Análise Comparativa Estratégias de Desenvolvimento Urbano Brasil x China

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Descrição do Produto

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FUNDAÇÃO INSTITUTO DE ADMINISTRAÇÃO FIA

"Urbanização, Accountability e Inclusão Social em Perspectiva Comparada: Brasil x China"

São Paulo

2011

Luis Eduardo Diaz Toledo Martins

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"Urbanização, Accountability e Inclusão Social em Perspectiva Comparada: Brasil x China"

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO APRESENTADO À FUNDAÇÃO INSTITUTO DE ADMINISTRAÇÃO - FIA PARA OBTENÇÃO DO CERTIFICADO DE CONCLUSÃO DO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU - MBA EXECUTIVO INTERNACIONAL.

ORIENTADOR: PROFESSORA NILDES PITOMBO LEITE

São Paulo 2011

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Dedicatória

Dedico este trabalho à trajetória incansável da Professora Dra. Ermínia Maricato, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, na luta pelo direito de todos os brasileiros à uma moradia digna.

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Agradecimento

Agradeço meus pais, Moisés e Eloisa, aos meus filhos Juan Mitsuo e Veronica Mei, pelo apoio e pela paciência nestes meses de ausência, a Luciana Jorge Rodrigues pelo apoio incondicional, a Bruna de Oliveira Santos Pinto pela escuta dedicada, e a Monica Fix Korbivcher, pelo incentivo. Especialmente agradeço à professora Nildes Pitombo Leite, minha orientadora neste trabalho, pelo apoio dedicado e atencioso.

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Resumo Este trabalho tem o objetivo de analisar o contexto no qual ocorreu a intensa urbanização na China nos últimos 30 anos, em

tentativa de estabelecer bases de

comparação das estratégias do rasil e da China no que a se refere ao desenvolvimento urbano visando a melhoria da Qualidade de Vida, Planejamento, Inclusão Social, Participação Pública e a Proteção do Meio Ambiente nas cidades. Neste processo, foram abordadas a base legal e as estratégias de implementação de políticas das cidades no tocante às suas propostas de suporte à atividade produtiva e à estruturação do desenvolvimento urbano. A seleção dos dois países foi motivada pela experiência de extensão do curso da FIA para a China, quando pudemos verificar contrastes intensos sobre as estratégias de inclusão habitacional da massa de migrantes decorrente dos processos industrializantes nos dois países em desenvolvimento. Verificou-se válida a análise comparativa, pois embora se tratem de realidades com inúmeras diferenças, apresentam desafios similares, uma vez que ambas as nações lidam com o enorme desafio de incluir socialmente populações historicamente marginalizadas, e se propõe a abordar um debate sobre quais as razões pelas quais o Brasil, mesmo contando com uma renda diversas vezes maior, não conseguiu superar a China no que tange ao provimento do direito à moradia para sua população mais carente, incluindo assim este grupo dentro das práticas de mercado.

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Abstract This work has the objective of analysing the context on which the intense urbanization of China has taken place for the last thirty years, alongside comparing the different strategies applied by Brazil and China on improvement of Living Standards, Urban Planning, Social Inclusion, Public Participation and the Protection of the Natural Environment. In this process, there is an effort of contextualizing the legal frame and the implementation strategies of local policies of support to the productive activity. The selection of the two countries was motivated by this Course extension to China, when we as a group could observe the immense contrasts of the housing policies for the inclusion of migrants due to intense industrialization process of the two developing nations. The comparison has shown itself valid, as although these countries are strikingly different in many aspects, they deal with similar challenges regarding the problems of fast urban growth, and we are inevitably faced with the question of why Brazil, with an income per capita many times larger than China, has not been able so far to include it’s most poor population within the realm of dignified housing, and therefore, including this group into plain market rules.

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SUMÁRIO

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INTRODUÇÃO................................................................................................................1

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1.1 Problema de Pesquisa............................................................................................2 1.1.1 Questões de Pesquisa.....................................................................2 1.2 OBJETIVOS..........................................................................................................2 1.2.1 Geral................................................................................................3 1.2.2 Específicos. ....................................................................................3 1.3 JUSTIFICATIVA PARA ESTUDO DO TEMA...........................................................3

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A IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO DAS CIDADES.......................................................6 2.1 Na China............................................................................................................7 2.2 No Brasil...........................................................................................................31

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METODOLOGIA 3.1 Delineamento da Pesquisa..............................................................................45 3.2 Procedimentos de Coleta de Dados................................................................45 3.3 Procedimentos e Análise dos Dados...............................................................46 3.4 Limitações da Pesquisa....................................................................................46

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CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................46

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1.1

INTRODUÇÃO

Muito da motivação inicial desta pesquisa vem de anos de experiência de estudo e envolvimento com inúmeras organizações que lidam com a questão do Plano Diretor Participativo conforme previsto na Lei. As cidades brasileiras são obrigadas pelo Estatuto das Cidades1, Lei 10.257, a elaborarem, de forma democrática e participativa, os seus Planos Diretores de

modo a

delinearem os projetos que ordenarão o seu crescimento nos próximos anos.

Esses Planos Diretores têm enorme importância, pois neles residem a possibilidade de ordenamento urbano do crescimento das cidades maximizando o crescimento e o aproveitamento do território para atender às necessidades coletivas e individuais dos seus habitantes, tais como moradia de qualidade, espaços públicos adequados, trânsito fluido e inclusão social. Considerando a enorme responsabilidade dos governantes no ato de planejar, junto à população esses Planos, é de fundamental importância investigar se tais instrumentos tem servido aos seus propósitos.

Uma questão relevante é que os Planos Diretores também regram a Expansão Urbana de forma a definir como a cidade irá se desenvolver espacialmente. Nesse aspecto, é importante lembrar que uma cidade pode se desenvolver incluindo ou excluindo seus cidadãos, respeitando ou não o seu meio ambiente, dando ou não infra-estrutura às industrias e facilitando ou não o translado dos seus habitantes.

Este Trabalho de Conclusão de Curso tem assim por objetivo investigar de que forma as necessidades de inclusão social através da habitação vêm sendo atingidas no Brasil e na China, de que forma tais os objetivos têm sido alcançados nestes dois países e como os países tem aproveitado o propício momento econômico para desenvolver as suas cidades, aproveitando o que se configura como oportunidade única de ordenamento e desenho de um futuro melhor para os seus habitantes. 1

O Estatuto da Cidade é a denominação oficial da lei 10.257 de 10 de julho de 2001[1], que regulamenta o capítulo "Política urbana" da Constituição brasileira[2].

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Após a visita da turma 37 a República Popular da China foram apresentadas inúmeras questões relativas ao planejamento das cidades desse país, que em comparação com o Brasil desenvolveu uma política agressiva de desenvolvimento urbano sem paralelo talvez na história da humanidade. O desafio proposto na China é abrigar mais 300 milhões de habitantes em suas cidades, até o ano 2050 e se prepara para esse desafio com características particulares as quais serão investigadas ao longo deste trabalho.

A abordagem da questão brasileira, assim, se inicia após uma análise do contexto das estratégias de desenvolvimento urbano aplicadas na China, de forma que se possa, a partir de uma referência externa, estabelecer novos olhares para os problemas habitacionais brasileiros.

1.2

PROBLEMA DE PESQUISA

A partir do exposto, as questões de pesquisa são apresentadas.

1.2.1 Questões de Pesquisa

Como são abordadas as questões relativas ao planejamento das cidades brasileiras, em comparação com as cidades da China? Quais são os contextos relativos às realidades desses países e quais fatores influenciam e definem as diretrizes de desenvolvimento urbano nesses países?

1.3

OBJETIVOS

1.3.1 Gerais

O objetivo deste trabalho é analisar o contexto no qual ocorreu a intensa urbanização na China nos últimos 30 anos, além de estabelecer bases comparativas entre o Brasil e China no que a se refere às estratégias de desenvolvimento urbano visando a melhoria da Qualidade de Vida,

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Planejamento Urbano, Inclusão Social, Participação Pública e a Proteção do Meio Ambiente nas cidades.

1.3.2 Específicos

De modo a auxiliar na consecução dos objetivos gerais, são apresentados os objetivos específicos.

1.3.2.1 Identificar o contexto histórico das estratégias de desenvolvimento urbano na China 1.3.2.2 Identificar os dados e contexto relacionados à questão da Função Social do Território Urbano, verificando as distinções existentes entre Brasil e China. 1.3.2.3 Identificar as Forças Políticas predominantes no Planejamento Urbano das Cidades Chinesas 1.3.2.4 Identificar o nível de suporte gerado pelos Planos Diretores para a Ampliação da Oferta Habitacional, incluindo aqui o estabelecimento das bases de infra-estrutura necessárias para o Programa Minha Casa Minha Vida 1.3.2.5 Analisar as estratégias de planejamento urbano e suas variáveis para a melhoria da qualidade de vida das cidades no Brasil e na China.

1.4

JUSTIFICATIVA PARA ESTUDO DO TEMA

A partir da experiência realizada na China, reúnem-se algumas ideias de como visões diferentes sobre a Cidade levam a diferentes apropriações do Espaço Urbano, assim como a lembrança de que o planejamento é o eixo fundamental para que a alocação de recursos se faça de forma organizada e estruturada para promover um determinado padrão de desenvolvimento urbano para as cidades. O desenvolvimento urbano é um tema válido para o TCC, sob a ótica que o desenvolvimento econômico estrutural das cidades se dá a partir de instrumentos tais como

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Planos Diretores que garantam a mobilidade ágil, a sustentabilidade, a inclusão social e cultural, a eficiência da cidade e a eficácia dos seus sistemas de suporte à atividade econômica e à cidadania.

Neste estudo, considera-se que a grande expansão na oferta de residências de cunho social no Brasil no momento só pode ser organicamente absorvida pelas cidades a partir de planejamento adequado, e, neste momento, no Brasil o Ministério das Cidades está exigindo tanto um estudo qualificado da demanda quanto um estudo aprofundado da infra-estrutura disponível nas cidades brasileiras. Tais estudos, por exemplo, como os Planos Municipais de Saneamento e de Mobilidade, vêm com o intuito de complementar os Planos Diretores que, constituídos a partir dos princípios estabelecidos pelo Estatuto das Cidades, definem como as cidades irão se desenvolver a partir de sua implementação.

Uma questão extremamente relevante para este estudo é a da eficiência das cidades no tocante às suas políticas propostas de suporte à atividade produtiva. Dentro desse aspecto, se enfatiza não apenas a questão do suporte às demandas específicas de setores industriais e de serviços, mas a inclusão social como suporte fundamental ao desenvolvimento econômico, no tocante às dinâmicas de eficiência das cidades. As questões transversais que permeiam a discussão, neste trabalho, são: é possível crescer sem incluir? É possível identificar os fatores que permitem ou não o desenvolvimento integrado das cidades e, mais ainda, o perfil de desenvolvimento urbano que cada país adota a fim de atender às suas demandas? Quais demandas são prioritárias para atendimento na planificação das cidades?

O Brasil tem um deficit habitacional que se situa entre 5 a 8 milhões de moradias (Maricato, 2009)2. Um grande projeto, inédito no Brasil, pretende atender a uma demanda histórica por moradia para uma população de baixa renda que nunca teve, em nenhum momento, graças ao perfil de financiamento imobiliário no Brasil, acesso à habitação (Royer, 2009, p.132). Esse projeto movimentará empresas, criará centenas de milhares de novos empregos, ampliará, de forma significativa, a área de moradia de milhares de cidades e afetará, inevitavelmente, a infraestrutura das cidades brasileiras. Uma vez que o Plano Diretor Participativo é o instrumento legal 2

Entrevista à Revista Caros Amigos, Maio, 2010

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de constituição das cidades, ou seja, é o instrumento que define as áreas de expansão e dá suporte para o planejamento adequado da ampliação da infra-estrutura, é fundamental que ele leve em conta os diversos fatores ambientais e humanos que envolvem a tomada de decisões, assim como considere qual é a participação dos diversos agentes (stakeholders) na elaboração do documento e, mais ainda, na determinação de uma política de expansão urbana. Muitas vezes, essa política não considera habilmente todas as variáveis de mercado, institucionais e populacionais no momento do exercício do planejamento.

Um Plano Diretor mal elaborado caracteríza frequentemente um planejamento igualmente mal elaborado, levando a incontroláveis problemas sanitários, trânsito e insegurança, notadamente nas grandes cidades brasileiras, em decorrência de ocupações tendenciosamente ilegais e loteamentos clandestinos ou irregulares. Tais moradias, irregulares, não constituem reserva de capital para nada legal, ou seja, fomentam a informalidade e a pobreza, uma vez que tampouco uma moradia ilegal serve para garantia de qualquer tipo de crédito para investimento.

