Analise do filme Império dos Sentidos
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Trabalho Final Narrativas Visuais Análise da obra O Império dos Sentidos (1976) Diretor Nagisa Oshima Professor Vitor Almeida Érica Boccardo Burini 2014/2015 1
Resumo: O presente trabalho trata da análise do filme O Império dos Sentidos (1976), que tem como protagonistas Tatsuya Fuji como Kichizo Ishida e Eiko Matsuda como Sada Abe. O filme trata da relação amorosa obsessiva, baseada em fatos reais, que acaba por se desenrolar no assassinato do homem, que tem seus órgãos genitais extirpados pela companheira. A obra cinematográfica é muito controversa por tratar de forma aberta e audaciosa a profundidade do desejo sexual no limiar da patologia. Análise: A narrativa escolhida contempla uma das características distintivas das grandes obras de arte, que é conter em si um arranjo complexo de ousadias que se tornam harmônicas. É extremamente difícil escolher caminhos de apresentação do filme O Império dos Sentidos. Muito sobre ele é difundido e até o presente carrega uma aura de proibido. E de fato, a obra cinematográfica foi inteiramente filmada no Japão mas teve de ser finalizada na França, para que pudesse lá ser lançada devido às leis japonesas estritas contra a produção de material pornográfico. Escrita e dirigida por Nagisa Oshima e produzida por Anatole Dauman, teve o lançamento francês em 1976 e até então não foi exibida integralmente, isto é, sem censuras, em seu país de origem. Até mesmo a mais breve das sinopses informa que o enredo é baseado em um evento verídico ocorrido em 1936. Sada Abe foi presa carregando a genitália decepada de seu amante, Kichizo Ishida, o qual havia assassinado quatro dias antes por asfixiofilia. Junto ao leito do morto foram encontrados lençóis com o escrito "Sada e Kichi juntos" à sangue e em seu braço liase entalhado à faca o nome da autora do crime. A pena de seis anos imputada não foi inteiramente cumprida, sendo ela liberta no início da Segunda Guerra Mundial. A excepcionalidade da história fez com que rapidamente o fato se tornasse mito e penetrasse no imaginário popular japonês, oferecendose como substrato para interpretações livres em obras tal como o filme que será investigado. O fato de ser fruto do ambiente histórico, social, geográfico e moral oriental não impede que a obra seja analisada sob a ótica e a ética deste lado do meridiano de Greenwich. As indagações suscitadas mostramse pertinentes até o tempo e o espaço presente. A grande difusão no mundo ocidental e a sua consequente inserção no panorama francês de cinema também corroboraram para o alargamento do escopo de apreensão do filme. Mas resiste o exercício de alteridade e (re)conhecimento de uma identidade cultural distinta. Mostrase desafiadora a decifração de determinadas cenas que representam cerimônias, rituais e costumes tradicionais japoneses como o casamento e o ambiente das casas de gueixas. Em conformidade com o propósito do texto, não se buscará um aprofundamento maior que o necessário em peculiaridades 2
da cultura japonesa mas procurarseá a investigar o sentido obtido das imagens segundo uma miscelânea cultural resultante deste encontro entre o oriente e o ocidente. A percepção pudica que se tem em geral da cultura nipônica parece entrar em conflito com tal história que narra um envolvimento de tamanha intensidade. No entanto, a cultura japonesa não é despida de erotismo. A forma explícita com a qual o diretor Oshima conduz as cenas de sexo não simulado traz à memória as xilogravuras do estilo shunga. Katsushika Hokusai(17601849) é um artista que tornouse mundialmente célebre através de obras icônicas como A Grande Onda de Kanagawa (18301833), mas também produziu gravuras como O Sonho da Mulher do Pescador (1820)1 , que se situam no subgênero shunga. Existem vários correlatos entre O Império dos Sentidos e as gravuras japonesas mencionadas. O primeiro que pode ser apontado diz respeito aos enquadramentos das imagens. Em recortes equilibrados, estáticos e simétricos, a forma de despertar a relação narrativa do desejo é muito similar. Em determinados momentos, o observador é convidado a completar fragmentos no sentido de criar a experiência erótica. Os corpos são segmentados por lençóis e kimonos