascendentes e descendentes). Toda esta segunda parte é concluída, tal como na primeira parte, por meio de uma considerável diminuição da densidade de eventos. A partir de 11’11” tem início a terceira parte da peça. Esta parte é breve, e se caracteriza por ser uma re-apresentação exclusivamente dos primeiros materiais da exposição da peça, o que tem conseqüências importantes, tal como comentaremos adiante. Desaparecem os sons complexos e retornam os sons de massa harmônica contínua, dessa vez sobrepostos em uma única camada. Esta re-apresentação tem a nítida função de conclusão. Assim como a primeira e a segunda partes são concluídas com uma rarefação, esta seção é ela mesma uma rarefação quando comparada com as partes anteriores, concluindo a obra como um todo. Comparação dos Resultados A comparação entre as duas obras nos permite observar o que segue: 1) As duas obras apresentam um primeiro trecho dedicado à exposição dos materiais principais; segue-se um segundo trecho com características de desenvolvimento, finalmente segue-se um trecho que re-expõe os materiais iniciais da obra. A obra Mortuos Plango, Vivos Voco apresenta estes três trechos de forma bastante clara. Já a obra Points de Fuite é mais ambígua. Sua exposição apresenta dois materiais diferentes, cada um deles seguidos de um breve desenvolvimento. O desenvolvimento do primeiro material funciona como uma transição ao segundo. E o desenvolvimento do segundo funciona como um prolongamento que permite a introdução da segunda parte da peça. Além disso, a reexposição dos materiais no final da obra é breve, e apresenta somente elementos do primeiro material da exposição. Nas duas obras observa-se que a reexposição dos materiais iniciais é realizada superpondo-se camadas de sons cujo resultado final é um evento sonoro unificado. Embora as duas obras apresentem diferenças no modo como realizam suas construções formais, a característica

116 geral de exposição, desenvolvimento e reexposição se mantém. 2) Ambas as obras empregam um determinado som específico e bastante característico para realizar a articulação e transição entre os principais trechos da obra. No caso de Mortuos Plango, Vivos Voco este papel é dado aos ataques de sino, observáveis ao início de quase todas as divisões formais da peça. No caso de Points de Fuite esse papel é dado a um som complexo de altura variável (um glissando descendente), observável ao final de quase todas as divisões formais da peça. Além disso, devemos ressaltar que esses sons de articulação, em ambas as peças, são quase sempre preparados por certos processos, como diminuição da dinâmica e diminuição da densidade de eventos. Essas preparações ressaltam o surgimento desses sons de articulação e tornam mais claras as mudanças de trechos e partes ao longo das peças. A diminuição da densidade de eventos aparece de modo mais decisivo em Points de Fuite já que suas três partes terminam com uma rarefação e sua terceira parte ela mesma é uma rarefação que conclui a obra como um todo. 3) Nas duas obras há uma conexão profunda entre referencialidade dos materiais utilizados e forma musical. Em Mortuos Plango, Vivos Voco os sons iniciais da obra remetem claramente às suas fontes sonoras, No trecho com características de desenvolvimento esta referencialidade é suspensa em grande parte, e os sons adquirem uma característica mais abstrata. Na reexposição dos materiais no final da obra esta referencialidade é novamente retomada, e de forma bastante clara. No caso da obra Points de Fuite A referencialidade e a ausência de referencialidade são um dos pontos centrais para a constituição da oposição entre os dois materiais constituintes da exposição. Principalmente se levarmos em conta que estes materiais são morfologicamente similares, o que foca o contraste na ausência ou presença de referencialidade. No trecho com características de desenvolvimento esta oposição é fundamental para que a escuta possa associar os sons ao primeiro ou ao segundo materiais da exposição. Na terceira parte, no entanto, a reapresentação dos materiais é incompleta. Apresenta somente materiais da primeira parte, já que a segunda parte, por sua referencialidade, é um contraste com a primeira e, assim, não permite gerar um encerramento conclusivo. Assim, como não é

SIMPEMUS3 possível retirar a referencialidade do segundo material e ao mesmo tempo identificar que se trata do segundo material (já que é a referencialidade mesma que o identifica), não há como introduzir este material nesta terceira parte e concluir a obra. Por esta razão, é possível interpretar esta ausência como o resultado de uma necessidade formal para a geração de uma terceira parte conclusiva, o que confirma a profunda relação entre referencialidade e forma musical também neste aspecto da obra. Esta conexão profunda entre referencialidade (e sua suspensão) e forma musical é de grande significação. A referencialidade pode ocorrer exclusivamente na superfície do discurso musical. Neste caso, introduzem na obra as características de suas fontes sonoras e possíveis significações associadas a estas fontes. No entanto, o que se observa nestas duas obras é algo diferente. Observa-se uma clara e profunda associação entre construção formal e referencialidade dos materiais utilizados. A referencialidade não só introduz possíveis significações na obra, como ela participa intimamente da própria construção do discurso musical. Esta associação entre discurso formal e referencialidades dos materiais utilizados passa, assim, a adquirir um profundo valor na construção do discurso musical, e na construção do sentido da obra. E esta associação profunda parece ser uma das soluções de destaque no uso de sons referenciais dentro da composição electro-acústica, principalmente das obras compostas após 1980, já que resolve um dos grandes problemas referentes à utilização de sons com referencialidade clara dentro do contexto da música ocidental, a qual sistematicamente excluiu a utilização de materiais sonoros que realizam imitações ou apresentações diretas de suas fontes (ZAMPRONHA, 2002). Considerações Finais O objetivo deste trabalho foi analisar e comparar as obras eletroacústicas Mortuos Plango, Vivos Voco, de Jonathan Harvey, e Points de Fuite, de Francis Dhomont buscando extrair elementos que possam indicar alguns procedimentos de construção formal característicos da música pós1980. Os resultados obtidos indicam que as características gerais observadas podem ser sintetizadas da seguinte maneira: as duas obras apresentam uma segmentação formal similar (exposição de materiais, trecho com características de desenvolvimento, e re-exposição dos materiais iniciais) que apontam para uma releitura da tradição musical; as duas obras apresentam certos sons bastante característicos que têm a função específica de articular e conectar segmentos da

117

simpósio de pesquisa em música 2006 obra, e, finalmente, as duas obras apresentam uma associação profunda entre forma musical e referencialidade dos materiais sonoros utilizados. Esta última característica observada se reveste de grande importância quando se considera que esta á uma contribuição efetiva que permite integrar a referencialidade dos materiais utilizados dentro da construção do discurso musical. Esta é uma solução que parece não se limitar às duas obras analisadas. Os estudos realizados até o momento indicam que este procedimento ocorre também em músicas instrumentais e mistas do mesmo período. Se efetivamente este mesmo procedimento for

confirmado em um conjunto maior de obras, este tipo de associação entre referencialidade e forma musical poderá ser um dos elementos que permitem entender a diversidade da música atual (ou pelo menos parte dela) como um conjunto de variações sobre como a referencialidade pode adquirir características discursivas dentro de uma obra. E, desta maneira, indica como podem ser utilizados sons com referencialidade clara dentro da obra, algo que a música ocidental sistematicamente excluiu de seu universo composicional, mas que agora parece estar presente de forma integrada ao discurso musical.

Referências BENT, Ian. Analysis. Londres: MacMillan, 1987. CHION, Michel. Guide des objets sonores: Pierre Schaeffer et la recherche musicale. Paris: Buchet/Chastel: Institut national de la communication audiovisuelle, 1983. COOK, Nicholas. A guide to musical analysis. Londres: J. M. Dent, 1987. DHOMONT, Francis. Eléments pour une syntaxe. Ars Sonora v. 1, 1995, p. 45-51. DHOMONT, Francis. Navegation à l´ouïe: la projection acousmatique. L´espace du son, reedição especial, 1998, p. 16-18. DHOMONT, Francis. Parlez moi de l´espace. L´espace du son, reedição especial, 1998, p. 37-39. DUNSBY, Jonathan e WHITTALL, Arnold. Music analysis in theory and practice. Londres: Faber Music, 1988. EMMERSON, SIMON (Org.). The language of electroacustic music. Londres: Macmillan, 1986. FERNEYHOUGH, Brian e BOROS, James. Shattering the vessels of received wisdom. Perspectives of New Music, v. 28, n. 2, 1990, p. 6-50. FERNEYHOUGH, Brian e BOROS, James. Composing a viable (if transitory) self. Perspectives of New Music, v. 32, n. 1, 1994, p. 114-131. FERNEYHOUGH, Brian. Brian Ferneyhough: collected writings. BOROS, James; TOOP, Richard (org.). Londres: Harwood, 1996. HARVEY, Jonathan. Reflection after composition. Contemporary Music Review v. 1, n. 1, 1984, p. 83-86. ROY, Stéphane. Form and referential citation in a work by Francis Dhomont. Organised Sound, v. 1, n. 1, 1996, p. 29-41. SMALLEY, Dennis. Spectromorphology: explaining sound-shapes. Organised Sound, v. 2, n. 2, 1997, p. 107126. ZAMPRONHA, Edson. Da figuração à abstração em música. In: SEKEFF, Maria de Lourdes; ZAMPRONHA, Edson (org.), Arte e Cultura: Estudos Interdisciplinares II. São Paulo: Annablume, 2002, p. 93-104.

Uma aproximação matemática para variações de agógica em frases: Furtwängler e os scherzos de Beethoven Ricieri Carlini Zorzal Universidade Federal da Bahia

Resumo Neste artigo é proposta uma aproximação polinomial para a variação agógica que ocorre em frases selecionadas nos scherzos de Beethoven, na interpretação de Furtwängler. A metodologia está fundamentada na proposta de Mazzola e Beran (1998) e emprega duas ferramentas computacionais, o Sound Forge 8.0 e o Excel 2003. Concluímos que a flutuação agógica apresentou um comportamento polinomial de pelo menos quarta ordem e que a interpretação de cada frase guarda suas particularidades em seus inícios e fins.

Introdução Levantamentos bibliográficos sobre pesquisa em performance musical têm demonstrado um diverso panorama para a área (GABRIELSSON, 1999; 2003; GOEBL et al 2005). Gabrielsson (2003, p. 224-225) aponta que medidas em performance concentram o maior número de pesquisas e que grande parte dessas medidas estão relacionadas a flutuações agógicas em diversos níveis estruturais em música. O objetivo desta investigação é descrever a flutuação do pulso em frases selecionadas dos scherzos de Beethoven e propor uma aproximação matemática para o comportamento dessa flutuação. Metodologicamente, este trabalho está fundamentado na proposta de Mazzola e Beran que dizem que a transformação da partitura em performance deveria ser descrita em “termos efetivamente matemáticos” (1998, p. 40). Material e métodos Objeto de estudo Selecionamos duas frases iniciais e consecutivas, com mesmo número de compasso, de cada um dos scherzos das sinfonias de 1 a 8 de Beethoven na interpretação de Furtwängler. Os dados foram coletados de gravações realizadas entre 1948 e 1954, sendo que as Sinfonias 2 e 8 são gravações ao vivo. Coleta de dados Toda coleta de dados possui um erro associado. Considerando casos como reverb, acordes assincrônicos e o erro humano, Dodson (2002) estima a confiabilidade dos dados de sua análise da Sinfonia n° 40 de Mozart em ± 20 ms.

Em levantamento de trabalhos que realizaram medições no pulso das músicas, Goebl et al (2005) apresentam uma grande variação no erro estimado por cada pesquisa, de 1 a 15 ms. Acreditamos que pesquisas em performances orquestrais a cautela deve ser maior e o intervalo proposto por Dodson parece satisfatório. As durações foram obtidas com auxílio da ferramenta computacional Sound Forge 8.0 e referem-se à unidade de compasso, que no caso do scherzo é a mínima pontuada. A tabela mostra as durações totais de cada frase, em segundos: Sinfonia

Frase 1

Frase 2

1

4,968

4,650

2

10,511

10,582

3

8,321

8,172

4

14,360

14,385

5

6,870

6,703

6

11,263

11,008

7

11,447

11,336

8

19,463

19,647

Para o cálculo do andamento, quando todos os tempos do compasso faziam parte da mesma frase, não consideramos flutuações agógicas internas. Convertemos a duração em andamento e quando os limites de frase e compasso não coincidiam, o trecho passava por divisão proporcional. A sinfonia 8 é a única que apresenta a semínima como unidade de andamento, as outras têm como unidade a mínima pontuada. A tabela apresenta as expressões matemáticas utilizadas:

119

simpósio de pesquisa em música 2006 Sinfonias 1-7

Sinfonia 8

Três tempos pertencentes à mesma frase

⎛ 60 ⎞ T =⎜ ⎟ ⎝d ⎠

⎛ 60 ⎞ T = 3⎜ ⎟ ⎝d ⎠

Apenas um tempo pertencente à frase

1 ⎛ 60 ⎞ ⎛ 60 ⎞ T = ⎜ ⎟ T =⎜ ⎟ 3⎝ d ⎠ ⎝d ⎠

Dois tempos pertencentes à mesma frase

T=

2 ⎛ 60 ⎞ ⎛ 60 ⎞ ⎜ ⎟ T = 2⎜ ⎟ 3⎝ d ⎠ ⎝d ⎠

Onde T é o andamento na unidade indicada pelo compositor e d a duração

Os dados foram organizados em planos cartesianos Txn, onde n é o número do compasso. Quando a frase começa com anacruse adotamos o zero. Análise de dados O contorno O gráfico mostra a primeira frase da sexta sinfonia e sua repetição indicada pelo ritornello. O contorno dos andamentos ao longo dos dezesseis compassos revela uma similaridade agógica entre as frases. O ponto discrepante fica por conta das anacruses. É perceptível que no oitavo compasso há um alargamento no pulso que sugere o final de um membro de frase. Com esses dados, torna-se visível que a probabilidade de diferença nas durações entre uma frase e sua repetição.

Figura 1

Trata-se de procedimento comum entre intérpretes uma variação agógica para separar estruturas musicais. No exemplo do contorno apresentado temos dois momentos distintos. Em

ambas as frases o primeiro membro revela um contorno suave e o segundo uma progressão “bagunçada”. Os dados colhidos sugerem que a intenção do intérprete era tratar cada membro de frase de forma agógica semelhante. Quais fatores influenciaram a “desordem” no pulso do segundo membro de cada frase? O fato é que os primeiros oito compassos são orquestrados apenas com cordas e os oito seguintes com cordas e madeiras. Instrumentos de diferentes famílias, e, consequentemente, diferentes formas de ataque, dificultam o controle da pulsação pelo regente? A Sinfonia 8, por exemplo, é orquestrada por instrumentos de diferentes famílias em suas duas primeiras frases e apresenta um contorno obtuso, mas ela é executada a um terço do andamento da sexta sinfonia. Então o andamento também é uma variável que influencia nesse controle? Essas respostas estão além do escopo deste trabalho. Similaridade no desenho entre as duas frases e diferenças relevantes nos andamentos das anacruses, quando estas estão presentes, são observações aplicáveis aos outros trechos estudados.

Linhas de tendência O comportamento obtuso observado no contorno de alguns dos trechos analisados sugeriu uma aproximação matemática que relacionasse funcionalmente os dados levantados. Após a plotagem dos pontos, procedemos a investigação dos dados com o auxílio do Excel. Testamos o ajuste polinomial para relacionar os andamentos. Uma importante característica foi observada no comportamento das funções. Ela nos mostra que, num polinômio Axn + Bxn-1 + Cxn-2 +...+ Wx + Z, à medida que aumentamos o valor de n, os coeficientes que acompanham as variáveis de maior grau tendem a zero. Dois exemplos, o melhor e o pior ajuste, demonstrarão essa afirmação. O gráfico traz uma equação que ajusta os andamentos da primeira frase do scherzo da oitava sinfonia. O coeficiente de correlação, R2, nos mostra que a função expressa bem os pontos neste caso. R2 é um valor entre zero e um que quanto mais próximo de um, melhor a curva representa os pontos. Um erro de execução, uma entrada precipitada em 0,179s, diminuiu o valor da anacruse de 77,22 para 62,76. Tal erro não alterou as propriedades da curva associada.

120

SIMPEMUS3

Figura 2

Ajustes cujo R2 ficaram abaixo de 0,7, que é o valor mínimo aceitável, demonstram fraca relação polinomial entre os andamentos ao longo do tempo. A segunda frase da Sinfonia 2, no gráfico abaixo, foi o pior ajuste.

Figura 3

Se a gravação é ao vivo ou não parece exercer pouca interferência numa possível relação polinomial na variação do pulso. Exatamente as duas únicas gravações ao vivo de nosso estudo apresentaram o melhor e o pior ajuste. Em casos onde a regressão com polinômios de grau seis apresentou R2 > 0,8, como no exemplo abaixo, o ajuste de quarta ordem mostrou-se satisfatório. Cada grau a mais na função de regressão polinomial significa um grau de liberdade a menos em sua construção. Isso implica em dizer que um ajuste de quarto grau é melhor que um de sexto, quando em ambos os casos temos R2>0,7. Ou seja, ordens cujos coeficientes estão próximos de zero podem ser desconsideradas sem perda significativa na qualidade do ajuste. No caso do exemplo abaixo pudemos ajustar os pontos à um polinômio de terceira ordem com um R2 satisfatório.

Figura 4

A tabela mostra o valor de R2 de cada ajuste polinomial com grau igual a 6. Entre parênteses estão os valores para ajustes de quarta ordem. Percebemos que a variação de R2 não é constante, alguns ajustes perdem muito com a redução da ordem polinomial, outros nem tanto. Sinfonia

Frase 1

Frase 2

1

0,9862 (0,9777)

0,8701 (0,8173)

2

0,4694 (0,3547)

0,3995 (0,2009)

3

0,7151 (0,4557)

0,5507 (0,2071)

4

0,6189 (0,4380)

0,6351 (0,5040)

5

0,8237 (0,7401)

0,6361 (0,2624)

6

0,8335 (0,7726)

0,7501 (0,4412)

7

0,7109 (0,6614)

0,6186 (0,2756)

8

0,9939 (0,9680)

0,9835 (0,9483)

Mesmo não sendo um comportamento ideal para todos os trechos analisados, o ajuste polinomial revelou resultados com boas aproximações. A primeira frase da sinfonia 1 e as duas frases da sinfonia 8 apresentaram progressões com elevado grau de representação pela curva associada. À guisa de conclusão É impossível definir um único andamento para cada trecho estudado. Essa parece uma afirmação ousada, mas raros foram os compassos que, consecutivamente, sustentaram seus andamentos inalterados. Prova disso são os contornos apresentados. Se pudéssemos atribuir um andamento a determinada música, teríamos uma linha reta paralela ao eixo X, ou seja, sua função teria a forma y=b onde b é um número positivo qualquer. Então para que servem as indicações de

121

simpósio de pesquisa em música 2006 andamento dos compositores? Segundo Botstein, elas devem ser lidas no contexto de algum entendimento de práticas passadas (2005, 2). Mas as indicações de andamento de Beethoven para os scherzos de suas sinfonias não foram as adotadas por Furtwängler. À exceção do scherzo da sétima sinfonia, os outros andamentos mantiveram um comportamento médio sempre abaixo da indicação do compositor. Há muita discussão sobre as marcações de andamento de Beethoven. Se os contornos provaram que não há um andamento definido para cada música, as linhas de tendência evidenciaram uma relação matemática em algumas frases. O comportamento obtuso de alguns trechos e a dispersa progressão de outros sugerem que há fatores, como orquestração e andamento, que

podem influenciar no controle do pulso pelo regente. É importante salientar que uma frase musical oferece poucos dados para que se configure uma análise de regressão nos moldes estatísticos. A necessidade de polinômios de ordens elevadas também é um problema. A estatística aceita, com concessões, ajustes de até terceira ordem. As frases estudadas apresentavam um comportamento médio de um polinômio de, pelo menos, quarta ordem. Então, nossas aproximações matemáticas não puderam extrapolar as unidades representadas. Outros limites à inferência foram as particularidades agógicas de cada frase. Mesmo sendo consecutivas, suas características diferenciavam suas curvas associadas. As frases apresentaram discrepâncias, principalmente, em seus inícios e fins.

Referências BOTSTEIN, Leon. History and Performance Practices. The Musical Quarterly, v. 88, n. 1, 2005, p. 1-6. DODSON, Alan. Performance and Hypermetric Transformation: An Extension of the Lerdahl-Jackendoff Theory. Music Theory Online, v. 8, n. 1, 2002. Disponível em: Acesso em 15 de julho de 2006. GABRIELSSON, Alf. Music performance. In: DEUTSCH, Diana (org.) Psychology of Music, 2. ed. San Diego: Academic Press, 1999, p. 501-602. GABRIELSSON, Alf. Music performance research at the millennium. Psychology of Music, v. 31, n. 3, 2003, p. 221-272. GOEBL, Werner; DIXON, Simon; DE POLI, Giovanni; FRIBERG, Anders; BRESIN, Roberto; WIDMER, Gerhard. Sense in Expressive Music Performance: Data Acquisition, Computational Studies and Models, 2005. Disponível em: Acesso em 20 de julho de 2006. MAZZOLA, Guerino; BERAN, Jan. Rational Composition of Performance. In: KOPIEZ, R. e AUHAGEN, W. (org.) Controlling Creative Processes in Music. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1998, p. 37-67.

Dahlhaus e a análise de segunda ordem Antenor Ferreira Corrêa Universidade de São Paulo Resumo Neste artigo tive um duplo objetivo: apresentar a análise de segunda ordem, abordagem esboçada pelo musicólogo alemão Carl Dahlhaus e explanar a respeito dessa proposição analítica, buscando seu entendimento e avaliando suas possibilidades de aplicação. Justifica-se essa empreitada pela disponibilização de conhecimento na disciplina de análise musical, área de estudo indispensável à formação do músico. Palavras-chave: Análise musical. Teoria da Música. Harmonia. Estética. Dahlhaus.

Introdução O musicólogo alemão Carl Dahlhaus (19281989) é uma personalidade de grande notoriedade e relevância na história da música. Autor de vastíssima bibliografia (entre estas alguns verbetes para o Grove’s Dictionary) é considerado uma das maiores autoridades dentre os estudiosos que buscaram reunir música e filosofia, e seus escritos têm influenciado músicos e teóricos ao redor do mundo. Embora seja mais conhecido dos brasileiros pelos seus textos em estética1, Dahlhaus também realizou aprofundadas pesquisas nas áreas de historiografia, teoria e análise musicais. Um de seus livros mais destacados sobre análise musical é Analysis and Value Judgment (originalmente publicado em 1970), em que Dahlhaus discute acerca da possibilidade de fundamentar a apreciação musical em critérios objetivos, tendo, assim, a análise musical como seu princípio de sustentação. Este livro é dividido em três partes: Premissas, Critérios e Análises. Na primeira parte, Dahlhaus se atem à diferenciação entre julgamentos de valor subjetivos e objetivos. No segundo capítulo, elenca uma série de critérios que podem sustentar um juízo estético. Entre outros, ele discorre sobre princípios formais, diferenciação e integração, analogia e compensação, abundância de relações (temáticas, motívicas, etc) e audibilidade. Na parte final, Dahlhaus oferece uma exemplificação de suas propostas ao elaborar críticas estéticas para algumas obras do repertório, tendo por base sua abordagem analítica. Nesse trabalho, Dahlhaus mencionou en passant um tipo de abordagem analítica que

gostaria de ver empregada na confrontação das obras musicais, uma espécie de hermenêutica da própria análise musical, ou seja, uma análise de segunda ordem. Esta idéia foi apenas esboçada, não merecendo posteriores desdobramentos textuais. Contudo, acredito que por meio da investigação detida de seus escritos e da maneira com que apresentou suas análises musicais, seja possível lograr um maior entendimento dessa proposta. E este é, portanto o objetivo deste trabalho: apresentar o conceito dahlhausiano para análise musical e refletir sobre a mesmo, além de exemplificá-lo com análises realizadas pelo próprio Dahlhaus e verificar suas possíveis aplicações. Dentre a ampla bibliografia considerada, dois livros constituíram-se como a fundamentação teórica principal: Analysis and Value Judgment, no qual o autor mencionou seu conceito e desenvolveu uma série de análises musicais, e Schoenberg and The New Music, em que a problemática da tradição versus vanguarda é tratada tendo por base, critérios técnicos, estéticos, históricos e poéticos da linguagem musical. Análise de Segunda Ordem Uma análise pode comportar, entre outras, finalidades teórica ou estética. Pode ser empregada para sustentar a edificação de um sistema2 de organização de fenômenos musicais e, também, fundamentar uma apreciação crítica. Dahlhaus conhecia a fundo essas facetas e, além de escrever muito a esse respeito, valeu-se de análises para promover juízos críticos sobre obras do repertório. Também observou que análises realizadas tanto por críticos quanto por músicos consistiam, em sua

2 1

Talvez isto se deva ao fato de que o único livro de Dahlhaus traduzido para o idioma português seja, justamente, um livro de estética: Estética Musical. Lisboa: Edições 70, 1983.

Uma teoria pode ser pré-condição (é necessário que haja um sistema teórico que norteie a realização de uma análise) e, também, resultado de análises musicais (quando um modelo teórico é obtido pelas deduções efetivadas a partir da análise direta das obras).

123

simpósio de pesquisa em música 2006 maior parte, de indicações de graus ou de funções dos acordes. O plano formal era tratado de modo semelhante, havendo apenas uma espécie de relato de seções e regiões tonais exploradas pelo compositor. Estes tipos de abordagens, além de carecer de profundidade, têm pouca utilização prática. Na opinião de Dahlhaus não passavam de tautologias já que “frequentemente, análises musicais ou fragmentos analíticos (em sua maior parte descrições de harmonias e tonalidades) sofrem da obscuridade de suas propostas e consequentemente provocam a suspeita de que são desnecessárias” (DAHLHAUS, 1983, p. 9). Ao deparar com esses tipos de análises descritivas, percebe-se que estas revelam mais acerca da teoria analítica do que a respeito da própria obra. Isto deve-se ao fato da análise constituir-se de um procedimento taxionômico, em que um dado observado é reportado e/ou classificado segundo um modelo prévio. Isto fez com que Dahlhaus apontasse para a inutilidade desse procedimento, porque uma análise não deveria funcionar como demonstração ou prova de uma teoria nem como tradução para outro idioma de uma particularidade da obra. Argumentava que não bastava apenas isolar e enumerar os acordes, abstraindo-os de elementos rítmicos; outrossim, era preciso que o caráter individual da estrutura e das relações harmônicas fosse “expressamente demonstrado e articulado por uma interpretação da análise: uma análise de segunda ordem” (p. 9. Grifo meu). De outro modo, as análises tornar-se-ão meras aplicações de nomenclaturas ou rotulações “que não dizem nada pois são inobjetivas” (p. 9). Se os elementos observados no plano musical são considerados como fatos ou dados empíricos, deve haver, então, uma interpretação desses dados. Esta hermenêutica da análise estaria a cargo da análise de segunda ordem, preconizada por Dahlhaus, e indicaria a maneira organizacional subjacente ao relacionamento desses fatos, sua forma de integração e conexão, seu contexto e seu modus operandi. O problema que se apresenta de imediato é saber como realizar essa interpretação da análise. Seria útil, portanto, primeiramente a definição de seus termos. Uma análise harmônica é uma comparação de um fato constatado com um modelo sugerido por alguma teoria. Por teoria entende-se uma proposição para o funcionamento, organização e ordenação das relações existentes nos fatos observados. Nesse sentido, uma teoria da harmonia, ao propor um modelo de ordem para o relacionamento sonoro,

é que possibilita a compreensão dos chamados fatos harmônicos e permite que o entendimento dessas relações seja transmitido. No entanto, para a consecução teórica não basta apenas indicar os elementos comuns, mas sim, promover a explicação das possibilidades de combinações feitas destes fenômenos. A harmonia não é uma instituição autosuficiente, validada em si mesma, ela só tem seus aspectos comunicativo e significativo valorados se estiver amparada por uma teoria que organize e torne inteligíveis os fenômenos harmônicos por ela contemplados. Imagine-se, por exemplo, uma análise em que foram descritos os graus de um determinado encadeamento harmônico. Uma das possíveis maneiras de prosseguir para um nível interpretativo posterior seria considerar as relações que os acordes mantém entre si e para com o centro tonal, isto é, avaliar sua dimensão sintática. Ao combinar sons de maneira lógica e expressiva, a música liga-se ao aspecto da comunicação, permitindo ser considerada como linguagem, decorrendo dai a possibilidade de ser analisada em termos de seus elementos básicos de construção e estruturação, ou seja, elementos sintáticos. O relacionamento funcional3 já é, de fato, conhecido há tempos por aqueles que empregam o método de análise preconizado por Riemann. Nesta teoria os acordes são considerados segundo o tipo de vínculo que mantém para com a tônica. As relações existentes entre as progressões acórdicas, isto é, de acorde para acorde, remontam aos postulados de Rameau no seu tratado de harmonia (1722). A noção de progressão de fundamentais implicava que as notas reais escritas no baixo contínuo não eram as verdadeiras fundamentais dos acordes, pois estes, independentemente de encontrarem-se invertidos ou não, possuíam um baixo (ou nota fundamental natural e racional) subentendido. Este baixo implícito, por seu turno, era o elemento viabilizador das conexões entre os acordes. Esta formulação de Rameau foi por ele mesmo denominada de basse fondamentale, que na visão de Dahlhaus é uma teoria de progressões acórdicas. Note-se a correspondência deste princípio com o cartesianismo, que substituía a ordem real pela racional, ficando a cargo da razão a competência para organizar as sensações. A diferença entre as propostas de Riemann e Rameau é que este se concentrava nas distintas tendências que os acordes têm para progredir (descer ou subir uma quinta, por exemplo), enquanto aquele definia

3

Sobre uma análise mais detida do conceito de função ver Função e refuncionalização em CORRÊA (2006).

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SIMPEMUS3

estados ou estatutos harmônicos das tríades (TD-S). Tomando-se como exemplo o Prelúdio n°. 1 (em dó maior) do Cravo bem Temperado de Bach, observa-se que o mesmo possui uma concatenação entre acordes baseada, majoritariamente, em graus conjuntos diatônicos. A concepção harmônica dessa movimentação, entretanto, é funcional, pois sempre faz referência à tônica principal da obra (dó maior). Mesmo em passagens com ligeiros afastamentos da tonalidade inicial, em que ocorrem tonicizações no nível estrutural secundário (comp. 6, 10 e 12), a idéia básica do relacionamento harmônico continua, encontrando sua fundamentação no ciclo de quintas. No relacionamento acórdico, por sua vez, as conexões ocorrem a partir da movimentação linear de entidade para entidade envolvidas na passagem em questão. O cromatismo é o agente de integração desse artifício, já que a condução acórdica não implica a primazia de algum pólo de atração. Os Prelúdios de números 2 e 4 do opus 28 de Chopin são exemplos do relacionamento acórdico, cuja movimentação é realizada, predominantemente, por meio de cromatismos. No Exemplo 2 é mostrada uma progressão baseada no relacionamento acórdico. Trata-se de uma sucessão iniciada em um acorde de Fm com sétima no baixo cuja movimentação é realizada, predominantemente, por meio de cromatismos, fazendo com que o sentimento tonal, ou seja, a indução para um pólo de atração, seja enfraquecido. Nota-se que as harmonias usadas não pertencem exclusivamente ao campo harmônico de Fm, este é estendido pelo acréscimo de acordes de outras regiões tonais.

Exemplo. 2: Camargo Guarnieri, Sonata n. 3 para violoncelo e piano, II movimento, compassos 16-28 (parte do piano).

A partir, principalmente, do pós-romantismo, o relacionamento funcional foi sendo substituído pelo acórdico. Não era interesse principal dos compositores manter vínculos com um único pólo tonal, mas sim, expandir o discurso harmônico por regiões inusitadas, ou seja, explorar tonalidades cada vez mais afastadas do ponto de partida. Em médio prazo, esta tendência conduziria à fragmentação do sistema tonal e impulsionaria o engendramento de diversos artifícios composicionais, como pandiatonicismo; tonalidades expandida, suspensa e flutuante; atonalidade e pantonalidade4; entre outros. Essa situação demandaria a criação de outras proposições analíticas para explicar as relações entre as entidades acórdicas, pois estas não mais comportavam explicações nos modelos teóricos vigentes. Uma questão a ser considerada seria, por exemplo, que princípio de base permite a articulação entre entidades acórdicas ou aglomerados sonoros envolvidos no discurso musical pós-tonal? Qual a lógica, ou psicológica, subjacente a essas progressões? Sobre esse estado de coisas, Dahlhaus verifica que: Na Música Nova do século XX, a idéia de processo harmônico foi universalmente degradada em favor da noção de sistema harmônico, mas sem abolir a relação dialética existente entre sistema e processo. A variação de ênfase é tão claramente aparente no dodecafonismo de Schoenberg e, mais especialmente, Webern

Exemplo 1: J. S. Bach, Cravo Bem Temperado, Prelúdio n. 1 em dó maior, compassos 5-19 (verticalização da movimentação linear).

4

Sobre uma conceituação mais detida sobre esses procedimentos ver Estruturações harmônicas pós-tonais (2006), capítulo 5.

125

simpósio de pesquisa em música 2006 quanto é nos métodos de camadas ou de estratificação desenvolvidos por Stravinsky. (DAHLHAUS, 1990, p. 69).

Enquanto desenvolvimento continuado, o discurso harmônico consistiria de um conjunto de etapas ordenadas com um objetivo a ser atingido: a consecução tonal. Além disso, compreendido historicamente, isto é, no conjunto seqüencial do fluxo do pensamento musical, a harmonia deixa transparecer a concomitância entre o pensamento de época e as modificações ocorridas no decurso temporal. A passagem de um estágio para outro (por exemplo, no acolhimento de dissonâncias ou uso funcional renovado) é entendida linearmente e não de forma abrupta. Esse percurso teve no cromatismo seu principal elemento dinâmico, expressivo, integrador e impulsionador. Essa condição processual, no entanto, foi substituída pela noção mais perene e atemporal de um conjunto de elementos interconectados por atributos quaisquer, um sistema de interações5. A dinâmica implícita na resolução de tensões, pelos movimentos de sensível, é suprimida nos sistemas não hierárquicos como o serial, em que as doze notas da gama temperada são similares no que se refere a primazias funcionais. No discurso pós-tonal, de um modo geral, a propensão dinâmica dos cromatismos é nivelada, anulando a expectativa gerada pela resolução das tensões cromáticas. Dahlhaus aponta que isto é válido tanto para Stravinsky quanto para Schoenberg, pois Enquanto a tensão interna do que nós chamamos de harmonia estática stravinskyana é devido a esse elemento dinâmico suprimido, a harmonia de Schoenberg (como a sistematização da técnica dodecafônica pode ser interpretada) é conseqüência [...] do cromatismo do Tristão, e similarmente representa um fenômeno de neutralização. A conexão entre acordes, em que um segundo acorde apresenta as notas da escala cromática ausentes no primeiro, está baseada sobre o princípio da complementaridade, a adição de partes para compor um todo, e também, sobre o movimento de sensível nas vozes, ou seja, sobre um elemento expressivo e dinâmico (DAHLHAUS, 1990, p. 69).

Dahlhaus acrescenta ser difícil identificar o momento em que esse aspecto dinâmico do movimento de sensível, que dominou inicialmente esse tipo de harmonia baseada em 5

O acorde-centro de Scriabin é um exemplo deste tipo de pensamento harmônico.

complementaridade, foi relegado em favor de relações acórdicas complementares subjetivas. “O cromatismo dinâmico-processivo é substituído por uma complementaridade estática-estrutural tais como as existentes entre as notas ou complexo de notas de uma série dodecafônica: complementaridade cuja característica estética essencial é poder, em princípio, ser revertida no tempo” (p. 70). A possibilidade desta reversão no tempo deve-se ao fato de que não há uma direcionalidade implícita nos agregados “atonais” como há no discurso tonal. É possível notar que Dahlhaus acreditava no retorno da forma processual:

não

Uma posterior objeção à tentativa de reviver uma forma dinâmica da harmonia é o simples fato de que a atmosfera de a-historicidade [...] é unida à tendência de considerar todas as coisas como utilizáveis e de jovialmente empilhar camada sobre camada de um todo heterogêneo constituído de diferentes fragmentos estilísticos e citações. O resultado virtualmente inevitável disto tudo é um efeito que em Stravinsky foi uma técnica precisamente calculada que claramente estabeleceu suposições estéticas designadas para neutralizar o elemento processual, mas que no presente geralmente parece não ser mais que um cego agarramento a uma lata de biscoitos do passado (p. 70).

E ao mesmo tempo admitia a possibilidade dos novos complexos acórdicos serem compreendidos intelectual e perceptualmente: Certamente, se desejamos fazer justiça estética ao complexo de técnicas de superposição na Sagração da Primavera [...], devemos não falhar ao apreciar que a neutralização da funcionalidade tonal dos acordes não deve ser entendida como determinadas (um fato auto-contido que nós temos que aceitar pelo que ele é), mas como um procedimento que pode ser compreendido. Quando uma tônica é mutilada funcionalmente por ter uma dominante colocada sobre ela, o ouvinte deve tornar-se consciente que isto é o resultado de um conflito e não apenas um fato mudo. (p. 69).

Essa articulação via complementaridade é demonstrada no exemplo a seguir (Ex. 3).

126

SIMPEMUS3 Este vínculo absoluto com a historicidade pode ser demonstrado em várias das análises feitas por Dahlhaus, porém, a seguir tomarei como exemplo a análise do Quarteto de Cordas n. 3, opus 30, de Schoenberg.

Exemplo 3. Webern, Gleich und Gleich. Op. 12, n. 4, compasso 18.

Fazendo uso de suas formações arquetípicas, Webern apresenta três agregados sonoros (clave de sol, mão direita do piano) que juntos compõe-se de nove notas do total cromático. As três notas ausentes são articuladas na voz mais grave (clave de fá, mão esquerda do piano), completando o total cromático. Percebese então, que diferentemente da teoria funcional, na qual os acordes distinguiam-se e relacionavam-se pelas funções que cumpriam (TS-D), nas concepções sistêmicas (sobretudo após a emancipação da dissonância e conseqüente neutralização do dinamismo implícito no cromatismo) as relações passam a ser de complementaridade e não dialéticas, em que a formação posterior complementa a anterior ao invés de se opor funcionalmente. Nota-se, também, que a abordagem de Dahlhaus está sempre atrelada ao entendimento histórico, conforme tratado a seguir. Análise e Contexto Histórico Espécie de consenso entre os biógrafos de Dahlhaus é a influência que ele recebeu de duas escolas do pensamento histórico: “os historiadores estruturalistas franceses ligados a Fernand Braudel e a teoria crítica do círculo de Frankfurt” (Robinson, 2000). De acordo com Robinson, dos estruturalistas Dahlhaus formou sua concepção de história enquanto sucessão de complexas interações de estratos, enquanto teria emprestado da escola de Frankfurt as imagens de constelação e de campo de força como princípios para a história escrita. Desta escola teria herdado, também, sua atitude analítica,

Dahlhaus, de saída, apresenta uma questão estética: o conceito schoenberguiano de analogia. De acordo com esta idéia, todas as partes de uma composição deveriam estar igualmente desenvolvidas, isto é, nenhum dos parâmetros do discurso musical devia apresentar menor cuidado na sua composição. Os elementos temáticos, por exemplo, não receberiam um grau maior de elaboração em detrimento dos elementos rítmicos. Schoenberg, no entanto, era acusado de contraria o seu próprio princípio, pois os fatores intervalares da técnica serial mereciam maior importância que os componentes rítmicos, dinâmicos e formais. Com isso, as composições dodecafônicas acabavam por apresentar um ritmo “tonal” ao lado de formas tradicionais. No Quarteto n. 3, Schoenberg faz uso da forma sonata em ambiente atonal, o que na visão de Dahlhaus “é um desejo historicamente atrasado que não logrará êxito, pois sua substância (tonalidade) foi desintegrada, e a marca da esterilidade histórica ou filosófica é o fracasso estético” (DAHLHAUS, 1983, p.83). Ao encontro desse juízo, Dahlhaus oferece uma descrição dos procedimentos técnicos utilizados por Schoenberg, descrevendo a série, suas inversões e retrogradações, bem como a maneira como estão associados às suas respectivas células rítmicas, para ao final concluir: O princípio básico da forma sonata restaurado pelo dodecafonismo – após o declínio da disposição tonal – é o desenvolvimento técnico, a elaboração temática, que no Terceiro Quarteto de Cordas, contudo, está exposto ao criticismo por ser tautológico. Dodecafonismo, a rede de inversões, transposições e fragmentações da série – o criticismo continua – é em si mesmo nada mais que uma conseqüência extrema (e historicamente, o último passo) da elaboração temática que na composição com 12 sons, na qual cada nota é deduzida da série, estende-se no movimento inteiro ao invés de restringir-se à parte do desenvolvimento da exposição e ao desenvolvimento, enquanto seção em si. Elaboração temática, como Theodor Adorno expressava, é “pushed back into the material 6”; porque a “deformação” do material geralmente consiste de elaborações temáticas a todo o momento, elaboração temática como uma técnica específica da composição torna-se uma duplicação supérflua. A forma sonata, o criticismo continua, é

que não era empregada primariamente para revelar conexões musicais ocultas em uma obra, mas para sondar a história sedimentada dentro dela. Brilhante analista, Dahlhaus preferia não apresentar os passos de suas análises, nem mesmo os resultados, mas as conclusões históricas advindas destas descobertas (Robinson, 2000). 6

Redundar forçosamente no material (composicional).

127

simpósio de pesquisa em música 2006 Considerações Finais desprovida de substância, porque a única substância deixada após a dissolução da tonalidade, ou seja, a elaboração temática, é anulada pela técnica serial propriamente dita – antes do ato composicional – e não pode, assim, ser constitutiva de uma forma particular. (DAHLHAUS, 1983, p. 85).

É possível perceber que o teor das preocupações de Dahlhaus antes de essencialmente técnicos, são históricos, buscando avaliar não só os artifícios composicionais empregados pelo compositor, mas, sobretudo, a correspondência entre esses elementos e a época de onde surgiram. Do mesmo modo que é válido indagar a respeito dos motivos que levaram Ravel a compor uma valsa em 1919, é lícito questionar o uso das formas tradicionais em ambientes atonais. E esse tipo de questionamento é uma constante nas análises de Dahlhaus.

O intuito deste trabalho foi oferecer uma abordagem preliminar à proposta de análise de segunda ordem. Esta idéia vem da repulsa, por parte de Dahlhaus, às análises musicais de cunho meramente descritivo, chamadas por ele de tautológicas; assim, na tentativa de dar um passo adiante, preconiza uma interpretação da análise. A observação dos modos de relacionamento acórdico segundo sua sintaxe serviu como uma maneira de dar prosseguimento às análises. Neste sentido, a explanação sobre a substituição ocorrida, principalmente no século XX, da concepção harmônica processual pela sistêmica mereceu uma apreciação mais detida. A seguir, a descrição sumária do atrelamento histórico intrínseco ao discurso analítico de Dahlhaus, também se apresentou como um importante material para ampliar o entendimento musical ao encontro do compreensão da hermenêutica da análise, ou seja, da análise de segunda ordem.

Referências CORRÊA, Antenor Ferreira. Estruturações harmônicas pós-tonais. São Paulo: Editora da Unesp, 2006. DAHLHAUS, Carl. Analysis and value judgment. Trad. Siegmund Levarie. New York: Pendragon Press, 1983. _____ Che cos’è la musica?. Trad. Angelo Bozzo. Bologna: Sociedade Editrice IL Mulino, 1988. _____ Estética musical. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1991. _____ Fundamentos de la historia de la música. Trad. Nélida Machain. Barcelona: Gedisa, 2003. _____ “Harmony”. In: SADIE, Stanley (org.). The New Grove dictionary of music and musicians. Londres: MacMillan, 1980, v. 8, p.175-188. _____ Schoenberg and the new music. Trad. Derrick Puffett e Alfred Clayton. New York: Cambridge University Press, 1990. _____ “Tonality”. In: SADIE, Stanley (org.). The New Grove dictionary of music and musicians. Londres: MacMillan, 1980, v. 19, p. 51-55. ROBINSON, J. Bradford. “Carl Dahlhaus”. Grove Music Online. 2000. Disponível em:

O uso do cromatismo como gerador de unidade na mazurca op. 68 de Frédéric Chopin Mauricy Martin e Tarcísio Gomes Filho Universidade Estadual de Campinas Resumo O presente artigo realiza um recorte enfocado na análise da Mazurca op.68 n.3 em Fá maior de Frédéric Chopin (1810 – 1849), considerada por historiadores como a sua última obra. Tem como objetivo demonstrar como o compositor, utilizando o cromatismo, trabalha a unidade estrutural da peça. Este trabalho é parte de outro maior e fruto da parceria, em desenvolvimento, entre professor e orientando no curso de Doutorado em Música da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, na linha de Práticas Interpretativas, na qual outras peças do repertório pianístico e tipos de análise são pesquisados. Trabalhos de Arnold Schoenberg e Ralph Turek subsidiam os comentários analíticos, e estes apontam para questões referentes à estrutura formal, harmonia e caracterização das linhas melódicas. A conclusão destaca informações obtidas pela análise e que contribuem para um melhor entendimento da obra. Palavras-chaves: Chopin, Mazurca, Análise, Harmonia.

Introdução Devemos a Chopin a extensão dos acordes, sejam plaqués, arpejados ou em bateria, aquelas sinuosidades cromáticas e enarmônicas das quais suas páginas oferecem exemplos tão surpreendentes, aqueles pequenos grupos de notas justapostas que caem como gotas de orvalho matizando sobre a figura melódica. – F. Liszt

Muito embora o chamado Período Romântico na Música tenha nascido sob bases sólidas do tonalismo, herdadas da tradição de Bach e Rameau, uma das maiores características no que se refere à estrutura de suas obras é a utilização da harmonia cromática. Esta utilização apontou para um caminho de descaracterização da pureza das tonalidades clássicas pelo seu uso cada vez mais progressivo em explorações harmônicas com acordes alterados e pela ampla liberdade de modulações. Segundo estudos de Ralph Turek em “The elements of music – concepts and applications”1 esta situação foi gerada pelos seguintes comportamentos: mistura de modos; acordes de função enarmônica; expansão da tonicização (longas áreas de funções secundarias) e harmonias lineares. Com estes procedimentos as mudanças de planos tonais ocorriam de maneira mais brusca que no classicismo, as modulações incidiam entre tons cada vez mais distantes e a utilização dos acordes de sétima diminuta, que permitem modular a praticamente qualquer 1

TUREK, Ralph. The elements of music – concepts and applications. New York: McGraw-Hill, 1996.

tonalidade, foi sendo explorada exaustivamente fazendo com que os compositores românticos fossem trilhando um percurso que, por fim, os conduziu até o limite extremo do sistema tonal. A Mazurca em fá menor op. 68 de Frédéric Chopin é um bom exemplo desta prática da inserção do cromatismo na harmonia. Esta peça foi escrita em 1844, o mesmo ano da morte do compositor, por isso, historiadores acreditam que esta tenha sido a sua última composição. Neste Opus são ao todo quatro peças, as Mazurcas n.1 em Dó maior (1829), n. 2 em Lá menor (1827) e n.3 em Fá maior (1829) e n.4 em Fá menor (1844). Chopin escreveu 55 Mazurcas para piano, caracterizadas por um cromatismo rebuscado e fluidez do movimento harmônico. Algumas possuem certo conteúdo de virtuosismo e reminiscências de harmonia e melodia de origens populares, muito embora não tenha feito nenhuma citação direta das danças polonesas. Segundo o pianista e musicólogo Charles Rosen, “As Mazurcas representam a suprema realização de Chopin com a pequena forma, tal como o são as Baladas em relação a grande forma” (ROSEN, p. 605). Análise A Análise da peça está enfocada em três parâmetros: Macroestrutura, Harmonia e Linhas Melódicas. Em “Macroestrutura” relata-se sobre a distribuição das Seções em comparação com número dos compassos e Centros Tonais; “Harmonia” trata do uso dos acordes, cadências e progressões e em “Linhas Melódicas” discorre-se sobre as características dos contornos melódicos e do cromatismo utilizado.

129

simpósio de pesquisa em música 2006 Macroestrutura As Seções que compõem a Mazurca estão mencionadas na tabela a seguir com os seus respectivos compassos e Centros Tonais, explicitando também o uso da harmonia cromática pela relação entre as tonalidades. Seção

Compassos Centro Tonal

A

1-8

Fá menor

A’

9-14

Fá menor

B

15 – 23

Lá Maior

C

24-31

Dó menor

Exemplo 2. Compassos 6 –7

Em relação aos acordes utilizados, A Seção A’ apresenta acordes em mutação2 e uma harmonia linear como mostra a figura a seguir:

Transição 32-40 A

Da capo

A’ Tabela 1. Seções da mazurca

Harmonia Seção A A Seção A inicia com uma ambigüidade tonal, uma vez que a nota dó, na qual a melodia é introduzida, pode ser ouvida como tônica ou como dominante. Além disso, a entrada dos acordes no segundo tempo ainda não produz uma sensação de estabilidade harmônica, uma vez o compositor utiliza o acorde na primeira inversão.

Exemplo 1. Compassos 1 e 2

Esta ambigüidade tonal permeará toda a obra. Somente no compasso 23 aparecerá uma cadência perfeita em Fá menor. A tonalidade é sugerida nos compassos 6-7 pelo movimento da linha do baixo, delineando uma progressão V- i.

Figura 1. Acordes em mutação e Harmonia linear.

Seção B A Seção B possui o centro tonal em Lá Maior estabelecendo, desta maneira, um distanciamento em relação à tonalidade principal.

2

Termo utilizado por Ralph Turek “Chord Mutation” para as alterações cromáticas que vão ocorrendo, simultaneamente, em um determinado acorde durante uma passagem musical (TUREK, 1996, p.242).

130

SIMPEMUS3

Exemplo 4. Compassos 23 - 31 Exemplo 3. Compassos 15-20

Na tabela 1, apresentada no inicio do trabalho, verifica-se que a Seção B está, segundo Schoenberg,3 em um centro tonal indireto. Utilizando o “Quadro de Regiões em Menor,” do mesmo autor, conclui-se que se trata da região da mediante maior aumentada, como mostra a figura a seguir4.

Linhas melódicas Na Seção A, ao analisar as notas dos primeiros tempos de cada compasso na linha do soprano e os acordes da linha do baixo, é possível visualizar uma passagem cromática descendente. Com isso Chopin reforça a ambigüidade tonal estabelecida no primeiro compasso.

Exemplo 5. Compassos 1 – 7

Figura 2. Quadro de Regiões em Menor de Schoenberg.

Seção C A Seção C é harmonicamente mais estável que as anteriores. Na linha do baixo verifica-se a progressão V - i (dó menor) apresentada duas vezes, o que lhe reforça a estabilidade harmônica (c. 26-27, 28 – 29).

3

SCHOENBERG, Arnold. Funções estruturais da harmonia. São Paulo: Via Lettera, 2004.

4

No quadro de Schoenberg entende-se por: m = Mediante menor, sm = Submediante menor, Sub T= Subtônica, M = Mediante maior, SM = Submediante maior, v = Quinto menor, t = Tônica menor, sd = Subdominante menor, D = Dominante, T=Tônica, SD = Subdominante, m# = Mediante menor aumentada, sm# = Submediante menor aumentada, M# = Mediante maior aumentada, SM# = Submediante maior aumentada e NP = Napolitana (SCHOENBERG, 2004, p.38 - 49).

Na Seção A, o desenho cromático é ornamentado principalmente por intervalos de segundas ascendentes e descendentes, conferindo à linha do soprano um contorno mais linear. Este mesmo desenho cromático é utilizado na seção A’, porém variado por meio do uso de intervalos mais amplos, alterando a linearidade do contorno melódico.

Exemplo 6. Compassos 9-14

A Seção B apresenta um desenho cromático ascendente e apesar do material utilizado se configurar em Lá Maior, distante da tonalidade original, possui a mesma extensão da Seção A.

131

simpósio de pesquisa em música 2006

dominante. Neste momento, com um “da capo” indicado há um retorno à seção A. É interessante também observar o contorno melódico predominante nas seções:

Exemplo 7. Compassos 15-20

Na Seção C o material melódico apresenta cromatismo mas em uma dimensão bem menor que antes. Melodicamente, assemelha-se à Seção A’, isto é , o contorno melódico em segundas. Com esta Seção mais estável é criado um maior impacto para a chegada da Transição no compasso 23. A chegada à Transição é realizada por meio do uso do desenho cromático da Seção B mas em retrógrado no contralto.

A – conjunto A’ - disjunto B – conjunto C – disjunto A – conjunto A – conjunto A’- disjunto Por fim é importante verificar os desenhos cromáticos utilizados nas diferentes seções desta mazurca e que deram portanto unidade estrutural e melódica a obra.

Exemplo 8. Compassos 30-34

Na linha do soprano verifica-se o seguinte desenho delineado: sol- fá# - mi – mib- ré- rébdó- si - lá – láb e na linha do contralto : dó – si – sib – lá – láb- sol - fá# - fá.

Exemplo 9. Compassos 32-40

Ao aproximar do fim da Transição (c.40) Chopin escreve um acorde de Fá menor (Tônica) mas na segunda inversão. Então mesmo aqui, a ambigüidade tonal continua uma vez que o acorde 6/4 funciona harmonicamente como

Figura 3. Desenhos cromáticos

Conclusão O estudo de análise da Mazurca Op.68 em Fá menor de F. Chopin permitiu um conhecimento mais profundo sobre a peça, demonstrando também a sua coerência estrutural. Conclui-se que o compositor utilizou uma harmonia cromática e linear realizada por meio da mutação de acordes e da enarmonia. Outros pontos importantes são o uso do acorde de tônica na segunda inversão, gerando uma ambigüidade tonal, logo no inicio da peça, e a presença de quatro desenhos cromáticos que articulam as seções fortalecendo e dando inteligibilidade à organização total da Mazurca. São apresentados três desenhos descendentes e um ascendente, ficando então a estrutura da peça, delineada pela presença destes quatro desenhos cromáticos.

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Referências ATWOOD, William G. The Parisian worlds of Frédéric Chopin. New Haven CT: Yale University Press, 1999. BRANCO, João de Freitas. Chopin: um improviso em forma de diálogo. Lisboa: IST PRESS, 1999. EIGELDINGER, Jean-Jacques. Chopin: pianist and teacher as seen by his pupils. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. HUNEKER, James. Chopin: the man and his music. Whitefish: Kessinger Publishing, 2004. GORDON, Stewart. A history of keyboard literature: music for piano and its forerunners. New York: Schirmer Books, 1996. POURTÀLES, Guy. Vida de Chopin. (Trad. Aristides Ávila). São Paulo: Cultura Brasileira, 1955. ROSEN, Charles. A geração romântica. (Trad. Eduardo Seincman). São Paulo: EDUSP, 2000. SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composição musical. (Trad. Eduardo Seincman). São Paulo: EDUSP, 1991. _____ Funções estruturais da harmonia. (Trad. Eduardo Seincman). São Paulo: Via Lettera, 2004. _____ Harmonia. (Trad. Marden Maluf). São Paulo: Editora da UNESP, 2001. STOLBA, K. MARIE. The development of Western music: a history. Dubuque, IA: Brown & Benchmark, 1994. TUREK, Ralph. The elements of music: concepts and applications. New York: McGraw-Hill, 1996.

Poucas Linhas de Ana Cristina de Silvio Ferraz: a performance da clarineta e suas transformações em contexto eletroacústico Flávio Ferreira da Silva, Maurício Alves Loureiro, Sérgio Freire Universidade Federal de Minas Gerais Resumo As transformações musicais ocorridas durante o século XX exerceram grande influência sobre a Performance Musical. O surgimento da gravação musical transformou a performance principalmente pelas alterações provocadas na escuta e nos padrões de referência. A música eletroacústica mista trouxe importantes novidades como a interação com sistemas eletrônicos e alto-falantes, necessidade da manipulação de interfaces pelas quais o intérprete controla a eletrônica e a exigência da compreensão da parte eletrônica não notada. A peça Poucas Linhas de Ana Cristina, para clarineta e eletrônica, de Silvio Ferraz pode ser tocada com e sem eletrônica e foi utilizada neste trabalho como objeto para observação das diferenças que o intérprete encontra ao tocar em contexto eletroacústico. Através da análise da eletrônica e de sua relação com a clarineta podemos observar e apontar elementos como articulação, dinâmica e duração de notas longas que devem receber tratamentos distintos em ambas as situações.

Introdução O século XX foi um período marcado por transformações tecnológicas que tiveram grande influência em todas as áreas do fazer musical, entre elas a performance. A possibilidade de gravação sonora permitiu a captura do som, levando a outras formas de abordagem do material acústico e posteriormente a uma nova estética musical denominada música eletroacústica. A utilização de materiais tradicionalmente considerados não musicais, a atuação diretamente na matéria sonora sem a intermediação da notação e do intérprete e a exploração do interior do som, extrapolando o nível da nota musical, são as principais características desta nova estética. A inclusão do instrumento tradicional neste novo contexto musical, originando a música eletroacústica mista, passou a exigir novas habilidades do intérprete instrumentista como a interação com sistemas eletrônicos e alto-falantes, a manipulação de interfaces para controle da eletrônica e a compreensão de elementos musicais não notados realizados pela eletrônica. As primeiras transformações trazidas pelas tecnologias eletrônicas à área de Performance Musical remontam-se à época do surgimento da gravação musical devido, principalmente, as alterações sofridas pela escuta musical. Segundo Iazzetta (1997), com o início da gravação comercial, a indústria de gravação direcionou-se ao ouvinte, criando seus próprios padrões de recepção. Com o aumento do consumo de gravações, as pessoas passaram a ouvir música em casa, desvinculando-a da performance, o que alterou o conceito de fidelidade. Este conceito,

que originalmente indicava que melhor seria a gravação quanto mais ela fosse fiel a uma performance ao vivo, agora se torna reflexivo, comparando a reprodução com os próprios padrões da indústria de gravação (IAZZETTA, 1997). Para Chanan (1995), outro ponto importante é que os intérpretes passaram a ouvir suas performances assim como os outros o ouvem, alterando a sua referência e a sua interpretação. Além disso, a possibilidade de edição de gravações permitiu a alteração de velocidades e correção de erros como pequenas desafinações, a gravação individual de instrumentistas e de trechos musicais curtos, fazendo com que estas gravações atingissem um nível de perfeição acima do normal e se tornassem referência para os intérpretes em suas performances ao vivo. Outras alterações foram trazidas para a performance a partir de 1952 pela música eletroacústica mista com a peça Musica su Due Dimensioni, para flauta, pratos e fita magnética, de Bruno Maderna. A interação com sistemas eletrônicos e com alto-falantes, a sincronização com partes pré-gravadas, a manipulação de dispositivos e o controle do resultado sonoro acrescentam peculiaridades à performance. Para Mari Kimura (1995), o instrumentista é responsável por todo o resultado sonoro do concerto. No entanto, sabemos que é quase impossível para o instrumentista que está no palco ter um pleno conhecimento do resultado sonoro que chega ao público, o que demanda o auxílio de um técnico de som. Outro ponto considerado por Kimura é a interação com partes pré-gravadas ou com eletrônica ao vivo, principalmente no que se refere ao tempo. As músicas com partes pré-gravadas apresentam uma inflexibilidade temporal que

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obriga o intérprete a tocar em tempos muitas vezes desconfortáveis, dispersando sua atenção de outros aspectos musicais, como o resultado sonoro, por exemplo. As peças com eletrônica ao vivo ou sistemas interativos permitem maior flexibilidade temporal, mas exigem do intérprete outras habilidades como a manipulação de dispositivos ao mesmo tempo em que toca o seu instrumento. Porém, tanto nas músicas com partes pré-gravadas quanto nas músicas com eletrônica ao vivo ou sistemas interativos é necessário que o intérprete tenha uma boa compreensão do resultado sonoro da eletrônica. Para isso, é necessário um sistema de análise que compreenda a parte da eletrônica e o resultado sonoro de sua união com o instrumento. A peça Poucas Linhas de Ana Cristina, para clarineta e processamento eletrônico ao vivo, de Silvio Ferraz (1999) desperta o interesse sobre as diferenças da performance instrumental em contexto eletroacústico, pois ela pode ser tocada com ou sem eletrônica sem nenhuma alteração na partitura da clarineta. Nossa hipótese é que alguns aspectos como dinâmica, articulação e velocidade, entre outros, devem ser tratados de forma diferente na presença/ausência da eletrônica. Neste trabalho apresentaremos uma análise da eletrônica e sua relação com a parte da clarineta no discurso musical, identificando as diferenciações na realização de aspectos específicos da performance nas duas versões. Poucas Linhas de Ana Cristina O processamento eletrônico A eletrônica da peça Poucas Linhas de Ana Cristina foi desenhada por Silvio Ferraz em ambiente Max/MSP para processamento do som da clarineta em tempo real e sua principal interferência no som instrumental é a transposição de alturas e a formação de melodias em contraponto. Para isso, o autor utiliza três harmonizers em paralelo, uma ferramenta que transpõe a altura de um som em tempo real sem alterar sua duração (ROADS, 1996, p. 444). O exemplo mais antigo de harmonizer é o dispositivo de Fairbanks, Everitt e Jaeger, implementado em um gravador de fita magnética (Figura 1). Seu funcionamento pode servir como uma ilustração para a compreensão dos algoritmos utilizados atualmente em processamento digital de sinais (LAROCHE, 1998).

Figura 1. Dispositivo de Fairbanks, Everitt e Jaeger.

Quatro leitores instalados em um cilindro giratório processam a transposição a partir da velocidade relativa entre gravação e leitura resultante da rotação do cilindro, cuja direção determina a transposição ascendente ou descendente (a Figura 1 mostra um exemplo com dois leitores). Se o cilindro gira em direção contrária à fita, a velocidade relativa aumenta, alguns trechos da fita são lidos mais de uma vez e a transposição é ascendente. Se ele gira na mesma direção da fita, a velocidade relativa diminui, alguns trechos não são lidos e a transposição é descendente. A implementação digital deste dispositivo utiliza uma linha de atraso variável (variable delay), que funciona como uma memória que recebe dados de um apontador de entrada (input pointer) e armazena estes dados por um tempo até enviá-los a um apontador de saída (output pointer). Numa linha de atraso variável, o apontador de saída ora se aproxima, ora se afasta do apontador de entrada, variando o tempo de atraso, o que simula o giro do cilindro do dispositivo de Fairbanks, Everitt e Jaeger. Uma diferença constante entre as velocidades de entrada e de saída resulta numa transposição fixa do sinal original. Este é o tipo de operação realizada pelo objeto Max/MSP denominado harmv2, cuja linha de atraso é construída com os objetos MSP tapin (apontador de entrada) e tapout (apontador de saída). O tapout é controlado por um oscilador dente-de-serra gerado pelo objeto phasor. A freqüência ph do phasor, para um dado intervalo de transposição ∆f é calculada por

ph = ± ∆f fw , onde w é o tamanho da janela de leitura e f a freqüência do sinal. A linearidade deste tipo de oscilador garante uma transposição para o intervalo definido. A direção da transposição é oposta ao sinal da freqüência do phasor, ou seja, quando a freqüência é negativa, o tapout se aproxima do tapin, o tempo de atraso diminui e a transposição é ascendente. Quando a freqüência do oscilador é positiva, indo de 0 a 1, o tapout se afasta do tapin, o tempo de atraso aumenta e a transposição do sinal de áudio é descendente. Para simular a alternância dos leitores no cilindro, este

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simpósio de pesquisa em música 2006 harmonizer utiliza dois tapout defasados em 180º e multiplicados por uma função de amplitude, responsável pela suavização das emendas (fadein e fade-out) e pela continuidade do sinal de saída. Miller Puckette (2006), diz que neste tipo de transpositor, o oscilador dente-de-serra executa duas funções: (1) controlar o tempo de leitura na linha de atraso e a transposição daí decorrente; e (2) controlar o envelope de amplitude. O objeto harmv2 trabalha com quatro entradas (inlets): (1) entrada do sinal de áudio; (2) valor da transposição, que pode variar de duas oitavas abaixo a duas oitavas acima (-2400 a 2400 cents); (3) tamanho da janela de leitura da linha de atraso (window size); (4) tempo de atraso entre o som direto e o processado. No patch da peça Poucas Linhas de Ana Cristina, o som é transposto em tempo real por três harmonizers harmv2 em paralelo. O valor de transposição pode ser fixo, determinado nos sliders de transposição da tela principal, ou móvel, utilizando um algoritmo que gera três valores de transposição, um para cada harmonizer. A transposição móvel pode ser automática, através de valores pré-determinados (presets), ou manipulada em tempo real pelo usuário. A transposição móvel pode ocorrer por glissando ou formar melodias (subpatches deslizador e saltador, respectivamente), sendo ambas randômicas. Para a geração dos três valores de transposição, são utilizados três saltadores e três deslizadores. O deslizador realiza uma transposição em glissando criando uma rampa que vai de 0 a 4800 cents (quatro oitavas). Durante o glissando ascendente, algumas intervenções descendentes ocorrem, mas em média a subida é predominante. Para manter o caráter de transposição contínua, o deslizador é utilizado em apenas um momento da música (preset 5) onde a clarineta toca duas notas muito longas e frases lentas, como veremos mais adiante. Durante as notas longas, a eletrônica realiza um longo glissando e em contraponto às frases lentas são realizadas pequenas desafinações. O saltador realiza uma transposição móvel não contínua, formando “melodias” que atuam em contraponto com a clarineta, para as quais existem duas possibilidades rítmicas, ryth1 e ryth2, que podem ser manipuladas na tela principal do patch e que controlam a quantidade de valores de transposição gerada pelo saltador: quanto mais valores gerados, mais rápida a melodia. Terminado o processo de transposição, o som é enviado para um reverberador no subpatch reverb (sobre reverberadores cf. SCHROEDER,

1962; MOORE, 1990 e ROADS, 1996). Este reverberador tem como objeto principal o newverb, que simula o efeito natural de uma sala com as primeiras reflexões e reverberação difusa. Este objeto trabalha com dois valores controláveis: o volume de saída do reverb (segunda entrada) e a sua duração (terceira entrada). No patch aqui analisado, estes valores podem ser controlados manualmente pelo usuário ou podem funcionar automaticamente. A programação destes presets é feita a partir de um algoritmo que faz com que o tempo de duração do reverb seja móvel, tendo valores pré-determinados para duração inicial e duração final em cada preset. Estes valores são, então, utilizados para a produção de uma rampa que vai do valor inicial ao valor final de duração. O mesmo algoritmo que controla a duração é utilizado também para o volume de saída do reverberador, tornando-o dependente da duração (última entrada) e do volume geral (penúltima entrada). O subpatch responsável pela reverberação tem três saídas: a primeira controla a duração do reverb, a segunda desliga o volume geral no final da peça e a terceira controla o volume do reverb. Depois de reverberado, o som é enviado para a saída e para o espacializador espaco, capaz de operar a dois e a quatro canais. O processamento da peça opera com dez programações (presets), sendo que nove deles controlam os parâmetros da transposição e do reverb ao longo da peça e o décimo é responsável por desligar o volume geral no final. A clarineta e a eletrônica É importante que a análise musical observe tanto a partitura quanto a relação do instrumento com a eletrônica para uma melhor compreensão do resultado sonoro desejado pelo compositor. Como Poucas Linhas de Ana Cristina pode ser tocada com ou sem a eletrônica, são necessárias diferentes posturas do intérprete nas performances das duas versões. O início da peça cria um estatismo tenso através da repetição da terça menor Sol – Mi1 em uma rítmica movida com pequenas variações e dinâmica pp. Ao longo desta repetição, o Sol é substituído por um Lá bemol e a tensão desemboca em uma seqüência de escalas acentuadas com dinâmica mp que conduzem a um maior dinamismo (Figura 2). Enquanto isso, a eletrônica, em seu 1

Como a peça foi escrita para clarineta em Sib, os nomes de nota citados no texto se referem às notas escritas, ou seja, soam uma segunda maior abaixo. Para nos referirmos às notas, utilizaremos a nomenclatura que considera o Dó central (261 Hz) como Dó 4.

136

SIMPEMUS3

primeiro programa, realiza o processamento sem defasagem entre o som direto e o processado (delay = 0) e utiliza os três saltadores com ryth1, formando blocos sonoros a partir da transposição do som da clarineta e gerando uma massa sonora disforme com grande densidade textural. Em seguida, a clarineta retorna à repetição da terça inicial, que leva a um segundo momento da peça, menos movido e que passa a explorar o registro agudo da clarineta. Neste trecho, a parte da clarineta apresenta uma polifonia virtual em dois planos, um construído a partir da terça menor inicial em três oitavas diferentes e o outro a partir de um cromatismo que vai do Fá sustenido 6 ao Lá bemol 6 no registro agudíssimo, tudo em uma dinâmica que varia de pp a mf, como pode ser visto na Figura 3. Aqui a eletrônica já executa o seu segundo programa, cuja única alteração em relação ao primeiro é um grande aumento no tamanho da janela de

transposição (window size), o que gera uma espécie de eco. Como a clarineta tem notas mais longas do que no início, ao invés dos blocos sonoros iniciais, podemos ouvir pequenas melodias criadas pela eletrônica que fazem contraponto com a clarineta. Comparando-se estes dois momentos, percebe-se uma diferenciação de graus de importância da eletrônica no resultado sonoro final. Se inicialmente a massa textural da eletrônica deve permanecer em segundo plano, permitindo a clareza do movimento interno criado pela clarineta, no segundo momento, a eletrônica forma melodias que dialogam com a parte instrumental, passando para um plano de igualdade com a clarineta. Apresenta-se aqui uma diferenciação significativa entre as versões com e sem eletrônica, devido ao maior cuidado que deve ser observado com o equilíbrio de intensidade entre as notas agudas acentuadas da clarineta e as melodias da eletrônica.

Figura 2. Início da peça com repetição da terça menor, desembocando nas escalas acentuadas.

Figura 3. Polifonia em dois planos da clarineta.

Em seguida, passa a ser explorada uma sonoridade da clarineta que aparece pela primeira vez no trecho da Figura 2: um som multifônico onde o instrumentista canta uma nota ao mesmo tempo em que toca outra. Aí, inicialmente o clarinetista toca estes multifônicos longos em dinâmica ppp e, em seguida, uma melodia com bastante exploração microtonal, que é uma citação da peça Ninphea para oboé solo do mesmo compositor. Simultaneamente, a eletrônica executa o seu terceiro programa que apresenta diferenças em relação aos dois anteriores: o som processado aparece com um atraso de 360 milissegundos

(ms) e os saltadores têm velocidades e taxas de transposição diferentes, o que faz com que eles sejam mais independentes e gerem melodias diferentes das do programa 2. Neste caso, o intérprete deve atentar-se para que, durante os multifônicos longos, as melodias da eletrônica apareçam com clareza em plano principal, e que, durante a melodia microtonal, ela passe para segundo plano como uma massa textural aguda que acompanha a melodia. O trecho das escalas acentuadas da Figura 2 retorna, mas agora com algumas modificações influenciadas por elementos que apareceram no decorrer do percurso musical, tais como as variações microtonais (Figura 4).

