Analise do filme Império dos Sentidos

September 12, 2017 | Autor: Érica Burini | Categoria: Cinema, Shunga, Nagisa Oshima, Erotic Art Japan
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                            Trabalho Final   Narrativas Visuais  Análise da obra  O Império dos Sentidos (1976)   Diretor Nagisa Oshima  Professor Vitor Almeida  Érica Boccardo Burini  2014/2015                                    1

Resumo:  O presente trabalho trata da análise do filme O Império dos Sentidos (1976), que  tem como protagonistas Tatsuya Fuji como Kichizo Ishida e Eiko Matsuda como Sada  Abe. O filme trata da relação amorosa obsessiva, baseada em fatos reais, que acaba  por se desenrolar no assassinato do homem, que tem seus órgãos genitais extirpados  pela companheira. A obra cinematográfica é muito controversa por tratar de forma  aberta e audaciosa a profundidade do desejo sexual no limiar da patologia.     Análise:  A narrativa escolhida contempla uma das características distintivas das grandes  obras de arte, que é conter em si um arranjo complexo de ousadias que se tornam  harmônicas. É extremamente difícil escolher caminhos de apresentação do filme O  Império dos Sentidos. Muito sobre ele é difundido e até o presente carrega uma aura  de proibido.   E de fato, a obra cinematográfica foi inteiramente filmada no Japão mas teve de  ser finalizada na França, para que pudesse lá ser lançada devido às leis japonesas  estritas contra a produção de material pornográfico. Escrita e dirigida por Nagisa  Oshima e produzida por Anatole Dauman, teve o lançamento francês em 1976 e até  então não foi exibida integralmente, isto é, sem censuras, em seu país de origem.   Até mesmo a mais breve das sinopses informa que o enredo é baseado em um  evento verídico ocorrido em 1936. Sada Abe foi presa carregando a genitália decepada  de seu amante, Kichizo Ishida, o qual havia assassinado quatro dias antes por  asfixiofilia. Junto ao leito do morto foram encontrados lençóis com o escrito "Sada e  Kichi juntos" à sangue e em seu braço lia­se entalhado à faca o nome da autora do  crime. A pena de seis anos imputada não foi inteiramente cumprida, sendo ela liberta  no início da Segunda Guerra Mundial.  A excepcionalidade da história fez com que rapidamente o fato se tornasse mito  e penetrasse no imaginário popular japonês, oferecendo­se como substrato para  interpretações livres em obras tal como o filme que será investigado. O fato de ser fruto  do ambiente histórico, social, geográfico e moral oriental não impede que a obra seja  analisada sob a ótica e a ética deste lado do meridiano de Greenwich. As indagações   suscitadas mostram­se pertinentes até o tempo e o espaço presente.   A grande difusão no mundo ocidental e a sua consequente inserção no  panorama francês de cinema também corroboraram para o alargamento do escopo de  apreensão do filme. Mas resiste o exercício de alteridade e (re)conhecimento de uma  identidade cultural distinta. Mostra­se desafiadora a decifração de determinadas cenas  que representam cerimônias, rituais e costumes tradicionais japoneses como o  casamento e o ambiente das casas de gueixas. Em conformidade com o propósito do  texto, não se buscará um aprofundamento maior que o necessário em peculiaridades  2

da cultura japonesa mas procurar­se­á a investigar o sentido obtido das imagens  segundo uma miscelânea cultural resultante deste encontro entre o oriente e o  ocidente.  A percepção pudica que se tem em geral da cultura nipônica parece entrar em  conflito com tal história que narra um envolvimento de tamanha intensidade. No  entanto, a cultura japonesa não é despida de erotismo. A forma explícita com a qual o  diretor Oshima conduz as cenas de sexo não simulado traz à memória as xilogravuras  do estilo shunga. Katsushika Hokusai(1760­1849) é um artista que tornou­se  mundialmente célebre através de obras icônicas como A Grande Onda de Kanagawa  (1830­1833), mas também produziu gravuras como O Sonho da Mulher do Pescador  (1820)1 , que se situam no sub­gênero shunga.  Existem vários correlatos entre O Império dos Sentidos e as gravuras japonesas  mencionadas. O primeiro que pode ser apontado diz respeito aos enquadramentos das  imagens. Em recortes equilibrados, estáticos e simétricos, a forma de despertar a  relação narrativa do desejo é muito similar. Em determinados momentos, o observador  é convidado a completar fragmentos no sentido de criar a experiência erótica. Os  corpos são segmentados por lençóis e kimonos que os encobrem evidenciando rostos  e genitais como áreas capazes de suscitar a sensação desejada.   Outro paralelo diz respeito aos comportamentos e ao lugar onde a ação se dá. O  filme se passa quase em sua totalidade em espaços interiores de casas de gueixas ou  pousadas. Este ambiente de alcova percorre a maior parte do universo shunga.  Quando as cenas ocorrem em ambientes externos, remetem à ideia de exibição, que é  recorrente em ambos. Seja pela presença de voyeurs ou pelo desejo exibicionista, a  presença de terceiros reforça a naturalidade do ato sexual e espelha a posição do  observador das obras.  O Império dos Sentidos suscita um grande debate sobre o que é o proibido, o  obsceno e o pornográfico. O diretor Nagisa Oshima afirma que o conceito de  obscenidade é testado quando ousamos olhar algo que desejamos ver mas nos  proibimos de olhar2, sob este prisma, seu filme não se comporta desta maneira porque  tudo é revelado. Tudo o que pode ser desejado de ser visto é exposto, é despido. E  num padrão similar ao dos vícios insaciáveis, as situações começam a recrudescer até 