Dessa forma, este trabalho aborda a questão de como os Planos Diretores brasileiros tem tratado essas questões e qual é o cenário que se desponta para o futuro a partir dessa realidade aqui imposta. Do mesmo modo, investigará como países com desafios enormes em relação aos processos em curso de urbanização vem lidando com a questão do crescimento de suas cidades, em uma busca de se encontrar paralelos que propiciem uma reflexão ampla sobre a questão.

No que diz respeito à China, até o final do ano de 2009 existiam 654 cidades ( UMHABITAT, 2009). Com um índice de urbanização de 46,59%, havia 621,86 milhões de chineses vivendo em cidades e metrópoles na China. Com o aumento gradual da taxa de urbanização, a posição e o papel da economia urbana estão se tornando cada vez mais importante para o desenvolvimento econômico nacional. Hoje, a urbanização já se tornou uma força importante de estímulo à um novo tipo de industrialização, criar empregos e expandir a demanda doméstica. Ela tem promovido o desenvolvimento econômico, progresso social, prosperidade cultural e um amplo fortalecimento da China. ( UM-HABITAT, 2009)

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É importante lembrar, ou melhor, ainda recolocar neste debate, que o fator “planejamento urbano”, é um vetor definitivo de sucesso ou insucesso em solucionar demandas evidentes na dinâmica da urbanização, seja aqui, ou, literalmente, na China. Uma vez que a proposta é fazer um comparativo das políticas de expansão urbana entre China e Brasil, é imperativo que se consiga, em primeiro lugar, aprofundar o estudo entre os dois países, identificando as similaridades e diferenças que podem contextualizar este estudo de forma consistente.

1.5

A IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO DAS CIDADES

Na etapa que antecedeu a este referencial teórico, inúmeros estudos e experiências podem ajudar a refletir sobre o tema deste Trabalho de Conclusão de Curso. Percebe-se que para desenvolver melhor uma análise sobre estratégias de desenvolvimento urbano torna-se interessante promover uma análise comparativa entre diferentes países, e como a planificação é aplicada no sentido de promover a expansão das cidades.

De acordo com Royer (1991), o modelo brasileiro de expansão urbana, em geral, obedece a critérios ditados pelo capital especulativo, ou seja, aquele que se submete apenas a um determinado risco, bastante limitado ou inexistente, inerente ao capitalismo. É relegado ao poder publico o papel de gerar condições estáveis para o crescimento das cidades, contando com uma demanda sempre crescente, a partir do crescimento do poder aquisitivo da população mais carente. Os planos diretores são, na sua concepção mais atual, uma ferramenta recente para o planejamento das cidades e muitas delas ainda não os têm concluídos.

Ainda assim, o governo federal conseguiu iniciar um programa bastante agressivo para resolver a questão, que se arrasta há décadas, sem iniciativas governamentais de peso. A participação, ou melhor, a questão do Estado é suficiente no sentido de se permitir uma comparação precisa entre as políticas dos dois países, e questões como a moradia e a infraestrutura só aparecem razoavelmente atendidas pelo Estado, em função do qual giram as principais questões que regulamentam os principais eixos de desenvolvimento urbano tanto no

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Brasil como na China. Se, de acordo com Campos Filho3, os Planos Diretores no Brasil ou são superficiais ou muito óbvios, então há carência de real investimento no Planejamento das Cidades.

Tratam-se hoje de dois países pertencentes ao bloco das nações em franco processo de desenvolvimento, com perfis econômicos e sociais bastante distintos, mas afins em alguns aspectos, como por exemplo, o da enorme migração em direção às cidades. Nesse aspecto, a China conseguiu, apesar do fluxo gigantesco de trabalhadores em direção aos grandes centros industriais, controlar razoavelmente a ocupação desses centros sem que se apresentassem problemas tais como a submoradia e a moradia emergencial tornada permanente pelas falhas da administração, e a ausência de políticas adequadas de inclusão urbana. Contribui para isso a controversa classificação dos cidadãos chineses em “camponeses” ou “urbanos”, através do sistema de Houkou, ou seja, uma identidade que dá ao cidadão direitos na Cidade, ou não, ou seja, o cidadão só é digno de usufruir os serviços do Estado quando de posse de uma identidade específica.

2.1 Na China

A urbanização na China começou há quase 4.000 anos, embora vilas neolíticas começassem a surgir nos vales dos rios há quase 5.000 anos ( Ebrey, 1996). Ho ping-Ti (Gavinelli e Gibelli, 1976) menciona que grandes centros urbanos que surgiram já na dinastia Shang (1700-1100 AC), e de altíssimas muralhas de adobe que até hoje circundam inúmeras cidades, incluindo, mais notavelmente, as cidades perto de Cheng-chou e Na Yang na província de Hunan (Gavinelli e Gibelli, 1976). Inúmeras cidades proliferaram na dinastia Zhou ( 1122-221 AC). Criadas a princípio para atender propósitos militares e administrativos, essas cidades assumiram inúmeras outras funções (Zhao 1994).

Na era da dinastia Song do Sul, no século XII DC, de 10 a 13 % da população já habitava as cidades, e Kaifeng, a capital do reino Song, contava com quase um milhão de habitantes. Nessa época, a população urbana na China se igualava à do resto do mundo inteiro. É possível 3

Professor Candido Malta Campos Filho, palestra ministrada na FECOMERCIO, Maio 2010

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dizer que a vida urbana na China talvez fosse a mais desenvolvida no mundo. Marco Polo, em visita à Hangzhou, ficou impressionado ( “a cidade mais esplendida do mundo... com 13 mil pontes quase todas de pedra...”). As cidades eram conhecidas por sua riqueza e conforto, elegância e vida cultural.

No final do século XIX, no entanto, a população urbana da China havia decrescido para 6,0 a 7,5%, embora a população urbana absoluta tivesse aumentado consideravelmente. Nessa época, os países industrializantes da Europa já apresentavam taxas como a de 61% na GrãBretanha e 29 % no resto da Europa. Essa diferença aumentou ainda mais em 1949, quando o regime comunista tomou conta do governo ( Fenby, 2009).

No início, o novo governo permitiu o crescimento das cidades. A China, no entanto, a partir dos anos 60 optou por controlar, de forma rígida, o curso da urbanização (Kwok, 1981; Fang, 1990). O movimento interno e os índices de fertilidade foram restritos com sucesso considerável, graças aos esforços combinados do Partido Comunista e da burocracia governamental (Fenby, 2009).

O instrumento mais importante dessa política é o sistema de houkou, que designa a cada morador da China uma localidade específica. Esse sistema discrimina moradores urbanos de moradores da zona rural, com os primeiros com muito mais benefícios e privilégios do que os demais (Friedman 2005). Esse sistema se tornou lei em 1958, quando o Congresso Nacional do Povo aprovou a “Regulamentação de Registro de Moradia da República Popular da China”. Nessas regras, cada cidadão chinês é registrado em um local ( hukou suozaidi) e uma classificação territorial (houkou leibie) (Fan apud Yu, 2002, Fei-Ling Wang 2005). Na maioria das vezes, essa classificação é herdada da condição dos pais. Um houkou agrícola dá acesso à terra; um houkou não-agrícola dá acesso a postos de trabalho, habitação, comida e benefícios patrocinados pelo Estado. A classificação territorial do houkou especifica onde cada um pode usufruir os direitos garantidos pelo Estado. Em essência, especifica o lugar de pertencimento de cada cidadão. Até o meio dos anos 80 era extremamente difícil para os chineses do campo sobreviverem nas cidades, porque sem um houkou urbano, não tinham acesso às necessidades da

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vida, tais como comida e habitação, muitas das quais eram distribuídas de forma centralizada. Dessa forma, o sistema de houkou suprimia as imigrações a um mínimo. (Fan, 2008).

Em outubro de 1984, o Conselho de Estado chinês anunciou que camponeses trabalhando em cidades receberiam um “houkou de auto-suficiência de grãos”( zili kouliang), marcando a primeira abertura na rígida divisão entre campo e cidade. Em 1985, o Ministério de Segurança Pública publicou regulamentações para que migrantes rurais obtessem “licenças de moradia temporária” ( zanzhuzheng). No mesmo ano o Congresso nacional permitiu que os cidadãos utilizassem a sua carteira de identificação como prova de identidade (antes de 1985 apenas o houkou podia ser usado) ( Fan apud Yu 2002). A partir de 1980, muitos governos locais começaram a cobrar dos imigrantes altas taxas – variando de alguns milhares para muitas vezes dezenas de milhares de yuan – em troca de houkous de cidades e vilas. As prefeituras se justificaram dizendo que elas precisariam ser compensadas por estender benefícios urbanos para os imigrantes. No começo dos anos 90, grandes cidades como Shanghai e Shenzhen começaram a oferecer “houkou carimbados de azul” para imigrantes que atendiam a determinados requisitos profissionais, e eram capazes de fazer grandes investimentos ( Fan apud Wong e Huen 1998). Como um green card norte-americano, este houkou podia ser convertido em um houkou permanente depois de um certo período. Estas práticas “comodizaram” os houkou e canalizaram recursos de uma pequena elite de imigrantes para os cofres públicos ( Fan apud Cai 2001; Cao 2001).

Com relação ao que na China se compreende por migração temporária, um fenômeno particular é a existência do que na China é denominado de “população flutuante”(liudong renkou), um conceito associado ao sistema de houkou (Fan apud Goodking e West 2002). Indivíduos que não habitam nos seus locais de houkou são considerados “flutuantes”. Esse conceito é baseado na noção que o local de houkou é onde a pessoa pertence e que a migração não é considerada oficial até que a locação do houkou também mude. Assim, essa população é considerada uma espécie de estoque populacional, e uma pessoa que esteja ausente de sua residência original por seis meses é considerada parte dessa população. No ano 2000 essa

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população foi contabilizada como sendo de 144,4 milhões de pessoas, e a estimativa é que em 2015 chegue a 200 milhões de pessoas.

No sistema dualístico de houkou, chineses pertencentes à população rural são excluídos do sistema de benefícios desenhados especificamente para os cidadãos urbanos. Imigrantes rurais não têm acesso à aposentadoria, saúde e seguro-desemprego, nem moradia patrocinada pelo Estado, postos de trabalho que priorizam residentes urbanos e, principalmente, o sistema de educação urbana (Fan apud Lu 2005). A educação desses imigrantes, que atingiu 20 milhões de crianças em 2005, é uma questão cada vez mais séria na China de hoje (Fan apud Fang Wang 2005).

Quando se trata das dinâmicas populacionais influenciando a política urbana, a política de apenas um filho – que ainda é exercida, embora com alguma flexibilidade, conseguiu restringir o crescimento populacional, forçando o Índice de fertilidade abaixar de 5,9 em 1970 para 2,9 filhos em 1970, e para apenas 1,7 em 2004. A taxa de fertilidade urbana se situava em 2005 em 1,3; enquanto isso a taxa de fertilidade da zona rural se situava em um pouco menos de 2 nesse ano. Em 2005 a população da China estava crescendo a um ritmo de 0,59 % ao ano, e em 2010, este índice baixou ainda mais, para 0,494%, de acordo com a CIA World Fact Book.

O que se verificou a partir de 1980 é que as cidades retiveram relativa autonomia para regular o seu crescimento. Dessa forma, a maioria das grandes cidades optou por um relaxamento bastante gradual das regras de houkou. Essa mudança em política estimulou a multiplicação de indústrias em pequenas cidades e vilas em áreas rurais, que em 1990 empregaram 93 milhões de trabalhadores e que eram responsáveis por 17 % das exportações chinesas de manufaturas. Em 1996 esses empreendimentos denominados TVE (Township and Village Enterprises) empregavam 135 milhões de pessoas e se encarregavam de 46% das exportações chinesas. Esses arranjos produtivos locais, que em geral provinham de comunas constituídas inicialmente no Grande Salto Adiante de 1959-1962, tomaram grande impulso depois de 1980, com a descentralização das ações do Estado dessa época. A industrialização rural se alimentou de uma reserva inédita e surpreendente de empreendedorismo e a descentralização fiscal fortaleceu autoridades locais a tomarem iniciativas em atividades econômicas diversas.