137

simpósio de pesquisa em música 2006 Identifica-se aqui uma intenção clara do compositor de retornar a momentos que, baseado na filosofia de Gilles Deleuze, ele denomina de território. (FERRAZ 1998a; 1998b; 2005). Para Silvio Ferraz, o importante em uma composição musical é a criação destes territórios, que trazem diferentes tipos de sensação. O território é um centro estável em torno do qual a peça gira e que deve ser retorcido e deformado, deve conduzir a outras sensações e tornar-se outro território, e depois retornar como o território inicial, mas deformado. A similaridade destas escalas (Figuras 2 e 4) e de mais outra que será vista mais adiante sugerem a formação de um território, sendo os demais elementos deformações e incrustações que interferem na sua estabilidade.

entre as duas possibilidades de performance. No caso de performance com eletrônica, as notas da clarineta devem ter uma duração tão longo quanto o necessário para uma boa realização do glissando, para que ele seja percebido com clareza, mas podem ser mais curtas quando tocadas sem a eletrônica. Após este glissando, uma melodia ainda estática e cíclica é tocada pela clarineta enquanto a eletrônica funciona realizando pequenas desafinações ainda em caráter de glissando, passando novamente para segundo plano.

Figura 5. Terça menor inicial construída a partir de um espelho rítmico que pode ser observado comparando a e b. Figura 4. Retorno das escalas da figura 2.

Logo após estas escalas, o próximo momento (Figuras 5a e 5b) é uma clara deformação do movimento de terça menor do início da peça. Suas principais características são a complexidade rítmica permeada de pequenas transformações com apojaturas que dificultam sua realização e compreensão e a construção rítmica a partir de espelhos. Neste momento, o quarto programa da eletrônica apresenta um aumento considerável do tamanho da janela de transposição (de 218 ms no programa 3 para 797 ms) e do tempo de atraso (de 360 ms para 1672 ms), mantendo os mesmos valores do programa 3 para as variáveis dos saltadores. A fusão do atraso digital com os efeitos de eco produzidos pelo tamanho da janela gera uma profusão sonora que se acumula pouco a pouco, criando uma massa textural crescente. A terceira escala do território mencionado (Figura 6) surge no meio desta textura crescente e, como as duas anteriores, é seguida por um grande dinamismo ainda mais tenso que nos leva à última incrustação, que traz uma grande estatismo (Figura 7). Neste momento, a eletrônica, executando o programa 5, deixa de usar os saltadores e passa para os deslizadores, realizando, durante as duas notas extremamente longas da clarineta, um grande glissando predominantemente. Aqui a eletrônica passa para o plano principal, ficando as notas da clarineta como suporte para os glissandos. Este trecho mostra uma diferenciação significativa

Figura 6. Última escala do território.

Na última seção, que aparece como última conexão deste território, a parte da clarineta é baseada principalmente nas notas Mi 3, Mi 4 e Mi bemol 5, mas a escala completa utilizada para a sua construção pode ser vista na Figura 8. Apesar do aparente estatismo pela insistência do Mi, uma movimentação é criada através de acentuações irregulares e de efeitos como slap (som parecido com um estalo de língua com altura definida), frulato (som bastante rugoso de altura definida) e o multifônico já mencionado. A eletrônica retorna aos saltadores, todos com a mesma velocidade de transposição (ryth1), e anula o atraso digital (delay = 0), voltando à massa textural do início. No programa 7, a eletrônica volta a utilizar velocidades de transposição diferenciada nos saltadores e, pela primeira vez, apresente valor para realimentação (feedback = 0,43), transformando o atraso digital em um pequeno eco. O programa 8 utiliza um atraso digital de 666 ms que somado à grande movimentação da clarineta cria novamente uma tensão que culmina numa explosão em fff (Figura 9), onde a eletrônica volta a fazer melodias em diálogo com a clarineta. Novamente, mesmo estando em fff, a dinâmica das notas acentuadas devem permitir a clareza das melodias da eletrônica.

Figura 7. Notas longas e melodia cíclica da clarineta.

Figura 8. Escala utilizada para a construção na última seção da peça.

Figura 9. Notas acentuadas que dialogam com a eletrônica no final da peça.

Conclusão O principal objetivo é descrever a análise da peça Poucas Linhas de Ana Cristina, observando a relação entre a eletrônica e a clarineta e os pontos que apresentam diferenciações entre as performances com e sem eletrônica. Nas músicas com eletrônica ao vivo uma das principais dificuldades é que para a para a realização da eletrônica, um maior contato do intérprete com a eletrônica é necessário, a partir de um maior conhecimento e habilidade de manipulação do equipamento e software específicos envolvidos. Mesmo podendo estudar individualmente a partitura do instrumento, a

falta de uma prática freqüente com eletrônica pode comprometer a compreensão musical e prejudicar a performance. Como podemos ver nesta análise da peça Poucas Linhas de Ana Cristina, o estudo também da eletrônica é essencial na observação de elementos como dinâmica, articulação e duração de notas longas que devem ser tratados de forma diferenciada ao serem tocados com e sem a eletrônica. Pretendemos ainda realizar uma análise dos resultados sonoros das versões para clarineta solo e para clarineta e eletrônica com a finalidade de observar as diferenciações entre as sonoridades resultantes nas duas versões.

Referências CHANAN, Michael. Repeated Takes: a short history of recording and its effects on music. Londres; New York: Verso, 1995. FERRAZ, Silvio. Ritornelo: a composição por deformações. XI ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, Campinas, 24-28 ago. 1998. Anais... Campinas, 1998a, p. 43-147. FERRAZ, Silvio. Música e Repetição: a diferença na composição contemporânea. São Paulo: EDUC, 1998b. FERRAZ, Silvio. Poucas Linhas de Ana Cristina, São Paulo, 1999. Partitura não publicada. FERRAZ, Silvio. Livro das Sonoridades: notas dispersas sobre composição. Rio de Janeiro: 7letras, 2005. IAZZETTA, Fernando. A Música, o Corpo e as Máquinas. Revista Opus, v. 4, n. 4, p. 27-44, ago. 1997. KIMURA, Mari. Performance Practice in Computer Music. Computer Music Journal, v. 19, n. 1, 1995. LAROCHE, Jean. Time and Pitch Scale Modification of Audio Signals. In: KAHRS, Mark.; BRANDENBURG, Karlheinz (org.), Applications of Digital Signal Processing to Audio and Acoustics. Boston: Kluwer Academic Publishers, 1998, p. 279-309. MOORE, Richard. Elements of Computer Music. New Jersey: Englewood Cliffs, 1990. PUCKETTE, Miller. Theory and Techniques of Electronic Music. Disponível em: Acesso em 18 de maio de 2006. ROADS, Curtis (et al.). The Computer Music Tutorial. Massachusetts: MIT Press, 1996. SCHROEDER, Manfred R. Natural Sounding Artificial Reverberation. Journal of the Audio Engineering Society, v. 10, n. 3, 1962.

Transformações e funções motívicas: uma análise do enérgico – 1º movimento da Sonata Breve para piano de Oscar Lorenzo Fernandez Maria Bernardete Castelan Póvoas Universidade do Estado de Santa Catarina Resumo Este artigo faz parte de uma pesquisa maior que abrange a análise global da Sonata Breve para piano (1947) de Oscar Lorenzo Fernandez. A escolha desta obra justifica-se em dois aspectos: a relevância do material nela contido para o aprofundamento de questões estruturais e musicais, e a carência de estudos analíticos sobre as composições do compositor supracitado. O objetivo deste estudo foi levantar aspectos analíticos sobre a utilização do motivo em uma obra musical e mostrar a estrutura do primeiro movimento da sonata, o Enérgico, visando sua realização instrumental. A estrutura do Enérgico foi determinada a partir do exame de um motivo básico. Foram destacados e analisados elementos derivados e recapitulados, e discutidas relações os contextos: melódico, rítmico e harmônico decorrentes de modificações e transformações do motivo. Como referencial teórico, optou-se por realizar a análise a partir das teorias variação progressiva e transformação temática de Arnold Schoenberg e Rudolf Reti, respectivamente. A análise revelou que o motivo básico é gerador do desenvolvimento do Enérgico e fator de unidade estrutural. Os resultados da análise mostraram que a compreensão da estrutura de uma composição é essencial para a sua interpretação e realização músico-intrumental. Com este trabalho pretende-se contribuir para a produção crítica e analítica sobre a música brasileira.

Introdução Dentre as composições para piano de Lorenzo Fernandez, foi destacada a Sonata Breve. Para a priorização de procedimentos técnico-musicais a serem aplicados na sua realização pianística, tornou-se necessária a sua análise. A Sonata Breve, obra em três movimentos (Enérgico, Sombrio e Impetuoso), foi composta por Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948) em setembro de 1947, é sua última obra para piano e uma das últimas composições. Dedicada à Ivy Improta, foi estreada pela pianista Leonor Macedo Costa em maio de 1949, nove meses após a morte do compositor ocorrida em 27 de agosto de 1948 (FRANÇA, 1950) e encerra uma produção pianística de 33 obras entre peças isoladas e coleções que, no conjunto, somam 82 composições. Esta sonata, juntamente com o segundo Quarteto de Cordas (1946), a Primeira e a Segunda Sinfonia (1947), forma o grupo de obras que representam a última fase de Lorenzo Fernandez. Mariz (1950, p.135) destacou como características comuns às duas primeiras obras à Segunda Sinfonia: “unidade temática, exclusão de ornamentos, universalismo, [...] politonalidade e polirritmia”. A citação direta da temática folclórica e popular, procedimento musical freqüente nas composições de Lorenzo Fernandez até a década

1920/30, foi substituída por uma temática original. Os elementos nacionalistas acontecem como que filtrados em uma linguagem pessoal (KIEFER, 1986). Segundo os autores citados, as últimas obras apresentam uma concepção mais universalista de composição. Para Neves (1977, p. 62), Lorenzo Fernandez mostrou que “a adesão inteligente à escola nacionalista não impede o desenvolvimento de uma linguagem pessoal e não funciona como elemento uniformizador”. Em uma análise preliminar, observou-se que esta sonata apresenta uma estrutura fortemente relacionada ao trabalho motívico. Para um melhor entendimento sobre o “motivo”, decidiu-se conduzir o estudo através do aprofundamento de suas possibilidades na abrangência de uma obra. Optou-se por trabalhar as teorias analíticas de transformação motívica propostas por Arnold Schoenberg (1874-1951) e Rudolf Reti (1885-1957). A escolha dos dois autores ateve-se às seguintes razões: Schoenberg, quando expõe sobre a variação progressiva, explica como o compositor cria, oferecendo um enfoque metodológico para a sistematização do processo analítico e Reti, através transformação temática, estabelece um referencial para a investigação analítica a partir do que o compositor cria. Toda obra contém, internamente, duas forças capazes de dar sentido à forma musical, a externa que diz respeito ao esboço arquitetônico e a

140 interna que compreende a formação melódicorítmica mais o esquema harmônico. “Há, contudo, [...] outras qualidades essenciais necessárias para moldar agrupamentos musicais dentro do todo arquitetônico, [...] que nada mais são do que as relações temáticas e motívicas” (RETI, 1951, p.109). Para Frisch (1984, p.22) Reti provou, através da análise de inúmeras obras, que a grande maioria das composições musicais significativas “de Bach até Debussy evoluem organicamente de um simples motivo [...] e que a “Transformação Temática” de Reti equivale à “Variação Progressiva” de Schoenberg. Segundo Epstein (1980, p. 208), “Schoenberg manifesta sua convicção de que a unidade composicional surge dos relacionamentos entre as propriedades das formas motívicas”. Dunsby e Whittal (1988) tratam destas teorias como uma evolução no pensamento reducionista da análise de relação entre tema e estrutura. A análise processou-se através de estudos realizados no fac-símile da Sonata Breve. Foram destacadas modificações, transformações e funções exercidas pelo motivo no desenvolvimento do Enérgico nos contextos: melódico, rítmico e harmônico, mostradas relações existentes entre o motivo básico e as linhas temáticas e levantados aspectos referentes à articulação, ao timbre e à textura. O motivo O termo motivo tem sua origem na palavra latina motivu, “que move [...] pode fazer mover”.(FERREIRA, 1987, p. 949). Schoenberg (1980, p.15) definiu motivo como sendo “uma unidade que contém uma ou mais características de intervalo e ritmo. [...] Sua prática consiste de repetições freqüentes, algumas delas sem mudanças e, a maioria delas variadas”, responsáveis pela produção de novas formas do motivo que são os “materiais para continuidades, contrastes, novos segmentos, novos temas ou novas secções dentro de uma peça”. Schoenberg (1983, p.9) ampliou este enunciado dizendo que “as características do motivo são intervalos e ritmos, combinados para produzir um [...] modelo ou contorno que implica usualmente em harmonia inerente”. Para a compreensão da função do motivo como força direcional da linha estética de uma composição musical, aplica-se a definição de Reti:

SIMPEMUS3 Chamamos motivo algum elemento musical seja ele uma frase melódica ou fragmento ou até mesmo apenas uma característica rítmica ou dinâmica que, por ser constantemente repetida e variada através de um trabalho ou secção, assume um papel no ‘design’ composicional (RETI, 1951, p.11).

O design diz respeito ao esboço estrutural, aos pontos que interligam os conteúdos. Para o autor, “na maioria dos trabalhos da literatura musical os diferentes movimentos de uma composição estão conectados pela unidade temática” (RETI, 1951, p.11) que, por sua vez, é operacionalizada pela formação de temas idênticos e não somente por uma afinidade de modo. E esta unidade estabelece a homogeneidade entre os temas de um movimento, entre os movimentos de uma peça de estrutura maior ou entre peças de um opus ou série. Sendo o motivo básico uma célula condutora e, portanto, fator de projeção do discurso musical preponderante em uma obra musical, torna-se indispensável considerar-se seus componentes melódicos, rítmicos e harmônicos nos planos horizontal, vertical e direcional. Um modelo básico cumpre a função de fator de identidade entre estruturas musicais através da sua recorrência exata, modificada ou transformada. A música, na sua condição primordial, consiste das mais primitivas repetições, e o elemento que funciona como fator unificador [...] o motivo, pode manifestar sua presença somente através da repetição” (SCHOENBERG, 1975, p.265). Sendo a repetição um meio e não somente um fim, as formas mais artísticas obscurecem este fato por uma variedade de caminhos. [...] A repetição é o estágio inicial da técnica formal da música, a variação e o desenvolvimento seu mais alto estágio de desenvolvimento” (op. cit. p.265). Tem-se, desta forma, uma compreensão do que Schoenberg trata por variação progressiva. Sobre a transformação temática, Reti (1951, p. 67) esclareceu que as possibilidades são inumeráveis e que o compositor, ao utilizar-se da técnica temática, não só “inverte, aumenta, ou simplesmente varia os contornos, mas transformaos no sentido pleno da palavra”. Ele determinou como categorias de transformação a inversão, a interversão e a reversão: inversão, movimento contrário e retrógrado. A interversão consiste na troca entre sons de um contorno motívico ou temático e resulta na produção de novas configurações. A recorrência de um motivo ou de suas características assegura a ordem e a coerência

141

simpósio de pesquisa em música 2006 formal e quando adotada como princípio de construção musical “deverá produzir interrelação, coerência, lógica, compreensão e fluência [...]. Tudo depende do seu tratamento e desenvolvimento” (SCHOENBERG, 1983, p. 9). Tais condições fazem do motivo um agente do inter-relacionamento entre contornos. Para Reti (1951, p.4), demonstrar a unidade entre diferentes movimentos ou partes deles, suas inter-relações mais profundas, além daquelas relacionadas às afinidades de estilo, modo ou tonalidade é questão primordial. Da força gravitacional exercida pelo motivo depende o equilíbrio entre os dois sentidos direcionais que formam o design de uma composição, o horizontal e o vertical, através dos quais é gerado o material sonoro. O Enérgico: recorrências

o

motivo

básico

e

suas

Figura 2. 1º Segmento, fragmentos x e y (FERNANDEZ, 1968, p. 1).

O primeiro segmento, funciona como proposta motívico-temática e detém as relações intervalares que servem de base ao segundo segmento e demais procedimentos melódicos subseqüentes, presentes no contorno horizontal do Enérgico.

Primeiro contorno temático O Enérgico inicia com a apresentação de um primeiro contorno temático formado por dois segmentos. O segmento inicial, A, contém dois fragmentos (Figura 2). O primeiro fragmento (x) é apresentado em uníssono e corresponde a um motivo inicial, modelo básico (Figura 1) que, no decorrer do discurso musical do Enérgico, aparece no estado original, modificado e transformado melódica, rítmica e harmonicamente.

Figura 3a. Relações intervalares, Segmento temático A, fragmento x.

Figura 3b. Relações intervalares, Segmento temático A, fragmento y.

Figura 1. Motivo básico (m.b.)

O segundo fragmento (y) é diafônico. Inicia no ré da linha para execução da mão direita (m.d.), segue ao dó sustenido e, antes de ir ao dó natural passa pelo lá que interrompe o cromatismo iniciado no mi bemol do motivo. Na mão esquerda (m.e), a linha descendente também iniciada no mi bemol, segue em cromatismo descendente do ré até o lá sem interrupções. A idéia de cromatismo está contida no motivo inicial e o segundo fragmento já caracteriza uma progressão do elemento cromático.

O segundo segmento temático, B (Figura 4), compassos [2] ao [4], corresponde à conclusão da proposta inicial e à primeira pontuação cadencial. Sua textura é mais densa devido a uma maior compactação sonora causada pela presença de acordes e reiterada pela utilização dos registros médio e grave. Há predominância de movimento paralelo com discreta movimentação melódica, rítmica e harmônica. O motivo (m.e.) faz contraponto com a continuidade temática delineada por acordes paralelos de sétimas maiores (m.d.).

142

SIMPEMUS3 que faz conexão entre o primeiro e a apresentação segundo contorno temático da exposição.

Figura 4. 2o Segmento temático (B), compassos [2]-[4] (FERNANDEZ, 1968, p. 1).

Em uma análise superficial pode-se não observar a relação entre este segmento e o modelo inicial. No entanto, se analisada suas estruturas melódicas, esta relação torna-se evidente (Figuras 5.a e 5.b).

Figura 6. Expansão rítmica do motivo básico.

O segundo tema e demais procedimentos do plano horizontal do Enérgico foram examinados, segundo padrões melódicos e rítmicos de referência. Contorno Horizontal: Padrões melódicos e rítmicos

Figura 5a. Relação entre segmento B e motivo.

Figura 5b. Relação 2, padrão 1d modificado.

Neste segmento, encontra-se definido o fator harmônico mais recorrente na sonata, o acorde de sétima. Seu uso freqüente coloca-o como a cor tímbrica essencial do Enérgico, encontrada nas seguintes formações harmônicas de sétimas: maior com terça maior e com terça menor, menor com quarta justa e sem terça, maior com trítono, e de oitava menor (sétima aumentada) e quinta diminuta. Este contorno temático inicial, resultante da conexão entre os segmentos A e B, primeiro correspondente à proposta motívico-temática e o segundo, à resposta, representa uma síntese do Enérgico devido à compactação das principais configurações melódicas, rítmicas e harmônicas nele contidas, além de deter a densidade textural e as qualidades tímbricas mais características. Estas se estendem nos compassos [5] ao [13] e deste ao [14] encontra-se a primeira expansão rítmica do motivo (Figura 6), passagem

Como referencial para a análise do contorno melódico do "Enérgico”, foram organizados padrões conseqüentes das permutas uma tabela de entre os sons do motivo básico inicial, mostrados na Figura 7.

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simpósio de pesquisa em música 2006

Figura 7. Padrões melódicos de referência.

Na primeira coluna, à esquerda da tabela, encontram-se representados o motivo básico e os três contornos melódicos nele contidos e, na segunda coluna, as respectivas reversões. Nas colunas três, quatro, cinco e seis, encontram-se os padrões resultantes das permutas entre os sons do modelo e suas reversões. Nas linhas intermediárias estão outros contornos decorrentes da mudança de altura do som inicial de cada padrão. Alguns deles se repetem, razão pela qual estão entre parênteses. Para Schoenberg (1983, p. 58), as “circunstâncias que produzem os vários aspectos do motivo básico provêm das considerações de variedade, estrutura e expressividade”. Sua concepção sobre a abrangência do trabalho motívico também foi explicitada quando tratou sobre conexão. Segundo esclarece, de um mesmo motivo derivam novas figurações e recorrências de particularidades que podem agir como elementos unificadores. Reforçando a coerência global das estruturas ou formas, ao trabalho motívico, é acrescido o inter-relacionamento harmônico.

Figura 8. Padrões rítmicos de referência.

A diferença entre os padrões 3.a.l e 3.a.2 é de acentuação métrica. O primeiro faz parte de passagens que dependem de subdivisão ternária e o segundo obedece à métrica simples na reexposição, conforme as figuras seguintes.

O ritmo do motivo básico serve de base para fórmulas rítmicas resultantes de sua expansão (1), contração (2) e transformação (3), mostradas na figura seguinte. Figura 9a. Similaridade rítmica, compasso [1].

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Figura 11. Expansão e fragmentação motívica, compassos [92]-[94]. (FERNANDEZ, facsimile). Figura 9b. Similaridade rítmica, compasso [60].

Dos compassos [72] ao [79], o contorno delineado pela mão esquerda reafirma a função do motivo de elemento propulsor, em repetições, ritmicamente em contraído e expandido conforme Figura 12.

Figura 9c. Similaridade entre formações rítmicas.

Nos compassos [73] e [74] encontram-se outros exemplos de expansão e modificação motívica conforme mostra a figura seguinte.

Figura 10. Expansão e modificação motívica. (FERNANDEZ, 1968, p. 4).

Figura 12. Contração e expansão rítmica, compassos [72]-[74] (FERNANDEZ, 1968, p. 4).

O motivo é ritmicamente contraído na recapitulação (m.e.) entre os compassos [60] e [71], exercendo a função de ostinato rítmico, base para o segundo tema. Nos compassos [61]-[64] tem seu último som (fá#) repetido (Figura 13.a), nos quatro seguintes é intermediado por oitavas repetidas (Figura 13.b) e nos compassos [68]-[71] é repetido em duas alturas e intercalado por acordes de sétima sem a terça (Figura13.c).

A extensão cadencial do final da recapitulação para a coda contém o motivo expandido (ritmo e melodia) com os sons distanciados, caracterizando uma fragmentação. Figura 13a. Contração rítmica, compasso [60].

Figura 13b. Contração rítmica, compasso [63].

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Figura 13c. Contração rítmica - acordes de sétima sem terça.

A partir do compasso [68] há ênfase no motivo básico ritmicamente contraído, na mão esquerda, priorizando o mi e o lá - relação de quarta justa até o compasso [79], sempre situado na segunda parte do tempo, intercalado por oitavas e acordes de sétima. Contrasta ritmicamente com o contorno melódico desenhado por acordes na mão direita. Entre os compassos [80]-[92] ocorre um jogo de sonoridades. Os efeitos tímbricos são provocados por trocas de registro entre recorrências do motivo duplicado nos registros médio e agudo, intermediadas por oitavas (m.e.) acordes de sétima (m.d.) nos registros grave e médio. Há alternância entre os materiais do motivo e de parte do segmento B, conforme Figura 14 (compassos [84]-[91]).

Figura 15. Motivo modificado - elemento de conexão, compasso [4] (FERNANDEZ, 1968, p. 1).

O segundo contorno temático inicia no compasso [15], tem caráter lírico com características de melodia acompanhada e contrasta com o tema inicial.

Figura 16. 2o segmento temático, compassos [15][22] (FERNANDEZ, fac-símile).

Nas figuras seguintes o primeiro e o segundo contornos temáticos são confrontados. Figura 14. Alternância motivo básico e segmento B, compassos [84]–[91] (FERNANDEZ, fac-símile).

O motivo básico tem sua seqüência melódica alterada em conexões que preparam a reapresentação do tema, no compasso [4] (Figura 15) e [30], anterior ao início do desenvolvimento. Figura 17a. Comparação entre temas, primeiro tema, compassos[1]-[4].

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SIMPEMUS3 Figura 19. Segundo contorno temático, ritmo contraído, compasso [60] (FERNANDEZ, 1968, p. 3).

Figura 17b. Comparação entre temas, segundo tema, compassos[15]-[20].

A comparação entre os segmentos iniciais dos dois temas mostra particularidades comuns.

Figuras 18a. 2o contorno temático, relação 1, motivo básico.

Nos compassos [65]-[71] o trabalho melódico (m.d.) tem sua continuidade sobre material do segundo fragmento do segmento B modificado sobre a linha da mão esquerda em ostinato. Apesar do contraste entre o primeiro e o segundo tema, o primeiro segmento do segundo caracteriza uma transformação do motivo inicial e o segundo representa uma inversão modificada do segmento B do primeiro sujeito. Os compassos [72]-[80] (Figura 20) caracterizam-se por permutas entre padrões motívicos e os padrões rítmicos l.c, 1.a, 2, 3.a.2 e 3.a.3,e 3, l.c, m.c e 1.d modificados. Acorde de sétima sem a terça encontram-se no contorno para a mão esquerda, com ênfase em fragmentos do segundo tema intercalados por reapresentações do motivo básico ritmicamente contraído.

Figuras 18b. 2o contorno temático, relação 2, motivo básico modificado.

Sobre a homogeneidade entre temas, Reti (1951, p.4) esclareceu que “o primeiro e o segundo sujeitos de uma sonata são, [em geral], considerados contrastantes, certamente não idênticos [...]. Na realidade eles são contrastantes na superfície mas idênticos em substância”. Para Kiefer (1986), existe um sensível contraste entre o segundo e o primeiro temas do Enérgico embora haja reminiscências deste no segundo. Na reexposição, os segmentos A e B do segundo tema são literalmente reapresentados a uma terça abaixo da exposição. O motivo encontra-se contraído ritmicamente em uma figuração (m.e.) ostinato. A reexposição tem características politonais com trabalho sobre mi, ré e fá sustenido conforme compassos [60][64] mostrados na Figura 19.

Figura 20. Transformação motívica, compassos [72][80] (FERNANDEZ, 1968, p. 4).

Aspectos da estrutura vertical do Enérgico No contexto harmônico do Enérgico, os intervalos conversíveis de quarta aumentada e quinta diminuta, sétima maior e segundas menores contidos no motivo básico (Figura 3.a), correspondem à base da estrutura harmônica do Enérgico, esta mesclada por acordes diferenciados com ou sem agregação de notas que contém, via de

simpósio de pesquisa em música 2006 regra, a sétima, a segunda, a quarta ou a quinta. Contudo, é a sétima que tem a função de suporte harmônico e é fator de unidade no sentido vertical. "As características de um motivo são intervalos e ritmos combinados para produzir um memorável contorno que implica, via de regra, numa harmonia inerente" (SHOENBERG, 1981, p.9). O ré, terceiro som do motivo, em suas repetições vem acompanhado no baixo pelo dó sustenido e do dó bequadro (ver Figura 2). As inversões dos intervalos de segunda menor e maior, resultantes desta coincidência vertical são, respectivamente, as sétimas maior e menor. Esta estrutura melódico-harmônica é reiterada no segmento B, vertical e horizontalmente (compassos [2] e [3], Figura 4), em suas recorrências (compassos [6] e [7] e [10]-[12]. Estes últimos caracterizam uma extensão e pontuação cadencial anterior à apresentação tema. Nos compassos [32]-[37] do desenvolvimento, o acorde de sétima faz parte do contorno temático, intensificando a textura nas recorrências do fragmento y (segmento 1) em oitavas (compassos. [1], [5] e [31]). A estrutura melódico-harmônica baseada em acordes de sétima na primeira posição (m.d.) acompanhados por oitavas (m.e.), é mantida nos compassos [38]-[42], extensão cadencial da pontuação entre as duas partes do desenvolvimento. O pedal de ré que inicia no compasso [38] é mantido até o compasso [58], final do desenvolvimento.

147 base para a segunda recorrência do fragmento B do primeiro tema, onde a textura é intensificada por intervalos harmônicos de quartas e quintas aumentadas e diminutas, agregados.

Figura 22. Acordes de 7as/intervalos harmônicos agregados, compassos [8] e [9] (FERNANDEZ, 1968, p. 2).

Nos compassos [68] e [69], os acordes de sétima (m.e.) encontram-se também em alternância com o motivo básico. Nos compassos [63]-[71] da recapitulação, o compositor utiliza-se da terceira inversão do acorde de sétima com supressão da terça em posição afastada (m.e.), fato este que resulta em uma seqüência de acordes de nona. A transição, entre os compassos [25] ao [29] contém uma figuração de acordes, formada por oitavas, quintas e segundas em (m.d.) seqüências descendentes paralelas com oitavas (m.e.), fragmentos do segundo tema e o motivo modificado. Os acordes com segunda agregada (m.d.) funcionam como suporte harmônico, em ostinato, para fragmentos do segundo tema. Quando movimentados paralelamente com as oitavas (m.e.), servem de base ao motivo modificado. A força destas seqüências reside no fato delas englobarem o segmento B e o motivo básico.

Figura 21. Extensão cadencial, compassos [38][42] (FERNANDEZ, 1968, p. 2).

Na última parte do desenvolvimento, a característica politonal do segmento B do primeiro tema continua presente através do emprego de acordes paralelos de sétima, trabalhados sobre um pedal de ré. A textura é intensificada por uma linha intermediária de quintas e de acordes de sétima com supressão da terça. Nos compassos [8] e [9] (Figura 22), [23][25], [49]-[59], [68]-[69] (Figura 13.c) e [75]-[80] (Figura 21) há forte presença destes acordes. Nestas partes ocorrem passagens politonais a exemplo da Figura 23. No compasso [8] estas formações harmônicas configuram-se em uma seqüência descendente sobre cromatismo livre,

Figura 23. Agregados harmônicos, compassos [23][28] (FERNANDEZ, 1968, p. 2).

Acordes idênticos a estes fazem parte do movimento melódico-harmônico entre os compassos [71]-[77] e [79] e da extensão cadencial do final da recapitulação (compassos [92]-[94]). O contorno vertical está submetido, via de regra, à sétima.

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O acorde de nona e outras formações verticais decorrem da agregação de uma ou mais notas, ou são resultantes da coincidência vertical do movimento dos planos horizontais. Enérgico: macro estrutura O Enérgico segue os princípios formais do allegro de sonata, apresentando secções de exposição (compassos [1]-[23]), desenvolvimento (compassos [23]-[59]), recapitulação (compassos [59]-[94]) e coda (compasso [95]). Sua textura geral é densa, definida pelo tratamento melódico-harmônico e polifônico, com livre utilização de contraponto. No decorrer das três secções há constantes mudanças de compassos. Na exposição, dos compassos [1] ao [14]), observa-se a alternância das fórmulas 6/♪ e 9/♪. Do compasso [15] até o [29] há alteração da métrica e do andamento, modificação esta preparada pela indicação do rallentando no compasso [11] e definida pela citação "tranqüilo" (compasso [15]), Figura 16, e na passagem de conexão ao desenvolvimento (compasso [30]). A métrica de subdivisão ternária é retomada e mantida até o compasso [58], onde inicia a recapitulação. Esta nova secção retorna à métrica simples, com base nas fórmulas 2/4 e 3/4 que se alternam. A coda final não apresenta indicação métrica nem barra de compasso, mas detém subdivisão simples. Na figura seguinte pode ser visto um esquema geral do Enérgico.

primeira modificação rítmica do motivo (Figura 6). A segunda parte da exposição contém o segundo tema (compassos [15]-[22], Figura 16) e a transição (compassos [23]-[29], Figura 24) para o desenvolvimento. A secção do desenvolvimento tem duas partes: 1a- compassos [31]-[42] e 2acompassos [43]-[59] com uma extensão cadencial (compassos [38]-[42], Figura 19) entre elas. A primeira parte da recapitulação (compassos [59]-[73], Figura 19) apresenta material do segundo tema (m.d.) apoiado em repetições do motivo básico, estas intercaladas por sons repetidos e seqüências (compassos [60]-[67]) de acordes de sétima sem terça (Figuras 13.c, 20). A segunda parte (ver Figura 20), caracterizada pela permuta entre padrões motívicos, tem início no ponto de elisão com o término da primeira parte (compasso [73]). Há ênfase no motivo básico ritmicamente diminuído (m.e.), aumentado (d.m.) e modificado (m.d.). A terceira parte (compassos [80]-[94]) apresenta uma maior concentração de trabalho sobre material do primeiro contorno temático. As interrupções do movimento horizontal, provocadas pelas pausas, têm significativa força rítmica e imprimem um caráter definitivamente enérgico e brilhante. Estas características são reiteradas pelo jogo sonoro, resultado da exploração dos timbres grave-médio e médio agudo. A recapitulação termina com uma extensão cadencial de três compassos (parte na Figura 11) que prepara a coda final em termos de dinâmica (ff -pp) e de andamento. Esta coda é caracterizada por contrastes de ritmo, dinâmica, andamento e caráter, com apresentação do segundo contorno temático no registro médio no registro grave do piano e o modelo básico nos registros médio-agudo. A dinâmica indicada para o contorno temático é pmf-p e para as chamadas do motivo básico é fff com diminuição gradativa até o ppp. A expansão rítmica do motivo, nas duas últimas apresentações auxilia o decrescendo final. Conclusões

Figura 24. Esquema geral do Enérgico.

A exposição (compassos [1]-[30]) tem seu primeiro contorno temático motívico apresentado nos quatro primeiros compassos e prioriza os sons lá -ré. Os compassos [10]-[12] completam a primeira parte da exposição. Os compassos seguintes, dois, fazem a conexão entre as partes da exposição e caracterizam a

O Enérgico foi construído segundo o princípio composicional da recorrência motívica. Este processo construcional está determinado pela manipulação do motivo básico, apresentado no início deste primeiro movimento da Sonata Breve. O discurso musical adquire impulso no direcionamento melódico ascendente e suspensivo do motivo básico: lá, mi b, ré, projetado a partir da sétima maior, esta adotada como cor tímbrica do contorno melódico-harmônico. O desenvolvimento da composição é decorrente da reprodução dos materiais melódicos, rítmicos e harmônicos,

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simpósio de pesquisa em música 2006 inerentes ao motivo, através de suas recorrência no estado original, modificado e transformado, aos quais se agregam os efeitos promovidos por procedimentos como expansão e contração melódica e rítmica, polirritmias e acentuações. A esta metamorfose motívica aliam-se as diferentes funções que o modelo básico assume como responsável por aspectos de ordem estética: variedade textural, tímbrica e articulações que influem diretamente na expressividade. O motivo básico promove a evolução do movimento, imprimindo suas características na formação estrutural nos diferentes níveis do espaço sonoro. O Enérgico pode ser situado no limiar entre o tonal porque as funções não estão totalmente descaracterizadas, atonal porque não obedece

aos parâmetros tradicionais de movimento e de resolução harmônica e politonal, a exemplo da Figura 19. O delineamento melódico está construído em sólidas bases tonais, mas apoiado em um contorno harmônico livre. A análise mostrou que a ocorrência de acordes de nona e demais agregados está invariavelmente submetida ao acorde de sétima maior com terceira maior ou menor. A compreensão do texto musical através do processo analítico foi essencial na decodificação do texto musical e com reflexos no nível do desempenho instrumental, tanto no aspecto técnico quanto no musical. São necessários mais estudos para o aprofundamento desta análise.

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A preparação do ambiente da livre improvisação: antecedentes históricos, as categorias do objeto sonoro e a escuta reduzida Rogério Luiz Moraes Costa Universidade de São Paulo Resumo Este texto busca explicitar os pressupostos necessários para a realização de uma proposta de livre improvisação musical. O autor baseia suas reflexões em uma prática experimental onde os conceitos aqui apresentados foram vivenciados, analisados e testados. Para construir sua argumentação o autor começa explicitando os antecedentes históricos que tornam possível a realização de performances de livre improvisação e termina assinalando o papel fundamental exercido por uma nova atitude de escuta baseada nas categorias de objeto sonoro e escuta reduzida - criadas por Pierre Schaeffer no âmbito de suas pesquisas sobre a música concreta - para que, num ambiente aparentemente desprovido de sistemas de referência explícitos como é a livre improvisação, a interação entre os músicos se estabeleça.

Introdução A improvisação, genericamente falando especialmente a coletiva - é um fazer musical com características específicas, onde muitas linhas de força convergem. Trata-se de pensamento musical em ação onde o que importa é a participação em um processo, criativo, expressivo, lúdico e interativo em tempo real. Neste contexto, é secundária (ou inexistente) a idéia de criação de obras. Por isto, podemos dizer que a improvisação traça um território diverso do da composição. Pensemos, conforme a definição proposta por Derek Bailey (1993, p. xi) a partir de duas formas básicas de improvisação: de um lado a improvisação idiomática, que é aquela que se dá dentro do contexto de um idioma musical, social e culturalmente delimitado histórica e geograficamente - como, por exemplo, a improvisação na música hindu - e de outro a livre improvisação. Nesta última, supostamente, não há um sistema ou uma linguagem previamente estabelecida, no contexto da qual se dará a prática musical. A livre improvisação, que é a que nos interessa comentar neste texto, só se apresenta como possibilidade, no mundo contemporâneo, cada vez mais integrado e onde as "membranas" lingüísticas, culturais, sociais - e as fronteiras, devido à intensa interação, eventualmente se dissolvem ou ao menos perdem sua rigidez. Neste contexto, os territórios se interpenetram e os sistemas interagem cada vez mais, de maneira que os idiomas tornam-se mais permeáveis. A figura do livre improvisador - que, nesta atividade é diferente do intérprete ou do compositor já que ele é ao mesmo tempo e de certa forma, um pouco dos dois - lida com vários sistemas simultaneamente ou mesmo com a

ausência deles. Ele pode ser um músico proveniente do território do jazz que, em sua busca por novas formas de expressão e liberdade criativa acaba se deparando com o esgotamento dos seus antigos sistemas de referência ou um compositor/intérprete de música erudita ocidental que, em seu contexto específico vivencia o mesmo fenômeno e se volta para novas formas de expressão que podem incluir as músicas étnicas, o jazz etc. A proposta de livre improvisação que apresentamos supõe a preparação de um "lugar" (espaço-temporal) propício a uma espécie de fluxo vital musical produtivo. Este lugar deve se tornar um espaço de jogo, de processo, de conversa e de interação entre músicos. Nele as forças e energias ainda livres1, informadas, podem adquirir consistência na forma de uma sucessão de estados provisórios, num devir sonoro/musical. Este espaço só é possível devido a um desejo/vontade de potência que funciona como um combustível para as ações e interações entre os improvisadores. Para isto, é necessário partir de uma escuta intensa, reduzida, que abstrai as fontes produtoras, os significados musicais2 e os gestos idiomáticos inevitáveis presentes nas enunciações de cada músico, e que prioriza as qualidades propriamente sonoras das ações instrumentais. 1

…o essencial não está nas formas e nas matérias, nem nos temas, mas nas forças, nas densidades, nas intensidades (DELEUZE, 1997, p. 159).

2

Pierre Schaeffer diferencia o objeto musical - aquele que adquire seu sentido no contexto de um sistema ou idioma musical discursivo (por exemplo, um acorde de 7a. de dominante numa cadência autêntica perfeita numa música "clássica) - do objeto sonoro resultante de uma atitude de escuta voltada para as qualidades intrínsecas do mesmo, desvinculado de qualquer sistema apriorístico. Seria o caso do mesmo acorde de 7a. numa obra de Debussy em que o que importa não é tanto sua função num discurso linear e sim sua sonoridade específica, verticalizada (vide, por exemplo, o Prelúdio VII/ vol.I).

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simpósio de pesquisa em música 2006 Antecedentes históricos da livre improvisação Podemos dizer que, para o músico, um ambiente de improvisação é longamente preparado. Por exemplo, ao contrário do que imagina o senso comum, no jazz, a improvisação não é uma performance sem preparação. De fato haveria segundo Paul Berliner, uma vida inteira de preparação e conhecimento por trás de toda e qualquer idéia realizada por um improvisador (1994, p. 17). Por outro lado, a possibilidade da livre improvisação - que não se dá no contexto de um idioma específico - é preparada por uma série de fatores presentes na história e na geografia da música. Vamos proceder agora, a uma enumeração de algumas das principais referências históricas (práticas e teóricas) que tornam possíveis as práticas de livre improvisação a partir da configuração de novas formas de escuta. Em primeiro lugar, temos as pesquisas conduzidas por Pierre Schaeffer no âmbito da música concreta. Dali emerge a formulação do conceito de escuta reduzida do objeto sonoro com todas as implicações que dela decorrem e que detalharemos no item seguinte. A improvisação livre, conforme a vivenciamos no contexto de nosso laboratório prático - é uma prática em que este tipo de escuta orientada para o objeto sonoro tem grande relevância. Temos também a obra e as reflexões do compositor francês Edgard Varèse em busca da "autonomia do som". Tanto quanto John Cage, Varèse almeja a “liberação do som” (reivindicação precocemente veiculada por Debussy que dizia que qualquer som em qualquer combinação e em qualquer sucessão são doravante livres para serem usados numa continuidade musical). Esta liberação do som, sua percepção e uso como fenômeno autônomo, desvinculado de qualquer sistema (os idiomas, ou linguagens segundo Schaeffer) implica em diferentes propostas de atuação conforme o caso. Varèse permanece ligado à tradição européia da composição: predomina o conceito de permanência da obra, da construção de um objeto artístico por parte de um compositor que incumbe eventuais intérpretes de veicular, da maneira mais próxima possível de suas intenções originais, a sua criação, transmitida através de uma instrução detalhada: a partitura. A escuta, no entanto, já é outra, pois ela se dirige a verdadeiros “objetos sonoros” plenos de múltiplas possibilidades de escuta (o sentido de linearidade, de direcionalidade e de causalidade característicos da tonalidade são atenuados). Para Varèse não importa a nota como elemento

descontínuo: uma altura específica numa região específica e cuidadosamente escolhida de um instrumento, produzida através de uma articulação rigorosamente definida, se torna, não parte de um acorde, mas sim de um agregado harmônico, de uma densidade de algo que por acaso é definida por notas de alturas definidas /.../ a ênfase é colocada na experiência ao invés da estrutura (NYMAN, 1999, p.44). Assim, seus procedimentos inauguram uma escrita em que se busca de forma intencional, uma escuta de massas sonoras e texturas. Além disso, para ele, a questão da forma é tratada de uma maneira particular, enquanto resultado de um processo de desdobramento de elementos e componentes à maneira de um organismo. Na mesma linha de referência podemos citar a obra de Ligeti que, a partir da utilização de procedimentos contrapontísticos incomuns (micropolifonia) em obras como Atmosphères, Lux Aeterna e Continuum, cria também a sensação de texturas em micro-movimento. Nestes procedimentos de Ligeti se percebe o impacto do advento da música eletrônica no pensamento composicional moderno. O chamado "tecnomorfismo3” que daí se origina é também uma importante referência na preparação do plano de consistência da livre improvisação. Ligeti chega, inclusive, a explicitar a influência determinante de sua experiência com a música eletrônica em sua escrita instrumental: Quando minha peça orquestral Apparitions foi executada em 1960 em Colônia e, um ano depois, quando a peça orquestral Atmosphères foi executada em Donaueschingen, era comumente mencionado o seguinte: essas peças, na verdade parecem ser música eletrônica arranjadas para orquestra. Essa afirmação é certamente estranha como algo pode ser eletrônico quando é puramente instrumental - de qualquer maneira, contém um grão de verdade; isto é, sem as experiências no estúdio eletrônico, as peças orquestrais nunca poderiam ser compostas daquela maneira (LIGETI, 1970, p. 1-2).

Temos também como referência a obra do compositor italiano Giacinto Scelsi. Nesta, o que se almeja é uma espécie de molecularização do som através de um processo contínuo de micro3

O tecnomorfismo, segundo Tatiana Catanzaro, se relaciona com a utilização metafórica de um processo tecnológico aplicado em um meio diverso ao qual este foi concebido; no caso, à música composta para instrumentos mecânicos (tradicionais). Ou seja, a abstração de uma idéia tecnológica (como a manipulação de uma fita magnética, a análise de um espectro sonoro via computador, etc.) é aplicada à música tradicional instrumental e/ou vocal mecânica (CATANZARO, 2002, p. 73).

152 percepções. Ele se propõe a "viajar dentro do som". O conceito de molecularização e a conseqüente intensificação estão presentes de forma clara na crescente importância que o timbre vai assumindo na produção musical contemporânea. Podemos observar que há um grande movimento na música ocidental, em que o timbre, antes insignificante com respeito à escritura, é recuperado, reconhecido primeiro como fenômeno autônomo e a seguir como categoria predominante – terminando quase por submergir ou absorver as outras dimensões do discurso musical, de sorte que as microflutuações do som (glissandos, vibratos, mutações do espectro sonoro, trêmulos...) passam do estado de ornamento ao de texto. Tudo isto é molecularização4. Citemos também a música experimental norte americana e a revolução conceitual promovida por John Cage: sua aproximação com o Zen e as demais formas de pensamento oriental e suas conseqüências sobre o fazer musical ocidental; seus questionamentos estéticos sobre a noção de obra artística separada da vida, sua adesão a uma espécie de dadaísmo que questiona a solenidade do fazer artístico na cultura ocidental. A escuta aqui se coloca como ato não intencionado ou como uma escuta sem propósito integrada naturalmente na vida. Com relação à já citada idéia de liberação do som, Cage é mais radical do que Varèse. Há para ele, sobretudo, uma ênfase no processo, na experiência, no fazer musical em detrimento da permanência de um objeto artístico que queda aí desmistificado. O uso de qualquer som ou ruído, a liberação do som com relação aos sistemas e às 4

Podemos fazer aqui uma aproximação deste conceito de molécula com o conceito de dobra conforme delineado por Deleuze ao descrever em que medida as micropercepções desterritorializam uma escuta das macropercepções. Conforme Silvio Ferraz: "O que podemos notar é que as séries de dobras não correspondem a uma seqüência de pontos de vista de um mesmo objeto, como notamos nas variações clássicas. As séries de dobras, séries de micropercepções, correspondem às configurações (ou atualizações) de um objeto. São constituídas de experiências sensoriais simultâneas e divergentes, da intuição e do pensamento, que se cruzam, ora ressoando uma nas outras, ora se justapondo.” (FERRAZ, 1998, p. 177). Na improvisação não se trata de micropercepções aplicadas a objetos anteriormente compostos, mas de um mesmo tipo de configuração aplicada doravante ao processo em seu devir.

Na música tradicional cada músico toca uma “célula” e, com os ensaios apreende a função da célula. Na canção os músicos estão, por assim dizer, em função da melodiatexto. Na improvisação livre cada músico não sabe o que vai realmente resultar dos objetos que toca. É uma música molecular, trabalhada passo a passo, uma música feita de perto. A molécula não sabe qual será sua função no organismo…

SIMPEMUS3 estruturações é uma conseqüência e uma necessidade inerente à proposta de se enfatizar o fazer. Num texto de 1957, Cage nos diz: “o que será feito é aos poucos liberar completamente os sons das idéias abstratas a respeito deles e cada vez mais deixá-los ser unicamente e fisicamente eles mesmos”. (NYMAN, 1999, p.50). A idéia é que o compositor, o intérprete e o ouvinte estejam entrelaçados num mesmo personagem. A vontade de romper com a divisão entre vida cotidiana e arte transforma o artista em um formulador de processos, um desencadeador de experiências, um agenciador de propostas. Vida e arte se mesclam. O artista é um educador. Na livre improvisação estão presentes os elementos propostos por Cage: o engajamento com o fazer, o momento, o processo, o som, a experiência, a significação imediata e cotidiana. Trata-se de colocar em movimento um devir. Por outro lado os intérpretes estão engajados num processo intenso de diálogo e interação que gera “processos de cristalização” num sentido Varesiano. Os sons libertados das idéias abstratas em processos interativos e dinâmicos são colocados em movimento. O “problema” de Cage é que ele não quer (aparentemente), mas continua sendo o formulador das propostas. Ele é quem põe os intérpretes em movimento. O desejo pertence ao compositor/formulador. Por mais que trabalhe com o acaso é ele quem desencadeia o processo e delimita o material. É ele quem faz o lance de dados (ao menos o lance inaugural). O resultado é que cada vez menos se consegue engajar o intérprete neste projeto. É um projeto exteriorizado. Além disto, em Cage não há uma preocupação com o som em si: o que importa é o conceito de som e de processo. A livre improvisação não é assim. Não podemos deixar de citar enquanto uma fundamental referência para a nossa proposta, a prática e as reflexões de músicos como Derek Bailey e todos os grupos de free improvisation europeus e norte americanos que se ligam a uma longa história de desenvolvimento do jazz norte americano e a uma preocupação com o intérprete enquanto formulador e enunciador de discurso musical. Resumindo podemos dizer que a livre improvisação só é possível no contexto de uma busca de superação do idiomático, do simbólico, da representação, do gestual, do sistematizado, do controlado, do previsível, do estático, do identificado, do hierarquizado, do dualista e do linearizado em proveito do múltiplo, do simultâneo, do instável, do heterogêneo, do movi-

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mento, do processo, do relacionamento, do vivo, da energia e do material em si.

significativo para ele. Citamos aqui Pierre Schaeffer para ilustrar este ponto:

A escuta reduzida Para que seja possível a livre improvisação devemos ouvir, de fato, os sons. Falamos aqui, ao mesmo tempo, da percepção que é uma ação empreendida por um sujeito (ouvir), e um objeto a que supostamente esta ação se dirige (os sons). Na realidade, na perspectiva que aqui assumimos esta separação entre sujeito e objeto não ocorre e nesta expressão ("ouvir, de fato, os sons") o "de fato" deve ser colocado entre parêntesis. Isto implica, primeiramente, em assumir que a percepção é uma atividade cognitiva e que toda atividade cognitiva se dá através de um processo de configuração de problemas a serem resolvidos a cada momento. Ou seja, para nós a cognição não parte de uma realidade supostamente préestabelecida a ser percebida ou representada, mas sim, se configura a partir de um cenário (ambiente) em que se confrontam o objeto e o sujeito através de um ato particular de percepção, que emerge num determinado contexto, e que envolve tanto o objeto quanto o sujeito com sua história, seu corpo e sua linguagem. Deste modo o processo continuado do viver é que configura um mundo percebido a cada momento a partir de problemas reais. Assumindo as conseqüências desta forma de pensamento, temos que, entre outras coisas, o ato de ouvir é resultado de um processo que envolve o objeto sonoro/musical - realização acústica de um enunciado musical, fenômeno físico sonoro capaz de mobilizar/perturbar o nosso órgão auditivo - e o sujeito, num processo de configuração. Assim, "ouvir os sons" implica em um ato humano que surge a partir de uma necessidade, de uma disponibilidade e de uma prontidão configuradas na relação com uma determinada realidade acústica. Há, portanto, uma intenção de escuta que emerge como necessidade a partir de um "problema": a interação entre músicos que assumem seus instrumentos como uma espécie de extensão de suas vozes e decidem iniciar um jogo: um jogo em que o que importa é a continuidade do próprio jogo (a livre improvisação). Para Cage, que parte da idéia de silêncio, num certo sentido, toda e qualquer escuta pode se tornar um ato de composição. Pensemos na proposta contida em sua peça 3'44" em que o silêncio emoldura uma escuta intencionada. O sujeito seleciona, recorta, a partir do grande caos sonoro, aquilo que, por determinado motivo (necessidade ou disponibilidade), se torna

Assim é que, participando de uma conversação familiar entre diversas pessoas, eu passarei de um interlocutor a outro, sem desconfiar um instante da extravagante confusão de vozes, ruídos, risadas, a partir da qual eu efetuo uma composição original diferente da que cada um de meus companheiros estaria em condições de realizar por sua própria conta. (SCHAEFFER, 1993, p. 94).

Todavia, para Schaeffer, que conduz seu pensamento com base na fenomenologia de Husserl, o objeto sonoro concreto, que é um fenômeno físico-acústico, é uma realidade anterior, pré-existente e por isso, transcende às variadas percepções que dele venhamos a ter. Assim, a partir de um mesmo objeto, é possível configurar várias escutas. Mais à frente no mesmo livro, temos que: Ele (o objeto sonoro) é aquilo que permanece idêntico ao longo do fluxo de impressões diversas que dele tenho, embora estas com ele se relacionem através de minhas intenções diversas/…/ no objeto sonoro que estou a escutar sempre há mais a entender; é uma fonte de potencialidades jamais esgotada/…/ que dele eu perceba sucessivamente aspectos diversos, que ele não seja jamais igual, identifico-o sempre como este objeto aí bem determinado/…/Estas qualificações variam, como a própria escuta, em função de cada experiência e de cada curiosidade. Todavia, o objeto sonoro único, que torna possível essa multiplicidade de aspectos qualificados do objeto, subsiste sob a forma de uma auréola de percepções (idem, p.100). Acreditamos que o princípio da nossa classificação permite assinalar, para o mesmo objeto quadros diversos, de acordo com a intenção de escuta. A procura de uma tipologia absoluta é ilusória (p. 345).

Então o que é o objeto sonoro para Pierre Schaeffer? Para construir sua teoria e dentro dela, o conceito de objeto sonoro, base para a música concreta, Pierre Schaeffer distingue, genericamente, quatro formas de escuta: o ouïr, o écouter, o enténdre e o compréendre. Com o intuito de ilustrar estas formas de escuta podemos examinar algumas características da improvisação com base em duas delas: a improvisação idiomática - que é aquela que se apóia em algum idioma musical socialmente determinado e delimitado supõe uma forma de escuta que enfatiza, sem excluir as outras, o compréendre: o idioma, o sentido, o léxico, a sintaxe e enfim a história e a geografia em que se insere este idioma. Neste tipo de escuta, os sons valem por sua função dentro de

154 um sistema que os articula. Schaeffer define o termo musicalidade neste contexto. Por exemplo, quando certa freqüência (uma nota), assume certo valor expressivo dentro de um determinado discurso musical (uma melodia) articulado sobre um sistema hierarquizado e gramaticalizado (o sistema tonal), ela não vale por si mesma. Seus atributos acústicos e perceptivos se definem em função de seus relacionamentos com os outros elementos e de sua colocação dentro do discurso5. Isto é absolutamente claro no contexto de um discurso melódico tonal. Fazendo uma analogia com a linguagem verbal: o som das palavras só adquire sentido no contexto dos idiomas em que elas são pronunciadas. Este processo demonstra uma forma de configuração de escuta que surge enquanto necessidade na consolidação de uma linguagem musical comunitária. Já na improvisação livre - que é aquela que procura não se subordinar a nenhum idioma específico (e nem a eles se opor, necessariamente) - supõe-se que a ênfase recaia sobre o entendre6 que é uma intenção de escuta dirigida às características pré-musicais do som descontextualizado de sistemas abstratos ou idiomas e tomado como um objeto em si mesmo. Neste sentido, a livre improvisação se dá mais propriamente num ambiente de escuta reduzida que é segundo Schaeffer uma escuta que busca escapar tanto de uma intenção de compreender "significados" (semânticos, gestuais ou mesmo musicais no sentido de estar inserida em algum idioma) quanto de uma identificação de causas instrumentais. Ela é dirigida aos atributos do som em si, ou seja, ao objeto sonoro. Considerando o fato de que todo músico é condicionado pela sua biografia (o pré-existente: idiomas e sistemas) temos que, para sustentar esta proposta - a de uma livre improvisação - é necessário uma disciplina ou uma intenção de escuta. Schaeffer se questiona sobre a possibilidade desta intenção de escuta:

5

Pensemos numa nota no contexto de uma fuga de Bach.

6

Poderíamos imaginar uma seqüência que vai da sonoridade à musicalidade que se baseia nos balanços da escuta criados por Schaeffer e que em princípio poderiam se aplicar da seguinte maneira à livre improvisação: no início se dá, através de uma prática, uma tipologia (que é uma identificação dos objetos sonoros no seu contexto) que desemboca numa morfologia (que qualifica estes objetos em sua contextura). A partir desta dinâmica pode-se atingir (com auxílio de gravações e registros) uma análise dos objetos que daí emerge e pode-se (ou não) elaborar uma teoria das estruturas musicais - síntese abstrata - que dirá respeito unicamente àquele grupo específico.

SIMPEMUS3 …poderíamos, eventualmente, livrando-nos do banal, 'expulsando o natural', tanto quanto o cultural, encontrar um outro nível, um autêntico objeto sonoro/…/ que seria acessível a todo homem ouvinte? (SCHAEFFER, 1993, p. 247).

A escuta reduzida seria, assim, como a escuta do bebê que traz um ouvido ainda descondicionado, apesar de ainda inábil. A questão da habilidade se colocaria às vezes como um empecilho para a livre improvisação, pois o preço de ser hábil num determinado sistema (territorializado) e, por isso, capaz de reconhecer os seus traços pertinentes é ser praticamente surdo àquilo que não lhe é pertinente. Assim, é incomum e difícil a prática da improvisação entre músicos que não compartilham do mesmo idioma. É o caso de uma sessão entre um músico de jazz e um músico hindu, por exemplo. O preço de se ter uma identidade ou pertencer a um território com "membranas muito rígidas" é não conseguir uma permeabilidade que torne possível a invasão de elementos provenientes do Caos, espaço onde as energias estão soltas, informes, ainda não se organizaram em sistemas e por isso não delimitaram fronteiras e territórios. Assim, para a prática da livre improvisação, poderíamos imaginar como diria John Cage, que os sons são somente sons não geraram ainda, linguagem, representação - e que, portanto, poderiam se juntar de formas imprevisíveis e novas. No entanto, em qualquer um destes contextos, a escuta exercida pelo improvisador, visa o som produzido por ele, pelos outros músicos e também, o som que resulta da interação entre todas as atuações. Isso porque cada som introduzido tem - inevitavelmente - um peso específico e sua presença determina modificações na performance que assim se constitui enquanto um fluxo incessante de transformações. Ao mesmo tempo, cada som será introduzido devido a um ato de vontade específica voltada para os vários momentos daquela performance particular e será manifestação de um pensamento sonoro ou musical específico. No caso da improvisação livre de idiomas que propomos aqui, para que este tipo de escuta múltipla seja possível é necessário construir uma disciplina através de um empenho redobrado de atenção e concentração ou, dito de outro modo: é necessário almejar uma intenção de escuta voltada para o objeto sonoro. Trata-se da escuta reduzida conforme conceituação de Pierre Schaeffer. Como tentativa de formulação de uma ferramenta adequada a este tipo novo de escuta, Schaeffer propõe em seu Tratado o Solfejo dos Objetos.

simpósio de pesquisa em música 2006 Conclusão A experiência de se juntar músicos provenientes dos mais diversos meios, com ou sem experiência de improvisação - sem absolutamente nenhuma preparação do ambiente, na maior parte dos casos, pode resultar em fracasso e frustração para aqueles que participam: uma sensação de vazio diante de uma não-interação, um não-relacionamento, um não-acontecimento, uma prática que não cria nada de significativo, nem para os músicos, nem para eventuais ouvintes. O insucesso é a conseqüência da ausência de interação. Neste caso os ambientes não se configuram, não adquirem consistência e as performances não fluem não se sustentam. Não se delineiam estados transitórios; não há conversa. Concluímos que neste caso os músicos não são livres para "conversar" usando seus instrumentos. Ou não são capazes de constituir uma prática sem que haja um sistema que unifique os procedimentos. Haverá sempre a necessidade da imposição de algum sistema ou idioma: "vamos improvisar numa jam-session de jazz? Ah! Agora sim temos uma referência!” A resposta sobre a viabilidade da participação neste tipo de proposta depende da vivência de cada músico com o idioma proposto como ambiente. Concluímos também que, de certa forma, os músicos estão presos aos sistemas e, na maioria dos casos estão presos a tipos de escuta que privilegiam, sobretudo o parâmetro das alturas. Eles, por isto não ouvem os sons (numa perspectiva de escuta reduzida). Ou melhor, ouvem os significados dos sons dentro de um determinado sistema de referência (é o compréendre de Schaeffer).7 Num caso como esse, existe uma necessidade de se estabelecer causalidades, direcionalidades, dualidades, hierarquias, comparações etc. O som aqui se insere enquanto um signo no contexto de uma sintaxe específica. O som (o descontínuo) precisa estar articulado em frases melódicas, ritmos, encadeamentos harmônicos, contrapontos, séries etc. (o contínuo), referenciados em sistemas préestabelecidos. Enfim, é muito difícil ser livre. A este propósito vale a pena transcrever em parte uma pequena “parábola” contada por Pierre Schaeffer no "Tratado dos objetos sonoros" 7

"Por fato de código explícito, existem condicionamentos dos sons musicais praticados, por exemplo, por uma coletividade num contexto evidentemente histórico e geográfico. Opera-se assim um afastamento deliberado do evento sonoro (sem deixar de ouvi-lo) e das circunstâncias que ele revela em relação à sua emissão, para apegar-se à mensagem, ao significado, aos 'valores' de que o som é portador." (SCHAEFFER, 1993, p. 106).

155 através da qual ele nos coloca diante de sua concepção aberta da “invenção música” que se serve de objetos sonoros que não são ainda qualificados de musicais, mas que poderiam sê-lo. Trata-se do parágrafo intitulado "O menino e a folha de capim": O homo faber envelhecido só toca stradivarius. É preciso, portanto, rejuvenescer os quadros. Vamos escutar um menino que apanhou uma folha adequada, espicha-a entre as suas duas palmas e agora a sopra, enquanto o côncavo das suas mãos lhe serve de ressonador… ele escolheu, por sua própria conta, entre as fontes de sons, uma que lhe parecia das convenientes à sua atividade. Com efeito, esse menino experimenta os seus sons uns após os outros, e o problema que ele coloca é menos o da identificação do que o do estilo de fabricação. Por outro lado, a sua intenção é visivelmente 'música'. Se o resultado não parecer musical aos seus ouvintes exasperados, não se poderia negar ao autor uma intenção estética, ou pelo menos uma atividade artística… O seu objetivo é gratuito, senão gracioso; confessêmolo, ele é mesmo musical. Não satisfeito em emitir sons, ele os compara, ele os julga, acha-os mais ou menos bem sucedidos, e a sua sucessão mais ou menos satisfatória. Como havíamos dito do homem de Neanderthal, se esse menino não faz música, quem a faz então?… O que escuta então o ouvinte, mesmo negligente, mesmo reticente, mesmo hostil? Por um momento - o que não é de hábito objetos sonoros… O nosso ouvinte ficará limitado a suportar uma coleção de objetos desprovidos de sentido musical… Obrigado a escutar, pois os objetos são agressivos, ele formará, implicitamente julgamentos de valor. Chegará até a murmurar…: 'Eis aí um mais bem sucedido que os outros'… Não se escuta mais o som pelo evento, mas o evento sonoro em si mesmo (SCHAEFFER, 1993, p. 283-284).

Esta reflexão aponta para o tipo de relação que se procura estabelecer entre os músicos e entre os músicos e os sons na livre improvisação. É um tipo de interação e de pensamento sonoro não apoiado em linguagens ou sistemas de referência embora eles surjam não intencionalmente e inevitavelmente - e que busca, não a sonoridade musical convencional, mas um livre pensar sonoro.

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Emoção: a essência da expressividade na performance musical Márcia Kazue Kodama Higuchi Universidade de São Paulo Resumo Esta pesquisa faz um paralelo entre elementos observados no meio musical, assim como dados coletados em musicologia com um levantamento de informações a respeito da expressividade, na psicologia cognitiva, e a neuropsicologia, visando o entendimento do papel da emoção no processo de transmissão de idéias e/ou sentimentos através da interpretação musical. O levantamento de informações interdisciplinares referentes à expressão das emoções permitiu elaborar uma teoria no qual possibilita entender de que forma a emoção do interprete no decorrer da performance musical, pode influenciar o processo da transmissão expressiva musical. Palavras-chave: Música, expressividade, emoção.

A expressividade na composição musical A música tem um poder imenso. Tem a capacidade de causar várias reações nos estados mentais, físico e emocional do ser humano. A música pode, desde relaxar, até exaltar e excitar; transmitir sentimentos agradáveis e desagradáveis; trazer recordações; causar alegria, euforia como também tensão e medo. As emoções provocadas por essa arte são reais e podem ser extremamente puras e profundas.

cognitiva e neuro-psicologia, que permitisse compreender melhor o aspecto universal da emoção e seu papel na expressividade musical, visando compreender melhor o processo de transmissão de idéias e emoções através da interpretação musical. Prazer, espontaneidade e expressividade Quantas vezes o vi levantar-se do sofá onde estava deitado e pegar meu lugar no piano para tocar. Como ele sentia a peça — que eu tinha tocado mal, que seja dito —, numa forma completamente diferente, apesar d’eu ter trabalhado longa e arduamente nela! Assim terminava a aula, para não querer esquecer essa experiência, que tinha escutado de uma forma religiosa. Na aula seguinte, quase satisfeito com a moda imitativa que eu havia trabalhado a peça, eu a toquei novamente. Infelizmente, quando terminei, Chopin, mais uma vez, esticado sobre o sofá, levantou, com uma repreensão, sentou-se ao piano dizendo, ‘escute, é assim que deveria de ser’. E ele procedeu a tocar novamente numa maneira totalmente diferente. Eu pude responder apenas com lágrimas que essa demonstração não se assemelhava em nada com a primeira. Desencorajamento envolveu todo meu ser. Então ele sentiu pena de mim, dizendo que estava quase bom, ‘apenas não do jeito que o sinto’ (apud EIGELDINGER, 1986, p. 55 e 56)1.

Uma composição musical pode ter a capacidade de representar cenas, despertar afetos ou manifestar determinadas idéias e emoções. Esta capacidade é denominada expressividade musical. Porém não é qualquer combinação de sons que produz toda essa magia. Para conseguir transmitir um determinado sentimento ou idéia, o músico necessita de uma combinação de sons apropriados e isso envolve muito conhecimento, técnica e sensibilidade, além da capacidade de conciliar o raciocínio, a habilidade e o sentimento. Porém, uma composição com elementos expressivos não é suficiente para que as idéias e os sentimentos contemplados em uma música possam ser transmitidos aos ouvintes. No meio musical é bastante difundida a idéia de que para ocorrer efetivamente essa transmissão, é necessária uma execução musical condizente. Há vários estudos importantes (como o trabalho de MEYER, 1958) que enfatizam a questão cultural da expressividade, outros (como o livro de CHRISTIANI, 1974) fundamentam a dependência da racionalidade na questão expressiva musical. A importância da emoção na expressividade musical é bastante difundida no meio musical, mas geralmente esse conceito é defendido com argumentos empíricos. Este trabalho buscou colher dados na psicologia

De acordo com o levantamento feito por Eigeldinger, Chopin — respeitado e admirado por sua musicalidade — exigia naturalidade e simplicidade na execução pianística. Nada era mais estranho à natureza de Chopin do que exagero, fingimento e sentimentalidade. Mas a execução seca e inexpressiva também lhe era insuportável. Quando a peça era espontaneamente expressada, 1

Tradução da autora.

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com musicalidade inata, ele sentia uma grande felicidade.

muitas áreas cerebrais supérfluas, facilitando a distração.

Portanto, ao que parece, Chopin não exigia de seus alunos uma interpretação definida. Mas esperava deles uma interpretação simples e natural de acordo com suas inspirações do momento, ou seja, sempre cambiantes de acordo com seu estado de espírito. Pois ao exigir simplicidade, espontaneidade e sinceridade para conseguir a expressividade, provavelmente Chopin acreditava que a expressividade estaria vinculada à espontaneidade.

Na verdade, pensar demais no que está acontecendo causa interrupção do fluxo – até a idéia ‘Como estou fazendo isso maravilhosamente’ pode interromper o fluxo. [...] O sinal característico do fluxo é uma sensação de alegria espontânea, e mesmo de êxtase. Por ser tão bom, é intrinsecamente compensador... As pessoas em fluxo exibem um controle absoluto sobre o que estão fazendo, as reações perfeitamente sincronizadas com as cambiantes exigências da tarefa. E, embora atuem no ponto mais alto quando em fluxo, não se preocupam com seu desempenho, com a questão de sucesso ou fracasso - o que as motiva é o puro prazer do ato em si. (GOLEMAN, 1995, p.104).

Atualmente, alguns dados conhecidos pela psicologia indicam a hipótese da real existência desse vínculo. Durante duas décadas, o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi coletou histórias de máximo desempenho, no qual centenas de profissionais de várias áreas, inclusive a musical, descreveram momentos em que se superavam em uma determinada atividade. Nós entramos num tal nível de êxtase no qual parece que não existimos. Tive essa sensação várias vezes. Minha mão parece ser independente de mim, e nada tenho a ver com o que se passa. Simplesmente fico ali observando, em estado de respeito e encantamento. E a coisa simplesmente flui por si mesma. (Mihaly Csikszentmihalyi apud GOLEMAN,1995, p.102).

Essa descrição retrata o estado de um compositor nos momentos que ele julga que sua arte atinge o máximo de seu desempenho, e essa descrição é semelhante à de outras centenas de pessoas pesquisadas. O estado que descrevem é chamado de “fluxo” por Csikszentmihaly (GOLEMAN, 1995). Segundo Goleman (1995) quase todas as pessoas algumas vezes experimentam o fluxo, sobretudo quando atingem o máximo do seu desempenho ou ao conseguirem transpor os seus limites. No fluxo, a pessoa consegue se concentrar totalmente na atividade que está desenvolvendo e toda a emoção é dirigida e canalizada para a realização daquela tarefa. Assim, ela perde noções de espaço e de tempo. A qualidade da atenção em fluxo é relaxada, mas altamente concentrada. O cérebro se encontra num estado frio, e as tarefas são executadas com um dispêndio mínimo de energia mental, ativando apenas circuitos neurais sintonizados com a demanda do momento. Uma concentração forçada e contaminada de preocupações ativa

Esses dados coletados por Csikszentmihaly coincidem com algumas experiências vivenciadas por mim. Muitas vezes ao tocar piano, senti algo que pode ser descrito como êxtase, pois uma emoção intensa parecia envolver-me totalmente. As emoções sentidas foram desde uma grande alegria até uma tristeza profunda, mas mesmo assim, ao tocar, tinha a sensação que uma beleza e um prazer imensos seqüestravam toda minha mente. As mãos pareciam não ser comandadas por mim, adquirindo capacidade própria para tocarem sozinhas, realizando fraseados, nuanças de dinâmica e rubatos inusitados. Os dedos conseguiam tirar timbres lindos, alguns dos quais nunca tinha sequer ouvido, e todas essas mudanças soavam naturais. E era como se cada nota expressasse com uma profunda fidelidade, a emoção que estava sentindo. Nesses momentos, não tinha a menor noção de tempo ou espaço e mesmo quando a emoção envolvida era de tristeza, por alguns momentos, uma grande felicidade se manifestava. Quando esse fenômeno ocorria, parece que simultaneamente acontecia uma transmissão de sentimentos através da música. Mesmo as pessoas que, em circunstâncias normais, costumavam ignorar as execuções pianísticas, quando ouviam a música sendo tocada naquele estado de êxtase freqüentemente vinham comentar muito emocionadas dizendo “que música bonita”. Em contrapartida, quando durante a execução, ao invés do sentimento de prazer, a mente estava repleta de preocupações – relacionadas a qualquer aspecto — desde pessoal (horário, problema de saúde, etc), até técnico-interpretativo (dinâmica, articulação, etc) ou mesmo a preocupação em impressionar o ouvinte – a interpretação soava artificial, a emoção era inibida e a recepção do ouvinte não era comovida. Quando

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simpósio de pesquisa em música 2006 havia um elogio, geralmente referia-se à execução (técnica motora), e não mais à música em si. No começo, esses fatos eram percebidos como simples coincidências. Entretanto o aumento da freqüência fez com que essas manifestações deixassem de ser ocasionais passassem a ser relevantes, desencadeando uma observação mais apurada para verificar se haveria ou não um vínculo entre o estado de prazer e a expressividade musical. Por mais de sete anos, foram realizadas comparações empíricas entre o estado de envolvimento emocional — manifestado por músicos, professores e alunos — e a qualidade expressiva de suas execuções. Com raras exceções, a capacidade expressiva tanto dos músicos profissionais como dos estudantes, parece ser proporcional a seu estado de prazer, assim como a inibição emotiva parece ser proporcional ao estado de preocupação enfrentado tanto pelos alunos, como dos professores e intérpretes. Os alunos, após tocarem expressivamente uma peça, ao serem questionados sobre quais seriam os pensamentos envolvidos durante a execução, respondiam que estavam comprometidos emocionalmente com a música em si, sem se preocuparem com notas, tempo, dinâmica, ou qualquer outro aspecto. E uma observação muito interessante diz respeito ao fato que, nestas ocasiões, estes estudantes tocavam de uma forma peculiar. As dinâmicas nem sempre eram tocadas como foram estudadas, e uma enorme variedade de rubatos, fraseados e nuanças timbrísticas que não tinham sido trabalhados em aula, fluíam de uma forma simples e natural, sem qualquer exagero, e cada nota possuía seu próprio significado dentro do contexto musical. Todas essas variações ou nuanças não pareciam premeditadas. Ao contrário, qualquer tentativa de controle poderia interromper a expressividade. Muitas vezes, um erro bastava para que toda aquela magia dissipasse, e voltasse tudo ao seu estado normal, pois a preocupação invadia a mente dos alunos e perturbava todo o seu estado de prazer. Estas observações demonstraram haver indícios de que a expressividade esteja, de alguma forma, vinculada com o estado de prazer, pois: •

O fluxo é um estado no qual a pessoa consegue concentrar-se e integrar-se totalmente à sua







atividade, dirigindo e canalizando toda a sua emoção para execução daquela tarefa (GOLEMAN, 1995). A qualidade da atenção em fluxo é relaxada. As tarefas são executadas com um mínimo dispêndio de energia mental, ativando apenas circuitos neurais sintonizados com a demanda do momento (GOLEMAN, 1995). Portanto, se em fluxo as atividades psico-motoras e a emoção da pessoa estão concentradas na tarefa e são ativados apenas os circuitos neurais sintonizados com aquela demanda, isto significa que a emoção, fruto legítimo daquela expressão, estaria isenta de fingimento, seria autêntica. Assim, toda a emoção sentida estaria explicitamente representada por cada gesto, toque e feição da pessoa que a estivesse manifestando. Para inibir, fingir ou exagerar uma emoção, seria necessária uma concentração forçada, o que necessariamente interrompe o fluxo expressivo. Portanto seria razoável concluir que, para atingir o fluxo em uma performance musical, é necessário que essa execução ocorra isenta de preocupação, ou seja, o mais espontâneo possível.

