Análise de “pistas” linguísticas em produções textuais escritas escolares e a apreensão da heterogeneidade do letramento

September 21, 2017 | Autor: Fabiana Komesu | Categoria: Discourse Analysis, Literacy, Internet Studies, Digital Literacy, Teaching and Learning Writing and Reading
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Análise de “pistas” linguísticas em produções textuais escritas escolares e a apreensão da heterogeneidade do letramento

Viviane Vomeiro Luiz Sobrinho Fabiana Komesu (Universidade Estadual Paulista)

Resumo O presente trabalho fundamenta-se numa concepção heterogênea de letramento/escrita, conforme proposto por Corrêa (2004), e de discurso, em acordo com a Análise do Discurso de linha francesa, para o estudo indiciário de produções textuais escolares que versam sobre linguagem e tecnologia. O objetivo deste projeto é analisar a relação empreendida por escreventes de um sétimo ano do Ensino Fundamental entre práticas letradas/escritas do papel e as do digital. As produções textuais escritas podem ser apreendidas pelo pesquisador como momentos privilegiados para a observação tanto da constituição heterogênea das práticas letradas/escritas (tradicionais e digitais) quanto da história do escrevente na/da língua. Palavras-chave: Letramento; heterogeneidade; escrita escolar.

Introdução

Diferentes autores, situados nos estudos linguísticos, na educação ou em áreas afins nas ciências humanas e sociais, refletem sobre aspectos que definiriam o que é conhecido, em língua inglesa, como literacy; em português brasileiro, como “letramento”. Trabalhos como os de Street (1984; 2004), Kleiman (1995), Corrêa (2001; 2004), Marcuschi (2004), Soares (2002), Lankshear & Knobel (2011), para citar apenas alguns, nem sempre convergem na definição do termo. Nos estudos realizados no Brasil, é atribuído a Kato (1986) a cunhagem do termo “letramento” (KLEIMAN, 1995, p.17, nota de rodapé no. 2). Não há, no entanto, homogeneidade em seu emprego; como diz Soares (2002), “não há, propriamente, uma diversidade de conceitos, mas diversidade de ênfases na caracterização do fenômeno” (SOARES, 2002, p.144). O pesquisador deve estar atento às diferentes perspectivas, visões de mundo, “vozes” que constituem os estudos, considerandoAnais do V Colóquio Internacional Letramento e Cultura Escrita Belo Horizonte 12 a 14 de agosto de 2014 ISBN 978‐85‐8007‐076‐7

se refinamento da reflexão, uma vez que as várias maneiras de definir o que é o letramento encontram-se fundamentadas em diferentes formas de compreender os usos da leitura e da escrita pelos sujeitos; de nosso ponto de vista, trata-se de modo de conceber as próprias noções de “leitura”, “escrita”, “sujeito” e “linguagem”. Estudiosos do fenômeno da escrita, no País, e críticos, dentre outras, da chamada perspectiva dicotômica, que trata da análise das relações entre fala e escrita de maneira polarizada, com ênfase numa visão imanentista do fato linguístico, propõem refletir sobre letramento numa sua relação com uso social da escrita. Dentre esses trabalhos, destacamos o de Marcuschi (2004), o qual apresenta as relações entre fala e escrita no âmbito de um funcionamento da língua (e não numa sua idealização, como suposto na visão imanentista dos fatos linguísticos falados e escritos), segundo “modalidades de uso” que se dão “dentro do continuum tipológico de práticas sociais de produção textual” (MARCUSCHI, 2004, p.37, grifos no original). Na proposta de Marcuschi, originada, dentre outros, em Biber (1988), “o contínuo dos gêneros textuais distingue e correlaciona os textos de cada modalidade (fala e escrita) quanto às estratégias de formulação que determinam o contínuo das características”, surgindo, assim, semelhanças e diferenças entre fala e escrita (MARCUSCHI, 2004, p.42, grifos no original) nas práticas sociais. Eliminam-se, pois, traços formais dados a priori os quais produziriam (produzem), como consequência grave, “o inconveniente de considerar a fala como o lugar do erro e do caos gramatical, tomando a escrita como o lugar da norma e do bom uso da língua.” (MARCUSCHI, 2004, p.28). Corrêa (2001; 2004), numa releitura de Marscuschi (2004), propõe pensar a indissociabilidade entre fatos linguísticos e práticas sociais, considerandose a interdependência das práticas discursivas da linguagem. Do ponto de vista de Corrêa (2004), fala e escrita (fatos da língua) apenas podem ser concebidas no âmbito de práticas sociais (fatos sociais) na produção discursiva dos agentes, razão pela qual propõe o conceito de modo heterogêneo de constituição da escrita, “encontro entre as práticas sociais do oral/falado e do letrado/escrito, considerada a dialogia com o já falado/escrito e ouvido/lido.” (CORRÊA, 2004, p.9). Em Corrêa (2004), fenômenos da escrita seriam, pois, lugares privilegiados para o pesquisador investigar heterogeneidade própria da língua/gem. “Trabalho, portanto, com a idéia Anais do V Colóquio Internacional Letramento e Cultura Escrita Belo Horizonte 12 a 14 de agosto de 2014 ISBN 978‐85‐8007‐076‐7