que os encobrem evidenciando rostos e genitais como áreas capazes de suscitar a sensação desejada. Outro paralelo diz respeito aos comportamentos e ao lugar onde a ação se dá. O filme se passa quase em sua totalidade em espaços interiores de casas de gueixas ou pousadas. Este ambiente de alcova percorre a maior parte do universo shunga. Quando as cenas ocorrem em ambientes externos, remetem à ideia de exibição, que é recorrente em ambos. Seja pela presença de voyeurs ou pelo desejo exibicionista, a presença de terceiros reforça a naturalidade do ato sexual e espelha a posição do observador das obras. O Império dos Sentidos suscita um grande debate sobre o que é o proibido, o obsceno e o pornográfico. O diretor Nagisa Oshima afirma que o conceito de obscenidade é testado quando ousamos olhar algo que desejamos ver mas nos proibimos de olhar2, sob este prisma, seu filme não se comporta desta maneira porque tudo é revelado. Tudo o que pode ser desejado de ser visto é exposto, é despido. E num padrão similar ao dos vícios insaciáveis, as situações começam a recrudescer até
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Parece relevante ressaltar que muitos dos comportamentos apontados como patologias sexuais representados na gravura japonesa também figuram na arte ocidental. A zoofilia é recorrente em mitos gregos que se tornaram grandes temas da arte como a Leda e o cisne, que atravessou séculos desde a antiguidade e foi revisitado por ilustres artistas como Leonardo da Vinci e Michelangelo, perdurando até os séculos XIX e XX em Cézanne, Gustav Klimt, Salvador Dali, entre outros. 2 Tradução livre do original "The concept of ‘obscenity’ is tested when we dare to look at something that we desire to see but have forbidden ourselves to look." Extraído de Theory of Experimental Pornographic Film (1976). 3
o ápice da obsessão e da compulsão possessiva, que se representa na extração da força viril de Kichizo, que passa a pertencer como troféu à Sada. É possível compreender a organização narrativa do mito segundo os movimentos de intensificação e inversão. No sentido do primeiro, existe o recurso da antecipação dos fatos que respalda a progressão do desejo de prazer e violência. A agressividade de Sada é percebida desde o princípio, e já se materializa na faca, a arma do crime final. É na casa de gueisha onde trabalha, que ataca sua superior por lembrála de seu passado de prostituta em um comentário degradante. Não por acaso, este é o momento em que ela conhece Kichizo3, que aparta o conflito e simbolicamente retira a faca fálica da mão de Sada e sugere a substituição do objeto por seu símbolo correspondente4 . Kichizo passa a buscála em diversas cenas de assédio moral baseadas na ascendência que ele tem por possuir o estabelecimento que a emprega. Esta hierarquia rígida estabelecida lentamente se dissolve e se inverte ao longo do filme. Inicialmente ela parece uma jovem amedrontada e acanhada que cede aos encantos de um homem promíscuo galanteador, mas seu ciúme se desenvolve ferozmente. Uma cena relevante que sintetiza esse fluxo da violência das relações de trabalho aos afetos é aquela na qual Sada tenta discutir sua demissão com a esposa de Kichizo, mas flagra o casal em pleno ato sexual e então fantasia o assassínio de sua rival em um ato surdo e sangrento à navalha, e desperta ao ouvir a recusa de seu pedido. No entanto, Sada e Kichizo retiramse para uma casa afastada e então dedicamse integralmente um ao outro. Casamse em uma cerimômia privada e somente neste momento o nome do marido é mencionado. Também é a primeira vez que ele a verá totalmente nua. Aparentemente apaixonado, ele tornase gradativamente indulgente aos desejos inextinguíveis da amante e passa a abnegarse por tal causa. E ele próprio sugere a asfixia como forma de acréscimo de excitação e se autoproclama servo de seus desejos mais de uma vez ao longo do filme. Em determinado momento, afirma que seu falo pertence a ela. E de fato, acaba por acontecer. Com alguma cautela é possível afirmar que o filme demonstrase bastante radical em relação ao que se produzia na época, entre outras razões, por cruzar o ambiente do mito ao de um profundo realismo e alguma frieza. A relação estabelecida entre os dois se faz majoritariamente pelo corpo, enquanto indivíduos, beiram o anonimato. O pouco que se aprende deles, conferelhes alguma orfandade. Ambos tem 3