Assim, podemos deduzir que Chopin sabia o que exigir de seus alunos para que conseguissem atingir a expressividade. Possivelmente por essa razão ele tenha repreendido seu aluno por um esforço de imitação de sua própria execução. Além disso, é ainda provável que, na sua opinião, esse caminho não levaria o aluno a atingir a expressividade desejada. Ao exigir simplicidade, espontaneidade e sinceridade para obter a expressividade na execução, Chopin também provavelmente acreditava que a expressividade estivesse vinculada à espontaneidade. A expressão das emoções Sempre gostei do velho e sábio ditado que diz: “ninguém nasce sabendo”, mas hoje eu sei que ele está incompleto. Na verdade está faltando a esse provérbio, um verbo no final da frase, como por exemplo: “Ninguém nasce sabendo falar” ou “ninguém nasce sabendo tocar piano”, etc... Se o provérbio se restringir a essas três palavras, ele se tornará incorreto pois, na realidade já nascemos sabendo e muito. Na verdade, apenas uma parte da capacidade dos seres humanos é passível de um aprendizado. Ninguém ensina um recém-nascido a mamar. Quando nascemos, o nosso organismo já conhece todas as funções vitais básicas necessárias para a nossa sobrevivência e nenhuma dessas funções é aprendida. A capacidade mental de um recém-nascido é muito restrita, assim como o seu controle motor. Por esta razão, a natureza tratou de automatizar todas estas funções vitais e ainda as tornou subconscientes. E, portanto, este é o

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motivo pelo qual o nosso corpo já nasce sabendo, pois caso contrário não seria possível a nossa sobrevivência. A maior parte das atividades e movimentos das pessoas, como o batimento cardíaco, é automática e involuntária. Geralmente, o ser humano sequer se dá conta desse conjunto coordenado de ações, realizado involuntária e subconscientemente. Outras funções, como a respiração, podem ser sentidas, e algumas delas podem, de certa maneira, ser controladas até determinado limite, mas esses processos também são automáticos e involuntários. Da mesma forma, o ser humano pode conseguir até segurar a respiração, mas apenas durante algum tempo. Também não tem recursos inatos para impedir uma sensação repentina de medo ou ansiedade, simplesmente por querer isolar-se de tais emoções. Em resumo, o controle que o ser humano tem do seu corpo é limitado. Segundo a conclusão a que chega Duchenne (apud DARWIN, 2000), até mesmo um sorriso verdadeiro não é voluntário, o que significa dizer que um sorriso proposital não consegue ser idêntico ao espontâneo, pois a autêntica expressão de alegria em um sorriso natural requer a contração de dois músculos, sendo um deles ativado apenas involuntariamente, ou seja, é impossível movimentá-lo propositadamente (DAMASIO, 1996). Portanto, a espontaneidade é importante para a expressividade por dois motivos. Além de ser importante para se manter em fluxo, há uma outra questão fundamental pela própria fisiologia do ser humano: é difícil fingir uma expressão inexistente. Em 1872, foi publicado pela primeira vez o livro The expression of the emotions in Man and Animals. Nesse trabalho, Charles Darwin (2000) divulga três constatações importantes envolvendo a questão da expressão humana, que podem inclusive colaborar para um melhor entendimento da expressividade musical: 1.

2.

3.

Um levantamento detalhado mostrou que as principais expressões exibidas pelo homem — como sofrimento, tristeza, alegria, ódio — são iguais ao redor do mundo. Portanto, as variações fisiológicas refletidas nas interpretações resultantes dos sentimentos dos músicos, seriam em muitos aspectos universais. O homem tem a capacidade para reconhecer instantaneamente as variações de expressões. Dessa forma, o ouvinte teria capacidade para identificar os sentimentos do executante. A existência do sentimento de empatia. Assim, o ouvinte, além de reconhecer, pode também sentir

a mesma emoção do executante. Esse é possivelmente o canal pelo qual o pianista transmite suas idéias e emoções ao ouvinte.

Identificação de expressões As descrições de cada expressão abordada por Darwin são minuciosas e ricas. Para poder chegar à conclusão de que todas as principais expressões exibidas pelo homem são iguais ao redor do mundo, por exemplo, Darwin colheu informações de homens e mulheres de diferentes idades e culturas, inclusive daquelas consideradas como pessoas “das mais selvagens e peculiares raças humanas”, o que significa dizer representantes de populações com pouco contato com os europeus porque, na época em que foi realizado este estudo, o mundo ainda desconhecia os fenômenos da comunicação pelos meios de comunicação de massa e da globalização. Portanto as influências culturais eram menos comuns. Atualmente, mais de um século depois2, algumas explicações sobre a fisiologia dessas expressões já são bem conhecidas. Segundo a ciência, o sistema nervoso, ao receber alguma informação ou estímulo que provoque uma emoção, ativa automaticamente uma cadeia de reações, preparando o corpo para uma resposta específica a cada situação. Assim, ao sentir raiva, “o sangue flui para as mãos, tornando mais fácil sacar da arma ou golpear o inimigo; os batimentos cardíacos aceleram-se e uma onda de hormônios, [...] energia suficiente para uma atuação vigorosa (GOLEMAN, 1995, p. 20)”. “Ao sentir amor, o conjunto das reações provoca um estado geral de calma e satisfação, facilitando a cooperatividade (GOLEMAN, 1995, p. 21). As reações procedentes das emoções são automáticas e involuntárias, influenciando todas as atividades do ser humano como a postura do corpo, a cor da pele, a feição do rosto, os gestos, a entonação da voz, a forma de expressão. Reflete-se também na forma de tocar música. Quando o pianista, por exemplo, sente raiva, o seu sangue flui para as mãos, e uma onda de hormônios gera uma energia suficiente para uma atuação vigorosa. Isso fará com que todo o seu modo de tocar seja modificado. Portanto, existe uma forte propensão para que – quando um músico estiver com raiva – seu corpo manifeste esse sentimento, produzindo um toque fique mais rígido, um ritmo mais marcado e um fraseado mais agressivo, ao passo que, quando este mesmo 2

Pesquisas posteriores como de Paul Ekman (1973), concluíram que a expressões tem componentes tanto universais como culturais.

simpósio de pesquisa em música 2006 músico estiver sentindo amor, o seu toque se torne mais terno, com o ritmo menos marcado e o fraseado mais expressivo. Retomando os estudos de Darwin, o ser humano tem a capacidade de reconhecer as expressões de seu semelhante. Para reforçar esta conclusão, Darwin descreve uma pesquisa realizada por Duchenne, que mostrou três fotos de um mesmo homem a 24 pessoas. A primeira exibia a sua expressão passiva habitual. A segunda, um sorriso espontâneo que foi imediatamente reconhecido por todos, que o viram como fiel e natural. Ao mostrar a terceira com um sorriso artificial, três das “24 pessoas sequer conseguiram dizer do que se tratava, enquanto as outras, apesar de perceberem que a expressão era próxima de um sorriso, deram respostas como “uma piada maliciosa”, “tentando rir”, “risada forçada”, “sorriso pela metade”, etc. (DARWIN, 2000, p. 191). Portanto, a associação dessas explicações nos leva a acreditar que se a expressão humana está alicerçada em bases fisiológicas, este terreno é também comum e dá origem à expressividade interpretativa musical. Tom do sentimento Chopin, em seu Projet de Méthode (apud EIGELDINGER, 1986), escreveu que a música é a manifestação de nossos pensamentos e sentimentos através dos sons, e que a linguagem indefinida do homem é som. Música, a língua indefinida. Mas, a análise de alguns estudos realizados na área da neurociência fornece claros indícios de que a música poderia ser bem mais do que uma linguagem indefinida. De acordo com o neurologista Oliver Sacks, tom, ênfases e inflexões têm a capacidade de manifestar nossos pensamentos e sentimentos. Formada por tons, ênfases e inflexões, a música provavelmente também possui a mesma capacidade de manifestação. Entretanto para Sacks, ao contrário do que Chopin acreditava, o som não é uma linguagem indefinida. Ele pode ser uma forma de expressão até mais precisa do que a própria palavra. De acordo com Sacks, afásicos são pessoas que, em virtude de uma lesão em uma determinada região do lado esquerdo do cérebro3, perdem a capacidade de compreender as palavras em si. Elas têm a percepção do som, da entoação e da expressão daquilo que lhes é dito, mas não são capazes de distinguir as 3

Conhecida como lobo temporal.

161 palavras como tais. Escutam os sons das palavras, mas é como se estivessem ouvindo um idioma estrangeiro. Sacks comenta que apesar da incapacidade de compreender as palavras, os afásicos entendem quase tudo daquilo que lhes é dito. Parentes e enfermeiras, que conheciam bem aqueles pacientes, às vezes mal conseguiam acreditar que eles eram mesmo afásicos. Aliás, para poder comprovar a afasia, o neurologista precisava fazer um esforço extraordinário para suprir tom de voz, ênfase ou inflexões sugestivos, pois se o médico falasse com naturalidade, eles percebiam parcial ou até mesmo totalmente o sentido do que lhes era dito. A fala – a fala natural – não se constitui apenas por palavras [...] só em proposições, ela consiste na expressão vocal – em que exprimimos tudo o que queremos dizer com todo o nosso ser [...] Essa era a chave para a compreensão dos afásicos, mesmo quando eles não conseguiam entender coisa alguma da palavra em si. Pois, embora as palavras, as construções verbais em si mesmas possam nada transmitir, a linguagem falada normalmente é impregnada de tom, envolta em uma expressividade que transcende o verbal; e é precisamente essa expressividade, tão profunda, variada, complexa e sutil que é perfeitamente preservada na afasia (SACKS, 2001, p.97).

Para Sacks, as pessoas que convivem estreitamente com afásicos a princípio não percebem grandes mudanças. Gradativamente, porém, passam a perceber uma grande mudança na qual a compreensão da fala dos afásicos é substituída por uma imensa intensificação da percepção das expressões vocais imbuídas de emoção. Em outras palavras, eles desenvolvem uma sensibilidade notável quase infalível ao tom e ao sentimento. Portanto, parentes, médicos, amigos e enfermeiras que convivem com afásicos têm a sensação de que não se pode mentir para eles, já que como não compreendem as palavras, não podem ser enganados por elas. Além disso, aquilo que os afásicos conseguem compreender, acaba tendo uma precisão infalível. As expressões que acompanham as palavras são espontâneas e involuntárias e essas não podem ser simuladas ou falsificadas, como se pode tão facilmente fazer com palavras. A capacidade desenvolvida por afásicos descrita por Sacks é uma grande evidência de que o ser humano possui a capacidade de perceber a expressão de emoções por meio de “tons”. E não são apenas os afásicos que teriam esse dom de

162

SIMPEMUS3

reconhecer o “tom do sentimento” (SACKS, 2001). Apesar das pessoas sem afasia não terem esse dom tão desenvolvido quanto os afásicos, esse dom é natural a todos os seres humanos. Empatia: via de transmissão da emoção Na empatia encontramos mais uma possibilidade de explicação do processo da transmissão de sentimento do intérprete para o ouvinte. Uma vez que a emoção do intérprete é reconhecida pelo ouvinte através do tom, a empatia viabiliza naturalmente a transmissão dos sentimentos. Segundo Darwin: O sentimento de empatia é normalmente explicado pelo fato de que, quando vemos ou sabemos do sofrimento de alguém, a idéia do sofrimento é tão fortemente evocada que nós mesmos sofremos... é surpreendente como a empatia pelo sofrimento alheio pode despertar as lágrimas mais facilmente do que a nossa própria aflição... Causa ainda mais impressão que a empatia pela felicidade ou sorte daqueles que amamos ternamente provoque em nós essa mesma reação...

Portanto, pelo que foi tratado até agora, para que uma música tenha capacidade para influenciar partes “ocultas da alma” e das “esferas sentimentais” dos ouvintes, são necessárias:

3. 4. 5.

Uma interpretação condizente com esse propósito A identificação pelos ouvintes dos elementos expressivos presentes na música A empatia por parte do ouvinte.4

Conclusão O poder da música em expressar sentimentos é reconhecido desde a antiga Grécia, porém uma composição musical com elementos expressivos não seria suficiente para que as idéias e os sentimentos imbuídos na música fossem transmitidos aos ouvintes. Para possibilitar essa transmissão, seria necessária uma interpretação condizente com esta proposta. Apesar da questão cultural e a racionalidade influir diretamente na expressividade, os dados interdisciplinares apresentados nesta pesquisa levam-nos a compreender que a expressão humana está alicerçada nas mudanças fisiológicas resultantes da emoção do intérprete, e este terreno é também comum e dá origem à expressividade interpretativa musical, reforçando a idéia defendida por vários educadores musicais de que a emoção no momento da execução musical é fundamental para uma interpretação expressiva, não é mito ou folclore, mas é real.

__________________ 4

1. 2.

Músicas que contenham elementos expressivos A compreensão desses elementos pelos intérpretes

Embora a questão da parte da empatia do ouvinte seja um assunto de extrema relevância, a sua abordagem foge ao escopo desta pesquisa, pois trata-se de um tema muito complexo, profundo e extenso.

Referências CHRISTIANI, Adolf. F. The principles of expression in pianoforte playing. New York: Da Capo Press, 1974. DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. DARWIN, Charles. A expressão das emoções no homem e nos animais. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. GARDNER, Howard. Estruturas da mente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional. Rio de Janeiro: Objetiva. 1995 EIGELDINGER, Jean-Jacques. Chopin pianist and teacher. Nova York: Cambridge University Press, 1986. In: MEYER, Leonard. The Meaning of Emotion in Music. Chicago: University of Chicago Press, 1956. SACKS, Oliver. O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2001. SCHERER, K. R.; EKMAN, P. Approaches to Emotion. Hilsdale: Lawrence Erlbaum, 1984.

Estrelinhas brasileiras: um paralelo entre canções folclóricas brasileiras e internacionais Maria Ignês Scavone de Mello Teixeira Pontifícia Universidade Católica do Paraná Resumo O trabalho aqui apresentado começou no início da década de 1990, em um estudo minucioso sobre o paralelo a ser estabelecido entre as peças contidas no primeiro livro para piano do Método Suzuki, que é composto por dezenove canções folclóricas internacionais, e a adaptação de sua harmonia e tonalidades a dezenove músicas folclóricas brasileiras. O título Estrelinhas Brasileiras é devido ao fato de que Estrelinhas é o nome de uma peça emblemática do repertório do Método Suzuki. É uma conhecida melodia do folclore francês, tendo inclusive sido adaptada pelo compositor Wolfgang Amadeus Mozart com o título: “12 Variações sobre: Ah! Vous dirai-je, Maman” KV 265. Shinichi Suzuki (1900-1999), músico japonês criador do método que leva seu nome, também fez variações sobre o tema das Estrelinhas (em inglês Twinkle, twinkle little stars), e os diferentes ritmos são utilizados como exercícios técnicos de grande valor no desenvolvimento pianistico. Suzuki (1983) organizou as músicas de seu primeiro volume, com um grau progressivo de adiantamento de forma que ao ultrapassarem as dificuldades técnicas das peças musicais, os alunos evoluam no domínio do instrumento. Estrelinhas Brasileiras é portanto, uma coletânea de melodias folclóricas do nosso cancioneiro, adaptadas para o estudo de piano para principiantes, com aspectos similares aos encontrados no Volume I do Método Suzuki, aproveitando deste, conhecimentos e habilidades adquiridas e dificuldades já vencidas nos acompanhamentos, tonalidades e melodias. Estreitar o contato com nossas raízes musicais, procurando divulgar as canções folclóricas brasileiras no âmbito nacional e internacional, sobretudo nos paises onde o Método Suzuki é adotado, é ainda outra intenção do livro Estrelinhas Brasileiras.

Algumas considerações sobre o Método Suzuki ou Método da Educação do Talento Musical O método da educação do talento musical, Método Suzuki, foi criado no Japão pelo violinista e pedagogo Shinichi Suzuki (19001999), na década de 1950 e é baseado nos princípios do aprendizado da língua materna. O termo Educação do Talento é uma alusão ao fato de que a aquisição dos conhecimentos da língua materna é acessível a qualquer criança. O aprendizado musical segundo o modelo do Método Suzuki, é semelhante ao do aprendizado da língua materna, o que levou o músico a acreditar que “talento não é um acaso do nascimento” (SUZUKI, 1983, p. 9), pois tratase de educar e lapidar o talento natural que cada ser humano traz dentro de si. Suzuki, (1983), costumava dizer “no Japão todas as crianças falam japonês!” (p.11), idioma complexo, como qualquer outro, mas tão fácil para as crianças japonesas. Ele observou que todas as crianças aprendem a falar a língua materna, por mais difícil que seja; falam e entendem com desenvoltura e naturalidade seu idioma, num processo gradativo e sem grandes dificuldades.

Defendia ainda o músico japonês que as habilidades naturais aparecem através da prática: o recém-nascido ouve sua mãe e familiares falando, e com um ano de idade aproximadamente, começa a repetir as primeiras palavras como “mamãe, papai”, até começar a formular pequenas frases. Então, por volta dos dois anos de idade, já possui um vocabulário bastante extenso, e aos quatro anos começará a ter as primeiras noções da escrita e leitura de sua língua materna. O mesmo processo é aplicado no Método da Educação do Talento Musical, ou Método Suzuki; as crianças criadas num ambiente musical adequado, poderão adquirir habilidade musical e chegarão a dominar seu instrumento, com a mesma facilidade com que aprendem a sua língua materna. As crianças que iniciam cedo o estudo de um instrumento pelo Método Suzuki, têm encontrado rápido domínio do aprendizado, pois sua didática é facilitadora da aquisição da prática instrumental. Os recursos indicados por essa metodologia incluem ouvir e praticar o repertório, desenvolvendo em primeiro lugar o ouvido musical, a coordenação motora e habilidades técnicas no instrumento. “Nenhum talento é pequeno demais para uma tentativa” (SUZUKI, 1993, p. 38).

164 Implicações da Idéia da Língua Materna Suzuki (1983), usou algumas palavras chave no decorrer do desenvolvimento de suas teorias que são muito utilizadas para nortear a prática educativa musical pelos professores que aplicam o método, como: “educação é amor” (p. 7) , “talento não é um acaso do nascimento” (p. 9), “habilidade gera habilidade, habilidade gera sucesso, sucesso motiva” (p. 13) “boas condições ambientais produzem habilidades superiores” (p. 19) e defendia ainda o respeito à individualidade, entre outros conceitos. No que diz respeito à “educação é amor” (p. 7), o papel dos pais tem uma especial relevância dentro do Método Suzuki, que possui a simbologia do triângulo eqüilátero, ou seja, os pais, os alunos e os professores, têm a mesma importância, na construção do conhecimento musical dos educandos. O comparecimento dos pais para acompanhar as crianças pequenas na aula de música, e no estudo em casa, é encorajado, porque promove melhores resultados de aprendizagem. Esta presença traz o incentivo da coragem, da iniciativa, da responsabilidade e proporciona momentos de participação efetiva dos pais na educação musical da criança. “Estudos revelam que inúmeras pessoas destacadas e originais em suas realizações, foram estimuladas pelos pais ou outros parentes desde a infância” (FERGUSON, 1938, p. 75). A construção de um ambiente ideal para facilitar o desenvolvimento das habilidades musicais das crianças, é bastante indicado pelo sistema Suzuki de ensino musical. Suzuki (1983), refere-se a este aspecto acreditando que o indivíduo recebe grande influência do meio. O ambiente musical pode e deve ser estimulado em casa não somente pelo estudo do instrumento, mas pelo contato com obras musicais, por meio da audição de gravações e também pela presença constante em salas de concerto. As canções folclóricas cantadas pelos pais e familiares desde o nascimento da criança possuem grande significado na construção do conhecimento musical e do imaginário infantil. “Muitos de nós guardamos no inconsciente, lembranças de acalantos associados a um colo quentinho, fragmentos de canções que, ao serem entoadas,remetem-nos à infância” (FONTOURA E SILVA, 2001, p. 1). Ainda como agentes facilitadores do processo de aprendizagem, cabe aos pais tomar algumas providências em casa, como levar a criança a ouvir diariamente o repertório que

SIMPEMUS3 aprenderá no instrumento, do mesmo modo como o bebê ouve sem interrupção todos os sons da linguagem de seu idioma. A repetição agrada as crianças, pois é comum verificarmos que elas gostam de ouvir as histórias repetidas vezes, assim como cantar e ouvir as mesmas canções. “Nós temos que praticar e educar nossos talentos, isto é repetir as atividades até que elas aconteçam naturalmente, de modo fácil e simplesmente” (SUZUKI, 1993, p. 43). Após memorizar todas as melodias pelo fato de ouvir, o processo de aprendizado do instrumento será facilitado assim como acontece com o aprendizado das palavras do vocabulário da língua materna. A prática de ouvir ajuda a desenvolver a habilidade musical com mais naturalidade. O respeito à individualidade vai levar os educadores musicais e os pais a fazerem uma leitura detalhada de cada criança, observando cada passo de seu desenvolvimento para que o aprendizado musical seja natural, tornando o ato de tocar lúdico e prazeroso. Estrelinhas Brasileiras e o Método Suzuki As canções folclóricas em geral são parte da cultura de uma nação. Elas já são assimiladas pelos desde a mais tenra idade, quando os pais cantam para seus filhos. Estes entram em contato com as músicas por meio da voz de adultos, de outras crianças e ouvindo gravações. A afetividade que acompanha a vivência musical infantil junto aos seus familiares, torna essa experiência prazerosa, divertida e de fácil aprendizado. O conhecimento adquirido das melodias folclóricas desde a primeira infância, quando as crianças ouvem e repetem essas canções, resulta na familiaridade dos temas musicais nelas encontrados, na memória e no imaginário infantil, como os sons da sua língua materna. As canções que conhecidas e cantadas, tornam-se muito mais fáceis de serem tocadas, da mesma forma como no aprendizado do idioma natal, ou seja, torna-se mais fácil escrever as palavras conhecidas que são pronunciadas com desenvoltura. Este é portanto o processo da iniciação de um instrumento musical pelo método Suzuki: conhecer as músicas pela audição para depois aprender a tocá-las. Este pensamento levou Suzuki (1983) a desenvolver seu método iniciando com as canções folclóricas internacionais, que são muito familiares às crianças, o que é um fator que facilita a execução das peças no instrumento musical.

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simpósio de pesquisa em música 2006 Na elaboração do livro Estrelinhas Brasileiras, foi utilizado o mesmo raciocínio para a determinação dos seus objetivos. As canções folclóricas brasileiras, em geral conhecidas pelas crianças, e são portanto facilitadoras no exercício do aprendizado do piano, pois suas melodias já se encontram sedimentadas na sua memória .

(KOPPELMAN, 1978, p. 2). O aprendizado das canções contidas no livro Estrelinhas Brasileiras, utilizando o mesmo processo didático apresentado no Método Suzuki, poderá enriquecer o repertório pianístico infantil, de modo natural, se levarmos em conta o fato das crianças já conhecerem as melodias do folclore brasileiro, podendo dominá-las com facilidade.

Cada música do volume I do Método Suzuki possui uma correspondente brasileira, no que diz respeito à tonalidade, à harmonia, ao caráter, à dinâmica, à alternância melódica das mãos esquerda e direita, e foram adaptadas peças em uníssono no mesmo padrão do livro do Método Suzuki, procurando inclusive manter sempre que possível o final semelhante nas duas versões. A parte harmônica das músicas ali contidas, segue padrões muito semelhantes aos do método japonês, utilizando os baixos de Alberti, acordes perfeitos maiores e inversões, para observar o paralelo estabelecido entre as canções internacionais e as brasileiras.

Resgatar pela audição, pela apreciação e pela interpretação as músicas do folclore brasileiro, assim como ampliar a técnica pianística dos alunos principiantes pelo método aqui citado, foi a principal preocupação na elaboração deste trabalho, sabendo também que “a compreensão áudio-oral auxilia o fluxo musical e a linha rítmica a serem introduzidos”, como mostra Patkin (1997), no prefácio do livro aqui apresentado.

No ensino de piano, a coordenação das mãos direita e esquerda, é um fator que requer muito trabalho dos principiantes, sejam eles adultos ou crianças. No Método Suzuki, o primeiro livro se comparado aos primeiros livros de outros métodos de iniciação, possui peças bem mais complexas, principalmente para a mão esquerda, mas que com a aplicação da metodologia adequada são facilmente assimiladas. O livro Estrelinhas Brasileiras observa a mesma complexidade, em se tratando de alunos iniciantes. “Suzuki acreditava que o primeiro princípio no estudo de um instrumento é aprender a ouvir”

As canções já conhecidas pelas crianças lhes trazem prazer pela familiaridade, pela facilidade com que as aprendem a tocar, e causam encantamento aos adultos ao vê-las executá-las com habilidade no instrumento. “Habilidade gera sucesso, e sucesso motiva” (SUZUKI, 1993, p. 13). As semelhanças encontradas nas peças da coletânea brasileira – Estrelinhas Brasileiras com o método de canções folclóricas internacionais que o inspirou – Método Suzuki, nos mostram a beleza das canções populares infantis, e das bases culturais das diferentes nações. As cantigas originárias das raízes de uma cultura são apreciadas, sobrevivem ao longo dos anos, e devem ser valorizadas. “Uma canção folclórica é como uma corrente feita de elos invisíveis, porém fortes, tão fortes, a ponto de unir países, continentes, um planeta inteiro”. (FONTOURA E SILVA, 2001, p. 1).

Referências FERGUSON, Marilyn. A Conspiração Aquariana. Rio de Janeiro: Record, 1995. FONTOURA, Mara; SILVA, Roberto Lydio. Cancioneiro Folclórico Infantil: um pouco mais do que já foi dito. Curitiba: Cancioneiro, 2001. KOPPELMAN, Doris. Introducing Suzuki Piano. San Diego: Dichter Press, 1978. SUZUKI, Shinichi. Educação é Amor. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 1983. SUZUKI, Shinichi. Suzuki Piano School. Tokio: Zen-on Music, 1978. TEIXEIRA, Maria Ignês Scavone de Mello. Estrelinhas Brasileiras. Curitiba: Editora UFPR, 1997.

Significação musical: produções a partir do “fazer musical” e de histórias de relação com a música Patrícia Wazlawick Universidade Federal de Santa Catarina Resumo O objetivo deste texto é discutir a significação musical ao tecer uma interface interdisciplinar entre aspectos da Musicologia, Musicoterapia e Psicologia Histórico-Cultural. Trabalhamos com aportes teóricos de Reimer, Meyer, Martin, Stige, Ruud, Vygotski e Luria. Neste “interjogo” enfatizamos que a significação musical pode ser tecida a partir da relação dinâmica entre os elementos propriamente musicais ao estarem atrelados à construção de significados e sentidos, por sujeitos em relação, a partir de suas vivências e experiências nos contextos histórico-culturais. Os significados e sentidos da música demonstram sua utilização viva e a constante movimentação de sujeitos implicados com a atividade musical, que constituem esta atividade enquanto ela também se faz constituinte deles. Palavras-chave: significação musical; significados e sentidos da música; perspectiva histórico-cultural.

Apontamentos iniciais Este texto pretende discutir a questão da significação musical a partir de uma interface interdisciplinar entre temáticas da Musicologia, Musicoterapia2 e da perspectiva HistóricoCultural da Psicologia. Nesta trama existe a possibilidade da significação musical emergir das objetivações musicais ao estarem articuladas e situadas com os/nos momentos das histórias de relação com a música vividas por sujeitos concretos. Neste ponto a significação musical passa a contemplar também a idéia de produção de significados e sentidos da música. Ao direcionarmos a compreensão pelo viés da Psicologia Histórico-Cultural, percebemos que a música é criada pela utilização cultural e pessoal dos sons. A música age sobre a cultura que lhe dá forma e de onde ela deriva, ao mesmo tempo em que se insere na estrutura dinâmica onde ela própria se formou (TOMATIS & VILAIN, 1991). Está inserida nas várias atividades sociais, donde decorrem múltiplos significados. A cultura dá os referenciais, bem como os instrumentos materiais e simbólicos que cada sujeito se apropria para criar, tecer e orientar suas construções, neste caso, as atividades criadoras e musicais. Quando se vivencia a música se relaciona com a matéria musical em si 2

De acordo com o musicoterapeuta norte-americano Dr. Kenneth Bruscia, “a musicoterapia é transdisciplinar por natureza. Isto significa que ela não é uma disciplina isolada, singularmente definida e com fronteiras imutáveis. Ao contrário, ela é uma combinação de muitas disciplinas em torno de duas áreas: música e terapia [...]. Disciplinas relacionadas com a música se fundem com as disciplinas relacionadas com a terapia para formar o híbrido designado de musicoterapia” (Bruscia, 2000, p.8). Na área da música pode-se citar, dentre as disciplinas, também a Psicomusicologia, Etnomusicologia, Musicologia e Nova Musicologia.

(resultado da relação de seus elementos) e com toda uma rede de significados construídos no mundo social. A atividade musical, enquanto integrante de uma cultura, criada e recriada pelo fazer reflexivoafetivo do homem, é vivida no contexto social, histórico, localizado no tempo e no espaço, na dimensão coletiva onde pode receber significações que são partilhadas socialmente, e sentidos singulares que são tecidos a partir da dimensão afetiva e dos significados compartilhados. Desta forma, falamos de vivências coletivas e singulares da música, sempre em meio ao contexto históricosocial. Entendendo a música como um fazer que se constrói pela ação do sujeito em relação no contexto histórico-cultural, entendemos o sujeito como constituído e constituinte do contexto no qual está inserido. De acordo com Zanella (1999), “todo indivíduo enquanto ser social insere-se, desde o momento em que nasce, em um contexto cultural, apropriando-se dele e modificando-o ativamente, ao mesmo tempo em que é por ele modificado” (p. 153). As manifestações culturais derivam da atividade humana conjunta, assim como as características singulares do sujeito, sendo social e historicamente constituídas. As atividades culturais contribuem, em relação às significações engendradas e apropriadas pelos sujeitos que as executam, para a constituição dos sujeitos (p. 153). Configura-se, então, uma dinâ-mica entre sujeito, contextos sociais, cultura, linguagem, pensamento, atividade, emoções, sentimentos e dimensão artístico-criadora, como visto em Vygotski (1987, 2003), Geertz (1989), Caroll (1987), Maheirie (2001, 2003). Sendo assim, discutiremos neste artigo, os significados e sentidos de acordo com a Psicologia

simpósio de pesquisa em música 2006 Histórico-Cultural, a significação musical de acordo com concepções estéticas, e na interface com a Musicoterapia, as questões de como pode se dar a “construção” desta significação. Significados e Sentidos Vygotski (1987, 1992) e Luria (1986), no estudo do pensamento e da linguagem como funções psicológicas superiores, apontam para a mediação semiótica na constituição da consciência humana. A palavra é tomada como a unidade fundamental da linguagem. Nesta posição ela apresenta dois componentes principais: o primeiro é sua referência objetal, pois designa um objeto, traço, ação ou relação; o segundo é o seu significado, compreendido como a função de separação de determinados traços no objeto, sua generalização e a introdução em um determinado sistema de categorias (LURIA, 1986). Tanto Vygotski quanto Luria observaram que estes dois componentes da palavra não permanecem imutáveis. “A palavra constitui-se em um aparelho que reflete o mundo externo em seus enlaces e relações [...] à medida que a criança se desenvolve, muda o significado da palavra, quer dizer que também muda o reflexo daqueles enlaces e relações que, através da palavra, determinam a estrutura de sua consciência” (Vygotski citado por LURIA, 1986, p. 44). Segundo Luria (1986) o significado é “o sistema de relações que se formou objetivamente no processo histórico e que está encerado na palavra” (p. 45). Quando se assimila o significado da palavra, domina-se a experiência social, refletindo o mundo com plenitude e profundidade diferentes. Segundo Vygotski (1992) o significado de uma palavra reflete a união ou a unidade do pensamento e da linguagem. Diz ele: “uma palavra carente de significado não é uma palavra, é um som vazio” (p. 289). O significado é o traço necessário que se faz constitutivo da própria palavra, é uma generalização ou um conceito conferido por sua utilização no contexto histórico-social, que surge como um fenômeno do pensamento, construído e compartilhado em uma coletividade. Sendo assim, o significado não é permanente, é uma formação dinâmica, posto que varia de acordo com a mudança das formas de funcionamento do pensamento. O sentido, por sua vez, configura o “significado individual da palavra, separado deste sistema objetivo de enlaces; está composto por aqueles enlaces que têm relação

167 com o momento e a situação dados” (LURIA, 1986, p. 45). O sentido pode designar algo completamente diferente de pessoa para pessoa e em circunstâncias diversas, pois do significado objetivo da palavra a pessoa separa aquela “parte” que lhe interessa, de acordo com a situação, e configura o sentido. Este está diretamente ligado ao uso da palavra, de modo idiossincrático. A mesma palavra possui um significado, formado objetivamente ao longo da história e que, em forma potencial, conserva-se para todas as pessoas, refletindo as coisas com diferente profundidade e amplitude. Porém, junto com o significado, cada palavra tem um sentido, que entendemos como a separação, neste significado, daqueles aspectos ligados à situação dada e com as vivências afetivas [grifo nosso] do sujeito (LURIA, 1986, p. 45).

Na base do sentido encontra-se a percepção do que o falante quer precisamente dizer, bem como quais são os motivos que o levam a efetuar a alocução verbal. Assim, o sentido é o elemento fundamental da “utilização viva”, ligada a uma situação concreta afetiva (emoções e sentimentos) por parte do sujeito. Relacionando significado e sentido, Maheirie (2003), aponta, em base a Vygotski, que o significado engloba a dimensão coletiva, ou seja, as significações que são vividas coletivamente. O sentido, por sua vez, envolve o vivido de forma singular. Ambos são produzidos no contexto social, uma vez que é impossível descolar o sujeito de seus contextos. O sentido é uma formação dinâmica e complexa que tem zonas de estabilidade diferente, sendo o significado uma dessas zonas de sentido, por sua vez, aquela mais estável, um pouco mais precisa. Ao estar de acordo com as vivências nos diferentes contextos, o sentido que a palavra adquire pode se transformar. Existe, segundo Vygotski (1992), um dinamismo entre significados e sentidos das palavras. Compreende o autor que “a palavra em sua singularidade tem só um significado. Mas este significado não é mais que uma potência que se realiza na linguagem viva e no qual este significado é tão somente uma pedra no edifício do sentido” (p. 333). O significado da palavra pode, então, ser enriquecido com o acréscimo dos sentidos procedentes do contexto, que mudam constantemente de um sujeito a outro, inclusive para o mesmo sujeito em diferentes situações. A palavra cobra sentido no contexto da frase, mas a frase o toma por sua vez no contexto do parágrafo, o parágrafo o deve ao contexto do livro e o livro o adquire no contexto de toda a criação

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SIMPEMUS3 do autor. O verdadeiro sentido de cada palavra está determinado, em definitivo, pela abundância dos elementos existentes na consciência referidos ao expresso pela palavra em questão. Segundo Pauhlan, o sentido da Terra está no Sistema Solar, que complementa a idéia de Terra; o Sistema Solar tem sentido na Via Láctea e o sentido da Via Láctea..., quer dizer que nunca abarcamos o sentido completo das palavras. A palavra é uma fonte inesgotável de novos problemas, seu sentido nunca está acabado. Em definitivo, o sentido das palavras depende conjuntamente da interpretação do mundo de cada qual e da estrutura interna da personalidade (VYGOTSKI, 1992, p. 334).

Sendo assim, o “sentido” requer e pressupõe que exista “relação”. Aí vários movimentos são possíveis: as palavras podem dissociar-se de seu sentido; podem mudar de sentido; os sentidos podem modificar as palavras; o sentido pode separar-se de uma palavra e pode somar-se a outras; as palavras podem ser substituídas sem alterar-se o sentido. Movimentos que apontam para relações entre sentido e palavra, no plano que interliga estes signos, e que são possíveis graças aos movimentos engendrados por sujeitos que estão em relação, articulando-os em contextos de vida. Nesta dinâmica entre significados e sentidos, a dimensão objetiva não pode ser descolada da dimensão subjetiva. O sujeito existe e relaciona-se no todo das dimensões objetivas e subjetivas, que se entrecruzam, que se afirmam, que se formam uma na outra, que se negam, onde suas ações são sentidas, significadas, onde existe a estreita relação entre pensamento, emoção e sentimento, onde a vida se realiza e só é possível nesta totalidade dialética. Significação em Música Concepções advindas da área da Musicologia e Estética sobre a experiência musical remetem ao fato de que a música tem um significado e que este significado é comunicado para quem a faz e para quem a ouve. Meyer (1956) ao estudar o tema das emoções e significados na música retoma as conhecidas idéias estéticas sobre as posições absolutista e referencialista do significado musical. Reimer (1970) compartilhando das idéias de Meyer (1956) ressalta que os termos “absolutismo” e “referencialismo” indicam “onde ir” para encontrar o significado e o valor da obra de arte.

A posição absolutista indica que a significação musical encontra-se exclusivamente no próprio trabalho de arte, nas relações estabelecidas intrinsecamente na composição musical. Esta posição prima por um significado abstrato, intelectual, intramusical (MEYER, 1956). Reimer (1970) complementa que no absolutismo o significado da obra está nela mesma, é para ser encontrado dentro dela. A posição referencialista explica que a música comunica significados que se referem ao mundo extra musical dos conceitos, estados e caráter emocional, idéias, atitudes, eventos que a obra se “refere”, ou seja, significados que seriam encontrados fora de seu contexto, fora de suas qualidades puramente artísticas. A função da obra de arte seria ajudar a entender, fazer vivenciar algo que está “fora” dela. A posição absolutista admite outras duas posições: a formalista e a expressionista. O formalismo absoluto diz que o significado da música é puramente intelectual, existindo a partir da percepção e da compreensão das relações musicais na composição. Os sons na música significam “somente eles próprios” (REIMER, 1970, p. 20). Por reconhecer e apreciar a “forma pela forma” prima apelo aspecto do significado advindo de uma compreensão intelectual-racional. “Os sentimentos e emoções definidos não são suscetíveis de serem personificados na música. Ao contrário, as idéias expressas pelo compositor são inicialmente e principalmente de natureza puramente musical” (p. 21). O expressionismo vinculado ao absolutismo defende a idéia de que o significado da música reside na percepção e compreensão das relações musicais do trabalho artístico, sendo estas relações capazes de estimular sentimentos e emoções no ouvinte (MEYER, 1956). Concorda com o formalismo quando diz que o significado e o valor da obra de arte é para ser encontrado nas qualidades estéticas da obra. Não aceita os significados extra-musicais do referencialismo, mas aponta que a relação da arte com a vida deveria ser reconhecida (REIMER, 1970). Os expressionistas absolutos acreditam que “os significados emocionais expressivos emergem em respostas à música e que estes existem sem referência ao mundo extramusical de conceitos, ações e estados emocionais humanos” (MEYER, 1956, p. 4). Os expressionistas referenciais dizem que a expressão emocional depende da compreensão do conteúdo a que a música se refere fora dela. Mesmo com todas estas tentativas de explicação sobre o que a música venha a significar, percebe-se que não existem significados universais

simpósio de pesquisa em música 2006 da música. Ao se considerar a existência de significados específicos exclui-se as características culturais bem como espaços-temporais presentes nos diversos momentos da história humana. Além disso, não se pode esquecer que estes estudos acerca da significação musical baseiam-se no mundo sonoro da música ocidental. Alguns pontos falhos podem ser encontrados nestas posições. Meyer (1956), salienta que a posição expressionista absolutista não conseguiu explicar os processos nos quais padrões sonoros percebidos são experenciados enquanto sentimentos e emoções. Já os formalistas apresentam dificuldade de explicar como uma sucessão abstrata, não-referencial de notas, torna-se significativa, ou seja, não conseguem explicar em que sentido tais padrões musicais podem ter significado, ao mesmo tempo em que não explicam a relação que possa existir entre a passagem do significado musical para o significado em geral. Meyer indica que uma possibilidade para este impasse seria de as duas posições – absolutista e referencialista – deixarem de ser oponentes e tornarem-se aliadas, uma vez que “os mesmos processos musicais e comportamentos psicológicos similares originam ambos os tipos de significado, sendo que ambos deveriam ser analisados caso se queira entender as variedades da experiência musical” (MEYER, 1956, p. 4). Contrapondo a estas posições, percebe-se que os sentimentos e as reações despertadas pela música não são iguais para todas as pessoas nas diversas épocas e lugares, mas que seriam produtos do experenciar humano. É difícil haver uma generalização que explique a comunicação e a significação musical, já que este processo é dialético e acontece inserido na dimensão cultural, por meio da ação dos sujeitos. Esta idéia também pode ser verificada em Maheirie (2003). De acordo com a autora, “as músicas, na medida em que provocam no fisiológico determinadas reações, podem, a partir daí, nos remeter a estados emocionais intensos, em que só as ações poderão lhes dar uma significação. Esta, não sendo estabelecida a priori na música, também não o é nas emoções, posto que o que nos emociona não emocionará necessariamente os outros” (p. 150). Aponta Meyer que, “em um sentido geral, teóricos da música se preocupam mais com a gramática e a sintaxe da música do que com seu significado ou a experiência afetiva que emerge de tal experiência” (1956, p. 6).

169 Então, de que forma se pode olhar esta questão? Como compreender os aspectos de significação e comunicação em música? O direcionamento destes estudos aponta que é importante centrar a análise nos elementos musicais e também nos significados e experiências afetivas a partir da relação vivida com a música. Talvez seria o momento de se voltar para a construção pessoal e social do significado musical, para as ações que cada pessoa, em relação com a música, estabelece ao longo de sua vida. Nesta perspectiva, é preciso atentar para os aspectos que permitem compreender que a música tem significado para cada pessoa na medida em que se vincula à experiência vivida, passada, presente e do porvir, e quando proporciona articular o vivido junto aos sentimentos e emoções à própria música. Em termos de construção social do significado musical, Martin aponta que “os significados da música não são nem inerentes nem reconhecidos intuitivamente, mas emergem e tornam-se estabelecidos (ou transformados, ou esquecidos) como uma conseqüência das atividades de grupos de pessoas e contextos culturais particulares” (MARTIN, 1995, p. 57). As pessoas em relações, de acordo com contextos histórico-culturais atribuem e constroem significados à música, a partir de suas vivências e experiências. Salienta Martin (1995), que são os sujeitos, como seres humanos criadores e sociais, que dotam as coisas - e também os sons e a música - com significados, em um processo onde a construção da realidade acontece a nível coletivo e singular. A música, enquanto uma produção, enquanto resultado da ação criadora do homem no meio sócio-histórico e cultural deve ser compreendida em todas as instâncias desta trama, construída pelo fazer humano, impulsionada por suas necessidades, mas também pela busca de beleza, criatividade, permeada pela dimensão afetiva e pelo sentir. Não se pode se restringir ao olhar uni direcionado da partitura musical de modo técnico enquanto única e exclusivamente estrutura musical, pois junto dela encontra-se um mundo de movimentos, de dinâmicas e de significados construídos pelo sujeito, que vibram nele próprio e onde a música toca, os quais busca compreender. A construção dos significados e sentidos da música no contexto social Aqui se parte da compreensão do Dr. Brynjulf Stige (1998), musicoterapeuta norueguês, junto de Ludwig Wittgenstein (1975), quando este estudou aspectos da linguagem, das palavras e do significado em sua obra Investigações Filosóficas,

170 acerca do uso das palavras. Wittgenstein dizia que a função principal da linguagem não era nenhuma representação lógica, e sim a comunicação social. “Se tivéssemos que nomear qualquer coisa que é a vida da palavra, do signo, nós deveríamos dizer que era o seu uso” (Wittgenstein citado por STIGE, 1998). Para Wittgenstein os sinais, os signos adquirem vida no uso. A palavra no jogo da linguagem adquire o seu significado como um movimento em um processo comunicativo. A linguagem depende dos usos que as pessoas, os grupos, as comunidades e sociedades fazem. Wittgenstein (1975) via o significado vinculado ao uso, ou seja, o significado não era compreendido por ele como algo pré-fixado, rígido, imutável, universalizado. O significado da palavra, justamente pelo seu uso devia ser entendido como algo dinâmico, em constante movimento. Ao se perguntar pelo significado fixo da palavra, tomado como único, estar-se-ia paralisando a investigação. A questão seria de se voltar para os sentidos atribuídos pelas pessoas, pelos grupos, de acordo com suas formas de vida. Seriam estas “formas de vida” que levariam aos “jogos de linguagem”, de acordo com os usos das palavras, que não são os mesmos entre as diferentes comunidades. Trabalhar-se-ia, então, com significados permeados pelos sentidos atribuídos pelas pessoas de acordo com o uso das palavras, em seus contextos. Assim, Stige (1998) aponta que a linguagem e o contexto não podem ser separados, e que o significado é um conhecimento local. O autor faz este novo percurso teórico, especificamente para compreender a significação da música na Musicoterapia articulada ao contexto social, onde então, poder-se-ia compreender que a música terá o seu significado, assim como a linguagem, a partir de seu uso, a partir do contexto, do jogo e dos jogadores que trazem para estes contextos de jogos de sons, de vibrações, de ondas sonoras, de canções e músicas a sua utilização, os seus significados e sentidos. A música teria o seu significado local em nada descolado do seu contexto. O significado como uso, seja das palavras que da música é um significado social e também singular (sentido), construído, criado e re-criado nas relações e ações pessoais e sociais condizentes com o que é vivido e experenciado. O Dr. Even Ruud, musicoterapeuta norueguês, compartilha da idéia de Wittgenstein (1975) acerca do significado da música. Segundo Ruud, a filosofia de Wittgenstein é pertinente para a compreensão do significado musical, visto

SIMPEMUS3 que a música sempre está em um contexto e, como tal, é uma parte de um processo produtor de significado. O significado da música tem como foco a situação particular dentro do contexto cultural particular (RUUD, 1998). Como dizia Wittgenstein (1975) o significado depende do “jogo”, pois é uma construção social. Assim, o significado da música depende do jogo, da cena, do cenário, do contexto, dos personagens, dos músicos, instrumentistas, cantores, ouvintes, suas canções e suas narrativas. Depende do sujeito que utiliza a música, que se relaciona e com ela está implicado, que constrói seus significados em base a esta relação. Existe uma construção social e particular do significar em música, sempre em um contexto social. Strathern (1997), ao discutir as idéias de Wittgenstein, diz que a linguagem da arte é metafórica. “Sendo metafórica, uma obra de arte é ao mesmo tempo ela própria e algo mais. Dizer de uma obra de arte que o que ela exprime é inexprimível é uma contradição” (p. 36). Por perceber a obra de arte e “este algo mais”, que pode se relacionar com os seus sentidos, o sujeito constrói o significado da música, onde a música “é” para ele, faz parte de sua vivência, significa para ele. Stige (1998) destaca da obra de Wittgenstein um trecho onde este filósofo ao invés de sublinhar diferenças entre palavras e música, indicou semelhanças entre elas: palavras e música poderiam ser polissêmicas, abertas e preservar a possibilidade de um significado que muda. Palavras e música apresentam construções mútuas de significados. São vários significados, cambiáveis, não fixos, abertos, condizentes com os sentidos do sujeito. Para Maheirie (2003) a música carrega um significado social por estar em relação com o contexto social onde está inserida, ao mesmo tempo em que possibilita aos sujeitos a construção de múltiplos sentidos singulares e coletivos. O sentido da música [...] é sempre permeado pela afetividade. Em primeiro lugar, percebemos sua sonoridade, depois degradamos um saber anterior que tenha uma relação com os elementos percebidos deste som para, em seguida, transformarmos este saber e constituirmos um sentido àquela música. Posteriormente, estabelecemos, de forma singular, um significado para a música, compactuando ou não com seu significado coletivo. As características daquela sonoridade surgem como um complexo representativo que aparece determinado pela

simpósio de pesquisa em música 2006 consciência afetiva3, a qual, por sua vez, lhes dá nova significação (MAHEIRIE, 2003, p. 150).

Para compreendermos a significação musical na Musicoterapia, precisamos fazer a leitura a partir do resgate dos movimentos e momentos que compõe a história de vida de um sujeito. Este resgate permeia o vivido, ou seja, a dimensão do passado, o presente e as projeções futuras. Nesta temporalidade histórica, a partir do discurso verbal e musical do sujeito, pode-se aproximar dos significados compartilhados coletivamente por estes sujeitos, e dos sentidos singulares construídos para suas vivências pessoais nas histórias de relação com a música, que passam a configurar uma significação musical que é construída, é histórica, é temporal, é provisória, e diz respeito a este sujeito, que vivencia determinadas relações em um determinado contexto sócio-histórico e cultural de vida. Isto permite identificar que a significação musical é sempre “local” e depende das vivências que o sujeito estabelece com a música, em sua história. Na prática da Musicoterapia esta compreensão é fundamental. Para “conhecer” o sujeito pode-se lançar mão deste recurso que permite conhecê-lo a partir das narrativas que constrói sobre sua história de relação com a música. Também com esta compreensão é possível aproximar-se de forma mais coerente de seus significados e sentidos, a partir do modo como vivencia a atividade e experiência musical em um contexto musicoterapêutico. Lembrando que a compreensão desta dinâmica deve levar em conta a leitura da música e da dimensão afetiva no contexto cultural, onde o sujeito encontra-se situado historicamente. Ou seja, não basta que o profissional musicoterapeuta faça análises musicais centradas apenas na partitura para conhecer a relação do sujeito com a música e como isto se dá em sua vida, mas que articule a esta análise a dinâmica entre significados e sentidos construídos na história de vida do sujeito, que também contempla uma história de relação com a música. As emoções e os sentimentos, integrantes da atividade humana junto do agir e do pensar, configuram a construção dos significados singulares da música, de acordo com a vivência do sujeito e de sua própria reflexão acerca de si e de suas experiências. A música despertando a afetividade pode construir a forma como o sujeito significa o mundo que o cerca (MAHEIRIE, 3

Consciência afetiva: verificar Sartre (1936/1965) e Maheirie (2002, 2003).

171 2003). É de modo emocionado que o sujeito constrói os significados da música em sua vivência, a partir de seus sentidos, objetivando sua subjetividade, tornando-a “audível” para ele e para os outros. Os significados e sentidos ressoam nas vivências do sujeito e são construídos na sua relação com a música. Estes significados partem das vivências afetivas do sujeito, demonstrando a utilização viva da música, uma vez que mudam, se desconstroem e são recriados, porque também são constituídos pelos sentidos, ligados ao uso da música de modo idiossincrático e em relação.

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A voz na arte e a sensualidade na expressão Lara Janek Babbar Universidade Federal do Paraná Resumo Um estudo acerca da expressividade da voz sob o prisma da sensualidade no âmbito da fruição e da criação artística. Na primeira discussão, a voz é apresentada como importante ferramenta de expressão do ser humano. São apresentados alguns parâmetros que discriminam índices de comunicação. A seguir, analisa-se a voz como veículo de conteúdos estéticos que, consolidado à sensualidade, torna sua manifestação artística expressiva e sensual.

Introdução Esta pesquisa apresenta um panorama acerca da expressividade e da sensualidade relacionadas ao uso da voz como fenômeno artístico. Evidencia-se a voz como importante meio da expressão humana, rica em sonoridades que informam ao interlocutor situações específicas. São estabelecidos alguns parâmetros vocais que, articulados, constituem ferramentas de comunicação fortes. A seguir, apresenta-se o conceito de sensualidade que, na esfera artística ou cotidiana, contribui para um sentido mais elaborado. Expressividade e voz No âmbito da expressão faz-se necessário o treinamento dos modos mais diversos de uso dos sentidos para a proposição e para a compreensão dos conteúdos. Ao artista cabe um estudo criterioso sobre o comportamento humano em todas as esferas da vida, para que no momento da arte, sua representação sugira veracidade. Como ponto de partida para a discussão acerca de expressão, recorre-se a Alfredo Bosi (1995, p.50): “A idéia de expressão está intimamente ligada a um nexo que se pressupõe existir entre uma fonte de energia e um signo que a veicula ou a encerra. Uma força que se exprime e uma forma que a exprime”. A expressão se manifesta por meio de uma linguagem e atende a uma demanda interna, elaborada via intelecto, sustentada por uma correspondência psíquico-emocional, ou pela forma em si. Como bem exposto por Luigi Pareyson (1989, p. 30): “Toda operação humana contém a espiritualidade e personalidade de quem toma a iniciativa de fazê-la e a ela se dedica com empenho; por isso, toda obra humana é como o retrato da pessoa que a realizou.” Em arte, contudo, Pareyson condiciona a expressão de modo especial:

a obra de arte é expressiva enquanto é forma, isto é, organismo que vive por conta própria e contém tudo quanto deve conter. Ela exprime, então, a personalidade do seu autor, não tanto no sentido de que a é, e nela até a mínima partícula é mais reveladora acerca da pessoa de seu autor do que qualquer confissão direta, e a espiritualidade que nela se exprime está completamente identificada com o estilo. A forma é expressiva enquanto o seu ser é um dizer, e ela não tanto tem quanto, antes é um significado. (PAREYSON, 1989, p. 30)

A voz humana é uma maravilhosa manifestação da expressividade. Na contingência de uma adaptação do aparelho digestivo e respiratório, é o resultado do desenvolvimento muscular e nervoso muito elaborado. Por conseqüência, tem-se a voz como uma sonoridade do ser humano que apresenta índices expressivos muito significativos para a sua manifestação. A literatura existente sobre a voz é escassa, principalmente em se tratando do seu uso artístico. Os limites das discussões cobrem aspectos de tessitura, de velocidade, seu mecanismo de sustentação. As questões dedicadas à estética vocal e de interpretação artística via voz são rasantes e, de um modo geral, em forma de críticas. Não existe uma organização dos recursos, das possibilidades, que permita uma criação artística da voz. Por exemplo, a mentalidade vigente em algumas escolas tradicionais de canto operístico é a de que os cantores devem tratar seu timbre como entidades estanques, sua identidade vocal imaleável. Em função disto, no item repertório, tais cantores se vêm na condição de sonorizar personagens que se adaptem à sua voz, e não do contrário. Com tal mentalidade, o trabalho de expressividade vocal, e o resultado artístico, apresenta-se muito deficitário.

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Voz na arte O início da comunicação é o início da infância. Certamente a criança desenvolveu conhecimento e controle considerável sobre variáveis da comunicação bem antes da primeira ‘palavra’ inteligível. (REES apud BOONE, 1994, p. 67).

Independentemente do idioma, as primeiras experiências vocais do ser humano estão muito ligadas a um contexto de anseio de informar do seu prazer (contentamento) ou desprazer (dor, raiva, fome), e isto ocorre mediante o uso de recursos expressivos diversos para cada situação. As pessoas que cuidam dos bebês, por sua vez, desenvolvem uma sensibilidade e uma percepção capaz de decifrar tais anseios numa articulação sem texto. Na idade adulta, esta capacidade de expressão imediata diminui pela contingência de diversos fatores, resultando em limitações extremas de recursos, afetando sua capacidade de comunicação e relacionamento, e mesmo, sua saúde. Assim, e por exemplo, verifica-se a existência de palavras enfraquecidas em função do uso, por modismo, de um padrão expressivo irônico ou frívolo (como no caso de “querida...” , ou “my darling...”) evitadas na situação de expressão de estima legítima. E ao contrário, dificuldades de expressividade com palavras cuja fôrma sonora não se alinha ao significado correspondido (como em “eu te amo...”). Perceber se o interlocutor de uma comunicação está alegre ou triste, atencioso ou distraído, não oferece muitas dificuldades. Porém, reproduzir tais estados com finalidade artística, por exemplo, é extremamente difícil. O domínio da voz é preciso com treinamento. O estudo dos mecanismos de expressividade instrumentaliza o fruidor para a compreensão dos conteúdos, e a familiaridade com mecanismos estéticos possibilita ao artista uma atividade de representação saudável e eficaz. Alguns parâmetros vocais:

apresenta conforto nas estruturas laríngeas e sonoridade firme e homogênea. O ponto, ou melhor, a região de empostação capaz de apresentar estas propriedades localiza-se na posição posterior da cavidade bucal e faríngea. O som emitido neste pré-amplificador pode ser redirecionado a outros pontos de ressonância do tórax e da cabeça. Tem-se então, o princípio básico da técnica vocal de ressonância do corpo inteiro. As possibilidades de impostação, a partir disso, são infinitas. Foco O foco é uma resultante sonora que evidencia nitidez de texto. O foco posicionado no alto e no centro da cabeça, atrás dos olhos, encontra ressonância preferencial da gama média/aguda do timbre, favorecendo nitidez das consoantes. Ressonância e ressonadores A exploração das possibilidades de ressonância é a essência de uma voz expressiva. Além de garantir a audibilidade e calibrar o volume sonoro, os ressonadores fixam gamas harmônicas que se traduzem em expressividades diferenciadas. Algumas ressonâncias importantes: cabeça: intelectualidade, racionalidade; máscara: alegria, emotividade; parte posterior da cabeça: ponderação ou defesa; queixo (ponta): confiança, segurança; mandíbula: agressividade, raiva; clavícula: resistência a circunstâncias emocionais quaisquer; porção superior do esterno: temor; porção média do esterno: angústia, tristeza, depressão; porção inferior do esterno: altruísmo, bondade, boa vontade, arrogância, orgulho; coluna vertebral: responsabilidade.

força,

equilíbrio,

quadril: sensualidade.

Postura Impostação e empostação Num primeiro momento, a distinção entre impostação e empostação é muito importante. Compreende-se por empostação o acionamento de um conjunto muscular que prima pelo resguarde da saúde vocal do indivíduo. A impostação refere-se à eficiência e à agradabilidade da voz, atendendo, assim, ao âmbito da estética. Uma voz empostada

Refere-se aos procedimentos em relação ao corpo inteiro que favorecem a emissão do som. Num primeiro momento, é importante o estabelecimento de eixos imaginários de sustentação do corpo, para que a dinâmica de tensões e relaxamentos relativos condicionem as ressonâncias. Após o treinamento, tais eixos são capazes garantir homogeneidade sonora mesmo se

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simpósio de pesquisa em música 2006 a pessoa encontra se em movimento, ou em posição desfavorável à emissão da voz. Timbre É o resultado da combinação de harmônicos, sons puros, presentes na voz. Em condições em que a exploração da ressonância do corpo inteiro é pobre, tais harmônicos podem estar presentes na voz e nunca serem percebidos. Disso se vislumbram possibilidades que servem tanto a uma composição básica da voz, e isto será a tradução mais ou menos precisa das disposições do indivíduo enquanto personalidade e infinitas possibilidades de alterações sutis desta formulação que traduzem estados de espírito, quanto à reprodução de estados de espírito ou de personalidade. O timbre chamado completo é aquele que é equilibrado por pressões sonoras que evidenciam as possibilidades de harmônicos nas gamas graves, médias e agudas de cada som e simultaneamente. Na prática isto acontece com grande pressão sonora no tórax (gama grave), média pressão na coluna e clavícula (gama média) e baixa pressão sonora na cabeça (gama aguda), exceto na máscara – ossos da face – que respondem pelo brilho e expressão de conteúdos do papel (alta pressão).

ocasião. Todas as outras pressões terão uma acomodação de menor esforço de concentração, uma vez que as pressões sonoras são mais suaves e progressivamente mais audíveis. Além disso, atenta-se ao fato de que, quanto mais distante da fonte sonora, mais esférica se apresenta a frente da onda. Dicção e emissão No âmbito da dicção encontra-se a pronúncia. Uma dicção clara tem-se no contraste apresentado entre as sílabas das palavras, nas tônicas de cada palavra, de cada frase, e de cada idéia. A emissão refere-se a um conjunto de sonoridades válidas a um contexto, encontrando, em certa medida, implicações culturais. O erro de emissão, muitas vezes resulta em falta de polidez. Contorno Contorno é a capacidade de assemelhar-se ou não aos parâmetros vocais, do interlocutor ou aos sons concorrentes no ambiente. Massa É o ajuste das sensuais da voz no produzida. Por este particularização de um

propriedades expressivas e ambiente em que ela é parâmetro é possível a assunto.

Arco É a maneira como o som vocal se projeta no ambiente. É gerado pelas possibilidades de ressonância. Pode sugerir sentimentos, estados, preocupações pessoais, coletivas, entre outros, em razão da capacidade de, com o domínio de sua projeção, explorar as implicações da tridimensionalidade sonora. Assim, como modelo básico o arco se projeta no espaço radialmente assumindo a forma aproximada de um ovo em expansão, com o bico na direção da boca do emissor. Porém, isto será na verdade, uma somatória de várias projeções radiais que vêm dos ressonadores do indivíduo, já com zonas de pressão definidas, criando matizes que são apenas traduzíveis unidimensionalmente por linhas que, a despeito da curvatura que aparentam, são semelhantes a vetores (definem valor, direção, sentido). É preciso, no entanto, esclarecer que o ouvinte precisa perceber tridimensionalmente o som para saborear os arcos da voz. Para isto, aconselha-se o ouvinte a fixar atenção na gama mais grave do complexo sonoro a que está exposto. Tendo feito isso, ele automaticamente estará atento à linha de maior pressão sonora na

Afinação Na esfera da voz, a afinação é a capacidade de emitir um som de altura igual a um padrão, ou emitir determinado som na altura correta de acordo com um sistema estrutural de construção musical. Intensidade È possível considerar a intensidade sob dois aspectos. O primeiro é oriundo da física do som, da amplitude sonora, e o segundo do impacto expressivo que ela gera. A dicotomia entre ambos aspectos conceitos é verificada quando a mensagem mais intensa está centrada na passagem da fala, ou musical, emitida com amplitude mínima, tendendo ao pianíssimo. Velocidade e ritmo Há dois entendimentos a considerar. Primeiro, a velocidade da voz atende ao tempo de resposta muscular e da resultante expressiva apresentada. Uma voz é veloz pela rapidez de trocas de ajuste. O outro, é a manipulação rítmica

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do conteúdo que se expressa. Apresentar um texto sob uma cadência ternária ou sincopada traduz-se em diferente sensação ao interlocutor, e então, numa compreensão distinta. No universo da voz, existe a possibilidade de alteração do pulso interno da sonoridade e estipulando relações de intensidades distintas (ritmo interno). Disso, pode-se apresentar uma resultante de voz paisagística ou fotográfica, ou do contrário, contaminada de vitalidade e de contemporaneidade. Cobertura Num primeiro momento, a cobertura é o fechamento de algumas vogais (principalmente do A e do I), e, portanto, uma providência tímbrica que ameniza a estridência. Das possibilidades de cobertura da voz surgem véus harmônicos distintos que, associados aos demais parâmetros, resultam em atmosferas expressivas diversas. As coberturas (relação oro-faríngea) são: ó – alegria; ô – tristeza; é – afirmação; ê – dúvida; m – sensualidade elegante; n – sensualidade vulgar; l – interferência na percepção do “tempo”. Sensualidade na vida e na arte Para os chineses, a beleza sensual não residia na riqueza do efeito nem na atração física, mas na elegância, no requinte, e na discriminação. O apelo aos sentidos era sempre moderado pela atividade do espírito. (ROWLEY apud OSBORNE, 1974, p. 109)

A sensualidade é uma característica vinculada à expressão do sentir. Ela corresponde à ativação da sensibilidade no comunicar, ou seja, é a proposição do sentir. A importância da sensualidade e da sua compreensão expandida é justificada pelos atuais estudos acerca da evolução da espécie humana. Para o psicólogo evolucionista Doutor Geoffrey Miller, a necessidade de tornar-se mais atrativo sexualmente seria o fator determinante para compreender a evolução das espécies, incluindo neste panorama o desenvolvimento da sofisticada cultura humana, a arte, a tecnologia,

moralidade e linguagem. O corpo, o comportamento, e a capacidade de produção de cada pessoa são considerados ornamentos, ou “indicadores de aptidão”: “A teoria da influência sensorial lembra-nos de que a escolha do parceiro é mediada por capacidades perceptuais, e que à medida que novas capacidades de percepção evoluem, abre-se caminho para a evolução de novos tipos de ornamentos sexuais” (MILLER, 2001, p. 164). Neste contexto, a relação entre sensualidade e sexualidade é muito estreita, mas a abrangência dos dois conceitos e seus dimensionamentos encontra ressonância muito profunda com a existência humana. Dentre as atividades humanas em que a sensualidade é mais requisitada, é a artística. A arte é um veículo de comunicação e de informação muito importante. A produção do material de arte vincula-se com a ordenação de mecanismos estéticos que condense um conteúdo. Daí a importância do estudo e do domínio das ferramentas de expressão. Da mesma forma, a sofisticação da transmissão de um conteúdo inclui critérios na proposição das gamas sensoriais. O desvelo do artista nesses níveis molda, por esses meios, um conteúdo sensorial, e transforma sua criação, em obra sensual. Deste modo, para o uso em arte da voz, o artista deve estar apto a perceber e solucionar sinais expressivos pessoais, por exemplo, que interferem na comunicação do conteúdo estético. Recursos como a criação de derivadas nos arcos ruidosos a um modelo interpretativo, podem ser válidos. A ação do artista talentoso articula sua fala ao que se faz necessário dizer, e ao que se é permitido comunicar. Portanto, o mero acúmulo de mecanismos e recursos não torna o criador mais capaz, ao contrário, quanto mais equipamento disponível, mais difícil podem ser as decisões a serem tomadas e maior é o talento exigido. Isto está contido na obra de arte, e é verificável: O mundo sugerido pelo objeto estético é a irradiação de uma qualidade afetiva, a experiência urgente e precária na qual o homem descobre num instante o sentido de seu destino, quando ele está totalmente engajado nessa prova. O artista está sempre presente em sua obra e tanto mais presente, quanto mais discreto: nós reconhecemos melhor sua voz quando ela profere uma palavra que não é a sua. (DUFRENNE, 1972, p. 55)

Também é preciso reavaliar a acomodação territorial das emoções e dos conteúdos do intérprete. A necessidade de expressão do homem

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simpósio de pesquisa em música 2006 tem sua justificativa sob três pilares (sobrevivência, reprodução e morte). Para cada emoção, o indivíduo apresenta um raio de abrangência, um limite de apresentação do impacto sensual, e pode ser manifestada na esfera visual (pelo gesto) ou auditiva (pela voz). Como exemplo, existem pessoas que se revelam inteligentes a uma distância de 5 metros, mas aos 7 metros esta característica não é tão evidente. Esses limites são sensíveis às circunstâncias, como nos sustos, em que estas projeções se contraem, e às interfaces com outros territórios (outras pessoas). A delimitação das emoções do cantor de ópera (ou do ator) deve ser treinada, ampliada e dominada, pois no palco, cada personagem interpretado exigirá um sistema de composição particular. O mesmo ocorre com o treinamento da voz do ator. A busca de uma sensualidade rica se torna a principal chave dos cantores intérpretes da obra de Mozart, por exemplo. Apesar de apresentar uma escrita aparentemente simples, a revelação musical mozartiana acontece quando o intérprete oferece, além de seus recursos técnicos, uma realimentação sensual.

A sensualidade no uso artístico da voz pode oferecer sabores exclusivos. Interferindo na forma e nos parâmetros de expressão, a sensualidade é a conexão com o subjetivo do que se pretende comunicar. Conclusão O estudo realizado abrangeu o universo da voz como importante ferramenta de expressão e sensualidade humana. As possibilidades de percepção de alguns dos parâmetros e, conseqüentemente, de seu treinamento, fundamenta um diferente prisma para o saborear e o realizar artístico, atendendo de modo mais eficaz o que se pretende expressar. Dessa maneira, para além do que se diz, fala e muito a composição vocal. Das infinitas possibilidades, revelam-se intenções que, percebidas, condicionam o usuário à disciplina de seu próprio aprimoramento. Portanto, o treinamento dos parâmetros vocais dispõe a pessoa não somente na busca do efeito expresso, o que atrai e chama atenção, mas também e principalmente, na busca dos conteúdos do expresso, sendo este, por fim, o agradável mecanismo estético único de uma expressão sensual.

Referências BOSI, A. Reflexões sobre a arte. 5. ed. São Paulo: Ática, 1995. BOONE, D.; PLANTE, E. Comunicação humana e seus distúrbios. Trad. Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. DUFRENNE, M. Estética e filosofia. Trad. Roberto Figurelli. São Paulo: Perspectiva, 1972. MILLER, G. A Mente seletiva. Trad. Dayse Batista. Rio de Janeiro: Campus, 2000. OSBORNE, H. Estética e teoria da arte. Trad. Octávio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1978. PAREYSON, L. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

O instrumentista interface Fabiana Moura Coelho Universidade Federal de Minas Gerais Resumo O presente artigo propõe o estudo de técnicas da flauta aplicadas à música contemporânea. Aborda também o desenvolvimento de um conjunto de gestos sonoros com o objetivo de dirigir a ação do instrumentista em performances interativas. No contexto desta pesquisa, o músico terá participação fundamental na construção do material sonoro agindo como interface do processo criativo. Palavras-Chave: flauta, interface, gesto sonoro, interatividade, computador.