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Muitas cidades conservaram o sistema de houkou ao longo dos anos como uma estratégia para controle migratório. Cidades pequenas e médias começaram a receber, com atenção renovada, esses trabalhadores, pois apostavam na renda gerada pelos impostos para renovar a sua infraestrutura urbana. Em contraste, cidades maiores se utilizaram do sistema, pois não tinham garantia de que poderiam fornecer os serviços necessários à absorção dessa população. Uma disparidade de renda da ordem de 1:2,4 entre áreas rurais e urbanas e muito mais oportunidades de trabalho tornaram as cidades grandes ainda mais atraentes. Essa diferença, que incentivou milhões de habitantes a se transferirem para as cidades, também ajudou a melhorar o padrão de vida em inúmeras das áreas rurais mais pobres, provocando uma aproximação aos níveis de áreas urbanas. O entendimento é que essa transferência de renda contrabalança alguns dos problemas associados com a migração intensa.

As diferenças entre o meio rural e urbano na China tem persistentemente sido a principal causa da disparidade de renda na China. Em parte, esse enorme abismo é explicado por legados institucionais do socialismo chinês. A partir dos anos 1950, os líderes do partido comunista separaram claramente residentes do campo e da cidade através do sistema de houkou, como visto anteriormente, estabelecendo o desenvolvimento industrial e urbano como o principal objetivo do planejamento econômico. Trabalhadores urbanos ganharam um „prato de ferro de arroz”, na forma de emprego vitalício, assim como saúde gratuita, moradia e benefícios trabalhistas diversos. Camponeses, por outro lado, foram organizados em comunas, nas quais acesso à saúde básica e educação melhoraram consideravelmente. Entretanto, com o objetivo de acelerar a industrialização do país, o sistema de planejamento fixou preços e dirigiu investimentos de forma que instituiu um comportamento discriminatório em relação à agricultura e áreas rurais, levando à enormes diferenças de padrão de vida entre moradores de áreas rurais e urbanas.

Os dados da pesquisa ainda demonstram que os imigrantes têm menor tendência a caírem abaixo dos níveis de pobreza. Os imigrantes não apenas remetem recursos consideráveis para as suas vilas, mas também ao retornar, provocam uma onda de investimentos locais em agricultura e outras atividades rurais. Além disso, os que possuem mais educação têm uma tendência menor à emigração, compensando a evasão de profissionais qualificados para as grandes cidades.

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A incrível expansão da população urbana chinesa de 191 milhões em 1980 para 562 milhões em 2005 e para 622 milhões em 2010 demandou um investimento massivo em habitação e infraestrutura. Ao contrário do que aconteceu em países de terceiro mundo, com população bem menor, a China conseguiu absorver mais de 400 milhões de pessoas nas suas cidades sem a proliferação de favelas, embora

a infraestrutura urbana ficou comprometida em diversas

localidades, contabilizando quase um terço sem serviços básicos de saneamento e coleta de lixo. Hoje, das 20 cidades mais poluídas do mundo, 16 são chinesas.

São três os fatores primordiais que garantiram a relativa suavidade da transição urbana: a disponibilidade de fundos de investimento intermediados pelo sistema bancário, a iniciativa forte do setor imobiliário e um crescimento aceitável da capacidade regulatória dos centros urbanos. O papel do capital gerado através da poupança doméstica foi determinante nesse conjunto. De acordo com o professor Fan Gang da Universidade de Beijing4, o governo da China encoraja os trabalhadores rurais a se mudarem para as cidades para encontrar empregos melhores. Assim, nos últimos 30 anos mais de 40% da força de trabalho da China, cerca de 300 milhões de pessoas, passou do setor agrícola para o industrial ou de serviços, agora cada vez mais concentrados nas cidades. Como resultado, em média, os trabalhadores migrantes com houkou rural agora superam em número os trabalhadores com houkou urbano. Embora o sistema de houkou tenha sido uma influência preponderante no controle da imigração, o professor Gang diz que não foi esse sistema que evitou o crescimento das favelas na China. Uma tese é que a instituição mais importante na prevenção da pobreza urbana extrema é um sistema único de terras nas áreas rurais da China. Todo o processo de reforma da China começou com a adoção do chamado “sistema rural de contrato familiar”, que arrenda as terras produtivas para famílias de agricultores. Isso significa que a produção coletiva foi dissolvida desde o início do processo de reforma, com a agricultura privada prevalecendo. Embora as fazendas “coletivas” tenham continuado como proprietárias da

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Site: Project Syndicate:www.projectsyndicate.org; Fan Gang: Urbanizing China, 2010

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terra rural, as famílias podem ficar com todos os “excedentes” da produção, o que cria o incentivo necessário para usar a terra de forma produtiva. Eles podem até transferir o arrendamento para outras famílias de agricultores, caso seus membros encontrem trabalhos melhores nas cidades.

As famílias podem manter seu título durante o período do arrendamento (agora de 30 anos), mas não possuem o direito de propriedade da terra. Se o trabalhador rural enfrenta dificuldades financeiras, o que em outros países muitas vezes leva à venda da terra, ele pode esforçar-se mais para encontrar outro trabalho ou buscar o auxílio do governo. A terra, contudo, nunca pode ser vendida ou hipotecada e seu uso não pode ser alterado, da agricultura para qualquer outro propósito comercial, sem permissão do governo.

Esse arranjo peculiar gerou um importante resultado: se os trabalhadores migrantes perdem seus empregos urbanos, podem manter certa renda com seu arrendamento de terra e voltar a seu vilarejo e pedir a terra de volta (normalmente dentro de um ano)5. O pequeno pedaço de terra distribuído sob o sistema rural de contrato familiar pode não tornar os agricultores ricos, mas funciona como uma rede de segurança social de última instância. Isso ajuda a explicar por que a urbanização da China foi mais lenta: o sistema de posse das terras – que parece ser impossível de replicar em outros países em desenvolvimento – assegura que o reservatório de trabalho para a industrialização e urbanização continua localizado nos vilarejos do interior e não nas favelas das cidades.

Embora esse esquema proporcione um caminho mais suave para a urbanização, é algo transicional, não permanente. Os trabalhadores migrantes ainda se sentem incapazes de integrarse realmente às cidades, porque sua rede de segurança social continua ancorada em suas origens rurais. De fato, a segregação provocada pelo sistema de terras ampliou, em vez de encolher, as disparidades sociais. Tendo em vista essas circunstâncias e o alto grau de locomoção dos chineses, a urbanização do país está longe de ser algo estável. Para atingir uma “urbanização permanente”, a China precisa desenvolver uma nova rede de segurança. Anunciar a abolição do

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Project Syndicate:www.projectsyndicate.org; Fan Gang: Urbanizing China, 2010

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sistema houkou pode ser fácil, mas teria pouco significado sem instituições que possam amortecer os riscos enfrentados pelos trabalhadores rurais migrantes nas cidades chinesas.

O novo plano quinquenal de desenvolvimento social e econômico da China, a ser introduzido no início de 2011, pode abordar a questão de forma significativa, ao almejar o estabelecimento de um sistema de segurança social universal, nacional e válido em qualquer lugar. O plano também pode solicitar que os governos municipais aumentem a provisão de bens públicos – como educação, assistência médica e um nível mínimo de proteção de renda – para residente regulares sem hukou. Nesse sentido, foram realizados alguns experimentos em cidades como Chongqing e Chengdu.

Embora não seja o objeto central de estudo deste trabalho, não há como não mencionar que nenhum outro país foi tão bem sucedido em alocar recursos de forma tão eficiente para mobilizar financiamentos a partir do sistema bancário aproveitando os altos índices de M3 - uma definição de um sistema que inclui moeda, depósitos compulsórios, poupanças diversas e depósitos, a longo prazo, depósitos em eurodólar, e a taxa de empréstimos lastreados ao crescimento do PIB, que apresentam índices maiores do que a grande maioria dos demais países emergentes( Yusuf e Nabeshima, 2009).

Desenvolvimento é um processo complexo e multifacetado. A chave para o sucesso é visão a longo prazo e a uma administração empreendedora. A incrível velocidade com que as cidades chinesas se expandem representa um desafio contínuo para as capacidades administrativas das autoridades locais. Nenhum outro país enfrentou tal desafio com tanto sucesso. Cidades grandes, nesse sentido, têm sido mais bem sucedidas nessa empreitada do que as pequenas. Até agora, como vimos, a China conseguiu conter as favelas e o crime (Yusuf e Nabeshima, 2009). As cidades chinesas são mais limpas do que a média em comparação com cidades da mesma faixa de renda em outros países do mesma renda per capita, e os esforços combinados dos oficiais responsáveis pelas ruas e dos escritórios municipais certificaram que as políticas são competentemente executadas.

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Ao mesmo tempo, a política de retenção, ou melhor, de melhoria de renda no campo tem se demonstrado eficiente. Os trabalhadores que alimentam as necessidades das indústrias nas cidades não chegam despojados de educação ou de subsídios mínimos para seu sustento, uma vez que contam com apoio dos seus parentes e da poupança pessoal lograda. Uma política que se aproveita da migração para as cidades para aumentar a renda no campo se desenvolve, melhorando as condições dos serviços prestados no campo, tais como infraestrutura e saúde, por exemplo. Recentemente o governo eliminou o imposto agrícola no sentido explícito de melhorar igualmente a renda do campo. Algumas políticas serão necessárias na China, embora algumas delas estejam vinculadas à equação que soma efeitos positivos da migração e das remessas. Estas políticas incluem: esforços contínuos para fortalecer a produtividade agrícola através da diversificação para outras atividades de maior valor agregado; avanços tecnológicos que melhorem a produtividade e conservem a terra, água e outros insumos; investimento na infraestrutura rural em áreas em que o retorno ao longo do tempo é maior; provisionamento de contratos de uso da terra que proporcionem mais segurança e maiores direitos de longo prazo para os fazendeiros; provisionamento de melhores serviços sociais para os moradores rurais; sistemas de crédito rural mais efetivos e transferência de recursos pelos mecanismos de preço ou canais fiscais adequados.

Em conjunto com uma política adequada de preços, esforços para levantar a renda rural, conservar água, promover a diversificação e fortalecer a infraestrutura de transporte pode melhorar a renda local e diminuir a pressão por imigração para as grandes cidades. A criação de infraestrutura deve se focalizar nas áreas com potencial a largo prazo. No entanto, outros tipos de transferência de renda e apoio social são adequadas para locais onde a terra é infértil e a água limitada. Encorajar pessoas para emigrar de tais regiões é a melhor política em termos econômicos e ecológicos6. Há que se lembrar que a China só tem 8 % da água mundial, embora sua população corresponda a 22%.

Todo tipo de migração que muda consideravelmente a ordem social estabelecida deve se dar em torno de áreas onde estão localizados os postos de trabalho. Assim sendo, áreas que

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World Bank Report apud Sinn and Westermann 2001

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prometem crescimento de largo prazo são as mais interessantes deste ponto de vista. A idéia é ter áreas em que estes possam estar estabelecidos em regiões que absorvam naturalmente tais populações imigrantes. Problemas ocorrem quando os migrantes entram em áreas de crescimento letárgico, e as tensões com moradores antigos surgem por conta de disputas por postos de trabalho escassos.

O tamanho das cidades também tem sido um fator determinante. Economias de escala e taxas de crescimento acelerado do país acompanham o ritmo frenético do crescimento das grandes cidades. A aglomeração contribui aprofundando o mercado de trabalho, introduzindo economias a partir de avanços tecnológicos e ainda por cima encorajando um grande diversidade de atividades. Numa economia globalizada, a diversificação proporcionada pela aglomeração de serviços e recursos, sejam estes estruturais ou humanos, são uma válvula de escape segura que permite a indústria urbana expandir em novas direções e manter um portfólio considerável de produtos e um potencial de adicionar novas atividades quando as existentes se esgotam.

Um grande centro urbano também provê um ambiente onde empresas podem atingir mais rapidamente economias em larga escala, por conta de amplos mercados locais e custos menores de operação, ampliando o potencial das empresas. A competição nesses mercados as preparam assim para atingir mercados externos. Esta intensa diversificação é tida, inclusive, como uma avenida fundamental no incremento das vendas em mercados nacionais e mundiais (Yusuf e Nabeshima, 2008).

No que diz respeito à questão da posse da terra, antes da fundação da Republica Popular da China7, a terra era privada e poderia ser transferida através de um acordo mútuo. Em 1946, três anos antes da fundação da RPC, o Partido Comunista Chinês iniciou um processo de reforma agrária dentro das áreas sob seu controle administrativo, expropriando os latifundiárioa e transferindo essas terras para os lavradores e pequenos arrendatários ( Qin apud Klein, 1961).