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 Parece relevante ressaltar que muitos dos comportamentos apontados como patologias sexuais  representados na gravura japonesa também figuram na arte ocidental. A zoofilia é recorrente em mitos  gregos que se tornaram grandes temas da arte como a Leda e o cisne, que atravessou séculos desde a  antiguidade e foi revisitado por ilustres artistas como Leonardo da Vinci e Michelangelo, perdurando até os  séculos XIX e XX em Cézanne, Gustav Klimt, Salvador Dali, entre outros.  2  Tradução livre do original "The concept of ‘obscenity’ is tested when we dare to look at something that we  desire to see but have forbidden ourselves to look." Extraído de Theory of Experimental Pornographic Film  (1976).  3

o ápice da obsessão e da compulsão possessiva, que se representa na extração da  força viril de Kichizo, que passa a pertencer como troféu à Sada.  É possível compreender a organização narrativa do mito segundo os  movimentos de intensificação e inversão. No sentido do primeiro, existe o recurso da  antecipação dos fatos que respalda a progressão do desejo de prazer e violência. A  agressividade de Sada é percebida desde o princípio, e já se materializa na faca, a  arma do crime final. É na casa de gueisha onde trabalha, que ataca sua superior por  lembrá­la de seu passado de prostituta em um comentário degradante. Não por acaso,  este é o momento em que ela conhece Kichizo3, que aparta o conflito e simbolicamente  retira a faca fálica da mão de Sada e sugere a substituição do objeto por seu símbolo  correspondente4 .  Kichizo passa a buscá­la em diversas cenas de assédio moral baseadas na  ascendência que ele tem por possuir o estabelecimento que a emprega. Esta  hierarquia rígida estabelecida lentamente se dissolve e se inverte ao longo do filme.  Inicialmente ela parece uma jovem amedrontada e acanhada que cede aos encantos  de um homem promíscuo galanteador, mas seu ciúme se desenvolve ferozmente. Uma  cena relevante que sintetiza esse fluxo da violência das relações de trabalho aos afetos  é aquela na qual Sada tenta discutir sua demissão com a esposa de Kichizo, mas  flagra o casal em pleno ato sexual e então fantasia o assassínio de sua rival em um ato  surdo e sangrento à navalha, e desperta ao ouvir a recusa de seu pedido.  No entanto, Sada e Kichizo retiram­se para uma casa afastada e então  dedicam­se integralmente um ao outro. Casam­se em uma cerimômia privada e  somente neste momento o nome do marido é mencionado. Também é a primeira vez  que ele a verá totalmente nua. Aparentemente apaixonado, ele torna­se  gradativamente indulgente aos desejos inextinguíveis da amante e passa a abnegar­se  por tal causa. E ele próprio sugere a asfixia como forma de acréscimo de excitação e  se auto­proclama servo de seus desejos mais de uma vez ao longo do filme. Em  determinado momento, afirma que seu falo pertence a ela. E de fato, acaba por  acontecer.  Com alguma cautela é possível afirmar que o filme demonstra­se bastante  radical em relação ao que se produzia na época, entre outras razões, por cruzar o  ambiente do mito ao de um profundo realismo e alguma frieza. A relação estabelecida  entre os dois se faz majoritariamente pelo corpo, enquanto indivíduos, beiram o  anonimato. O pouco que se aprende deles, confere­lhes alguma orfandade. Ambos tem  3