Introdução

Gesto sonoro

Ostrower (1977) afirma ser a criatividade um comportamento natural do ser humano. Mesmo num ambiente racionalista e reducionista existe a possibilidade de criação, compreendida no potencial vinculado à sensibilidade de cada indivíduo. A partir deste ponto de vista, os valores culturais funcionariam como um filtro na orientação da percepção dos fenômenos da natureza. Ostrower conclui: “A criatividade não seria então senão a própria sensibilidade”.

O conceito de gesto sonoro vem se desenvolvendo ao longo dos últimos anos, como apresentado por Iazzetta (1997). Trata-se da significação musical do movimento, o qual está intimamente ligado à ação musical. Aplicado aos conceitos de técnica e tecnologia, intensamente utilizados em música a partir do começo do século XX, o gesto sonoro passou a englobar não somente a emissão do som, como também a técnica empregada e a tecnologia aplicada (IAZZETTA, 1997).

Ela amplia a sua visão ao enfatizar que a necessidade de comunicação é propulsora do processo criativo: “No cerne da criação está a nossa capacidade de nos comunicarmos por meio de ordenações, através de formas. Por meio de ordenações se objetiva um conteúdo expressivo [...]. O formar, o criar é ordenar e comunicar”. A autora afirma também que o potencial criador é desenvolvido no trabalho cotidiano, na concretização da matéria, inclusive nas Artes, não sendo, portanto, a atividade artística o único campo de ação criativa do ser humano, o que seria uma deformação da realidade. Assim, a ação do homem, sujeita a condicionantes sociais, a um contexto cultural que fornece as condições e até mesmo a capacidade de realização de propostas criativas, necessariamente implica transformação, seja da matéria, da percepção ou do próprio sujeito criativo. Partindo do pressuposto de que o intérprete tem uma função que deve manifestarse de maneira criativa, o estudo ampliou o universo “das ordenações e das formas” vinculado à técnica da flauta. O Instrumentista Interface deve exercer a sua função musical como produto de sua criatividade e do potencial imanente do seu vocabulário expressivo. Buscase, portanto, a aproximação entre a técnica instrumental e o potencial criativo do intérprete.

A música sempre esteve relacionada ao gesto do intérprete, porém a sua importância e significação apenas nas últimas décadas passaram a ser estudadas. Trata-se, então, da relação instrumento/instrumentista e o som por eles gerado, num movimento contido no espaço-tempo. Garcia (2002) aborda o “gesto dinâmico” em Density 21.5 de Edgard Varèse. Segundo o autor, o termo simboliza as complexas marcações de dinâmica da peça e mostra as linhas que contêm um crescendo, ou um decrescendo, um piano súbito ou um acento, mais importantes que o nível absoluto de dinâmica. Isto significa que, por exemplo, nos quatro últimos compassos, é mais importante guardar força para a última parte do crescendo que obter um fortíssimo que não tem para onde ir. “O importante neste trecho é o enorme ‘gesto dinâmico’ que começa no B4 e termina no B6” (GARCIA, 2002, p. 36). Assim, na performance musical, o som percebido depende dos caminhos gestuais do instrumentista, estando a significação intrinsecamente ligada ao gesto. Tecnologia & músico Sob a ótica da utilização música, Boulez (1977) afirma criação e a criatividade musical de progresso e investigação,

da tecnologia em que, enquanto a passavam por fase os instrumentos

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simpósio de pesquisa em música 2006 musicais estavam em período de estagnação, com sua técnica voltada à música conservadora. Nesse ambiente, a utilização de equipamentos tecnológicos, ainda que não tenham sido criados para essa finalidade, encontra aí base para o seu desenvolvimento. (BOULEZ, 1977): osciladores, amplificadores e computadores não foram inventados para criar música; entretanto, e particularmente no caso dos computadores, suas funções são tão facilmente generalizadas, tão eminentemente transformáveis, que tem havido uma intenção de direcionar diferentes objetivos dos preestabelecidos: uma conjunção acidental criará uma mutação.

Ampliando a idéia de Boulez, a utilização de dispositivos tecnológicos pode criar uma mutação. Neste caso, qual seria o processo, estrutura ou, eventualmente, o organismo que sofreria esta "transformação genética"? Num recorte mais específico, pode-se fazer uma leitura da citação acima como um indicador de que processos tecnológicos podem ser subvertidos pela ação do músico. Uma subversão criativa seria, através da performance musical, transmutar as funções “tão facilmente generalizadas, tão eminentemente transformáveis”. Neste caso, o agente da ação transformadora seria o intérprete. Esse músico, imbuído de uma ótica interacionista, deixa de se posicionar no processo musical de forma passiva para uma atuação ativa, onde suas ações e/ou gestos musicais funcionariam como substrato e ele/ela seriam a interface do processo sonoro. Por outro lado, o impasse, na época em que Boulez escreveu, era a rejeição por parte dos instrumentistas à diversidade de novas propostas musicais, pois estavam acostumados a uma estrutura consolidada por séculos. Naquele momento, os dois caminhos que se apresentavam eram um historicismo conservador, que necessitava de expressão, e a investigação tecnológica, que fomentava padrões de sonoridade diferentes dos habituais. Para fazer uso dessa nova tecnologia, era necessário que os compositores aprendessem a manipular os equipamentos e uma nova orquestração surgiria, criando um novo fluxo entre o ideal e o material. Desta forma, o conhecimento tecnológico faria parte de sua invenção. Originou-se então uma nova linguagem, que não seria a adaptação de idéias antigas, mas um despertar para o novo.

Desenvolvimento de tecnologia & gesto musical Para elucidar a interação do gesto e da expressão musical com dispositivos eletrônicos, pode-se apontar um ponto inicial na criação de Leon Theremin: o Theremin, em 19191. Este instrumento, pioneiro, foi o primeiro a produzir som sem necessitar do contato físico do instrumentista. Apenas a movimentação da mão realizada em torno de uma antena controla a emissão sonora, exigindo uma grande precisão gestual por parte do intérprete. Historicamente, esta é a primeira referência de eventos sonoros realizados a partir do gesto sem contato direto com um meio físico (ROWE, 1993; GLINSKY, 1992). Clara Rockmore, aluna de Leon Theremin, era violinista, quando um problema em suas mãos a impossibilitou de tocar, o que a fez dedicar-se ao Theremin. Clara transportou a técnica do violino para o Theremin, com um método de “dedilhado aéreo” que dava precisão ao controle do som emitido pelo aparelho. Desta forma, criou um meio de interação com a tecnologia e especializou seu gesto de modo a tornar-se uma virtuose do instrumento. O Theremin, então, aproximou o instrumentista do conceito de Gesto Sonoro e dessa nova relação com o instrumento. Assim, partindo-se de estudos de Bartolozzi (1967), Dick (1975) e Heiss (1966, 1968, 1972)2, procurou-se analisar parâmetros de execução contemporâneos que elucidassem essa nova relação e, paralelamente, permitissem a visualização prática do conceito de Gesto Sonoro. Os parâmetros de execução escolhidos foram: 1) som percussivo, 2) ataque percussivo, 3) harmônicos, 4) glissando, 5) frulatto, 6) bend, 7) tocar e cantar, 8) whistle tone, 9) sons eólios, 10) multifônicos. Tais parâmetros, escolhidos em razão da pesquisa ter sido desenvolvida com base na flauta transversal, foram transcritos através de notação adequada, gravados e analisados sob o ponto de vista do conteúdo espectral de cada sonoridade. É de se ressaltar que uma das referências internacionais nesse tipo de estudo, atualmente, é 1

Theremin apenas passou a ser conhecido por esse nome após a invenção do instrumento. Anteriormente, seu nome era Lev Termen. Veja http://www.thereminworld.com/

2

Bartolozzi, Dick e Heiss são autores fundamentais no estudo das técnicas empregadas na música contemporânea. Bartolozzi apresenta técnicas para se produzir sons diferentes dos convencionais, como efeitos e multifônicos, na flauta, oboé, clarinete e fagote. Dick elaborou um método de flauta voltado especialmente para a técnica empregada na música contemporânea. Heiss apresenta novas técnicas empregadas na obtenção de diferentes sonoridades na flauta, utilizadas nas composições contemporâneas, listando dedilhados especiais para a produção de multifônicos.

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o IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique) que foi dirigido por Pierre Boulez, desde sua fundação até 1992, e dá continuidade à pesquisa derivada dos conceitos apresentados anteriormente. O IRCAM realiza estudos com sistemas computacionais direcionados ao processamento em tempo real de som e música. Esses sistemas são usados por compositores para produzir trabalhos nos quais a interatividade combina partes instrumentais e partes sintetizadas por computadores3. Por extensão, uma das fontes pesquisadas foi o website do IRCAM, no qual se encontra um catálogo de técnicas de execução não tradicionais para flauta, na mesma linha de pesquisa deste trabalho. Resultados4 Harmônicos Este gesto sonoro é obtido, na flauta, mudando-se a pressão e a direção do ar soprado no bocal, a partir do dedilhado convencional de uma nota fundamental. As notas geradas a partir desta interação seguem a ordem de ressonância natural dada pela Série Harmônica.

Observou-se que alguns harmônicos presentes em E5 se mantêm, perdendo a intensidade, na execução do B5 e, ainda com bastante intensidade, encontram-se, na passagem do E5 para o B5, os harmônicos das duas notas. Dessa forma, a nota posterior mostrada na seqüência sugere estar entrelaçada na anterior. Whistle tone Neste gesto alguns harmônicos são acentuados, como se observa no sonograma apresentado abaixo, pois se trata de uma sonoridade em que o controle da pressão do ar sobre o bocal faz com que o instrumento funcione como um filtro de banda estreita (é selecionado aproximadamente apenas um harmônico superior). O resultado é obtido soprando-se com menos pressão e com a embocadura relaxada. A dinâmica possível para este gesto fica próxima do pianíssimo, tendo em vista o alto grau de controle do intérprete na obtenção precisa do harmônico desejado.

Figura 1

No trecho analisado, foi executado um intervalo melódico de quinta justa, a partir do dedilhado da nota uma oitava abaixo da nota mais grave do intervalo. Ou seja, com a posição de E4, foram produzidas as notas E5 e B5, com apontado abaixo.

Figura 3

3

Veja http://www.ircam.fr/

4

A pesquisa original analisou também gestos sonoros referentes a som percussivo, ataque percussivo, harmônicos, glissando, frulatto, bend, tocar e cantar, whistle tone, sons eólios, multifônicos. Contudo, a dimensão do presente artigo tornou imperiosa a exposição de apenas três deles.

Figura 3

Foi feita a análise espectral de um pequeno trecho no qual foi tocada a nota G5. Ficou demonstrado no sonograma que o harmônico mais acentuado nesse tipo de som é o 2º harmônico, ou seja, uma oitava acima do som produzido (G6). Nota-se também que os outros harmônicos são muito atenuados, o que gera este timbre que se aproxima da sonoridade de um som senoidal (com apenas uma componente espectral). Tocar e cantar Este gesto sonoro é obtido através da emissão vocal de uma nota ao mesmo tempo em que outra é executada na flauta.

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simpósio de pesquisa em música 2006 Verifica-se, através do sonograma apresentado, que há uma mistura homogênea dos sons. Desse modo, o instrumento, ao ser estimulado pela voz, gera um timbre muito específico, que pode ser estudado pelo compositor para obterem-se os resultados desejados. Há estudos que mencionam a utilização de modelos matemáticos para mensurar a interação da voz com o instrumento.

A tabela acima demonstra, comparativamente, a intensidade dos parciais produzidos em dois efeitos estudados. Dessa maneira, fica explicitada a considerável diminuição de intensidade relativa dos parciais produzidos no gesto whistle tone. A diferença de intensidade entre o 4º parcial e o 2º parcial (G7 e G6) é de 56 dB. Assim, o 4º parcial, G7, é aproximadamente 105,6 vezes menos intenso que o 2º parcial, G6. Isso significa que soam simultaneamente duas notas, uma delas 398107,17 vezes mais intensa que a outra. No caso do gesto denominado “harmônicos”, o espectro demonstra a diminuição gradativa da intensidade dos parciais. Pode-se perceber uma redução linar de 7 dB entre o 2º e o 3º e entre o 3º e o 4º parciais. O 4º parcial é 102,3 vezes menos intenso que o 2º parcial, o que indica que, do ponto de vista do conteúdo espectral, o timbre de cada um dos efeitos estudados está relacionado à intensidade dos harmônicos produzidos.

Figura 4

Conclusão 2º















G5

nota

G6

D7

G7

B7

D8

F8 G8

A8

intensidade

30 dB

96 dB

86 100 104 dB dB dB

nota

E5

B5

E6 G#6

B6

intensidade

32 dB

49 dB

- - 75 56 dB dB

77 dB

whistle

parciais

Harmônicos

E4

B4

nota intensidade

D7 E7 F#7

B5 F#6 B6 D#7 F#7 A7 B7 C#8 32 dB

55 dB

Tabela 1

55 dB

62 dB

Desta forma, o gesto sonoro denominado “whistle tone” provoca a sensação de som puro, pois seus harmônicos são muito mais atenuados, tornando-se quase inaudíveis. O gesto sonoro denominado “harmônico” provoca uma sensação de incorporar um conteúdo espectral mais denso, pois o conteúdo espectral resultante é mais complexo e a coloração é mais intensa. Através da visualização nos sonogramas dos gestos sonoros estudados, foi possível obter informações menos subjetivas e mais concretas a respeito da mudança dos parâmetros para obtenção de sonoridades específicas para a flauta. Mesmo nos sons tradicionais do instrumento, é possível observar, através dos sonogramas, o significado das mudanças de “cor” e “brilho” amplamente tratadas no ensino da flauta. Portanto, este mecanismo de análise poderá ser incorporado à dinâmica de trabalho do flautista, favorecendo o estudo do instrumento e o seu desenvolvimento musical.

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O papel das alturas numa abordagem composicional baseada em temporalidades musicais Ticiano Albuquerque de Carvalho Rocha Universidade Federal da Paraíba Resumo Esta comunicação expõe alguns dos procedimentos utilizados pelo Autor na criação de um discurso musical que toma como referências temporalidades musicais distintas, algumas das quais baseadas no universo da música indígena brasileira. Os procedimentos, em especial aqueles referentes à organização das alturas, estão sendo aplicados na composição de uma peça musical para orquestra de câmara que constituirá parte dos requisitos para a conclusão do curso de mestrado em composição pelo Autor. Palavras-Chave: Tempo musical; temporalidades; música indígena; organização de alturas.

Introdução A partir da interação entre diferentes sensações de tempo, o autor busca desenvolver um discurso musical e uma estrutura formal a serem concretizados com a composição de uma peça para orquestra de câmara que faça referências ao universo da música indígena brasileira. Dentro desse objetivo, foi desenvolvida uma ferramenta de organização das alturas em um sistema fechado, bem como procedimentos destinados ao tratamento dos vários parâmetros musicais, visando contribuir com a representação de temporalidades específicas. Nessa peça, algumas partes da criação musical se utilizam de referências ao universo da música indígena brasileira para a sua solidificação. Nesta comunicação será dado enfoque principal ao procedimento de utilização das alturas, procedimento esse que utiliza como ponto de partida uma escala da música xavante como uma das referências à música indígena, referências essas também abordadas em outras questões da peça. O tempo, apesar de ser utilizado no cotidiano do homem comum apenas como uma ferramenta de contagem de horas, dias, anos, sempre foi tema de profundas reflexões e grandes debates: Como ponto de partida, o que é tempo? Enquanto essa questão continua aberta, no decorrer dos séculos, múltiplos conceitos, teorias e interpretações foram desenvolvidos. Entre essas interpretações do tempo, podemos ressaltar a de Susanne Langer, que distingue dois tipos principais de tempo. O primeiro deles, o tempo do relógio, é definido como pura seqüência, “uma abstração especial da experiência temporal provocada pelo relógio” (MOURA, 1993, p. 6). O segundo é o tempo experiencial, isto é, o “tempo como o

conhecemos por experiência direta”, relacionado ao transitório, à sensação de passagem (LANGER, 1953, p. 111). A autora afere ao tempo experiencial a qualidade de conter volume em si, especificamente tensões – intelectuais, emocionais, etc. – que tornam qualitativa a percepção do tempo, pois são capazes de provocar experiências envolvendo expectativas e tensões. Para essa autora, o tempo musical é uma espécie de tempo virtual, pois reflete uma imagem do tempo experiencial. Dessa forma, as tensões do tempo experiencial, quando migradas para o tempo virtual da música, permeiam a seqüência de eventos da música com tensões e conteúdos qualitativos. Dependendo da freqüência e dos conteúdos qualitativos desses eventos, alguns trechos de tempo, determinados por eventos puramente musicais, poderão apresentar certas propriedades que alteram a percepção de tempo tradicional do homem. Segundo Kramer (1988, p. 5), que defende um ponto de vista ainda mais radical, a música é capaz de criar, alterar, distorcer e até destruir diferentes sensações de tempo. Duas principais propriedades do tempo musical – linearidade e não-linearidade – são descritas por Kramer: Identifiquemos linearidade como a solidificação/materialização de alguma(s) característica(s) da música em conexão com implicações que emergem de eventos anteriores da peça. Então linearidade é progressiva. Não-linearidade, por outro lado, é não-progressiva. É a solidificação/materialização de alguma(s) característica(s) da música em conexão com implicações que emergem de princípios ou tendências que governam uma peça inteira ou uma seção (KRAMER, 1988, p. 20).

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Para Kramer (1988, p. 19), existem ainda as várias possibilidades temporais intermediárias entre linearidade e não-linearidade. Além do mais, segundo ele, virtualmente toda música se utiliza de ambos os processos, em maior ou menor grau. Essas características estão, de certo modo, presentes em algumas visões do tempo próprias de determinadas culturas indígenas brasileiras. Na tribo Kamayurá, do Alto Xingu, por exemplo, o tempo é relatado de dois modos distintos: um deles refere-se a um “tempo histórico” (com características lineares) e um outro, a um “tempo mítico” (com características nãolineares): Para o Kamayurá há dois sistemas diferentes e complementares de morõneta, ‘explanação’, das coisas do mundo, cada um deles estando colado num tempo de referência próprio, a saber, no ãng, ‘tempo histórico’, ou no mawe, ‘tempo mítico’ (MENEZES BASTOS, 1972, p. 109).

O tempo histórico é o tempo das durações prováveis, no qual os eventos têm começo e fim. O tempo mítico é o tempo da mitologia Kamayurá, no qual está a origem para todas as definições. As duas temporalidades existem simultaneamente em todas as coisas, pois tudo pode ser explicado tanto no “tempo mítico” quanto no “tempo histórico”. Menezes Bastos conclui afirmando: Se, assim, portanto, o ãng é o tempo experimental, memorial e esgotavelmente atual, o mawe é, definidamente, o tempo cosmológico, imemorial e daquilo que sempre acontece de forma inesgotável, de um lado, pois, se colocando o acontecido, o discreto, de outro, o que pode acontecer, o contínuo (MENEZES BASTOS, 1972, p. 110).

As decisões estruturais da peça são tomadas em função das referências temporais. Isso significa que, na organização de parâmetros como altura, ritmo, forma, textura, etc., estes estão subordinados a um objetivo maior – criar um discurso musical cujos agentes principais são duas temporalidades musicais relacionadas, nesse nível, especificamente ao tempo mítico e ao tempo histórico dos Kamayurá. A aplicação dessas temporalidades no conteúdo formal da peça foi elaborada de maneira a estabelecer dois tipos de percepção temporal que interagem entre si. Uma sendo a

percepção momentânea (durante a execução da peça), e outra, a percepção posterior (após a audição da peça). Para o primeiro movimento foi pretendido que entre esses dois modos de percepção houvesse um contraponto a ser configurado como uma percepção momentânea não-linear contra uma percepção posterior linear. Para o segundo movimento uma percepção momentânea linear é colocada contra uma percepção posterior não-linear. Além disso, cada seção tem uma predominância temporal particular, seja ela linear ou não-linear. Metodologia Nesta peça, uma das abordagens utilizadas para tornar possível essa representação temporal parte dos conceitos apresentados pela Teoria da Informação e interpretados por Barry. Para ela o tempo percebido é proporcional ao esforço exercido pela mente humana para processar as informações musicais. Para quantificar esse processamento de informações, e consequentemente a percepção temporal, ela leva em conta dois fatores, a velocidade (andamento) e a quantidade de informações. Em sua “Teoria de Densidade/Andamento” (1990, p. 167) afirma que, em um mesmo andamento, a duração percebida aumenta à medida que o conteúdo informacional aumenta além do usual. O aumento da duração percebida também ocorre quando uma quantidade de informações abaixo do usual é apresentada para o ouvinte, essa baixa quantidade de informações demanda um maior esforço mental para relacionar e processar informações que se encontram esparsas no discurso musical. Dessa maneira ocorre o mesmo efeito de expansão da duração percebida criado pela grande quantidade informacional. Para a autora existe entre esses dois pólos o nível usual de informações, no qual as durações são mais fielmente percebidas. Essa percepção de duração estendida tem ligação direta com o tempo não-linear de Kramer. Pois é nesse tempo musical de maior duração percebida que o ouvinte não consegue estabelecer conexões, devido a grande quantidade de processamento. Seja a taxa de informações alta ou baixa. Há também uma ligação entre o tempo mais fielmente percebido e o tempo linear descrito por Kramer, já que nesse tempo os eventos musicais ocorrem em uma frequência média que possíbilita a compreensão dos sons na medida em que estes ocorrem para o ouvinte. Podemos então verificar que não apenas o material, mas principalmente os procedimentos –

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simpósio de pesquisa em música 2006 modos de aplicação – são essenciais para o objetivo de uma representação temporal. Partindo desses conceitos alguns procedimentos foram desenvolvidos visando representar diferentes temporalidades. Entre os procedimentos utilizados para a criação do tempo não-linear, estão: baixa incidência de recorrências, alta densidade harmônica, alta densidade rítmica, complexidade textural e modulações timbrísticas. Baixa incidência de recorrências refere-se ao uso limitado de recorrências de organizações intervalares, rítmicas, texturais e timbrísticas específicas, visando à supressão de unidades formais identificáveis. Alta densidade harmônica é a aplicação de várias organizações escalares distintas, de acordo com as operações do sistema de alturas descrito abaixo, tendo em vista a criação de conteúdos harmônicos densos e heterogêneos (cromáticos e microtonais). Alta densidade rítmica corresponde à utilização de ritmos complexos e sobreposição de métricas distintas. Complexidade textural caracteriza a criação de faixas texturais ricas e/ou simultâneas, para funcionarem como unidades (de larga escala) de um discurso sem referências óbvias a eventos passados ou futuros. Modulações timbrísticas referem-se ao procedimento que faz uso de variações constantes de timbre (em termos de instrumentação e orquestração), objetivando a acentuação de nuanças variadas de colorido tonal nas unidades texturais. Para a criação do tempo linear, os seguintes procedimentos são utilizados: alta incidência de recorrência, subtração contextual, densidade rítmica mediana, simplicidade textural e consistência timbrística. Alta incidência de recorrência caracteriza o procedimento de uso estendido de recorrências de organizações intervalares, rítmicas, texturais e timbrísticas específicas, de tal modo que unidades formais identificáveis sejam reconhecidas e processadas. Subtração contextual é o procedimento aplicado a um determinado agrupamento denso de alturas (vertical, horizontal ou diagonal), que consiste na gradual subtração dessas alturas, à medida que o agrupamento sofre desdobramentos ou recorrências no tempo até a emergência de materiais referenciais (unidades formais identificáveis). Densidade rítmica mediana refere-se à utilização de métricas regulares e definidas. Simplicidade textural significa a utilização de texturas simples que permitam a criação de unidades e eventos

convencionais, tais como fragmentos melódicos, padrões rítmicos e progressões harmônicas, como guias do discurso musical. Consistência timbrística refere-se ao uso mais comedido de variações timbrísticas, visando dar maior unidade aos agentes de um mesmo nível do discurso musical. Alturas O sistema de alturas tem por base dois modos diferentes, dos quais são formadas três tabelas de referência: nas duas primeiras, é levado em consideração o princípio de equivalência de oitava (as alturas são classes-de-notas), e na terceira, o princípio de registro fixo (as alturas são notas). O primeiro modo, escolhido por suas propriedades intervalares assimétricas, faz parte do universo da música indígena Xavante. O segundo modo foi criado artificialmente, pelo autor, a partir do primeiro, buscando-se estabelecer uma organização intervalar mais simétrica. O Exemplo 1 apresenta os padrões intervalares de cada modo.

modo 1 < 1 1 1 4 2 3 > modo 2 < 3 2 1 1 3 2 > Exemplo 1

A primeira tabela, da qual são geradas as outras duas, é formada pelo cruzamento desses dois modos. Suas alturas são originadas a partir de transposições do modo 2 (dispostas horizontalmente), determinadas pela organização intervalar das alturas do modo 1 (dispostas verticalmente), como mostra o Exemplo 2. Os padrões intervalares dos modos estão representados pelos números situados entre as linhas e colunas de alturas.

Exemplo 2

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SIMPEMUS3

A tabela 2, ilustrada no Exemplo 3, é uma versão microtonal da tabela 1.1 Ela toma como referência os mesmos intervalos da tabela 1, só que proporcionalmente divididos, de maneira a estabelecer modos microtonais – cada intervalo de semitom equivale a um intervalo de quarto de tom, e cada intervalo de tom, a um intervalo de semitom. Os padrões intervalares dos modos estão representados pelos números situados entre as linhas e colunas de alturas.

Exemplo 4

A tabela 3 é formada por várias transposições da organização escalar ampla (a parte de registros fixos da tabela), dispostas horizontalmente. Essas transposições são determinadas pela organização intervalar das alturas do modo 1 (dispostas verticalmente), como mostra o Exemplo 5.

Exemplo 3

Os conteúdos (organizações escalares horizontais e verticais de classes-de-notas) dessas duas tabelas são utilizados simultaneamente, estratificados nas diversas faixas texturais da peça. Essa organização das alturas, ao buscar uma saturação informacional na dimensão harmônica – e, dessa forma, diminuir a quantidade de referenciais auditivos para o ouvinte –, objetiva acentuar uma percepção nãolinear do tempo musical, como dito anteriormente. Na tabela 3, os modos são aplicados levando-se em consideração registros fixos (sem equivalência de oitava) em determinadas faixas do espectro tonal. Duas transposições do modo 2, distantes uma sétima maior, são dispostas de forma contígua, cobrindo a faixa de duas oitavas do espectro tonal, em registros fixos. Em sua aplicação prática, essa organização escalar ampla (modo 2 amplo) pode ser transposta para as duas faixas do espectro tonal acima e duas abaixo, de acordo com demandas das tessituras dos instrumentos, como mostrado no Exemplo 4.

Exemplo 5

Verifica-se que, como resultado dessa organização, ocorre repetição da terceira e quarta notas de cada transposição em todas as suas oitavas, conferindo-se a essas notas a qualidade de classes-de-notas. Verifica-se também que, nas quatro primeiras transposições, as seis primeiras notas de cada transposição se repetem uma oitava acima nas seis últimas notas da transposição seguinte. A aplicação do conteúdo dessa tabela é feita de maneira diferente das demais. Aqui, o princípio de subtração contextual é aplicado às suas transposições horizontais, de tal forma que, no avanço do discurso musical, o modo 2 amplo, de doze notas, se transmuta no modo 2 inicial, de seis notas. Através desse recurso (que, no caso, visa uma simplificação informacional ao longo da peça), entre outros, a tabela 3 serve de sustentação harmônica para os trechos de predominância do tempo linear Conclusão

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Essas manipulações de alturas constituem apenas uma parte do conjunto de procedimentos, referido anteriormente, utilizado na tentativa de concretizar as diferentes representações temporais. Todos os passos para a criação desse sistema de alturas foram guiados para tal fim, partindo da referência da música indígena até o método de

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simpósio de pesquisa em música 2006 aplicação das alturas ao longo da peça. Cada parâmetro musical não explorado nesta comunicação foi submetido a uma linha de planejamento semelhante.

Os procedimentos composicionais aqui relatados vêm sendo testados em computador utilizando softwares sintetizadores e, em condições específicas, vêm apresentando resultados positivos no que se refere aos objetivos almejados.

Referências BARRY, Barbara. Musical time: the sense of order. Stuyvesant: Pendragon Press, 1990. KRAMER, Jonathan. The time of music. New York, Londres: Schirmer, 1988. LANGER, Susanne. Feeling and form. New York: Charles Scribner’s Sons, 1953. MENEZES BASTOS, Rafael José de. A musicológica Kamayurá: para uma antropologia da comunicação no AltoXingu. Brasília: Fundação Nacional do Índio, 1978. MOURA, Eli-Eri. Manipulations of time in music. Artigo não publicado.

Atribuições de aspectos musicais nos efeitos sonoros André Luis Battaiola, Daniel Avilez Universidade Federal do Paraná Resumo Uma característica da indústria nacional de Jogos Eletrônicos é a proporção programador/Artista menor que um, diferente da proporção, em média dois, que se encontra em mercados consolidados como Estados Unidos e Europa (“A Industria de Desenvolvimento de Jogos Eletrônicos”, Abragames, 2004). Os artistas referidos na pesquisa englobam os game designers, os modeladores 3D e os ilustradores. Os profissionais de áudio, em geral, não são contabilizados porque há um número pequeno deles presentes na indústria referida e, em geral, não se dá o devido valor à produção do áudio de um jogo. Estes fatos, bem como, a exclusão dos profissionais do áudio no processo de design de um jogo, o que inclui: produção do roteiro, definição de personagens, interfaces, etc, ocasiona uma dissociação entre imagem e som. Note-se que a trilha sonora é, em geral, muito valorizada na produção de um filme, onde profissionais altamente capacitados trabalham em concordância com o restante da equipe, por outro lado, a produção da trilha sonora de um jogo pode se tornar muito mais complexa devido aos efeitos relacionados à interação. Por exemplo, associar uma música a uma cena é relativamente simples, pois o próprio fato de ser uma música já demonstra que há organização e coerência nos materiais empregados, neste caso sons. Para a criação de uma música, em geral, se respeitam regras e formas bem conhecidas, porém, um efeito sonoro, o qual deve ser repetido várias vezes no processo de interação entre o jogador e o jogo, precisa ser muito bem planejado para não causar stress no jogador e nem diminuir a sensação de ação e reação. A produção de efeitos sonoros pode apresentar apresenta os seguintes problemas: dissociação entre o nível da ação e o impacto do som (p.ex, ação suave e som agressivo); desconexão do efeito sonoro com a música, o que pode ocasionar uma ruptura do jogador com o clima da cena do jogo; falta de harmonia estética e de intensidade entre musica, efeito sonoro e ação; e diferenças gritantes entre os efeitos sonoros (p.ex, o som de um tiro de um jogo simples, em princípio, deve manter a simplicidade coerente com os outros sons e a própria interface). Nota-se que muitos destes problemas estão atrelados a desconsiderações musicais em relação aos efeitos sonoros. Então para a organização e composição dos efeitos sonoros propõem-se que atribuições musicais sejam empregadas a estes, em especial o processo e pensamento da música concreta.

Objetivos

Introdução

Nota-se que a estética e as características da música eletroacústica ainda não foram absorvidas pelo grande público e nem pelos desenvolvedores de jogos. A utilização da música eletroacústica por parte do meio audiovisual vem sendo aplicada principalmente pelos projetistas de áudio, porém, a apropriação que vem ocorrendo está centrada principalmente na questão técnica, de uma vertente da música eletroacústica, a música concreta.

A potencialidade do áudio como interface é inegável. Segundo Heilig (1992) a ênfase humana com respeito aos sentidos usualmente é de 70% pela visão, 20% pela audição, 5% pelo olfato, 4% pelo tato e 1% pelo paladar.

A presente pesquisa tem o objetivo de estudar e aplicar a técnica e o pensamento estético composicional da música concreta, sobre dos efeitos sonoros e ruídos dos presentes em Jogos Eletrônicos. Expondo assim, a potencialidade e a ampla gama de aplicações deste estilo musical, fato este ainda pouco conhecida e explorada por profissionais do áudio.

Um artifício interessante que é muito explorado pelos artistas do radio, teatro e cinema para a integração e a potencialização dos dois sentidos – visão e audição – é a utilização da impressão sonora de um ambiente, a Paisagem Sonora desenvolvida por Murray Schafer na Universidade Simon Fraser no Canadá. A paisagem sonora propõe uma escuta musical de todos os sons que nos rodeia, percebendo seus desenvolvimentos e suas características. No livro O Ouvido Pensante, Murray Schafer propõe o ensino da musica através da paisagem sonora, explorando cada som, despertando assim nos alunos uma visão totalmente livre e desprovida de preconceitos sobre o que é musica.

simpósio de pesquisa em música 2006 Desde cedo, os encenadores souberam tirar proveito dos aperfeiçoamentos das técnicas de reprodução e difusão do som. Um espaço, com efeito, não se define apenas pelos elementos visuais que o constituem, mas também por um conjunto de sonoridades características ou sugestivas, que tecem para o ouvido uma imagem cuja eficiência sobre o espectador foi mil vezes comprovada. Sabe-se, aliás, que a audição é um veiculo de ilusão mais sensível que a visão. (ROUBINE, 1998).

Na produção de um jogo, em geral, não se dá o devido valor ao processo de sonorização. O produto é tido como acabado sem a implementação do áudio, pois raramente é designada uma função importante no processo de funcionalidade do jogo. A não inclusão dos profissionais do áudio no processo de design de um jogo, o que inclui: produção do roteiro, definição de personagens, interfaces, etc; pode ocasionar uma dissociação entre imagem e som. Um dos fatores responsáveis por esse problema é a desinformação dos designers de jogos perante as possibilidades da mídia sonora. A citação abaixo contida no documento “A Indústria de Desenvolvimento de Jogos Eletrônicos no Brasil”, elaborado pela Abragames em 2004, revela dois aspectos interessantes: Um ponto curioso é que as desenvolvedoras brasileiras apresentam uma proporção programadores/artistas (ilustradores e modeladores 3D), diferente de mercados consolidados no desenvolvimento como Inglaterra e Estados Unidos. Nesses países, normalmente, existem dois artistas para cada programador. Pode ser que a proporção esteja diferente porque existem muitos cursos de graduação em Ciência da Computação que estimulam o desenvolvimento de jogos. Talvez, as empresas ainda não estejam dando a ênfase necessária na parte visual dos jogos.

Esta citação revela que se o aspecto visual de um jogo ainda carece de maior atenção, a questão do áudio é praticamente desconsiderada. Note-se também que o conjunto de profissionais que participam da produção de um jogo foram enquadrados nas seguintes categorias: Programador, Game Designer, Modelador 3D, Ilustrador, Gerente de projetos, Administrador, Outros. Dentre elas, não aparece nenhum profissional relacionado à área de áudio. Para tentar minimizar esse problema, esta pesquisa, em andamento, analisa a possibilidade de uso da música contemporânea, em especial, a

189 musica eletroacústica, na composição da trilha sonora de um jogo. A produção da trilha sonora de um jogo pode se tornar muito mais complexa devido aos efeitos relacionados à interação. Por exemplo, associar uma música a uma cena é relativamente simples, pois o próprio fato de ser uma música já demonstra que há organização e coerência nos materiais empregados, neste caso sons. Para a criação de uma música, em geral, se respeitam regras e formas bem conhecidas, porém, um efeito sonoro repetido várias vezes no processo de interação entre o jogador e o jogo - precisa ser muito bem planejado para não causar stress no jogador e nem diminuir a sensação de ação e reação. A produção de um efeito sonoro muitas vezes apresenta os seguintes problemas: 1. dissociação entre o nível da ação e o impacto do som (p.ex, ação suave e som agressivo); 2. desconexão do efeito sonoro com a música (falta de harmonia estética), o que pode ocasionar uma ruptura do jogador com a cena do jogo; 3. grande diferença de intensidade entre a música e o efeito sonoro; 4. diferenças gritantes entre os efeitos sonoros (p.ex, o som de um tiro de um jogo simples, em princípio, deve manter a simplicidade coerente com os outros sons e a própria interface); 5. utilização de sons padrões, comuns à internet e a jogos eletrônicos antigos, que pela sua familiaridade perdem o interesse.

Todos esses problemas estão atrelados à falta de comprometimento entre os sons e a música. Uma forma de suprir esse problema é a utilização da música concreta, pois a sua estética prevê a construção da música pela inserção de ruídos ou efeitos sonoros. Atribuição de aspectos Musicais nos efeitos sonoros. Na música ocidental dos últimos dois séculos foram e ainda são trabalhados principalmente elementos como: Melodia, Harmonia, ritmo. Somente a partir do século XX e, em especial, no pós-guerra é que tais elementos começaram a serem extrapolados. Para poder entender essa extrapolação desse “novo” tipo de música é necessário primeiramente conhecer os principais parâmetros envolvidos na qualidade de um som, pois é com a possibilidade de controle total na manipulação desses parâmetros, com o auxílio da tecnologia, que a música eletroacústica trabalha para organizar os sons.

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Musica Eletroacústica Possui duas principais vertentes, que ao longo do tempo foram se aproximando, a Musica Eletrônica (Elektronische Musik) e a Musica Concreta (musique concrète). Segue um breve histórico sobre esse tipo de expressão musical, ressaltando a importância e o uso para o meio audiovisual, principalmente para os jogos eletrônicos. Musica Eletrônica O início do desenvolvimento da música eletrônica data de 1890 com os primeiros experimentos de construção de instrumentos eletrônicos, como o Telharmonium por Thaddeus Cahill. No entanto, esse tipo de instrumento começou a ter real importância musical com o surgimento do Theremin (1924) e as Ondas Martenot (1928). O termo Eletronische Musik é empregado somente em 1949, para identificar as experiências de Herbert Eimert e Robert Beyer na radio WDR de Colônia (Alemanha). A grande premissa da música eletrônica é a Síntese Sonora (“Dado um grupo de componentes harmônicos, a operação de misturá-los para formar um som complexo é chamado de síntese sonora.” [ROEDERER]). Neste caso, ela consiste na criação de sons por meio de geradores ou osciladores de freqüência e/ou amplitude. Tais osciladores geram principalmente ondas senoidais. Com base na teoria de Fourier, a qual “demonstra que qualquer forma de onda pode ser decomposta em uma soma de ondas senoidais” [CÂNDIDO], torna-se possível a criação e a organização de sons e, portanto, o que origina as musicas por meio de processos eletrônicos. Está técnica de geração de som foi muito explorada pela indústria dos jogos eletrônicos no seu inicio: O Computer Space foi o primeiro jogo de galeria (arcade) do mercado, lançado em 1971 pela Nutting Associates, a contar com um canal de áudio gerado eletronicamente por um circuito integrado que incluía explosões e sons de fundo que lembram captação de freqüência via rádio com alternâncias de graves e agudos. (SILVA, 2005).

A contribuição da música eletrônica para os jogos eletrônicos não foi além do aparato tecnológico, por uma razão de complexidade estrutural. A música eletrônica tem como características principais a estética abstrata e o

serialismo, duas características incompatíveis com meios multimídia. Não é recomendável ser ter som com alta complexidade musical em um ambiente multimídia, principalmente em um jogo, pois a maior parte da atenção do jogador recai sobre as decisões e as interações com o jogo. Sobre este fato Ney Carrasco afirma (2005): Em uma situação em que a música não acontece sozinha, mas associada a outras linguagens, a atenção do espectador não pode, e não deve, concentrar-se unicamente sobre ela. Isso faz com que a capacidade de compreensão de determinadas sutilezas do discurso musical seja prejudicada. Construções extremamente complexas, que exijam uma atenção especial e uma atitude de audição consciente, em muitos casos não obterão do espectador essa atenção, ou a obterão pelo seu desvio para o discurso musical, prejudicando a compreensão da mensagem como um todo.

No cinema esse tipo de musica foi e é ainda muito utilizada em filmes ficção cientifica, dado seu caráter artificial e estranho ainda para maioria dos espectadores. Música Concreta Surgiu com os experimentos de Pierre Shaeffer e Pierre Henry com fitas magnéticas no estúdio da radio RTF em Paris. Seus experimentos contavam com sons naturais gravados ou “concretos” (fonte do nome: Música Concreta) chamados mais tarde de objeto sonoro. Estes eram manipulados, de forma um tanto quanto rudimentar para os dias de hoje, cortando e colando as fitas magnéticas, então alterando o som natural. Cortar e colar são apenas um dos inúmeros modos de modificar um som, a rotação do gravador de fita também foi muito utilizada, tanto para frente, executando o som mais rápido, quanto para traz, processo que modifica totalmente o som original. Esses e outros métodos concretos de modificação de um som geram resultados surpreendentes auditivamente. O principal motivo é que esse som, totalmente novo, é gerado a partir de um som natural e muitas vezes comum ao diadia, então sua complexidade harmônica (timbre) é similar ao som natural, mas o resultado final é totalmente novo. Isto o torna apto a receber uma significação nova, pois nunca ninguém o tivera ouvido anteriormente. Tais possibilidades foram logo absorvidas pelo cinema, principalmente pelos projetistas de áudio

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simpósio de pesquisa em música 2006 (Sound Designer), sobre esse aspecto Tony Berchmans escreve (2006): A primeira vez que o termo sound design apareceu nos créditos de um filme foi Apocalipse Now (1975) do diretor Francis Ford Coppola. Graças às emergentes possibilidades técnicas da época e à busca de novos caminhos para o som do cinema, este filme marcou uma fase em que o som ganhou uma importância especial no cinema. De lá para cá, houve uma evolução sonora absurda, e hoje temos sound design em todo tipo de comunicação audiovisual além do cinema, como televisão, videogames, internet etc”. Conceitualmente, sound design (ou desenho de som, como em português pode-se chamar) é a criação, manipulação e organização de elementos sonoros. É o processo que reproduz o rugir de um tiranossauro rex, ou o som de uma arma-laser, o tiroteio de uma sangrenta batalha, ou ainda, a voz de um computador futurista.

Nesta introdução sobre as técnicas e as utilizações da música concreta nos meios audiovisuais, nota-se que o pensamento Schaferiano (aquele em que Murray Schafer considera a paisagem sonora como composição musical) é parcialmente utilizado, ou seja, se utilizam sons conhecidos no dia-a-dia, no entanto, não se considera uma montagem destes sons para formar, em termos composicionais, um determinado cenário. Flo Menezes, no artigo “Um olhar retrospectivo sobre a história da música eletroacústica” (1996) escreve sobre a função do evento sonoro como música: A partir da noção de matéria concreta, de objeto concreto ou, empregando o termo preferido de Pierre Schaeffer, de objeto sonoro, que deve ser entendido no sentido que vai do ruído de uma porta ao de um suspiro, passando neste percurso pelo instrumento ‘tradicional’ de música, é a partir, pois dessa noção bem estendida, que se estabeleceu definitivamente o conceito de pan-música, de uma musica na qual cada evento sonoro possa ter lugar – na medida em que a intenção assim o deseje.

Na definição de Pierre Schaeffer de música concreta fica ainda mais evidente a apropriação do objeto sonoro (som gravado) no fazer musical (1993): Tomar partido composicionalmente dos materiais oriundos do dado sonoro experimenta; eis o que chamo, por construção, de música concreta, para que possa pontuar a dependência em que nos encontramos, não

mais com relação a abstrações sonoras preconcebidas, mas com relação a fragmentos sonoros existentes concretamente, e considerados como objetos sonoros definidos e íntegros, mesmo quando e sobretudo se eles escaparem das definições elementares do solfejo.

A interpretação da palavra solfejo deve ser feita conforme sugerido por Ananay Aguilar na sua dissertação “Processos de estruturação na escuta de Musica eletroacústica” (2005): Vale notar a ligeira diferença entre a acepção do termo em português e em francês. Enquanto o solfejo em português denota uma atividade ligada à leitura e entonação correta das notas musicais, o termo solfège implica um estudo dos princípios elementares que regem a música, ou seja, está mais aparentada com a teoria musical do que com o solfejo em língua portuguesa.

Pode-se notar que a fundamental preocupação de Pierre Schaeffer é a utilização do objeto sonoro como material de composição e não somente o simples fato da técnica de manipulação de um som existente na formação de um novo som. Modo simplista que muitos projetistas de áudio encaram a contribuição da música concreta. No livro Tratado dos objetos musicais escrito por Pierre Schaeffer em 1966 existem vários princípios formativos para a criação da música concreta. Estes são, em sua maioria, totalmente aplicáveis à criação de efeitos sonoros. Para justificar tal afirmação, é de grande valia uma referencia à paisagem sonora criada por Murray Schafer. Utilizando apenas sons do cotidiano (paisagem sonora) Murray Schafer ensina às crianças todas as propriedades do som e da música, alem de conceitos sobre ruído, silêncio, tempo e composição. Torna-se evidente então a eficácia da análise musical ao englobar os sons ou ruídos, o qual podemos também chamar de efeitos sonoros. Discussão O projeto que impulsionou o estudo para a formulação deste artigo foi a animação Purungo. Na formulação desta animação foram seguidas as etapas de criação de um modo rigoroso, ou seja, a formatação do roteiro, a produção do storyboard e a realização de reuniões com toda a equipe de criação. Isto possibilitou o planejamento adequado da trilha sonora. Foi estabelecido um plano de composição, com conflitos (tensões), clímax e resoluções em função da animação. Decidiu-se, então, que a sonorização começaria pela produção dos efeitos sonoros. Finalizada essa etapa, notou-se que todas

192 as metas planejadas para a trilha sonora (incluído a música) tinham sido alcançadas pela composição através dos efeitos sonoros. O resultado da sonorização desta animação pode ser escutado e entendido como uma música concreta. Despertando, assim, a percepção da relação entre efeito sonoro e a música. Conclusões A análise da incorporação do áudio as interfaces dos jogos de computador evidenciou os problemas descritos na Introdução deste relatório. Na elaboração das trilhas sonoras de duas animações (Edugraph e abertura do Congresso SBGames) e de quatro jogos (EEHouse e fases 1, 2 e 3 do Edugraph), procurou-se evitar esses

SIMPEMUS3 problemas. Observou-se que estes problemas estão mais atrelados à concepção estética dos efeitos sonoros do que aos problemas técnicos, o que motivou a pesquisa sobre música eletroacústica descrita neste documento. Para o desenvolvimento da pesquisa, foram estudados conceitos e realizadas diversas experiências em música eletroacústica, o que proporcionou uma visão abrangente sobre o tema e uma ampliação das possibilidades de aplicação. O acréscimo das linhas de pesquisa de cognição, semiótica e linguagens musicais, sem dúvida, seria de grande valia para continuação desta pesquisa. Que como apresentado nos tópicos anteriores apresenta resultados novos e consistentes.

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Gesto & interpretação mediada para marimba César Adriano Traldi, Jônatas Manzolli Universidade Estadual de Campinas

Resumo A pesquisa aqui descrita vincula a interpretação musical e a interação do músico em processos de mediação tecnológica com o objetivo de ampliar a sua percepção sonora e a sua capacidade de interagir com a diversidade de gestos e sonoridades vinculados à música contemporânea. São apresentados dispositivos e parâmetros de interação que ampliam as possibilidades da interação em tempo real nas obras para marimba e eletrônicos ao vivo. Palavras-chave: Marimba, interação, sensores, interfaces, gesto

Introdução A música interativa surge no final do século XX e rapidamente torna-se uma das principais linhas composicionais do inicio do séc. XXI. Robert Rowe (1993) comenta que o desenvolvimento dos meios eletrônicos possibilitou a execução de composições algorítmicas em tempo real, assim os sistemas musicais computacionais são capazes de modificarem seu comportamento sonoro em função de estímulos gerados por músicos em performance. Em 2001 teve início uma série de conferências anuais na busca de criar novos dispositivos e instrumentos de interação em tempo real intitulada de NIME1, onde intérpretes e pesquisadores têm demostrando novos dispositivos e meios de interação em tempo real. O percussionista Kumor (2002) comenta que a performance de obras contemporâneas exige do intérprete conhecimentos que vão além do padrão curricular. Esta pesquisa busca estudar essas possibilidades de interação verificando a postura do intérprete frente a essa nova linguagem musical. O objetivo é entender e descrever as possibilidades e a importância da performance do intérprete nessas obras. Através de oficinas, esses dispositivos, equipamentos e elementos de performance, são testados e estudados de maneira a ajudar intérpretes a desempenharem performances coerentes e que ajam de maneira positiva no resultado final da obra que executam. Na seção “Elemento de Performance – O Gesto” descreveremos o conceito de Gesto Sonoro e Gesto Físico. Segue a seção “Processamento em Tempo Real” onde 1

New Interfaces for Musical Expression

descreveremos alguns dispositivos de interação. Em “Sensores”, falaremos sobre o princípio de funcionamento e as propriedades físicas dos sensores. Na seção “Interpretação Mediada e Marimba” descreveremos as obras Daydreams e A Gravidade Liberta observando os dispositivos de interação utilizados. Esta pesquisa tem sua metodologia focada para um processo de interação entre a prática instrumental e a construção de novos meios e dispositivos para interpretação mediada da marimba. Os resultados preliminares apontam para a necessidade de uma nova visão interpretativa que fomenta no intérprete o aumento da sua capacidade de controle de estruturas sonoras e amplia sua habilidade de correlacionar eventos e sonoridades da marimba. Elemento de performance: o gesto Para elucidar a interação do gesto e da expressão musical com dispositivos eletrônicos, pode-se apontar um ponto inicial na criação de Lev Termen (posteriormente mudado para Leon Theremin): Theremin em 1919. Este instrumento foi o primeiro a produzir som sem necessitar do contato físico do instrumentista. Apenas a movimentação da mão realizada em torno de uma antena controlava a emissão sonora, o que fazia com que fosse necessária uma grande precisão gestual por parte do intérprete. Historicamente, esta é a primeira referência de eventos sonoros realizados a partir do gesto sem contato direto com um meio físico (ROWE, 1993; GLINSKY, 1992). Clara Rockmore, aluna de Leon Theremin, era violinista, quando um problema em suas mãos a impossibilitou de tocar o violino e ela então passou a se dedicar ao Theremin. Clara transportou a técnica do violino para o theremin, com um método de “dedilhado aéreo” que dava precisão ao controle do som

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emitido pelo aparelho. Desta forma, criou um meio de interação com a tecnologia e especializou seu gesto de modo a tornar-se uma virtuose do instrumento. Guardadas as devidas proporções, o que se pretende fazer, a partir da interação com os computadores, é repetir a experiência realizada por Clara Rockmore. Para que o gesto possa ser utilizado como meio de ligação entre intérpretes e dispositivos de interação ao vivo como computadores, sensores e outros, ele deve ser estudado, compreendido e ampliado, uma vez que além de ser o fio condutor da interação homem-máquina, ele será o elemento fundamental na conexão direta entre o material eletrônico e a geração sonora dos instrumentos no momento da interpretação. Raul do Valle ao estudar o gesto ligado à técnica instrumental menciona: “Um gesto é um movimento que envia um sinal a um observador. Para tornar-se gesto, um ato deve ser visto e comunicar uma informação” (VALLE, 1996). O Gesto será por nós tratado nesse trabalho em duas formas: 1.Gesto Sonoro; 2.Gesto Físico, vertentes:

subdividido

em

duas

Gesto Físico Incidental ou Residual Gesto Físico Cênico O enfoque será no sentido de observar e estudar os movimentos, a técnica e as disposições cênicas, que são gerados e estão diretamente envolvidos na performance instrumental. Raul do Valle (1996) fala da importância de que os gestos sejam claros, sem equívocos e impossíveis de se confundir, exprimindo força, amplitude e velocidade iguais a cada uma de suas manifestações. Gesto sonoro Segundo Iazzeta (1997): “A música sempre esteve relacionada ao gesto do intérprete, porém a sua importância e significação apenas nas últimas décadas passaram a ser estudadas”. A partir desta observação não é difícil verificar que se trata então da relação instrumento/ instrumentista e o som por eles gerado, num movimento contido no espaço-tempo ou no processo dinâmico gerado pelo músico. Assim, na performance musical, o som percebido depende dos caminhos gestuais do instrumentista, estando

intrinsecamente ligado ao gesto sonoro e de forma ampliada, ao movimento corporal do percussionista. O gesto sonoro foi também conceituado por Iazzetta (1997b): “Trata-se da significação do movimento, que está intimamente ligado à ação musical. Aplicado aos conceitos de técnica e tecnologia, intensamente utilizados em música a partir do começo do século XX, o gesto sonoro passou a englobar não somente a emissão do som, como também a técnica empregada e a tecnologia aplicada”. O gesto sonoro nada mais é do que os diferentes caminhos sonoros possíveis de serem produzidos nos instrumentos. Escalas, glissandos, acordes, notas longas, notas curtas são alguns exemplos de gesto sonoro. Após a captação dos gestos sonoros através de sensores como, microfones ou sensores piezo-elétricos, esses dados são enviados a computadores que podem reconhecê-los através de softwares como o Max/MSP e PD. Essas informações podem ser utilizadas para definir as ações do computador. Nesse trabalho, realizamos oficinas onde estudamos essas interações, de maneira a elucidar aos intérpretes quanto à importância de sua execução nessas obras. Um gesto sonoro executado de uma maneira inadequada poderá transmitir informações inadequadas ao computador, transformando o que deveria ser um dialogo entre intérprete e máquina, numa confusão de informações, onde não existe coerência entre perguntas e respostas. Gesto físico incidental ou residual Segundo Frank Kumor (2002), o movimento e a música instrumental possuem uma relação inseparável. O movimento quando acompanhado de um significado é denominado de gesto. O gesto incidental é o movimento natural e inevitável do intérprete, na execução instrumental. O gesto incidental nas músicas para percussão é mais importante e mais facilmente evidenciado do que em obras compostas para outros instrumentos, isso é devido à grande extensão espacial necessária para a execução dos instrumentos de percussão ou de obras que requerem configuração de diferentes instrumentos. A movimentação neste espaço, junto com o grande movimento muscular na performance desses instrumentos, cria uma intrigante e sutil “dança”, segundo Kumor (2002) esta “dança” ocorre com a mudança de posição do músico, com o ato de se estender e inclinar-se no instrumento, e na movimentação de braços, pulsos e mãos no controle

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simpósio de pesquisa em música 2006 das baquetas ou das próprias mãos que serão utilizadas para produzir os sons nos instrumentos. O estudo e a compreensão do movimento residual ou incidental utilizado na execução da técnica instrumental devem ser parte regular do vocabulário de percussionistas. O gesto musical está diretamente ligado com a produção sonora do instrumento. Muitos estudos têm sido feito com respeito à eficiência do movimento corporal incorporado à técnica de execução instrumental. O percussionista deve utilizar-se de técnicas e métodos de estudo que desenvolvam eficiência física para o melhoramento da performance. Devido a importância do gesto residual inerente à performance da marimba, esta pesquisa desenvolveu uma busca pela compreensão deste gesto de maneira que ele possa servi como meio de comunicação entre intérprete e máquinas. O gesto residual do intérprete poderá ser captado através de sensores de movimento e transformado em informações para o computador. Para que isso possa ocorrer com sucesso, o intérprete deve ter consciência da importância e das inúmeras possibilidades gestuais existentes de maneira a padronizar movimentos para que possam ser captados e compreendidos pelos meios eletrônicos. Os diferentes tipos de qualidade sonora causada pelo gesto residual também podem ser captados através de microfones e servirem como meio de interação. Para que o gesto residual possa ser utilizado como meio de interação é necessário seu estudo e entendimento, para isso realizamos oficinas onde as diferentes possibilidades foram testadas. O objetivo é formar um padrão gestual que possa ser captado pelos meios eletrônicos e que ao mesmo tempo não comprometa a performance e a geração sonora do instrumento. Ao falar sobre o movimento incidental, Frank Kumor (2002) diz: “O movimento incidental produzido na performance de instrumentos de percussão cria uma dança única em várias composições, e compositores como John Cage tiveram consciência dessa condição”. Vários compositores que observaram este fenômeno consideraram o movimento corporal como sendo parte integral na performance em suas composições. Alguns compositores passaram a dar tal importância ao gesto dos instrumentistas que algumas obras só podem ser apreciadas e compreendidas quando são assistidas em performances ao vivo, nessas obras a música deixou de ter apenas um caráter auditivo,

tornando-se também uma arte que se expressa por meios visuais. Na próxima seção vamos tratar especificamente do que Kumor denomina de Gesto Cênico. Gesto cênico No séc. XX ocorreu um grande crescimento na experiência com música para percussão. Os compositores passaram a ver os instrumentos de percussão como instrumentos com grande potencial como solistas e em música de câmara. Somado a isso, alguns compositores adicionaram novos elementos na performance, a descrição do movimento ou o gesto cênico (movimento com significado). A inclusão da ação cênica em trabalhos para percussão atuais e a performance com desafio técnico não é ainda parte do padrão curricular de percussionistas e esse trabalho tem como objetivo aproximar intérpretes dessa nova linguagem musical. O Movimento físico com significado recebe o nome de gesto cênico e deve ser pensado portanto, como o movimento do corpo que é descrito pelo compositor, um movimento específico, planejado e que é um elemento integrado na performance. Isto não deve ser confundido com o gesto residual que é produzido naturalmente em execução instrumental, o gesto residual, também é um gesto pensado e com significado, mas a sua utilização é apenas pensada para a melhor produção sonora. Já no gesto cênico seu significado é visual e está diretamente ligado ao movimento físico do intérprete e não à geração sonora. Problemas de interpretação e performance imprecisas surgem quando o percussionista é requisitado para tocar estes gestos descritos pelo compositor. Isto ocorre por que o percussionista é geralmente treinado para o gesto incidental necessário na técnica de execução do instrumento, mas não é treinado para movimento gestual desenhado, a adição do gesto cênico como um elemento na performance de uma composição acaba por confundir o percussionista e, portanto representa um problema físico e musical. Portanto, este trabalho tenta auxiliar os intérpretes a entenderem e notarem a importância do gesto nas obras em que executam, principalmente nas obras contemporâneas que utilizam gestos desenhados. O gesto é estudado e descrito através das oficinas, de maneira a demostrar a importância gestual para a produção sonora e para a performance visual da obra. No contexto de obras interetivas, o gesto muitas vezes terá que ser alterado para que os diferentes

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dispositivos e sensores possam captar e transmitirem as informações para os computadores. Processamento em tempo real O desenvolvimento de novos dispositivos e meios eletrônicos nas décadas de 60, 70 e 80 possibilitaram uma ampla rede de inter-relações entre a dimensão instrumental e a eletroacústica, surgindo a possibilidade da interação em tempo real, driblando a questão do tempo fixo do suporte magnético que se defrontava com a inevitável maleabilidade do gesto instrumental. É nesse contexto que se inserem as obras que fazem uso de eletrônicos ao vivo (live-electronics), ou seja, com a transformação sonora ao vivo dos sons instrumentais, com a flexibilização da dimensão temporal através da determinação operante do intérprete no ato da execução, com a interação entre instrumento e meios eletrônicos ocorrendo em tempo real, surge flexibilização do tempo em duas vertentes: 1.Sons produzidos pelo transformados ao vivo;

instrumento

sendo

2.Técnicas em tempo real onde a execução instrumental leva à produção de estruturas sonoras controladas por computadores, que não necessariamente dependem, diretamente, dos sons produzidos pelos instrumentos.

O equipamento mais utilizado atualmente para o processamento em tempo real é o computador com a utilização de softwares como Max/MSP e PD. Esses softwares possibilitam uma enorme variedade de efeitos timbrísticos, a utilização de diferentes dispositivos de captação para a interação com o intérprete e a reprodução de sons ou trechos musicais que podem ser previamente gravados ou captados durante a performance da obra. Sensores Para que haja alguma forma de interação entre o instrumentista e eletrônicos e, em particular, o computador, são necessários dispositivos capazes de capturar variações de parâmetros provocadas pela ação do intérprete. Estes dispositivos são denominados, de forma geral, neste trabalho de sensores. De forma intuitiva, os sensores coletam informações do meio ambiente sobre parâmetros físicos relacionados com o instrumento e ações, como o gesto aqui estudado, produzidas pelo intérprete.

Este conjunto de informações será fornecido de alguma maneira para o computador digital através de interfaces apropriadas. Em particular este trabalho apresenta três processos de interação homem-máquina nos quais foram estudados e construidos diferentes modelos de interpretação. Portanto, podemos dividir o processo em três fases: a) captação da informação através de sensores que a convertem em sinal elétrico (analógico); b) conversão do sinal analógico em digital para interpretação através de software dedicado; c) interpretação e processamento computacional.

Apesar dos sensores terem sido criados para outras finalidades parafraseando (BOULEZ, 1977), podem ser utilizados como veículo de comunicação entre instrumentistas e computadores. Princípio de funcionamento e propriedades físicas Intuitivamente o princípio de funcionamento de um sensor pode ser descrito da seguinte forma: o valor de estado de uma grandeza que caracteriza um parâmetro medido no meio ambiente é quantificado por outra grandeza física como intensidade de luz, calor e som ou grandezas mecânicas como posição, velocidade e força. De maneira geral, estes parâmetros são relacionados com variação temporal, pois a base fundamental da música é o tempo. Em síntese, uma variação da grandeza física provoca no sensor uma variação do seu sinal elétrico de saída. A partir deste princípio fundamental é possível classificar e caracterizar os sensores segundo os seguintes critérios: faixa operacional (range): faixa de medida em que os valores são válidos. resolução: menor incremento da grandeza medida que provoca mudanças na saída do sensor. sensibilidade: relação entre a variação da grandeza de saída (tensão, corrente, etc) e a variação da grandeza medida. linearidade: se a razão entre as variações das grandezas medidas pelas variações das grandezas de saída são constantes, o sensor é linear. Em instrumentos analógicos, isto corresponde a escalas lineares. Uma outra possibilidade, muito freqüente, é ter-se uma escala logarítmica, o que indica um sensor usando uma conversão de energia exponencial. histerese: fenômeno em que ao se alterar uma grandeza num sentido (por exemplo, de um valor baixo para um valor alto), a medida segue uma

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simpósio de pesquisa em música 2006 curva que ao se alterar a mesma grandeza no sentido contrário, a curva de medida é diferente. exatidão ou erro: diferença absoluta entre o valor medido pelo sensor de uma grandeza física e o valor real dela. relação sinal/ruído: relação entre a potência do sinal entregue pelo sensor e a potência do ruído, isto é, a potência de saída caso a grandeza medida não troque nenhuma energia com o sensor. resposta em freqüência: as freqüências das variações da grandeza medida que o sensor é capaz de acompanhar. Geralmente, representado por um diagrama ganho vs. freqüência, diagrama de Bode.

Sensores de presença Nesta classe de sensores as medidas são relacionadas à interferência que a presença de objetos feitos de materiais específicos criam em feixes de luz, como infra-vermelha, campo magnético ou diodos emissores de luz (LEDs).

Sensores de velocidade Radares de ultra-som: baseados no efeito Dopper, um sensor de som junto com um emissor de ultrasom pode determinar a velocidade de um objeto.

Interpretação mediada e marimba Uma das primeiras obras que encontramos no repertório para Marimba e eletrônicos ao vivo é Daydreams (1991) de Philippe Boesmans. O percussionista Robert Esler (2003) comenta as dificuldades de execução dessa peça naquela época e até mesmo nos dias atuais no que tange a complexidade da tecnologia utilizada através de inúmeros dispositivos eletrônicos aplicados à interação entre o intérprete e o computador. A interface utilizada foram sensores piezoeléctricos nas teclas da marimba, a informação recebida era enviada para um conversor MIDI analógico, e o computador transmitia a informação apropriada baseado em uma seqüência de eventos programadas em uma antiga versão do Max. Microfones e sensores de movimento

Micro-switches: pequenas chaves elétricas. São colocadas nos pontos onde se deseja estabelecer a presença de algum objeto. Reed switches: chaves com contatos em material ferro-magnético que se fecham com a proximidade de um campo magnético (imã). Sensores óticos: a emissão e a repecpção de diodos emissores de luz (LEDs) e/ou fototransistores é interrompida pela presença de algum objeto.

Sensores de posição De uma forma geral, os sensores de posição também podem ser usados como sensores de presença, embora o contrário seja falso. Sensores potenciométricos: uso de resistências com um cursor metálico que acompanha a posição de um objeto. Encoders: também são chamados de codificadores, são sensores de posição constituídos de um ou mais sensores óticos de barreira que detectam a passagem de alterações em uma superfície constante. Sensores de Ultra-som: usam um emissor de ultra-som, tipicamente, um cristal piezoelétrico, e um receptor, um microfone. Uma onda de som ultra-sônica, acima de 20 kHz é emitida e refletida por um obstáculo, através do cálculo do tempo de ida e volta é possível determinar a presença dos obstáculos e a sua posição.

Algumas peças mais atuais utilizam alguns dispositivos mais modernos na interação intérprete/computador, um exemplo é A Gravidade Liberta (2003), para marimba e eletrônicos ao vivo, do compositor espanhol Ricardo Climent. Nessa obra, o computador reage em tempo real aos estímulos provocados pelo intérprete de forma que ao tocar o instrumento o computador capta os sons gerados, através de microfones, e o transmite com alterações utilizando alguns efeitos como: duplicação, repetição, distorção e alteração timbristica. Ampliando as idéias reativas encontradas na peça Daydreams. Além de o intérprete conseguir estabelecer tal interação com o computador através do ato de tocar, ele também tem a possibilidade de interagir com a maquina e interferir nos sons que estão sendo gerados através de gestos das suas mãos onde estão sensores numa luva que captam esses movimentos e provocam novos estímulos ao computador fazendo com que ocorram alterações no som que está sendo gerado. Apesar dos diferentes meios tecnológicos de interação em tempo real utilizados em Daydrems e A Gravidade Liberta, podemos notar que em ambos os casos é exigido do intérprete um conhecimento e familiarização com a tecnologia utilizada que não faz parte da grade curricular convencional. Essas duas peças demonstram algumas das inúmeras possibilidades de dispositivos de interação entre intérprete e eletrônicos ao vivo, mas também

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mostram a necessidade de uma nova visão interpretativa. Metodologia A metodologia utilizada na pesquisa apoiase em três elementos fundamentais: construção de novos dispositivos com sensores diversos; mediação através de processo computacional; oficinas de performance onde é realizada a validação do processo bem como as medidas de desempenho do sistema e avaliada a reação do músico.

Através da realização de oficinas de performance como meio de integração entre a prática instrumental e os dispositivos estudados, o intérprete-pesquisador vincula o conteúdo teórico e tecnológico desenvolvido na construção de interfaces com sua prática instrumental. Como estudo de caso aplicado à interpretação da marimba, apresentamos a interação do intérprete com o computador através do gesto. Wanderley (2006) ao falar sobre a interação entre homens e máquinas em performances em tempo real, aponta como principal questão surgida: como utilisar esta capacidade de geração sonora em tempo real? Ou, como tocar um computador? É preciso decidir quais os tipos de controles que serão postos à disposição dos possíveis músicos. É necessário criar dispositivos (normalmente à base de sensores eletrônicos diversos) que serão conectados ao computador para controlar a geração sonora. Segundo Wanderley (2006) quando tratamos de sistemas de geração sonora controlados por gestos, graça à flexibilidade oferecida pela geração sonora por meios eletrônicos, o projeto de interfaces gestuais não necessita seguir os padrões existentes dos instrumentos musicais acústicos a que estamos acostumados. Graças ao enorme desenvolvimento da tecnologia de sensores, praticamente qualquer ação física pode ser transformada em sinais elétricos que serão, em seguida, utilizados para gerar novos sons ou controlar sons já existentes. Existem varias opções para a análise e comparação de sistemas de geração sonora controlados por gestos, entre eles:

a) Perspectiva de Interação Homem-Máquina: é importante levar em conta quais os objetivos tanto dos movimentos de controle quanto dos sons gerados, do nível de controle exigido do “instrumentista”, assim como se o sistema é controlado por uma ou por várias pessoas, se estas pessoas estão no mesmo espaço físico ou em diferentes regiões, se o objetivo final é uma forma de comunicação ou a exploração de um espaço. b) Perspectiva Tecnológica: analisam-se quais as tecnologias empregadas para a aquisição dos movimentos, o tipo de correspondência entre as variáveis eletrônicas derivadas dos movimentos físicos e as variáveis de controle dos sons a serem produzidas ou alteradas e finalmente as opções de algoritmos disponíveis para a geração sonora.

Primeiros resultados Com os resultados obtidos na análise das oficinas já realizadas observamos que nessas obras o intérprete deixa a postura de ser apenas meio de execução para assumir a posição de elemento de coesão, onde através da adaptação, molda-se a cada obra. A forte presença da improvisação somada à necessidade do conhecimento dos dispositivos utilizados em performance nessas obras colocam o intérprete na posição de co-criador das obras que executa. Projeções e conclusão O grande número e diversidade de dispositivos eletrônicos de interação tornam inviável o estudo de todos eles, mas temos como objetivo pesquisar alguns que demonstram grande potencial nessa função como os sensores de pressão e luz. A utilização de dispositivos eletrônicos de interação em tempo real na marimba aponta para o desenvolvimento de uma nova visão interpretativa no instrumento que possibilite ao intérprete a interação com inúmeros dispositivos. A análise que fazemos é que a utilização de técnicas interpretativas mediada fomenta no intérprete o aumento da sua capacidade de controle de estruturas sonoras e amplia sua habilidade de correlacionar eventos e sonoridades da marimba.

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Referências BOULEZ, P. Technology and the composer: language of electroacoustic music. Londres: Macmillan Press, 1986, 1977, p. 5-14. BOULEZ, P. Gerzso, A. Computers in music. Scientific American, v. 258, n. 4, 1988. IAZZETTA, F. Meaning in music gesture. 6TH INTERNATIONAL CONGRESS – INTERNATIONAL ASSOCIATION FOR SEMIOTIC STUDIES, Guadalajara, México, 1997. Anais..., Guadalajara, 1997b. KUMOR, F. Interpreting the relationship between movement and music in selected twentieth-century percussion music. Tese (Doutorado) - University of Kentucky, 2002. MANZOLLI, J. The development of a gesture interface’s laboratory. II CONGRESSO BRASILEIRO DE COMPUTAÇÃO E MÚSICA. Anais..., Recife, 1996. ROWE, R. Interactive music system. Cambridge: The MIT Press, 1993. VALLE, R. Encadeamento: uma nova gestualização sonora. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, 1996. WANDERLEY, M. Instrumentos musicais digitais: Input devices and music interaction laboratory, music technology area – Faculty of Music / McGill University, Montréal, 2006.

O processo de produção musical na indústria fonográfica: questões técnicas e musicais envolvidas no processo de produção musical em estúdio Frederico Alberto Barbosa Macedo Universidade do Estado de Santa Catarina Resumo Buscamos neste artigo descrever o modo como o processo de produção musical em estúdio desenvolveu-se, paralelamente ao surgimento das diversas tecnologias de gravação, produção e reprodução sonora, até estabelecer-se nas fases hoje praticadas pela indústria fonográfica. Definimos inicialmente os papéis do produtor fonográfico e do engenheiro de som, figuras fundamentais neste processo. Descrevemos, em seguida, cada uma de suas fases: pré-produção, gravação, edição, mixagem e masterização. Explicamos algumas técnicas de produção atualmente utilizadas, discutindo suas vantagens e desvantagens, levando em consideração os resultados musicais desejados e a concepção artística e musical que se tem em mente. Para isto, utilizamos referências diversas, entre elas Bahia (1998a, 1998b), Burgess (2002), Dias (2000), Vidal (1999), Monteiro (1999) e Martin (2002). Em seguida discutimos algumas importantes questões de natureza musical, que influenciam o modo como o processo de gravação deve ocorrer, explicando alguns fatores musicais e estilísticos que devem ser levados em consideração ao se gravar estilos baseados na performance grupal, como a música clássica e o jazz. Em seguida explicamos alguns procedimentos específicos utilizados na produção de música eletrônica, usando, entre outras referências, Schrank (2002). Por fim, concluímos com algumas observações referentes às transformações trazidas pelas diversas tecnologias no processo de produção sonora, acentuando, especialmente, a fragmentação do processo em várias fases e o surgimento de inúmeros agentes envolvidos na produção e na tomada de decisões referentes ao trabalho que está sendo criado. Chamamos a atenção, também para a diversidade de técnicas hoje disponíveis e para a necessidade de sua adequação à concepção musical que se tem em mente para se chegar a bons resultados.