de que a escrita é um tipo particular de enunciação [...], caracterizando [...] a representação que o escrevente faz da relação escrita/mundo e escrita/falado.” (CORRÊA, 2004, p.232). A adoção de concepção heterogênea de escrita para o estudo das práticas letradas contemporâneas parece bastante relevante. Com a crescente popularização de tecnologias e dispositivos móveis e a emergência de questionamentos sobre impactos no processo de escolarização de crianças e adolescentes, a adoção de uma visão da heterogeneidade do letramento/escrita, como proposta por Corrêa (2004), permite a problematização dos efeitos de sentido decorrentes de práticas discursivas, por meio das quais o escrevente deixa “pistas” de sua circulação por “imaginário” de como é a (sua) escrita, seja na escola, em práticas institucionalizadas, ou na web, em práticas cotidianas como as promovidas, por exemplo, em comunicadores instantâneos (Whatsapp, Skype, Google Talk, Yahoo! Messenger, Line, MSN) de apelo popular. Nesse cenário, este artigo apresenta resultados parciais obtidos em projeto de doutoramento em Estudos Linguísticos, intitulado “Letramento e heterogeneidade: entre a tradição escolar e a novidade do digital”,1 em desenvolvimento, com o objetivo de investigar marcas linguísticas “plasmadas” em produções textuais escritas escolares, as quais indiciam trânsito do escrevente por práticas letradas/escritas no papel e no digital. Procura-se refletir sobre o que é tomado como “digital”, do ponto de vista do escrevente, considerando-se produção textual escrita realizada em papel, com o tema “linguagem e tecnologias”. A hipótese de partida é a de que há permeabilidade das práticas letradas/escritas, a qual caracteriza heterogeneidade própria do letramento, como procuramos conceber neste trabalho. Dito de outro modo, de nosso ponto de vista não haveria letramento/escrita “do” papel e outro “do” digital ou ainda suposta “interferência” de um em outro; trata-se de institucionalização e legitimação de certas práticas discursivas em detrimento de outras, menos valorizadas social, histórica e culturalmente. 1

Projeto de pesquisa desenvolvido, em nível de doutoramento, no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, linha de pesquisa “Oralidade e Letramento”, na Universidade Estadual Paulista (UNESP), câmpus de São José do Rio Preto (SP), sob orientação da Profª. Drª. Fabiana Komesu e com apoio financeiro da CAPES (2013 – em andamento).