Quando o Partido Comunista assumiu o poder em 1949, essa forma de propriedade pelos camponeses continuou inalterada ( Leonard, 2008). Na realidade, a constituição de 1954 garantiu 7

The impact of political forces on urban land ownership reform in transitional China Xiaojing Qin; University of Manchester, 2010,Manchester, UK

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a proteção legal da propriedade da terra e outras formas de produção. Entretanto, durante o processo de transformação socialista nos anos 50, o Estado avançou confiscando terra e proclamou uma nova era de propriedade publica da terra ( Qin apud Brugger, 1981). O governo socialista insistiu que a habilidade de controlar os recursos da terra era crucial para a segurança do novo Estado Socialista, uma vez que a sua propriedade era vista como a fonte de toda a riqueza. Nas áreas rurais, assim, encorajou os camponeses a transferir as suas propriedades compartilhadas para propriedades coletivas e para cooperativas. Nas áreas urbanas, o governo introduziu um sistema socialista de propriedade do Estado no qual exercia todo o controle monopolístico sobre todos os recursos do território. Como resultado, a propriedade pública da terra foi estabelecida em todo o país, ou por um sistema de propriedade do Estado, ou, em áreas rurais, por propriedade coletiva.

Com relação aos arranjos constitucionais para a propriedade da terra, tem-se que ela, pertencente ao Estado, estava geralmente vinculada a unidades sócio-economicas conhecidas por danwei, para uso sem custos por um período indefinido. O estado, assim tinha um papel duplo neste processo, tanto como dono da propriedade como o administrador político da terra. Como as unidades de danwei também eram de propriedade do Estado, o direito de uso da terra e da propriedade da terra eram institucionalmente inseparáveis. A quantidade de terra alocada para o danwei era determindada por objetivos da política de governo de forma que os propósitos de uma determinada danwei eram sujeitos à estes. Em outras palavras, os recursos da terra estavam distribuídos para os danwei de acordo com a ideologia política das unidades de negócio, e não aos princípios de eficiência econômica (Qin apud Zhu, 2002).

Com as extensas reformas do aparelho do Estado a partir de 1980, enormes mudanças no sistema de propriedade da terra aos poucos foram implementadas, e em 1988, a constituição da RPC recebeu um adendo anunciando “a transferência do direito do uso da terra de acordo com a legislação relevante”. Essa nova regra assim reconheceu os direitos de uso da terra e a legitimou legalmente a sua transferência, sujeita, ainda assim, à sua propriedade incontestável pelo Estado. Inúmeras iniciativas surgiram ao longo deste periodo inicial de desenvolvimento do Mercado imobiliário chinês. As chamadas “Joint – Ventures Chinesas-Estrangeiras” tipicamente consistiam em empresas manufaturas nas quais um danwei contribuia com a terra e muitas vezes

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com os edifícios e o capital de investimento era provido pelo parceiro estrangeiro. De acordo com a Lei da RPC sobre Joint – Ventures Chinesas-Estrangeiras: […] O investimento proporcionado pelo parceiro chinês na transação pode incluir o direito de uso do local durante o período da operação. Se o direito de uso do local não constitui parte do investimento, o parceiro estrangeiro deverá pagar ao Governo Chinês uma taxa pelo seu uso[...].

A terra continuou a ser propriedade do estado. Entretanto, esta liberdade para um danwei investir o seu direito de uso da terra como parte de uma empreitada comercial privada representava uma diminuição significativa do controle político da instituição da terra por parte do Estado. Isto, em conjunto com o desejo do estado de cobrar o uso da terra também indicava a emergência, pela primeira vez, de um valor comercial para a terra (Qin apud Chan e Kwok, 1999). O conceito de direito de uso da terra, e seu valor associado, foi assim criado ( Qin apud Chan e Kwok, 1999). Essa era obviamente uma mudança radical em comparação com o período de centralização econômica. É necessário enfatizar no entanto que a alienação do interesse sobre a terra estava ainda proibido, refletindo a forte característica social da ideologia dominante ( Qin apud Li, 2000).

Outro fator dominante em dar formato aos direitos de propriedade é advindo do papel do governo local no mercado imobiliário recém formado. Durante a era de reforma política e econômica uma diretriz de descentralização dos processos de tomada de decisão deu incentivos aos governos locais para que tomassem as rédeas do desenvolvimento local. Como resultado, as administrações locais gradualmente alienaram o governo central do exercício de poder administrativo, mas também assumiram papéis significativos no tocante ao desenvolvimento econômico em nível local. Os escritórios locais reconheceram a terra como um recurso importante para atrair investimento e termos favoráveis foram, assim, oferecidos a investidores por todo o país. Essa abordagem, embora contribuísse para a explosão imobiliária e a emergência de uma “febre de zonas de desenvolvimento” em muitas cidades grandes, também resultou em distorções custosas de mercado, à medida que os termos favoráveis significavam que a terra era oferecida em valores abaixo do mercado ou, em alguns casos, sem qualquer tipo de pagamento. (Qin apud Li, 2007).

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Além desse cenário, a falta de um sistema eficiente para avaliar a performance dos oficiais de governo os levou a serem julgados por métricas bastante superficiais, por exemplo, pela quantidade de projetos de desenvolvimento imobiliário completados ao longo dos seu período na posição ocupada (Qin apud Cao e Edwards, 2002). Consequentemente, escritórios locais forçavam a construção de mais e mais edifícios pois isso contava muito aos olhos dos seus superiores políticos (Qin apud Zhang e Sun, 2006). Incentivos perversos foram instaurados, assim

apresentados

para

governantes

procurando

promoção

para

transformar

áreas

subaproveitadas em edifícios de grande porte. Esses mecanismos de mercado pelos quais a alocação da terra tomou lugar, também eram influenciados por essas pressões. Formas transparentes de negociação, como licitações abertas e leilões públicos, eram a todo custo evitadas. Ao invés disso, para maximizar o seu retorno político, os governos locais preferiam alocar os direitos de uso da terra a valores com descontos estratégicos através de formas de negociação suspeitas. Dessa maneira, embora os níveis de investimento se situassem no mesmo patamar, eles podiam maximizar a quantidade de empreendimentos em uma mesma região.

O papel ativo dessas influências políticas no setor imobiliário encorajou desenvolvedores a estabelecer redes extensas de contatos com administradores locais para apoiá-los nas suas negociações locais (Qin, 2010). Essa instituição informal de guangzi, ou conexão pessoal permitiu que especuladores urbanos com conexões políticas se beneficiassem adquirindo benefícios ilegais de líderes de governos locais. Essas práticas eram apoiadas pela natureza particular do processo de negociação da terra e até hoje continuam a ter um papel importante no processo de alocação da terra.

A partir da Emenda constitucional de 1988, uma reforma de maior siginificado na estrutura regulatória da terra foi introduzida. Dois princípios básicos foram estabelecidos: o primeiro é que a propriedade absoluta da terra não é transferível, mas os direitos de uso sobre ela são, sob certas condições. A transferência de uso da terra pode ser conduzida de acordo com as regulamentações do Estado, e sujeita às demandas do interesse público. De acordo com essas regulamentações, dois tipos de transações de terra são permitidos: um é a venda dos direitos de uso, e o outro é a transferência desses direitos. No primeiro tipo foi estabelecido um tipo de mercado primário, no qual o Estado ou suas agências autorizadas garantiram o direito de uso por

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um período específico de tempo em troca de um pagamento através de leilão, aluguel ou negociação similar. Períodos de tempo variavam de acordo com o propósito do desenvolvimento proposto. Esses períodos se situavam em 70 anos no caso de uso residencial, 50 anos no caso de uso industrial, educacional, científico, tecnológico, cultural, atlético ou de uso múltiplo, e 40 anos para negócios, turismo, e uso recreacional. A transferência de uso da terra estabeleceu um mercado secundário no qual as partes podem transferir, alugar ou penhorar os direitos de propriedade já garantidos. O mercado primário assim era monopolizado pelo Estado, enquanto o segundo era o local das transações de caráter privado. O Estado normalmente não participava do último, exceto em transações relacionadas ao registro da terra, proteção legal ou estabelecimento de impostos diversos. (Qi apud Li, 1999).

Ainda assim, o processo de transferência dos direitos de uso da terra podia ser uma fonte de corrupção na ausência de regulamentação adequada. Como o acordo particular era uma das opções para garantir o direito de uso da terra, fatores políticos ainda existiam no mercado imobiliário, ainda que em menor grau. De acordo com estatísticas não oficiais antes de junho de 2002, aproximadamente 95% de todos os direitos de uso da terra estavam garantidos por autoridade locais e garantidores, com apenas 5 % através de convites para licitações ou leilões (Qi apud Li e Baker e McKenzie, 2008). A ausência de transparência para garantir o direito de uso da terra resultava em transações escusas entre autoridade locais e especuladores urbanos com o Estado arcando com a perda das receitas de impostos.

Novas leis esclareceram ainda mais o papel do Estado. Em julho de 2002, uma regulamentação definiu que a transferência de direitos de uso da terra para propósitos comerciais, como negócios privados, comércio, turismo, uso recreacional ou desenvolvimento de projetos de habitação teria que passar por um processo de convites para licitações, leilões ou anúncio de tomada de propostas, e proibiu acordos particulares. Embora atualmente a maior parte das transferências ainda ocorra por meio de acordos privados, cada vez mais a regulamentação legal provoca a diminuição da relevância das transferências pelas ferramentas não pertencentes ao mercado ( Qin apud Zhu, 2002). Desse modo, na China atual se busca obter um equilíbrio de forças entre diversos atores no desenvolvimento do mercado imobiliário. O Estado atua como regulador para que o mercado atue com maior competitividade e eficiência, preservando os

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mecanismos naturais e impondo a Lei quando não existe outra ferramenta para que os seus objetivos sejam atingidos. Essa Lei coloca o Estado como proprietário e gestor final dos direitos de uso da terra. Governos municipais tem enormes incentivos para alimentar as vendas, e necessita de grandes lucros mais do que nunca para financiar novos projetos. Nas 70 maiores cidades chinesas, as receitas com vendas de direitos de uso de terras aumentarem 140 por cento em 2009, alcançando 158 bilhÕes de dólares. As vendas do direito de uso da terra representam até 60 por cento das receitas dos governos locais8.

Na busca por eficiência e redesenho das cidades, é fato que na China cidades maiores são bem melhor administradas do que as pequenas (Yusuf e Nabeshima, 2008). Novas alternativas têm surgido no cenário do seu desenvolvimento urbano recente. Um exemplo interessante é o da cidade de Hangzhou, que se utilizou das suas características peculiares de topografia e distribuição espacial para aplicar o conceito de desenvolvimento policêntrico. O desenvolvimento espacial policêntrico ( que atua como fator preventivo contra congestionamentos causados por um foco demasiado no centro das cidades, com a ajuda de cálculos adequados da área edificável através do coeficiente de aproveitamento), e um bom projetado sistema de transporte são as chaves para tornar as cidades mais habitáveis. Também importantes são as políticas de uso do solo que conservam a terra através do adensamento e do uso misto, sem sacrificar espaços verdes vitais e áreas de recreação que apóiam a qualidade de vida. Uma coisa, no entanto, são as regras, outra, uma administração eficiente que faça valer tais regras e princípios. Em períodos, se faz necessário absoluta firmeza na aplicação das leis. Em outros, há necessidade de alguma flexibilidade quando necessário. Um problema sério na China é justamente o “espalhamento” ao longo de rodovias, por exemplo. Por conta muitas vezes da ausência de financiamento para a infra-estrutura, o desenvolvimento urbano se dá ao longo das rodovias ou vicinais existentes, sem muito planejamento. O espalhamento urbano tem seus problemas e pode ocorrer como conseqüência de dois processos: a) baixa densidade urbana resultante de lotes com áreas grandes; b) falta de continuidade da malha urbana, chamada de leapfrogging ou vazios urbanos. Nesses casos, 8

Website: Facts and Detais: Urban Development and Destruction of the Old Neighborhoods in China. http://factsanddetails.com/china.php. Acessado em janeiro de 2010

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enquanto o custo da terra tende a ser baixo, o padrão de desenvolvimento é economicamente insuficiente, tornando-o indesejável e sendo objeto de estudos freqüentes nas últimas décadas. Entretanto, as conclusões das pesquisas realizadas estão divididas entre cidades mais compactas com centros fortes e boas condições de transporte público e cidades multinucleares com disposição muitas vezes policêntrica, teoricamente capazes de servir tanto ao transporte público como ao privado. (Mascaró, Juan José, 2001)

Em Hangzhou, após detalhada análise realizada por meio de tais estudos, verificou-se que em torno dos principais corredores de trânsito, os valores médios apresentavam picos múltiplos, e que o índice de um formato horizontal aparecia nas franjas urbanas, configurando assim a formação policêntrica. Além disso, à medida que o crescimento nas zonas limítrofes da cidade aumentava em proporção geral no crescimento urbano, o crescimento interno representava uma proporção cada vez menor na evolução da cidade. O desenvolvimento policêntrico de Hangzhou só foi possível através do desenho e dos esforços do governo municipal atuando em conjunto com as forças do Mercado. A prefeitura apresentou os guias para um desenvolvimento polinuclear por meio do desenho e da revisão dos planos diretores, anexando distritos próximos e estabelecendo zonas de desenvolvimento. Assim mesmo, a participação ativa de diversas forças teve um papel cada vez mais importante no desenvolvimento do Mercado imobiliário, a absorção de trabalhadores migrantes e a realocação das indústrias. (Wenze Yue, 2009)

A Participação Pública, como valor universal no planejamento eficiente está mencionada em muitos documentos e sites, podendo-se listar alguns dos principais valores para a sua prática:9 1. O público deve ter ouvida a sua opinião em decisões sobre ações que afetam as suas vidas e a sua moradia, assim como tem o direito de ser informado com antecedência e ser proativamente envolvido de forma significativa; 2. Os participantes devem ter acesso a toda informação que necessitem para participar de forma integrativa e aumentar o interesse e motivação para tal, incluindo o compromisso que a opinião do público deve influenciar de alguma forma a decisão final;

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Public participation in China:sustainable urbanization and governance Bert Enserink and Joop Koppenjan Faculty of Technology Policy and Management, Delft University of Technology, Delft, The Netherlands

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3. O processo de participação do público deve respeitar as condições históricas, culturais, ambientais, políticas e sociais das comunidades afetadas pela proposta, incluindo grupos subrepresentados como comunidades indígenas, mulheres, crianças, idosos e pobres; 4. A participação do público envolve participantes na definição da forma como irá participar e promover igualdade entre as gerações atuais e futuras em uma perspectiva de sustentabilidade.