Introdução O processo de produção em estúdio sofreu diversas modificações ao longo da história da indústria fonográfica, estando intimamente ligado ao desenvolvimento das tecnologias de produção e reprodução do som. Inicialmente, este processo consistia no mero registro de uma performance. As possibilidades de manipulação do material gravado praticamente não existiam e o resultado final dependia, em última análise, da capacidade dos músicos e cantores de realizar uma boa performance. Com o surgimento da fita magnética, o processo de gravação foi se tornando cada vez mais dependente de operações realizadas após o registro do som. Em primeiro lugar, permitiu que se fizessem edições de gravações realizadas em diferentes momentos, selecionando os melhores trechos de cada take1, para montar a versão definitiva. O próximo passo foi dado pelo surgimento do overdub – ou overdubbing –, técnica que possibilita “gravar um novo material, ao mesmo tempo que se ouve (sem apagar) o 1

“Gravação completa de uma música ou de uma parte de uma música. Equivale à tomada de uma cena de um filme” (OLIVEIRA In. BURGESS, 2002, p. 3 - N. do T.).

material já gravado” (RATTON, 2004, p. 108). Em seguida vieram os gravadores multipistas, ou multitrack2 , que permitem que cada instrumento seja gravado independentemente. Esta técnica ofereceu uma grande flexibilidade ao processo de produção, possibilitando que várias decisões, antes tomadas durante a gravação, pudessem ser adiadas para outras fases do processo: a edição, a mixagem e a masterização. Hoje a produção em estúdio se dá através de cinco fases bem definidas: pré-produção, gravação, edição, mixagem e masterização, realizadas através do trabalho conjunto de uma equipe de profissionais – produtores, cantores, instrumentistas, arranjadores, técnicos e engenheiros de som, cujos papéis comentamos a seguir. O produtor e o engenheiro de som O produtor coordena a equipe que trabalha em um projeto específico. Ele define a concepção musical do projeto e coordena sua realização. Quando contratado por uma gravadora, ele funciona como um intermediário entre esta e o 2

“Gravador que pode gravar e reproduzir mais do que duas pistas (tracks) de áudio, simultânea e independentemente” (RATTON, 2004, p. 101),

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simpósio de pesquisa em música 2006 artista. Quando é um profissional autônomo, ele intermédia a relação entre o artista e o mercado, ou entre aquele e as gravadoras que possam estar interessadas na sua contratação. Segundo Dias (2000, p. 92), o produtor precisa ter “conhecimento musical, do mercado, do público e, sobretudo, dos detalhes técnicos que poderão transformar um disco e um artista num produto musicalmente sofisticado, ou de sucesso”. Além disso, precisa ter habilidades especiais no trato com as pessoas. “O produtor é o catalisador na química que é coordenar pessoas em torno de um projeto”, afirma Bahia (1998a, p. 84). O produtor trabalha diretamente com o técnico ou engenheiro de som, cujo papel é traduzir em som as idéias daquele, viabilizando tecnicamente suas concepções e observando sempre a qualidade da gravação. Nas gravadoras independentes e pequenos estúdios é comum o produtor e o técnico serem a mesma pessoa. Nas gravadoras e estúdios profissionais, as duas funções geralmente são desempenhadas por pessoas diferentes, o que libera o produtor para se concentrar nos aspectos propriamente artísticos da produção. As etapas técnicas – gravação, edição, mixagem e masterização – sempre necessitam do trabalho do engenheiro de som, e um mesmo profissional – em princípio – pode ser responsável por todas as fases, porém o mais comum hoje – pelo alto nível de especialização – é se utilizar técnicos diferentes para cada uma das fases da produção.

suas fases. Projetos de música eletrônica, de música pop, de rock, de jazz ou de música erudita necessitam de equipamentos e salas diferenciadas. Além disso, para um mesmo projeto podem ser utilizados vários estúdios diferentes. A pré-produção deve considerar os recursos orçamentários disponíveis para o, bem como definir os prazos de realização, lançamento, distribuição, divulgação e vendas. O mercado trabalha a partir de uma coordenação de diversos setores e profissionais, e para que tudo funcione bem, este planejamento deve ser feito e seguido de forma mais precisa e objetiva possível. Gravação Nessa fase a execução musical será transferida para a máquina de gravação. O mais importante é fazer uma captação do som com a melhor qualidade técnica e musical possível. Bons equipamentos, ambiente adequado e um bom técnico são essenciais. Também é fundamental conseguir que os músicos tenham uma boa performance, o que se consegue realizando um bom trabalho de pré-produção, a escolha adequada dos músicos e a criação de um ambiente favorável. A fase da gravação pode ser realizada, hoje, de três maneiras diferentes: ao vivo, em overdub e através de computadores ou seqüenciadores. Diversos fatores devem ser levados em consideração ao se optar por uma delas, entre eles a instrumentação e os arranjos, a qualidade dos ambientes de gravação, a disponibilidade dos músicos e a própria concepção musical do projeto.

A pré-produção É a primeira fase da produção. Nela se desenvolvem todos os processos prévios para a execução do projeto artístico, que o transformarão, enfim, em um produto fonográfico. É uma etapa fundamental para o bom andamento de um projeto, pois é aí que o trabalho começa a tomar forma. Fazem parte dela: A escolha do local de ensaio. Encontros com compositores. Audição e seleção de repertório. Concepção, criação e desenvolvimento dos arranjos [...]. Escolha do(s) estúdio(s) e do(s) técnico(s). Levantamento das técnicas ou tecnologias a serem empregadas no projeto [...]. Estimativa mais realista de custos. Esboço da estratégia e do projeto de marketing para o produto (BAHIA, 1988b, p. 80).

Basicamente, um estúdio precisa ter os equipamentos, o ambiente e o técnico adequados à realização do projeto ou de uma de

Gravação ao vivo É a forma mais antiga. Nela, os músicos tocam juntos ao vivo e grava-se a performance do grupo. De acordo com Monteiro (1999, p. 89), “existem muitas formas de se gravar ao vivo no estúdio, e é importante compreendermos que o termo ao vivo diz respeito a um grupo de músicos tocando juntos ao mesmo tempo e, preferencialmente, avistando-se uns aos outros”. Inicialmente, esse tipo de gravação era realizado com um único microfone captando todo o conjunto. Com o surgimento dos primeiros mixers3 e da tecnologia estereofônica4 tornou-se possível utilizar vários microfones ao mesmo tempo, mas, 3

Mesas de som de múltiplas entradas que permitem o ajuste e o equilíbrio de várias fontes sonoras (microfones).

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“Sistema de reprodução sonora em duas vias (canais) separadas, posicionadas uma de cada lado do ouvinte, de forma a lhe dar a sensação de posicionamento espacial (linear) do som” (RATTON, 2004, p. 61).

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ainda com os músicos tocando juntos e com o registro sonoro sendo feito do conjunto. Com o surgimento dos gravadores multipistas, tornou-se possível a gravação do conjunto ao vivo, com cada um dos instrumentos utilizando diferentes pistas de gravação. Monteiro (1999, p. 90) considera como vantagem desta técnica o fato de que ela preserva “toda a mágica e espontaneidade, além de oferecer durante a mixagem toda a flexibilidade de que o produtor e o engenheiro necessitarão para tratar individualmente a voz e os instrumentos musicais”. Mas mesmo com a microfonação múltipla, e utilizando-se gravadores multipistas as possibilidades de edição ainda eram bastante limitadas, especialmente devido aos vazamentos5. Este limite foi superado com o surgimento do overdub e das gravações ao vivo realizadas em salas isoladas acusticamente6.

O controle individual sobre cada uma das partes gravadas é muito maior e podem-se realizar edições, processamentos e adição de efeitos para cada trilha considerada individualmente, bem como substituir partes já gravadas ou adicionar novas partes ao arranjo. Atualmente, a gravação em overdub é a mais utilizada na indústria fonográfica, especialmente em música pop, rock e música popular em geral.

A vantagem da gravação ao vivo é que ela mantém a interação entre os músicos, o que dá à música uma atmosfera mais convincente e mais natural. “Quando tocam juntos no estúdio, mesmo sem se verem, os músicos da banda sentem, por empatia, as oscilações dinâmicas e de tempo que acontecem de forma orgânica”, afirma (2002, p. 87). Também Martin (2002, p. 340-1) observa que “engenheiros e músicos mais jovens estão chegando à conclusão de que a qualidade de uma gravação “ao vivo”, com vários instrumentos juntos, acrescenta tensão e emoção ao som, ainda que seja mais difícil lidar com ela”.

A fase de edição consiste na seleção dos melhores trechos de cada uma das partes gravadas e na montagem desses trechos em uma versão final. Pode ser feita após a gravação de cada uma das partes, de um certo número delas ou de todas. Nesse processo podem ser realizados também outros procedimentos técnicos, como eliminação de ruídos e vazamentos, pequenas correções de ritmos fora do tempo, eliminação de trechos de silêncio e utilização de afinadores eletrônicos7. Martin (2002, p. 342) descreve os benefícios da edição em multipistas:

Embora ao término da gravação muitas decisões referentes ao resultado final já tenham sido tomadas, é comum se gravar várias versões de um mesmo instrumento ou voz, ou mesmo versões alternativas de partes instrumentais e vocais específicas, que poderão estar ou não presentes na edição final. Edição

procuro guardar todas as execuções que puder. Às vezes, uma única frase maravilhosa surgirá de uma interpretação sem graça [...]. Se eu colocar cinco execuções lado a lado no multipista, poderei então selecionar a melhor parte de cada execução [...]. Dessa maneira, uma execução completa poderá ser montada como o produto de vários takes.

Gravação em Overdub Surgiu como uma conseqüência da possibilidade de se realizar gravações adicionais sobre um material já gravado. A técnica – criada por Les Paul, em torno de 1950 – revolucionou o processo de produção em estúdio, definindo suas diversas fases. Agora, não era mais necessário que os músicos estivessem juntos em um mesmo ambiente para que a música fosse gravada. “Agora era possível captar múltiplos takes tocados pelos mesmos músicos. Músicos e instrumentos podiam ser gravados separadamente, em momentos diferentes e em ambientes sonoros diferentes” (BURGESS, 2002, p. 3). 5

“Sons indesejáveis que são captados por um microfone. Exemplo: quando um microfone é posicionado em frente a um instrumento, e capta também o som de outros instrumentos no ambiente, esses outros sons são vazamentos” (RATTON, 2004, p. 150).

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Esta, uma das técnicas mais interessantes, pois preserva a interação entre os músicos, permitindo, também, edições e acréscimos posteriores.

Com o surgimento do áudio digital, foram desenvolvidas várias ferramentas que ampliaram muito as possibilidades de edição do material gravado. Ao final da edição, têm-se as trilhas definitivas que serão utilizadas na versão final, prontas para serem mixadas. Mixagem Segundo Vidal (1999, p. 54), “é o processo pelo qual se busca o equilíbrio correto e a melhor combinação de timbres entre as diferentes fontes sonoras já gravadas”. Na mixagem se realiza o equilíbrio de volume entre os vários sons, 7

Processadores em hardware ou software que permitem a afinação de vozes desafinadas.

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simpósio de pesquisa em música 2006 juntamente com o tratamento e processamento individual de cada uma das trilhas, bem como o posicionamento de cada som no campo estéreo. Muitos dos recursos utilizados nesta etapa podem ser empregados na gravação, mas seu uso na mixagem permite um maior controle – e que se teste várias opções – antes de se chegar ao resultado definitivo. O trabalho de mixagem envolve um nível considerável de conhecimento técnico e domínio no uso de vários equipamentos, processadores, efeitos, bem como um treinamento auditivo que possibilite perceber bem os resultados destes procedimentos sobre o som. Envolve também uma boa dose de sensibilidade artística e de conhecimento musical, influenciando não apenas o aspecto técnico da música como também seus aspectos artísticos. Por isso a mixagem deve ser acompanhada pelos responsáveis pelas tomadas de decisões referentes ao projeto, de modo a imprimir nele a concepção que se tem em mente. Muitas vezes, o que se pretende em uma mixagem é uma clareza maior na gravação e um alto nível de fidelidade em relação ao som original. Em outros casos, busca-se alterar intencionalmente este som para que possa se adequar a alguma proposta estética os idealizadores têm em mente. Na mixagem, é importante que todos os elementos estejam a serviço de uma linguagem expressiva. Comparando a música com a pintura, Bahia (1988c, p. 34-35) observa que: expressão [...] artística depende muito mais da composição como um todo do que do traço ou do realismo objetivo dos detalhes. Assim como encontramos a genialidade na perfeição matemática de Da Vinci, que retrata as imagens com perfeição e fidelidade, também a encontramos nos borrões e no movimento dos traços nervosos e rítmicos de Van Gogh [...] a genialidade também está presente nas imagens lisérgicas e não lineares de Salvador Dali.

A mixagem envolve uma grande dose de criatividade e pressupõe uma coerência com a proposta estética do artista. Mixar uma música pop, romântica, punk ou eletrônica envolve conceitos e procedimentos diferentes. Ao final da mixagem, a gravação multipistas é reduzida para o formato final no qual será comercializado, geralmente em dois canais (estéreo) que é,

desde os anos fonográfica8.

60,

o

padrão

da

indústria

Masterização A última fase do processo é a masterização, também chamada de pós-produção. É uma das etapas mais técnicas da produção em estúdio, e consiste na preparação das matrizes que serão enviadas à fábrica. A masterização deve levar em consideração a mídia final na qual a gravação será comercializada – disco de vinil, fita magnética, fita digital, CD, DVD –, pois cada uma delas possui características específicas. Na masterização é definida a ordem das músicas, os fade in e fade out9 e o intervalo entre as faixas. São utilizados os mesmos recursos da mixagem, só que, agora, ao invés de se trabalhar sobre as trilhas consideradas individualmente, trabalha-se sobre a gravação como um todo. Assim, busca-se uma homogeneidade de timbre, volume e sonoridade para todas as faixas. A masterização é também um processo de finalização artística do trabalho realizado nas fases anteriores, e pode alterar radicalmente o resultado final. Por isso deve ser acompanhada pelos responsáveis pelo projeto. Ao final, tem-se a matriz, que será enviada para a fábrica para que seja reproduzida em série. Algumas considerações referentes ao estilo musical Essas cinco fases podem sofrer algumas variações, especialmente na gravação de música clássica e jazz. A produção de música eletrônica, por sua especificidade, será tratada adiante. No caso da música clássica e outros agrupamentos acústicos – big bands, por exemplo –, o produtor tem um papel mais restrito que na música pop ou no rock. Se nestes estilos o produtor pode ter uma influência bastante grande na concepção artística do trabalho, naqueles ele tem uma influência bem menor; e seu trabalho consiste basicamente no registro da performance do músico ou do conjunto. Devido ao caráter de espontaneidade presente no jazz e à interação entre os músicos 8

Com o surgimento do sistema Surround os formatos com mais de dois canais chegaram ao mercado, sendo implementados, por exemplo, nos home theaters.

9

“Ato de se aumentar/diminuir gradativamente o nível (volume) de um sinal de áudio. Muito usado em mixagens” (RATTON, 2004, p. 62). Os fade in e fade out são também utilizados na masterização, especialmente nos finais de músicas que terminam com o desaparecimento do som (fade out).

204 durante a execução ser fundamental, é recomendável que se grave ao vivo. Um dos mais importantes produtores de jazz, Orrin Keepnews (apud SHUKER, 2002, p. 226), observa: “creio que há casos em que acreditarei na validade de overdubbing e layering10. Mas também acho que o uso pode ser exagerado, afetando e reduzindo a espontaneidade, que é uma parte importante do jazz”. Pode-se considerar que, em qualquer gênero musical, quando um produtor quer manter a interação entre os membros de um grupo musical, deve realizar a gravação ao vivo. Se a intenção é captar o ambiente original – uma sala de concertos, um teatro ou outro –, a gravação deve ser feita no local. Se a intenção é captar apenas a interação entre os músicos, a gravação pode ser feita em salas isoladas – preferencialmente mantendo o contato visual entre os músicos – ou tratadas com anteparos entre os músicos, para minimizar o vazamento. O nível de possibilidades de manipulação do material na fase da mixagem pode variar, dependendo do modo como é feita a gravação, sendo maior na gravação em salas isoladas, e menor em ambientes compartilhados por todos os membros do grupo. A música eletrônica Com o grande desenvolvimento das tecnologias de produção sonora, ocorrido após os anos 1950, surgiu a música eletrônica, que pode ser definida como aquela que se utiliza exclusivamente – ou em larga escala – de várias destas tecnologias. A música eletrônica nem pode ser apropriadamente definida como um gênero, pois se caracteriza mais pelas tecnologias empregadas em sua produção do que por considerações de ordem estética. Assim, vários estilos musicais, que têm muito pouco em comum, são agrupados sob um mesmo rótulo por se utilizarem de forma aberta e evidente destes recursos. As primeiras técnicas utilizadas pela música eletrônica11 foram baseadas na manipulação de gravações realizadas em fita magnética: aceleração, retardamento, retrogradação, recortes, edição, transposição e utilização de loops12. Esta uma das mais importantes da atualidade, através da

10

Gravação em camadas, sobreposições.

11

Mais precisamente, na música concreta francesa, uma corrente musical de vanguarda criada por Pierre Schaeffer nos anos 50. As mesmas técnicas foram utilizadas pelos compositores alemães da música eletrônica, mas, trabalhando apenas sobre sons gerados eletronicamente e armazenados em fita magnética.

12

Trechos pré-gravados colocados em repetição.

SIMPEMUS3 qual, diversos loops – ou samples13 – são sobrepostos uns aos outros a fim de realizar toda a parte de base – ou mesmo todas as partes – de uma música. Muitas vezes estes loops são extraídos de discos de outros artistas, procedimento bastante usual no rap e na música tecno em geral, sendo a técnica de mais utilizada pelos produtores DJs. Outro procedimento básico na música eletrônica é a utilização de timbres gerados a partir de sintetizadores, em hardware ou software. Muitos destes funcionam como instrumentos convencionais, comandados por teclados ou outros tipos de controladores. Neste caso, são gravados como qualquer outro instrumento acústico ou elétrico, ou seja, baseados na performance do instrumentista. Podem também ser utilizados através da programação de seqüenciadores ou computadores. A utilização dos diversos timbres sintéticos, bem como a variação em tempo real de parâmetros de efeitos aplicados sobre estes timbres estão entre os principais procedimentos utilizados na produção de música eletrônica. Um outro recurso fundamental é a utilização de seqüenciadores e baterias eletrônicas, que podem comandar sintetizadores e instrumentos eletrônicos diversos. Com estes equipamentos é possível a realização de efeitos e programações que não podem ser realizadas através da performance, ou que, mesmo que sejam possíveis, estejam fora da possibilidade de execução instrumental do programador. O processo de produção da música eletrônica possui certas peculiaridades, não seguindo as etapas já clássicas da produção musical. De acordo com Schrank (2002, p. 56): O que pode ser observado é que o processo de criação de uma canção eletrônica reúne edição, gravação e mixagem no mesmo momento [...] sua pós-produção é sempre necessária. Ela consiste em abrir a mixagem no computador e alterá-la com efeitos como cortes, viradas e filtros. Muitos momentos de uma música eletrônica são desenvolvidos desta maneira.

Isso acontece porque, ao contrário do que ocorre na música não-eletrônica, muitos dos efeitos mais interessantes não são efeitos propriamente musicais – no sentido de idéias melódicas ou harmônicas que chamam a atenção por si mesmas – , mas efeitos que surgem no processo de mixagem, como a aplicação de filtragem e a modificação de parâmetros de efeitos em tempo real. Burgess (2002, p. 33) observa que, “na dance music, as idéias de produção, as partes, os sons e a composição em si estão intimamente ligados”.

13

Loop amostrado digitalmente.

205

simpósio de pesquisa em música 2006 Conclusões Dois aspectos importantes merecem ser mencionados no desenvolvimento do processo de produção em estúdio: a fragmentação em várias fases e o conseqüente surgimento de diversos personagens associados a este processo. Se até o final do século XIX o processo de produção e veiculação da música podia ser pensado a partir dos três agentes tradicionalamente associados ao fazer musical – o compositor, o intérprete e o ouvinte – a partir do desenvolvimento das técnicas de produção em estúdio e de sua segmentação nas fases descritas, surgiram vários outros agentes associados ao trabalho de produção musical. Músicos, produtores, intérpretes, arranjadores, engenheiros de som, programadores, diretores artísticos, divulgadores e mesmo executivos de gravadoras, todos contribuem de alguma forma e interferem, em diferentes medidas nos processos de decisão que resultarão no trabalho final de produção. Esta multiplicação dos diversos agentes envolvidos na produção musical levou a um deslocamento das noções tradicionais de autoria, na medida em que, dependendo da influência de cada um destes agentes no processo de produção, muitas vezes eles reivindicam o reconhecimento de sua participação como uma sendo de natureza autoral. Isto explica por que, no seio da indústria fonográfica, o status de diversos personagens – produtores, intérpretes, arranjadores, músicos, engenheiros de som e, mais recentemente, os DJs –

é similar ao status anteriormente atribuído apenas aos compositores ou grandes intérpretes O processo de produção musical em estúdio se desenvolveu, por um lado, intimamente associado ao desenvolvimento das tecnologias de produção musical e, por outro lado, ao próprio desenvolvimento geral da música, de seus estilos, de suas concepções e de seus ideais estéticos. Se inicialmente a produção em estúdio se restringia ao registro de uma performance, hoje existem vários procedimentos técnicos e musicais que podem ser utilizados para se chegar ao resultado sonoro desejado, técnicas diversas a serem empregadas em função dos objetivos musicais e das concepções estéticas que se tem em mente. Desse modo, não podemos falar que existe um processo, ou uma técnica de produção adotada universalmente pela indústria fonográfica, mas, sim, que existem procedimentos técnicos e rotinas de produção diversos, cuja utilização deve ser avaliada a partir dos objetivos musicais que se tem em mente. Nas palavras de Burgess: Não existe uma forma correta ou incorreta de fazer discos. Existe, sim, uma forma apropriada e uma forma inapropriada de fazer um disco específico. [...]. A sonoridade e a atitude da produção precisa combinar com a sonoridade e a atitude da música. [...] o princípio geral afirma que a produção deveria estar totalmente coerente com o estilo do artista e o conteúdo da música e das letras (BURGESS, 2002, p. 97).

Referências BAHIA. Mayrton. Projetando o CD: Parte 2: a pré-produção. Música e Tecnologia, v. 10, n. 78, fev. 1998a. _____ A Arquitetura dos Espaços Virtuais: dimensões e sensações virtuais no tempo. Música e Tecnologia, v. 10, n. 81, mai. 1998b. BURGESS, Richard J. A Arte de Produzir Música. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002. DIAS, Márcia Tosta. Os Donos da Voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2000. GUEIROS Jr., Nehemias. O Direito Autoral no Show Business: tudo o que você precisa saber. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005. MARTIN, George. Produção Musical. In: MARTIN, George (org.). Fazendo Música: o guia para compor, tocar e gravar. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. MONTEIRO, Manny. De Volta para o Futuro: como nos velhos tempos. Música e Tecnologia, v. 11, n. 98, nov. 1999. RATTON, Miguel. Dicionário de áudio e tecnologia musical. Rio de Janeiro: Editora Música e Tecnologia, 2004. SCHRANK, Jomar. Be-a-beat! Gravação, Edição, Mixagem e Masterização da Música Eletrônica. Música e Tecnologia, v. 15, n. 130, jul. 2002. SHUKER, Roy. Vocabulário de Música Pop. São Paulo: Hedra, 1999. VIDAL, Rodrigo. Mixagem: acreditem em seus ouvidos. Música e Tecnologia. Rio de Janeiro, v. 11, n. 94, mar. 1999.

Improvisação & interpretação mediada Cleber da Silveira Campos, César Adriano Traldi, Jônatas Manzolli Universidade Estadual de Campinas Resumo Descrevemos neste artigo um estudo sobre performance mediada por processos tecnológicos. O objetivo da pesquisa foi estabelecer um aprofundamento no estudo do processo de composição de obras “semi-abertas” na qual os participantes buscam novas sonoridades através da interação entre improvisação, instrumentos de percussão e tratamento computacional em tempo real. A metodologia adotada faz parte da pesquisa de mestrado em andamento onde são estudadas técnicas de interpretação mediada. O processo de interação aqui descrito culminou com a composição da obra “Sinergética”, que engendra o conceito de colaboração, alvo do estudo aqui reportado. Palavras-Chave: Improvisação, interação, eletrônicos, sinergia, cooperação.

Introdução No artigo “Instrumentos Musicais Digitais”, Wanderley (2006) comenta que a introdução de modelos de computadores pessoais com grande capacidade de processamento e a baixo custo popularizou a geração sonora em tempo real (síntese sonora). Isto criou a possibilidade de utilização de computadores pessoais na criação de sons de alta qualidade em modo de processamento nativo, isto é, sem a adição de placas de processamento extras para o cálculo das amostras sonoras. Associadas ao desenvolvimento contínuo de novos métodos de síntese sonora nos últimos 50 anos, estas máquinas possibilitaram o aparecimento de novos instrumentos musicais nos quais a geração sonora é toda realizada pelo computador. A vantagem deste método de geração sonora comparada aos sintetizadores eletrônicos (analógicos ou digitais) já existentes há várias décadas é a sua inerente flexibilidade, pois estes computadores podem simular inúmeros métodos de síntese por software e assim serem utilizados em diferentes contextos. Wanderley aponta para uma questão que se colocou desde então: como utilizar esta capacidade de geração sonora em tempo real? Ou, como tocar um computador? É nesse contexto que nosso trabalho busca, através do estudo de técnicas de interpretação para percussão no contexto da música contemporânea, buscar novas sonoridades e desenvolver a postura interpretativa dos intérpretes envolvidos no processo interativo dessa obra. O trabalho aqui reportado é o resultado de uma série de oficinas realizadas, onde os pesquisadores estudam a integração de

instrumentos de percussão, sensores e interfaces computacionais. A pesquisa aqui apresentada se insere no contexto das Técnicas Interpretativas Mediadas, onde utilizamos a improvisação como principal ferramenta para ampliar o escopo da sonoridade dos instrumentos de percussão. Também buscamos novos caminhos e possibilidades na interação da percussão múltipla com eletrônicos em tempo real. Nosso estudo busca as sutilezas sonoras e os detalhes de cada gesto, como conseqüência das diferentes técnicas aplicadas aos instrumentos de percussão, para que assim ganhem uma nova importância ao tornarem-se matéria prima para a criação de novas sonoridades e material de comunicação entre intérpretes/percussionistas e meios eletrônicos. Segundo Rowe (1993), uma parte substancial dos esforços de desenvolvimento tem-se voltado ao contexto de performances ao vivo, que é justamente o alvo do nosso estudo. Sistemas computacionais direcionados ao processamento sonoro em tempo real são utilizados em composições nas quais combinam-se partes instrumentais e partes sintetizadas/processadas pelo computador. Boulez (1988) evidencia a necessidade de uma maior interação entre músicos, cientistas e técnicos, a fim de trazer uma espécie de consciência cooperativista coletiva entre essas três classes. Para que isso aconteça, seria necessário que todos adquirissem o conhecimento da tecnologia envolvida nesses princípios, gerando assim uma linguagem comum entre música e tecnologia. Em sua dissertação de mestrado, Dias (2006) comenta que atualmente existe um movimento de pessoas que acreditam que os sons em tempo real

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simpósio de pesquisa em música 2006 tornam as obras mistas mais semelhantes às composições convencionais, aproximando-as da prática pré-eletroacústica. Segundo essa vertente, a utilização de sons pré-gravados não possibilita ao intérprete uma atmosfera de performance “confortável”. O estudo que apresentamos neste artigo, parte da interação entre percussão múltipla e tratamento computacional realizado com o software Max/MSP1. O Max/MSP é um ambiente para desenvolvimento de programas para interação sonora em tempo real. A tecnologia é utilizada para modelagem musical ampliando assim as possibilidades tímbricas através do controle dos parâmetros de percepção musical como amplitudes de onda, timbres, espaço, tempo, gerando novas ferramentas de composição (RONDELEUX, 1999). Na seção “Da Oficina à Composição”, o artigo apresenta o processo de composição da obra através de oficinas de interação no qual descrevemos o processo de criação. Segue a descrição da “Metodologia” utilizada. Em “Improvisação” apresentamos a relação entre novas possibilidades interpretativas e sonoras relacionadas às estruturas de composição que utilizam à improvisação como elemento fundamental da obra. Finalmente, apresentamos os resultados e as considerações finais onde discutimos e projetamos os próximos passos do trabalho. Da oficina à composição Estrutura do processo criativo As oficinas foram realizadas por dois percussionistas que compartilham uma mesma configuração de percussão formada por oito tomtoms, um bumbo sinfônico, quatro tambores de freio, um temple bell, cinco tubos de alumínio de diferentes tamanhos e espessuras, quatro latas de diferentes tamanhos, quatro woodblocks, um apito e um roem-roem2. A realização da obra, num processo sinérgico de experimentação/composição, foi concretizada com as diversas peculiaridades tímbricas encontradas pelos três agentes do processo, ampliando assim as possibilidades sonoras de cada instrumento modificado por 1

Software desenvolvido pelo IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique)

2

Instrumento tradicional do norte do Brasil, que produz som através da fricção de um barbante em um cabo de madeira, sendo amplificado através de um cilindro de papelão preso na outra extremidade do barbante.

diferentes técnicas de execução processamento sonoro em tempo real.

e

pelo

Com o desenvolvimento de diversos aspectos musicais, a partir de um guia de improvisação em forma de partitura gráfica, gradativamente foram surgindo novas texturas musicais. Juntamente com o compositor os intérpretes selecionaram e organizaram elementos como: padrões de manipulação, instrumentação, técnicas de execução e disposição da configuração dos instrumentos, de maneira a criarem um diálogo entre os sons acústicos e eletrônicos buscando uma coesão sonora ao discurso musical. Descrição do processo criativo A partir da consolidação desses processos, a estrutura passou a ser subdividida em três grandes seções. A primeira é formada por um breve início com efeitos de apito e roem-roem, indo rapidamente para instrumentos de pele com a utilização de dinâmica iniciando em forte decrescendo e a utilização de notas espaçadas. Na segunda seção são utilizados instrumentos de metal e madeira com dinâmica meio forte e um maior número de notas em relação à primeira parte. A terceira seção foi formada pela utilização de instrumentos de pele com dinâmica iniciando em fraco crescendo até fortíssimo e início com notas espaçadas aumento a densidade até o clímax da obra. As três seções são interligadas por pequenas pontes/intersecções onde os elementos e os timbres utilizados são uma mescla da seção anterior e da próxima. As interfaces utilizadas foram cinco microfones, sendo três deles unidirecionais (cardióide) e dois omnidirecionais. Os microfones foram utilizados para captar o material sonoro produzido pelos instrumentos de percussão e enviar para um computador, onde o som foi processado através do software Max/MSP.

Figura 1. Imagem do Patch - Max/MSP utilizado na obra.

Metodologia A metodologia foi dividida em três etapas: 1. Criar, selecionar e utilizar os modelos sonoros que irão formar a estrutura da obra, observando as diversas características dos instrumentos na execução das oficinas; 2. Fomentar aptidão com as interfaces/processamentos sonoros implicados na mediação dos processos tecnológicos utilizados; 3. Explanar o escopo das sonoridades desses instrumentos e adequá-las ao processo de composição, ampliando assim a paleta tímbrica utilizada no processo de improvisação.

A interação entre intérpretes e eletrônicos nessa obra tem um fluxo recorrente onde os intérpretes geram sinal para o computador e respondem as sonoridades produzidas pelo mesmo. Pode-se ampliar este processo, pois há também uma troca de informação entre os dois percussionistas, onde a interação entre ambos é estimulada pelo processamento sonoro gerado pelo computador.

Figura 2. Ilustração do sistema de interação entre percussão múltipla e computador utilizado.

Improvisação Segundo o ponto de vista de Eco (1965), a característica principal da música instrumental está relacionada à liberdade de interpretação atribuída pelo intérprete na performance de uma obra. Assim o intérprete assume o papel de coautor da obra ao executar estruturas improvisadas dando assim uma nova perspectiva para a estrutura musical, utilizando novos parâmetros estruturais como: duração de notas, escolha de timbres, etc. Desta maneira, a improvisação determina a estética da música em questão. Eco (1965) transfere ao intérprete a função de co-autor da obra. Neste âmbito, a obra marcante é a Klavierstuck XI de Stockhausen, composta em 1956, onde o intérprete (nesse caso um pianista), escolhe o caminho a ser seguido, no momento da execução, entre algumas das regras oferecidas na partitura. A Klavierstück XI é uma obra bem particular do repertório pianístico deste século. Trata-se de uma obra na forma aberta apresentada em uma página única com a dimensão de 93x53 cm uma apresentação por si inusitada. Ela contém 19 grupos de variados tamanhos, sendo a execução destes orientada pelas instruções que se encontram no verso da partitura: “O intérprete se colocará à frente da partitura sem idéia preconcebida e começará a execução da

peça pelo primeiro grupo que sua visão encontrar; ele decidirá o andamento, [...], o nível dinâmico fundamental e a forma geral dos ataques segundo os quais os grupos devem ser articulados. Ao fim do primeiro grupo, ele lerá as indicações de andamento, de intensidade fundamental e de forma de ataque. Em seguida, sem intenção preconcebida, ele dirigirá sua visão em direção a um outro grupo qualquer e o tocará de acordo com as três indicações anteriormente lidas, [...] encontrando um mesmo grupo pela segunda vez, ele deve interpretar o grupo segundo as indicações entre parêntesis, [...] encontrando um mesmo grupo pela terceira vez uma das possíveis realizações da peça se encontrará acabada (TRAJANO, 1998).

Assim, podíamos prever que as formas de indeterminação do percurso musical a serem seguidas pelo intérprete se diversificassem e alargassem cada vez mais. Surgem as primeiras obras que utilizavam como matéria prima o texto, na qual os músicos poderiam reagir conforme a inspiração momentânea. Stockhausen aumenta essa complexidade compondo peças onde utilizava a interação de vários textos e grupos de músicos reagindo ao mesmo tempo em salas diferentes e recebendo estímulos uns dos outros através de circuitos elétricos manipulados pelo compositor (por um dos autores dos textos verbais) durante a interpretação. No séc. XX, a improvisação tornou-se

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SIMPEMUS3

uma prática comum de grupos instrumentais e elemento composicional de diversos estilos. Na pesquisa aqui descrita, utilizamos a improvisação como elemento fundamental da obra. Através da improvisação foi possível a criação e execução de estruturas ritmicas complexas, criando assim novas sonoridades que não seriam possíveis de serem representadas através da notação tradicional e que ocasionariam no aumento da dificuldade de execução da obra para os dois percussionistas. A interação com dispositivos eletrônicos cria novos elementos na performance e exigem dos intérpretes uma nova postura interpretativa como observado pelo percussionista norte americano Frank Kumor: A música para percussão obteve um tremendo crescimento no século XX a medida em que os compositores começaram a olhar para ela como um meio representativo para obras solo e música de câmara. Em paralelo com o desenvolvimento dado pelos compositores a obras para percussão, alguns deles adicionaram novos elementos na interpretação como o uso do movimento ou de gesto corporal com significado específico. A inclusão destes elementos em obras recentes para percussão apresenta-se ao intérprete como um desafio técnico que não está ainda identificado no padrão curricular do ensino de percussão (KUMOR, 2002).

Através da utilização da improvisação os intérpretes puderam dedicar maior atenção para as diversas interações que estavam ocorrendo durante o processo. Primeiramente, ambos os intérpretes interagiam entre si, através do diálogo estabelecido entre a execução dos instrumentos disponíveis no set-up e as respostas obtidas pela geração de estímulos entre ambos, num processo sinérgico estabelecido na execução da obra. Por outro lado, ao interagirem em tempo real com o computador, ampliam-se ás possibilidades sonoras gerando assim novos estímulos e novas interações estabelecidas em dois sentidos: 1. Busca de determinadas sonoridades encontradas e pré-estabelecidas nas oficinas, definidas como interessantes á serem executadas, relacionando-as com determinados efeitos gerados pelo computador; 2. Resposta às novas sonoridades resultantes do tratamento eletrônico dos sons.

Nessa obra a improvisação é o elemento principal da música, assim as oficinas de preparo da obra ganham uma grande e vital importância para conscientização e criação de uma linguagem que proporcione o desenvolvimento e a coesão da obra. É durante as oficinas que os dois percussionistas juntamente com o compositor/programador, irão selecionar os caminhos e as sonoridades que, ao critério deles, melhor desenvolvem a obra. É nesse momento que os intérpretes assumem a posição de co-criadores, pois é através da experiência musical de cada um que os elementos principais da obra serão selecionados. Resultados Como resultado dessas experiências, notamos que a realização de obras com interação entre intérpretes e eletrônicos em tempo real, necessitam de intérpretes que conheçam a tecnologia envolvida e suas possibilidades. Esse conhecimento foi obtido no nosso trabalho através das oficinas de maneira que os intérpretes/ pesquisadores desenvolveram a capacidade de “prever” a reação do computador aos seus estímulos sonoros e assim, no momento de performance, antecipar a ação do outro instrumentista. Ou seja, desenvolveram uma paleta de gestos sonoros e estruturas improvisadas para se adaptar a determinados gestos do outro instrumentista ou a determinada resposta sonora do computador, evidenciando assim um processo recorrente nas diferentes performances da obra. As improvisações em obras “semi-abertas” geram uma espécie de indeterminação controlada, pois ao determinar alguns parâmetros iniciais utilizados no processo, obtemos as chamadas máscaras de tendência, ou seja, uma determinada amostra final obtida por esse processo reapresentará em algum momento algumas características, mesmo que sejam muito pequenas, adquiridas pela influência dos parâmetros inicias referidos na amostra. Observamos que após a realização de algumas oficinas, os intérpretes passaram reagir de maneira similar em cenários interativos semelhantes, pois buscavam referências sonoras memorizadas anteriormente. Desta forma, a obra adquiriu gradativamente uma estrutura musical própria, que pode ser notada pela recorrência de alguns elementos nas diversas performances já realizadas da obra. Este senso de equilíbrio musical, por parte dos intérpretes e compositor, é único. Assim a realização da mesma obra por outros instrumentistas irá resultar em uma nova estruturação e, conseqüentemente, em novas sonoridades,

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simpósio de pesquisa em música 2006 diretamente vinculadas às experiências assimiladas nas oficinas de preparação e relacionadas ao conhecimento e à vivência musical de cada um. Conclusão Notamos que a utilização de técnicas interpretativas mediadas num contexto vinculado a utilização de elementos de improvisação exigiu dos intérpretes a capacidade de controle de diferentes estruturas sonoras e a habilidade de percepção e reação aos eventos e as sonoridades geradas pelo computador. Os elementos estudados nesse trabalho mostraram a necessidade do desenvolvimento de

uma nova visão interpretativa dos percussionistas frente a obras mediadas por processos tecnológicos em tempo real e que utilizam a improvisação como elemento de coesão estrutural. Trata-se de agir sobre a estrutura da obra, e de determinar a duração das notas ou a sucessão dos sons, num ato de improvisação criadora, ou seja, o intérprete passa da posição de simples executante, onde a performance está totalmente pré-determinada, para uma postura de co-criador. Nas próximas etapas da pesquisa buscaremos elementos de interação multi-modal com dança, imagens e outros. Projetamos também o desenvolvimento de novos dispositivos, ambientes interativos e continuaremos nossa atividade de performance.

Agradecimentos Esta pesquisa tem o apoio da FAPESP e CAPES, através de bolsa de mestrado e do CNPq através de bolsa de produtividade em pesquisa.

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Implementação de um visualizador algorítmico de notação musical microtonal para o programa Pure Data Marcus Alessi Bittencourt Universidade Estadual de Maringá

Resumo Desde que foram criados os programas para Computer-Assisted Composition (CAC) e para Digital Signal Processing em tempo real, sempre se tentou reunir as funcionalidades básicas destes em um só aplicativo, unindo seus aspectos composicionais e performáticos (PUCKETTE, 2002 e 2004). Esta comunicação apresenta um software que criei para acrescentar a visualização de dados sonoros em notação musical à funcionalidade básica do programa Pure Data de Miller Puckette. Palavras-chave: Composição Musical, Computação Musical, Composição Algorítmica.

Introdução. Desde que foram criados os programas para Computer-Assisted Composition (CAC), como os famosos PatchWork (LAURSON 1989) e OpenMusic (ASSAYAG et al, 1999) do Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique (IRCAM) de Paris, responsáveis pelos estudos que geraram por exemplo, entre outros, o repertório da música Espectral de Tristan Murail, Gérard Grisey e Jonathan Harvey, e desde que foram criados os programas para Digital Signal Processing em tempo real como o Max/MSP, o Pure Data e o jMax, sempre se tentou reunir características e funcionalidades básicas destes em um só aplicativo integrado (PUCKETTE, 2002 e 2004). Fortes do ponto de vista "performático", os softwares para DSP têm uma linhagem que vem de longa data, desde o programa Patcher (PUCKETTE, 1986), passando por uma longa lista de desenvolvimentos posteriores, como o MAX/Opcode (ZICARELLI, 1990), o Max/FTS (PUCKETTE e ZICARELLI, 1990), o PureData (PUCKETTE, 1996), o notório Max/MSP (ZICARELLI, 1997), até chegar, mais recentemente, ao jMax (DÉCHELLE et al, 1998), este já um projeto infelizmente defunto. Todos estes softwares têm sido extremamente úteis para o agenciamento de música eletroacústica em tempo-real, servindo de verdadeiros "cavalosde-batalha". Aqui, o Max/MSP (no campo comercial/proprietário) e o Pure Data (no campo do sofware-livre, gratuito) têm se mantido os mais ativos e utilizados atualmente. Fortes do ponto de vista "composicional", os softwares para Computer-Assisted Composition, desde os pioneiros trabalhos de Lejaren Hiller (HILLER, 1958) com o computador ILLIAC, de Iannis Xenakis (XENAKIS, 1971) e de

Pierre Barbaud (BARBAUD, 1966), estes têm utilizado o poder de cálculo dos computadores como auxílio à aplicação de conceitos e princípios matemáticos à escrita e estruturação musicais. Nos anos 70, compositores como Grisey e Murail também valeram-se do computador para estudar a constituição de timbres e projetar composições baseadas nos dados levantados. O time de programadores, pesquisadores e compositores do IRCAM de Paris, atendendo a essas necessidades, tem desenvolvido famílias de programas para essa finalidade, como o PatchWork e seu sucessor, o OpenMusic. Sendo a maioria destes programas muito semelhantes no que tange à interface (todos se agenciam por meio de patchers, constituindo um ambiente visual de programação completo com data structures, funções, métodos e objetos, onde um programa é montado e representado por um patch), é natural pensar no intercâmbio e interconversibilidade de funções entre estes softwares. Esta comunicação apresenta um software que criei para acrescentar a visualização de dados sonoros em notação musical à funcionalidade básica do programa Pure Data de Miller Puckette, em um modelo inspirado no das caixas chord e chord-seq do PatchWork e OpenMusic, com aproximação de frequências ao oitavo de tono e notação rítmica proporcional. Implementação do Software O software foi implementado em três subpartes básicas, a saber: NotatorCore Este corresponde ao manufaturador de um arquivo eps (encapsulated postscript) contendo a

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simpósio de pesquisa em música 2006 notação calculada em linguagem postscript para impressão gráfica. Este software foi construído em linguagem C e programado a partir de uma tradução que fiz para C dos comandos em linguagem Lisp utilizados para desenhar em postscript os caracteres musicais no software CMN (Common Music Notator), escrito por Bill Schottstaedt na Stanford University. Este programa, uma extensão para o CM (Common Music) de Heinrich Taube (TAUBE, 1991), por sua vez utiliza uma tradução para o Lisp realizada por Matti Koskinen da fonte musical para o MusicTex de Daniel Taupin (TAUPIN, 1996). Este meu programa, que não possui interface gráfica, recebe uma linha simples de comandos contendo uma matriz de quadras de números, cada quadra correspondendo a uma nota-evento. Os números da quadra correspondem aos parâmetros tempode-início, duração (ambos medidos em segundos), freqüência (medida em Hertz) e amplitude (linear, medida entre 0 e 1, preferencialmente) do evento. O NotatorCore notará os eventos da matriz em um longo sistema único com quatro pentagramas, estes representando a maior parte do espectro sonoro humanamente audível. Uma régua temporal é desenhada embaixo do sistema, iniciando no tempo do primeiro evento e terminando no tempo do último evento (ou do primeiro evento mais dez segundos, o que for mais longo). A notação do ponto de ataque dos eventos é notada segundo um sistema proporcional, colocando-se uma cabeça preta de nota no local de tempo correspondente sobre a régua. A duração da nota-evento é representada por um travessão grosso em cinza claro (para não obscurecer o pentagrama e as notações), no mesmo princípio proporcional descrito acima. A amplitude é representada pelo tamanho da cabeça da nota, sendo que a maior amplitude dada é representada pelo tamanho natural usual e a menor, por um tamanho de um décimo do tamanho natural. A freqüência é marcada segundo uma aproximação ao oitavo de tono mais próximo (em um sistema de temperamento igual de 48 subdivisões por oitava) com o A4 fixado a 440 Hz. Considerei esta subdivisão como bastante razoável, não só por esta encaixar-se bem dentro do temperamento igual de 12 sons da tradição musical ocidental, mas também devido a sua proximidade ao coma sintônico (aproximadamente 21.51 cents, contra os 25 cents do oitavo de tono, sendo 1200 cents = 1 oitava). Conhecendo a literatura a respeito da notação microtonal, analisando os modelos fornecidos pelos PatchWork e OpenMusic do

IRCAM e tendo também experimentado nas minhas próprias obras musicais com o uso de sinais de acidentes para microtons, resolvi por adotar a seguinte simbologia, dada a sua adequação às minhas necessidades e à disponibilidade dos sinais nos programas de notação CMN (fonte dos glifos utilizados) e Finale (http://www.codamusic.com):

Figura 1. Tabela dos símbolos de acidentes utilizados, em oitavos de tono temperados (os acidentes marcados com [*] não são utilizados no software).

Ao contrário dos modelos de notação do PatchWork e do OpenMusic, que só usam acidentes de sustenidos, pensei em criar uma série de princípios fixos de regras para enharmonização que repartissem ao máximo possível o uso de bemóis e sustenidos. Assim, foram eliminados o uso dos acidentes de alteração de 3/4 de tono (trocados pelos correspondentes sinais de 1/4 de tono vindos do nome de nota vizinho), e dos bemol-mais-oitavo e sustenido-menos-oitavo, que vão de encontro ao "ideal histórico" dos acidentes tradicionais (uma nota bemolizada sendo idealmente mais baixa que a sustenida e vice-versa). O processo de conversão de uma frequência para uma notação começa localizando-se a nota natural ou nota com sustenido mais próxima da frequência a ser convertida e calculando-se um valor de desvio desta para aquela, que será, obviamente, de no máximo 1/4 de tono. Deste ponto, a escolha enharmônica procede de acordo com o seguinte algoritmo:

Figura 2. Tabela de aproximação e conversão enharmônica.

Desta maneira, o NotatorCore prepara, a partir da matriz de quadras fornecida, um arquivo simples de texto com as instruções em postscript necessárias para a impressão gráfica da notação calculada, segundo o formato encapsulated (eps) e os princípios descritos acima.

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SIMPEMUS3 NoteViewer

Este corresponde ao GUI (graphical user interface), a ser invocado de dentro do Pure Data. Construído em linguagem C com as bibliotecas gtk+ 1.2 e Cairo graphics, o GUI é a parte do software que realiza a tarefa de desenhar numa scrolled window a notação elaborada pelo NotatorCore. São também incluídos no GUI alguns controles clicáveis para navegação e ajuste da imagem, mais um botão para salvar o arquivo eps fabricado pelo NotatorCore. O programa mantém uma matriz de quadras na memória (cada quadra como antes: tempo, duração, frequência e amplitude de uma nota-evento) e, cada vez que esta matriz é alterada, ele aciona o NotatorCore, que então prepara a notação do novo estado atual desta matriz de eventos e lê o eps formado desenhando-o na scrolled window. O NoteViewer comunica-se com o Pure Data via um UNIX socket, recebendo uma nota-evento (quadra) de cada vez, junto com um comando básico, dentre os seguintes possíveis: "add" que adiciona o evento à matriz existente, e "resetadd", que zera a matriz primeiro e depois adiciona a esta o evento. O programa também recebe internamente mais dois comandos: "quit", para desconexão do socket e fechamento de sua janela, e "empty", para zerar a matriz.

Z_visualizer Este consiste em um objeto/elemento externo de biblioteca confeccionado para o Pure Data, a ser instanciado dentro de um pd patch. Este objeto recebe mensagens (message boxes) de dentro do Pure Data e as repassa interpretadas via UNIX socket para o GUI NoteViewer. As mensagens interpretáveis pelo Z_visualizer são: [connect] : abre uma janela com o NoteViewer e estabelece um socket de comunicação com este. [disconnect] : fecha o socket de comunicação com o GUI e fecha a janela deste. [empty] : esvazia a notação de eventos. [send COMMAND time dur freq amp], sendo este command ou "add" ou "resetadd", segundo explicação acima. A figura seguinte exemplifica o processo. A notação corresponde ao resultado quando do acionamento do bang button do pd patch.

Figura 3. Exemplo de uso do objeto visualizador [Z_visualizer] no PureData, com a janela do GUI NoteViewer.

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simpósio de pesquisa em música 2006 Possibilidades de Utilização No melhor da tradição da ComputerAssisted Composition (CAC) (ver LAURSON 1989, BARRIÈRE 1990, ASSAYAG et al. 1993 e 1999, XENAKIS 1971), este software é especialmente útil para a visualização de dados musicais gerados por algoritmos e análise FFT. A visualização pode ser impressa com qualidade superior (o eps é também facilmente conversível em formato pdf Acrobat Reader por meio do programa eps2pdf de Sebastian Rahtz), podendo assim ser juntada aos materiais de estudo e esboços do compositor. À quantização rítmica tradicional dos programas de CAC preferiu-se optar por uma notação de tipo proporcional, baseada na progressão natural do tempo. Uma "barra-de-compasso" pontilhada em cinza é desenhada a cada segundo para auxílio à leitura. Sendo que o Pure Data integra eximiamente as funções de cálculo matemático e de Digital Signal Processing (e em tempo real), não há quebra entre os processos de cálculo, análise, ressíntese e visualização de dados musicais. Por exemplo, o notório objeto para análise FFT [fiddle~], de Miller Puckette, pode ser facilmente utilizado para agenciar uma notação musical dinâmica, em tempo real, da evolução do espectro de frequências de um som digitalizado:

Figura 4. Visualização de instantes da análise do espectro de freqüências de dois gongos javaneses.

Figura 5. Visualização de uma série harmônica de fundamental C2.

Considerações finais Este programa foi criado inicialmente como um proof-of-concept primeiro de um desejo que eu ainda tenho de tornar o programa OpenMusic do IRCAM obsoleto pela absorção das funções deste ao Pure Data, um programa gratuito, peça de software-livre e amplamente utilizado e apreciado em todo o mundo. Tendo adquirido em diversas outras ocasiões e projetos de programação muitos conhecimentos sobre a linguagem postscript, a programação de sockets, de GUIs em gtk+ e de externals para Pure Data, o uso deste arsenal técnico na confecção de um aplicativo que serviria efetivamente como auxílio à pesquisa para criação sonora foi uma tentação à qual não resisti. No entanto, apenas o uso em projetos reais de criação e pesquisa musicais confirmará a utilidade do aplicativo. Quanto a possibilidades futuras de desenvolvimento deste projeto, a biblioteca Cairo dá amplas possibilidades de extensão da visualização à plotagem de ondas sonoras, e ao desenho e uso de maquetes, no espírito mesmo original do OpenMusic. Interações via clicagem do usuário por sobre o GUI e por sobre os elementos desenhados podem ser facilmente capturáveis e transferidas de volta ao Pure Data para que sirvam de controle para alguma tarefa qualquer. Adicionar capacidades de processamento de mensagens MIDI também não é difícil. Enfim, há muitas possibilidades. Que venham as idéias.

Em outra experiência, requisitei a simples visualização de uma série harmônica: Referências ADOBE SYSTEMS INCORPORATED. PostScript language tutorial & cookbook. Massachusetts: Addison-Wesley Publishing Company, 1985. ASSAYAG, Gérard; RUEDA, Camilo. The music representation project at IRCAM. INTERNATIONAL COMPUTER MUSIC CONFERENCE-ICMC 93, Tokyo. Anais..., Tokyo: ICMC, 1993, p. 206-209. ASSAYAG, Gérard et al. Computer-assisted composition at IRCAM: from PatchWork to OpenMusic. Computer Music Journal, v. 23, n. 3, fall 1999, p. 59-72. BARBAUD, Pierre. Initiation à la composition musicale automatique. Paris: Dunod, 1966.

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SIMPEMUS3

BARRIÈRE J. B. Devenir de l'écriture musicale assistée par ordinateur: formalisme, forme, aide à la composition. L’analyse musicale, v. 20, 1990, p. 52-68. BOEHM, Laszlo. Modern music notation. New York: G. Schirmer, 1961. Cowell, Henry. Our inadequate notation. Modern music, New York, v. 4, n. 3, 1927. DÉCHELLE, François et al. jMax: an environment for real-time musical applications. Computer Music Journal, v. 23, n. 3, fall 1999, p. 50-58. DONAHOO, Michael; CALVERT, Kenneth. TCP/IP sockets in C: practical guide for programmers. San Francisco: Morgan Kaufmann, 2000. GALE, Tony; MAIN, Ian. GTK+ tutorial. Disponível em: HÁBA, Alois. Nuevo tratado de armonia. Trad. Ramón Barce. Madrid: Real Musical, 1984. HILLER, Lejaren. A.; ISAACSON L. M. Experimental music. New York: McGraw-Hill, 1958. KARKOSCHKA, Erhard. Notation in new music; a critical guide to interpretation and realisation. New York: Praeger, 1972. LAURSON, Michael; DUTHEN, J. PatchWork, a graphical language in PreForm. INTERNATIONAL COMPUTER MUSIC CONFERENCE-ICMC 89, San Francisco. Anais... San Francisco: ICMC, 1989, p. 172-175. MÖLLENDORF, Willi. Musik mit Vierteltönen. Erfahrungen am bichromatischen Harmonium. Leipzig: Verlag von F.E.C. Leuckart, 1917. PUCKETTE, M.; ZICARELLI, David. MAX - An interactive graphic programming environment. Technical Manual. Menlo Park: Opcode sytems, 1990. PUCKETTE, Miller. Pure Data: another integrated computer music environment. SECOND INTERCOLLEGE COMPUTER MUSIC CONCERTS, Tachikawa. Anais... Tachikawa, 1996, p. 37-41. PUCKETTE, Miller; APEL, T.; ZICARELLI, David. Real-time audio analysis tools for Pd and MSP. INTERNATIONAL COMPUTER MUSIC CONFERENCE-ICMC 98, Ann Arbor, Michigan. Anais... Ann Arbor: ICMC, 1998, p. 109-112. PUCKETTE, Miller. Using Pd as a score language. INTERNATIONAL COMPUTER MUSIC CONFERENCE-ICMC 02, Göteborg. Anais... Göteborg: ICMC, 2002, p. 184-187. PUCKETTE, Miller. Max at seventeen. Computer Music Journal, v. 26, n. 4, fall 2002, p. 31-43. PUCKETTE, Miller. A divide between “compositional” and “performative” aspects of Pd. 1ST INTERNATIONAL PD CONVENTION, Graz, Austria. Anais... Graz, 2004. Disponível em: http://crca.ucsd.edu/~msp/Publications/graz-reprint.pdf/ READ, Gardner. Music notation: a manual of modern practice. New York: Taplinger Publishing, 1979. ROADS, Curtis. The computer music tutorial. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1996. STEVENS, Richard. UNIX network programming v. 1: Networking APIs: Sockets and XTI. New Jersey: Prentice Hall, 1998. TAUBE, Heinrich. Common music: a music composition language in common Lisp and CLOS. Computer Music Journal, v. 15, n. 2, summer 1991, p. 21-32. TAUPIN, Daniel. MusicTeX: using TeX to write polyphonic or instrumental music (Version 5.17). Orsay: Laboratoire de Physique des Solides, Centre Universitaire, 1996. XENAKIS, Iannis. Formalized music. BIoomington: Indiana University Press, 1971. ZICARELLI, David. How I learned to love a program that does nothing. Computer Music Journal, v. 26, n. 4, winter 2002, p. 44-51. Links importantes. PureData: http://www.puredata.info/ Documentação sobre o PureData: http://www.crca.ucsd.edu/~msp/Pd_documentation/index.htm Miller Puckette: http://crca.ucsd.edu/~msp/ Max/MSP: http://www.cycling74.com/

simpósio de pesquisa em música 2006

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IRCAM - Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique: http://www.ircam.fr/ jMax: http://freesoftware.ircam.fr/rubrique.php3?id_rubrique=14 OpenMusic: http://freesoftware.ircam.fr/rubrique.php3?id_rubrique=15 Manual de referência: Cairo Graphics API: http://www.cairographics.org/manual/ Tutorial GTK+: http://www.gtk.org/tutorial/ Tutorial UNIX Sockets: http://www.cs.rpi.edu/courses/sysprog/sockets/sock.html/ Guia para o PostScript: http://www.cs.indiana.edu/docproject/programming/postscript/postscript.html/

| simpósio de alunos de graduação e iniciação científica | Schoenberg e o progresso: o projeto estético de Arnold Schoenberg segundo Theodor Adorno Valéria Muelas Bonafé, Marcos Branda Lacerda (orientador) Universidade de São Paulo Resumo A segmentação e a diversidade, que caracterizam o trajeto composicional de Arnold Schoenberg, tornam bastante complexa a compreensão do seu projeto estético. Em seu texto Schoenberg e o Progresso, de 1941, Theodor Adorno apresenta uma reflexão crítica a respeito da nova música, mais especificamente sobre Arnold Schoenberg e a técnica dodecafônica. Obra já amplamente comentada é suporte importante para a compreensão do pensamento filosófico de Adorno, bem como para a discussão do projeto estético de Schoenberg. Buscamos neste artigo iluminar alguns pontos que consideramos de grande valia para o esclarecimento do percurso traçado por Adorno em seu texto, na tentativa de nos aproximar desta importante leitura do projeto estético de Arnold Schoenberg. Palavras-chave: estética, música, Theodor Adorno, Arnold Schoenberg, expressividade, Aufklärung.

Introdução

se no prefácio às Sátiras para coro de Schoenberg, ‘é o único que não leva a Roma’. Por essa razão – e não pela ilusão de que se trata das maiores personalidades – somente estes dois autores são considerados [...] somente eles, por uma coerência que não conhece concessões, exaltaram os impulsos presentes em suas obras até transformá-las nas idéias imanentes do objeto” (ADORNO, 2004, p. 14).

A maior parte dos músicos concordará que o destino da música nestes últimos sessenta anos foi determinado principalmente pela obra de dois compositores: Schoenberg e Stravinsky (LEIBOWITZ, 1999, p. 31).

Apesar de aparentemente reducionista, já que num primeiro momento tal sistematização poderia sugerir relegar a um segundo plano tendências importantes como o impressionismo de Debussy ou as pesquisas de politonalidade de Béla Bartók, esta afirmação de Leibowitz apresenta uma leitura bastante corriqueira acerca dos caminhos que a música erudita ocidental enveredou na primeira metade do século XX. Dessa forma, não nos é surpreendente o fato de que, para compor sua Filosofia da Nova Música, Theodor Adorno tenha escrito exatamente dois artigos, um dedicado a Schoenberg e outro a Stravinsky. Porém, é importante notar que Adorno não se contentou em justificar a escolha desses protagonistas a partir do senso comum, evocando simplesmente um suposto “destaque incontestável” dos dois compositores. Logo na introdução do seu livro, Adorno justifica o porquê de se pensar a nova música a partir de Schoenberg e Stravinsky: Na verdade, a natureza desta música [música moderna] está impressa unicamente nos extremos e só eles permitem reconhecer seu conteúdo de verdade. “O caminho do meio”, lê-

Este trabalho é dedicado ao comentário apenas do primeiro desses dois artigos que compõem a Filosofia da Nova Música, intitulado Schoenberg e o Progresso1, terminado entre 1940 e 1941. Para comentar tal texto, nos serviremos de duas bases de reflexão que nos serão de suma importância para a compreensão da leitura que Adorno apresenta a respeito do projeto estético de Arnold Schoenberg: a discussão apresentada pela Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer e a reflexão sobre a modernidade, de Freud. A Filosofia da Nova Música está intimamente relacionada com a Dialética do Esclarecimento, publicada em 1947, em parceria com Max Horkheimer. No prefácio da Filosofia da Nova Música, Adorno afirma: “O livro está concebido como uma digressão à Dialektik der Aufklaerung” 1

Para melhor compreensão do nosso texto, optamos por utilizar todas as citações do artigo Schoenberg e o Progresso a partir da tradução para a língua portuguesa que, apesar de ser bastante imprecisa, não nos trará aqui, especificamente, maiores problemas.

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simpósio de pesquisa em música 2006 (ADORNO, 2004, p. 11). Portanto, ao comentar a Filosofia da Nova Música, é fundamental que tenhamos como suporte a discussão apresentada por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento: O que nos propuséramos era, de fato, nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 11).

Grosso modo, o que estava em jogo na Dialética do Esclarecimento era a reflexão sobre a tensão resultante do embate entre racionalidade e natureza. Através da racionalidade, o homem pôde se diferenciar da natureza e garantir sua liberdade, tornando-se dono do seu próprio destino. Porém, essa mesma racionalidade também pôde servir como instrumento de dominação do próprio homem e, portanto, inversamente, determinando fim a sua liberdade.2 Além dessas questões apresentadas na Dialética do Esclarecimento, consideraremos ainda a reflexão freudiana sobre os processos de racionalização e dominação na modernidade, reflexão esta que se relaciona diretamente com as formulações de Adorno e Horkheimer e que, portanto, pode nos oferecer um campo profícuo para a discussão. Arnold Schoenberg: considerações gerais Schoenberg foi um dos principais protagonistas no desenvolvimento do pensamento musical ocidental no século XX, tendo influenciado importantes compositores não só da sua época, como seus alunos Anton Webern e Alban Berg, mas também muitos outros que se seguiram, como Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, Henri Pousseur, Luciano Berio, Hans-Joachim Koellreutter, Cláudio Santoro, Willy Corrêa de Oliveira, entre outros. Além de compositor, se dedicou também às atividades de professor, publicando importantes trabalhos como Harmonia, Fundamentos da Composição, Exercícios Preliminares de Contraponto, Funções estruturais da Harmonia, entre outros.

fases: tonal (até 1908), atonal (1908 a 1915), dodecafônica (de 1923 a 1933) e “híbrida”3 (a partir de 1934). Herdeiro da tradição alemã “WagnerBrahms”, sua produção foi marcada inicialmente pelo gestual e pela gramática romântica, como em Verklärte Nacht de 1899 e em Gurre-lieder de 1911. Segundo Pierre Boulez (1995, p. 310), nas obras dessa primeira fase “a tonalidade é empregada de maneira mais ampla, embora tradicional; as relações são muito cromáticas, mas as estruturas tonais em geral são respeitadas”. Boulez ainda aponta que o Segundo Quarteto em F#m Op. 10, de 1908, seria a última obra dessa fase tonal. De acordo com René Leibowitz e Pierre Boulez de 1908 a 1916, num período que compreende do Op. 11 (Três peças para piano) ao Op. 22 (Quatro melodias para Canto e Orquestra), estaria delimitada uma segunda fase de Schoenberg: “É o período dito ‘atonal’ de Schoenberg, que começa em 1908 e termina durante a Primeira Guerra Mundial” (LEIBOWITZ, 1999, p. 77). Desse período podemos citar ainda outras obras como Erwartung Op. 17, Die Glückliche Hand Op. 18 e as Seis Peças para Piano Op. 19. São também dessa fase as importantes experimentações com a Klangfarbenmelodie, procedimento utilizado na terceira das Cinco Peças para Orquestra Op. 16, e com o Sprechgesang, utilizado no Pierrot Lunaire Op. 21. Segue-se um período de oito anos no qual Schoenberg não publica qualquer obra musical dedicando-se exclusivamente às atividades didáticas. Em 1920 começa a compor as Cinco Peças para Piano Op. 23 que são publicadas em 1923. Na última dessas cinco peças, a Walzer, apresenta pela primeira vez o seu sistema dodecafônico. Dessa forma inicia sua terceira fase, caracterizada por composições dodecafônicas, como a Serenata Op. 24 e a Suíte para Piano Op. 25. Diferentemente dos períodos anteriores, é difícil delimitar quando se encerra essa fase estritamente dodecafônica e se inicia a fase chamada aqui de “híbrida”, onde faz uso ora de sistemas seriais, não necessariamente com doze sons, e ora retorna ao sistema tonal. Tanto Leibowitz quando Boulez comentam sobre esse momento coincidir com sua mudança para os Estados Unidos, em 1933:

A produção musical de Schoenberg pode ser dividida, para fins de estudo, em quatro 3 2

Auschwitz: planejamento administrativo de um assassinato em massa: barbárie civilizada.

O termo híbrido é utilizado por Vladimir Safatle para nomear essa quarta fase de Schoenberg. SAFATLE, Curso de Estética III – A filosofia da música de Theodor Adorno.

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SIMPEMUS3 Sua atividade americana é estranhamente dividida entre certas obras puramente seriais e outras de ‘conciliação’ nas quais se esforça por operar uma síntese entre os dados tonais e as exigências da série [...] por isso as últimas obras de Schoenberg aparecem poluídas por uma certa inconsistência: não são absolutamente homogêneas (BOULEZ, 1995, p. 318).

A arte é, em seu estágio mais elementar, uma simples imitação da natureza. Mas logo torna-se imitação num sentido mais amplo do conceito, isto é, não mera imitação da natureza exterior, mas também da interior. Em outras palavras: não representa, simplesmente, os objetos ou circunstâncias que produzem a sensação, senão, antes de tudo, a própria sensação, eventualmente sem consideração ao “quê”, “quando”e “como”. E a posterior conclusão acerca do objeto externo, provocador da impressão, reduz-se à causa de sua insignificante presença imediata. Em seu nível mais alto, a arte ocupa-se, unicamente, em reproduzir a natureza interior (SCHOENBERG, 1999, p. 72).