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Na próxima seção, apresentamos de maneira circunstanciada os fundamentos teórico-metodológicos por meio dos quais apreendemos e analisamos as produções textuais escritas escolares: o modo heterogêneo de constituição da escrita (CORRÊA, 2004) e o paradigma indiciário (GINZBURG, 1990; 1991). Procuramos descrever, em linhas gerais, na seção “Material”, como se deu a constituição do corpus da pesquisa, composto por produções textuais escritas de alunos de um sétimo ano (antiga sexta série) do Ensino Fundamental II. Na seção “Análise dos dados”, procuramos observar “pistas” que indiciam tanto o trânsito dos escreventes por práticas letradas/escritas (no papel e no digital), quanto a constituição heterogênea do letramento/escrita. Na última seção, destacamos como este trabalho pode contribuir para reflexão sobre práticas linguístico-discursivas mediadas por tecnologia em contexto escolar.

Fundamentação teórico-metodológica

Num trabalho acadêmico que busca caracterizar a noção de língua como marcada por heterogeneidade e opacidade – a exemplo dos estudos da Análise do Discurso de linha francesa (doravante AD) – pensar as noções de “fala”, “oralidade”, “escrita” e “letramento” não pode ser diferente. É na prática social (escrita ou falada), tomada no processo discursivo dos sujeitos, que oralidade e letramento se mostram em produções heterogêneas dos fatos linguísticos, conforme Corrêa (1997; 2001; 2004). Pesquisas que tratam de questões de letramento, numa perspectiva discursiva, podem se interessar pela proposta de Corrêa, a de um modo heterogêneo de constituição da escrita,2 o qual problematiza suposta pureza ou (certa) homogeneidade da escrita, ao mesmo tempo que busca apreender a escrita como prática social vinculada a práticas discursivas plurais. A assunção de uma perspectiva heterogênea permite, ainda, ao pesquisador, “olhar” para um dado de escrita e formular hipóteses explicativas para sua emergência. Investigará, dessa

2

Conforme Corrêa (1997, 2001, 2004), a heterogeneidade da escrita pode ser apreendida pelo pesquisador a partir das “pistas” que o escrevente deixa no (seu) texto, as quais indiciam a circulação do escrevente por três eixos de representação do “imaginário da escrita”, na proposta do autor: (i) a representação da gênese da escrita, (ii) a representação do código escrita institucionalizado e (iii) a dialogia com o já falado/escrito.

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perspectiva, “pistas” deixadas pelo escrevente na produção textual escrita como reflexo do trabalho e da história do sujeito com a linguagem. Como não se pode ter acesso ao fato escrito “em si”, é fundamental “o papel das hipóteses acerca [do] fato, as quais podem ou não ser – por um critério, metodologicamente definido, de relevância das pistas a serem consideradas e não do relativismo das interpretações” (CORRÊA, 1997, p, 170). Esse procedimento de investigação indiciária, abdutiva (GINZBURG, 1990; 1991), conhecido nas Ciências Humanas, tem sido utilizado nas Ciências da Linguagem por possibilitar abordagem qualitativa de dados singulares (ver, por exemplo, Abaurre; Fiad; Mayrink-Sabinson 1997; Bastos, 1997; Duarte, 1998; Chacon, 1998; 2014; Capristano, 2010; Capristano; Oliveira, 2014, dentre outros). Assim, o detalhe, o residual, o episódico passam a ser reveladores daquilo que se busca conhecer em práticas letradas/escritas. Uma consequência da apreensão da escrita como fato em si, em produções textuais escritas escolares, é, por exemplo, conceber os chamados “erros” de ortografia como “marcas da oralidade”, “interferência” da fala na escrita, com “prejuízo” para esta última e para os escreventes. Em contraposição, em Corrêa (1997; 2001; 2004), a escrita é heterogênea e, portanto, indissociável de práticas orais/faladas. O que é apresentado pelos sujeitos nas mais diversas produções textuais é resultante dessa heterogeneidade; cabe ao analista avaliar, com base nas materialidades discursivas, os efeitos de sentido e seu impacto nas relações sociais. Komesu e Tenani (2009a; 2009b; 2010), assim como Luiz Sobrinho (2012), retomam a concepção de heterogeneidade das práticas letradas/escritas, conforme Corrêa (2004), para problematizar a escrita em ambiente digital:

“a

assunção da tese da heterogeneidade da escrita implica uma noção de escrita, de língua e de linguagem constituídos dialogicamente, mediante as relações entre os sujeitos e os suportes multimodais.” (KOMESU; TENANI, 2009b, p.639). As autoras se opõem à ideia de uma “fonetização”/“oralização” de aspectos da escrita no estudo do chamado “internetês” (abreviatura, ausência de sinais de pontuações, uso de “caretinhas”, dentre outras ocorrências); avaliam que se trata de possibilidade da língua e do discurso, identidade de um grupo e reflexo de relações Anais do V Colóquio Internacional Letramento e Cultura Escrita Belo Horizonte 12 a 14 de agosto de 2014 ISBN 978‐85‐8007‐076‐7

intergenéricas constitutivas de diferentes gêneros. Em outras palavras, as realizações linguísticas não convencionais – ortográficas ou gramaticais –, recorrentes na escrita na internet, são tomadas em Komesu e Tenani (2009a; 2009b; 2010) e em Luiz Sobrinho (2012) como “pistas” da heterogeneidade constitutiva da escrita, de práticas letradas/escritas. Na busca por “pistas” da relação entre linguagem e sujeitos, interessanos considerar as múltiplas semioses que integram e passam a (re)configurar práticas letradas/escritas em emergência, atravessadas pelo cultural do digital:

Ao incorporar as reflexões de Corrêa (ibidem [2004]) ao estudo da escrita na internet, deve-se levar em conta que há mais convergência semiótica do que concorrência entre as semioses que constituem a web. Em função da natureza hipermodal da internet, as práticas de linguagem nesse ambiente, ao invés de evidenciarem um suposto declínio da escrita em relação a outras semioses, ressaltam que há uma constante relação entre elas. Essa convergência semiótica proporciona, por um lado, novos encontros entre escrita, cores, imagens e sons e, por outro, um novo modo de o sujeito relacionar-se com a escrita. Ou seja, a multimodalidade na web proporciona outros ‘modos também heterogêneos de constituição da escrita’. (LUIZ SOBRINHO, 2012, p. 37, grifos no original)

Ao estudar o letramento de uma perspectiva heterogênea sobre a linguagem, “interferências” da fala na escrita “errada” da internet, em produção textual escrita escolar, são entendidas como marcas linguístico-discursivas que evidenciam heterogeneidade própria da linguagem, irrestrita à escrita. São maneiras pelas quais os escreventes colocam em destaque práticas letradas/escritas contemporâneas e (suas) histórias enquanto sujeitos da linguagem.

Material

O conjunto do material é constituído por produções textuais escritas escolares, produzidas por alunos regularmente matriculados em uma sexta série (atual sétimo ano) do Ensino Fundamental II, participantes do projeto de extensão “Oficinas de leitura, interpretação e produção textual”, desenvolvida pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), de São José do Rio Preto, numa escola

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pública localizada naquele município.3 O projeto de extensão foi desenvolvido de 2008 a 2011 e envolveu alunos das então quinta à oitava séries (atuais sexto ao nono anos) do Ensino Fundamental.4 Após os quatro anos de execução, o projeto resultou em banco de dados composto por mais de cinco mil textos, englobando a realização de propostas de diferentes gêneros discursivos. Neste trabalho, nos detemos apenas numa das propostas desenvolvidas no sétimo ano escolar, no ano de 2008, a qual solicita aos estudantes a elaboração de uma carta a uma terceira pessoa, um amigo, perguntando algo que se possa fazer por meio da internet – como se usa o MSN,5 por exemplo. Reproduzimos, a seguir, a proposta de produção textual:

Enunciado 01. Proposta de produção textual escrita

Ao todo, três salas de sétimo ano produziram textos com base nessa proposta, o que resultou em 98 (noventa e oito) produções textuais escritas, as quais passaram a constituir o corpus deste trabalho. 3