Neste momento do filme eles são oficialmente apresentados. A primeira cena do filme mostra uma espécie de abuso sofrido por Sada por parte de uma colega que, quando entende sua recusa, a leva para espreitar Kichizo e sua esposa em intercurso sexual. 4 Este jogo entre símbolo, signo e significado também alude à provocação do nome do filme em português e no original francês (L'Empire des sens) em referência à obra de Roland Barthes, O Império dos Signos (L'Empire des signes) de 1970. 4
a mãe morta, Sada também perdeu o pai e seu passado revelado por Kichizo conta que teve de buscar na prostituição um meio de vida devido à falência da empresa de seu marido. Ela aparenta estar desamparada e à mercê das forças dos homens, do trabalho e da tradição. Como reflexo desta hostilidade recebida, ela parece ansiar castigar o masculino. Em uma cena censurada nos Estados Unidos, Sada encontrase em um cômodo no qual um casal de crianças corre ao seu redor nus. Em uma espécie de jogo, ela tenta agarrálos, mas quando alcança o garoto, oprime sua genitália infligindolhe dor. O estado de falência generalizada guarda semelhanças com a situação sóciopolítica do Japão préSegunda Guerra Mundial e simultaneamente vai de encontro com as intenções militaristas e totalitaristas do império Showa por demonstrar tamanha liberdade individual. A representação visual desta ideia se mostra quando Kichizo anda só na contracorrente de uma vaga de soldados marchando. Também se faz importante frisar que enquanto figura feminina, a protagonista é brutalmente distinta dos papéis frequentemente encenados pelas musas Jean Seberg, Brigitte Bardot, Anna Karina, Catherine Deneuve, entre outras. O contraste provavelmente mais chocante que pode ser feito é com o filme O Homem que Gostava de Mulheres5 (1975), de François Truffaut, no qual o homem é representado como predador crítico de seu objeto de desejo, a mulher. No cenário nipônico, a hierarquia é instável e o desejo é um imperativo do ato, da descoberta e da experimentação letal das sensações, dos sentidos. Conclusão: A dada obra vacila entre o realismo e o excesso, a exorbitância impraticável, entre a delicadeza e a rudeza, entre outros pares de opostos que se pode assinalar em uma sequência de exploração de pulsões puras de vida e morte. Em detrimento ou em razão da polêmica causada, a obra definitivamente situase no universo da arte sem abandonar o caráter de pornografia que a define. Criar uma narrativa visual acerca de um enredo conhecido é tão complexo quanto apresentar uma história original ao público. Independentemente do conhecimento prévio do mito que foi Sada Abe, o filme conduz o espectador pela estrada do excesso que não levam ao palácio da sabedoria 6 pelo fato de que não é assumido um tom moralista. A trilha perseguida tem em si seu próprio fim. 5
Interessante perceber que a tradução em Portugal mantém a impassibilidade com a qual Bertrand Morane (Charles Denner), o protagonista, analiza e disseca o gênero feminino. No Brasil o filme recebeu o nome O Homem que Amava as Mulheres. 6 O itálico referese à citação indireta dos Provérbios do Inferno de William Blake (17571827), que estão contidos em O Casamento do Céu e do Inferno (1793). No original lêse "A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria". 5
Bibliografia ALEXANDER, J. Obscenity, Pornography, and the Law in Japan: Reconsidering Oshima’s In the Realm of the Senses. Universidade do Havaí. AsianPacific Law & Policy Journal. Vol. 4, Edição 1. Honolulu, 2003. BLAKE, W. O Casamento do Céu e do Inferno & outros escritos. Trad.: Alberto Marsicano. Editora L&PM. São Paulo, 2011. HAENNI, S. BARROW, S. WHITE, J. (org.) The Routledge Encyclopedia of Films. Nova Iorque: Routledge, 2015. RICHIE, D. Textos extraídos do livro Retratos japoneses Crônicas da vida pública e privada. Trad.: Lúcia Nagib. Unesp/Esrituras, p. 4247. São Paulo, 2000. RODRIGUEZ, A. O Desejo e a Representação nas gravuras eróticas japonesas Shunga. CEJAP – Universidade de São Paulo, Estudos Japoneses, n. 28, p. 251264. São Paulo, 2008. Referência de imagens http://ukiyoe.org/
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