Análise do comportamento vocal em duas interpretações distintas de “Aos pés da cruz” – Orlando Silva e João Gilberto

July 3, 2017 | Autor: Paulo Santos | Categoria: Análise Musical, Canção Popular Brasileira, João Gilberto, Orlando Silva, Aos pés da cruz
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Análise do comportamento vocal em duas interpretações distintas de “Aos pés da cruz” – Orlando Silva e João Gilberto Paulo Santos1 [email protected] Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar comparativamente os elementos presente nos fonogramas da canção “Aos pés da cruz” dos interpretes, Orlando Silva e João Gilberto, sob a ótica da análise do comportamento vocal de ambos, em datas e épocas diferentes de suas respectivas realizações musicais, assim, evidenciando as estratégias utilizadas para a construção do sentido da obra. O método descritivo escolhido foi a teoria da semiótica, iniciada por Greimas, ampliada por Fontanille e Zilberberg, e desdobrada no campo da canção popular na significação de Luiz Tatit. Além da análise do comportamento vocal propriamente dito, gostaríamos de estabelecer os parâmetros e os elementos que são essenciais para traduzir a canção, entendendo o que ela tem a dizer e como traduzi-la. A reflexão sobre o canto e o comportamento vocal norteou os anseios de alguns compositores e intérpretes refletindo em sua própria execução vocal, o que sugere um olhar mais apurado diante de tal prática. Palavras-chave: Orlando Silva; João Gilberto; Aos pés da cruz; análise; canção

Abstract: The objective of this study is to analyze the elements present in the phonograms of the song “Aos pés da cruz” of interpreters, Orlando Silva and João Gilberto, from the perspective of the analysis of the vocal behavior of both, in different dates and times of their respective musical achievements thus highlighting the strategies used to the construction of the meaning of the work. The descriptive method chosen was the theory of semiotics, initiated by Greimas, magnified by Fontanille and Zilberberg, and deployed in the field of popular song in the significance of Luiz Tatit. Besides the analysis of vocal behavior itself, we would like to establish the parameters and elements that are essential to translate the song, understanding what she has to say and how to translate it. Thinking about singing and vocal behavior guided the aspirations of some songwriters and performers reflecting on his own vocal performance, suggesting a closer look at such a practice. Keywords: Orlando Silva; João Gilberto; “Aos pés da cruz”; analysis; song

Introdução Quem me mostrou a beleza do canto de Orlando Silva foi meu amigo Arrigo Barnabé. Minha família é muito musical, na infância eu vivia rodeada pela música, mas não me lembro de ter ouvido Orlando Silva e acho mesmo que não ouvi porque seu canto é algo que não se esquece. Lembro de ouvir Silvio Caldas cantando Chão de estrelas, Vicente Celestino, Ébrio, Carlos Gardel, “Rechiflao em mi tristeza, / Te evoco y veo que has sido / de mi pobre vida paria sólo uma buena mujer”, mas Orlando, não lembro não. Nos anos 70, quando conheci o Arrigo, ele falava muito do Orlando Silva e me mostrou algumas

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Pianista que iniciou seus estudos com o professor particular Gláucio Munduruca e, em 2002, continuou seus estudos de piano erudito pela (USC) tendo como professor o pianista João Fernando Paluan, formando-se em música em 2007. Atuando desde 1999 no mercado musical como instrumentista, vem trabalhando com grandes nomes e grupos, como Big Band Brasil – Orquestra, o grupo de samba rock Mr. Up e em diversas bandas de baile. Atualmente é professor de piano do instituto de música Bateras Beat – Bauru-SP e aluno do programa de pós-graduação em Música na área de Tópicos Especiais em Música popular do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

gravações. Eu me encantei e fui atrás dos LPs que tenho até hoje: Quando a saudade apertar, Orlando Silva nos anos 40, e outro intitulado Orlando Silva, de 1937, seu disco mais importante porque nele gravou Carinhoso e Rosa (NEGREIROS, 2013). . Em um texto escrito para o jornal O Globo (1995), Caetano, que já na década de 60 falava da “linha evolutiva” da música brasileira (...) diz: “Ninguém pode entender bem a MPB se não entender a bossa nova; ninguém pode entender a bossa nova sem entender João Gilberto; ninguém pode entender João Gilberto sem ouvir Orlando Silva. (…) Sem dúvida, foi por tê-lo ouvido que João sentiu a responsabilidade de radicalizar: um país que produziu Orlando Silva tem obrigações superiores.” (VAZ, 2009).