Trata-se de projeto coordenado pelas professoras doutoras Luciani Ester Tenani e Sanderléia Roberta Longhin, ambas da UNESP, câmpus de São José do Rio Preto (SP). 4 Os procedimentos éticos da pesquisa foram devidamente avaliados e aprovados, em 08 de julho de 2008 (FR 53/08), pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE), da Universidade Estadual Paulista (UNESP), tendo sido cadastrados junto ao Conselho Nacional de Saúde, Folha nº. FR 198.751 e CAAE n. 0013.0.229.000-08. Cabe informar que aos responsáveis pelos alunos foram explicitados os procedimentos éticos, sobretudo, quanto ao sigilo da autoria dos textos e ao objetivo de estudar marcas linguísticas das produções textuais escritas. A anuência dos responsáveis se deu por meio de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNESP/IBILCE. 5 A sigla MSN ou MSN Messenger refere-se a programa utilizado para troca de mensagens instantâneas, fotos e arquivos entre dois ou mais participantes, pela internet. Foi bastante popular na última década, tendo sido substituído por tecnologia como a do Skype ou programas similares. 

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Análise do material

Na busca de marcas linguístico-discursivas, nas produções textuais escritas escolares, as quais apontem para o trânsito do escrevente por práticas letradas/escritas, no papel e no digital, e para a constituição heterogênea do letramento, adotamos procedimento indiciário, por meio do qual elegemos duas produções textuais escritas, visando à investigação de “pistas”. Vejamos uma das produções textuais escritas:

Enunciado 02. Produção textual escrita A

Ao iniciar a carta dizendo “Pego minha caneta para te mandar instruções para que você possa (rasura) teclar (rasura) comigo pela net”, o escrevente mobiliza práticas discursivas sobre a escrita, um já ouvido/dito: no que se refere à cultura do papel, se escreve (no caso dele) com caneta; quanto à cultura do digital, o gesto seria outro, segundo outra espacialidade que se relaciona ao “teclar”, uma vez que ao escrever se utiliza o teclado alfanumérico do computador. Ao empregar “teclar”, “net” (internet) – assim como, posteriormente, a abreviatura “vc” (você) – o escrevente

demonstra

possuir

(certa)

familiaridade

com

práticas

letradas

reconhecidas como digitais, pois traz para o (seu) texto expressões que caracterizariam aquele ambiente. O uso de abreviaturas (“vc”, “net”), apesar de ser Anais do V Colóquio Internacional Letramento e Cultura Escrita Belo Horizonte 12 a 14 de agosto de 2014 ISBN 978‐85‐8007‐076‐7

comumente associado a práticas de escrita na internet, é mobilizado pelo escrevente na prática letrada/escrita de produção textual escrita escolar. A familiaridade com gêneros da internet se torna mais evidente quando, ao invés de solicitar ajuda para utilizar alguma ferramenta, o escrevente explica ao interlocutor como utilizar alguns desses instrumentos – no caso, a rede social Orkut – e oferece dicas de como se comportar “linguisticamente” numa “conversa” entre amigos: “Sempre que for conversar com um amigo não se esquesa de escrever abreviado pois vc tem que ser simples e dinamico.” O já dito/ouvido sobre a escrita na internet (como teclar, dinamicidade da linguagem, uso de abreviaturas) é mobilizado no enunciado (02) como resposta ao enunciado (01), e aponta para o trânsito do aluno por diferentes práticas de letramento/escrita, não restritas ao ambiente escolar formal. Expomos a seguir uma segunda produção textual escrita:

Enunciado 03. Produção textual escrita B

Em (03), o escrevente mobiliza características prototípicas tanto do gênero epistolar (saudação, desenvolvimento do assunto, fórmula de despedida e assinatura) quanto do gênero em emergência e-mail (endereço eletrônico, site de