A respeito dos princípios de governança identificados previamente, a participação pública deve ser: iniciada bem cedo no ciclo de vida do planejamento de uma intervenção, e sustentada ao longo de toda a vida; bem planejada e estruturada. Todos os atores devem conhecer os objetivos, regras, organização, procedimentos e os resultados esperados do processo participativo em andamento; concisa e otimizada. Todo programa de participação pública deve tomar lugar no mais eficiente nível de tomada de decisões, na política, plano, programa ou projeto; liderada por uma autoridade neutra no sentido formal ou tradicional e seguir regras conhecidas e aceitas por todas as partes. A participação pública deve seguir algumas regras éticas, comportamento profissional e obrigações morais; focada em itens negociáveis relevantes ao processo de decisão. Como o consenso não é sempre possível, a participação pública necessita ouvir sobre os valores e os interesses dos participantes e focalizar em itens negociáveis.

Em relação ainda, à participação da população nos processos de planejamento das cidades chinesas, esse mecanismo, embora foco inicial deste trabalho, não é visto nos dias de hoje como instrumento prático para a resolução dos problemas pela ótica da tecnocracia chinesa. Ainda assim, pode-se verificar que em projetos específicos, tais como na cidade de Chengdu, a participação da população no planejamento urbano teve caráter estratégico quando mudanças significativas na infraestrutura da cidade necessitaram do envolvimento de todos os stakeholders no processo. Em 1993 a cidade de Chengdu iniciou um Plano de revitalização Integral dos rios Fu e Nan. Esse plano, que seguiu os princípios do planejamento participativo com acordos de colaboração entre entidades públicas e agentes privados, conseguiu conscientizar a opinião pública e animou um grande número de investidores a aplicar recursos em um futuro mais sustentável para a cidade e para os seus habitantes. Mais de 30 mil famílias, que antes viviam nos bairros de submoradia situados nas margens de ambos os rios, receberam casas adequadas e de

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forma acessível. Diversos projetos paralelos abordaram os problemas de saneamento, dos dejetos industriais, das infraestruturas, do transporte e das comunicações, assim como dos parques e jardins. Atualmente, Chengdu é uma cidade moderna, limpa e verde, que não se esqueceu nem do seu patrimônio cultural nem ambiental. Grande parte do leito original dos rios foi restaurado e as lições apreendidas sobre planejamento participativo e acordos de colaboração publica-privada estão se aplicando em diversas populações e nos distritos vizinhos.

Ainda assim, de acordo com o Programa de Desenvolvimento das Naçoes Unidas ( UNDP, 1997) a boa governança é o processo de tomada de decisões e o processo pelas quais as decisões são tomadas. Boa governança, neste sentido, tem oito principais características: é participativa, é orientada para o consenso, é “accountable”, transparente, responsiva, efetiva e eficiente, equilibrada e inclusiva, além de seguir o rigor da Lei. Essa lei se assegura que a corrupção seja minimizada, os pontos de vista das minorias sejam respeitados nos processos de tomada de decisão. Além disso, é responsiva às necessidades atuais e futuras da sociedade ( UNESCAP, 2005, UNDP, 1997).)

Em tese, a política da China em torno da implementação de uma urbanização estratégica e sua organização em torno de uma “sociedade harmoniosa” está alinhada com o exposto acima. A participação é considerada um eixo fundamental para a boa governança. Ela pode ser exercida diretamente pelo público ou através de instituições intermediárias ou representativas. A Convenção Aarhus sobre acesso à informação, participação pública em processos de tomada de decisão e acesso à justiça em assuntos ambientais menciona que os países devem atender a essas três obrigações cruciais através de ferramentas legais (United Nations, 2000) states (art. 3, par. 6).

Em geral, a estratégia da participação, no entanto, é vista de forma controlada pelas autoridades, e utilizada com fins específicos. Notadamente, se verifica que inúmeros projetos de larga escala com grande impacto ambiental incluem em algum momento processos consultivos para que se diminuam efeitos colaterais junto à opinião publica. No entanto, muitas das manifestações populares que a China tem observado ao longo de sua história recente não se traduzem em inquietações por maior participação nos processos decisórios. Ao longo do ano de

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2010, mais de 70 mil dessas manifestações foram identificadas pelo governo chinês, e por ele divulgadas. Na sua grande maioria, são manifestações por questões específicas que atingem uma comunidade ou uma determinada categoria de trabalhadores, e assim se limitam.

Alguns drásticos efeitos colaterais tem sido observados neste radical processo de mudanças. O jornal China Daily apontou que apenas em Beijing, 4,43 milhões de metros quadrados de área de antigos pátios ( hutongs) foram demolidos desde 1990, o equivalente a 40 por cento de sua área central. Em 2007, o vice-ministro da construção lançou um ataque similar nas “ações sem sentido” de e oficiais que derrubaram sítios de valor histórico e relíquias culturais para produzir cidades padronizadas. Suas críticas, no entanto, não tiveram qualquer efeito para redirecionar a maneira como a China desenvolve o seu espaço urbano. Na transitoriedade absoluta do recente cenário urbano, de acordo com o China Daily, o edifício chinês dura em média 30 anos, em comparação aos 74 dos edifícios norteamericanos e 132 para as construções britânicas. Em relação à reurbanização de Beijing, Andrew Jacobs escreveu no New York Times: “A destruição de uma cidade de 800 anos geralmente segue o roteiro: o ideograma chinês para „demolir‟ chai (拆)aparece misteriosamente na parede de um edifício antigo, os moradores se debatem numa batalha infrutífera para salvar as suas casas, e mais rápido de que você possa dizer „celebremos a nova beijing‟, uma equipe de demolição chega, muitas vezes acompanhadas pela polícia, para pulverizar as estruturas de tijolo e madeira (Andrew Jacobs, New York Times, 2009). Cidades históricas como Kashgar tem sido devastadas em nome da reurbanização forçada, e este tem sido um assunto cada vez mais presente na mídia chinesa e estrangeira.

No que tange a financiamentos para a infra-estrutura do crescimento chinês, grandes cidades podem encontrar enormes dificuldades se não mobilizam receitas suficientes ou não demonstram confiabilidade para obtenção de crédito, o que torna a situação bastante difícil para levantar dinheiro no mercado de capitais para financiamentos a longo prazo. Esse problema não está limitado a cidades grandes, embora os maiores centros estejam mais propensos a gastos fiscais. Quando tais recursos estão assim indisponíveis, ou seja, quando a mobilização de recursos é insuficiente ou inadequada, a urbanização frequentemente não é acompanhada de infraestrutura adequada. A falta de densidade financeira do poder público muitas vezes, porém,

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não é impeditivo para o crescimento das cidades chinesas, que crescem muitas vezes em descompasso estrutural.

O financiamento da infraestrutura nas cidades chinesas é fundamentalmente daquele da maioria de outras cidades. Nos países industrializados, empréstimos são utilizados amplamente como um método-chave por conta da natureza da utilização desses recursos, especialmente porque se trata de capital intensivo aplicado com bastante antecedência à quaisquer perspectivas de retorno (Wu apud Chan, 1998; Bird, 2004). Muitos empréstimos emanam diretamente de um ativo mercado de capitais e se apóia em um sistema de títulos emitidos localmente, muitas vezes até pelos municípios que os utilizam. Grandes cidades em particular tendem a ter melhor acesso a mercados desses títulos em comparação a pequenas cidades. Afora a utilização desses títulos, impostos locais são a fonte mais importante de financiamento de infraestrutura, contabilizando, em média, aproximadamente 40% dos recursos alocados. (Wu apud Chan, 1998).

Embora a situação nos países desenvolvidos varie, substancialmente, impostos locais dominam a estrutura de receitas, e financiamento a longo prazo geralmente se trata de um recurso bem menos utilizado. (Wu, 2009). Municípios chineses, no entanto, não em nem recursos suficientes de impostos para financiar a infraestrutura necessária, nem a autoridade ou autonomia para contrair empréstimos (Wu apud Wong e Bird, 2004). Sob reforma, o sistema fiscal descentralizado trabalhou com a vantagem dos governos municipais, incentivando-os a mobilizar novos recursos localmente.

O governo central introduziu um novo processo de descentralização de receitas a partir de 1980. Para propósitos fiscais, cada município é analisado como uma entidade em separado, e isso permitiu que cada município ditasse sua própria política de arrecadação. Depois de uma década de experimentação em torno do tema, em 1994 foi consolidada uma ampla reforma fiscal que reestruturou as finanças da maior parte dos municípios chineses. Pela primeira vez, os municípios puderam estabelecer impostos locais que têm um peso importante nas finanças e, dessa forma, impostos sobre o uso da terra, construção, desenvolvimento imobiliário e manutenção urbana foram possíveis. O componente “uso da terra” é inédito em países em desenvolvimento e é uma receita cada vez mais significativa no conjunto global de impostos urbanos, representando em

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torno de 30% do total dessas receitas. De certa forma, pode-se verificar que os valores arrecadados flutuam ao longo das variações de mercado e, em conjunto com outras receitas, fazem com que os investimentos em infraestrutura das pequenas e médias cidades sejam consideravelmente menores, per capita, do que nas cidades grandes. Em algumas das províncias das regiões centrais e ocidentais, esse processo é danoso, no sentido de que a decentralização fez com que muitas cidades dessas regiões estejam perdendo renda continuamente (Wu, 2009).

Os efeitos do investimento em infraestrutura na performance econômica tem diversas formas de serem analisados. A sua contribuição é comprovada através de inúmeros dados em termos da elevação dos níveis de produtividade do trabalho e do capital, assim como a melhoria de qualidade de vida dos seus habitantes. Em primeiro lugar, o investimento em infraestrutura atende a demandas e necessidades não atendidas, que frequentemente representam obstáculos à performance econômica e crescimento futuro. Acesso a infraestrutura também colabora para que os indivíduos se conectem mais facilmente a atividades econômicas, por exemplo, proporcionando obras viárias para que os custos associados a congestionamentos sejam sensivelmente reduzidos. A cidade de Shanghai pode dar um bom exemplo destsa questão. Com apenas 10% da área central destinada à mobilidade, ela herdou uma rede antiquada planejada no início do século XX, para pedestres e bicicletas. Após um grande investimento em transporte público e infraestrutura de transporte, com a assistência de agências internacionais, a área central da cidade conseguiu evitar os congestionamentos de trânsito comuns às demais cidades chinesas. Um relatório da Academia de Ciências Sociais de Guangxhou

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aponta que para citar um

exemplo, o transito chega a representar em Guangxhou uma despesa de 12 bilhões de RMB por ano, ou seja, aproximadamente 7% do PIB local. Além disso, investimentos em infraestrutura podem ser usados para antecipar desenvolvimento futuro e estimular investimento em outros setores econômicos. Quando a infraestrutura está disponível, é mais fácil para empreendedores adotarem novas tecnologias e, consequentemente, gerar progresso técnico e crescimento econômico.

