ANÁLISE PRELIMINAR DOS QUANTIFICADORES NUMÉRICOS E NÃO- NUMÉRICOS EM KRENAK (FAMÍLIA BOTOCUDO

June 1, 2017 | Autor: Nádia Jorge | Categoria: Etnomatematica, Etnolinguistics
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2669 ANÁLISE PRELIMINAR DOS QUANTIFICADORES NUMÉRICOS E NÃONUMÉRICOS EM KRENAK (FAMÍLIA BOTOCUDO)

Nádia Maria Jorge Medeiros – PPGEdu, LALI - UnB Maxwell Gomes Miranda – PPGL, LALI – UnB

Este artigo é uma tentativa inicial de tratar as expressões de quantificação numérica e não numérica da língua Krenak numa perspectiva lingüística e etnomatemática. A língua Krenak pertence à família Botocudo, tronco Macro-Jê (Rodrigues, 2002). A denominação Botocudo foi dada aos Krenak na época do contato, por estes índios usarem botoques nas orelhas e nos lábios. O povo indígena Krenak vive nos estados de Minas Gerais e São Paulo. É na comunidade Atoran, onde vivem aproximadamente 60 pessoas, que esta pesquisa tem sido realizada. Essa comunidade localiza-se na terra indígena Krenak situada à margem esquerda do Rio Doce, no município de Resplendor, a 445 km de distância de Belo Horizonte, MG. Possivelmente, a minha posição de professora de matemática acrescida das leituras que fiz e ainda faço sobre a etnomatemática, associadas ao meu interesse em conhecer e tentar entender a matemática desse povo, me conduziram a buscar subsídios teóricos na lingüística e em especial nos aportes teóricos que são trabalhados no Laboratório de Línguas Indígenas, o LALI-UnB. Assim, este trabalho apóia-se não só nos estudos de etnomatemática realizados sobre línguas ameríndias, assim como em estudos lingüístico-tipológicos sobre quantificação nas línguas indígenas brasileiras, especialmente nas línguas Macro-Jê e Tupi. Ao fim do primeiro ano do doutorado, após ter passado por tantas leituras e ser atravessada por tantos novos conhecimentos, em especial os trazidos pelas disciplinas Tipologia de Línguas Indígenas e Fonologia, sinto que não apenas escolhi pesquisar a matemática, mas fui sendo aos poucos tomada por ela e tive a minha visão inicial de apenas me preocupar com os termos numéricos, alargada à medida que fui aprofundando nos estudos sobre algumas línguas indígenas. A motivação primeira para este trabalho nasceu da minha convivência com o povo Krenak que queria entender como funcionava o seu sistema de contagem comparado com o sistema de contagem dos não-índios. Os Krenak estavam também decididos a documentar todas as informações relativas ao seu sistema próprio de contagem.

Problematização Os diferentes povos, de um modo geral, tendem a desenvolver diferentes estratégias e mecanismos para quantificar o mundo, conforme a sua necessidade cultural. Este estudo é parte de um estudo maior em que analisarei essas estratégias e mecanismos com respeito a matemática dos índios Krenak. Tratarei aqui apenas das expressões lingüísticas relativas aos quantificadores numéricos e não-numéricos identificados até o presente na língua estudada. A pesquisa priorizou os dados contidos no Vocabulário Português-Botocudo, registrado pelo Monsenhor Claro Monteiro, e dados coletados junto a falantes da língua Krenak da comunidade Atoran. No presente estudo, com base nesses dados analisarei os recursos lingüísticos e gramaticais que a língua utiliza para expressar essas noções de quantificação. É fato conhecido que uma língua pode utilizar diferentes estratégias para expressar noções quantificadoras numéricas e não numéricas, como nomes, adjetivos, advérbios, combinações sintáticas de nomes, reduplicação de temas nominais e verbais, reduplicação de partículas, predicados inteiros, entre outros. Com respeito ao Krenak, Monteiro (1898) observa que estes têm numerais de 1 a 3, os quais são codificados por meio dos seguintes nomes: (1) ‘potchík’ ‘um’ (2) ‘grimpó’ ‘dois’ (3) ‘crotouýp’ ‘três’

2670 Contudo, atualmente, alguns falantes mais jovens usam as palavras erúca ‘muitos, vários’ para quatro e pó ‘mão’ para cinco, que não foram registradas por Monteiro (1898). Observamos que, além de fazer uso de substantivos para expressar numerais a língua Krenak faz uso de palavras interrogativos e de pronomes indefinidos para expressar noções de quantidade, como as palavras seguintes: (4)

erúca

‘muito, vários, bastante’

(5)

intá

‘mais’

(6)

copó

‘meio’

(7)

knó

‘metade’

(8)

niknhíne

‘pouco’

(9)

unhã

‘punhado’

(10) pantã (11) angrêne

‘todos, tudo’ ‘outros’

(12) tan

‘quanto, quão’