Podemos encontrar diversas obras tonais nesse último período, como a Suíte para Orquestra de Cordas de 1934, a Segunda Sinfonia de Câmara Op. 38 de 1939, as Variações para Órgão Op. 40 de 1941 e Variações para Orquestra de Harmonia Op. 43 de 1942. O princípio de expressão em Schoenberg Logo no início do seu texto Schoenberg e o Progresso, Adorno afirma que o que há de realmente novo em Schoenberg é a mudança de função da expressão musical (ADORNO, 2004, p. 40) e que “as inovações formais de Schoenberg estavam estreitamente ligadas ao conteúdo de expressão” (p. 40). Portanto, antes de qualquer consideração acerca do projeto estético de Arnold Schoenberg, torna-se inadiável a compreensão do que, para Adorno, compõe este conteúdo de expressão e o que exatamente caracteriza essa mudança de função da expressão musical. Ao consultar os livros de história da música, é corrente encontrarmos a constatação de um exagero do princípio de expressão na obra de Schoenberg, muitas vezes classificado como um compositor ultra-romântico. Mas, para além desta rápida e superficial constatação, o que exatamente está em jogo na expressividade da música de Schoenberg? Ainda no início do seu texto Schoenberg e o Progresso, Adorno aponta que a expressividade em Schoenberg é profundamente diferente do que se via anteriormente na música tradicional até o Romantismo. Para ele, a música dramática ofereceu “de Monteverdi a Verdi, um modo de expressão estilizado e ao mesmo tempo mediato, isto é, a aparência da paixão” (p. 39). Adorno afirma que a nova música se opõe a isso: Schoenberg, em sua tentativa de expor a natureza interior, precisa criticar de antemão essa categoria de aparência4 das obras. 4

Essa categoria de aparência das obras a qual Adorno se refere diversas vezes em seu texto, está relacionada ao fato de que, para ele, durante toda a história da música, elementos que foram naturalizados e sedimentados passaram a funcionar como fórmulas, fazendo com que

Para Adorno, a organização do sistema tonal está conectada a dois elementos temporais principais: passado e futuro. O que o sistema tonal tenta realizar a todo o momento é a união desses dois tempos no presente. Os elementos passados – memória - estão garantidos pela constituição de unidades temáticas e seus desdobramentos. Os elementos futuros - expectativa - estão garantidos pelas progressões harmônicas e cadências, por exemplo, que, mesmo quando não se resolvem, remetem à expectativa e atualizam a memória do ouvinte. Porém, Adorno aponta que esse tempo futuro só é possível porque as regras já estão dadas. São elas que permitem a expectativa e garantem o jogo. Ao recusar as regras da tonalidade, Schoenberg acaba com a possibilidade de jogo e como resultado, anula esse tempo futuro: é a expectativa que não se realiza. É este raciocínio que leva Adorno a afirmar que é a angústia5 o elemento fundamental da expressividade em Schoenberg. Após essas considerações sobre a mudança de função da expressividade em Schoenberg, Adorno conclui que “com a negação da aparência e do jogo, a música tende ao conhecimento” (ADORNO, 2004, p. 40). Este é um ponto fundamental para compreendermos o que para Adorno, no fim do seu texto, aparece como solução para o impasse que ele verifica na nova música. Mas, antes de comentar esta solução proposta, é necessário que entendamos o que para Adorno caracteriza este impasse. toda a expressividade musical estivesse submetida a leis gerais e convencionais. Para compreender facilmente a que Adorno está se referindo, podemos pensar, por exemplo, num clichê bastante simples: a insistente utilização de tonalidades menores para expressar tristeza e dor. 5

Adorno se apóia no conceito psicanalítico de angústia onde o sujeito se encontra numa situação de não realização: há uma energia libidinal que não se satisfaz em representações de objetos.

simpósio de pesquisa em música 2006 Dodecafonismo: inversão da dominação Para Adorno, as regras dodecafônicas não são meramente inventadas, mas, além de conseqüências ligadas às modificações do conteúdo de expressão, são também resultado do “esclarecimento progressivo do material natural da música” (p. 60). Partindo de uma analogia realizada por Ernst Krenek entre a técnica dodecafônica e o contraponto de Palestrina, Adorno reconhece a importância do rigor de ambas as técnicas: “o que aparece como esfera de suas normas é simplesmente o rigor da disciplina através da qual deve passar toda a música que não queira se converter em objeto da maldição da contingência” (p. 94). Para Adorno, é no cerne das mais rigorosas regras onde se pode encontrar maior liberdade. Mas, para esse entendimento das regras como instrumento de liberdade, se faz necessária uma compreensão crítica que vá mais adiante do que meramente a apreensão e a realização dos parâmetros normativos. E é essa compreensão crítica que precisa estar em operação para que regras didáticas não se convertam em normas estéticas: “a ordem que nós chamamos “forma artística” não é uma finalidade em si, mas apenas um recurso. Como tal devemos aceitá-la, porém rechaçando-a quando pretende apresentar-se como algo mais, como uma estética” (SCHOENBERG, 1999, p. 72). Portanto, a construção de uma técnica de racionalização é de suma importância, porém, é preciso que a música tão logo a reconheça, possa dela se emancipar, mas não recaindo numa irracionalidade qualquer, mas sim absorvendo essa técnica e a superando:“somente na técnica dodecafônica, a música pode aprender a continuar sendo dona de si mesma; mas ao mesmo tempo só pode fazer isto com a condição de não render-se a si mesma” (ADORNO, 2004, p. 94). Adorno problematiza ainda o fato de que a tentativa de criação de uma nova linguagem faz com que o compositor passe a ter que dar conta de problemas que a linguagem musical infrasubjetiva cuidava de solucionar em seu próprio engendramento e, essa ausência de infrasubjetividade, faz com que o compositor se defronte, por exemplo, com elementos de exterioridade e mecanicidade presentes na linguagem que ele mesmo criou. Para Adorno, a necessidade de “compreender com critério de ordem tudo o que constitui o fenômeno musical e de resolver a essência mágica da música na

221 racionalidade humana” (p. 57), resultou um sistema de domínio sobre a natureza que em princípio garantiria a emancipação do homem. Porém, essa dominação da natureza se inverte contra a autonomia e liberdade subjetivas próprias. Essa inversão é muito importante para Adorno. Para ele, a racionalidade dodecafônica se revela contrária à liberdade subjetiva, como se engendrasse uma dinâmica própria e heterônoma: “esta técnica escraviza a música ao liberá-la. O sujeito impera sobre a música mediante o sistema racional, mas sucumbe a ele” (p. 59). Adorno aponta que a liberdade do compositor “ao realizar-se no domínio sobre o material, converte-se numa determinação do material, que se impõe, estranha, ao sujeito, e o submete à sua obrigação” (p. 59). A partir dessas considerações sobre a técnica dodecafônica, estão, portanto, postos em jogo, os conflitos da nova música. O conhecimento como resposta à inversão da dominação No fim do seu texto, Adorno passa a apontar saídas para o que, em princípio, pareceria uma grande aporia. Comenta que diante destes conflitos com a linguagem por ele gerada, o compositor “deve admitir objetivamente a gratuidade e a fragilidade desta linguagem no ato de composição” (p. 86) já que “estridentes sistemas paranóicos estão prontos a devorar qualquer um que, ingenuamente, queira considerar a linguagem por ele criada como definitivamente válida” (p. 87). Para melhor compreensão dessa conclusão de Adorno, parece importante evidenciar a base de reflexão freudiana que acreditamos estar por traz de tal raciocínio. A teoria freudiana de progresso vincula o desenvolvimento subjetivo do sujeito com as etapas de desenvolvimento social. Em seu livro Totem e Tabu, Freud parte da reflexão sobre a onipotência de pensamentos para comentar a “evolução da maneira do homem visualizar o universo” (FREUD, 1974, p. 111). Para tanto, enuncia três fases: animista - onde “os homens atribuem a onipotência a si mesmos” (p. 111). Essa fase é marcada pela indistinção entre homem e natureza; religiosa onde a onipotência é transferida para os deuses. Essa fase surge no momento de ruptura entre homem e natureza como modo de defesa contra o “desamparo sentido pelo sujeito ao se defrontar com a irredutibilidade da contingência de sua posição existencial” (SAFATLE, 2005, p. 122); científica - onde já não há onipotência humana: “os homens reconheceram a sua pequenez e submeteram-se resignadamente à morte e às outras

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necessidades na natureza” (FREUD, 1974, p. 111). Para Freud, essa fase científica não chegou de fato a se concretizar já que “um pouco da crença primitiva na onipotência ainda sobrevive na fé dos homens no poder da mente humana, que entra em luta com as leis da realidade” (p. 111). Portanto, o raciocínio de Adorno parte da idéia de que a tentativa de dominação da natureza e de emancipação (passagem do estado anímico para o estado religioso) leva o compositor a criar uma linguagem que propicie a dominação integral do material (técnica dodecafônica), mas, tão logo esse processo é totalizado e levado ao extremo, a linguagem se torna autônoma e o domínio se inverte: o sujeito sucumbe à linguagem por ele criada (estado religioso). Isso significa dizer que na tentativa de dominação da natureza, o sujeito subordina o material a si mesmo, ou seja, à sua razão matemática. Inversamente, tal tentativa resulta num compêndio de regras que degrada o sujeito a escravo do material. É dessa forma que Adorno conclui que a razão dodecafônica se inverte em não-razão. Este processo de dominação do material inicialmente “permite ao sujeito romper a barreira da matéria natural em que até agora estava confinada a história da música”, mas, como conseqüência, essa “dessensibilização do material, forçado no cálculo da série, contribui justamente para esta abstração de má lei, que logo o sujeito sente como autoalienação” (ADORNO, 2004, p. 96). O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem da ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 24).

É nesse momento que podemos compreender com maior clareza o porquê da afirmação de Adorno no prefácio a Filosofia da Nova Música: “O livro está concebido como uma digressão à Dialektik der Aufklaerung” (ADORNO, 2004, p. 11). Temos aqui, demonstrada na esfera musical através da análise do projeto estético schoenberguiano, toda a reflexão desenvolvida na Dialética do Esclarecimento. Vale a pena, portanto, abrir aqui um breve comentário apenas para lembrarmos, em linhas gerais, o que estava em jogo em tal reflexão: no mito não havia distinção entre cultura e natureza. O

esclarecimento veio para marcar essa distinção, separando homem e natureza. Porém, para Adorno, esse processo de racionalização se generaliza numa razão instrumental6, que passa a dar conta de todas as esferas de valor (incluindo a estética, as artes e, portanto, também a música) utilizando a submissão através do cálculo, da unificação e da atribuição de denominadores comuns ao que, em principio, não possui nem mesmo semelhanças (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 23). É importante notar que, para Adorno, esse processo de submissão só é possível a partir da ruptura entre sujeito e objeto. Para ele, quanto mais o sujeito se afasta de um objeto, maior sua possibilidade de dominação sobre esse objeto. Porém, como conseqüência, é também exatamente nesse afastamento que o sujeito percebe sua alienação. Adorno ainda insiste no fato de que, ao submeter o objeto à razão instrumental para poder assim dominá-lo, o sujeito nega a história. Simplesmente porque, para Adorno, as possibilidades de transformação do objeto estão dentro do próprio objeto e não fora dele.7 Essa reflexão nos permite compreender, finalmente, porque para Adorno a categoria de historicidade dos materiais, parece orientar grande parte da crítica contida em Schoenberg e o Progresso. Após essa breve digressão, podemos retornar com maior clareza ao ponto onde tínhamos parado: a razão que se inverte em não-razão. Para Adorno, a solução de tal problemática se coloca da mesma forma que em Freud: a necessidade de passagem para o estado científico. Para isso, o compositor ao identificar essa auto-alienação precisa admitir sua pequenez frente à linguagem: é “em meio a seu horror pela linguagem musical alienada, que já não é sua, que o sujeito reconquista sua autodeterminação [...] A música torna-se consciente de si mesma, como é consciente o conhecimento” (ADORNO, 2004, p. 96). Essa autoalienação, resultante da dissolução da identidade entre sujeito e objeto, possibilita, portanto, o surgimento da obra de arte fragmentada em oposição à obra de arte fechada8. A obra de arte 6

"Tendo cedido em sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. No aspecto formalista da razão subjetiva, sublinhada pelo positivismo, enfatiza-se a sua não-referência a um conteúdo objetivo; em seu aspecto instrumental, sublinhado pelo pragmatismo, enfatiza-se a sua submissão a conteúdos heterônomos. A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu papel de domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para avaliá-la” (Horkheimer, 2001, p. 29).

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Assim como Marx, Adorno olha o movimento histórico como continuidade e ruptura. Para ambos, o objeto já carrega em si sua própria negação.

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O conceito de obra de arte fechada de Adorno se assemelha com o conceito de obra de arte aurática, de Walter Benjamin.

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simpósio de pesquisa em música 2006 fechada guardava a identidade entre sujeito e objeto e, com sua natureza intuitiva, tendia à aparência. Portanto, “somente a obra de arte transtornada abandona, junto com seu caráter compacto, a natureza intuitiva e com ela a aparência” (p. 100). A reconquista da autodeterminação do sujeito e da autoconsciência musical como resposta ao horror à alienação é o que Adorno reconhece na última fase de Schoenberg: a obrigação do sistema acompanhada da alienação “induz o sujeito a separar-se novamente de seu material, e esta separação constitui a tendência mais interior do último estilo de Schoenberg [...] Precisamente porque o material, tratado exterior e superficialmente, já não lhe diz nada, o compositor obriga-o a dizer o que ele quer” (p. 96). Considerações finais É essa força de esquecer que Schoenberg tem (ADORNO, 2004, p. 99).

Já no fim do seu artigo, após ter cumprido sua trajetória de crítica (análise - apontamento e localização de contradições - discussão de possibilidades e soluções), percorrendo toda a obra de Schoenberg, Adorno tece ainda alguns comentários sobre o projeto estético schoenberguiano de maneira geral, fornecendonos uma peça fundamental para completar a montagem do nosso quebra-cabeça. Adorno comenta que Schoenberg transitou entre obras dodecafônicas (“desde o quinteto de sopros até o Concerto para Violino”), obras tonais (“algumas obras para coro, a Suíte pra Cordas, o Kol Nidre e a Segunda Sinfonia de Câmara”), obras com fins funcionais (cita a Música de acompanhamento para uma cena de filme e a ópera Von heute auf Morgen), instrumentações de obras de Bach, Brahms e Haendel, entre outras coisas, e que isso só foi possível devido sua capacidade de esquecer: “em nada se distingue talvez tão radicalmente Schoenberg de todos os outros compositores como na capacidade de censurar e negar Tanto a dissolução da aura quanto a dissolução da obra fechada, nesse processo de emancipação da arte, pode ter um sentido positivo ou negativo. O que deriva da dissolução de ambas, depende “da relação que sua própria dissolução tenha com o conhecimento. Se esta dissolução é cega e inconsciente a obra de arte cai na arte de massa da reprodução técnica [...] Como autoconsciente, em compensação, a obra de arte torna-se crítica e fragmentária” (ADORNO, 2004, p. 101).

continuamente, com cada modificação de seu procedimento, o que ele antes possuía” (ADORNO, 2004, p. 99). É justamente essa capacidade de negar continuamente que Adorno reconhece como característica fundamental do projeto estético de Schoenberg, que “durante toda a vida se deleitou em cometer heresias contra o ‘estilo’ cuja implacabilidade ele mesmo criou” (p. 98). É esse raciocínio que leva Adorno a afirmar que os grandes momentos de Schoenberg são justamente os de sua última fase9, resultantes de “aquisições feitas tanto contra a técnica dodecafônica, como em virtude dela [...] Porque o espírito que a concebeu continua sendo bastante dono de si para continuar pesquisando ininterruptamente a estrutura de suas espirais, parafusos e roscas, como se por fim estivesse disposto a destruir catastroficamente a sua obraprima técnica” (p. 61). Para Adorno, é o esquecimento a força motriz schoenberguiana. O esquecimento possibilita a salvaguarda da tradição que é nada mais do que o “esquecido que está sempre presente” (p. 100) e simultaneamente “deixa valer a potência da imaginação” (p. 100). Para Adorno, essa força de esquecimento foi conservada até a última fase de Schoenberg, onde o compositor renegou o que ele próprio havia fundamentado: a fidelidade à onipotência do material. Adorno vincula intimamente o esquecimento à transcendência da subjetividade: “no esquecimento, a subjetividade transcende incomensuravelmente a coerência e a exatidão da imagem, que consiste na recordação onipresente de si mesmo” (p. 100). São essas considerações sobre o esquecimento - peça fundamental para a compreensão do projeto estético de Schoenberg que permitem Adorno afirmar na conclusão do seu artigo que: “como artista, Schoenberg reconquista para os homens, através da arte, a liberdade” (p. 100).

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A última fase de Schoenberg é para Adorno o período pósdodecafônico. René Leibowitz e Pierre Boulez identificam o início desta fase a partir da mudança de Schoenberg para os Estados Unidos em 1933. É um período híbrido onde Schoenberg articula serialismo e tonalismo.

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Referências ADORNO, Theodor. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 2004. _____; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica in Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1). BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz. São Paulo: Perspectiva, 1995. FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Obras psicológicas completas; v. 13). HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2001. LEIBOWITZ, René. Schoenberg. São Paulo: Perspectiva, 1981. SCHOENBERG, Arnold. Harmonia. São Paulo: UNESP, 1999. SAFATLE, Vladimir Pinheiro. Curso de estética III: a filosofia da música de Theodor Adorno. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2005. _____ Depois da culpabilidade: figuras do supereu na sociedade de consumo. In: DUNKER, Christian; AIDAR, José Luis, Zizek crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo: Hacker, 2005.

Razão e nostalgia: o lugar da música no pensamento moderno Enrique Valarelli Menezes Universidade de São Paulo

Resumo A composição musical pode ajudar-nos a esclarecer problemas filosóficos modernos, assim como tais problemas podem orientar-nos em uma interpretação da história da música. Frente à discussão sobre o lugar da racionalidade no pensamento ocidental, autores como S. Freud o T.W. Adorno procuraram demonstrar como os modos de funcionamento da razão ainda ocorrem sobre bases irracionais. Essa dicotomia razão/irrazão, sempre presente na discussão filosófica da modernidade, pode encontrar uma figuração interessante no objeto musical, já que a música, na história da estética, sempre foi colocada como a mais "irracional" das artes, apesar de tecnicamente possuir uma histórica de progressiva racionalização. Palavras-Chave: Modernidade, racionalidade, nostalgia, composição.

Intodução Filosofia é na verdade nostalgia – Novalis

Em relação aos problemas estéticos da filosofia da arte em geral, a música sempre se desenvolveu com certa autonomia. Sua afinidade semântica com as outras artes sempre foi extremamente delicada e problemática, fazendo com que a música, na história da estética, oscilasce entre os extremos da "hierarquia" das artes. Tal particularidade ocorre porque a música sempre carregou um status próprio, consequência, principalmente, de dois problemas: a alta complexidade dos meios técnicos com os quais se realiza e a impossibilidade de expressar fatos racionais da linguagem cotidiana. Em outras palavras, depois de árduo estudo para compreender e bem utilizar as técnicas de um instrumento ou da composição, instrumentista e compositor não têm a capacidade de, com a linguagem adquirida, comunicar a alguém que vai à padaria ou passar uma receita de bolo. Nos escritos teóricos, é comum à música aparecer ou como a mais privilegiada das artes ou como a mais inexpressiva, e tal conceito sempre se constrói sobre sua incapacidade de expressar conceitos. Segundo Enrico Fubini, "caso se queira assinalar o momento de início de uma estética musical moderna [...] deveriamos dirigir-nos ao setecentos, o século que assistiu a uma lenta e laboriosa liberação da estética musical do racionalismo e do intelectualismo de origem cartesiana, que haviam relegado a música ao último posto da hierarquia das artes" (FUBINI, 1971, p. 10). Tal momento coincide com a busca

de uma liberação e autonomia da música como expressão artística, iniciada no iluminismo e levada ao extremo no romantismo. Como reação a um mundo que se torna excessivamente racional, a música é tomada por autores como Schopenhauer, Nietzsche, Wackenroder e Schelling por exemplo, como aquilo que carrega o não apreensível pelo conceito, aquilo que não pode ser dito pela palavra, e por isso - em termos gerais - é tomada como via de acesso a verdades que de outro modo não seriam acessíveis. A discussão acerca da superioridade ou inexpressividade da música como expressão artística pode ser colocada também em linhas gerais através da dicotomia racionalidade/ irracionalidade: valorizada em seu caráter assemântico e não conceitual, afastado da linguagem cotidiana, estaria no topo das artes, mas no entendimento racional, ela cai para o último. Independente da opinião de tal ou qual autor no que diz respeito à expressividade da música como linguagem artistica, essa discussão nos permite identificar qual é o lugar dela na história do pensamento racional. Modernidade e Nostalgia O progresso da racionalidade na cultura opera uma inevitável divisão entre ciência e poesia. Na modernidade, o método científico de compreensão da natureza exige que os acontecimentos estejam livres de qualquer explicação mágica irracional ou mitológica. A exigência do fim das relações místicas acaba por separar também a linguagem entre as diferentes artes: ela se vê dividida, incapaz de, através da soma de todas novamente, recostituir-se em um todo orgânico. A separação entre signo e imagem, que ocorre através do método científico,

226 retira da linguagem sua existência orgânica outrora existente. Depois da separação, a vontade de conciliar novamente as coisas em um Todo pleno de sentido é sempre nostálgica. "O abismo que surgiu com a separação, a filosofia enxergou-o na relação entre a intuição e o conceito e tentou sempre em vão fechá-lo de novo: aliás, é por essa tentativa que ela é definida. Na maioria das vezes, porém, ela se colocou do lado do qual recebia o nome" (ADORNO, 1985, p. 31). Tal abismo é também o que leva os teóricos a refletirem sobre o estado da música e da linguagem. De modo geral, o fazem comparando o estado de sentido na arte de sua época com o de uma época ideal, na qual o Todo não se separava em diferentes acontecimentos, e assim constituia a unidade anterior ao abismo. Para o homem que faz essa projeção, noutros tempos, a vida e as coisas estavam impregnadas do sentido que ele não cansa de procurar, e parece que esse só se retirou das coisas na medida em que aquele iniciou sua busca: num mundo dotado de mais sentido, anterior ao abismo, não se pensaria na distinção entre vida e essência, palavra e coisa, pois seriam conceitos idênticos. Muitos teóricos idealizaram, desse modo, a Musiké grega, que articulava sobretudo música, poesia, dança e mímica como um mesmo acontecimento não separado em diferentes termos: as partes constituíam um todo orgânico, repletas de um sentido prontamente existente. Assim como para Lucáks em sua Teoria de romance, também para Rousseau e Rameau - em sua concepção iluminista da música - o passado anterior à divisão carregava um sentido imanente: a totalidade estava impressa em cada particularidade, e cada particularidade era expressão do todo. "Eis porque os tempos afortunados não têm filosofia, ou, o que dá no mesmo, todos os homens desse tempo são filósofos, depositários do objetivo utópico de toda filosofia." (LUKÁCS, 2000, p. 26). O sentido da vida seria imanente, ou seja, o trabalho filosófico dos modernos seria algo tão simplesmente óbvio que não teria razão de ser. Na Modernidade, a existência de não-sei-oquê obscuro indica que aquela totalidade já não está mais presente, e também que há anseios do sujeito burguês que não se ligam a representações racionais. Em conseqüência dos progressos de seu racionalismo, o irracional sobra como um escondido esquisito, proibido pela razão, e a sensação de perda retorna de modo sintomático. O desamparo surge como seqüela

SIMPEMUS3 necessária à dura formação do indivíduo moderno, e as estruturas racionais tentam deixar para trás o que há de obscuro do Eu. Contudo, a primazia da razão não é total, e o esquecido pela racionalidade continua existindo, apesar de escondido. O seguinte comentário de Adorno apresenta a música como uma figuração dialética interessante para nosso referido problema: "Por seu puro material a música é a arte em que os impulsos pré-racionais e miméticos se afirmam irredutivelmente, entrando ao mesmo tempo em constelação com as tendências ao progressivo domínio da natureza e dos materiais" (ADORNO, 1983, p. 262). A reconciliação com o Todo No história estética do pensamento musical autônomo, a busca nostálgica de uma reconciliação com o Todo é constante. Como consequência de sua separação da palavra, a música revela sua assemanticidade, sua incapacidade de expressar conceitos fechados, e porisso é tomada muitas vezes como inferior às artes racionais, mas também como capaz de comunicar-se diretamente com a essência, subtraindo assim a mediação humana. Para alguns teóricos antigos, as melodias já existiam na natureza, plenas de virtuosismo e beatitude. A representação artística que as respeitasse estaria de acordo com a essência do Universo. Boécio, por exemplo, em seu De Institutione Musica, do século V, afirma que os movimentos orbitais dos astros estariam vinculados a uma relação perfeita e bem combinada, e que suas diferentes velocidades consistiriam numa ordem racional de movimentos. Segundo ele, a harmonia uniria as diferentes e contrárias potências dos quatro elementos que, juntos, formariam cada corpo e organismo. A música humana é entendida como o universo e o si mesmo, já que o corpo humano também é dotado de diferentes componentes unidos, formando um único organismo que produz uma consonância. Não é à toa que não se assinavam as composições dessa época – para eles, a música já estava escrita nas leis naturais, bastava imitá-las. Era a concretização singularizada - no homem, na matemática, na arte etc. – de um Uno essencial e indiviso. Essa concepção de mundo unívoca é que permite para a antiguidade uma segura imanência de sentido, sua organicidade positiva; e para o homem moderno, um lugar para projetar um mundo de sentido ideal. Batteux, em ensaio de 1747 entitulado Les beaux arts réduits à um même principe, trata também da imitação da natureza nas artes, e na música inclusive. A arte imita a natureza, diz Batteux, mas a supera e aperfeiçoa por selecionar

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simpósio de pesquisa em música 2006 suas melhores características, descartando tudo o que de feio e desagradável possa apresentar a realidade. Em sua concepção, a poesia é a "linguagem do espírito", enquanto que a música é a "linguagem do coração": aqui já aparece a ruptura irreparável entre razão e sentimento, que se fará cada vez mais profunda. Para Batteux, "o que pertence ao coração entende-se imediatamente: basta sentir, não é necessário nomear [...] O coração tem sua própria inteligência independente de palavras." Sem necessidade de mediação, a música aparece em seu ensaio como uma linguagem universal, livre de convenções, reconciliada com o todo através de sua especificidade. Entretanto ela já aparece separada das outras artes, e a possibilidade de transcender a mediação e encontrar-se com o Todo só pode se dar através dessa especificidade. Rameau, em seu Tratado de harmonia reduzida a seu princípio natural, procura reduzir a ruptura que começa a surgir entre arte e razão. Através de um perfil fisico-matemático calcado na tradição pitagórica, busca reinserir a música em um lugar privilegiado na escala das artes. "Meu fim é o de restituir à razão os direitos que perdeu no campo musical". Explica a harmonia através de um princípio natural e original, portanto racional e eterno, a teoria dos harmônicos. A música causa deleite precisamente porque expressa, com sua harmonia, o divino de ordem universal, a natureza mesma. Para Rameau, a música expressa não só emoções e sentimentos, mas também a divina e racional unidade do mundo. Entre razão e sentimento, intelecto e sensibilidade, natureza e lei matemática não há nenhum contraste, mas sim uma perfeita consonância: esses elementos devem, pois, cooperar harmonicamente, num todo parecido com o que imagina Boécio. A idéia de "reconstituir" algo que se perdeu também está presente no pensamento de Rousseau. A concepção da Musiké aparece de modo fantasmático, como algo que deve ser reestabelecido na expressão, tanto para Batteux e Rameau quanto para Rousseau. Assim, em seu Ensaio sobre a origem das linguas, Rousseau defende a composição vocal em detrimento à instrumental: concebe a música únicamente como canto, pois apenas desse modo ela voltaria a encontrar-se em seu estado de natureza original. "Em um passado mítico, quando o homem estava em estado de natureza, música e palavra constituiam um nexo indivisível, e o homem podia expressar suas paixões e

sentimentos de modo mais completo. Em outras palavras, em sua origem as palavras eram acentuadas musicalmente, e foi um desafortunado efeito da civilização que causou a perda da melodiosidade original e ficaram aptas somente para expressar racionalizações; por outro lado, os sons musicais que em outros tempos constituiam o acento da linguagem e representavam sua causa vital tornaram-se isolados e empobrecidos em sua capacidade expressiva." (FUBINI, 1971, p.39). Para Rousseau, o canto melódico restituiria aquela unidade perdida. Em sua projeção ideal, "não havia outra música que a melódica, nem outra melodia que o som modulado da palavra; os acentos formavam o canto, e falava-se tanto mediante os sons como pelo ritmo e articulaçoes das vozes". Entretanto, essa reconstituição da unidade despedaçada só poderia ocorrer na linguagem que não tivesse perdido completamente sua originalidade musical: as orientais e meridionais (árabe, persa e sobretudo o italiano). As linguas nórdicas seriam precisas, exatas, duras e articuladas, se prestariam a serem escritas e lidas, falariam à razão, perdendo para esta sua musicalidade. Harmonia, contraponto, fuga e outros procedimentos técnicos seriam invenções não-naturais, fruto de meras convenções sociais. O sistema tonal: matriz artificial doadora de sentido O anseio pela reconciliação com o Todo converte-se não só em nostalgia e desamparo, mas também em arquétipos artificialmente formados, cuja intenção é semelhante ao da projeção ideal do passado: a imanência orgânica do sentido. Em música, o tonalismo é uma forma artificial de grande importância. Por ter elaborado uma interpretação completa de tal sistema, usaremos para o nosso entendimento a reflexão de Arnold Schoenberg em seu Tratado de harmonia. Sua primeira afirmação sobre o modo maior, baseada na teoria dos harmônicos, é categórica: "A nossa escala maior, a seqüência do-ré-mi-fá-sol-lá-si, cujos sons se baseiam nos modos gregos eclesiásticos, pode ser explicada como uma imitação da natureza." (SCHOENBERG, 2001, p. 61). É um raciocínio no qual se podem perceber ecos pitagóricos da concepção musical. Assim, "Se a escala é a imitação do som horizontalmente, em sucessão, os acordes são a imitação vertical, simultânea. A escala é a análise do som, assim como o acorde é a síntese." (p. 67). O sistema tonal, entendido nessas bases, seria então uma representação da natureza na música, como acontecia com o pensamento grego.

228 Mas Schoenberg é cauteloso ao chamar a atenção para o fato de que "O descobrimento de nossa escala foi um feliz acaso para o desenvolvimento da nossa música. Não só pelos resultados obtidos, como também porque poderíamos ter encontrado outra sucessão diferente, como os árabes, os chineses, os japoneses ou os ciganos. [...] E, acima de tudo: semelhante escala não é o fim, a meta última da música, mas tão-somente uma etapa provisória." (p. 64). O cuidado que Schoenberg toma é o de lembrar que o tonalismo possui um contexto histórico, evitando assim considerar natural o que é socialmente desenvolvido. Tanto a concepção de Boécio e da Musiké grega quanto a do tonalismo encontram na imitação da Natureza sua matriz doadora de sentido. Entretanto, as diferenças que as separam são visíveis: enquanto naquelas os acontecimentos estariam organicamente relacionados num sentido indiviso e único, o tonalismo se autonomiza em relação às outras artes, sendo essa separação um sintoma da perda da totalidade orgânica, da cisão entre Eu e Mundo. Na Musiké, o sentido surge da relação mimética com a natureza em sua forma pura e direta, enquanto que o tonalismo é um sistema de imitação artificialmente criado, onde o sentido já está envolvido pelas formas mediadoras, o que impossibilita aquela totalidade homogênea do pensamento de Boécio. Mas o sistema tonal ainda é depositário de um sentido comum, capaz de expressar os vínculos da esfera artística com a sociedade aonde nasce. Rigorosamente lógico, os encadeamentos e leis acústicas que regem suas estruturas estão em conexão com a vida comum, e cada composição realizada dentro desse sistema é a expressão particular e fechada de um sentido maior, ficando automaticamente atrelada aos valores de um povo, cultura ou época. Em todo caso, é um estilo sócio-cultural orgânico, capaz de realizar vinculações somente através da realização de seus funcionamentos internos. Após o declínio tonal na música erudita da nossa época, é para alguns experiência de espanto e algum pesar ouvir um compositor do séc. XVIII como Mozart, que tão bem expressou aquele sistema. Seu pleno domínio técnico sobre a linguagem tonal converte-se - exatamente por ser um domínio ativo - em elogio do compositor ao sistema, e sua composição transforma-se em um prazer estético socialmente partilhado. Para o nosso ouvinte nostálgico de hoje, o pesar se dá

SIMPEMUS3 ao reconhecer como esse prazer vinculativo aparece de modo tão inesperadamente simples. Mas, mesmo nos autores que melhor realizaram suas lógicas, o tonalismo permanece como uma aparição fantasmática daqueles tempos nos quais a vida não se separava da essência, e o sentido estava impregnado em cada objeto e em cada ação. Aliás, toda a história da música, desde o início da polifonia, evolui através de rupturas e descontinuidades que atestam a perda de uma totalidade comum por meio do progresso da racionalização. Frente à racionalidade crescente, a estética musical recebe um lugar curioso: sua assemanticidade, sua incapacidade de expressar conceitos (Hanslick e Fubini não cessaram de reiterar essa particularidade) colocam-na em posição análoga àquele não-sei-o-quê obscuro que sobra na razão, ela toma a forma desse vazio. Como reação romântica à racionalização, a música é levada, por essas especificidades que a jogavam ao último degrau do sistema das artes, a um novo lugar privilegiado. Adorno é preciso ao comentar essa especificidade: "Não há dúvida de que a história da música é uma progressiva racionalização. Teve passos, como a reforma guidônica, a introdução da notação mensural, a invenção do baixo contínuo, a afinação temperada, e finalmente a tendência à construção integral da música, irresistível desde Bach e hoje levada ao extremo. Não obstante, a racionalização inseparável do processo histórico do aburguesamento da música - é apenas um de seus aspectos sociais, assim como a racionalidade ela própria, Alfklärung1, é apenas um momento da história da sociedade, que permanece irracional, presa ainda a formas "naturais". No interior da evolução total de que participou através da progressiva racionalidade, a música foi também, e sempre, a voz do que ficara para trás no caminho dessa racionalidade, ou do que fora vítima." (ADORNO, 1983, p. 262). A nova música e a ausência de uma prática composicional comum Por meio da realização de suas próprias lógicas e possibilidades, o sistema tonal entra em colapso. Sua utilização anacrônica transforma-se em um pastiche: um aglomerado de siglas gerais, progressões estereotipadas, funções que se mecanizam e todo tipo de clichê sentimental jogam o afeto em direção ao valor de troca, à mercadoria. O tonalismo se reifica, e aparece desqualificado 1

Esclarecimento.

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simpósio de pesquisa em música 2006 enquanto expressão. Para usar de uma metáfora da época, o compositor "perde a casa". Agora estão impossibilitadas tanto a totalidade mimética da Musiké quanto a linguagem comum do tonalismo. O compositor enfrenta um problema de consciência: coagido pelo processo histórico do material musical ateou fogo em sua própria casa. Aqui encontramos nos problemas da composição mais uma atualização da nostalgia moderna: o compositor se encontra impossibilitado de uma linguagem comum, amputado de seus meios expressivos costumeiros, consternado por ter ele próprio os queimado; seu desejo é de que ressuscite um sentido que existia em uma linguagem passada, mas que ele sabe impossível. Aqui, a Nova Música é que carrega a aparição fantasmática do tonalismo, mostrando-se em tendências distintas, que podem ser percebidas em soluções diferentes. Como reação ao abismo que aumenta entre linguagem e expressão, a composição significativa deixa à mostra sua crise. Há compositores que remontam os cacos que restaram da casa que se perdeu e os juntam com as conquistas técnicas de que dispõem, com a esperança de que em uma nova organização ou

em novo tratamento os cacos arruinados ao menos deixem aparecer uma fagulha daquele sentido que outrora estava vivo. Em outros casos, os restos também são reunidos, colocados artesanalmente um ao lado do outro, mas apenas para ostentar o fracasso a que foram submetidos. Há ainda as tendências mais novas que procuram renunciar ao temperamento e assim ao tonalismo definitivamente. As primeiras obras de A. Schoenberg revelam o limite tenso entre a tonalidade e a atonalidade. O material que aparece nessas composições provém frequentemente da gramática tonal, tanto do que a formou quanto do que a extinguiu: terças, trítonos, sensíveis, dominantes, cromatismos, seqüências de quartas, pés-métricos de dança etc. são colocados de modo que nunca representam a função que tinham naquele sistema. O sentido da composição começa a se deixar transparecer em uma dificuldade acarretada pela insatisfação com um sistema de referência que apresenta seus meios tradicionais de expressão já praticamente catalogados, e a impossibilidade ou contrasenso de separar-se dele. Essa negação recíproca pode ser observada logo nos primeiros compassos da Sinfonia de Câmara Op.9:

Figura 1

Logo nesses primeiros quatro compassos da introdução podemos perceber alguns desses limites com os quais o compositor busca flertar: Apesar da tonalidade indicada na armadura ser Mi Maior, o último acorde dessa seção é um Fá maior, em fermata, e a harmonia que o precede vem construída cromaticamente através da aproximação cromática e diatônica desse fá maior. Quatro compassos que atestam a situação do compositor frente ao material musical: Podemos encarar os três primeiros compassos como a busca daquilo que Schoenberg chama de

“verdade”: buscando eliminar os ornamentos da composição e desviar a expressão de uma gramática clichê, o compositor tira do material a essência da sistematização tonal – as polarizações – e constrói algo livre das estruturas acordais comuns nas quais a convenção pesaria mais do que a expressão. Se por um lado a construção convencional dos acordes já não atrai sua atenção, procurando novos caminhos através de polarizações cromáticas, a conclusão em um acorde triádico que confirma o tonalismo em sua forma mais clichê (a resolução cadencial 4 – 3) que de certo modo se

230 quer fugir, aparece como inevitável e talvez um pouco paródica; como se não resolver a polarização inicial tirasse dela o sentido, mas também como se usar essa forma cadencial tirada de seu contexto tonal pleno causasse uma sensação de saturação. Na segunda peça do Opus 19 - já imerso no atonalismo - o que vemos é um manuseio da

SIMPEMUS3 forma através de uma "variação progressiva" à maneira de Brahms desses "materiais impossibilitados" (no caso, a terça, retirada do contexto tonal), construindo assim uma peça fechada e coerente, calcada na tradição alemã. A fratura entre eu e mundo verte o que era pressuposto formal em material composicional.

Figura 2

Quanto às obras de sua fase dodecafônica, é Pierre Boulez quem nos aponta a continuidade da mesma antinomia (embora para chegar a conclusões diferentes): “A série intervém, em Schoenberg, como um mínimo denominador comum para assegurar a unidade semântica da obra; mas os elementos da linguagem assim obtidos são organizados por uma retórica preexistente.” (Boulez, 1981, p.244). Essa retórica preexistente é o que entendemos como aparição fantasmática do tonalismo, cristalizada no caminho das inovações técnicas racionais da

música como um entrave, carregado de força expressiva.1 Em Gustav Mahler, a situação desmantelada da linguagem aparece juntamente com uma certa ausência de identidade. Seu romantismo levado ao limite faz retornarem à composição temas folclóricos, imagens nostalgicas, produtos de 1

Algo parecido acontece em Alban Berg em sua suíte lírica ou no concerto para violino, onde formas e gestos de extremo lirismo, típicos do auge romântico do tonalismo, aparecem exagerados e impossibilitados de acontecerem tal como eram, por ocasião de estarem ligados não mais a uma gramática tonal mas sim a seu inverso: o dodecafonismo.

231

simpósio de pesquisa em música 2006 lembranças arcaicas do compositor, misturadas à erudição histórica tradicional da harmonia e do contraponto, adquiridas em sua formação. Tal aproximação entre a música popular e a erudita, antes de significarem um retorno à linguagem orgânica do passado, atestam, para o autor, a impossibilidade tanto de uma quanto de outra. O terceiro movimento de sua primeira sinfonia, por exemplo, é construído sobre a tradicional canção popular "Frère Jacques", retrabalhada ao gosto do criador. Tradicionalmente em tonalidade maior, Mahler transpõe o tema para a tonalidade de ré menor. O tratamento contrapontístico estrutura o movimento, contradizendo a essência popular do tema. Em nossas terras também surgem saídas para o problema. Como compositor nascido em um país no qual a grande música clássica é estrangeira, Heitor Villa-lobos não precisa colocar-se como participante de sua tradição. Retira material tanto de festas folclóricas

brasileiras quanto da tradição européia que aqui chegou. Composições como o seu trio para palhetas carregam uma certa "esquizofrenia", uma identidade que se confunde entre brasileiro popular e europeu erudito - definida, aliás, exatamente por meio desse quiproquó. A melodia de caráter folclórico aparece organicamente misturada a um contraponto de tradição européia em passagens abruptas, onde o tratamento dado aos materiais não é o da tradição tonal, como em Mahler. Também o desenvolvimento harmônico aparece impedido em sua acepção tradicional por essa confusão de uma coisa com outra, costurando e tecendo a noção de um sujeito artístico envolto por duas tradições que pouco têm em comum. Essa maneira de compor o encaixa em um novo modo de aparição da Nova Música, que surge agora sob a forma objetiva da ostentação do fracasso tonal por compositores que, apesar de envolvidos com sua lógica, estão fora de sua formação tradicional e histórica.

Referências ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. _____ Idéias para a sociologia da música. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 259-268. _____ Filosofia da nova música; São Paulo: Perspectiva, 1989. BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz; São Paulo: Perspectiva, 1981. FUBINI, Enrico. La estética musical del siglo XVIII a nuestros dias; Barcelona: Barral, 1971. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance; São Paulo: Duas Cidades / Ed. 34, 2000. SCHOENBERG, Arnold. Harmonia; São Paulo: Editora da UNESP, 2001.

O que é (pode ser) música? uma análise fenomenológica das atitudes de escuta segundo Pierre Schaeffer José Estevão Moreira, Rogério Costa (orientador) Universidade de São Paulo Resumo As contribuições de Pierre Schaeffer no campo teorético da música são de grande importância para além mesmo de seu propósito na música concreta. Schaeffer perscruta por longos caminhos e territórios do pensamento na tentativa de fundamentar e justificar seus experimentos musicais na rádio francesa – bem como o seu conceito de objeto sonoro – tecendo relações com diversas disciplinas do conhecimento (semiótica, fenomenologia, física, psico-acústica...). Deste modo, nos conduz a rigorosos questionamentos sobre conceitos e posicionamentos acerca da música e da própria concepção do que é (pode ser) música. Tais reflexões revelam-se muito valiosas quando tomadas como ponto de partida para a pesquisa em diversas frentes da atividade artístico-musical: desde a composição, tecnologia, filosofia, passando ainda pela sociologia e educação. O presente texto – parte resumida de pesquisa de Iniciação Científica – busca, justamente, subsídios para um exame das intenções e atitudes de escuta na obra de Pierre Schaeffer baseando-se, para tanto, no Tratado dos Objetos Musicais (1966).

Introdução As contribuições de Pierre Schaeffer no campo teorético da música são de grande importância para além mesmo de seu propósito na música concreta. Schaeffer perscruta por longos caminhos e territórios do pensamento na tentativa de fundamentar e justificar seus experimentos musicais na rádio francesa – bem como o seu conceito de objeto sonoro – tecendo relações com diversas disciplinas do conhecimento (semiótica, fenomenologia, física, psico-acústica...). Deste modo, nos conduz a rigorosos questionamentos sobre conceitos e posicionamentos acerca da música e da própria concepção do que é (pode ser) música. Tais reflexões revelam-se muito valiosas quando tomadas como ponto de partida para a pesquisa em diversas frentes da atividade artísticomusical: desde a composição, tecnologia, filosofia, passando ainda pela sociologia e educação. O presente texto – parte resumida de pesquisa de Iniciação Científica – busca, justamente, subsídios para um exame das intenções e atitudes de escuta na obra de Pierre Schaeffer baseando-se, para tanto, no Tratado dos Objetos Musicais (1966). O Tratado dos Objetos Musicais No Tratado dos Objetos Musicais (1966) ao propor “a classificação dos objetos sonoros em sua morfologia e sua tipologia” (SCHAEFFER,

1993, p. 19), a investigação de Pierre Schaeffer levanta questões que trespassam à taxonomia de aspectos sonoros diversos, por adentrar também pelo campo da Semiótica e Epistemologia referindose à música como uma “nota discordante no concerto do conhecimento”. Isto feito propõe uma revisão do sistema dizendo: para começar advertimos que os termos mais usuais de altura, duração, sensação e percepção, objetos e estruturas, que são de uso cotidiano entre uns e outros, não tem o mesmo conteúdo, e designam circuitos diferentes da experiência ou do uso. Já não se tratam de questões de princípio: distinguir o som puro do chamado bruto, fundar um sistema musical sobre a tonalidade ou a série, sobre uma escala de cinco, seis, sete, doze ou trinta sons, ou ainda sobre alturas em vez de timbres. Trata-se, mais do que terminologias, das próprias noções; e, mais do que noções, das atitudes do fazer musical (p. 19).

Schaeffer adota também a perspectiva da Lingüística para abordar o problema da limitação não só da linguagem, porém também dos meios de expressão instrumental salientando: “nenhuma liberdade maior tem o compositor ao empregar uma ‘linguagem’ instrumental: os sons da orquestra são dados, da mesma forma como são dados os sons do aparelho vocal. As ‘palavras’ da orquestra são as notas, e não se podem esperar outras novas a não ser em uma zona de ‘neologismos’ [...]. As ‘frases’ musicais estão evidentemente na dependência das escalas, modos, regras harmônicas etc., segundo a

233

simpósio de pesquisa em música 2006 situação de semi-liberdade da frase da linguagem em relação à sintaxe. Finalmente os enunciados musicais estão sujeitos à observação final: há muitos estereótipos: cadências, respostas, acompanhamento, resoluções, enquanto novos estereótipos são apresentados pelas músicas contemporâneas” (p. 43-44, grifo nosso]. A ruptura progressiva com a tradição musical dos princípios do Séc. XX, segundo o Tratado, se deve a três fatores: (1) de ordem estética, (2) o aparecimento de novas tecnologias e (3) o reconhecimento e interesse de “civilizações e geografias musicais distintas à ocidental” (p. 27-28). Ao primeiro fator, o estético, verifica-se “uma liberdade cada vez maior na estrutura das obras que consagrou, em meio século, a evolução acelerada da música ocidental. Não se trata apenas de uma ruptura progressiva das regras da harmonia e do contraponto ensinados nos conservatórios, mas de um questionamento das estruturas musicais. Falar de dissonância e de politonalidade em relação a essa estrutura bem definida que é a escala ocidental é uma coisa. Outra coisa é prender-se à própria estrutura, seja pelo emprego de uma escala de seis tons, como já havia feito Debussy, seja pelo emprego de uma escala de doze semitons, como fez Schoenberg, cujas disposições canônicas do dodecafonismo visam eliminar toda tonalidade. Enfim, a partir desse momento certas noções mesmo tateantes, como aquela do Klangfarbenmelodie - são o índice de uma curiosidade que se volta para o emprego de estruturas específicas, diferentes de uma estrutura das alturas” (p. 27-28). Ao segundo fator, do aparecimento de novas técnicas, tem-se o exemplo da música concreta e eletrônica visto que “idéias musicais são prisioneiras, mais do que se possa acreditar, da aparelhagem musical” (p. 38). Cita também as imbricações entre sistemas e instrumentos: “o fenômeno musical tem, portanto dois aspectos correlativos: tendência à abstração, na medida em que a execução possibilita estruturas; e aderência ao concreto, na medida em que ele permanece vinculado às possibilidades instrumentais. Pode-se observar a esse respeito que, de acordo com o contexto instrumental e cultural, a música produzida é, sobretudo concreta, ou sobretudo abstrata, ou quase equilibrada” (p. 27-28). O terceiro fator, o do interesse por culturas diferentes da ocidental, é considerado como mais relevante por Schaeffer ao que

infere: “os musicólogos, confiantes no próprio sistema, empenharam-se com toda naturalidade em reduzir as linguagens primitivas e exóticas às noções e aos termos da música ocidental. E não causa surpresa alguma que a necessidade de um retorno às fontes autênticas tenha sido, precisamente, afirmada pelos músicos mais modernistas - os da música concreta em particular que se viram obrigados, por sua própria experiência, a pôr seriamente em dúvida o valor universal daquele mesmo sistema” (p. 29-30). Após a constatação do problema cultural na música – bem como antropológico e semiótico – Schaeffer enumera “os três impasses da musicologia”, sendo o primeiro (1) o das noções musicais: “já não são apenas a escala e a tonalidade que vêm sendo negadas pelas músicas mais aventurosas - bem como pelas mais primitivas. Também a primeira dessas noções, a de ‘nota’ musical, arquétipo do ‘objeto’ musical, fundamento de toda notação, elemento de toda estrutura melódica ou rítmica”. Desta decorrem os outros dois impasses: (2) o das fontes musicais, referindo-se à limitação dos musicólogos diante de novas ou mesmo distintas sonoridades instrumentais – tecnológicas e/ou culturais – e (3) o problema do comentário estético, que se prende à “abundante literatura consagrada às sonatas, quartetos e sinfonias” adotando estes e outros paradigmas como premissas para a produção musical (p. 31), e que podemos constatar também no pensamento de ADORNO nas questões referentes ao fetichismo em música 1. Objetos Sonoros O que é um Objeto Sonoro? A guisa de introduzir este conceito basilar em sua obra, Pierre Schaeffer remete-se a Pitágoras, o qual era ouvido por seus discípulos por de trás de uma cortina, de maneira que a atenção destes era redobrada pois que, utilizando-se somente a 1

O conceito de Fetichismo desenvolvido por ADORNO refere-se ao problema do ouvinte que se prende a aspectos exteriores aos musicais-artísticos, como por exemplo: a qualidade de um cantor medida pela sua fama, a beleza de uma sala de concerto, a “nona-de-Beethoven”, os aparatos tecnológicos de um determinado acontecimento musical, etc. Uma espécie de surdez que se atenta a pré-conceituações e contingências na qualificação musical, colocando obras de grande valor universal em invólucros – de glamour por exemplo – que ofuscam sua verdadeira importância; ou ainda, o efeito inverso, que privilegia obras impressionantes por outras características que não musicais/artísticas. Estas são características inerentes a uma escuta passiva que não se esforça nem se interessa, portanto, a uma escuta ativa dos aspectos composicionais musicais. ADORNO, Theodor, O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição e também Filosofia da Nova Música.

234 audição, não poderiam ser distraídos pela visão e ainda, teriam um aumento da “curiosidade pelas causas” (p. 83). A este respeito, descreve o seguinte: “à força de escutar objetos sonoros cujas causas [...] estão mascaradas, somos induzidos a ouvir estes [...] e interessarmo-nos por objetos. A dissociação da vista e do ouvido favorece aqui outra maneira de escutar: a escuta das formas sonoras, sem outro propósito que de escutá-las melhor, a fim de poder descrevê-las através de uma análise do conteúdo de nossas percepções” (p. 85). A esta escuta Schaeffer refere-se como Acusmática, ou seja, uma projeção sonora cuja procedência não é visível; um claro exemplo é do alto-falante, com o qual se pode ouvir qualquer som que seja (re)produzido sem ter a referência visual do causador do som ouvido, que pode ser originado de uma fonte que não se encontra no mesmo local onde é percebida - podendo proceder de alguma gravação ou transmissão. O Registro é de grande importância no sistema de Schaeffer, pois além de fundamental para o propósito da música concreta, e de sua escuta acusmática, “a gravação auxilia de duas maneiras: ao esgotar esta curiosidade – [das causas de um som] – nos impõe pouco a pouco o objeto sonoro com uma percepção digna de ser observada por si mesma; por outro lado, em virtude de escutas mais atentas e refinadas, ela nos revela progressivamente a riqueza desta percepção” (p. 85). “O gravador permite fixar a atenção sobre um som em si mesmo, sobre sua matéria e a sua forma” (p. 41). Ainda na definição do conceito de objeto, o Tratado também aponta alguns equívocos quanto ao que não é objeto sonoro: (a) o objeto sonoro não é o instrumento que tocou; (b) não é a fita magnética - ou seja, não é o meio material de armazenamento; (c) os mesmos poucos centímetros de fita magnética podem conter uma quantidade de objetos sonoros diferentes conclusão decorrente da anterior; (d) o objeto sonoro não é um estado de alma - ou seja, não é subjetivo, particular, incomunicável e sim objetivo, descritivo, analisável (p. 87-88). Porém, estes dados preliminares são apenas introdutórios visto que, no desenvolvimento de seu sistema, Schaeffer promove uma “escuta da escuta”, ou seja, analisa os processos pelos quais os objetos sonoros são percebidos e, também, em um outro momento, põe em questão problema do julgamento das impressões obtidas no conhecimento perceptivo, que podem resultar

SIMPEMUS3 objetivas e/ou subjetivas. Assim, fundamentar-seá, segundo Schaeffer, o mínimo necessário para o entendimento do conceito de Objeto Sonoro: “tendo em vista que o objeto percebido (como unidade intencional) corresponde a uma estrutura (da experiência perceptiva), temos sempre a tendência de separar esses dois aspectos: o objeto, que estaria de um lado, e a experiência, que estaria do outro: ou ainda, a estrutura percebida e a atividade constituinte. Sabemos que isso de fato já significa arruinar a noção de objeto, esquecer a autenticidade da percepção. Mas tomar consciência de tal experiência é assumir um novo objeto de pensamento, é exercer um certo recuo sobre a percepção para melhor examinar o mecanismo. Não é mais ouvir, é ouvir-se ouvindo. Por sua vez, esse mecanismo, se chego a analisá-lo, é em virtude de uma estrutura da consciência reflexiva, que por sua vez me permanece oculta... E assim por diante, ao infinito” (p. 255). As Quatro Escutas Schaeffer apresenta no Tratado, reflexões sobre: (1) o “fazer e o ouvir”, (2) objetos e estruturas, (3) análise física do som e (4) problemas filosóficos e semânticos2. Esta seqüência relacionase com a segmentação proposta por Schaeffer aos processos da escuta, para uma análise sistemática do fenômeno sonoro/musical. Estas quatro escutas são partes integrantes na análise aprofundada do conceito de objeto sonoro, no concernente à percepção, tendo em vista que o próprio conceito de objeto sonoro (e/ou musical) disposto no Tratado não pode prescindir de uma escuta ativa, participativa, que se posiciona em relação ao acontecimento sonoro. A seguir, enumeramos os conceitos das quatro escutas (p. 89-110), sobre os quais Schaeffer erige o seu sistema analítico: (1) escutar, (2) ouvir, (3) entender e (4) compreender. Escutar - é perceber pelo ouvido, atitude passiva. Para ilustrar, imagine-se uma “paisagem sonora” (SCHAFER, 1991) onde se escutem diversos acontecimentos, porém sem que se preste atenção a qualquer deles, de maneira que se configure um “background” sonoro sem qualquer “objeto” específico em destaque. Pode-se pensar, em uma cidade, o barulho de diversos acontecimentos simultâneos como: sons de pessoas, buzinas, motores, helicópteros, aviões, sirenes, etc. Deste modo, escuta-se o que se chega à percepção, sem a

2

Encontramos esta organização implícita na apresentação do tratado (p. 19-20).

simpósio de pesquisa em música 2006 focalização de qualquer elemento constituinte da “cena”. Ouvir - é o direcionamento da escuta à fonte de um som. A partir do exemplo dado, um determinado som pode ser “buscado”, focalizado - tal qual a visão, que pode mirar determinadas características de uma imagem - seja pelo desejo de ouvir-se determinado objeto ou ainda pela surpresa de seu aparecimento, caso seja repentino. Entender - exame dos dados obtidos pela escuta. Após a escuta ativa, que seleciona um acontecimento, a natureza do som é identificada. Prosseguindo a contextualização anterior, um som que se apresenta na forma de um “zigue-zague” que vai do grave ao agudo, “escorregando” (utilizando termos musicais tradicionais, um glissando) e faz o caminho inverso, insistentemente repetindo este processo. Entende-se então o som de uma sirene. Compreender - é o campo semântico, dos significados atribuídos a um objeto sonoro ou musical. Concluindo o exemplo, as informações obtidas no Entender, acerca dos sons escutados e ouvidos, dão indícios para a compreensão de que o som ouvido – isto é o insistente glissando do agudo para o grave e vice-versa – é uma sirene e que, dependendo da contexto/cultura na qual estão inseridos o ouvinte e a sirene, tem diferentes significados: pode, por exemplo, representar uma ambulância e, por conseqüência, suscitar angústia pelo entendimento de que uma vida está em jogo; pode representar, em uma fábrica, a hora de intervalo para almoço; ou ainda, um toque de recolher. Ou seja, compreender é relativo aos significados agregados a determinados sons e é, por conta disto, cultural. Com a delimitação de processos da escuta, Pierre Schaeffer tem a intenção de “descrever os objetivos que correspondem a funções específicas da escuta” (p. 97). Encontra-se no Tratado o seguinte quadro:

Figura 1

235 Aplicando-se o esquema à música, em uma situação onde se propaga o som de uma invenção para piano de Bach, por exemplo, em uma situação de escuta acusmática: (1) Escuta-se um som – constata-se assim, uma audição, ou seja, uma não surdez fisiológica. (2) Ao dirigir-se a atenção para este som, ouve-se o som. (3) Três pessoas com experiências bastante distintas – um técnico de estúdio, um músico e um amador – estão ouvindo o mesmo som, ou seja, o mesmo objeto, e retirando cada qual, impressões diferentes que dependem de intenções de escutas diferentes: “estas qualificações variam, como a própria escuta, em função de cada experiência anterior e de cada curiosidade. Todavia, o objeto sonoro único, que torna possível essa multiplicidade de aspectos qualificados do objeto, subsiste sob a forma de uma auréola de percepções, por assim dizer, às quais as qualificações explícitas fazem implicitamente referência. Assim, quando eu concentro minha percepção qualificada sobre o detalhe de uma casa - janela, escultura sobre a porta - nem por isso a casa deixa de estar presente e eu vejo essa janela ou essa escultura como pertencentes a ela” (p. 101). O técnico atenta, por exemplo, para as qualidades físicas do som (timbre, intensidade, reverberação), segundo seu ofício; o músico analisa a qualidade da interpretação e do som pianístico, não necessariamente como o técnico; o amador “aprecia” a música de acordo com seu gosto. (4) Cada ouvinte é levado a compreender diferentes significados, também de acordo com os seus referenciais: o técnico de som pode deduzir que a sala não é apropriada para gravação, ou mesmo que o instrumento não se encontra em boas condições, ou ao contrário, ambos são ótimos; o músico pode ponderar acerca da qualidade do pianista, bem como o estilo de sua escola de interpretação e seu nome; o amador pode referir-se a obra como dramática, tensa e, supondo que não o saiba de início, realizar classificações estilísticas - no caso, música barroca - e ainda a obra - invenção x - e o nome do compositor - Bach. Embora o quadro acima apresente seqüências, Schaeffer adverte no Tratado que “não se deve inferir das divisões e numerações nem uma cronologia nem uma lógica, a que se devesse conformar o nosso mecanismo perceptivo” (p. 101). Isso se verifica como um “artifício de exposição, que com certeza não implica nenhuma sucessão temporal, de fato, na própria experiência perceptiva. A análise da percepção efetua-se instantaneamente, colocando em jogo os quatro segmentos ao mesmo tempo” (p. 103).

236

SIMPEMUS3

O capítulo “As quatro escutas” Schaeffer encerra discorrendo sobre as atitudes de escuta examinando dois pares opositivos de escutas: natural e cultural, banal e prática. Brevemente, apontamos aqui algumas de suas características (p. 105-108):

(b) Banal e prática - respectivamente, quadrantes 1 e 4, 2 e 3. A escuta banal é o contrário da escuta prática (especializada), pouco se “utilizando” dos quadrantes 2 e 3, ou seja, de uma análise do objeto sonoro em si mesmo. Se prende, sobretudo, aos signos, aos referenciais exteriores. A escuta prática se atém mais profundamente às características do objeto sonoro, porém, este exame é, em grande parte, subjetivo por se valer das experiências específicas de cada indivíduo. Se de um lado, a escuta prática é mais direcionada, a banal é mais geral e não perde o “caráter de universalidade e de intuição global”.

(a) Natural e cultural - respectivamente, representam os quadrantes 1 e 2, 3 e 4. A escuta natural é a “tendência prioritária e primitiva a servir-se do som como informativo do evento [...]. A tendência aqui é visivelmente para o setor 1 como finalidade, e pode-se supor um “ouvido” particularmente apurado no setor 2”. Encontra-se na parte concreta do esquema. A cultural, ao contrário, é uma escuta “menos universal que a precedente – no sentido de que ela varia de uma coletividade a outra”, e encontra-se na parte abstrata do esquema. Lembrando que estes signos, não são necessariamente musicais.

4.

Compreender

Transcrevemos, a seguir, o quadro da página 102 do Tratado que apresenta as funções da escuta com suas respectivas descrições, bem como as atitudes de escuta (Figura 2).

1.

Escutar

- para mim sinais (signos)

- para mim indícios

- diante de mim valores (sentido/linguagem)

- diante de mim acontecimentos exteriores (agente - Instrumento)

Em referência a outras noções, sonoras ou não

Emissão do som

Emergência de um sentido

Reconhecimento das fontes

3.

2.

Entender

Ouvir

1e4 Referências Exteriores Escuta Banal

2 e3

percepções qualificadas

- para mim percepções brutas, esboços do objeto

Experiência Interior

- diante de mim

- diante de mim

Escuta Prática

objeto sonoro qualificado

objeto sonoro bruto

Seleção de certos aspectos articulares do som

Recepção do som

Qualificação do Objeto

Identificação do objeto

- para mim

3 e 4:

1 e 2:

ABSTRATO

CONCRETO

Escuta Cultural

Escuta Natural

Figura 1

Schaeffer aponta que “o músico muitas vezes ignora até que ponto a sua escuta prática opera um deslocamento e uma seleção dos significados, criando um domínio reservado de objetos ditos musicais. Os “não-valores”, ditos

ruídos, ficam rejeitados ao exterior desse domínio” (p. 110). Esta predisposição se vale também para as demais qualidades de ouvintes contribuindo para uma dificuldade de compreensão encontrada pela

simpósio de pesquisa em música 2006 música experimental, ou qualquer música estranha a uma determinada prática/cultura. Fenomenologia Novamente, reportamo-nos ao início do Tratado a fim de levantar noções introdutórias fornecidas pelo autor acerca dos objetos sonoros: “na realidade, nós não percebemos os objetos, mas sim as estruturas que os incorporam [...]. Dos objetos às estruturas, e das estruturas à linguagem, há, portanto, uma cadeia contínua – tanto menos discernível quanto mais nos é familiar, espontânea – à qual estamos inteiramente condicionados” (p. 40). A partir deste momento a atenção se volta para o objeto em si mesmo – após a fundamentação do processo da escuta – e deste modo deparamo-nos com as questões da percepção. Assim, “a noção de objeto sonoro, aparentemente tão simples, obriga bem depressa a apelar para a teoria do conhecimento, e para as relações do homem com o mundo” (p. 237), visto que, no campo da percepção todo julgamento transita no limiar entre o subjetivo e o objetivo – o conhecimento de um fenômeno se dá pela interação destes dois planos – sendo assim um profícuo campo para a Fenomenologia (ORLANDI, 1980). Schaeffer recorre, então, à Lógica formal e transcendental, onde Edmund Husserl afirma: “o objeto é o pólo de identidade imanente às vivências particulares e, todavia, transcendente na identidade que ultrapassa essas vivências particulares” (apud SCHAEFFER, 1993, p. 238): Essas vivências particulares são as múltiplas impressões visuais, auditivas, táteis, que se sucedem num fluxo incessante, através das quais eu tendo para certo objeto, eu o ‘viso’, e os diversos modos segundo os quais eu me relaciono com esse objeto: percepção, lembrança, desejo, imaginação etc (p. 238).

Porém, “o objeto transcende não apenas os diversos momentos da minha experiência individual, mas o conjunto dessa experiência individual: ele se coloca em um mundo que eu reconheço como existente para todos” (p. 239). Esta transcendência do objeto, então, permite uma imensa possibilidade de pontos de vista distintos (subjetivo) – e não o esgotam. “A consciência do ‘mundo objetivo’ passa pela consciência do outro como sujeito, a supõe como prévia” (p. 240). Ainda sustentando-se em Husserl, Pierre Schaeffer alude ao conceito de “époché”, quando pondera sobre a limitação dos sentidos e

237 da percepção com relação as sensações, visto que estas impressões subjetivas se dão através de aparatos nervosos, componentes de um sistema nervoso que por sua vez, não obstante, faz parte deste mundo, da matéria. À crença da ciência nos sentidos, Husserl denomina uma fé ingênua: a époché – ‘colocação entre parênteses’, ‘espanto’ – seria justamente a tentativa de não subjugar aos ditames dos sentidos e das sensações, a averiguação do objeto; tão pouco seria uma espécie de dúvida metódica cartesiana explicando que “pôr em dúvida a existência do mundo exterior, é ainda tomar posição com relação a ele, substituir por outra tese, a tese de sua existência. [Assim] a époché é a abstenção de toda tese” (p. 241-242). “Se deixo de identificar-me com a minha experiência perceptiva, que me apresenta um objeto transcendente, torno-me capaz de surpreender essa experiência, bem como o objeto que ela me fornece” (p. 242). Este problema se constata quando, por exemplo, diferentes ouvintes ouvem o mesmo som e cada um compreende aquilo que for imanente às suas experiências particulares, fazendo com que a percepção e definição do objeto sonoro em si mesmo não seja possível. Por exemplo, um músico e um técnico de estúdio ouvem a “nota” lá do diapasão que pode ser classificada como uma onda de 440 Hz. Neste caso, as duas classificações – “nota lá” e “440 Hz” – podem estar conjugadas; entretanto, podem estar completamente alijadas, pois que, para a música tradicional, este som já carrega consigo o arquétipo de “nota musical” podendo inclusive ser ouvido em oitavas diferentes e instrumentos diferentes. Já a onda 440 do diapasão, uma onda com timbre específico – sendo o timbre resultado de infra-alterações da freqüência – que não ocorre em outros instrumentos e/ou outra oitava. “Mas em que ele se distingue do sinal físico? [...] Ocorre que o sinal físico, na realidade, não é ‘sonoro’, se por tal entendermos o que é captado pelo ouvido. Ele é o objeto da física dos meios elásticos. A sua definição relaciona-se com as normas e com o sistema de referência desta, sendo tal ciência, como toda física, fundamentada na percepção de certas grandezas: no caso presente, deslocamentos, velocidades, pressões” (p. 245). Nos dois casos não há objeto sonoro, pois ambas concepções estão imbuídas de significados e o mesmo acontecimento então opera diferentes valores significantes (p. 243). Deste modo, quanto mais hábil me tornei para interpretar índices sonoros, tanto maior a minha dificuldade de entender objetos. Quanto mais fácil

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SIMPEMUS3 compreender uma linguagem, tanto mais difícil ouví-la [grifos nossos] [...] e antes que um novo treinamento me seja possível e que possa ser elaborado um outro sistema de referências, desta vez apropriado ao objeto sonoro, eu deveria libertar-me do condicionamento criado por meus hábitos anteriores, passar pela prova do époché. Não se trata de forma alguma de um retorno à natureza. Nada nos é mais ‘natural’ do que obedecer a um condicionamento. Tratase de um esforço ‘antinatural’ para perceber aquilo que antes determinava a consciência inadvertidamente (p. 246).

Conclusão Conforme frisado na introdução pode-se constatar a polivalência dos escritos de Pierre Schaeffer, que se apresentam de uma forma abrangente pelas searas da música, lingüística, semiótica, filosofia, sociologia, educação e antropologia. Buscou-se aqui a realização de uma série de apontamentos de passagens do Tratado dos Objetos Musicais de Pierre Schaeffer concernentes às questões da escuta onde, apesar de recortados do texto original – como procede, inclusive, a própria música concreta – tais excertos atendem a uma perspectiva animada por um espírito de alteridade1.

Esta premissa norteou nosso olhar por dentre as reflexões de Pierre Schaeffer para que enfim pudéssemos chegar, não a uma conclusão, a uma resposta, porém sim, a outro ponto deveras complicado. Um questionamento filosófico, no qual a conclusão dele extraída se faz determinante para as condutas e posturas em relação ao fazer musical e para as atitudes e intenções de escuta, atuando as primeiras sobre as últimas, e vice-versa, numa relação de reciprocidade. Contudo, tal questionamento somente se faz possível e legítimo, na medida em que se submeta a um exercício intencionado de afastamento da própria realidade, do xeque às noções mesmas, de uma audição da escuta para, ecoando em seguida, em tom de descoberta, ouvir-se: “O que é (pode ser) música?”. ________________ 3

Encontramos em "http://pt.wikipedia.org/wiki/alteridade citação de François Laplantine “A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos ‘evidente’. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não tem realmente nada de ‘natural’. Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única”.

Referências ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. ADORNO, Theodor. Filosofia da nova música. Trad. Magda França. São Paulo: Perspectiva, 1989. ORLANDI, Luís. Voz do intervalo: introdução ao estado do problema da linguagem na obra de Merleau-Ponty, São Paulo: Ática, 1980. SCHAFER, Murray. Afinação do mundo, São Paulo: Editora da UNESP, 1991. SCHAEFFER Pierre. Tratado dos objetos musicais. Brasília: Editora da UnB, 1993.

Comentários sobre o choro atual Adriano Maraucci Réa, Acácio Tadeu de Camargo Piedade (orientador) Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo O presente artigo pretende discutir aspectos do mundo do choro enfocando especialmente as novas tendências e suas tensões em relação ao choro mais tradicional e ao jazz brasileiro. Apresentaremos uma visão geral da história do choro e comentaremos alguns momentos cruciais da trajetória deste gênero, destacando aspectos da construção da identidade no mundo do choro.

Quando se pensa em choro, logo vêm à cabeça violões, cavaquinho, pandeiro e um solista na flauta, bandolim ou saxofone: ou seja, lembra-se logo da sonoridade do chamado “regional”, que tem uma presença muito forte na música brasileira desde o início do século XX. Essa formação remete imediatamente a melodias conhecidas por muitos brasileiros, sendo logo relacionadas a um Brasil antigo. Esta atmosfera nostálgica característica do choro relaciona-se a um conjunto de símbolos que se associaram ao gênero, mas também deve-se ao fato do choro ser, realmente, um gênero antigo. A historiografia da música brasileira1 mostra que o choro surgiu no final do século XIX, como uma das conseqüências artísticas de uma série de fatos importantes. Com a abertura dos portos no inicio do século XIX, o acesso à cultura européia - suas orquestras, partituras e danças de salão - passam a ser mais intensos. Das práticas musicais que se consolidaram ao longo do século XVIII e XIX vem o chamado “trio de pau e corda” (cavaquinho, violão e flauta, que na época era de madeira de ébano). Desta formação surge o choro, que inicialmente designava esta própria formação instrumental. Somente após este momento inicial é que a palavra choro passou a designar uma certa forma de tocar as músicas européias em voga: o choro passou a ser entendido como uma interpretação peculiar das melodias já consagradas nos salões de dança europeus, que passaram a ser executadas pelos conjuntos de choro, ao invés de orquestra de baile, e isto de forma mais sincopada e ao mesmo tempo mais leve e brincalhona. Um exemplo disto é a polca, que havia chegado da Europa em meados do século XIX e que virou uma verdadeira febre, tendo logo sofrido estas 1

As considerações históricas nesta parte inicial do artigo estão embasadas em CAZES (1999), TINHORÃO (1991), BESSA (2005) e REILY (2000).

transformações pelo choro. Neste período de passagem entre os séculos XIX e XX, formaram-se na cidade do Rio de Janeiro grupos como o “Choro Carioca” (considerado um dos primeiros), que se tornaram muito populares em festas caseiras, transformando-se em um marco inicial do gênero. Gostaríamos de ressaltar uma característica importante da musicalidade chorística que surge nesta época, relacionada a seu caráter virtuosístico. Segundo DINIZ (2003), geralmente o único músico que sabia ler partituras, nos regionais, era o flautista, que era o solista e o responsável pela qualidade e formação musical dos acompanhantes, pois os desafiava ritmicamente, tentando “quebrálos” com frases modificadas, a fim de testar e treinar o acompanhamento. Esta característica se manteve durante várias épocas e, pode-se dizer, é recorrente até hoje não mais como um desafio do flautista para os outros músicos, mas como um caráter “brincante” e ao mesmo tempo virtuosístico, que aliás está presente não só no choro, mas em outros gêneros da música brasileira. Dentre os nomes da história do choro, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth ocupam lugar importante: foram compositores pianistas contemporâneos deste momento inicial do choro, co-responsáveis pela sua fixação enquanto gênero através de músicas que se tornaram famosas na época e o são até os dias de hoje, tais como Atraente, Corta-Jaca, Apanhei-te Cavaquinho, Brejeiro e Odeon. Ambos compuseram peças escritas para o piano que tem importante papel na música brasileira. Nazareth era um pianista virtuoso e compunha peças consideradas tecnicamente difíceis de se tocar na época. Seu repertório representa, de certa forma, a autonomia do choro em relação à música erudita e, ao mesmo tempo, sua interligação. Sua música somente foi bem interpretada somente décadas depois, por músicos como Garoto, Jacob do Bandolim e Radamés Gnatalli que, por sua vez, representam uma geração do choro que já incorporara a importância

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SIMPEMUS3

do estudo disciplinado para os instrumentistas, conforme se nota com este depoimento: Meu caro Radamés, antes de Retratos, eu vivia reclamando: é preciso ensaiar... E a coisa ficava por aí, ensaios e mais ensaios. Hoje, minha cantilena é outra. Mais do que ensaiar, é necessário estudar. E estou estudando. Meus rapazes também (o pandeirista já não fala mais em paradas). Seu Jacob, o Senhor aí, quer uma fermata? 2

Este processo de ensaios e aperfeiçoamento pessoal tem a ver com o fato do choro ser uma música instrumental, inclusive que enfatiza a virtuosidade (no sentido amplo de boa sonoridade, belo fraseado, agilidade, etc). A instrumentalidade na música popular brasileira tem um percurso histórico antigo, que pode ser iniciado no século XVIII, com o lundu, que, de início, era música instrumental (KIEFER, 1986). No início do século XX tocava-se muita música instrumental no Brasil. Em 1902, foram gravados pela Banda do Corpo de Bombeiros na Casa Edison os choros que iniciaram a fase do registro fonográfico: entre 1902 e 1920, a proporção era de 61,5% de música instrumental para 38,5% de música cantada ... no ano de 1940, essa proporção se invertera (CAZES, 1999, p. 45)3.

O choro, portanto, como música instrumental, teve a seu favor esta positividade do instrumental na cultura musical brasileira da época4. Neste cenário favorável, por volta da década de 20, surge o músico Pixinguinha, que veio a desempenhar um papel de estruturador da linguagem harmônica, dos fraseados, contrapontos e, sobretudo, da forma no choro que até hoje o caracterizam e definem como gênero musical. Em suas primeiras gravações já se podia notar várias novidades em relação a um sopro mais rítmico, sem vibratos, usando força nos golpes de ar. Pixinguinha é uma figura chave também na dimensão do arranjo5, e a trajetória de seu grupo, “Os Oito Batutas”, revela muitos aspectos 2

Carta de Jacob do Bandolim a Radamés Gnatalli (apud TÁVOLA, 2006).

3

Note-se que grande parte destas gravações eram de bandas, não apenas porque eram apreciadas mas também devido ao alto volume de seu conjunto, que resultava em melhor qualidade fonográfica.

4

Ver BASTOS e PIEDADE (2005).