Uma economia cada vez mais baseada no conhecimento vem crescendo em todo o mundo. Nas grandes cidades chinesas as redes de fibras ópticas vêm sendo ampliadas, como no caso de 10

China Academy of Social Sciences, citado no site Want China Times, 2010

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Shanghai, onde um plano de cinco anos foi implementado para dotar a cidade de dutos subterrâneos para a instalação de um backbone local, propiciando redução nos níveis de poluição causados pelo trânsito e diminuindo acidentes relacionados ao excesso de utilização de postes de linhas de transmissão aéreas. Assim, pode-se verificar que, de diversas formas a China vem se ocupando em construir a sua infraestrutura ( Kathiresan, 2009), provendo serviços e provavelmente fazendo isso de forma mais eficiente do que a maioria dos seus pares com níveis de renda similares. No entanto, existe uma disparidade crescente entre cidades de diferentes regiões do país, na sua habilidade e performance para financiar a sua infraestrutura urbana. Essa desigualdade provavelmente apresentará novos desafios para o futuro, no que tange ao crescimento urbano da China.

Com relação à equação crescimento e sustentabilidade, a intensa industrialização da China e um sistema inadequado de governança ambiental, de alguma forma similar ao monitoramento dos padrões trabalhistas, são os principais responsáveis pelos problemas ambientais chineses. Embora inúmeras indústrias nacionais recentemente tenham dedicado intensos esforços no sentido de adotar tecnologias limpas e mais eficientes, a China se tornou o maior emissor mundial de dióxido de enxofre do mundo. A qualidade da matriz energética compromete toda a cadeia produtiva chinesa, uma vez que mais de dois terços da energia são produzidos a partir de carvão. As estatísticas mostram que em 2006 a China já consumiu mais carvão que os Estados Unidos, o Japão e o Reino Unido juntos, com um consumo acima de 2,4 bilhões de toneladas, sendo que a projeção para 2010 apontava para um consumo acima de 3 bilhões de toneladas. As reservas chinesas são avaliadas em terceiro lugar no mundo, estando atrás apenas dos Estados Unidos e da Rússia. Especialistas avaliam que tais reservas serão suficientes para os próximos 48 anos no ritmo de consumo crescente que a indústria chinesa solicita. Tais limitações na matriz energética chinesa são apontadas como fator de perda de competitividade futura, mas, no momento, os esforços para a transformação dessa dependência ainda são tidos como bastante iniciais.

Os rankings internacionais de cidades mais poluídas do mundo frequentemente são liderados por cidades chinesas. Para citar um exemplo, a organização World Watch, baseada em Washington, incluiu 16 na lista das 20 cidades mais poluídas do mundo. Recentemente, o esforço

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do governo chinês em estabelecer um sistema de monitoramento na forma de um índice nacional permanente apresentou falhas estruturais que inviabilizaram a iniciativa. Apesar desse cenário negativo, sistemas de gestão de impactos ambientais estão em crescente e constante evolução e se tornando bastante disseminados na China de hoje, entre empresas de diversos tamanhos.

Depois de introduzir a obrigatoriedade de controles de impacto ambiental na Construção Civil em 1998, o governo estendeu essa regulamentação para todos os projetos de desenvolvimento de infra-estrutura. Recentemente, o órgão estatal responsável pela proteção ao meio ambiente (SEPA) ganhou enorme notoriedade por anunciar a interrupção de grandes projetos de larga-escala por razões ambientais. Ainda assim, o valor das multas para transgressores ainda é relativamente baixo e, em geral, interesses econômicos acabam se sobrepondo às iniciativas de proteção ambiental. No nível corporativo, no entanto, a China alardeia um grande número de empresas possuidoras de certificação ISO (International Organisation dor Standardisation). Por exemplo, apenas o Japão pode apresentar mais certificações ISO 14001 que a China. De acordo com estatísticas oficiais mais de 12.000 empresas chinesas apresentaram certificados ISO 14001 no ano de 2006. Ao mesmo tempo, inúmeros casos de protestos públicos devidos à poluição estão surgindo em toda a China. E a mídia chinesa agora reporta tais eventos que muitas vezes tomam a forma de embates violentos entre moradores locais e a direção de fábricas poluidoras. Líderes Chineses já perceberam que níveis descontrolados de poluição podem minar a desejada estabilidade social.

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A China, além dos seus desafios internos aqui apresentados, apresenta igualmente questões às demais nações emergentes e aos mercados industriais concorrentes, uma vez que custos relacionados à adequação às normas de responsabilidade ambiental no ocidente muitas vezes não são contrabalançados por iniciativas de igual proporção por parte de empresas chinesas.

Analisando o recente progresso, no entanto, em uma combinação de políticas de governo e da iniciativa privada (Kathiresan, 2009), a China conseguiu reduzir em 4,9 % anualmente a quantidade de dióxido de carbono por unidade de PIB e outros gases de efeito estufa a cada ano ao longo dos últimos 15 anos, comparando com apenas 1,7% nos Estados Unidos e 2,7 % na Europa. Embora este índice possa ser colocado em dúvida pelo aumento desproporcional de seu PIB, ainda assim se verifica um esforço do governo na adoção progressiva de controles ambientais. Diversas políticas e iniciativas do governo chinês, como as verificadas na nossa visita a China, contribuíram para este objetivo e ainda reforçaram o propósito de aumentar

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significativamente o investimento em energias “limpas”, e aumentar a produção de energia nuclear, eólica, solar e hidroelétrica. Um investimento significativo que tem como objetivo diminuir a dependência de carvão de 81% para 34% em 2030. Assim, as iniciativas em torno da competitividade dos setores de energia solar e eólica são de particular interesse no momento.

Em 2008, de acordo com o Global Wind Energy Council (Kathiresan, 2009), a China tinha a maior rede de turbinas eólicas na Ásia, com uma geração de 12,21 milhões de quilowatts, que contabilizavam pelo quarto maior parque eólico do mundo. As políticas de incentivo do governo chinês possibilitaram a criação de mais de 600 empresas de células fotovoltaicas, a sua grande maioria privadas, que hoje manufaturam 44 % das células para equipamentos de energia solar. No entanto a capacidade instalada domesticamente ainda é reduzida, e a geração de energia solar junto à grade nacional era em 2008 de apenas 0,01% do total gerado. Assim mesmo, o governo chinês tem a intenção de que esta produção alcance 20 GW em 2020. Este crescimento da demanda proporcionará um enorme campo de oportunidades e de novos paradigmas de produção de energia para todo o mundo.

Além disso, voltando ao tema do crescimento urbano, o desenvolvimento das cidades nas regiões mais secas da China tem uma forte tendência de se situar circunscrito à disponibilidade de água potável. Hoje aproximadamente dois terços das cidades chinesas enfrentam o problema da falta de água, causado pela distribuição desigual dos depósitos de água, pelo desvio da água para propósitos agrícolas, e pela poluição causada por resíduos industriais. Embora o uso da água por habitante seja comparativamente modesta quando comparada com Japão e EUA, a água é utilizada de forma ineficiente, e uma das razoes fundamentais identificadas são os preços exageradamente subsidiados. A China terá de rever em breve a sua política de uso de seus recursos aquíferos para continuar suportando o crescimento urbano, considerando ainda que mais de 680 milhões de chineses habitam justamente as regiões do norte, mais secas.

2.2 No Brasil

O intenso processo de urbanização no Brasil teve um marco definitivo a partir da crise de 1929 (Fernandes, 2010; Bassul, 2010), com a crise internacional que abalou a pauta de

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exportação brasileira, ancorada na produção do café. Esse processo se acelerou drasticamente a partir dos saltos industriais que o Brasil teve nas décadas de 1950 e 1970, e a população brasileira passou a habitar maciçamente as grandes cidades que adquiriram um perfil metropolitano. (Fernandes, 2010).

As cidades foram obrigadas a lidar com os efeitos dessa urbanização, sem estarem preparadas para tanto. A falta de recursos financeiros, provinda de uma ausência de uma estrutura fiscal adequada e de instrumentos jurídicos específicos (Fernandes, 2010) se aliava ao atendimento prioritário da pauta dos empreendedores imobiliários e adotava “normas e padrões moldados pelos movimentos do capital imobiliário” (Bassul, 2010, p. 71). Baixos salários da maioria destes imigrantes explicam a exclusão do consumo e de bens de serviços urbanos essenciais, e uma gestão caracterizada, por um lado, “pela apropriação privada dos investimentos públicos e por outro, pela segregação de grandes massas populacionais em favelas, cortiços e loteamentos periféricos” (Bassul, 2010, p. 71). O planejamento regulatório da época, ao contrário de reverter o quadro de exclusão, acentuou tais efeitos ( Fernandes, 2010).

Em 1963 um primeiro seminário realizado em Petrópolis, sobre Habitação e Reforma Urbana, organizado por técnicos, intelectuais e políticos, resultou num documento marcado por uma tentativa de ordenamento urbano e fundamentação de idéias que décadas depois seriam incorporadas à ordem jurídica. O documento em questão citava que11: 1. “o o problema habitacional na América Latina (...) é o resultado de condições subdesenvolvimento provocadas por fatores diversos, inclusive processos espoliativos (...)”; 2. “a situação habitacional do Brasil [caracteriza-se] pela desproporção cada vez maior, nos centros urbanos, entre o salário ou a renda familiar e o preço de locação ou de aquisição de moradia, [dado que] o significativo número de habitações construídas tem se destinado quase exclusivamente às classes economicamente mais favorecidas”;

11

Estatuto da cidade: A Construção de uma Lei; José Roberto Bassul; em Estatuto da Cidade comentado, São Paulo, 2010

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3. “nos maiores centros urbanos do País, a população que vive em sub-habitações (...) é grande e crescente, tanto em números absolutos como relativos”; 4. “concorre para agravar o déficit de habitação (...) a incapacidade já demonstrada de obterem, pela iniciativa privada, os recursos e investimentos necessários ao aumento da oferta de moradias de interesse social (...)”; 5. “a ausência de uma política habitacional sistemática (...) vem ocasionando efeitos maléficos ao desenvolvimento global do País, baixando de modo sensível o rendimento econômico-social desse mesmo desenvolvimento”; 6. entre “os direitos fundamentais do homem e da família se inclui o da habitação” e sua realização exige “limitações ao direito de propriedade e uso do solo” e se consubstancia “numa reforma urbana, considerada como o conjunto de medidas estatais visando à justa utilização do solo urbano, à ordenação e ao equipamento das aglomerações urbanas e ao fornecimento de habitação condigna a todas as famílias”; 7. “é de grande importância para a política habitacional a formação de uma consciência popular do problema e a participação do povo em programas de desenvolvimento de comunidades”; 8. “é imprescindível a adoção de medidas que cerceiem a especulação imobiliária, sempre anti social, disciplinando o investimento privado nesse setor”; 9. “para a efetivação da reforma urbana torna-se imprescindível a modificação do parágrafo 16 do art. 141 da Constituição Federal, de maneira a permitir a desapropriação sem exigência de pagamento à vista, em dinheiro” (SERRAN, op. cit., pp. 55-58).

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É possível verificar que temas presentes na pauta desse seminário continuem bastante atuais, mas essa agenda ficou praticamente congelada em função do conturbado período dos primeiros anos da ditadura militar. A idéia de uma legislação mais abrangente para as cidades só voltaria à pauta no final dos anos 1970. Enquanto isso, o governo federal implantou o BNH – Banco Nacional de Habitação e, criado em 1964, se voltava a financiar programas habitacionais. Em relação à habitação popular, apoiava a transferência de moradores de favelas para conjuntos habitacionais, entretanto sistema se dirigiu prioritariamente à financiar incorporações imobiliárias voltadas para a crescente demanda habitacional da classe média (Bassul, 2010). À proporção que os problemas urbanos de agravavam, as críticas à atuação do BNH aumentavam, e no início dos anos 1970, o BNH estendeu a sua atuação para programas de saneamento e o governo federal criou a Comissão nacional de Política Urbana e regiões Metropolitanas (CNPU) (Bassul, 2010). O sistema instituído em 1964 incluía, ao lado do BNH, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU), que tinha o objetivo de orientar a elaboração dos planos diretores municipais. O SERFHAU foi extinto em 1974 e o BNH, em 1986.

Durante o período militar, uma tentativa de se criar uma legislação para regrar o crescimento urbano foi elaborada no âmbito da CNPU, na qual, em 1976, foi elaborado um anteprojeto de lei de desenvolvimento urbano, baseado na constatação de que “as administrações locais não dispunham de um instrumental urbanístico para enfrentar a especulação imobiliária e promover a distribuição dos serviços públicos urbanos” (Bassul apud Grazia, 2003, p. 57). A notícia de tal lei se encontrava em elaboração e vazou para a imprensa, o que“suscitou manchetes alarmistas em alguns jornais e semanários da época, um dos quais alertava os leitores para o fato de o governo militar pretender „socializar‟ o solo urbano” (Bassul apud Ribeiro e Cardoso, 2003, p.12). O governo recuou ( Bassul, 2010).