Neste estudo, discutirei o uso destas expressões de quantificação em Krenák, assim como outras formas e expressões de quantificação relacionadas com as suas práticas culturais vivenciadas no seu dia-a-dia. Pretendo também contribuir para uma visão de etnomatemática que privilegia e considera cada realidade independentemente das demais. Essa vertente da educação matemática, nomeada por etnomatemática, se distancia de uma dicotomia construída pela matemática ocidental1 que produz uma divisão entre uma “matemática acadêmica” e uma “matemática popular”. Tais expressões são tomadas de Gelsa Knijnik (1996) e caracterizam a matemática acadêmica como a matemática produzida por grupos legitimados socialmente como produtores de ciências e recontextualizada na escola e a matemática popular como aquela produzida por grupos não hegemônicos e comumente, excluída co currículo escolar. Enfatizo que ao falar de uma “matemática popular”, não busco um ranço preconceituoso que distancia uma população de uma imaginada aristocracia e nem de uma “alta cultura”. Em suas teorizações inicias, ainda na década de 1970, Ubiratan D’Ambrosio se referiu ao que denominou como Programa Etnomatemático como “a busca de entender o fazer e o saber matemático de culturas marginalizadas” (2004, p. 44) e inquietou-se com a possibilidade de não admitir somente a matemática acadêmica como o centro de toda a matemática presente no currículo escolar. Ao buscar dar visibilidade a outras matemáticas que além de não povoarem o universo da escola ainda são silenciadas e tratadas como inexistentes, a etnomatemática tenta modificar uma ordem estabelecida na matemática que é ensinada na escola e questionar as narrativas hegemônicas de muitos educadores. Isso me remete ao que Knijnik (2004, p.131) se referiu à etnomatemática como um campo interessado em estudar os discursos eurocêntricos que instituem a matemática acadêmica e a matemática escolar; analisar os efeitos de verdade produzidos pelos discursos da matemática acadêmica e da matemática escolar; discutir questões da diferença na educação matemática, dando centralidade à cultura; problematizar as dicotomias entre a cultura erudita e a cultura popular na educação matemática .

1

Neste artigo, denomino com matemática ocidental a matemática que se trabalha na escola, que possui marcas eurocêntricas, masculinas e encarada como universal.

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Na tentativa de ouvir outras falas que não sejam apenas as da matemática acadêmica e fundamentadas em uma idéia de unidade cultural das idéias matemáticas, a etnomatemática se volta para as histórias e os saberes que não estão alinhados com essas posições e nem pertencem a grupos legitimados academicamente. Nessa direção, ao pesquisar o pensamento matemático do povo Krenak e as suas práticas matemáticas, não há como não problematizar a ausência de tantas outras matemáticas na escola. A invisibilidade relegada a tantos saberes que não são os marcados pela ciência ocidental silenciam as vozes e exemplificam a falta de espaço para esses conhecimentos. Assim como as narrativas da história da matemática quase sempre foram escritas a partir do ponto de vista do viajante, do estudioso, um dos materiais mais conhecidos sobre a língua Botocudo, foi escrito por um sacerdote e estudioso de línguas indígenas, que viajou pelo Rio Doce em 1898 e 1899. O vocabulário descrito pelo Monsenhor Claro contém aproximadamente 1000 ítens lexicais e provavelmente, foi coletado entre os Nak-Ñapma. Ao analisar o mais extenso material que registrou a língua dos Naknanuk, a obra Wörterbuch der Botokudensprache, do farmacêutico alemão Bruno Rudolph, de 1909, Benedita Aparecida Chavedar Araújo (1992, p.5), sob a orientação de Lucy Seky, escreve que Materiais sobre o Naknanuk existem somente sob a forma de documentos escritos que apresentam uma série de deficiências. Tais documentos, embora capazes de fornecer dados de natureza geral e tipológica (cf. Câmara; 1959), permitem obter apenas uma aproximação do que teria sido a realidade fonética da língua. Assim, a tentativa aqui feita de determinar, com base nesses materiais, o inventário de sons e suas propriedades fonéticas não somente apresenta lacunas, como tem forçosamente um caráter hipotético.

Nessa perspectiva, acredito que também o material deixado pelo Monsenhor Claro também “apresente lacunas” e não encontre atualmente, em sua totalidade, correspondências no atual dialeto falado na comunidade Atoran. Ao iniciar a coleta de dados daquilo que hoje faz parte desse dialeto, continuo seguindo Araújo(1992, p.6) ao citar Lucy Seky (1990, p.117) que descreve o conhecimento que se tem sobre os Krenak obtido através do contato direto com os falantes dessa etnia “abre uma nova perspectiva para a abordagem e compreensão desses materiais, principalmente levando-se em conta a ausência de diferenças consideráveis entre os dialetos.” Mas, antes de tratar da parte empírica da pesquisa, dei-me conta de que para uma posterior análise do material que vem sendo produzido nas observações e entrevistas havia a necessidade de conhecer parte do que já foi estudado e pesquisado sobre as expressões de quantificação numérica e não-numérica nas línguas indígenas. As línguas indígenas não apresentam uma padronização quanto aos seus respectivos sistemas numéricos. Por isso, é possível encontrar sistemas de base um, dois, três, cinco, dez e até vinte. As observações que fiz até aqui e as narrativas que ouvi da língua Krenak me levam a acreditar que está se sistematize em base três. Diana Green (2002) cita como exemplo de sistema de base três o dialeto da língua atroari (karib). Nesse dialeto, “o povo pode contar até nove, que é três, três, três

Referências ARAÚJO, Benedita Aparecida Chavedar. Análise do Wörterbuch Botokudensprache. 1992. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Universidade Estadual de Campinas. CONNE panda ríthio Krenak: coisa tudo na língua Krenak. Belo Horizonte: MEC/SEE-MG, 1997.

2672 D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática e Educação. In: KNIJNIK; WANDERER, Fernanda; OLIVEIRA, Cláudio José de. Etnomatemática, currículo e formação de professores. Santa Cruz do Sul, RS: EDUNISC, 2004. 446 p. KNIJNIK, Gelsa. Exclusão e Resistência: educação matemática e legitimidade cultural. Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 1996. ________, Currículo e movimentos sociais nos tempos do Império. In: MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa; PACHECO, José Augusto; GARCIA, Regina Leite (Orgs). Currículo: pensar, sentir e diferir. Rio de Janeiro: DP&A, 2004e. p.95-107. 223p. MONTEIRO, Claro. Vocabulário Português-Botocudo. São Paulo: Museu Paulista, Boletim II, Lingüística, 2, 1948. RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas Brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

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