O maior problema enfrentado por estudiosos da música e pesquisadores que se dedicam ao estudo da canção é a dificuldade de encontrar um procedimento metodológico que dê conta de analisar, de maneira consistente e integrada, seus elementos constituintes: sendo letra e música {que poderia ser fracionada em ritmo, melodia, harmonia e arranjo}. No entanto, é exatamente na interação entre o texto linguístico e o texto musical que a canção constrói o seu sentido (FAVARETTO, 1996, p. 32). A voz e suas significações ao longo da canção popular brasileira Com o surgimento do gramofone no século 20 o conceito de canção popular brasileira foi remodelado. Um marco histórico, que dividi um período em que só era possível o registro escrito por aqueles que dominavam a notação musical, como músicos e compositores com formação erudita – através de partituras – da possibilidade de se registrar canções em fonogramas. Essa possibilidade veio estabelecer um mercado profissional para a canção, colocando o público consumidor em interferência direta na relação entre os intérpretes, compositores, músicos e gravadoras, com a própria maneira de se fazer as canções e também para que toda uma sena cultural ainda reprimida pela sena oficial viesse à tona, trazendo mudanças e se fixando definitivamente como forma de oposição cultural. Organizada pelos negros, essa sena era oriunda de festividades em torno das casas das “tias” – como eram conhecidas as mulheres negras – nas primeiras décadas depois da escravidão. As canções que embalavam essas festividades tinham versos improvisados, em que só o refrão era estabelecido, vindo, mais tarde, dar origem ao parido-alto que segue essa mesma estrutura. Sem uma formação musical escrita, sua cultura vinha sendo transmitida de maneira oral, da fala cotidiana, das gírias e expressões do dia-a-dia, pois não podiam registrar suas criações que acabavam se perdendo no tempo. Essas canções se adequavam plenamente aos novos padrões de consumo em amplitude popular, pura e simplesmente pelo viés da identificação do público com o texto e sua linguagem extraída do cotidiano brasileiro. Mais tarde, essa nova forma veio se consolidar com o princípio da substituição do compromisso poético – o que era dito – pelo compromisso com a própria melodia – maneira entoativa de dizer (BOSCO, 2007, p. 41). No que diz respeito à voz, esse era o elemento fundamental da canção para a eficácia da comunicação com o ouvinte. Em uma produção musical que tinha a fala como base, as qualidades

do timbre de voz do cantor já eram, por si só, responsáveis por boa parte de significações e sentidos, por isso mesmo, a voz do cantor era também o primeiro elemento a ser colocado na composição. O diálogo com as intensões autorais vinha ser o objetivo principal do cantor, que por meio da interpretação e a habilidade entoativa de evidenciar o conteúdo da composição, por vezes, trazia à tona significações não explícitas na mesma. Ao observar as abordagens temáticas da composição, nota-se que conflitos amorosos, por exemplo, implicam em uma ocorrência maior de andamentos lentos e um percurso melódico que se dirige a um ápice, onde há uma compatibilização entre letra e música, pois condiz exatamente com o momento de maior conflito narrado pelo texto. Cria-se, então, o ambiente necessário para o aumento de dinâmica na execução da voz, expondo toda sua beleza e dramaticidade. O desempenho mais significativo para ilustrar significações e sentidos nessas canções de cunho melódico e passional, foi alcançado através da sonoridade extraída das tessituras vocais mais graves e timbres com maior densidade. Em contrapartida, as canções com maior ocorrência rítmica inclinam-se a abordar um contexto mais leve, até mesmo irônico, percebese também o emprego da voz mais aguda pelo cantor, com um timbre menos denso e corpo sonoro menos pronunciado, direcionando o foco para a articulação rítmica e a entoação (MACHADO, 2011, p. 31). Critérios para análise do comportamento vocal Para melhor compreensão das análises do comportamento vocal e mediante um apelo didático inserido no processo de estudo do canto, foi necessário dividir a realização vocal em categorias com uma terminologia própria, englobando os níveis físico, técnico e interpretativo característicos do canto popular. Vale salientar a distinção e predileção desse universo popular, agregado à estética sonora da língua falada, em detrimento a técnicas que trazem em sua composição outros elementos que não a sonoridade da fala, como a técnica lírica e o jazz. Machado (2011) explana assim a terminologia técnica no que se compreendem as competências físicas: Extensão: toda a gama de notas que uma voz é capaz de produzir. Tessitura: gama de notas produzidas numa região em que se obtém a melhor produção vocal. Timbre (ou qualidade vocal): conjunto de características sonoras que particularizam uma voz. O timbre também é a cor da voz que se define pela presença maior ou menor de determinados harmônicos. Assim, uma voz pode ser dita clara ou escura, conforme seja possível analisar o seu corpo sonoro: Voz clara: quando os harmônicos agudos se projetam de maneira acentuada, fundindo os espectros sonoros, produzindo na escuta uma sensação de unicidade, cristalinidade, pureza. Voz escura: quando os harmônicos graves projetam-se de maneira acentuada, conferindo um corpo denso que pode ser traduzido pela percepção de um espectro mais largo da voz. A audibilidade desses harmônicos é que produz a sensação do corpo sonoro mais pronunciado ou adensado, resultando numa sensação auditiva que se traduz numa imagem de escurecimento.