5

Ver BESSA (2005).

da construção da identidade nacional no século XX6. Não apenas o rádio, mas também a indústria fonográfica foi essencial no desenvolvimento do choro. Aliás, a música popular, em sua dimensão histórica, não pode ser compreendida isolada da história da fonografia: fonografia e música popular se desenvolvem de forma irmanada ao longo do século XX7. Desta forma, na sua trajetória rumo à constituição como gênero musical, o choro como formação instrumental se transformou em modo de tocar. Ou seja, indo da sonoridade instrumental à performance, o caminho do choro mostra como o som dos violões e cavaquinho, pandeiro e a flauta, foi se tornando importante na cultura brasileira. Porém, a interpretação das danças européias através desta sonoridade se dava através de um jeito carioca, “de fundo de quintal” (MOURA, 1983, p. 52), e este seu modo performático, que incluía elementos estruturais, como a polifonia da baixaria do violão de 7 cordas, isto e outras coisas, fez o choro ir além de um modo de tocar e para consolidar-se como um gênero que iria atravessar um século culturalmente muito conturbado, para chegar com força e identidade no século XXI. Vejamos como o choro vai seguindo este percurso. O fato é que, a partir dos anos 50, o choro passou por um período de retração que iria durar cerca de trinta anos, sendo neste período quase que esquecido pela mídia e pelas gerações mais jovens, que se interessaram muito mais na música dançante das gafieiras, na bossa-nova e nos gêneros associados ao rock'n'roll. Justamente nos revolucionários anos 60, a era da bossa nova, da tropicália, da jovem-guarda, do rock, dos experimentalismos, neste período o choro “desapareceu” das mídias. Nos anos 70, o Brasil jovem voltou-se para o rock e para o cenário internacional, criando certa aversão ao regionalismos e tradicionalismos. O choro, porém, atravessou este período na base da reprodução doméstica e parental, e despertou nos anos 80 com uma nova geração de grandes instrumentistas tais como Rafael Rabello, Armandinho, Paulo Moura, Joel Nascimento, Maurício Carrilho, Luís Otávio Braga, Henrique Cazes, Carlos Carrasqueira. Note-se que muitos destes eram parentes dos grandes nomes da geração anterior. De fato, no calor do quintal, ou melhor, da casa, da família, o choro sobreviveu à longa seca. Ecoa aqui a importância dos laços de parentesco no mundo do choro, um mundo que se mantêm ainda bastante 6

Ver BASTOS e COELHO .

7

Muitos pesquisadores da música popular brasileira trabalham estes fatores através desta perspectiva antropológica (BASTOS, 2005; MORELLI, 1991).

simpósio de pesquisa em música 2006 carioca, como modo de tocar e de viver, de rememorar, de ser levemente “de fundo de quintal”, mas hoje em outra dimensão e com uma família e uma fertilidade muito maior. A partir dos anos 80, a palavra “choro” passou a exibir uma pluralidade bem maior do que anteriormente. Em uma entrevista, Mauricio Carrilho afirmou: Hoje, todo disco do Hermeto Pascoal tem choro, mas ninguém fala que ele é um músico de choro. Uma análise estética da obra do Tom vai revelar que metade dela é composta de choros. Mas se alguém lhe pedir para citar dez choros do Tom Jobim, você vai titubear. Por que as pessoas só tratam como choro as músicas do Pixinguinha para trás? Por que ninguém fala que Edu Lobo, Caetano, Chico são compositores de choro? O choro é uma linguagem que sempre foi usada pelas pessoas, só que ninguém chama de choro. Com o jazz, qualquer coisa que guarde mínima semelhança é chamado de jazz (apud PELLEGRINI, 2005, p. 30).

Esta queixa revela muito do assunto que este artigo pretende adentrar agora: o choro novamente atravessando os séculos, nesta primeira década do século XXI, mantendo-se como choro, com seu conservadorismo e suas transformações e tensões em relação a outros repertórios da música brasileira. Certos compositores da chamada MPB são considerados especialmente tocados pela musicalidade chorística, como Guinga (CAZES, 1998: 194). O mesmo ocorre com artistas como Heraldo do Monte, César Camargo Mariano, Hélio Delmiro, Egberto Gismonti, que por vezes executam e compõem choros, e entretanto, são associados pelos músicos em geral muito mais à música instrumental, o jazz brasileiro. Os chorões de hoje, aqueles que realmente “vestem a camisa”, quem são? Como está o choro? Vejamos mais de perto alguns fatos. É notável na fala acima, e em outros discursos dos chorões, um certo antigo ressentimento com a bossa nova e com o jazz, como que se estes tivessem sido os responsáveis pela retração do choro entre o final dos anos 1950 até 1970, isto devido a uma suposta americanização geral do gosto do público. Pela visão de Maurício Carrilho, certas correntes da música popular poderiam ser interpretadas como derivações desse gênero. Para uma compreensão mais abrangente do choro que vem sendo tocado desde meados da

241 década de 70, é preciso revisitar o período de consolidação da identidade do choro, compreendido no período entre 1930 e 1950. É possível ver esse período como um espaço de tempo de profundas modificações no universo da música popular, e, não obstante, do samba e do choro, pois, por volta da década de 30, Noel Rosa (aliado a outros sambistas como Geraldo Pereira e Moreira da Silva) por fim estilizaram o samba que tinha a cara do Rio de Janeiro, descolando-se um pouco daquela sonoridade mais baiana (ou afro). Muitos chorões haviam tido contato com este samba mais afro, e agora participaram desta “mudança de paradigma” (SANDRONI, 2001), que introduziu no samba novas síncopas e extensões na formas, como a mudança de tonalidade entre uma parte e outra, que aliás também era, nessa época, um ponto forte em muitos choros que contavam apenas com duas partes ao invés de três. Muitos chorões (como o próprio Pixinguinha) conviveram com os sambistas nas rodas das tias baianas: é fundamental considerar a importância desse diálogo samba-choro, sobretudo na dimensão do ritmo, pois as articulações são muito semelhantes e, com certeza, houve enorme influência mútua. De fato, a história do choro não pode ser compreendida sem a história do samba, ambos sendo fabricações de um Brasil que se constituía na capital da República (ver VIANNA, 1995), em seus lugares chave, como a casa da Tia Ciata (MOURA, 1983). Entre os anos 20 e 30, Pixinguinha começa a formular o que se tornaria uma das principais características do choro: a sua forma em três partes. Neste tipo de rondó, geralmente há, em cada parte, uma exploração dos modos maior/menor da tônica, ou das tonalidades relativas, ou visitas a uma tonalidade mediante, não necessariamente nessa ordem. Na dimensão melódica, consolidaram-se padrões de repetições, de contracanto e maneirismos melódicos que viriam, posteriormente, a extrapolar o âmbito do choro. Para PIEDADE (2003), há um aspecto na musicalidade brasileira que é claramente chorístico, que migra, na forma de figuras de retórica musical, para outros gêneros e discursos musicais. No período em questão, o rádio iniciava sua epopéia no Brasil: a chamada “era do rádio” foi importante na história do choro (ver PETERS, 2004). Com isso a difusão por rádio e fonográfica, músicos chorões e ouvintes começaram a entender o choro como um gênero musical, exibindo unidade e especificidade em relação a outros repertórios próximos. Este período, os anos 30, foi talvez o seu auge criativo do período de formação do choro,

242 consolidando elementos a partir dos quais se apoiará toda uma tradição estética nos anos seguintes. Passados mais ou menos 30 anos dessa prática estandardizada, no final dos anos 50 o choro iniciou seu período de “adormecimento”. Relacionam-se a este fenômeno fatos como a globalização cultural e a crise do modernismo (PIEDADE, 2003, 2005), a chegada poderosa da televisão e o aumento na velocidade de transferência da informação, e as fortes ondas do estrangeiro, como os movimentos hippie, o rock’n’roll, enfim, há vários fatores que causaram esta retração não apenas no choro, mas que sufocaram também o samba e o bolero8. A Bossa Nova conquistava, nestes anos turbulentos, seu espaço internacional através de um hibridismo rítmico-harmônico, que tem um pé na história do samba e do choro. Relutante aos modismos e às “modernidades”, os chorões, que, na sua maioria, eram senhores de meia idade, iniciam um processo de resistência através de um verdadeiro culto da tradição, marcada por uma existência familiar e isolada. A partir destes guetos familiares, os chorões trabalharam para divulgar sua música e conseguir mais adeptos, como uma família que busca aumentar sua rede de laços sociais. Mesmo esta postura de conservação e reprodução, característica deste período, impregnou o mundo do choro e está presente na constituição de sua imagem hoje, fazendo parte de uma espécie de portfólio que os músicos devem compartilhar para se enquadrarem na categoria de chorão, embora hoje o cenário esteja bem mais aberto que naqueles duros anos. Os músicos da geração que surgiu a partir dos anos 80 tiveram mais acesso a uma formação musical mais ampla, através do contato e estudo de outras músicas. Por exemplo, o grande violonista Raphael Rabello, talvez o maior virtuose desta geração, estudou e gravou música erudita, teve intensos contatos com o violonista Paco de Lucia e a música flamenca. Nos anos 80 e 90, os músicos de choro não tinham tanta resistência ao externo, aceitavam mais algumas mudanças e aglutinavam às suas interpretações novas particularidades. Paulo Moura é outro 8

Pode-se dizer que o samba “não morreu”, ao contrário, também renasceu por volta dos anos 80, com o pagode. Este gênero, também associado ao tropo “fundo de quintal”, veio a fortalecer-se enormemente no início do século XXI, dominando a mídia e atraindo o público jovem. Já o bolero, que foi tão apreciado e que desempenhou um importante papel no samba-canção e na música brasileira em geral (ver ARAÚJO, 1999) parece que ainda não “acordou” do choque dos anos 60.

SIMPEMUS3 exemplo: um exímio clarinetista que estudou no mundo das bandas e depois foi aprender choro e jazz, acabando por desenvolver uma sonoridade muito pessoal e um estilo reconhecido. Mais atualmente, Hamilton de Hollanda é um nome de destaque: bandolinista virtuose, usa elementos de improvisação jazzística e tem um repertório abrangente, mantendo-se fiel a uma identidade de chorão, talvez devido à formação do grupo que o acompanha e ao uso do bandolim, instrumento tão típico solista de choro pelo menos após Jacob do Bandolim. Depois dos instrumentistas fenomenais da “época de ouro”, esses jovens músicos da nova geração queriam tocar choro, mas ao seu modo. Muitos deles também tocaram e gravaram bossa nova instrumental e ouviram gravações dos jazzistas norte-americanos, deixando-se influenciar e trazendo novidades formais para o choro, como o formato chorus de improvisação, aproximando-se do universo da música instrumental (ver BASTOS PIEDADE, 2005). Surgem a partir de meados dos anos 80 grupos que começam a arranjar temas clássicos do choro, isto através de substituições harmônicas e novos caminhos contrapontísticos, menos lineares e tonais (ZAGURY, 2005), além de utilizarem, na instrumentação, baixo elétrico, guitarra e bateria, como o grupo “Nó em pingo d’água”, (iniciado em 1978). Durante os anos 90, o Brasil fez parte da onda mundial de valorização das identidades tradições locais, após a desterritorialização e a fragmentação identitária causada pela globalização (ver APPADURAI, 1994; HARVEY, 1993; ORTIZ, 1988). Jovens músicos buscaram as fontes da musicalidade brasileira nos repertórios que estavam abandonados pela mídia e pelos estudos musicais: gêneros nordestinos como frevo, baião e maracatú, gêneros afro-bahianos como afoxé e samba-de-roda, entre muitos outros. Surgiram várias fusões, como o Mangue Beat, e grupos que procuram executar os repertórios “autênticos” da música brasileira, como o choro. Curiosamente, o conservadorismo chorístico encontrou, neste olhar “recuperador”, uma força para o restabelecimento de seu tempo mítico, anterior às experimentações e aberturas dos anos 80: o velho choro consolidado na época de Pixinguinha voltou com tudo, e a sonoridade do “regional” volta a agitar a cultura brasileira, e cresce o interesse dos jovens por este rico mundo conservado, “autenticamente” brasileiro. Os grupos de choro mais recentes, como o “Trio Madeira Brasil”, parecem preservar apenas a instrumentação como legado do “choro-raiz”, pois tocam músicas de muitos compositores não considerados chorões. Já o grupo carioca “Tira a

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simpósio de pesquisa em música 2006 Poeira”, realiza a provocação de seu nome executando choros clássicos com a sonoridade clássica, porém como inovações musicais no âmbito das improvisações e na inserção de seções novas. Muitos violonistas atuais tocam choro com viola caipira, pandeiristas acompanham cantores de MPB e tocam em trios de jazz; hoje se toca jazz com instrumentos do choro, música erudita na viola, etc. Alguns instrumentistas atuais, como Hamilton de Holanda, Rogério Caetano e Gabriel Grossi, tiveram sua iniciação musical no choro, mas depois expandiram seus repertórios: é possível vê-los acompanhando velhos mestres do choro, mas também tocando com ícones da musica instrumental brasileira, como Hermeto Paschoal e Guinga (CAMPOS, 2005). Esta circulação é característica da época atual, embora haja muitas tensões entre estes dois gêneros: o choro e a música instrumental. Esta tensão tem a ver

com o fortalecimento identitário, que retomou uma certa tradição conservadora do choro, e com estas fronteiras nubladas que dividem os gêneros. Uma forma de detectar estas tensões é a realização de etnografia e análise do discurso nativo. O choro atual saiu de seus obscuros anos 60 e 70 com uma nova força: o interesse jovem. Da resistência e da estratégia de sobrevivência baseada em núcleos familiares à conquista de um público fiel, à idealização do choro como patrimônio musical do Brasil, ao surgimento de gravadoras exclusivas (como a carioca “Biscoito Fino”), bem como de uma fatia do mercado editorial (os songbooks e métodos). Atravessador de séculos, o choro passou da condição de trio de pau e corda para um modo de tocar, saiu do quintal, consolidou-se na musicalidade brasileira, resistiu às forças inimigas no seio da família e, hoje, está sendo estudado, tocado e apreciado por um público crescente.

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Acompanhamento instrumental do Canto Gregoriano: três níveis de desconfiguração Tadeu Paccola Moreno Universidade Federal do Paraná

Resumo O Canto Gregoriano conceitua-se, via de regra, como prática puramente vocal. No entanto não são raros os exemplos em que se alia à melodia um acompanhamento instrumental, tradicionalmente organístico. O presente artigo tem como objetivo lançar um breve olhar sobre tal acompanhamento, enfatizando a desconfiguração de três das principais características sonoras canto em questão causada por tal prática. O Canto Gregoriano pode ser brevemente conceituado como prática monódica, modal e ritmicamente ligado ao texto. Incluir a essa realidade um acompanhamento instrumental desfaz a monodia em hetero ou polifonia, desconfigura o modalismo com a inclusão, nos exemplos abordados, de tríades e traz um problema ao ritmo que depende da palavra. Sendo o Canto Gregoriano uma prática musical de função definida, tais desconfigurações poderiam ser obstáculos em sua inclusão no rito do qual faz parte. Assim faz-se necessário um estudo sobre a posição da Igreja quanto à inclusão de instrumentos em seu culto, o que pode ser realizado por meio de documentos eclesiásticos. Enfim será abordado um exemplo ilustrativo dos níveis propostos de desconfiguração presentes no acompanhamento instrumental do Canto Gregoriano por meio de uma partitura para órgão do século XVIII.

Introdução O presente artigo tem como objetivo lançar um breve olhar sobre o acompanhamento instrumental do Canto Gregoriano, numa tentativa de abordar três aspectos sonoros do canto que são desconfigurados com a adição do acompanhamento: a textura, o modalismo e o ritmo. Não se pretende especular sobre a autenticidade das práticas em questão e sim traçar caminhos pelos quais se possa investigar a mudança que um acompanhamento traz à execução do Canto Gregoriano. Há um fator neste caso que não pode ser ignorado: o local e a função da prática em questão. O Canto Gregoriano não pode ser dissociado do rito ao qual surgiu para servir. Portanto outra idéia norteadora das investigações a seguir é a função que a prática musical abordada tem e como a adição de elementos externos a ela - o acompanhamento instrumental - a afeta. Canto Gregoriano - estruturação musical. Uma primeira diferenciação necessária se dá entre os conceitos "Canto Gregoriano" e "cantochão", visto que tal distinção é ainda ignorada, por exemplo, por CARVALHO que afirma que "cantochão, hoje, é sinônimo de Canto Gregoriano". Cantochão, numa breve definição, pode ser descrito como "o canto oficial

monofônico em uníssono da liturgia cristã",1 conceito esse que não seria mal empregado se relacionado ao Canto Gregoriano. A diferença, portanto, não é principalmente de ordem estrutural. Houve por volta do século VIII uma organização e recorte do repertório existente de cantochão para o uso da Igreja Cristã. Tal organização é atribuída ao papa Gregório Magno, porém, "apesar da antiguidade da lenda que liga Gregório Magno com este repertório [Canto Gregoriano], não parece ser possível ainda demonstrar conclusivamente qual foi seu papel em relação a ele".2 O Canto Gregoriano é tomado pelo autor como um repertório específico da prática musical do cantochão, porém pode-se confrontar tal abordagem com a idéia de CARDINE, de que o termo cantochão ou cantus planus seria próprio uma prática privada de expressividade, o que seria um termo descabido para designar o Canto Gregoriano. A estruturação das alturas na monofonia do Canto Gregoriano, entoada em uníssono, dá-se por meio de modos melódicos que se classificam por "suas notas finais de cadência, a tessitura, ou ambitus, de suas melodias e uma altura interna conhecida como nota de recitação ou tenor, em 1

New Grove dictionary of music and musicians (Londres: Macmillan, 1980), verbete ‘Plainchant’; tradução minha.

2

Ibid., verbete ‘Gregorian Chant’.

246 volta da qual a melodia parece circular".3 Sua qualidade modal também determina que "não se admite a nota sensível" (MARIE-ROSE). É comum que se atribua os nomes dos modos gregos, como dórico ou mixolídio, aos modos utilizados no Canto Gregoriano. Porém tal atribuição ignora as qualidades específicas - a nota de recitação, por exemplo - dos modos em questão e, portanto, não é completamente fiel. No que diz respeito à duração das notas no Canto Gregoriano, considera-se que "o ritmo gregoriano difere do ritmo da música moderna" (MARIE-ROSE). Tratar do ritmo no canto gregoriano é uma tarefa árdua, uma vez que, segundo CARDINE, "mais que sobre o ritmo, os teóricos modernos discutiram sobre a modalidade do Canto Gregoriano". Comenta o autor que "devese procurar a base do ritmo gregoriano na estreita ligação que une as melodias ao texto latino". Esta abordagem é argumentada pelo fato de que em notações antigas mesmas inflexões melódicas têm grafias diferenciadas dependendo da palavra em que são empregadas, o que faz do ritmo de tais inflexões dependente do texto. MARIE-ROSE comenta que, equivocadamente, houve tentativas de se colocar um metro no ritmo gregoriano, ou seja, notá-lo num sistema proporcional, próprio da música moderna. Abordar influências da música moderna no cantochão como equívocos ilustra o fato de que "os admiradores do dialeto gregoriano do cantochão encontram nele uma perfeição clássica e pureza de estilo".4 o que mostra que qualquer das características acima mencionadas que se modifique poderia desconfigurar em algum grau a "pureza de estilo" da prática do Canto Gregoriano. Tal desconfiguração torna necessário um resgate de documentos eclesiásticos que tratam do assunto, uma vez que a concepção original desta prática designa que ela seja desacompanhada. O tratamento da Igreja sobre os instrumentos musicais - documentos eclesiásticos. Sabe-se que a presença dos instrumentos musicais na Igreja Cristã foi primariamente banida visto que “certos aspectos da vida musical antiga [anterior à igreja cristã] foram liminarmente rejeitados [...] por que sentiram a 3

4

Ibid., verbete ‘Plainchant’. O conceito de tenor, ou corda de recitação, é mais aprofundado por CARDINE, que a define como "grau da escala modal sobre o qual se situa a salmodia quando, durante a missa ou ofício, uma antífona é acompanhada de versículos salmódicos." Ibid., verbete ‘Gregorian chant’.

SIMPEMUS3 necessidade de desviarem o número crescente de convertidos de tudo que os ligava ao seu passado pagão” (GROUT). A permissão dos instrumentos musicais é atribuída ao papa Vitalino (657-672), mas "por uma razão ou outra, as referências de órgãos presentes ou usados em igrejas antes do séc. IX definitivamente não são confiáveis".5 Pode-se observar a admissão gradativa dos instrumentos no rito católico à medida que o passado pagão tornase mais distante. Ao observar-se os documentos eclesiásticos do séc. XX pode-se notar tal mudança comparando a simples permissão dos instrumentos em 1903 à sua recomendação e elogio no Concílio Vaticano II, sessenta anos depois.6 Quando se trata de Canto Gregoriano é comum tomá-lo como prática puramente vocal, visto que a organização deste repertório, atribuída ao Papa Gregório Magno, deu-se numa época em que não se admitiam instrumentos na Igreja. No decorrer de doze séculos, porém, a Igreja Católica mudou e também mudaram as práticas musicais, como se vê na carta encíclica sobre música sacra publicada pelo Papa Pio XII: "O próprio canto coral, que, pelo nome do seu restaurador, São Gregório, começou a chamar-se “Gregoriano”, a começar dos séculos VIII e IX, em quase todas as regiões da Europa cristã, adquiriu novo esplendor, com o acompanhamento do instrumento musical chamado 'órgão'". Apesar do "novo esplendor" trazido pelo órgão, trata-se de um elemento externo à liturgia e, portanto, sempre foi abordado com certo cuidado pelos documentos oficiais. "Como o canto deve ter sempre o foco principal, o órgão e outros instrumentos devem meramente sustentá-lo e nunca oprimi-lo" (PAPA PIO X). Tal tipo de recomendação encontra-se presente nos documentos eclesiásticos desde o séc. XVIII, na encíclica Annus Qui, do papa Bento XIV que autoriza os instrumentos "contanto que estes venham a ser usados exclusivamente para sustentar o canto da palavra" (PAPA BENTO XIV). A encíclica Instrutio de Musica Sacra et Liturgia, de 1958, também traz limitações ao uso dos instrumentos, determinando que se leve em consideração o momento da missa, o dia singular e o tempo litúrgico. Tal constante retorno à instrução de que 5

Ibid., verbete ‘Organ’.

6

"Embora a música própria à Igreja seja puramente vocal, música com o acompanhamento do órgão é também permitida". - PAPA PIO X

"Tenha-se em grande apreço na Igreja latina o órgão de tubos, instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de dar às cerimônias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus. " PAPA PAULO VI.

247

simpósio de pesquisa em música 2006 a prática instrumental não ultrapasse sua função pode ser um forte indício de que os instrumentistas tiveram alguma tendência a exageros dentro do rito litúrgico. Acompanhamento instrumental do Canto Gregoriano Mesmo como parte oficial das possibilidades de música sacra católica, a execução de acompanhamento instrumental ao Canto Gregoriano ainda hoje não encontrou um padrão definido. Uma possibilidade de tal instabilidade dá-se no fato de que aplicar um acompanhamento polifônico ou heterofônico a uma prática concebida como monódica traz a necessidade de uma escolha entre características de uma ou de outra criando, ao final das contas, um híbrido entre as duas práticas.7 O modalismo da prática gregoriana, como visto, não prevê acontecimentos sonoros distintos da monodia vocal. Portanto qualquer acompanhamento instrumental já é estranho à natureza sonora em que o repertório foi concebido. Assim não há como encontrar na estruturação gregoriana subsídios para decisões acerca de quais intervalos harmônicos executar no acompanhamento. Foi com base nas melodias do cantochão que a heterofonia, sob a forma de organum, começou a existir (KIEFER, 1968). Assim pode-se atestar que uma possibilidade coerente de acompanhar o cantochão seria recorrer à prática que derivou diretamente dele, sobrepondo sob e sobre as notas da melodia intervalos de quarta, quinta e oitava. Porém vê-se que é comum, como por exemplo no Mosteiro de São Bento de São Paulo e na Igreja da Ordem em Curitiba, o uso de um acompanhamento triádico, baseado em acordes maiores e menores formados com base no modo do canto executado. Para ilustrar esta prática de acompanhamento triádico pode-se recorrer a um exemplo: o Acompanhamento de Hinos, Seqüências e Cantochão - organizado no séc. XVIII para se executar em Portugal, nas missas e ofícios da Basílica de Nossa Senhora e Santo Antonio (Ex. 1).

caráter musical, não textual. A notação da clave e das notas é própria da escrita neumática, porém a linha melódica se distribui num pentagrama, não num tetragrama. O uso da sensível (dó sustenido) e a freqüência do si bemol indicam uma influência do tonalismo na escolha dos acordes - incluindo, por exemplo, a dominante com sétima no baixo. Assim, neste exemplo, temos elementos próprios do cantochão - a melodia e a notação - e elementos que podem ser relacionados às melodias acompanhadas da época - acordes próprios do tonalismo, pentagrama e barras de compasso.

Exemplo 1

A escritura de uma linha grave sobre a qual se erguem acordes em notação numérica pode ser comparada a um baixo cifrado de uma melodia acompanhada. A diferença é que melodia acompanhada é um procedimento musical baseado numa estrutura de duração proporcional das notas. A determinação de durações de dobro, metade ou terça parte de um pulso fixo foi uma ferramenta importante para que se pudessem unir concomitantemente na cultura ocidental acontecimentos musicais distintos.8 Talvez tenha sido por tal razão que o autor preferiu utilizar-se da notação neumática, que não tem nenhum vínculo com tal proporcionalidade de duração. Há edições em uso hoje de cantochão transcrito para a notação moderna, com colcheias e semínimas, como no exemplo a seguir:

Numa breve descrição do que se dá no exemplo abaixo, temos a melodia a ser acompanhada transcrita para clave de fá. Para cada nota há um ou dois acordes escritos em cifras numéricas. As barras de compasso separam frases de

Exemplo 2

8 7

BORBA conceitua hibridismo como “associação de elementos de procedências distintas”.

Pode-se aqui traçar um paralelo entre o exemplo abordado e os recitativos operísticos, por exemplo, mas não é o objetivo deste breve artigo aprofundar-se em tal questão.

248

SIMPEMUS3

Os signos utilizados no exemplo são próprios da notação proporcional e são dificilmente dissociáveis da idéia de dobro e metade, o que pode levar o executante a cantá-las, mesmo se tratanto de cantochão, tendendo a seguir um pulso fixo. Pode-se encontrar na mesma edição do exemplo 1 a seguinte instrução: "Recomenda-se muito aos organistas que em todo o cantochão que acompanharem levantem sempre as mãos do órgão nas vírgulas ou pausas que encontrarem pelo meio das missas, hinos ou qualquer outra cantoria para irem juntos e conformes com o coro" (SANTO ANTONIO, 1761). O que é outro indício que a notação neumática tenha sido escolhida para que os organistas sigam o mesmo ritmo dos cantores nas músicas, e não o contrário. Sobrepondo os acordes descritos à linha melódica do "baixo cifrado" (a própria melodia) tem-se uma possibilidade da música proposta:

Nota-se que no terceiro acorde temos o que seria a subdominante da tonalidade de ré menor e, a partir dela, traça-se uma cadência da forma como ocorre na música tonal. Há também um retardo utilizado no penúltimo acorde. Tais elementos mostram uma forte influência da música tonal que se praticava na época, mesmo assim não se pode falar de música tonal baseada numa melodia de cantochão, uma vez que se mantém o ritmo ligado à palavra. Assim vê-se como a textura monofônica, o modalismo e o ritmo dependente do texto são modificados pela adição de um acompanhamento instrumental ao Canto Gregoriano. Tais desconfigurações podem se estender além do exemplo abordado a toda proposta similar. Assim abre-se um caminho possível de estudo das práticas de inclusão de instrumentos no Canto Gregoriano, investigação que se pretende fazer futuramente. Outro aspecto que se deve ponderar é o destaque do canto sobre os instrumentos, uma vez que, como trabalhado no início do artigo, os instrumentos dentro da igreja são permitidos sob a condição de não oprimirem o texto a ser cantado.

Exemplo 3

Referências CARDINE, D. Eugéne. Primeiro ano de canto gregoriano e semiologia gregoriana. São Paulo: Attar Editorial, 1989. CARVALHO, Luiz Edgar. Manual de canto gregoriano. São Paulo: Paulus, 1994. GROUT, Donald J. e PALISCA, Claude V. História da música ocidental. Lisboa: Gradiva, 1997. KIEFER, Bruno. História e significado das formas musicais. Porto Alegre: Movimento, 1968. MARIE-ROSE. Canto gregoriano - método de Solesmes. Rio de Janeiro: Instituto Papa Pio X, 1963. PAPA PIO X. Tra le Sollecitudini- Instrução de música sacra. Roma, 1903. Disponível em: . Acesso em dezembro de 2004. PAPA PAULO VI. Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a sagrada liturgia - Roma 1963. Disponível em Acesso em setembro de 2006 PAPA PIO XII. Carta encíclica Musicae sacrae disciplina sobre a música sacra. Roma, 1955 Disponível em: < www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_25121955_musicae-sacrae_po.html>. Acesso em setembro de 2006. PAPA PIO XII. Annus qui hunc, Capítulo 12. X. Roma, 1749. Disponível em: www.intratext.com/X/ITA0227.HTM Acesso em setembro de 2006. SADIE, Stanley (org.). The New Grove dictionary of music and musicians. Londres: Macmillan, 1980. SANTO ANTONIO, José de - Acompanhamento de missas, sequencias, hymnos e mais cantochão : que he uso e costume acompanharem os orgãos da Real Basilica de Nossa Senhora e Santo António junto à Villa de Mafra. - Lisboa: No Mosteiro de S. Vicente de Fora, 1761.

Código Morse em música Samantha Batista Universidade Federal do Paraná Resumo Há anos a música vem sendo relacionada a códigos e padrões rítmicos, utilizados em alguns casos para criptografar mensagens em composições. O Código Morse é muito popular entre radioamadores pela facilidade de transmissão de mensagens a longa distância com equipamentos simples e com baixo sinal tanto de transmissão quanto de recepção. É representado através de marcas (ou tons) curtas e longas, tendo nas marcas curtas (também chamadas de “ponto”) a base rítmica da transmissão de uma mensagem. Associando o código Morse à música podemos tanto analisar quanto compor peças apenas transformando o alfabeto Morse em padrões rítmicos. Muitos compositores já se utilizaram deste recurso para ocultar mensagens em músicas (tanto no meio erudito quanto no popular), em músicas para jogos, filmes e programas de tv. Palavras-chave: Código Morse, padrão rítmico, mensagem oculta.

Código Morse Criado por Samuel Morse em 1835, o código Morse é um sistema que se utiliza de durações temporais para representar letras, números e pontuações. Foi desenvolvido para transmitir mensagens a longa distância através do telégrafo elétrico. A idéia inicial era que o código transmitisse apenas números e as mensagens fossem traduzidas com a ajuda de um dicionário; mais tarde sofreu uma expansão para que representasse também letras e pontuações. O aparelho receptor da mensagem criava marcações em uma fita de papel que depois eram traduzidas em mensagens. Ao mover-se dentro e fora da posição de marcação da fita, o aparelho receptor da mensagem fazia o som de um “click” que foi aprendido pelos operadores como “início” e “fim” das marcas, tornando o uso da fita de papel desnecessário. O código morse foi muito utilizado também no rádio e por radioamadores, já que necessitava de equipamentos simples, largura de banda menor (entre 100 e 150 Hz) que comunicações vocais (4000 Hz) e por poder ser utilizado em lugares com bastante ruído e com baixo sinal de recepção. Em 1848, Friedrich Clemes Gerke criou o código morse internacional moderno. Desde então o código não havia sofrido alterações, até o dia vinte e quatro de maio de dois mil e quatro (24/05/2004) – sessenta anos depois da primeira transmissão telegráfica – quando foi adicionado o caractere “@” (arroba) como um “AC” juntos – primeira adição ao código desde a I Guerra Mundial.

A

.-

T

-

Ponto [.]

.-.-.-

B

-...

U

..-

Vírgula [,]

--..----...

C

-.-.

V

...-

Dois pontos ou sinal de divisão [:]

D

-..

W

.--

Ponto de interrogação ou sinal de repetição [?]

..--..

E

.

X

-..-

Apóstrofo [']

.----. -....-

F

..-.

Y

-.--

Traço de união ou sinal de subtração [-]

G

--.

Z

--..

Barra de fração ou sinal de divisão [/]

-..-.

H

....

É

..-..

Parêntese à esquerda [(]

-.--.

I

..

Parêntese à direita [)]

-.--.-

J

.---

1

.----

Aspas (antes e após as palavras) [“ ”]

.-..-.

K

-.-

2

..---

Sinal de igual [=]

-...-

L

.-..

3

...--

Compreendido

...-.

M

--

4

....-

Erro

N

-.

5

.....

Cruz ou sinal de adição [+]

O

---

6

-....

transmita

........ .-.-. -.-

P

.--.

7

--...

espera

.-...

Q

--.-

8

---..

Final de transmissão

...-.-

R

.-.

9

----.

Sinal de início de transmissão

-.-.-

S

...

0

-----

Sinal de multiplicação

-..-

Tabela 1

Código Morse e Ritmo O código morse é representado por marcas – ou tons, se for transmitido pelo rádio – curtas

250

SIMPEMUS3

(pontos) e marcas longas (traços), que podem ser vocalizados como DIT (ou DI, para manter o ritmo no meio das palavras) e DAH respectivamente. A duração de um DIT é que determina o ritmo da mensagem. Um DAH tem convencionalmente três vezes a duração de um DIT; o espaço entre pontos e traços de uma mesma letra é de um DIT, os espaços entre as letras de uma palavra têm duração de um DAH e os espaços entre palavras têm duração de sete DITs. Pingala, um matemático e músico que viveu na Índia entre 400 a.C. e 200 a.C., fez um estudo em prosódia de palavras muito parecido com o que é o código morse, intitulado Chandahsutra, em que ele dividiu as sílabas em curtas e longas e cada sílaba longa tinha o comprimento de duas sílabas curtas (HALL, 2005). Este estudo ajudou a determinar o ritmo da leitura em sânscrito, além de ser o primeiro indício de um código binário como utilizamos hoje.

Exemplo 1

No exemplo acima o ponto vale uma semicolcheia e o traço é qualquer nota de valor maior que uma semicolcheia. Se analisarmos novamente os mesmos motivos podemos ter variações. Como no exemplo seguinte utilizando a mesma peça.

Código Morse como Motivo As combinações de pontos e traços que representam as letras, números e pontuações podem ser utilizadas como motivo para composição ou análise de músicas. De acordo com Smirnov (2005), podemos criar motivos com o alfabeto morse da seguinte maneira:

Exemplo 2

A análise poderá diferenciar de acordo com a duração determinada para pontos e traços. Código Morse como mensagem oculta em música Muitos compositores gostam de ocultar mensagens em suas músicas e o código morse também pode ser utilizado para este fim. Em Music and Morse Code, Dmitri Smirnov apresenta um exemplo disso na música erudita:

Tabela 2

Na tabela acima o ponto tem a duração de uma colcheia e o traço de uma mínima. A seguir temos a análise do Minueto em Sol Maior de Beethoven tendo como base motivos criados com o alfabeto Morse:

Numerous examples exist of composers purposely using Morse code in their compositions; the following is a fragment from the solo cello part of Messagesquisse by Pierre Boulez, which he dedicated to Paul Sacher: the name “Sacher” is encoded by various means including by way of Morse code (Pierre Boulez. Messagesquisse for 7 celli, 1976, b.13):

251

simpósio de pesquisa em música 2006 Simultaneously, the five rests of the celli (2-6) repeat the same rhythmic patterns (with col legni batutti), but in rotation mode, spelling “Sacher” in various presentations: 2. ERSACH…. 3. HERSAC…. 4. CHERSA…. 5. ACHERS…. 6. SACHER…. In the episode before the cadenza, Boulez returns to the same idea, however, this example suggests a different approach (Pierre Boulez. Messagesquisse for 7 celli, 1976, bb.117-118):

a mensagem "THE RUSSIANS ARE COMING" em código Morse nos créditos iniciais do jogo. No programa de TV “Inspector Morse” de 1987, Barrington Pheloung – compositor do tema e da música da série – utilizou um motivo musical baseado na palavra “MORSE” em código Morse no tema de abertura. E em um documentário sobre a série ele diz que ocasionalmente soletrava na música do episódio o nome do assassino; e quando o público descobriu isso ele passou a soletrar o nome de algum outro personagem da série para “enganar” o telespectador mais atento. John Williams também utilizou código Morse na música do filme “E.T.” quando o extra-terrestre estava telefonando para casa. Outro exemplo é do compositor Vladmir Ussachevsky3 que utiliza código Morse em sua gravação “Wireless Fantasy”4 A 5ª Sinfonia de Beethoven contém como principal motivo rítmico a letra “V” do alfabeto morse.

Muitos outros exemplos podem ser encontrados nas referências bibliográficas deste artigo.

Though the six accompanying celli (playing semitone trills) encrypt the name of the dedicatee in the shuffled order: “Sreach”, the rhythm of the accents in m. 118 present it in its recognisable form: “Sacher”.

Podemos encontrar exemplos também na música popular. Em 1981, no álbum “Moving Pictures”, a banda Rush lançou a música “YYZ”, que tem o ritmo baseado no alfabeto morse das letras yyz ( -.--/ -.--/ --..). No álbum “Hounds of Love” de Kate Bush, a música “Watching You Without Me” contém “S.O.S.” (.../---/...) em morse. A banda Pearls Before Swine, em seu álbum “One Nation Underground” na música intitulada “Miss Morse” (gravada em 1967), ocultou ritmicamente em seu refrão o seguinte código: “DIT DIT DAH DIT, DIT DIT DAH, DAH DIT DAH DIT, DAH DIT DAH”1

Podemos perceber que, apesar de não ser tão utilizado quanto era antigamente, o código Morse ainda tem sua utilidade, não apenas na transmissão de mensagens via rádio, mas também no mundo da música.

comando um submarino nuclear e como este submarino afetaria a III Guerra Mundial. 3

Compositor russo (1911 - 1990) que emigrou para os Estados Unidos em 1931, onde estudou música na Eastman School of Music. Em 1951 começou a trabalhar com música eletrônica. Foi professor da Columbia University até sua aposentadoria em 1980. Em 1959, junto com Otto Luening, fundou o Columbia-Princeton Eletronic Music Center em Nova York. Também ensinou na Universidade de Utah e de 1968 à 1970 foi presidente da American Composers Alliance.

4

Música lançada em 1960 no CD “OHMS: the early gurus of eletronic music: 1948 - 1980”.

Em um jogo da Microprose chamado “Red Storm Rising”2, o compositor Ken Lagace ocultou

1

Soletrando em código morse a palavra ‘fuck’.

2

Jogo de computador baseado no livro “Red Storm Rising” de Tom Clancy e Larry Bond, onde o jogador tem sob seu

252

SIMPEMUS3

Referências Bibliográficas HALL, Rachel. “Math for Poets and Drummers: The Mathematics of Meter”. Disponível em: Acesso em 9 de setembro de 2006. _____ “Morse Code in Music”. Disponível em: Acesso em 29 de agosto de 2006. _____ “Musik und Morsen”. Disponível em: Acesso em 19 de setembro de 2006. SMIRNOV, Dmitri N. “Music and Morse code”. Disponível em: Acesso em 29 de agosto de 2006. TULGA, Phil. “Morse Code Music”. Disponível em: Acesso em 4 de junho de 2006. _____ “Where do you hear morse code?” eHam.net, ham radio on the net. Disponível em: Acesso em 29 de agosto de 2006. WIKIPEDIA. “Código Morse”. Disponível em: Acesso em 4 de junho de 2006. WIKIPEDIA. “Pingala”. Disponível em: Acesso em: 09 de setembro de 2006. WIKIPEDIA. “Vladmir Ussachevsky”. Disponível em: Acesso em 9 de setembro de 2006.

As obras de Alberto Nepomuceno compostas entre 1890 e 1894 Igor Simões Correia, Norton Dudeque (orientador) Universidade Federal do Paraná Resumo Esta pesquisa apresenta a análise de algumas das obras de Alberto Nepomuceno (1864–1920) compostas entre 1890 e 1894, período em que esteve estudando na Alemanha, mais especificamente em Berlin e Viena. Durante este período, Nepomuceno esteve primeiramente na Hochschule fur Musik, onde ingressou em 1890 e estudou com Heinrich Herzogenberg (1843–1900), e entre 1892-94 no Sternsches Konservatorium der Musik. Alberto Nepomuceno é reconhecido como tendo sofrido grande influência da música de Richard Wagner (1813–1883) e da escola germânica, no entanto outras influências podem ser notadas na sua obra além da esfera wagneriana. Uma destas refere-se ao que Nepomuceno observou e aprendeu em seus estudos em Berlim e Viena. Mais precisamente, Nepomuceno pode ter sido também influenciado pela música de Johannes Brahms (1833–1897), uma suposição que vai de encontro à convicção geral de que Wagner exerceu a maior influência sobre a sua obra. Outras implicações desta hipótese podem ser inferidas: um dos métodos de composição preferidos por Brahms e observado por Arnold Schoenberg (1874– 1951) em "Brahms The Progressive" (1947) faz referência ao conceito de variação progressiva o qual tipificou grande parte da produção composicional de Brahms. Nepomuceno possivelmente pode ter adotado esta técnica de composição em algumas das obras selecionadas para esta pesquisa. Este talvez seja o principal ponto de interesse para este trabalho, ou seja, a de demonstrar que Nepomuceno adotou uma técnica composicional típica da produção brahmsiana em detrimento da crença geral de que Wagner sempre foi o modelo inspirador para a sua música.

Introdução Em 1890, o jovem Alberto Nepomuceno deixa Roma, após dois anos de estudo, e parte para Berlim, onde permanece até 1894. Primeiramente se inscreve na Academia Meister Schule, e em 1892 é admitido na Sternsches Konservatorium der Musik (VERMES, 1996, p. 32). Na primeira instituição de ensino que freqüenta, Alberto Nepomuceno estuda composição com Heinrich Herzogenberg (1843 – 1900), quem era um importante acadêmico em Berlim nas últimas décadas do século XIX. Professor de composição que já havia passado pela Hochschule für Musik, Herzogenberg fazia parte do círculo profissional e de amizades de Johannes Brahms (1833–1897) e suas obras apresentam uma forte influência do mesmo. Além disso, tinha um grande interesse pela arte do contraponto. É bem possível que sua ideologia pedagógica incluísse técnicas composicionais de Brahms, já que ele mesmo as utilizava (DUDEQUE, 2005(b) p. 213). As idéias pedagógicas na área de teoria e composição no Sternsches Konservatorium der Musik, segunda instituição onde Nepomuceno estuda, possivelmente passaram muito tempo, mesmo após sua saída, sob a influência das idéias de Adolf Bernhard Marx (1795-1866). (DUDEQUE, 2005(b), p. 213). Marx começou a lecionar na Universidade de Berlin em 1830, ensinando história da música, repertório e composição

particularmente. Sua experiência como professor o levou a escrever seu trabalho mais conhecido, Die Lehre von der musikalischen Komposition, praktisch-theoretisch [Um guia prático e teórico para a composição musical]. O trabalho foi escrito em quatro volumes, e o primeiro foi traduzido para o inglês em 1852 (BURNHAM, 1997 p. 6). Neste trabalho A. B. Marx propõe uma grande ênfase no motivo musical, e o método de ensino é sempre da estrutura mais simples até a mais complexa, desde um período usando apenas acordes de tônica e dominante, até a forma sonata completa. Esta tradição do ensino da composição e das formas musicais pode ter influenciado fortemente o Fundamentos da Composição Musical de Arnold Schoenberg, quem passou pelo conservatório como professor em 1902 e 1911 (DUDEQUE, 2005(b) p. 213). Marx acreditava que a forma sonata havia atingido sua maior realização nas mãos de Beethoven, em seu terceiro volume do tratado de composição, quase todos os exemplos musicais são tirados da obra de Beethoven (BURNHAM, 1997, p. 91). Marx era um grande estudioso e entusiasta da obra de Beethoven (BURNHAM, 1997, p. 157). Ademais, em sua chegada à Alemanha, Alberto Nepomuceno possivelmente deve ter tomado consciência de duas escolas que pareciam estar em vigor desde 1860, Grout chamou a primeira de Classicismo Romântico, tendo como maior expoente Brahms e a segunda de Radicalismo

254 Romântico, representada por Richard Wagner (1813–1883), sendo as duas derivadas de Ludwig Beethoven (1770-1827). Este tipo de classificação sempre levanta problemas de generalização das obras dos compositores envolvidos, evidente que estas eram apenas tendências da época e um trabalho poderia ter características de ambas. No entanto pode-se dizer que determinado compositor ou obra pode ter sido influenciado mais ou menos por uma escola definida (GROUT, 1980, p. 594). Tendo como professor de composição, a partir de 1890, Herzogenberg, estudando no conservatório onde a tradição pedagógica de A. B. Marx ainda era forte, é bem possível que as obras de Nepomuceno durante este período tenham adquirido um caráter germânico específico, o caráter da música de Brahms e consequentemente de Beethoven. Discussão O primeiro sinal de um Nepomuceno mais clássico é a escolha da forma para sua expressão musical, dentre as peças selecionadas para esta pesquisa pode-se notar uma sonata para piano e uma sinfonia nos moldes de Beethoven e Brahms, além da própria Suíte Antiga Op.11 contendo peças estilizadas do período barroco, período o qual Brahms tinha imensa afinidade, sendo até colecionador de música antiga. Estas peças já apontam para uma direção diferente da tomada por Richard Wagner, quem sempre tentou criar a obra de arte do futuro, de quem as obras mais importantes foram óperas e quem era contra a música absoluta, aquela feita por Brahms, por estar longe de suas origens, a fala e a dança. (DAHLHAUS; DEATHRIDGE, 1988, p. 85). Segundo Grout, a história da sinfonia no século XIX tem dois caminhos, os dois derivados das obras sinfônicas de Beethoven. Sendo a quarta, a sétima e a oitava sinfonias a inspiração para os compositores de música pura, ou música absoluta nos padrões da música do período clássico. O caminho distinto tem como maiores modelos a quinta, a sexta e a nona sinfonias de Beethoven. Apesar desta diferenciação, é muito problemática a delimitação de fronteiras ou o emprego de títulos incondicionais a estes compositores. Apesar disto, depois de 1860, a história criou duas escolas composicionais opostas, o Classicismo Romântico, tendo como maior expoente Brahms, e um tipo especial de radicalismo Romântico, sendo Richard Wagner (1813-1883) o principal representante. (GROUT, 1980, p. 593-594). A sinfonia de Alberto Nepomuceno pertence aos moldes e à escola do Classicismo

SIMPEMUS3 Romântico. A última sinfonia de Brahms havia sido composta apenas nove anos antes da sinfonia de Nepomuceno. Estas obras orquestrais de Brahms, assim como a do compositor brasileiro, são clássicas em vários aspectos, como por exemplo, todas elas estão dentro do arquétipo de quatro movimentos, e cada qual possui uma forma reconhecível dentro dos padrões clássicos; o uso de técnicas de contraponto e de desenvolvimento motívico; e o fato de não desfrutarem de um programa, como nas sinfonias de Hector Berlioz, ou de um nome sugestivo para as peças (a sinfonia de Alberto Nepomuceno é conhecida apenas como Sinfonia em Sol menor). Apesar destas características clássicas, os dois compositores apresentam também um típico vocabulário musical romântico: as harmonias idiomaticamente românticas; a utilização de uma orquestra e de um colorido orquestral maior1; a organização das tonalidades entre os movimentos2; e a construção da forma a partir de pequenos motivos, através de variação progressiva, um romantismo neste caso, mais característico de Brahms. A utilização de sentenças na apresentação de temas foi uma técnica empregada por Beethoven e Brahms em muitos de seus trabalhos, Alberto Nepomuceno também fez uso desta técnica em algumas de suas composições, os temas principais dos primeiros movimentos da Sinfonia em Sol menor, do Quarteto n. 3 e da Sonata para Piano em Fá menor são alguns dos exemplos. Estas sentenças, codificadas por Schoenberg, geralmente aparecem na música clássica como partes de grandes formas, na configuração de uma apresentação e um pequeno desenvolvimento da idéia musical completa. (SCHOENBERG, 1996, p. 48). Uma sentença é geralmente constituída de oito compassos, trazendo em seus dois primeiros, o que pode ser chamado de idéia básica, esta idéia traz em si o material fundamental do tema, em geral alguns motivos. Logo após segue uma repetição da idéia básica, que não precisa ser literal, e que, segundo William Caplin, deve manter um prolongamento da tônica principal da peça. Podemos chamar estes quatro compassos então de frase de apresentação, já que agora foi “apresentada” ao ouvinte a idéia básica. Para explicar a frase de continuação um exemplo clássico de sentença na música de Beethoven pode servir para um melhor entendimento: 1

Este colorido difere dos “coloristas” a quem Rimsky-Korsakov se refere, Delibes, Bizet, e Borodin sendo alguns deles, para ele, a música de Brahms não se voltava para as cores, assim como esta sinfonia de Nepomuceno. (RIMSKY-KORSAKOV, 1964, p. 2)

2

Na primeira sinfonia de Brahms temos o seguinte esquema de tonalidades entre movimentos: Dó menor; Mi maior; Láb e Si maior; Dó menor e maior. Na sinfonia de Alberto Nepomuceno o esquema segue sendo: Sol menor; Dó maior; Sib Maior e Ré# menor; Sol menor e maior.

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simpósio de pesquisa em música 2006

Ex. 1. Beethoven, op. 2 n. 1

A frase de continuação geralmente é composta por mais quatro compassos que detêm a função de “continuação” e de “cadência”. Nesta seção ocorre uma desestabilização do contexto estrutural, harmônico e rítmico do que vinha acontecendo. Em relação à estrutura podese observar a quebra da idéia básica em unidades menores, este processo que ocorre nos compassos 5 e 6 será chamado de fragmentação. Há também uma aceleração do ritmo harmônico nos quatro últimos compassos da estrutura, uma mudança na harmonia durante a apresentação levava dois compassos para acontecer, aqui, na frase de continuação, acontece a cada compasso e no sétimo a cada dois tempos. Junto com a função de continuação segue a função de cadência, esta desempenha o papel de fechamento da estrutura apresentada, a cadência pode ser constituída de material antes já apresentado, geralmente, no entanto, o material sofre apenas liquidação. A liquidação acontece quando um motivo tem suas características sistematicamente abandonadas, pode-se observar que o motivo b tem características bem definidas, porém no compasso 7 este já se torna um motivo convencional, que poderia pertencer a qualquer cadência. A forma de uma peça musical pode ser descrita minimamente como um discreto arranjo hierárquico, com durações temporais perceptivelmente significantes, o que é chamado de estrutura de agrupamento do trabalho musical. Cada grupo, o qual contém um “chunk” de música (como psicólogos diriam) em um dos níveis da hierarquia, pode ser neutralmente identificado em termos de

sua duração no tempo. Então podemos falar de uma idéia de dois compassos, que se junta com uma outra idéia de dois compassos para formar uma frase de quatro compassos, que por sua vez pode se juntar com outra frase para formar um tema de oito compassos. (CAPLIN, 1998, p. 9)

Esta descrição sobre a estrutura de agrupamento pode ser útil no momento, pois será apresentada a sentença do Quarteto nº. 1 de Brahms, Op. 51 nº. 1. Antes, porém, apresentar-seá a estrutura de agrupamento da Op. 2 nº. 1 de Beethoven. Nesta primeira sentença da Sonata, pode-se notar um agrupamento simples de 2 + 2 + 1 + 1 + ½ + ½ + 1, onde a apresentação tem seus quatro primeiros compassos divididos em grupos de dois, e a continuação, onde ocorre a fragmentação, se dissolve em grupos de um compasso e a cadência em grupos de meio compasso mais um, último compasso que termina a função cadencial. A primeira sentença do Quarteto de cordas nº1 de Brahms pode não ser tão simples (Ex. 2). A estrutura de agrupamento nesta sentença é mais complexa do que a de Beethoven em sua Sonata para piano. A estrutura de Brahms inicia com uma idéia básica de “1 2/3” compassos, logo em seguida segue para uma fragmentação de 1 compasso mas sempre começando no último tempo do anterior. A terceira e última fragmentação gera uma hemíola, pois toma uma forma de compressão de 2/3 de compasso, enquanto a cadência (que aqui não desempenha o seu papel por completo) tem um compasso completo. Resumindo a estrutura de agrupamento de Brahms, 1 2/3 + 1 + 1 + 2/3 + 2/3 + 2/3 +2/3 + 1, ou seja, mais abstrusa que a de Beethoven.

Ex. 2. Brahms, Op. 51 n. 1

A estrutura da sentença nesta peça de Brahms também se difere, desde seu início, da sentença de Beethoven. A idéia básica é apresentada, no entanto, somente uma vez, e ao invés de repetir a idéia básica, o compositor já introduz a idéia de frase de continuação com uma fragmentação, quase que de imediato, da primeira frase. Sua primeira parte da frase de continuação dura dois compassos relativos1, em seguida sofre mais uma redução e passa a ter pequenas frases de 2/3 de compasso cada uma. Dos compassos 2 ao 7 nota-se uma frase de continuação expandida, ou seja, unidades de fragmentação e ou progressões seqüenciais adicionais ao processo de continuação, neste caso observa-se um aumento de unidades fragmentárias. Outra diferença importante é a falta de uma função cadencial completa, no caso de Beethoven pode-se ver a liquidação acontecendo, o movimento cessando e a sentença sendo fechada por um movimento melódico e harmônico bem característico de cadência, o ouvinte pode perceber que o fim da sentença está próximo. Já neste exemplo de Brahms, o ouvinte não percebe a chegada da cadência, não existe liquidação, nem um movimento melódico e ou harmônico que suporte esta idéia de chegada. A função cadencial, como em Beethoven, aqui não existe. No entanto, depois da parada brusca da melodia e da harmonia em Láb, Brahms toca um acorde de dominante em que o lab da melodia desce para sol, dando assim a entender, que ali existe uma cadência interrompida. Alberto Nepomuceno faz um uso peculiar da estrutura da sentença no início de sua Sonata (Ex. 3). Nota-se a apresentação com dois compassos da idéia básica e uma repetição da mesma. Já na frase de apresentação pode-se ver uma diferença em relação à sentença de Beethoven e de Brahms, Nepomuceno ao final de sua apresentação acrescenta uma dominante da dominante e fecha no V menor, diferente do que sugere Caplin, já que aqui não há um prolongamento da tônica e sim um afastamento em relação à mesma. Dos compassos 5 ao 11 existe o que podemos chamar de frase de continuação expandida, como no quarteto de Brahms, só que neste caso observa-se, dos compassos 5 ao 7, uma progressão seqüencial em terças e uma fragmentação do material motívico a e b. Em 1

Seus dois compassos da primeira parte da continuação estão defasados com os compassos realmente escritos, ou seja, compassos absolutos.

seguida, dos compassos 8 ao 11, acontece mais um “condensamento” do material motívico, ou seja, fragmentação. Desta vez desaparece o motivo a e apenas o b é trabalhado, e o que antes tinha a duração de um compasso, passa agora a durar ½ compasso. A estrutura de agrupamento de Nepomuceno (Ex. 3) então é a seguinte 2 + 2 + 1 + 1 + 1 + ½ + ½ + ½ + ½ + ½ + ½ + (½ cadência), ou seja, de acordo com este fator a frase de apresentação se assemelha mais com a de Beethoven e a frase de continuação com a de Brahms. Outro fator importante para o acúmulo de energia na frase de continuação é a aceleração do ritmo harmônico, como em Beethoven e diferentemente de Brahms, Nepomuceno acelera a taxa de mudança da harmonia no tempo, o que mudava a cada compasso, com exceção do último, na frase de apresentação, muda, nesta seção, a cada semínima pontuada. No final da frase de continuação dever-se-ia encontrar uma cadência, entretanto, não é o caso nesta sentença de Nepomuceno. Depois da grande geração de energia providenciada pela expansão da continuação, o compositor opta por interromper a sentença bruscamente na dominante. Apesar de a harmonia oferecer espaço para o que é chamado de cadência interrompida, não é o suficiente para criar uma função cadencial. Sobre a função cadencial na música da geração clássica Caplin diz: “Além do componente harmônico necessário, uma função cadencial geralmente contém uma identidade melódica, uma fórmula altamente convencional que ocorre frequentemente em trabalhos do estilo clássico” (CAPLIN, 1998, p. 43). Apesar de ser menos obvia na geração romântica, a falta de relaxamento melódico na peça de Nepomuceno é muito parecida com a que acontece no quarteto de Brahms, no caso do corte de movimento em Brahms, a parada acontece no acorde de Láb, o sexto grau da escala, que logo a seguir segue para a dominante, dando um maior sentido ao fim da sentença com uma cadência interrompida, diferentemente de Nepomuceno que simplesmente corta o movimento na dominante e deixa o ouvinte muito mais perplexo com a interrupção.

Ex. 3. Nepomuceno, Sonata para piano Op. 9 – comp. 1-11

A continuação da sonata também traz semelhanças e diferenças entre essas três peças discutidas. Em Beethoven logo após o término da sentença a música segue para a transição em direção ao segundo grupo temático fazendo uso dos motivos a e b, buscando um afastamento da tônica1. No quarteto de Brahms, porém, acontece de diferente maneira, sobre uma intervenção entre a primeira sentença do quarteto e a transição para o segundo tema Robert P. Morgan afirma que: A fraca, quase seqüencial extensão que segue (compassos 9 e 10) mina ainda mais a chegada da dominante, convertendo-a em um mero caminho até a subdominante. [...] O modelo de Beethoven repensado por Brahms, é crucial para o entendimento da extensão que ocorre do compasso 11 ao 22, a qual adquire um propósito lírico, e de conforto claro, como uma resposta a este começo incomum e intenso. Movendo-se devagar, regularmente de dois em dois compassos (até o compasso 19), mesmo com uma textura contrapontística, o trecho carrega a música do desvio em direção à subdominante, para a dominante, provendo, assim, um balanço tonal e formal. Aqui está o

1

No entanto, em Beethoven, o afastamento da tônica pode começar já na apresentação do tema, como na sonata Op. 53, “Waldstein”. (ROSEN, 1998, p. 68).

relaxamento que havia sido previamente negado. (MORGAN, 2003, p.15-16).

Nepomuceno, assim como Brahms, também oferece certo “conforto” depois da brusca parada de sua sentença na dominante, o ritmo e a melodia sofrem uma aumentação, o que ajuda a refletir uma sensação de relaxamento, uma melodia que anda mais devagar. No entanto, todo o resto dos fatores parece elevar a tensão proporcionada no final da sentença, como por exemplo, a harmonia, que continua a mudar duas vezes por compasso (apesar de agora apresentar uma nota pedal). No término da sentença não há um desvio para a subdominante, portanto, a função desta intervenção se difere um pouco da de Brahms. Nepomuceno prolonga a dominante fazendo um modelo e seqüência na mão esquerda, seu modelo e seqüência passa pelas tonalidades de Dó maior, Mib Maior e Sol maior, ou seja, as três notas que formam a tríade da dominante menor de Fá menor, tonalidade principal da peça. Além disso, a melodia é “comprimida” e “expandida” durante o trecho e é deslocada do modelo e seqüência encontrado no baixo, criando assim um tipo de síncope estrutural (Ex. 4). Há claramente uma ambigüidade funcional nesta intervenção de Nepomuceno, pois à primeira vista parece ser uma seção aonde a tensão irá, e precisa, ser diluída, no entanto, as técnicas usadas

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simpósio de pesquisa em música 2006 pelo compositor apresentam um acúmulo de energia. Depois da intervenção a peça apresenta, finalmente, a transição para o segundo grupo temático, com uma utilização clara do tema b. O mais interessante aqui é a similaridade estrutural entre a intervenção no Quarteto de Brahms e a Sonata de Nepomuceno, que

aparecem depois de um corte brusco na sentença, e a diferença funcional entre as mesmas, enquanto uma tem função, além do relaxamento, de retorno à harmonia de dominante, a outra sublinha a harmonia de dominante e o relaxamento acontece apenas superficialmente.

Ex. 4. Nepomuceno, Sonata para piano op. 9 – comp. 11–21

Sobre a escrita para piano, Nepomuceno também apresenta algumas características da escrita de Brahms para piano. A escrita pianística do compositor alemão era mais densa que a de Beethoven, em suas peças utilizava figuração de acordes quebrados, ocorria o freqüente uso dobra da melodia em oitavas, terças e ou sextas e, além disso, apreciava muito o efeito do deslocamento métrico. Essa última característica era muito marcante em sua música, não só para

piano, mas para todos os outros meios musicais. Podem ser observadas também, todas estas qualidades na música para piano de Alberto Nepomuceno; o exemplo 4 demonstra as melodias dobradas em oitava, com utilização de terças e sextas ocasionais; o exemplo 5 demonstra o deslocamento métrico característico de Brahms e o exemplo 6 apresenta este deslocamento empregado por Nepomuceno:

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SIMPEMUS3

Ex. 5. Johannes Brahms, Capriccio op. 76/v – comp. 1-18

Ex. 6. Alberto Nepomuceno, Folhas D’Álbum/ii – comp. 38–48

A maneira como os temas se relacionam entre si, principalmente na Sonata e na Sinfonia de Nepomuceno, é uma influência do estilo composicional de Beethoven, o trabalho com pequenos motivos em oposição a melodias completas e regulares, deixando com que a música cresça e se desenvolva a partir de pequenas idéias musicais. Este tipo de trabalho composicional foi também extensamente usado por Brahms, é uma maneira de manter a proporção clássica em um trabalho de escala romântica. Os pequenos motivos podem facilmente se transformar em teias de períodos muito maiores do que uma melodia fechada periodicamente, uma melodia muito longa acarretaria em uma peça musical com um ritmo muito lento. (ROSEN, 1998, p. 394-396). Partindo destes motivos, Beethoven estabelece, no primeiro movimento de sua sonata mais conhecida como Waldstein (Op. 53), seus temas como se fossem nascidos um do outro. (ROSEN, 1998, p. 397). Esta técnica caracteriza o termo variação progressiva, criado por Schoenberg a partir de observações analíticas da música de compositores do século XVIII e XIX, como Haydn, Beethoven e Brahms, sobre a variação progressiva: A coerência e a compreensibilidade que são tão importantes para Schoenberg dependem no princípio da similaridade e do reconhecimento motívico. A noção de Grundgestalt reflete esta idéia e pode ser considerada como inovadora. Junto com a Grundgestalt, Schoenberg formulou uma série de conceitos originais com o propósito da elucidação e da avaliação crítica de um discurso musical; eles serviriam para explicar a continuidade do discurso musical e a conexão de idéias musicais. Finalmente, a interação dessas noções e a Grundgestalt podem ser vistas como parte de um processo de desenvolvimento motívico maior: o princípio da variação progressiva. (DUDEQUE, 2005ª, p. 132).

Sobre a idéia do motivo como fonte geradora de toda a obra, A. B. Marx, quem já havia explorado noções sobre a unidade na música, comenta que “o motivo é a configuração primaria (Urgestalt) de tudo que é musical”. (DUDEQUE, 2005b, p. 226). A Grundgestalt, ou seja, a idéia básica, pode ser derivada de duas maneiras para Schoenberg. A primeira apresenta um desenvolvimento de estágios intermediários dentro da idéia de variação progressiva, que são usadas para a continuidade e fluência do discurso musical e a segunda reflete as variações por mediação que podem gerar variações

contrastantes, com a conexão entre motivos de difícil entendimento. A idéia de um pequeno motivo ser gerador de toda a obra é um pensamento que existiu tanto na música de Brahms quanto na música de Wagner e foi um problema que persistiu durante o romantismo musical. No entanto, o caminho, ou a solução tomada por esses dois compositores foi diferente, e esse é um dos pontos mais importantes deste trabalho. Brahms trabalha com pequenos motivos fazendo com que todas as formas temáticas e motívicas subseqüentes sejam derivadas da primeira, é literalmente um processo orgânico que acontece durante a música, o que foi chamado por Schoenberg de variação progressiva. Já Wagner, em seus trabalhos mais importantes, trabalha com esses motivos fazendo com que todas as outras formas, sejam antes de tudo, versões diferentes do mesmo material não necessariamente transformando estes materiais no decorrer da música. (DAHLHAUS e DEATHRIDGE, 1988, p. 97). Quando então, as principais peças de Nepomuceno deste período são analisadas, pode-se ver uma maneira bastante próxima de trabalhar os materiais musicais àquela de Johannes Brahms, ou seja, existem evidências do emprego da técnica de variação progressiva. Sobre o amadurecimento de Nepomuceno durante este período podem-se explicitar alguns fatores relacionados ao seu Quarteto de cordas n. 3 e à sua Sinfonia em sol menor. Antes, porém, devese lembrar o contato que Nepomuceno teve com o estudo do contraponto. Em 18901, mesmo antes de chegar a Berlim, Nepomuceno envia uma carta a Frederico Nascimento, comentando sobre um curso de contraponto que ainda demoraria um mês para concluir e sobre uma eventual tradução do manual Polifonia de De Sanctis. (VERMES, 1996, p. 31). Em Berlim, Herzogenberg, seu professor de composição até 1892, tem um forte interesse na arte do contraponto e na música de Bach, interesse este, que pode ter influenciado suas atividades pedagógicas. Tendo em vista estas atividades de Nepomuceno fica um pouco mais claro entender suas escolhas na composição de seu quarteto n. 3, principalmente no segundo movimento do mesmo. No segundo movimento deste quarteto, apenas intitulado como Andante, é claro observar a forma como sendo um tema com variações, sendo o tema uma seção no estilo coral:

1

Segundo Correa, em 1889, Alberto Nepomuceno já teria enviado o Tratado de harmonia, contraponto e fuga de De Sanctis a Leopoldo Miguez no intuito de ser adotado no Instituto Nacional de Música do rio de Janeiro. (CORREA, 1996, p. 9).

Ex. 7. Alberto Nepomuceno, Quarteto n.3 em ré menor/ii – comp. 1–13

Das quatro variações seguintes apenas uma não apresenta um estilo contrapontístico tão presente, a segunda. A primeira é um pequeno fugato, a terceira apresenta um pequeno jogo canônico e a quarta, e última, é um retorno ao estilo coral. Por estas características, este movimento principalmente, tem um caráter de exercício de contraponto, onde existe uma preocupação quase que única com esta técnica. Os outros movimentos também apresentam características contrapontísticas fortes, principalmente o quarto movimento que começa como uma fuga.

O primeiro movimento do quarteto, porém, parece ser de longe o mais bem elaborado, mesmo assim, ainda fica aquém do primeiro movimento de sua Sinfonia composta três anos mais tarde, onde as técnicas composicionais aprendidas por Nepomuceno parecem ser usadas em função da música e não o contrário. Por motivo de comparação, serão mostrados o primeiro tema do primeiro movimento do quarteto n. 3 e o primeiro tema do segundo movimento da sinfonia, respectivamente:

Ex. 8. Alberto Nepomuceno, Quarteto n.3 em ré menor/i – comp. 1–16

O primeiro tema do Quarteto é uma sentença composta, Ex. 8, possui 16 compassos, sendo eles 6 de frase de apresentação, 2 de interpolação, e 8 de frase de continuação. Apesar desta forma um pouco mais sofisticada da sentença, o que temos principalmente são acompanhamento e melodia de uma maneira bastante simples. Já no Ex. 9, no primeiro tema do segundo movimento da Sinfonia temos um pequeno ternário que começa com um antecedente, uma idéia básica de 2 compassos, seguida por uma idéia contrastante nos dois seguintes, o que, para Caplin, caracterizaria um antecedente de um período. Para completar um período comum, o compositor teria que escrever o conseqüente, o qual seria constituído da, reaparecendo, idéia básica e da mesma idéia contrastante que se transformasse de modo que a cadência do conseqüente fosse mais forte que a cadência do

antecedente. No entanto, o conseqüente apenas ameaça começar, mesmo com a diminuição do motivo ascendente no compasso 5, a ligação com o início dos dois compassos que caracterizam a idéia básica é perceptível. Porém, a harmonia muda, a melodia muda, a técnica de modelo e seqüência aparece, uma pequena fragmentação deste modelo e seqüência acontece, ou seja, antes mesmo de começar um conseqüente, o compositor surpreende com uma seção contrastante, que começa no compasso 6 e se estende até o compasso 16. A reexposição traz de volta a frase antecedente com algumas pequenas modificações que são apenas ornamentais. Desta vez Nepomuceno não ameaça começar um conseqüente, segue direto para a seção de transição da grande forma. Além disso, neste trecho o uso de contraponto entre as vozes é evidente e uma maior elaboração harmônica também pode ser encontrada.

Ex. 9. Alberto Nepomuceno, Sinfonia em Sol menor/ii – comp. 1–21

Demonstrados estes exemplos da música de Alberto Nepomuceno fica um pouco mais claro o de-

senvolvimento e o amadurecimento das composições do mesmo. Evidente que dizer que uma obra de arte é

264 melhor do que a outra pode abrir espaço para muitas discussões, mas pode-se dizer que as técnicas aprendidas por Nepomuceno foram mais bem empregadas nas obras que se aproximam do fim sua estadia em Berlim. Conclusão A principal conclusão alcançada nesta pesquisa é que os processos composicionais de Alberto Nepomuceno se assemelham bastante aos processos utilizados por Beethoven e Brahms, porém, esses processos são utilizados de maneira bastante pessoal, sem que se torne uma mera cópia da música destes dois compositores alemães. Seria ilógico pensar o contrário, pois estas idéias faziam parte do ambiente e das pessoas que o rodeavam e Nepomuceno acabaria absorvendo estes

SIMPEMUS3 pensamentos, adaptando-os e utilizando-os em sua música. No entanto, uma questão preocupante é a maneira como alguns compositores são rotulados, como já foi dito, a música do Nepomuceno deste período não é uma cópia da música nem de Beethoven e nem de Brahms, algumas das idéias destes compositores foram adaptadas aos propósitos de Nepomuceno. Além disso, quatro anos é um período muito curto na vida de um compositor, não se pode analisar toda sua obra baseado apenas nessas peças compostas durante este período. Por isso, pode-se dizer que este é um trabalho que está apenas começando, pois Alberto Nepomuceno viveu até 1920 e depois de 1894 sabe-se que sua música tomou outras direções, e seria necessária outra pesquisa como esta para descobrir certamente que rumo a mesma teria tomado.

Referências Bibliográficas ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briquiet & Comp, 1926. BURNHAM, Scott. (org). Musical form in the age of Beethoven: selected writings on theory and method. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. CAPLIN, William. A theory of formal functions for the instrumental music of Haydn, Mozart and Beethoven. Oxford: Oxford University Press, 1998. CORRÊA, Sérgio Alvim. Alberto Nepomuceno: catálogo geral. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1985. DEATHRIDGE, John; DAHLHAUS, Carl. Wagner. Brasil: L&PM Editores, 1988. DUDEQUE, Norton. Music theory and analysis in the writings of Arnold Shoenberg (1874-1951). Londres: Ashgate, 2005(a). _____. Aspectos do academicismo germânico no primeiro movimento do Quarteto n. 3 de Alberto Nepomuceno. Ictus, v. 6, 2005b, p. 211-232. GROUT, Donald. A history of western music. 3. ed. Nova York: Norton, 1980. MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. MORGAN, Robert. The concept of unity and musical analysis. Music Analysis, Oxford, v. 22, n. 1-2, 2003, p. 7-50. NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi, 1981. PLANTINGA, Leon. Romantic music: A history of musical style in nineteenth-century Europe. New York: Norton, 1984. RIMSKY-KORSAKOV, Nikolay. Principles of orchestration. New York: Dover, 1964. ROSEN, Charles. Formas de sonata. Barcelona: Labor, 1987. _____ The Classical style. New York: Norton, 1998. SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composição musical. São Paulo: EDUSP, 1996. VERMES, Mónica. Por uma renovação do ambiente musical brasileiro: o relatório de Leopoldo Miguez sobre os conservatórios europeus. SIMPÓSIO DE PESQUISA EM MÚSICA 2004. Anais..., Curitiba, 2004, p. 108-115. _____ Alberto Nepomuceno e a criação de uma música brasileira: evidências em sua música para piano. São Paulo, 1996. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, UNESP. WIKIPEDIA. “The sonata in scholarship and musicology”. Disponível em: Acesso em 14 de março de 2006.