 Neste momento do filme eles são oficialmente apresentados. A primeira cena do filme mostra uma  espécie de abuso sofrido por Sada por parte de uma colega que, quando entende sua recusa, a leva para  espreitar Kichizo e sua esposa em intercurso sexual.   4  Este jogo entre símbolo, signo e significado também alude à provocação do nome do filme em português e  no original francês (L'Empire des sens) em referência à obra de Roland Barthes, O Império dos Signos  (L'Empire des signes) de 1970.  4

a mãe morta, Sada também perdeu o pai e seu passado revelado por Kichizo conta  que teve de buscar na prostituição um meio de vida devido à falência da empresa de  seu marido.   Ela aparenta estar desamparada e à mercê das forças dos homens, do trabalho  e da tradição. Como reflexo desta hostilidade recebida, ela parece ansiar castigar o  masculino. Em uma cena censurada nos Estados Unidos, Sada encontra­se em um  cômodo no qual um casal de crianças corre ao seu redor nus. Em uma espécie de jogo,  ela tenta agarrá­los, mas quando alcança o garoto, oprime sua genitália infligindo­lhe  dor.  O estado de falência generalizada guarda semelhanças com a situação  sócio­política do Japão pré­Segunda Guerra Mundial e simultaneamente vai de  encontro com as intenções militaristas e totalitaristas do império Showa por demonstrar  tamanha liberdade individual. A representação visual desta ideia se mostra quando  Kichizo anda só na contra­corrente de uma vaga de soldados marchando.  Também se faz importante frisar que enquanto figura feminina, a protagonista é  brutalmente distinta dos papéis frequentemente encenados pelas musas Jean Seberg,  Brigitte Bardot, Anna Karina, Catherine Deneuve, entre outras. O contraste  provavelmente mais chocante que pode ser feito é com o filme O Homem que Gostava  de Mulheres5 (1975), de François Truffaut, no qual o homem é representado como  predador crítico de seu objeto de desejo, a mulher. No cenário nipônico, a hierarquia é  instável e o desejo é um imperativo do ato, da descoberta e da experimentação letal  das sensações, dos sentidos.    Conclusão:  A dada obra vacila entre o realismo e o excesso, a exorbitância impraticável,  entre a delicadeza e a rudeza, entre outros pares de opostos que se pode assinalar em  uma sequência de exploração de pulsões puras de vida e morte. Em detrimento ou em  razão da polêmica causada, a obra definitivamente situa­se no universo da arte sem  abandonar o caráter de pornografia que a define.   Criar uma narrativa visual acerca de um enredo conhecido é tão complexo  quanto apresentar uma história original ao público. Independentemente do  conhecimento prévio do mito que foi Sada Abe, o filme conduz o espectador pela  estrada do excesso que não levam ao palácio da sabedoria 6 pelo fato de que não é  assumido um tom moralista. A trilha perseguida tem em si seu próprio fim.  5

 Interessante perceber que a tradução em Portugal mantém a impassibilidade com a qual Bertrand Morane  (Charles Denner), o protagonista, analiza e disseca o gênero feminino. No Brasil o filme recebeu o nome O  Homem que Amava as Mulheres.  6  O itálico refere­se à citação indireta dos Provérbios do Inferno de William Blake (1757­1827), que estão  contidos em O Casamento do Céu e do Inferno (1793). No original lê­se "A estrada do excesso leva ao  palácio da sabedoria".  5

  Bibliografia  ALEXANDER, J. Obscenity, Pornography, and the Law in Japan: Reconsidering  Oshima’s In the Realm of the Senses. Universidade do Havaí. Asian­Pacific Law &  Policy Journal. Vol. 4, Edição 1. Honolulu, 2003.    BLAKE, W. O Casamento do Céu e do Inferno & outros escritos. Trad.: Alberto  Marsicano. Editora L&PM. São Paulo, 2011.  HAENNI, S. BARROW, S. WHITE, J. (org.) The Routledge Encyclopedia of Films. Nova  Iorque: Routledge, 2015.  RICHIE, D. Textos extraídos do livro Retratos japoneses ­ Crônicas da vida pública e  privada. Trad.: Lúcia Nagib. Unesp/Esrituras, p. 42­47. São Paulo, 2000.    RODRIGUEZ, A. O Desejo e a Representação nas gravuras eróticas japonesas  Shunga. CEJAP – Universidade de São Paulo, Estudos Japoneses, n. 28, p. 251­264. São  Paulo, 2008.     Referência de imagens  http://ukiyo­e.org/   

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