Registro: O registro basal é o que apresenta as notas mais graves da tessitura, e, por sua característica acústica de pulsação, é também chamado de registro pulsátil [...] Nesse registro, as pregas vocais estão muito encurtadas e a mucosa que as recobre, bem solta (BEHLAU e REHDER, 1997)2. O registro modal, por sua vez, é o que apresenta maior número de notas, sendo o registro que geralmente usamos na conversação. Este registro apresenta dois sub-registros: o de peito e o de cabeça, que na verdade correspondem a um maior uso da caixa torácica ou da cavidade da boca e do nariz para a ressonância. Nesse registro as pregas vocais vão se alongando e a mucosa vai se tornando mais tensa à medida em que as notas ficam mais agudas. O registro elevado é o das notas mais agudas da tessitura e está dividido em dois subregistros: o falsete e o assobio (também chamado flauta). O falsete é quase sempre utilizado no canto e raramente na fala. O nome falsete não quer dizer que a voz soe falsa ou que seja produzida por outras estruturas que não as pregas vocais (MACHADO, 2011, p. 54).

Por conseguinte, Machado (2011) agrupa os conceitos do nível técnico da seguinte forma: Emissão: está relacionada à ressonância e envolve uma escolha de posicionamento a partir da pressão exercida sobre a coluna de ar para obtenção do som desejado. Assim, ela pode ser: Frontal: na qual a projeção nos seios da face pode conferir uma metalização ao timbre, mais ou menos acentuada conforme a pressão impressa pela coluna de ar no trato vocal. Nasal: projeção com foco de emissão no nariz, que confere uma sonoridade surda, sem brilho e de pouca clareza sonora. Posterior: projeção palatal que faz uso dos espaços internos da boca, moldando a massa de ar com possibilidades de evidenciar a presença de harmônicos, aumentando o corpo sonoro. Coberta: para a definição de cobertura recorremos ao trabalho das fonoaudiólogas Claudia Pacheco e Márcia Marçal (2001)3: “[...] a cobertura acontece a partir de adaptações de todo trato vocal, com a manutenção da laringe em posição baixa, gerando aumento das cavidades supraglóticas e relaxamento da musculatura faríngea.” A emissão por cobertura é adotada com o objetivo de minimizar as quebras ocorridas na voz nas mudanças de registros ou sub-registros. Emissão tenso-estrangulada: resultante de força laríngea e enrijecimento da prega vocal. Emissão airada: resultante da pouca tensão nas pregas vocais, cria uma fenda paralela entre elas, ampliando o escape de ar durante a produção do som. Articulação rítmica: a maneira como o cantor articula frases e períodos, a partir da percepção rítmica da melodia e do próprio texto (letra), fundindo ou dissociando esses elementos, destacando ou minimizando a maneira como aparecem na composição. Inserida na articulação rítmica está a dicção como capacidade de clareza e definição na pronúncia das notas da melodia e das palavras do texto (MACHADO, 2011, p. 57).