Análise de improvisações na música instrumental: em busca da retórica do jazz brasileiro Marina Beraldo Bastos, Acácio Tadeu Piedade (orientador) Universidade do Estado de Santa Catarina Resumo Este artigo apresenta trata da análise musical de temas e trechos de improvisações no âmbito da chamada música instrumental brasileira, ou jazz brasileiro. A partir de estudos prévios, nos quais buscamos compreender este gênero da música brasileira em sua dimensão sócio-cultural, pretendemos agora adentrar no texto musical para adensar sua compreensão musicológica. A análise se pautou na busca de padrões musicais que cristalizam gestos expressivos recorrentes, entendidos como tópicas de uma retórica musical do jazz brasileiro.

Introdução Este artigo trata da análise de improvisações no repertório da chamada “música instrumental”, gênero da música popular brasileira que, em seu desenvolvimento histórico, dialoga profundamente como o choro, com a bossa-nova e com o jazz (BASTOS e PIEDADE, 2005). Inicialmente, o artigo apresenta uma breve reflexão sobre este gênero musical e suas designações. Em seguida, discutiremos questões sobre análise de música popular, em particular o caso da análise de improvisações, e apresentaremos uma descrição sumária da corrente analítica que desenvolve a idéia de “tópicas” (topics). Apresentaremos, então, análises de trechos de improvisações musicais para ali comentar a presença de algumas tópicas do repertório. Sobre Música Instrumental Como já foi comentado anteriormente1, a designação “música instrumental” é ambígua, pois há diversas outras músicas instrumentais no Brasil, e apesar disto os músicos e ouvintes deste repertório não têm dificuldade no reconhecimento do gênero musical que leva o nome de música instrumental. Algumas de suas marcas são claras: o destaque para os instrumentistas (improvisações, valorização do virtuosismo), a concepção harmônico-melódica e os arranjos que empregam técnicas e formas jazzísticas, entre outras. Há outras designações, como, por exemplo, “música universal” (conforme Hermeto Pascoal), “música brasileira contemporânea” (conforme Arismar do Espírito Santo), ou ainda “jazz brasileiro”, principalmente no exterior 1

PIEDADE (1997, 1999).

(Brazilian Jazz). Este último termo pode sugerir que a música instrumental seja uma adaptação nacional do jazz norte-americano, o que absolutamente não confere. Ao contrário, a música instrumental exibe uma configuração estável como gênero da música popular brasileira, embora seja parte do jazz global principalmente pelo espírito de liberdade de criação e improvisação (PIEDADE, 2003; ATKINS, 2003). Nesta perspectiva, a música instrumental pode ser chamada de jazz brasileiro (empregaremos ambas as designações como sinônimos). O jazz brasileiro, assim, surgiu nos anos 60, no contexto da bossa nova, com as versões instrumentais deste repertório, principalmente nos trios de piano2. A partir deste momento, quando predomina o diálogo entre bossa nova e jazz norteamericano, a música instrumental consolida-se com a incorporação de aspectos da musicalidade de outros gêneros, ao mesmo tempo mantendo uma linguagem peculiarmente própria, mais diretamente relacionada aos mundos do jazz internacional e da música brasileira, constituindo uma característica que PIEDADE (1997) chama de fricção de musicalidades, e que envolve a questão da identidade nacional e da globalização3. De fato, a música instrumental é o jazz brasileiro, se entendermos o jazz como fenômeno global que deixou de ser exclusivo do território norte-americano e tem hoje muitos “novos endereços” (NICHOLSON, 2005). Pretendemos neste artigo mostrar, a partir das análises de temas e improvisos do repertório em toque, como as musicalidades brasileiras e jazzísticas estão ali impressas. A perspectiva analítica que adotaremos é o que se poderia 2

Para uma discussão do desenvolvimento histórico da “Música Instrumental”, ver BASTOS e PIEDADE (2005).

3

Ver também PIEDADE (2005).

266 chamar de “teoria das tópicas”, que explicitaremos abaixo. Antes, porém, apresentaremos uma breve discussão sobre o debate da musicologia e análise da música popular. Análise de Música Popular Após vários debates e confrontações ao longo do século XX, a música popular se tornou o objeto de estudo legítimo da musicologia contemporânea (entendendo-se o campo da musicologia no seu sentido amplo, incluindo a etnomusicologia). A partir dos anos 60, investigações sobre música popular da área multidisciplinar dos Estudos Culturais mostravam a riqueza deste repertório e apontavam a inadequação da Musicologia tradicional. Esta, de sua parte, respondia com insultos, desprezo ou silêncio em relação aos nascentes estudos de música popular (MIDDLETON, 1993). O debate, naquele momento, resultava de uma definição de Musicologia que foi construída desde o momento de formação da disciplina, no século XIX, segundo a qual esta área restringe seu objeto de estudo à música erudita ocidental. Seus métodos típicos, como os recursos de análise e teoria musical, revelavam sua preferência pelo texto musical, em detrimento de aspectos sociológicos e culturais. Ao mesmo tempo, grande parte da chamada Etnomusicologia radicalizou a investida na direção oposta, desprezando (até recentemente) o sentido intramusical (MORAES e PIEDADE, 2005). Atualmente, as fronteiras entre disciplinas estão submetidas a desconstruções constantes, e pode-se falar em termos de uma Musicologia ampla, que inclui os estudos de música popular, especialmente aqueles que abarcam a análise do texto musical. O principal problema dos métodos de análise em geral, no caso de sua aplicação para os estudos de música popular, tem sido a tendência ao formalismo. Uma solução para a análise de música popular seria tentar trazer o nível de significação intra-musical para o primeiro plano sem que a análise torne-se meramente formal (MIDDLETON, 1993). A abordagem expressiva das “tópicas” é uma opção nesta direção (ver a seguir). Quando se trata de analisar improvisações, em geral a análise se orienta no sentido da compreensão do estilo individual de um músico4. No caso do jazz, as 4

De fato, a análise estilística é uma abordagem importante, e LARUE (1980) é um suporte teórico muito conhecido na Musicologia. Exemplos recentes produzidos no Brasil: sobre o pianista Bill Evans, ver GIMENES (2003); sobre o guitarrista Alemão Stockler, ver PRESTA (2004).

SIMPEMUS3 improvisações trazem à tona os diversos estilos individuais, reconhecidos pela audiência, e que por vezes fazem referências culturalmente compartilhadas muito significativas, como por exemplo no caso de paródias e citações5. Porém, não é este aspecto que nos interessa aqui, embora ele também esteja presente. A natureza da improvisação em música, no barroco europeu, na música tradicional indiana, no jazz (ver BAILEY, 1993), enfim, em todas as culturas musicais, é tal que o aspecto individual está permeado por um discurso anterior e mais profundo: a cultura. Membro de uma cultura, o indivíduo é o agente que “fala” na improvisação, porém sua expressividade depende do uso de fórmulas “sintáticas” que propiciem a comunicação. Além disso, a improvisação é um fenômeno temporal, envolvendo, assim uma dimensão simbólica que é interpretada pela audiência e pode ser compreendida pelo analista (IMBERTY, 1981). Portanto, para dar conta destas considerações, nossa hipótese é que a improvisação (no jazz brasileiro) envolve o uso de signos musicais convencionais que apontam para uma referencialidade no sentido da uma retórica musical, manifesta através de “tópicas”. Retórica e tópicas O que estamos chamando de tópicas aparece na semiótica defendida por AGAWU (1991): este autor parte do princípio de que o repertório da música clássica européia (aproximadamente de 1770 a 1830, objeto deste trabalho) é explicitamente orientado para o ouvinte. Agawu propõe uma teoria da música clássica instrumental com duas principais dimensões comunicativas: expressão e estrutura. As unidades de expressão interagem dentro de uma estrutura definida pelos termos convencionados da retórica musical. Agawu comenta um exemplo interessante: o uso da expressão “alla turca” por Mozart em trecho da ópera Die Entführung aus dem Serail, que estreou em 1782. Na cena, a personagem está furiosa, mas Mozart escreveu no estilo alla turca para injetar um toque de comédia. Ora, está em jogo a comunicação com o público da época, no texto musical sendo utilizados códigos compartilhados daquele contexto: menos de cem anos antes da estréia da ópera, os vienenses haviam expulsado os turcos de Viena, e então os turcos às vezes eram tema de diversão popular, sendo considerados

5

Sobre paródia no jazz, ver MONSON (1994). Muitas vezes há citações em referência a estilos de outros instrumentistas, como quando o saxofonista Joe Henderson cita Charlie Parker (ver MURPHY, 1990). Para um enfoque do jazz europeu, ver WILSON (1999).

267

simpósio de pesquisa em música 2006 divertidos e exóticos. Em adição à capacidade de Mozart no domínio destes códigos extra-musicais está sua capacidade musical, a forma como o compositor manipula o texto musical a fim de atingir o resultado comunicativo. Agawu mostra que, desta forma, o gênero “alla turca” torna-se uma espécie de categoria músico-cultural, presente em outras obras do período, que é o que Agawu chama de topics. No esquema analítico de Agawu, a cadeia de topics aponta o plano expressivo da música, enquanto que o plano estrutural é abordado através de diferentes perspectivas estruturalistas (Schenker, Rosen, Ratner e a do próprio Agawu, “começomeio-e-fim”). A adaptação deste modelo para a música popular brasileira é uma forma de lidar com o aspecto expressivo da musicalidade brasileira em suas várias faces. Acreditamos que eles estão presentes não apenas na música escrita como também nas improvisações, e nesta comunicação trataremos especificamente deste plano das improvisações, pois acreditamos que há ali tópicas que sendo utilizadas pelos músicos no sua busca de comunicabilidade com o público. Análises Através da análise de trechos de improvisações, previamente transcritos por nós, apresentaremos aqui elementos de conjuntos de tópicas que pudemos recolher. A estes conjuntos chamamos de: nordestino, brejeiro, época de ouro e bebop6.

Brejeiro Este conjunto tem relação com o jogo musical que existe, particularmente no mundo do choro, envolvendo a questão do desafio, da “quebração” rítmica, da ambigüidade melódica e da malícia. No samba também há várias dimensões do brejeiro, evocado pela figura do “malandro” e sua ginga. Este jogo envolve também uma competição entre os próprios músicos: é comum entre os chorões um tipo de brincadeira onde um músico solista tenta “derrubar” o outro utilizando padrões difíceis. Este é um fato histórico, profundamente arraigado na musicalidade chorística: no início do século XX, os flautistas chorões sabiam ler partitura e faziam estes desafios musicais com muita virtuosidade (DINIZ, 2003). No “Um a Zero”, de Pixinguinha e Benedito Lacerda, marcado como “choro vivo”, o brejeiro se apresenta logo de início na ambigüidade entre a nota fá e a nota sol. Outra “brincadeira” é desenvolvida através dos deslocamentos rítmicos nos compassos 8-11, onde um padrão melódico constituído no âmbito de três colcheias “atravessa” o dois por quatro, de forma necessariamente irregular.

Nordestino Estas tópicas remetem à musicalidade do nordeste brasileiro. Destaca-se o uso da escala mixolídia e, em menor escala, dórica. Há um número muito grande de tópicas neste conjunto, dada a importância desta musicalidade na música brasileira. Pudemos recolher e nomear algumas, que estarão nas análises abaixo. Por ora, apresentamos aqui um elemento claramente empregado de forma retórica no jazz brasileiro (e em muitos outros repertórios), que podemos chamar de “cadência nordestina”: trata-se de uma frase cadencial com estrutura 2-1-6-1-1.

6

Para um maior aprofundamento teórico sobre estas tópicas, ver PIEDADE (2006) e o artigo de PIEDADE neste volume.

Época de ouro Chamamos de “época de ouro” este conjunto de tópicas que remete a um sentimento de nostalgia ligado ao Brasil do passado e à musicalidade de gêneros antigos, tais como modinha, valsas e serenatas. Há diversas configurações melódicas para as tópicas época de ouro (EO): grupetos, apojaturas, certas aproximações cromáticas

268 (cromatismo 5-b5-4-3 ou 3-4-#4-5, ou ainda 3-21-7M-7, todas estas aproximações sendo cadenciais, a última nota estando geralmente em tempo forte, conforme seu uso nas “baixarias” de choro). Como exemplo, apresentaremos aqui a apojatura de nona (em ré menor) e a de sexta (em fá maior), ambas seguidas de arpejo descendente:

Encontram-se diversos exemplos deste padrão e de outros EO na literatura. Salientamos que o que está acima escrito, isoladamente, nada representa, e que este mesmo padrão é utilizado em diversas outras musicalidades do planeta. Entretanto, no (con)texto musical brasileiro, estes mesmos padrões são empregados de forma tal que apontam para o universo referencial específico em questão. Especialmente, como estamos tentando enfatizar neste artigo, se fazendo presentes nas improvisações no âmbito do jazz brasileiro. Apresentaremos abaixo a transcrição de um dueto de clarinete e voz presente na canção “Minha Palhoça”, de J. Cascata, conforme cantada por Mônica Salmaso e tocada por Nailor “Proveta” no disco “Voadeira” (SALMASO, 2001). A partir do compasso 10, a parte da voz apresenta o tema da canção, e a parte de clarinete é uma improvisação de acompanhamento que articula padrões melódicos que podem ser compreendidos como tópicas, indicados por colchetes inferiores. Vemos aqui alguns padrões EO: grupeto no c. 8; resposta 34-4#-5 no c.10; no c. 13-14 há uma progressão tipo linha de baixo de choro (“baixaria”) conduzindo à 7a menor (3-2-1-7M-7); logo no c. 15, aparece o arpejo 6-5-3-1 acima mencionado; nos c. 21-22 há, novamente, uma condução do tipo “baixaria”; no c. 28-29 ocorre uma forma arpejada de tríade maior, muito comum na melódica chorística; em seguida, o clarinetista emprega, no c. 32, uma breve frase que remete ao blues (evocando a escala blues menor): esta referência ao blues em um ambiente EO é um exemplo de fricção de musicalidades (PIEDADE, 2003); outra típica “baixaria” se apresenta nos c. 35-37; por fim, o padrão cromático típico 3-4-4#5.

SIMPEMUS3

simpósio de pesquisa em música 2006 Bebop Este termo cobre a referência ao mundo do jazz através de procedimentos melódicos tipicamente jazzísticos, uso de certas padrões e convenções, como notas-de-aproximação cromática típicas do jazz, fraseados do tipo Charlie Parker, uso de escalas e frases outside (ou seja, “fora” da tonalidade ou do acorde-referência). É evidente que, no contexto do jazz internacional, o termo se refere ao jazz dos anos 40 e a figuras como Charlie Parker, Dizzie Gillespie e Thelonius Monk. No entanto, no discurso nativo dos músicos brasileiros (cf. PIEDADE, 2003), o termo aponta para um conjunto de tópicas musicais jazzísticas construídas sob o tenso diálogo que se estabelece entre a musicalidade brasileira e a do jazz norte-americano. Como exemplo, apresentaremos abaixo uma improvisação do baixista Itiberê Zwarg na música “Viva o Rio”, de Hermeto Pascoal (PASCOAL, 2002).

Note-se o uso de tópicas brejeiro (encaixe irregular de células motívicas, causando deslocamento rítmico, c. 12-19). Há também outros procedimentos significativos, como antecipações

269 e evocações da simplicidade infantil (c. 10, que chamamos de ciranda), bem como um “maxixado” (c. 20), que eventualmente poderão constituir outro conjunto de tópicas. Apresentaremos agora a transcrição de um trecho musical no qual aparecem variadas tópicas. Trata-se de um excerto da improvisação de saxofone de Nailor “Proveta” na música “Baião de Lacan”, de Guinga, conforme a gravação no CD “Bixiga”, da BANDA MANTIQUEIRA (1999).

Note-se o uso de tópicas nordestinas de forma entrecortada com tópicas bebop, outro exemplo de fricção de musicalidades do jazz brasileiro. A composição de Guinga aponta fortemente para o nordestino, e a improvisação de “Proveta” segue neste universo, porém dialogando com outras musicalidades. Logo no início (trecho não transcrito), há uma longa referência ao experimental (escalas rápidas e agudas, sem referência tonal, uso de harmônicos e articulações que exploram timbres não-convencionais, o acompanhamento utiliza acordes distantes da tônica, conferindo densidade), desembocando em padrões nordestinos sobre um acorde único (F#7) sob o ritmo de baião. Nos c. 1-6 do trecho transcrito, “Proveta” explora a escala de F# empregando graus alterados (b2 e 6m); do c.6 para o c. 7, cria uma cadência arpejada que aponta para D7/9, portanto um trecho outside, e logo em seguida utiliza um padrão nordestino que, de forma incompleta, cita a composição “O ovo”, de Hermeto Pascoal, surpreendendo o ouvinte com um salto para a 9a ao invés de cair na 3a , como aliás

270 faz adiante, após um trecho outside, nos c. 2224, apresentando a citação; esta é repetida obsessivamente nos c. 25-27, trazendo uma nova surpresa na cadência para a nota lá natural. A improvisação continua, mas o trecho em toque nos serve de exemplo suficiente para mostrar o uso de tópicas. Comentários Finais Para concluir esta comunicação, podemos afirmar que constatamos o interesse teóricometodológico da transcrição de improvisações para posterior análise, bem como da aplicação da “teoria das tópicas” para estudo do jazz brasileiro. No primeiro caso, podemos dizer que se trata de um procedimento que já vem sendo realizado de forma interessante por BERLINER (1994) e MONSON (1996) em seus estudos sobre o

SIMPEMUS3 jazz. Evidentemente, como salientam estes autores, as transcrições são desde sempre interpretações parciais e limitadas, já que somente alguns elementos podem ser destacados em partitura, e mesmo assim muitas vezes de forma precária. A transcrição musical é uma técnica muito empregada na Etnomusicologia, e por isso mesmo nesta disciplina ela tem sido largamente discutida (ver BARZ e COOLEY, 1996; NETTL, 1964). Ao mesmo tempo, afirmamos o rendimento de investigações da dimensão expressiva da música brasileira no nível das improvisações, em busca de gestos expressivos compartilhados, configurados como tópicas. O estudo da retórica musical subjacente às improvisações através da teoria das tópicas é uma avenida interessante para a compreensão da musicalidade brasileira, podendo contribuir significativamente para a Musicologia Brasileira.

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simpósio de pesquisa em música 2006

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Conservação e restauração de partituras: a problemática da coleção Renée Devrainne Frank de música paranaense do Museu da Imagem e do Som de Curitiba Charlene Neotti Gouveia Machado Universidade Federal do Paraná Diversos estudos quantitativos de acervos brasileiros têm denunciado a negligência com a qual são tratados os documentos musicais. No Paraná é gritante a situação de um dos acervos mais importantes de registro da história do Estado: o acervo do Museu da Imagem e do Som de Curitiba. Depositado numa sala despreparada, as coleções Renée Devrainne Frank, Bento Mossurunga e Estelinha Egg esperam o término da reforma estrutural no prédio sede do MIS. Esta comunicação vem apresentar um levantamento das categorizações e classificações aplicadas à coleção Renée Devrainne Frank – do antigo acervo da SEEC - por iniciativa do grupo de pesquisa “Música Brasileira: Estrutura e Estilo, Cultura e Sociedade”, que objetiva resgatar os acervos paranaenses e o contexto histórico que os permeiam (vida musical curitibana, relações sociais entre simpatizantes e ativistas de correntes ideológicas diversas, o uso dessa música, instituições e sociedades civis). Um dos acervos que pode ser colocado como um dos mais significativos da documentação paranaense, ocupa doze gavetas do arquivo musical do MIS. Pertencente a pianista Renée Devrainne Frank, a maioria das composições paranaenses contidas no acervo são obras da primeira metade do século XX. Além destas encontramos obras de compositores europeus como Franz Liszt, Richard Wagner, Robert Schumann, Gabriel Faurè e Claude Debussy. O denso volume de música de câmara para piano ou canto coral se explica pelo círculo social do qual Renée fazia parte e, com o Trio Paranaense, apresentava-se em encontros no Instituto Neo-Pitagórico, nos clubes Concórdia e Thalia e no próprio solar dos Frank, além de outras tertúlias lítero-musicais. Para a coleta e identificação de desse material, o formulário adotado é o RISM (Répertoire Internacionale des Sources Musicales), que apesar de reunir informações que outras normas descritivas não satisfazem, não sugere nenhuma metodologia de tratamento físico de acervos, nem sobre o princípio da proveniência – um princípio da arquivologia que

defende a separação dos acervos de entidades1. Para seguir esse princípio é necessária a contextualização das informações, separando o que é uma coleção e o que é arquivo. O acervo em questão é claramente de uma coleção particular, ou seja, trata-se de um da coleta de partituras que interessavam a pianista Renée Devrainne Frank. Tanto partituras como atas, programas de concerto e documentos pessoais não receberam nenhum tratamento técnico: estão separados em envelopes de papel comum Kraft, suscetíveis aos ataques de agentes naturais. Externamente esses envelopes trazem uma numeração aleatória – e alguns sem essa numeração ou qualquer informação a respeito do conteúdo dos envelopes. Além de poeira, muitas obras estão com clipes e fita adesiva, ou seja, não passaram nem por higienização, enquanto repousam no esquecimento de pesquisadores, acadêmicos, músicos e do governo do Estado. A política administrativa também negligencia o tombamento, falta esta, que pode acarretar no sumiço de cartas e outras partes de pequenas dimensões. Ainda sobre a estrutura física, vale salientar que a reforma na infra-estrutura do edifício do MIS não é medida suficiente para uma boa acomodação desse material. Na sede não existe uma câmera fria nem espaço para a construção de uma. A falta de bibliotecários preparados para dirigir acervos musicais – desabituados com o manuseio e classificação de partituras - também prejudica a conservação dos documentos, pois as visitas se tornam perniciosas para o acervo por não serem orientadas e supervisionadas. Com um rico volume de material manuscrito, das quais grande parte é autógrafa, encontramos documentação política – sobre regimentos de agrupamentos musicais, instituições filosóficas e estéticas-; de ensino – anotações de aulas, cartas e contratos de professores -; e sociedade – programas de concertos, livros pessoas, atas que denunciam o 1

COTTA, André Guerra. Reflexões sobre a utilização de elementos descritivos do RISM no processo de catalogaçãio de acervos musicais. VI ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA, Juiz de Fora, 22-25 jul. 2004. Anais... Juiz de Fora: Centro Cultural Pró-Música, 2006, p. 85-94.

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simpósio de pesquisa em música 2006 repertório dos encontros e saraus. O original da Ópera Sidéria, o manuscrito da opereta Marumby e anotações de aulas ministradas pelo professor Nicolau dos Santos estão se desfazendo nos pacotes que amarrotam as gavetas.

Brasílio Itiberê II - sobrinho (1896-1967) Emiliano Pernetta (1886-1921)

Um Caderno de Documentação Musical, publicação de 1992, editado pela Secretaria de Estado da Cultura, é o único veículo que registra, ainda que com dados superficiais, as obras existentes no acervo Renée. Algumas obras paranaenses de significativa importância que constam no acervo segundo esse Caderno, são: Bento Mussurunga (1879-1970)

“Oração da noite” para 3 vozes femininas e meio soprano solista ou ainda para 4 vozes e contralto solista.

Silveira Neto

“Saudade Sombria” para canto, piano e conjunto instrumental / “Trova Rústica” para canto e piano.

Dario Vellozo

Tasso da Silveira

Luiz da Silva Bastos

“Hino de Morretes” “Hymno à Primavera”, com grande repercussão em 22 de setembro de 1912 – INP e Revista Fanal. Para canto e piano

“Canto Absoluto” para 4 vozes mistas ou para 4 vozes mistas mais orquestra/ “Contemplação” para 3 vozes iguais ou para quatro vozes mistas ou ainda pra orq. de câmara e 3 vozes femininas/ “A dor meu Senhor” para 4 vozes mistas/ “A infinita vigília” para 3 vozes iguais

Jayme Ballão

Domingos Nascimento “Himno do Paraná” para canto e piano

“A todo o panno: sambinha final” / “O amor tem fogo” / “A batuta da Avenida”. Todas para canto e piano.

Benedito Nicolau dos Santos

Augusto Stresser

Léo Kessler (1882-1924)

João Itiberê da Cunha (1870-1953) Emiliano Pernetta (1886-1921)

“A vovozinha”, uma opereta infantil em 3 atos. Sua estréia foi em 13 de maio de 1913, no antigo Clube Literário de Paranaguá. E tão logo representada, em 1921, nas cidades de Ponta Grossa e Curitiba.*

Silveira Neto

Dario Vellozo

“Papilio Innocentia”, inspirada em Inocência de Taunay, é uma scena lírica. Obra de 1917.

Uma “Cantata”, comemorativa a chegada do corpo de Brasílio Itiberê da Cunha. Encontra também com o título do compositor homenageado.Em 1913. Expõe temas do próprio Brasílio. “Flor de Lótus” para Canto e piano

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SIMPEMUS3

Jayme Ballão

Domingos Nascimento

“Sidéria” ópera em 3 atos. Orquestrado pelo suíço Léo Kessler.

“A um lyrio” barcarola – canto e piano

“Marcha Thiumphal”, por ocasião da posse do Sr. Carlos Cavalcanti no cargo de presidente do Estado. Kessler publicou uma transcrição para piano excessivamente simplificada. “Opereta Marumby”, libreto também do compositor, ambientado em uma confeitaria da Rua das Flores. Ópera de costumes paranaenses. Sua estréia foi em 19 de dezembro de 1928, no Teatro Guaíra, pelo Grupo Teatral da Sociedade Renascença (companhia articulada por Salvador de Ferrante).*

A tabela construída privilegia as canções, que são em sua totalidade poemas simbolistas musicados por compositores paranaenses – entendese por paranaenses compositores nascidos aqui ou que se estabeleceram na então capital emancipada. São hinos, óperas, operetas e canções, com construções musicais clássicas, que nos fazem questionar o uso que faziam dessa música. A simplicidade da forma musical nos faz entender que a música servia como veículo de propagação das idéias agregadas aos poemas empregados nessas obras vocais, figurando de forma secundária. Sempre com caráter de marcha, eles parecem anunciar uma revolução, instituir uma mudança na forma de pensar, embutindo idéias do pensamento de Pitágoras, dos gregos e egípcios, e agindo “visualmente” para a disseminação de idéias anticlericais. Outra informação que confirma essa intenção política é o alcance social que algumas dessas obras tiveram. O Hymno à Primavera, de Dario Vellozo e Luiz da Silva Bastos, datado de 22 de setembro de 1912, gozou de grande repercussão e foi executada durante anos na Escola Normal durante as aulas de música e em todas as três edições da Festa da Primavera (1911, 1912 e 1913). Além da análise, identificação, descrição e restauração desse acervo, faz-se necessário um novo arranjo físico. Uma das sugestões que trago com este trabalho é a acomodação desse material digitalmente, como já realizado com o Acervo do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro1, em 2005.

Mas o desinteresse no acervo Renée Frank e a impossibilidade de iniciativa pública de construção de um acervo digital para as obras, fica mais evidente quando visitamos o site do Museu. Neste, no link que direciona o pesquisador a uma breve descrição das coleções que o arquivo reúne e abriga, nem mesmo sucintamente o acervo de partituras é citado. O referido site limita-se a numerar os acervos fotográficos, de vídeo, cinematográfico e de áudio. Sobre as publicações diz que possui poucas com “informações sobre música” e outras áreas do conhecimento artístico.2 Vale reiterar a preocupação com o término do processo de identificação desse acervo. Muitas das obras que constam no catálogo não foram encontradas, e outras tantas lá presentes não estão listadas no referido Caderno de Documentação Musical da Secretaria de Cultura. Somente o término da sistematização documental dará mais subsídios para afirmar com precisão o valor histórico desses impressos musicais, as escolas composicionais e o verdadeiro propósito dessas músicas no cenário de uma Curitiba com pouco mais de 50 mil habitantes.

pela Petrobras, no ano de 2005. Deste trabalho resultou um site que disponibiliza parte das imagens recolhidas (www.acmerj.com.br) e um DVD-Rom, que além de conter as ilustrações do site, também disponibiliza outros documentos. 2

1

Projeto com a participação dos musicólogos Antonio Campos Monteiro Neto, Marcelo Hazan e André Cotta, patrocinados

Site do Museu da Imagem e do Som (http://www.pr.gov.br/mis/acervo.html)

simpósio de pesquisa em música 2006

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Referências COTTA, André Guerra. Reflexões sobre a utilização de elementos descritivos do RISM no processo de catalogação de acervos musicais. VI ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA, Juiz de Fora, 22-25 jul. 2004. Anais..., Juiz de Fora: Centro Cultural Pró-Música, 2006, p.85-94. Dicionário Histórico-geográfico do Paraná. Editora Livraria do Chain; Banco do Estado do Paraná. Curitiba: 1991. 654p. PARANÁ. Secretaria Estadual de Cultura. Coordenadoria de pesquisa e documentação. Biblioteca Renné Devrainne Frank. Cadernos de Documentação Musical. Curitiba: Departamento de Imprensa Oficial do Estado, 1992. 75p. PARANÁ. Secretaria Estadual de Cultura. Coordenadoria de pesquisa e documentação. Cadernos de Documentação Musical: Bento Mossurunga (1879-1970). 1982. 62p. PARANÁ. Augusto Stresser. Boletim Informativo da Casa Romário Martins. Curitiba. 1992. 32p. RIO DE JANEIRO. Acervo Musical do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Movimento Produções Artísticas, 2005. 1 DVD-ROM.

Música: linguagem formadora de identidades sociais Auro Sanson Moura Universidade Federal do Paraná Resumo Para a maioria das pessoas, não há dúvidas. Ouvir música é um dos grandes prazeres que se pode ter. Mas que poder é esse que a música tem de emocionar as pessoas ? O que faz com que um punhado de notas, sons ou ruídos, possa ser tão atraente aos ouvidos? O que é que a música tem de tão especial? Ou ainda, que relação temos com a música, que a faz tão importante para cada um de nós? Será que ela pode ser considerada uma forma universal de linguagem? E mais ainda, será que a música pode mesmo ser considerada uma linguagem? Por que ela une algumas pessoas ao mesmo tempo em que é motivo de discórdia entre outras? Como podemos sentir a intenção do compositor quando ouvimos uma obra? Ou como é que podemos interpretar o que ouvimos? Além de expressar nossos sentimentos, a música pode também evocar estados afetivos e comportamentais, como lembranças (emoções) da infância, de momentos que tiveram alguma importância na vida da pessoa, ou no caso dos estados comportamentais, algo que pode estimular a pessoa a ter determinadas reações, como alegria, melancolia, euforia, entre outros. Qual seria sua relevância na formação de nossa identidade? Até que ponto ela pode nos influenciar? Se pudermos pensar na música como uma forma ativa de linguagem, que pode transmitir informação, podemos fazer uma ponte entre essas informações e o gosto musical. A vivência musical é com certeza um dos caminhos (não o único) para o aumento do nível cultural da população e talvez um dos mais acessíveis, apesar de ainda ser, de certa forma elitizada. É possível que a escola seja utilizada também como um meio de atingir o aluno no ponto certo, a vontade de aprender sobre assuntos de seu interesse. Um exemplo específico aqui abordado será o dos surdos; como e onde se situam nessa busca interminável por uma própria identidade. A música pode ser usada nesse processo de inserção do indivíduo à sociedade e os profissionais podem (e até devem) ter isso como objetivo. Mas além das crianças em situação de risco, podese utilizar técnicas que envolvam música, para crianças e/ou pessoas com deficiências das mais variadas, no processo de socialização e formação da identidade desses indivíduos.

Para a maioria das pessoas, não há dúvidas. Ouvir música é um dos grandes prazeres que se pode ter. Apesar de algumas diferenças, todos concordam que a música exerce um papel muito importante em suas vidas, seja acompanhando os trabalhos do dia-a-dia, seja como objeto de estudos mais aprofundados, ou mesmo quando se trata da principal fonte de renda de um músico profissional. Além desses apontamentos, ainda pode-se fazer uma distinção de classes através do repertório musical escolhido. Por exemplo, normalmente, os indivíduos mais instruídos, com uma melhor formação cultural, terão preferência por gêneros musicais melhor construídos, com maior carga de informação e, assim dizendo, mais complexos. Por outro lado, as pessoas com menor nível de instrução tendem, na maioria das vezes, a preferir gêneros musicais de fácil compreensão. Isso não pode ser afirmado como uma verdade absoluta, mas é o que tem sido observado na maioria das vezes. Muito provavelmente, isso ocorre devido ao próprio acesso à informação, pois as pessoas podem escolher o que ouvir, entre vários estilos e com

algum embasamento. Infelizmente, não só na música, somente poucos têm tido a chance de se beneficiar de obras e/ou peças importantes da arte, que acaba sendo vista como de “posse” de uma elite intelectual. A educação, de um modo geral, pode alterar esse panorama. Este trabalho pretende criar uma relação entre a música e a formação da identidade pessoal e também da identidade social, isto é, a identidade individual no contexto de determinados grupos. Também pretende verificar a função da música como meio de melhoria de nível sócio-cultural, inserção na sociedade, ou apenas como forma de lazer das pessoas em geral. Um exemplo específico aqui abordado será o dos surdos; como e onde se situam nessa busca interminável por uma própria identidade, não a de deficiente, mas sim a de criança, de adolescente e de cidadão. Definindo identidade e linguagem Segundo John Sloboda, “as crianças simplesmente adquirem o conhecimento através de suas experiências sociais diárias. Conseqüentemente, tal conhecimento tende a ser universal em

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simpósio de pesquisa em música 2006 uma cultura, e constitui a base sobre a qual as habilidades mais específicas serão construídas”1. A partir dessa afirmação, podemos tentar entender a construção dessas habilidades específicas (por exemplos os processos cognitivos realizados para aquisição de linguagem, fala, modelos comportamentais, entre outros) como um passo para a formação de uma identidade, a partir do momento em que a pessoa, criança, adolescente, começa a descobrir novas maneiras de se comunicar, através dessa nova habilidade adquirida. Para tanto, teremos que compreender o termo identidade de uma maneira um pouco mais abrangente, como fatores que determinam a maneira com que a pessoa se relaciona, age ou pensa. Outra maneira de compreender o conceito de identidade é imaginar que vários outros tipos de identidades acabam por formar uma identidade geral do indivíduo. Alguns estudiosos como Folkestad e Hargreaves, entre outros, já mapearam alguns tipos, como identidade pessoal, identidade social, identidade cultural, identidade étnica, identidade nacional, que serão sucintamente definidos a seguir: • Identidade pessoal (características idiossincráticas) é talvez a mais complexa de ser descrita, mas é ela que normalmente se sobressai às outras, devido aos seus fatores determinantes para a caracterização e/ou diferenciação dos indivíduos. • A identidade social é normalmente formada a partir de grupos de convívio, através de interesses comuns, ou amizades. É provavelmente nesse nível de identidade que a música possa ter um papel fundamental, principalmente em fases como a adolescência, em que as descobertas são muitas e muito intensas, quando há uma propensão maior à influência dos outros, já que a identidade pessoal ainda não está totalmente formada. Podemos dizer que a identidade social se trata das características que as pessoas adquirem a partir de relações sociais, no convívio com outras pessoas. • A identidade cultural depende de fatores muitas vezes mais antigos do que a própria civilização (ILARI, 2006), sendo possível, inclusive, que um povo tenha mais de uma identidade cultural (FOLKESTAD, 2002), já que algumas culturas são muito mais antigas que as próprias nações. Também porque uma cultura pode ser formada a partir de outras várias culturas, e em cada grupo social, em cada família, 1

“Children simply acquire the knowledge through their everyday social experiences. In consequence, such knowledge tends to be universal in a culture, and is the ground on wich more specialized skills may be built.” SLOBODA, John A. The musical mind; The cognitive psychology of music. – Music as a cognitive skill. New York: Oxford University Press, 1985. Tradução do autor.

há costumes diferentes. Seria interessante explanar sobre o conceito de cultura, citando algumas definições cabíveis. Citando Geertz, quando diz que “a cultura é melhor vista não como complexos de padrões de comportamento [...], mas como um conjunto de mecanismos de controle [...] para governar o comportamento”, pode-se entender a cultura como uma maneira interpretar os acontecimentos, um modo de possibilitar que o homem encontre “sentido nos acontecimentos através dos quais ele vive”2. • A identidade étnica, que varia de acordo com as descendências e características físicas é algo imutável. Mais do que apenas características genéticas, a identidade étnica depende da cultura familiar, ou até mesmo da identificação do indivíduo com sua terra, seu povo, ou dos seus descendentes. • A identidade nacional é relativa ao país de origem ou residência por tempo prolongado, continente e características geográficas, entre outras. Difere da identidade étnica por não se basear tão fortemente em características como raça, descendências, entre outras.

A soma de todas estas identidades irá constituir a identidade pessoal do ser humano. Dependendo da situação e do momento da vida, um tipo de identidade pode se sobressair. A linguagem e a música estão diretamente ligadas à questão da identidade e, por esta razão, são discutidas a seguir. A música é linguagem? A função primordial da linguagem é a comunicação, e é através fala, a maneira mais comum de comunicação entre os humanos, que estamos acostumados a obter informações, nos comunicar com outros da mesma espécie. Mas ela não pode ser encarada como a única forma, já que temos consciência da existência de outras formas “não-faladas” de comunicação. É o caso da linguagem de sinais, que utiliza símbolos para representação de fatos e/ou objetos e que nada tem em comum com a língua (aqui no caso a língua portuguesa) falada, tanto que a oralização de deficientes auditivos que se utilizam dessa linguagem, é extremamente difícil, não só pela deficiência, mas pelo desconhecimento das significações das palavras e sons. Para Vygotsky, “a atividade [...] de criação de significado é a precondição para a criação de linguagem” 3.

2

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. LTC, 1989.

3

NEWMAN, Fred; HOLZMAN, Lois. Lev Vygotsky – cientista revolucionário. São Paulo: Loyola, 2002, p. 131.

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Então como podemos sentir a intenção do compositor quando ouvimos uma obra? Ou como é que podemos interpretar o que ouvimos? Ao ouvirmos uma música, estamos expostos a rajadas de melancolia, de fúria ou de alegria, e sentimos tudo isso. Provavelmente, é por que de alguma maneira as informações estão chegando até nós; está havendo uma forma de comunicação entre o espectador e o compositor. De que maneira pode haver comunicação? Através da linguagem. Falada ou escrita, através de sinais ou telepatia; se há comunicação, há algum tipo de linguagem envolvida. Na própria música, há trechos de melodias analisadas que recebem nomes de figuras gramaticais, como frase, períodos, entre outros, dando ainda mais a sensação de que música e linguagem estão muito próximas. Se pudermos pensar a música como uma forma ativa de linguagem, que pode transmitir informação, podemos fazer uma ponte entre essas informações e o gosto musical, que na maioria das vezes sofre grandes influências na adolescência, mesma época em que a identidade pessoal tende a se desenvolver mais efetivamente, devido também à saída da infância. A música enquanto linguagem Quando a gente entende uma coisa assim, talvez nem seja necessário falar. Talvez a música, em si, dê conta do que há para dizer 4.

Que poder é esse que a música tem de emocionar as pessoas ? O que faz com que um punhado de notas, sons ou ruídos, possa ser tão atraente aos ouvidos? O que é que a música tem de tão especial? Ou ainda, que relação temos com a música, que a faz tão importante para cada um de nós? Será que ela pode ser considerada uma forma universal de linguagem? E mais ainda, será que a música pode mesmo ser considerada uma linguagem? Por que ela une algumas pessoas ao mesmo tempo em que é motivo de discórdia entre outras? precisamos ter em mente que, quando vivenciamos música não nos relacionamos somente com matéria musical em si (altura, duração, intensidade, timbre, estrutura e expressão) e suas relações. Logo que ouvimos os primeiros sons de qualquer música, começamos a assimilá-los a partir de uma rede de 4

NESTROVSKI, Arthur. O livro da música. São Paulo: Companhia das letrinhas, 2000, p. 33.

significados construídos no mundo social. É no mundo social que definimos e convencionamos o que consideramos como sendo música e quais as funções e usos de determinada peça musical 5.

Contrariando Borges Neto (2005) em que, após uma longa explanação acerca do tema, conclui que música não é linguagem, e Voloshinov (em nome de Bakhtin) que diz: “Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental”, e ainda “A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação”, este trabalho pretende considerar a música como sendo também uma forma de linguagem, devido aos apontamentos anteriores, de que a música pode sim, ser uma forma de linguagem, não verbal, mas linguagem. O próprio Bakhtin diz em dado momento, após se dirigir à música como “fenômeno ideológico”, que “É impossível, [...] exprimir em palavras, de modo adequado, uma composição musical” 6, causando certa contradição em seu discurso. Assim, “não podemos deixar de refletir que música também é linguagem (não verbal), o que significa dizer que ela também se constitui condição de conhecimento e de ordenação de pensamento” 7. De acordo com Sloboda (1983), a música pode soar como uma espécie de expressão vocal das emoções; pode vir a provocar os mesmos estados afetivo-emocionais da linguagem falada. Ao considerar a música como linguagem, devemos pensar que ela é capaz de transmitir informações, causar emoção, assumir diversos significados, ser compreendida de maneira particular, pode estar associada a fatos ou acontecimentos, entre outros. A música muitas vezes parece conseguir expressar nossas emoções ou sentimentos. Fazendo um paralelo com o pensamento vygostkyano, quando da afirmação de que “as relações entre pensamento e palavra são, na linguagem da criação de significado, o instrumento-e-resultado”8, podemos imaginar que com a música haja essa mesma ligação. Segundo Georges Snyders, A música como linguagem é sem dúvida mais diretamente comovente do que a 5

DEL BEM, L. Ouvir música: novos modos de vivenciar e falar sobre música. In: SOUZA, J. Música, cotidiano e educação. Porto Alegre: UFRGS, 2000, p. 102.

6

VOLOSHINOV, Valentin (Em nome de BAKHTIN, Mikhail). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 38.

7

SEKEFF, Maria de Lourdes. De música e educação. Revista da Academia Nacional de Música, vol XIV. Rio de Janeiro: Sermograff, 2003

8

NEWMAN, Fred; HOLZMAN, Lois. Lev Vygotsky – cientista revolucionário. São Paulo: Loyola, 2002, p. 146.

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simpósio de pesquisa em música 2006 linguagem propriamente freqüentemente a ela”9.

dita,

mas

liga-se

Além de expressar nossos sentimentos, a música pode também evocar estados afetivos e comportamentais, como lembranças (emoções) da infância, de momentos que tiveram alguma importância na vida da pessoa, ou no caso dos estados comportamentais, algo que pode estimular a pessoa a ter determinadas reações, como alegria, melancolia, euforia, entre outros. Dependendo do estímulo enviado, haverá uma resposta emocional diferente. "A música é um canal fundamental de comunicação: ela fornece meios através dos quais as pessoas podem compartilhar emoções, intenções e significados, mesmo que suas línguas faladas sejam mutuamente incompreensíveis"10. Música e formação de identidade Se a música pode evocar sentimentos, nos levar a certos níveis comportamentais e influenciar tanto as nossas vidas, qual seria sua relevância na formação de nossa identidade? Até que ponto ela pode nos influenciar? Certamente, cada um deve ter um exemplo próprio. Aquele garoto que cantava na escola, o que seria dele hoje se não tivesse se entusiasmado com uma banda de rock, ou se não tivesse tido apoio dos pais para comprar sua primeira guitarra? Ainda estaria se dedicando à música? A música pode ter influência sobre a formação de identidade? A ansiedade dos adolescente em relação à sua identidade, e a procura de suas diferenças certamente não são coisas novas11

A música tem sido frequentemente usada como uma maneira de se construir e expressar identidade (Hargreaves et al, 2002), pois proporciona uma forma de expressão que as palavras nem sempre suprem. Talvez por isso ela seja tão importante quando da construção da identidade de uma pessoa; ao ouvir música, 9

SNYDERS, Georges SNYDERS, Georges. A escola pode ensinar as alegrias da música? São Paulo: Cortez, 1992, p97.

10

11

"Music is a fundamental channel of communication: it provides a means by which people can share emotions, intentions and meanings even though their spoken languages may be mutually incomprehensible"HARGREAVES, David J.; MACDONALD, Raymond A.R.; MIELL, Dorothy E. What are the musical identities, and why are they important? In: Musical Identities. New York: Oxford University Press, 2002, p. 1. Tradução do autor.

SNYDERS, Georges., op. cit., p149.

estamos absorvendo informações abstratas, que serão assimiladas de maneiras diferentes em cada um de nós. A música em si não forma a identidade das pessoas, ou de grupos, apenas faz a ponte entre as pessoas e os interesses comuns, mas realmente parece ser uma maneira de se afirmar como pessoa, deixando a infância para trás. Quando se escuta uma música assim, é como se a gente tivesse aprendido uma coisa que ninguém mais tira. É o que faz a gente ser do jeito que é12.

Música e identidade de grupos Quando se fala em identidade social, pode-se vir a pensar em grupos, em "tribos", ou momentos, fases da vida, como o que ocorre com adolescentes, em que a música tem um papel muito forte, determinando a que grupo um desses indivíduos pertence. A mídia também tem um grande poder de manipular as pessoas e desempenha um papel muito “importante” nesse sentido, ditando normas de conduta e modismos, moldando o comportamento das pessoas de acordo com as regras do sistema estabelecido pela sociedade em que se vive. A música pode estimular a chamada coerência comportamental (ROEDERER, 1998), fenômeno no qual ocorre um processo de equalização dos estados emocionais de um grupo. Trata-se, porém de um fenômeno mais raro, por depender da maneira como as informações musicais são recebidas e processadas por cada um. A familiaridade com a informação, treino e o gosto musical, as associações internas e todos os processos cognitivos ligados à motivação e aos estados afetivos que ela provoca, são fundamentais e definitivos para determinar o estado mental de cada indivíduo em um momento específico. Mas no geral, sabe-se que pessoas de um mesmo grupo tendem a comportar-se de maneira muito semelhante. Como cita Snyders, “sabemos da alegria que os jovens encontram em comunicar-se com outros jovens, com outras pessoas, com suas músicas, através de suas músicas”13. Se a música pode ser considerada linguagem, transmite informações, sentimentos, evoca estados afetivos, como ficam os indivíduos deficientes auditivos? Até que ponto essa deficiência irá resultar num afastamento dos grupos sociais de outros indivíduos ouvintes? Apesar da música “ouvida” ter uma forma subjetiva de transmissão desses já citados estados afetivos, ela então não pode ser transmitida também através das vibrações, baixas freqüências, que podem ser sentidas pelos 12

NESTROVSKI, ARTHUR. op.cit., p. 29.

13

SNYDERS, Georges. op. cit., p. 92.

280 surdos? Eles ficam alheios realmente a esse tipo de mensagens subjetivas? Estão à margem dessa constituição de identidade própria? Em uma experiência de convívio com adolescentes surdos, nota-se que em suas vidas falta algo que é muito importante na formação de todo jovem: a música. Normalmente é através de gostos comuns, como time de futebol, bandas preferidas, prática de esportes, que a maioria dos adolescentes forma seus grupos de amigos e não raramente, é influenciada em seus gostos pessoais. A música normalmente define alguns dos grupos em locais como escolas e bairros, entre outros, mas no caso desses jovens surdos, em que falta uma parte importante da formação inicial (a vivência musical), como se dá esse processo? Percebe-se que eles são muito suscetíveis à programação de TV, à moda, informações visuais, em geral. E é claro, o conteúdo da televisão, assim como a música pop, nem sempre é composto de material de alto nível, e isso ligado à memória quase que unicamente visual desses indivíduos, pode causar uma maior dificuldade de formar uma identidade própria, o que ocorre sim, mas de uma maneira típica dos portadores dessa deficiência, muitas vezes exaltando uma característica dos adolescentes em geral, uma condição submissa de aceitação de informações da mídia, e no caso dos surdos, de informações visuais que pouco acrescentam às suas pessoas. Música suas funções na sociedade De acordo com Allan Merriam (1964), a música pode ter diversas funções na sociedade, como por exemplo, a função de comunicação, em que o autor diz que a música não é uma forma universal de linguagem, mas uma linguagem direcionada a pessoas de uma mesma cultura. Quando Merriam cita a função de validação das instituições sociais e dos rituais religiosos, o autor sugere que é a música é um dos elementos que ditam o adequado e o impróprio na sociedade, além de ter o papel de divulgar lendas, mitos e preceitos religiosos. A música, nesses casos, pode servir como uma forma de doutrinamento, principalmente em se tratando de funções religiosas. Em algumas religiões, por exemplo, há muitos casos de uso de melodias famosas com letras reescritas, citando passagens bíblicas, ou ainda promovendo a crença em algum tipo de religião, como ocorre freqüentemente em igrejas evangélicas. Merriam cita o papel da música na contribuição para a continuidade e estabilidade

SIMPEMUS3 da cultura, além de uma outra função, a de integração na sociedade, que remete aos movimentos sociais, como o caso daqueles apoiados na cultura Hip Hop, ou mesmo em trabalhos desenvolvidos em locais como ONG’s. Esses movimentos tem como objetivo tirar das ruas, ou apenas do ócio, crianças ou jovens que demonstrem interesse pela música, ou que vejam na mesma uma oportunidade de melhoria de vida, tendo em vista principalmente o aspecto cultural, dentre outros. Música, identidade e trabalho social A idéia de identidade e formação de indivíduos pode remeter a uma forma de se tentar dar melhores condições para pessoas com problemas gerados pela má distribuição de renda, desigualdade social, entre outras situações que se fazem presentes na vida cotidiana do Brasil. Trabalhando música com crianças, jovens, ou mesmo adultos que normalmente não teriam acesso a esse tipo de informação, pode-se ter muitas boas surpresas, melhoria de vida, não somente de renda, mas também a questão de acesso à cultura, de novas expectativas na vida de um cidadão, uma nova visão de mundo. Algumas experiências tiveram êxito ao conseguir fazer com que crianças muito pobres, ou mesmo jovens em situação de risco, como usuários de drogas ou envolvidos com o tráfico e/ou criminalidade, tivessem acesso ao estudo de música, e conseqüentemente, pudessem vir a encontrar melhores condições de vida, incentivo ao estudo, bom desenvolvimento em outras áreas, melhor convívio familiar, e a própria dedicação a uma causa, tendo o aprendizado musical tanto como um meio de se chegar a algum lugar, ou mesmo uma finalidade. Como sugere Mário de Andrade: ainda não se percebeu na nossa terra que a cultura é tão necessária como o pão, e que uma fome consolada jamais não equilibrou nenhum ser e nem felicitou qualquer país14.

Essa “fome” de cultura pode ser saciada coletivamente, reunindo grupos de uma comunidade e oportunizando a integração, como diz Merriam: A música, então, fornece um ponto de convergência no qual os membros da sociedade se reúnem para participar de atividades que exigem

14

ANDRADE, Mário de. Oração de Paraninfo. In: Aspectos da música brasileira. São Paulo: Martins/MEC, 1974, p. 245.

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simpósio de pesquisa em música 2006 cooperação e coordenação do grupo (MERRIAM, 1964, p. 226).

Esse tipo de trabalho com função social pode ser desenvolvido com base na aprendizagem coletiva, usando a oralidade como meio de se chegar aos indivíduos, e fazer com que o aprendizado ocorra através da vivência musical, isto é, pela prática de música. A arte não é a única forma de se realizar trabalhos com uma função de socializar indivíduos, ou simplesmente dar nova motivação para viver. No entanto, é através dela e também do esporte que se tem obtido bons resultados, principalmente nos países mais pobres, com o mérito de não somente doutrinar, mas também dar chance de uma profissão e incentivar o cuidado com a saúde, além de incentivar a busca por novos conhecimentos, o auto-conhecimento, inclusive. A música pode ser usada nesse processo de inserção do indivíduo à sociedade e os profissionais podem (e até devem) ter isso como objetivo. Mas além das crianças em situação de risco, pode-se utilizar técnicas que envolvam música, para crianças e/ou pessoas com deficiências das mais variadas, no processo de socialização e formação da identidade desses indivíduos. Música e crianças especiais Muito tem se estudado sobre o ensino de música para crianças com algum tipo de deficiência, ou melhor dizendo, portadores de necessidades especiais. No entanto, é na escola especial que se nota a falta de preparo dos professores, e consequentemente, o baixo aproveitamento por parte dos alunos, que muitas vezes sequer percebem o despreparo dos profissionais. Uma das causas para tal despreparo, é a idéia de que as aulas de música, principalmente nos casos de alunos deficientes, são apenas momentos de recreação. Quando se fala no ensino de música para indivíduos portadores de necessidades especiais, geralmente exclui-se naturalmente os surdos, visto que para os mesmos, a música parece não ter utilidade. Como estão praticamente alheios à música, acabam por ter outros estímulos como ponto de referência durante o processo de formação de identidade. Tais estímulos (geralmente visuais) acabam determinando a formação de suas identidades, a de surdo e a de

adolescente, criança ou adulto (dependendo do período da vida em que estejam). Todos esses fatores tornam a formação de uma identidade consolidada muito mais difícil, já que todos esses conteúdos da televisão são momentâneos, desaparecendo na mesma velocidade e proporção com que surgem, deixando o indivíduo mais suscetível à variação de comportamento estimulada pela mídia e criando um padrão comportamental questionável, tanto no surdo quanto nos indivíduos em geral, o que é péssimo para a sociedade, que necessita de cidadãos pensantes e contestadores. Considerações finais A música como linguagem parece ser algo tão óbvio, mas ao mesmo tempo tão complexo de se explicar por meio de palavras. Quem nunca ouviu uma música e se emocionou? Ou como é que às vezes podemos entender o que a seqüência de notas de uma música instrumental está nos dizendo? Nem tudo parece necessitar de explicações teóricas, embasadas em milhares de teorias nada musicais, mas o homem parece gostar de complicar as coisas, ditando normas para que as pessoas precisem saber, por exemplo, que uma das formas de linguagem mais acessíveis para a transmissão da cultura entre diferentes povos (a música) não é linguagem. Claro que trata-se de uma definição mais subjetiva da linguagem, mas ainda assim, muito eficiente. A vivência musical é com certeza um dos caminhos (não o único) para o aumento do nível cultural da população e talvez um dos mais acessíveis, apesar de ainda ser, de certa forma elitizada. É possível que a escola seja utilizada também como um meio de atingir o aluno no ponto certo, a vontade de aprender sobre assuntos de seu interesse. As funções da música podem ser inúmeras, desde o prazer que sentimos por simplesmente ouvir uma música da qual gostamos, ao papel da música para a sociedade. Pode-se pensar em relação à transmissão de cultura, a possibilidade de utilizá-la como ferramenta poderosa para integração de deficientes ou pessoas em situação de risco a um grupo melhor estruturado, dentre outros. Todos esses certamente já seriam motivos mais do que suficientes para que a estudássemos muito mais a fundo.

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Referências BORGES NETO, José; Música é linguagem? In: I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS – SINCAM, Curitiba, 2005. Anais..., Curitiba: Editora do DeArtes, 2005. FOLKESTAD, G. National identity and music. In: MACDONALD, R.A.R.; HARGREAVES, D. J.; MIELL, D. E. Musical identities. New York: Oxford University Press, 2002. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. LTC, 1989. MACDONALD, R.A.R.; HARGREAVES, D. J.; MIELL, D. E. Musical identities. New York: Oxford University Press, 2002. NESTROVSKI, Arthur. O livro da música. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2000. NEWMAN, Fred; HOLZMAN, Lois. Lev Vygotsky: cientista revolucionário. São Paulo: Edições Loyola, 2002. ROEDERER, J.G. Introdução à física e à psicofísica da música. São Paulo: EDUSP, 1998. SCHAFER, Murray R. O ouvido pensante. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. SEKEFF, Maria de Lourdes. De música e educação. Revista da Academia Nacional de Música, v. 14, 2003. SLOBODA, John A. The musical mind: the cognitive psychology of music. New York: Oxford University Press, 1985. SNYDERS, Georges. A escola pode ensinar as alegrias da música? São Paulo: Cortez, 1992. VOLOSHINOV, Valentin (Em nome de BAKHTIN, Mikhail). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1986.

| sessão de pôsteres | A aplicação de elementos modais nas aulas de música Luís Bourscheidt Universidade Federal do Paraná Esta pesquisa em andamento tem como tema central a aplicação de elementos da música modal com crianças entre 7 e 9 anos de idade. A investigação pretende verificar a utilização destes elementos como forma de ampliar as possibilidades musicais e o universo sonoro dessas crianças, hoje freqüentemente restrito aos modos Maior e menor. Por meio deste trabalho, busca-se discutir a pertinência desse tipo de material musical, questionando o que ele pode acrescentar ao ensino da música e à prática musical. Também serão analisados e descritos os aspectos cognitivos da percepção destas escalas modais nas crianças, num contexto de prática instrumental e vocal. Assim sendo, serão utilizados basicamente os métodos Orff e Orff/Wuytack, por se adequarem perfeitamente a este tipo de sonoridade. A metodologia utilizada será a Pesquisa-ação, tendo como categorias de análise a criação, a apreciação e a interpretação. Para a pesquisa empírica, serão planejadas 8 aulas onde estes elementos serão aplicados – conforme as categorias acima – e, posteriormente, os dados serão analisados e descritos em forma de relatório. A coleta de dados se dará pela observação das aulas e através de entrevistas semi-estruturadas com as crianças do grupo.

Meus caros pianistas Raimundo Fortes Filho, Diana Santiago (orientadora) Universidade Federal da Bahia “Meus caros pianistas” trata-se de um projeto de doutorado em andamento na área de execução musical (piano) na Universidade Federal da Bahia. O compositor brasileiro Francis Hime, através de conversas com pianistas eruditos, descobriu o quanto eles gostariam de tocar músicas populares, não o fazendo por ausência de partituras. Escreveu trinta arranjos de suas peças mais significativas e melhor adaptáveis à linguagem do piano, que foram gravadas em seu Songbook lançado em 2001 por Almir Chediak. O objetivo deste projeto consiste em encontrar elementos de conexidade entre o erudito e o popular, através de possíveis relações intertextuais com compositores brasileiros e eruditos, na análise dos trinta arranjos pianísticos de Hime. A formação erudita de Hime, a composição idiomática na produção dos seus arranjos pianísticos, a textura orquestral e o trabalho em conciliar a rítmica do samba e do samba-canção com uma forma de acompanhamento contrapontístico constituem pontos de partida para o desenvolvimento dessa pesquisa.

Maracá: instrumento da feitiçaria da pajelança indígena à cura maranhense Cláudia Padilha Música é ritmo, som e magia. Ritmo é pulsação vital, expansão e contração. Som é energia, vibração. Ritmo e som dão vida, expressão e espírito à música. A música convoca o espírito criador, a magia. Da magia original nasceu a ciência, a religião e a arte. Em muitas religiões, o som pode ser um elo de comunicação do mundo material com o mundo espiritual e invisível. Ele tem um poder mediador e hermético. Assim, os instrumentos musicais são vistos muitas vezes como objetos mágicos. Os instrumentos são vozes. E são sagrados. O maracá é um instrumento de feitiçaria indígena e possui significado místico. Seu som imita uma cascavel. A maior parte dos grupos indígenas associa seu som a poderes mágicos. São, portanto, os instrumentos preferidos dos pajés, mediadores entre o mundo humano e o sobrenatural. Nas sociedades indígenas, magia e religião estão interligadas.

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O maracá é um instrumento religioso, que sinaliza poder espiritual, se usado num contexto ritual, em comunicação com entidades espirituais. Nas práticas de cura, enxota do corpo da vítima os espíritos malignos, sendo um importante elemento da comunicação xamânica. No Maranhão existe um ritual associado a práticas terapêuticas, curativas, a cura maranhense, tambor de curador ou pajelança de negro. Um conjunto heterogêneo de práticas e representações que reúne elementos do catolicismo popular, das culturas indígenas e do Tambor de Mina. Em São Luís é também chamado de “Brinquedo de Cura” e é realizado pelo Mestre, Pajé ou Curador. Perseguidos pela polícia até a década de 50, os curandeiros eram chamados de feiticeiros e acusados de fazer “magia negra”, e o curandeirismo era encarado como uma prática ilegal da medicina. Segundo a cosmologia de várias religiões afro-brasileiras, existem na natureza entidades não visíveis, constituídas de energia e com grandes poderes. No Maranhão, os caboclos encantados são agrupados em “linhas”, conjunto de espíritos de uma mesma família. As linhas se dividem em água salgada, da mata, água doce e astral – domínios da natureza. A “linha de cura” é a linha de água doce e os pajés são chamados de “batedores de maracá”. Na pajelança maranhense a música é essencial, sem ela não há pajelança. Os instrumentos usados são pandeiros, cabaça e maracá, junto com as palmas. Existe uma recorrência de perfis rítmicos e melódicos e um estilo vocal característico. O ritmo da pajelança se chama toque e a música e letra, doutrina. Usado pelo curador quando recebe seu mestre de cura ou um caboclo curador, o maracá é o símbolo maior da pajelança, que também é conhecida como linha de maracá.

O Fino da Bossa e Zimbo Trio: uma perspectiva histórica e suas repercussões na moderna música popular brasileira (1965 - 1967) Cristina Gomes Machado Universidade do Estado de Santa Catarina O presente trabalho tem a intenção de apresentar nosso projeto de pesquisa em andamento que irá analisar a participação do grupo Zimbo Trio no programa O Fino da Bossa no período de 1965 a 1967, tendo em vista a Moderna Música Popular Brasileira (MMBP). Primeiramente, julgamos necessário conhecer o momento histórico e a reestruturação que a indústria cultural brasileira passou na década de 60, pois nesse contexto a música passa a ser um veículo de discussão ideológica. Serão abordadas questões como: a necessidade de reorganizar as bases de expressão e circulação social da música popular, a simultaneidade de uma explosão criativa procurando não negar a tradição (samba urbano dos anos 30), a dúvida de qual tradição a ser seguida, as contradições do engajamento político perturbado pelas demandas da indústria cultural, a preocupação dos compositores e intelectuais com a Jovem Guarda inserida no mercado musical e como os efeitos do novo circuito comercial musical da canção engajada e nacionalista faziam parte desse cenário, levando a uma conquista de autonomia no campo musical popular. O pensamento intelectual de esquerda deste período foi marcado pelo debate sobre o papel do nacional e do popular na cultura brasileira. As esquerdas acreditaram ser possível atingir uma transformação radical pela via revolucionária através da conscientização das camadas populares e esta seria alcançada tendo a cultura como seu principal instrumento. Caberia às artes e aos artistas politicamente “engajados” a tarefa de levar o conhecimento crítico ao povo incentivando-o a lutar pela revolução. A idéia de “revolução brasileira”, tendo como base a ação dos camponeses e das massas populares marcou o debate político e estético entre os anos de 1964 e 1968. Vale dizer que não pretendemos fazer um estudo detalhado, mas apenas apontar dados imprescindíveis para um melhor entendimento do contexto. Por outro lado, é fundamental entender o que é a Moderna Música Popular Brasileira, sua proposta e implicações: derrubadora dos mitos tradicionais da música popular brasileira, sempre representados nas canções louvando a beleza do morro e do sertão, da vida simples e plena do favelado e do sertanejo, numa empostação retórica nacionalista. Como contraponto, tínhamos um público que se apresentava com um gosto mais refinado e constituído em sua maior parte por universitários, intelectuais, jornalistas, familiarizado

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com as questões políticas e sociais tais como a injustiça e a desigualdade, abrindo novas propostas e novos horizontes na sua construção e historicidade Também não podemos nos furtar de mencionar a idéia da “linha evolutiva” ou a busca de uma evolução orgânica da MMPB como conceito na Música Popular Brasileira. Essa idéia expressa pelo compositor Caetano Velloso em 1966, em entrevista à Revista Civilização Brasileira, remete à Bossa Nova como referência moderna nessa "linha" na medida em que, rompendo com o tradicionalismo, esse movimento legitima e revitaliza a MPB, dando continuidade à sua tradição (QUINTELA, 2004). Por fim, cabe situar o programa O Fino da Bossa, lugar eleito como palco da consagração da MMPB como um fenômeno “de massa”, atingindo um público eclético, amplo e variado, assim como seu impacto e importância no cenário artístico musical e suas reverberações até os dias de hoje. Citando Marcos Napolitano: O Fino da Bossa abria caminho para a superação do impasse de conciliar comunicação e expressão, qualidade e popularidade, mercado e engajamento, levando a uma solução momentânea as dicotomias lançadas pela eclosão da Bossa Nova. (1998: 303) É importante notar os pólos norteadores da conduta musical aplicada no repertório dos programas e adotada pelo Trio, sendo este co-participante na elaboração dos números musicais da cantora Elis Regina e outros artistas, compositores e intérpretes convidados. Tal análise será feita a partir de entrevistas com os próprios músicos do Zimbo Trio e demais participantes do programa, e da eleição de alguns temas musicais analisados sob o ponto de vista de arranjo e concepção musical daquele momento, valendo-nos basicamente de três CDs: Elis Regina no Fino da Bossa – Vol. I, II, III, coletânea de alguns programas (gravação ao vivo). Referências AMORIN, Edgard Ribeiro de. Televisão – a fase musical da TV Record. Revista D’art, n. 8, 2001. CAMPOS, Augusto de. Informação e redundância na música popular de vanguarda. In: Balanço da bossa e outras bossas, São Paulo: Perspectiva, 1978. GALVÃO, Walnice N. MMPB: uma análise ideológica. Saco de gato: ensaios críticos. São Paulo, Duas Cidades, 1976. LINS E BARROS, Nelson. Música popular e suas bossas. Movimento, n. 6, 1962. _____ Bossa nova: colônia do jazz. Movimento, n. 11, 1963. MELLO, Zuza Homem de. Programa do Zuza e O Fino da Música. São Paulo, 1981. NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Anna Blume, FAPESP, 2001. _____ O conceito de MPB nos anos 60. História: Questões e Debates, n. 31, 1999 (2000), p. 11-30. _____ A canção engajada no Brasil: Entre a modernização capitalista e o autoritarismo militar (1960/ 1968). Revista Ciência Hoje, 24/25, ago/1998. _____ A arte Engajada e seus Públicos (1955/1968). Estudos Históricos, Rio de janeiro, n. 28, 2001. _____ A idéia de linha evolutiva na música popular brasileira – 1962/1967. II SIMPÓSIO LATINO-AMERICANO DE MUSICOLOGIA, Curitiba. Anais..., Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1998. PAIANO, Enor. O berimbau e o som universal: lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1994.

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Pequeno panorama utilização da viola e da rabeca no fandango dos litorais sul de São Paulo e norte do Paraná Daniella da Cunha Gramani Universidade Federal do Paraná No fandango atual, os instrumentos mais utilizados são os de corda (viola e rabeca), percussão (adufo ou pandeiro e tamanco) e a voz. No entanto cada região guarda suas peculiaridades que vão desde a inserção de outros instrumentos quanto a características de construção e execução diferenciadas. A viola é instrumento presente em toda a região. É chamada de viola branca, viola cabocla ou viola de fandango. Há variações quanto à forma de construção e ao número de cordas. A maioria das violas de fandango possui uma meia corda, cuja cravelha está no corpo do instrumento. Esta meia corda é chamada de turina, cantadeira ou piriquita e dá a referência de tonalidade do canto para o violeiro.

Número de construtores Morretes Paranaguá Guaraqueçaba Cananéia Iguape

1 4 4 5 4

Forma de construção Cocho Fôrma x x x x

x x

Número de cordas 10 8 8 7 9/10

Afinação Pelas três x x

Turina

Intaivada

Pelo meio

-

x x x x

x x

x x x

Também são encontradas na região três afinações, chamadas “pelo meio”, “pelas três” e “intaivada”, onde a diferenciação não está somente na afinação das cordas, mas também no posicionamento dos dedos no braço da viola. Vale ressaltar que no fandango basicamente são utilizados os acordes de função tônica e dominante e a tonalidade pode variar. A rabeca é utilizada para acompanhar a melodia ou para realizar pequenos contracantos. Normalmente só há uma rabeca tocando por vez. Assim como a viola, possui especificidades em cada região. Outros instrumentos também utilizados no fandango da região: pandeiro, adufo, tamanco, surdo, timba, ganzá, triângulo, zabumba, machete, bandolim, cavaquinho e violão. Os dados aqui apresentados foram coletados em uma pesquisa realizada entre maio e julho de 2005 pela equipe do Projeto Museu Vivo do Fandango, um projeto realizado pela Associação Caburé. A equipe do projeto era composta por Alexandre Pimentel e Joana Correa (coordenação geral), Daniella Gramani (coordenação Paraná), Dauro Marcos do Prado (coordenação São Paulo), Rogério Gulim e Osvaldo Rios (direção musical). Fotos: Felipe Varanda

Referências BRITO, Maria de Lourdes da Silva; RANDO, José Augusto Gemba (org.) Fandango de mutirão. Curitiba: Gráfica Mileart, 2003. CÕRREA, Joana; GRAMANI, Daniella; PIMENTEL, Alexandre (org). Museu vivo do fandango. Rio de Janeiro: Associação Caburé, 2006. DIEGUES, A. C. (org.) Enciclopédia Caiçara. Volume 5: Festas lendas e Mitos caiçaras. São Paulo: HUCITEC, NUPAUB, CEC/USP, 2006.

| conferência |

Um objeto fugidio: voz e conhecimento musicológico Elizabeth Travassos Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO

Objeto de múltiplos discursos – de especialistas e de leigos –, a música ocupa um lugar sui generis nas humanidades, onde se constituiu uma área ‘musicológica’ integrada por várias disciplinas (História da Música, Análise Musical, Etnomusicologia, Educação Musical). Algumas clivagens importantes separam as perspectivas consolidadas nessa área. No pólo ‘formalista’, os estudiosos debruçam-se sobre a ‘música’ concebida como ‘objeto autônomo’ ou ‘relativamente autônomo’ dos ‘contextos sociais e históricos’ em que se origina; no pólo ‘contextualista’, sublinham-se os elos que ligam o objeto musical ao mundo social e às circunstâncias históricas. Reproduz-se, à primeira vista, a dicotomia entre perspectivas internalista e externalista, que se oferecem como alternativas na abordagem de outras produções simbólicas, como a literatura. Contudo, elas não padeceriam do problema da articulação musicológica, identificado por Charles Seeger – a saber, o problema das limitações intrínsecas à linguagem verbal quando seu referente não pode ser ‘traduzido’ verbalmente. Para ilustrar o estatuto paradoxal de objeto de difícil apreensão musicológica, em torno do qual emergem, porém, múltiplos discursos, trago à discussão o caso da voz. Reivindicada por especialistas no campo musical – cantores, professores de canto e de técnica vocal – e fora dele – médicos, fonoaudiólogos, psicanalistas, entre outros –, a voz é, de modo exemplar, um fenômeno de natureza ‘bio-psico-social’ que convoca, inevitavelmente, diversos saberes.

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