Anais do V Colóquio Internacional Letramento e Cultura Escrita Belo Horizonte 12 a 14 de agosto de 2014 ISBN 978‐85‐8007‐076‐7

acesso, senha, mensagem):6 há, pois, entrecruzamento dessas características na réplica formulada à proposta de produção textual escrita. A solicitação feita ao “amigo”, a de que este ensine ao escrevente como escrever um e-mail, é atendida pelo próprio escrevente, na mensagem de MSN por ele formulada. Na (sua) produção

textual

escrita

escolar,



exposição

de

endereço

eletrônico

([email protected]), uso de asteriscos que indicariam sistema alfanumérico (secreto) de senha (*****), emprego de abreviatura (“rs””) e de onomatopeia (“kkk”), índices que expõem história com práticas letradas/escritas, tomadas direta ou indiretamente, da web. Apesar de esses índices serem considerados característicos de práticas letradas/escritas digitais, também estão presentes em práticas letradas/escritas diversas, a exemplo de anúncios publicitários de revistas e jornais impressos, em histórias em quadrinhos, em bilhetes informais manuscritos. Onomatopeias e abreviaturas, por exemplo, são irrestritas a práticas letradas/escritas digitais, como dissemos, e podem ser consideradas como evidência da heterogeneidade, da permeabilidade que constitui práticas letradas/escritas. Observa-se, pois, que a maneira pela qual senha e email são mostrados na produção textual escrita retoma layout de acesso a uma conta na internet; cada um desses dois itens está disposto em linha diferente, com demarcação de onde deve ser inserida cada informação. Forma e espaçamento entre parágrafos não são os esperados num texto escrito em letra cursiva; são características de textos multimodais em ambientes digitais – o espaçamento entre parágrafos é maior do que entre as linhas e não há adentramento em início de parágrafo. O uso de “rsrskkkk”, por sua vez, ao invés de ser tomado como “interferência” da fala na escrita “informal da internet”, é entendido como índice de heterogeneidade da escrita, promovendo certo humor na carta. Distribuição espacial dos parágrafos, uso de abreviaturas (“rs”, “vc”), onomatopeia (“kkk”), menção a e-mail, a Orkut, à senha pessoal são índices por meio dos quais o especialista em letramento/escrita pode investigar a participação (direta e/ou indireta) da escrevente em práticas letradas/escritas características do, mas irrestritas ao, ambiente digital. São, pois, marcas que o escrevente “imprime” à (sua) produção textual escrita escolar e que indiciam (seu) trânsito por práticas 6

A respeito do e-mail enquanto gênero digital, conferir Marcuschi (2005).

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letradas/escritas. Esses índices que o escrevente traz para o (seu) texto também podem ser observados pelo analista como “rastros” da relação que o sujeito estabelece

entre

prática

de

letramento/escrita

escolar

e

prática

de

letramento/escrita em ambiente digital, na heterogeneidade da linguagem.

Considerações Finais

A análise das produções textuais escritas escolares, longe de consolidar distinção entre práticas letradas/escritas tradicionais e digitais, permite observar permeabilidade entre práticas discursivas dos sujeitos. Com base numa noção heterogênea de constituição da escrita (CORRÊA, 2004), buscamos observar índices dessa constituição heterogênea das práticas letradas/escritas. Trata-se, de nosso ponto de vista, de restituir aspecto previsto em concepção de letramento como prática discursiva materializada nos modos de enunciação da linguagem. Avaliamos que este trabalho pode oferecer, de algum modo, subsídios para uma reflexão sobre práticas linguístico-discursivas mediadas por tecnologia em contexto escolar, seja numa reflexão sobre o que seriam os conceitos de “linguagem”, “escrita” e “fala” no chamado “internetês”, seja na revisão do que a própria instituição escolar, na função institucional do professor, toma por “linguagem”, “escrita”, “fala” nas atividades verbais de formação acadêmica. Produções textuais de esferas de um cotidiano, a exemplo de anúncios em revistas e jornais impressos, histórias em quadrinhos, panfletos distribuídos em zonas urbanas, bilhetes informais manuscritos também podem auxiliar numa reflexão sobre a constituição multimodal dos enunciados, frequentemente atribuída apenas ao contexto digital.

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