Finalmente, segue a contextualização do nível interpretativo segundo Machado (2011): Dicção: numa compreensão mais ampla de sentidos, a dicção é também um conceito que se estende a toda a realização musical, pois pode ser compreendida como a “maneira como se faz”. Implica, portanto, equilíbrio de escolha estética e desempenho técnico somados às questões perceptivas dos componentes da canção. Gestualidade vocal (gesto interpretativo): a maneira como cada cantor equilibra as tensões da melodia somadas às tensões lingüísticas, construindo um universo de sentidos para a canção, valendo-se também das possibilidades timbrísticas (MACHADO, 2011, p. 59).

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Behlau, Mara e Rehder, Maria Inês. Higiene vocal para o canto coral. Ed. Revinter: 1997. p. 29-30.

3 Pacheco, Claudia de O L. e Marçal, Márcia. Registro e Cobertura – Investigações teóricas e práticas. 2001. CEFAC. São Paulo.

O procedimento de avaliação técnicovocal contido nas análises soma-se a pretensão de relacionar o comportamento vocal com os outros múltiplos elementos que constitui a canção. Complemento analítico através da semiótica A semiótica vem se firmando como ferramenta adequada para organizar o texto e todo o sentido que ele traz, abordando uma rede de relações e nunca um termo isolado, definindo assim o meio de produção desse sentido, ou seja, como o texto diz o que diz, porém, acredita-se que não se finda aí a produção do sentido do discurso (BARROS, 2002, p. 13). Caberia então à semiótica greimasiana, como ferramenta coadjuvante nesta análise, a descrição e explicação dos modos de construção do sentido, que vai além do texto e sua associação praticamente instantânea, mas também a expressão de sentido da melodia. Em “O cancionista”, Tatit (1995) refere-se à composição de canções como um exercício no qual se elimina a fronteira entre o falar e o cantar, apontando ainda que caberia ao cantor obter “um permanente equilíbrio entre os elementos melódicos, linguísticos, os parâmetros musicais e a entoação coloquial”. Há alguns anos seus trabalhos são dedicados à análise da composição popular justamente fazendo uso de ambas as ferramentas: a música e a semiótica, já atribuindo ao intérprete e também ao arranjador, o qual ele intitula de cancionista, o poder de redimensionar a expressão dos conteúdos da canção. Segue então a aplicação desses trabalhos como fundamentação teórica complementar para as análises, com a devida adequação dessas abordagens direcionadas ao âmbito da realização vocal (MACHADO, 2012, p. 60). Observa-se, como ponto de tensividade muito importante da gestualidade oral do cancionista, a junção da continuidade com a segmentação da melodia, já presentes na composição. As vogais e consoantes cumprem bem esse papel, pois além de crucial para inteligibilidade do texto e ilustração de figuras enunciativas, também atuam no campo sonoro à disposição do compositor. Chama-se de passionalização o processo pelo qual se tem um prolongamento das vogais no percurso da canção, o autor imprime continuidade melódica e, por sua vez, emissões alongadas de frequências, muitas vezes, com extensas variações de tessitura, deixando transparecer o (ser) e suas tensões internas decorrentes dos estados passivos da paixão. Por outro lado, a segmentação nos ataques consonantais denota o autor regido pelo ato do (fazer), diluindo suas tensões internar em impulsos somáticos, que tem como característica, subdivisão dos valores rítmicos, marcação dos acentos e recorrência. A esse processo dá-se o nome de tematização. No intuito de obter uma veracidade enunciativa para com o ouvinte, o cancionista investe na naturalidade entoativa, fundindo a linha melódica e as inflexões da linguagem verbal em um só. Os pontos de acentuação do texto são programados para aderirem à melodia e transcorrer com naturalidade, seguindo as leis da articulação linguística, fazendo- se entender pelos mesmos princípios coloquiais, o que acaba