No ano seguinte, no entanto, o governo militar apresentou novo projeto, motivado pelo risco da causa pela reforma urbana servir como bandeira da oposição (Bassul apud Ribeiro e Cardoso, op.cit, p. 13). O projeto de Lei, chamada de Lei do Desenvolvimento Urbano, ganhou o número 775/83, e objetivava “a melhoria da qualidade de vida das cidades”(Bassul, 2010). Elaborado pelo CNDU, continha uma série de diretrizes e instrumentos relevantes tais como:

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1. a recuperação pelo poder público de investimentos de que resulte valorização imobiliária;

2. a possibilidade de o poder público realizar desapropriações de imóveis urbanos visando à renovação urbana ou para combater a estocagem de solo ocioso;

3. o direito de preempção (preferência);

4. a taxação da renda imobiliária resultante de fatores ligados à localização do imóvel;

5. o direito de superfície;

6. o controle do uso e ocupação do solo;

7. a compatibilização da urbanização com os equipamentos disponíveis;

8. o condicionamento do direito de propriedade (imposto progressivo e edificação compulsória);

9. a regularização fundiária de áreas ocupadas por população de baixa renda;

10. o reconhecimento jurídico da representação exercida pelas associações de moradores;

11. o estímulo à participação individual e comunitária;

12. o direito de participação da comunidade na elaboração de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

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13. a legitimação do Ministério Público para propor ações em defesa do ordenamento urbanístico.

O projeto sofreu oposição ferrenha por parte do empresariado conservador, base do apoio do governo, que sofreu a acusação de querer acabar com o direito de propriedade no Brasil. Sendo assim, o Projeto de Lei 775/83 nunca foi posto em votação no Congresso Nacional (Bassul, 2010).

Demandas sociais crescentes resultaram na organização popular que a partir dos anos 80 se organizou em torno do Movimento Nacional pela Reforma Urbana, com a presença em peso de arquitetos, engenheiros, geógrafos e assistentes sociais, além da grande presença de movimentos sociais urbanos, com o objetivo de “lutar pela democratização do acesso a condições condignas de vida nas cidades brasileiras” (Bassul, 2010, p.72). Esse movimento teve influência decisiva na incorporação à constituinte de 1988 de diversas “emendas populares”. O Estatuto da Cidade, conjunto de leis que regulamentam a gestão do desenvolvimento urbano no Brasil, é fruto do arcabouço legal possibilitado pela constituição ( Fernandes, 2010).

O Estatuto da Cidade, assim, é a Lei federal brasileira que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988. O artigo 182 dispõe que a política urbana é responsabilidade do Município e deve garantir as funções sociais da cidade e o desenvolvimento dos cidadãos. Estabelece, ainda, que o Plano Diretor Municipal é o instrumento básico do ordenamento territorial urbano, devendo definir qual deve ser o uso e as características de ocupação de cada porção do território municipal, fazendo com que todos os imóveis cumpram sua função social. (Barros, Carvalho, Montandon, 2010).

O autor do projeto foi o Senador Pompeu de Souza, que apresentou em junto de 1989 para o senado recolhendo parecer favorável da casa. Um ano depois, foi enviado para a câmara dos deputados, onde lá permaneceu 11 anos. Já bastante reformulado, o Estatuto da Cidade foi amplamente discutido e aprovado em 2001, quando foi sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Na justificação de seu projeto, Pompeu de Sousa afirmava que pretendia conter a “indevida e artificial valorização imobiliária, que dificulta o acesso dos menos abastados

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a terrenos para habitação e onera duplamente o poder público, forçado a intervir em áreas cuja valorização resulta, na maioria das vezes, de investimentos públicos, custeados por todos em benefício de poucos.”(Bassul, 2010).

O Estatuto da Cidade até o momento gera intensos debates. Mesmo após grande reconhecimento internacional como uma legislação avançada, tendo como resultado cerca de 1.500 planos diretores aprovados pelos municípios como decorrência dessa legislação, as realidades urbanas no Brasil não foram significativamente alteradas. Para seus apoiadores o tempo poderá apresentar melhor os seus efeitos, já que há que ser considerado o enorme déficit habitacional e o volume acumulado de problemas sociais e ambientais nas cidades, explicada pela ausência de política urbana anterior à sua aprovação (Bassul, 2010). A criação do Ministério das Cidades em 2003 veio a buscar organizar e transformar em realidade os princípios explícitos no Estatuto da Cidade, dando condições à União, Estados e Municípios para que possam materializar projetos alinhados com os seus objetivos. A aprovação do Estatuto da Cidade “consolidou a ordem constitucional do Brasil quanto ao controle dos processos de desenvolvimento urbano, visando reorientar a ação do Estado, dos mercados imobiliários e da sociedade como um todo, de acordo com novos critérios econômicos, sociais e ambientais. Sua efetiva materialização em políticas e programas vai depender da reforma das ordens jurídico-urbanísticas locais”. (Fernandes, 2010, p.68). Assim, cabe aos municípios, através da autonomia prevista na Lei, estabelecer a regulamentação para controle do uso e desenvolvimento urbano, através de planos diretores adequados e “processos locais de gestão urbana. (Bassul, 2010).

No atual cenário brasileiro de desenvolvimento urbano muito é dito e visto e, na verdade, situado atualmente dentro de certa zona de conforto midiática em relação à inclusão social urbana, uma vez que se tem anunciado que, dentro do amplo projeto governamental do Minha Casa, Minha Vida, milhões de novas moradias estão em construção e, assim, grande parte dos problemas de falta de vivenda para uma enorme parcela dos brasileiros será solucionada. Torna-se importante salientar que a questão da função social da terra é definida pela constituição no seu Artigo 182, em que se lê:

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"Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. Ainda se identifica, dentro desse mesmo âmbito de discussão: § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor." Dessa forma, uma tarefa explícita dos Planos Diretores, enquanto mecanismos de gestão, ordenação e planejamento das cidades, é a de determinar claramente que essas suas prerrogativas só podem ser exercidas quando esse conceito está consolidado pelos diversos agentes que atuam na gestão do crescimento da cidade. Sendo assim, o desafio do poder público, em geral, continua enorme, frente às dificuldades de implementação e falta de recursos de uma política pública de habitação que atenda à população que mais necessita. De acordo com a professora Raquel Rolnik 12, esse espaço é autoconstruído, ou seja, não são os agentes públicos os responsáveis pelo planejamento das cidades, mas antes, esse planejamento atende aos especuladores de forma a suprir deficiências. Ermínia Maricato , em documento de análise do Estatuto das Cidades (2010)13 , ainda lembra que a ausência da lei urbanística parece fornecer um espaço profícuo para a ausência generalizada de leis, cortes, tribunais e advogados para a resolução de conflitos e para a garantia de direitos sociais, civis e humanos. A falta da gestão pública, e a inexistência de qualquer contrato social, remetem os bairros homogeneamente pobres para a situação de “terra de ninguém” em que “a lei é a do mais forte”. É compreensível o aumento do número de homicídios e do crime organizado nas grandes cidades do mundo não desenvolvido nos últimos 30 anos.

Ao falar da lógica financeira da produção imobiliária no Brasil é importante lembrar que após o golpe militar de 1964, foi criada uma estrutura de financiamento da habitação para dar melhores condições para o desenvolvimento do mercado imobiliário no Brasil. Dessa forma, de 12 13

Entrevista ao canal Globonews, 16 de janeiro de 2011 Maricato, Ermínia: Estatuto das Cidades comentado, Ministério das Cidades, em O Estatuto da cidade periférica, pg 10

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acordo com Luciana Royer14, ” do ponto de vista institucional, é inequívoco o êxito da política empreendida a partir dessa iniciativa.” Em relação aos resultados, a literatura demonstra que houve um descasamento entre o desenvolvimento de um mercado de unidades habitacionais, voltadas principalmente à classe média, e a garantia da moradia como direito universal.

O Sistema Financeiro da Habitação foi o primeiro mecanismo financeiro utilizado para se estabelecer como a base de crédito imobiliário para as necessidades do mercado brasileiro. Era apoiado em um funding público e o conjunto de ações era complementado pelo Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo ( SBPE) e o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS), canalizando parte significativa dos recursos da poupança voluntária e compulsória à formação de um funding habitacional (Royer, 2009). Essa política, por outro lado, tinha um caráter concentrador de renda, com a destinação de unidades subsidiadas a segmentos médios e altos da população e a apropriação de parte dos recursos pelos incorporadores privados e pelo capital especulativo ( Royer, 2009).

Já o SFI, procurava se utilizar de mecanismos inovadores como o Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI), a Letra de Crédito Imobiliário (LCI) e a Cédula de Crédito Imobiliário (CCI), buscando introduzir, em menor escala um mercado semelhante ao modelo norte-americano (Royer, 2009), provendo as condições necessárias ao desenvolvimento de um mercado secundário de hipotecas, que teria como função principal transformar esses recebíveis em moeda segura, dotada de liquidez e segurança.

A fragilidade do sistema veio a ficar evidente com a apresentação de dificuldades macroeconômicas do país e, principalmente, com a política de elevadas taxas de juros sustentadas pelo Banco Central. O mercado de hipotecas concorre diretamente com títulos de alta rentabilidade como os do tesouro nacional, ou seja, esse mercado não tem como se desenvolver adequadamente diante da política monetária do governo federal. Assim, transparece a “ineficiência do SFI como modelo de financiamento, apto a estruturar políticas habitacionais universalizantes e a sua vocação para a captura do crédito imobiliário em favor dos grupos de maior poder aquisitivo” (Royer, 2009). 14

(Royer, 2009)

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Por outro lado, o programa federal Minha Casa Minha Vida tem dificuldades enormes em atender às famílias com renda de até três salários mínimos, faixa em que se concentram 90% do déficit habitacional do Brasil. Dados da Caixa Econômica Federal mostram que, até 31 de julho de 2010, apenas 3.588 casas foram entregues às famílias com esse perfil. Das 604 mil unidades contratadas até essa data, 275 mil atingem a faixa mais baixa. Já para aquelas famílias com renda entre três e dez salários, foram entregues 149 mil unidades ( Revista Exame, Agosto de 2010).

2. 3 Comparação Brasil e China

No que tange ao desafio urbano, a urbanização pode ser vista como um meio para melhorar as condições de vida das populações. Nesse contexto, as realizações durante as últimas décadas na China não tem paralelo na história da civilização humana. Graças a reformas econômicas radicais, aproximadamente 400 milhões de chineses saíram de uma situação de pobreza extrema entre os anos de 1980 e 2001, ou seja, aproximadamente três quartos da população mundial. Entretanto, embora as condições de moradia tenham melhorado consideravelmente por um lado, por outro existe um desafio sério. Os atuais processos de urbanização rápida e extensiva na China irão aumentar o consumo de recursos naturais como a terra, água, floresta e minerais, que colocam em risco o meio ambiente e a própria sustentabilidade desse processo.

Quanto à questão da função social, no Brasil, de acordo com o secretário nacional de Programas Urbanos para o Ministério das Cidades, Celso Carvalho15, deveria “ser definida por um critério nacional”. Como, no entanto, essa atribuição foi transferida para os municípios, então cabe ao Estado ajudar os municípios a implementar o conceito, de forma a apoiar os municípios para gerenciar adequadamente o crescimento das cidades. "O Estatuto das Cidades joga para o município a tarefa de fazer a intervenção no mercado privado de terras. Portanto, falta que o governo federal e os estados apóiem os 15

Entrevista para a Agência Brasil, 2010

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municípios e a organização popular para que, na luta pelo plano diretor, se consiga implantar esses instrumentos" Assim, evidencia-se uma diferença com o modelo chinês, em que o debate sobre a função social do território urbano é praticamente colocado em segundo plano, uma vez que o Estado não apenas é dono do território, mas também age de forma a gerenciar as contradições do mercado, estabelecer metas agressivas e administrar ativamente essas metas, envolvendo os atores imobiliários para o desenvolvimento urbano. A contradição aqui encontrada é que em nenhum dos dois modelos a inclusão das partes afetadas é plena, pois se na China não há nem a democracia e o estado de Direito plenamente qualificados, no Brasil a Legislação ou não é atendida ou é insuficiente para apoiar o Estado em construir política urbana de forma eficiente.