inserindo o próprio cancionista na obra, pois o conteúdo do texto ganha status de tempo presente pela entoação da voz no momento da execução. Esse processo que ilustra verdadeiras cenas ou figuras enunciativas, possibilitando ao ouvinte reconhecer a voz que fala dentro da voz que canta, denomina-se figurativização (TATIT, 1995, p. 15). Apanhado histórico e metodologia das análises da canção O compositor Marino do Espírito Santo Pinto iniciou sua carreira artística em 1938, a principio apenas como letrista, já tendo suas composições gravadas por nomes de peso, como, por exemplo, o de Aracy de Almeida e, em parceria de Ataulfo Alves, emplacou a canção “Fale mal mas fale de mim” como um grande sucesso desse mesmo ano. Entre inúmeros outros sucessos, Marino Pinto contou com os mais importantes parceiros da musica popular brasileira, como Wilson Batista, passando por Herivelto Martins até Tom Jobim. E foi com o cantor compositor Zé da Zilda, nome artístico de José Gonçalves, que surgiu a parceria que daria origem a canção “Aos pés da cruz”, canção essa, que na segunda parte, Marino Pinto traz a célebre máxima “O coração tem razões que a própria razão desconhece”, do filósofo francês Blaise Pascal. Entre mais de cem composições de Zé Gonçalves, “Aos pés da cruz” foi considerada seu maior sucesso. Essa música foi composta em 1942 e viria ser o último grande sucesso gravado, nesse mesmo ano, por Orlando Silva pela gravadora RCA Victor. “Aos pés da cruz” já obtinha grande sucesso nas apresentações de programas radiofônicos que o cantor fazia mesmo antes de gravá-la. Com o tema das juras descumpridas, bastante utilizado na época, o samba agradou tanto que já em seguida recebeu uma continuação – “Quem mente perde a razão” – autoria do próprio Zé da Zilda e gravada por Nelson Gonçalves, sucessor de Orlando Silva na gravadora. “Aos pés da cruz” foi regravada muitas vezes, inclusive por João Gilberto em 1959, ano do lançamento de Chega de Saudade, seu primeiro LP. Nele o cantor homenageia seus ídolos e referências do passado trazendo seus sambas tradicionais, já com uma roupagem de bossa-nova. Desse LP foi selecionada a gravação para esta análise (FRAGOSOS, 2014). Sobre a canção 1

Aos pés da Santa Cruz/ 2Você se ajoelhou/ 3E em nome de Jesus/ 4Um grande amor/ 5Você

jurou/ 6Jurou mas não cumpriu/ 7Fingiu e me enganou/ 8Pra mim você mentiu/ 9Pra Deus você pecou/ 10O coração tem razões/ 11Que a própria razão desconhece/ 12Faz promessas e juras/ 13Depois esquece/

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Seguindo esse princípio/

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Você também prometeu/

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Chegou até a jurar um grande

amor/ 17Mas depois se esqueceu (Aos pés da cruz, Marino Pinto e Zé Gonçalves, 1942). De acordo com a proposta de melhor compreensão do sentido de uma determinada canção pelos regimes de integração entre melodia e letra de Tatit (1995), pode-se dizer que exista na canção analisada uma predominância dos aspectos de passionalização: prolongamentos, saltos e a

melodia se expandindo pelo campo da tessitura num percurso enfático de 16 semitons, sugerem descontinuidade e apontam para um estado de melancolia e tristeza que se torna o elemento central no plano de expressão, corroborado pelo texto no plano de conteúdo, cujo discurso traz no seu significado toda dramaticidade das isotopias4: Tristeza, abandono e melancolia resultante da disjunção entre o sujeito e o objeto de desejo. Também é possível notar em seu desenvolvimento certa concentração da melodia em motivos estabilizados, uma característica de melodias tematizadas que atenua o conteúdo passional, mas que aqui aparece como recurso secundário tendo em vista o âmbito geral da canção. Nessa gravação, com Orlando Silva, o andamento acelerado típico do samba é outro elemento que atenua a percepção de passionalidade. Apesar de sua estruturação formal estar arraigada aos moldes das conhecidas “(...) canções standards norte-americana, A A B A, provenientes dos musicais da Broadway – canções muito difundidas nos meios musicais do mundo todo” (LYRA, 2007, p. 42) – observasse que a macroestrutura formal é construída por duas partes distintas, A e B, as duas em modo maior. Os versos iniciais se desenvolvem de maneira praticamente idênticos do que diz respeito ao comportamento melódico-harmônico, variando, no entanto, o percurso das terminações de frase, onde os movimentos ascendentes são compensados pelos descendentes dirigindo-se para as regiões mais agudas de maneira gradual. Essa compensação também está presente no enunciado da parte A, nos dois primeiros versos, que apontam uma breve conjunção, descritas por juras de amor, quebradas nos próximos quatro versos, estabelecendo assim a disjunção que se encaminha até a parte B. Observando as terminações tanto do 2° para o 3° verso quanto do 4° para o 5° da parte A e do 9° para 10° quanto do 13° para o 14° verso da parte B, nota-se a presença do processo de soldagem melódica5. Segundo Machado (2012), citando Tatit (comunicação pessoal), uma sutil respiração entre a união desses versos destacam tal processo, evidenciando o que está sendo dito, além de reforçar o desejo de continuidade expresso pela melodia. Aqui, esse recurso interpretativo vem ilustrar o desejo de conjunção e o estado de abandono do sujeito/enunciador. A transição entre as partes A e B da canção dá-se sobre o 9° e o 10° verso, que sob o ponto de vista melódico-harmônico, se desdobra com o 5° grau da tonalidade, sugerindo uma tensão que pediria uma resolução no 10° verso. O que acaba não ocorrendo, e sim, em contrapartida, ocorre uma resolução no segundo grau da tonalidade que gera finalização inconclusiva apontando para uma continuidade. Pode-se traçar um paralelo a isso por intermédio do texto quando os enunciados

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Resultam da recorrência de elementos básicos no texto lingüístico ou musical. Traçando um paralelo entre sema, “cada unidade mínima de significação”, e as notas musicais. Os semas se alinhavam e se encaminham para uma idéia central, segundo Machado (2011). 5

Processo pelo qual cada verso “entrega” seu tom final para o inicio do seguinte, criando um tipo específico de união, segundo Tatit (comunicação pessoal), Machado (2012).

dos versos correspondentes trazem o estado de disjunção: Pra mim você mentiu / Pra Deus você pecou e um certo conformismo, uma aceitação através do aforismo: O coração tem razões / Que a própria razão desconhece, indicando uma desejo de conjunção condicionado pela lealdade e, por sua vez, um desejo de continuidade. Além disso, a sequência dos versos se desenvolve reiterando o processo de conjunção com a letra. Eles se encontram alocados em motivos rítmico-melódicos onde nota-se maior concentração no que diz respeito à tessitura, a presença de síncopes e pequenos saltos vão delineando a melodia em um percurso gradual descendente. O salto de (7ª menor a cima) denota uma transposição de registro no verso 14, levando a melodia novamente para a região aguda, estabilizando-a por um momento e mais uma vez expondo gradação descendente. Nos versos seguintes inaugura-se nova fase da ideia de expansão e compensação da melodia, que se encaminha para resolução harmônica e o perpetuo estado de disjunção entre o sujeito-enunciador e seu objeto de desejo. Análise do comportamento vocal “Orlando Silva” Andamento: Aproximadamente 93 bpm Tonalidade: B Tessitura: 16 semitons Instrumentação: orquestra/ pandeiro Forma: Introdução A A B A B Intermezzo A B instrumental Ponte A voz Coda final instrumental Ano: 1942 Gravação utilizada: http://www.youtube.com/watch?v=k6BHozYoY2I A voz de Orlando Silva faz jus à referência estética de sua época, que justifica a presença de virtuosismo vocal em sue canto. O refinamento técnico do seu fraseado melódico, sua articulação rítmica e controle de dinâmica, revelam um domínio sobre esses fundamentos que lhe dão base para uma força emotiva que se propaga na interpretação. Na parte A, o intérprete já traz o elemento passional que vai nortear toda a canção, fazendo uso de uma emissão que projeta durações alongadas, Orlando Silva imprime uma desaceleração no desenvolvimento melódico compatível com a ideia do estado de disjunção do enunciador. Mesmo com o andamento acelerado característico do samba, que sugere um componente rítmico mais tematizado do percurso melódico, o arranjo orquestral que ambienta harmonicamente essa canção corrobora esse movimento atenuante com fraseados que privilegiam as durações. A emissão vocal aqui empegada é predominantemente posteriorizada, ocupando o espaço interno da boca na região do palato mole. Um canto bastante formal compatível com os cantores da época, tendo, no entanto, como característica, um zelo pelo texto que o intérprete demonstra pela