Com relação à questão dos movimentos migratórios, como regra geral, se dá por uma modificação espacial na questão do centro econômico dos países, ou seja, países em processos de industrialização crescente têm concentração urbana igualmente determinante. Em particular, os movimentos migratórios no interior da China continental têm sido intensos, com cidades inteiras mudando as suas paisagens, se adensando e outras até surgindo. Tal migração, no entanto, não ocorre de forma a que se criem bolsões de submoradia nas periferias das metrópoles, como ocorre no caso do Brasil.

As primeiras questões relacionadas aos desafios de planejamento dos processos migratórios do século XXI estão naturalmente relacionados à infraestrutura e à poluição, ambas resultantes da urbanização. Se, no Brasil, o grande movimento migratório ocorrido na década de 1970 definiu em grande parte a atual infraestrutura e a “cara” das cidades, na China esse movimento ocorre de forma mais ou menos contínua a partir do início da década de 1980. Na China, é importante observar que para Mao Tsé Tung, as cidades não eram mais do que “polos industriais”, em contraste com os “pólos consumidores”, e que a população proporcional urbana por mais de 30 anos teve uma variação bastante reduzida.

Uma das teorias vigentes é que no atual Ethos, dentro da estrutura de controle e poder do Partido Comunista Chinês, qualquer sinal que aponte para algum tipo de instabilidade social é amplamente combatido e, dessa forma, submoradias que representem eventuais focos de

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dissensão política ou, como melhor descrito, desarmonia social, não são aceitos, tendo em vista a longa história de sucessivas revoltas sociais, que derrubaram inúmeros impérios através dos milhares de anos de história da China.

Não obstante, no Brasil tais espaços de vazio institucional são razoavelmente aceitos, ainda dentro da lógica de dominância de uma classe política que não investe no planejamento a longo prazo. Um exemplo claro é o das centenas de mortes no Estado do Rio de Janeiro, causadas pelas chuvas de janeiro de 2011, em zonas onde majoritariamente o regramento de uso é inexistente, a gestão do solo, é feita de forma especulativa e sujeita a fragilidades das regras de ocupação de encostas. Bairros inteiros construídos em áreas de risco, algumas vezes até aprovados pelas prefeituras, formam um exemplo trágico desse regramento irregular.

A intensa migração que aconteceu na China a partir de 1980 é inédita na história do mundo. Em 1980 ela contava com um índice de urbanização de 19.6%i, ou seja, uma taxa menor que a da Indonésia (22,1%, Índia (23,1%) ou o Paquistão ( 28,1%). Já em 2005, 42.9% da população chinesa já habitava em áreas urbanas, de alguma forma um número inferior à média mundial de 50%, mas bastante próxima a média asiática de 41 % e bastante acima da taxa indiana de 28,7%. Esse movimento significou um fluxo de 268 milhões de pessoas para as cidades, ou seja um número superior ao aumento da população em toda a Ásia Oriental. Até 2020, a projeção é que o número ultrapasse 60%, com mais 200 milhões de chineses se juntando à população urbana atual. A previsão que sustenta esse crescimento é a de que a economia urbana irá gerar postos de trabalho suficientes para absorver as adições para a força de trabalho urbana em ritmo constante.

No que se refere às organizações sociais, China e Brasil têm mais diferenças do que similaridades. A grande diferença se dá basicamente pelo grau consideravelmente mais avançado de consolidação institucional em que o Brasil se encontra, significando que em termos de transparência e accountability o Brasil evoluiu consideravelmente ao longo dos últimos anos. Em paralelo com a consolidação do regime de Estado de Direito, milhares de entidades de apoio e desenvolvimento social, além das que atuam diretamente pela preservação do patrimônio ambiental, tem influenciado, tanto ações corporativas como muitas vezes ditado até o ethos

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dessas organizações, influenciando suas práticas e papéis das empresas em relação ao seu público e à sociedade, além de monitorar e até mesmo coordenar, muitas vezes, a aplicação de políticas de governo.

Já na China, não existe arcabouço legal para a constituição de um terceiro setor forte. Em todo caso, o governo chinês tem permitido, e até certo ponto incentivado, reformas trabalhistas ainda de forma seletiva e descentralizada. Um exemplo interessante é o caso da Foxconn. Nessa empresa, a única montadora dos aparelhos desenvolvidos para a Apple no mundo, catorze suicídios sucessivos no ano de 2010 forçaram a empresa a reestruturar o seu modo de produção e a descentralizar suas unidades, de forma a gerir os recursos humanos de forma menos autocrática, inclusive gerando aumentos salariais de até 66%.

O governo chinês, de forma inédita, permitiu a divulgação dos fatos relativos à empresa, gerando uma série de protestos na região de Shenzhen e, sucessivamente, inúmeras outras empresas promoveram aumentos salariais e renovaram as suas práticas trabalhistas. Dessa forma, gradual e descentralizada, a China permite certa elasticidade nas relações de trabalho e controla a pressão social por melhor qualidade de vida e distribuição dos frutos do desenvolvimento econômico. A Foxconn, subdisiária da Hon Hai, de Taiwan, começou a transferir unidades para regiões menos desenvolvidas em 2010, e irá provavelmente ditar uma tendência das empresas em busca de regiões com mão de obra mais barata e menor risco de acúmulo de tensões sociais. As suas novas fábricas em implantação se situam em Henan e Sichuan, duas das mais populosas províncias chinesas e origem da maioria dos trabalhadores migrantes que se transferiram à região costeira para trabalhar em centros de exportação como Shenzhen. Como elas se apresentam como áreas novas de ocupação, a experiência acumulada nos processos de planejamento do crescimento das cidades da costa oeste será amplificada.

A prefeitura e o governo da provincial contam com o planejamento elaborado em 2002 por Kisho Kurokawa, arquiteto mundialmente conhecido, que projetou a ampliação da cidade, separando em 4 zonas de desenvolvimento em separado, denominadas “cidade ecológica”, “cidade existente”, “cidade metabólica”e “cidade anel”. O projeto ganhou um prêmio mundial “Prominent Award for City Planning Design”, pela World Architects Alliance, naquele ano. Além

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disso, a Foxconn já organizou uma série de trabalhos em conjunto com as organizações comunitárias de Henan para a contratação de pessoal para a sua unidade, demonstrando que a eficácia e o fator humano são igualmente parte da agenda do desenvolvimento urbano chinês.

Em perspectiva comparada com a experiência chinesa, vê-se que os mecanismos que o Estado brasileiro dispõe para a implantação desse processo ainda são consideravelmente frágeis, uma vez que os mecanismos de planejamento das cidades ainda não estão maduros o suficiente para promover a inclusão definitiva das populações marginalizadas. Um exemplo claro é o Estatuto das Cidades, que a partir de 2001, apesar de ser reconhecida internacionalmente como uma legislação “avançada”, ainda não provocou melhorias efetivas para as cidades brasileiras.

As últimas chuvas de 2009, 2010 e 2011

demonstraram que ainda se têm grandes

problemas com a gestão do solo, que é feita no Brasil de forma especulativa e pouco planejada pelo poder público. A questão ainda da “função social da propriedade urbana”, apresentada pelo Estatuto da Cidade como item prioritário para elaboração de política pública, tanto para fins de moradia social como para estabelecer diretrizes públicas para o desenvolvimento urbano, não tem a sua definição clara nos planos diretores dos municípios.

Neste exato momento, a China anunciou que irá investir 200 bilhões de dólares na construção ou renovação de 10 milhões de casas populares, para contrabalançar o altíssimo aumento dos preços no mercado imobiliário do país16. Em Pequim, apartamentos chegam a custar 3 mil dólares o metro quadrado. A ideia vem no sentido de estabilizar preços, forçando o mercado a trabalhar com uma oferta considerável de imóveis. "Queremos que o atual fornecimento limitado de imóveis seja direcionado para os consumidores que mais precisam de casa própria. Essa é a razão básica por que impusemos medidas regulatórias no mercado", de acordo com vice-ministro de Habitação do governo chinês, Qi Ji. De acordo com a matéria, o governo chinês tem respondido a esse fenômeno com medidas para tentar conter a especulação e desincentivar a compra e venda de imóveis secundários.

16

Site de Economia do Uol, 2011) (http://economia.uol.com.br/ultimasnoticias/bbc/2011/03/09/china-investira-us-200-bi-para-frear-precos-imobiliarios.jhtm

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Assim, verifica-se que o governo chinês possui ferramentas para ditar de forma radical a oferta e os preços aplicados no mercado, e os utiliza de forma integral para promover a inclusão social no mercado imobiliário. As ferramentas de que se utiliza muitas vezes estão marcadas pelo autoritarismo e pela arbitrariedade, mas se percebe inevitavelmente a presença de um projeto nacional para o desenvolvimento urbano.

3

METODOLOGIA

A metodologia utilizada foi qualitativa, baseada em pesquisa bibliográfica e de outros dados secundários. Foram acessados sites de universidades chinesas e outras, assim como material recolhido em revistas e livros sobre o tema.

3.1

DELINEAMENTO DA PESQUISA

Este estudo foca a base legal e as estratégias de implementação de políticas eficientes das cidades no tocante às suas políticas propostas de suporte à atividade produtiva e na estruturação do desenvolvimento urbano no Brasil e na China. A seleção dos dois países foi motivada em razão dos estudos feitos na China na ocasião da extensão do curso da FIA para o país, quando pudemos verificar contrastes intensos sobre as estratégias de inclusão habitacional da massa de migrantes decorrente dos processos industrializantes nos dois países em desenvolvimento.

3.2

PROCEDIMENTOS DE COLETA DOS DADOS

Os procedimentos de coleta dos dados foram baseados em dados secundários, especificamente em informações disponibilizadas por livros, revistas e sites.

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3.3

PROCEDIMENTOS E ANÁLISE DE DADOS

Os dados foram analisados à luz das teorias pesquisadas, e conceitos teóricos fundamentais para se estabelecer uma base comparativa, foram abordados, tais como a questão da Função Social da terra, Reforma Urbana, Participação e outros.

3.4

LIMITAÇÕES DA PESQUISA

As principais limitações desta pesquisa estão contidas na escolha de se trabalhar com os dados secundários. A ausência da possibilidade de se trabalhar com dados locais também se fez notar, cabendo um aprofundamento posterior sobre o tema.

4.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As diferenças fundamentais nas urbanidades dos dois países levam à reflexão de que a questão das diferenças encontra, nessas diferentes realidades, contradições que provocam outra reflexão imediata: como a China conseguiu incluir tamanha população de forma razoável em suas cidades sem um espalhamento e descontrole típico dos países do terceiro mundo, mesmo contando com uma renda per capta cinco vezes menor que a brasileira?

A resposta está dividida em algumas hipóteses, aqui lançadas a guisa de aprofundamento nessas reflexões:

1. A China, através de ampla reforma no sistema de propriedade, como diversos países do primeiro mundo, garantiu acesso à terra através de uma extensa reforma agrária, que funciona hoje como uma espécie de garantia social para milhões de famílias que podem assim, apoiar uma transição gradual para o translado de seus membros para as cidades.

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2. O Estado chinês possui mecanismos de gerenciamento da propriedade urbana que lhe garantem a prioridade na gestão do solo, mas que por outro lado, conferem o caráter autoritário e centralizador das decisões tomadas.

3. O Brasil está ainda engatinhando na aplicação das avançadas leis que estão instituídas, mas ainda não instauradas na sua essência. Assim sendo, a questão da inclusão habitacional está sujeita a regras de um mercado imobiliário que não têm como foco atender à população que necessita de moradia, mas a quem consegue nele se inserir.

4. Os mecanismos de financiamento no Brasil estão ainda voltados à população de renda média, com foco na remuneração do capital empregado e não estão voltados necessariamente à grande parte da população que ainda não tem acesso a recursos ou crédito para moradia.

5. O planejamento urbano na China é feito de forma integrada com seus vários agentes, sejam eles incorporadores, poder público, população afetada e, principalmente, intermediada por um corpo técnico preparado.

6. No Brasil, não existe essa integração entre as partes.

Foi possível através deste trabalho atender a necessidade primeira de apresentar um contexto histórico no qual os processos de urbanização do Brasil e da China foram instituídos ao longo da história recente desses países. Acredita-se que a comparação seja válida, pois são realidades com inúmeras diferenças, mas com desafios similares, uma vez que ambas as nações lidam com o enorme desafio de incluir socialmente populações historicamente marginalizadas, e a habitação digna inexoravelmente faz parte deste desafio. Os contextos aqui tratados foram em relação ao âmbito legal, financeiro e estrutural das questões relativas à habitação, e esta investigação tem, além das intenções explicitas, uma segunda, que é a de abrir portas para um debate ainda maior sobre, principalmente, as razões pelas quais o Brasil, mesmo contando com uma renda diversas vezes maior, não conseguiu superar a China no que tange ao provimento do direito à moradia para sua população mais carente.

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