articulação rítmica e uma dicção bastante clara. Conforme o fraseado vai se expandindo de maneira equilibrada pelo campo da tessitura, percebe-se o equilíbrio da emissão e das notas precisas em sua execução, que ressalta a ideia da voz sublime e o distanciamento em relação ao ouvinte. Nota-se, também, a utilização de recursos técnicos como apogiaturas, vibratos e choros (ataque laríngeo), gestos que condizem com a imagem fragilizada e submissa que o enunciador passa na construção da interpretação. Como, por exemplo, apogiaturas e vibratos aparecem sobre as sílabas em negrito das terminações dos seguintes versos: Você se ajoelhou / Você jurou / Jurou mas não cumpriu / Fingiu e me enganou / Pra mim você mentiu / Pra Deus você pecou. Na repetição da parte A, esses recursos são apresentados já no começo da frase e, desta vez, acrescido do ataque laríngeo que faz alusão ao choro dentro do contexto interpretativo: Aos pés da Santa Cruz. Gestos pontuais como esses enfatizam o apelo dramático e se conjugam com o estado de disjunção entre sujeito e objeto descrito na forma extensa da canção. Ainda na repetição da parte A, Orlando Silva altera o percurso melódico do primeiro verso observado na exposição de A (Ex.1), a fim de privilegiar a intenção de continuidade, pois ele aproveita um prolongamento vocálico na região aguda da tessitura para dar inicio a uma nova frase partindo da mesma região, sem interrupções de qualquer natureza. Do ponto de vista musical, a ideia de continuidade se confirma pelo sentido que o quinto grau da tonalidade imprime no final da exposição de A, que por intermédio de um movimento cromático, resolve e dá inicio à repetição de A por um caminho mais curto (Ex.2), justificando o sentido de continuidade e o desejo de conjunção para com o objeto. Cou Pra

vo

men San

mim



tiu

pe

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pés pra



ta

jo Cruz

se a

Deus



vo

Aos

e

lhou

Vo

Ex.1 -Tabela trazendo um trecho da exposição da parte A.

Cou Pra

vo

mim

men



Aos

tiu

pe

San

Pés

da pra

ta



vo Cruz



se a

jo

Deus

e

vo

Lhou

Ex.2 -Tabela trazendo um trecho da repetição da parte A. Na parte B da composição, na qual o componente rítmico tematizado se apresenta de modo mais evidente na melodia, o intérprete que, até então, vem valorizando sobretudo o percurso melódico, ressaltando a voz que canta em detrimento a voz que fala, introduz sutilmente o elemento figurativo da voz, do 10º ao 13º verso, pela maneira coloquial, aproximando-se da fala, que expressa seu lamento decorrente do estado de disjunção em que se encontra o cantor/enunciador. Análise do comportamento vocal “João Gilberto” Andamento: Aproximadamente 72 bpm Tonalidade: E Tessitura: 16 semitons Instrumentação: violão / bateria Forma: Introdução A B Coda final (scat singing e assobio) Ano:

1959

(LP

Chega

de

Saudade



Faixa

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Gravação

utilizada:

http://www.youtube.com/watch?v=lqwhpIIooMg) Arranjo: Antônio Carlos Jobim Esta gravação faz parte do repertório escolhido para o LP Chega de Saudade, trabalho pelo qual o intérprete demostraria como composições antigas de sambas tradicionais se compatibilizariam com o novo movimento da Bossa Nova, além de expressar toda admiração por suas influências e em especial por Orlando Silva.

O projeto estético de João Gilberto se faz presente pela a inserção de elementos como novas harmonias, uma levada rítmica sustentada pela regularidade característica da Bossa Nova, um andamento mais lento que dá margem para prolongamentos, e a escolha da tonalidade que atua sobre a região médio-grave de sua voz visando uma maior aproximação entre a voz que fala e a voz que canta. Ao longo da canção o intérprete faz uso de pelo menos dois tipos de emissão: em sua grande parte, uma emissão extremamente leve com um timbre claro e equilibrado evidenciando o componente coloquial da fala, e, outra, com uma emissão um tanto airada quando atinge a região grave da voz, escurecendo o timbre deixando-o mais denso – Chegou ate a jurar um grande amor. A articulação rítmica reitera a coloquialidade da fala valorizando o fraseado, sem enfatizar nenhuma sílaba e, com uma moderação na intensidade da emissão vocal, João Gilberto atenua o aspecto passional anunciado no projeto intenso da canção exprimindo seu próprio projeto estético, produzindo um efeito de introspecção, no entanto, os elementos passionais figurativizados estão ali contidos em uma interpretação que remete àquela de Orlando Silva, denotando o estado disfórico em que se encontra o enunciador diante de sua condição de distanciamento do objeto. Na parte A, o intérprete se utiliza da duração de notas sob as vogais nos finais de frase, porém sem vibratos, para evidenciar o que está sendo dito e interligar as frases, adotando, assim, a ideia de continuidade. A respiração entre uma frase e outra praticamente não é notada, como em: E em nome de Jesus----- / Um grande amor----- / Você jurou-----. Esse recurso vem, portanto, mais uma vez, ressaltar o carácter passional desta primeira parte se compatibilizando com o aspecto extenso da canção. O inicio da parte B, vem de um percurso realizado em arpejo no quinto grau da tonalidade em direção à região aguda da voz, no final da parte A. Isso, por si só, já exprime a intenção de continuidade que é corroborada pela interligação de uma parte à outra pelo processo de soldagem melódica, já mencionado neste trabalho. Já dentro da parte B, nos versos O coração tem razões / Que a própria razão desconhece, o cantor atinge as notas mais agudas em emissão de peito e demonstra um certo tensionamento físico para o feito. Essa emissão um pouco mais tensa pode sugerir uma intensificação do sentimento disfórico, que logo, no verso seguinte, o próprio percurso descendente trata de atenuar a emissão apontando uma resignação através da leveza da voz. No desenvolvimento da parte B, os versos que se seguem, sobretudo no começo das frases, ganham um caráter predominante de tematização na medida em que aparecem repetições de notas e de motivos rítmicos nas articulações. Todavia, essas alterações não se sustentam em um âmbito mais extenso, pois esse comportamento é logo atenuado pelo cantor quando ele efetua alguns elementos diferentes da versão de Orlando Silva, tais como: deslocamentos, prolongamentos e a

supressão do pronome pessoal – se – do último verso. Portanto, onde seria: Mas depois se esqueceu”, passou a ser “Mas depois esqueceu----. Além da forma que também foi mudada, onde o intérprete opta por uma síntese da canção, não repetindo as partes e, introduzindo a ela uma coda final em que a voz é articulada como instrumento, que também se compatibiliza com os sentimentos disfóricos descritos e expressos pelo projeto extenso da canção. Conclusão A releitura que João Gilberto se propôs a fazer das raízes do samba dos anos 30, ao idealizar o LP Chega de Saudade, já daria uma pista sobre o desenrolar e os resultados desta análise. É notória a influência que a versão gravada por Orlando Silva exerce sobre a criada por João Gilberto, até mesmo como homenagem rendida pela admiração do segundo pelo primeiro. No entanto, além das particularidades vocais de cada um, ainda é preciso um olhar mais atento pelo viés das referencias estéticas de cada época, para entender e justificar as distinções em ambas as vozes. A interpretação de Orlando Silva traz em suas marcas vocais elementos que estão de acordo com a estética musical da época, contando com a utilização das regiões agudas e a valorização da potência vocal para enfatizar o apelo dramático e demonstrar virtuosismo. Ao explorar recursos de emissão como prolongamentos vocálicos e vibratos, o intérprete ressalta os componentes disfóricos presentes na canção trazendo à tona todo seu caráter passional, que, por sua vez, faz referência à tradição da seresta, na qual predomina a entoação cantada, um dos pilares que normatizam o canto popular brasileiro. Partindo do ponto de vista da tradição, João Gilberto soube equacionar muito bem a relação entre a voz popular já consolidada e os novos caminhos que já vinham sendo apontados pelo samba e, em especial, por Orlando Silva nessa canção. Na gravação de João Gilberto, o componente disfórico se faz presente pela escolha do timbre, porém, o projeto extenso está voltado para homogenia, que aliado à continuidade sonora, provida por uma articulação rítmica que visa atenuar de maneira drástica qualquer gesto que possa interromper o percurso melódico, caracteriza uma nova sonoridade para a voz popular conforme os preceitos estéticos da Bossa Nova. Referências FAVARETTO, Celso. Tropicália alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996. NESTROVSKI, Arthur. Lendo Música. In: BOSCO, Francisco et al. (Org.). 10 ensaios sobre 10 canções. São Paulo: Publifolha, 2007. p. 41-64. MACHADO, Regina. A voz na canção popular brasileira: um estudo sobre a Vanguarda Paulista. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.

BARROS, Diana Luz P. de. Teoria do discurso. Fundamentos Semióticos. São Paulo: FFLCH/USP, 2002. TATIT, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. 2. Ed. São Paulo: EDUSP, 1995. MACHADO, Regina. Da intenção ao gesto interpretativo: análise semiótica do canto popular brasileiro. São Paulo: Tese (doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2012. FRAGOSOS,

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