Ânforas, registros do passado - vinho

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1 FUNARI, P. P. A. . Ânforas, registros do passado 01/06/2007. História Viva, Grandes Temas, Vinho, 17, São Paulo, p. 18 - 21, 01 jun. 2007.

As ânforas e as pesquisas arqueológicas sobre o Vinho Pedro Paulo A Funari1

As ânforas e sua história

As ânforas são vasos recipientes com duas alças, destinadas ao transporte de líquidos. Se nome já indica isso: em grego, amphi significa “ambas” (as alças) e phero quer dizer “levar”. Era o vaso usado para levar líquidos de um lugar para outro. Não sabemos, com exatidão, quando surgiram, mas parece que foi na Palestina, no segundo milênio a.C., tendo sido adotada pelos gregos e pelos romanos, por sua imensa versatilidade. Existiram ânforas feitas de materiais como vidro e metal, mas as mais usadas eram feitas de barro. O vidro era frágil e o metal não conservava tão bem os líquidos. Já o barro, além de barato, permitia uma conservação adequada para uma variedade de produtos. Por isso mesmo, ânfora passou a ser quase sinônimo de vaso de cerâmica.

Os produtos transportados em ânforas variavam muito, sendo os principais o vinho, o azeite e os temperos salgados. Elas surgiram simples, sem decoração, pesadas e voltadas para o transporte à distância. Mas, desde cedo, surgiram suas congêneres de mesa. Essas

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Professor Titular de História Antiga, Departamento de História e Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos, UNICAMP.

2 eram ânforas usadas, principalmente, para vinho e destinavam-se aos banquetes. Os gregos costumavam tomar o vinho misturado, em variadas proporções, com água. O vinho ficava na ânfora de mesa e a água numa hídria. Também os romanos podiam misturar o vinho e a água e para isso servia a ânfora de mesa. Neste caso, as ânforas podiam ser decoradas, como no caso das ânforas áticas do século V a.C., com motivos diversos.

A grande maioria, contudo, era sem decoração e destinada ao transporte em navios, a longa distância. Podiam ser pesadas, com mais de dez quilos vazias e com capacidade para muitos quilos, de modo que, no final, podiam pesar, com o líquido, dezenas de quilos. A forma era, pois, funcional. Havia grandes variações, mas todas tinhas, de baixo para cima: uma base, uma barriga, um colo, duas alças e um lábio. A base, que nas ânforas de mesa permitia que ela parasse sozinha, era apenas uma ponta nas destinadas ao transporte por barco. Desta forma, elas podiam ser encaixadas uma por sobre as outras. Além disso, essa ponta servia como terceira alça para verter o líquido. As duas alças destinavam-se a permitir o transporte em terra. O colo, mais ou menos estreito, facilitava o fechamento, que era feito por uma tampa de cerâmica (operculum), selado com uma resina quente.

Vinhos em ânforas

Os vinhos gregos e romanos foram transportados, por mais de mil anos, em ânforas, por todo o Mediterrâneo. As olarias produtoras localizaram-se, em geral, às beiras dos rios, de onde se podia retirar argila e em cujas margens construíram-se as oficinas produtoras. Como recipientes de uso prático e comercial, logo surgiram padrões, tanto em relação à quantidade de vinho em cada ânfora, como nas formas dos vasos. Havia diversos padrões,

3 que, grosso modo, seriam para quantidades pequenas, médias e grandes (variando de alguns poucos litros a dezenas deles). Essa padronização era importante, pois facilitava as trocas comerciais, sem que fosse necessário escrever em cada vasilhame a quantidade de líquido no seu interior. Também a padronização da forma foi fundamental, para permitir diferenciar, só pela vista, os três grandes tipos de ânforas: para vinho, azeite ou temperos. Dentro de cada categoria, também surgiram formas que permitiam saber que o vinho vinha de uma determinada região produtora.

As inscrições e sua função

Essas informações genéricas podiam ser passadas pela forma da ânfora, mas as inscrições permitiram adicionar muitas outras, de interesse tanto dos produtores, como dos consumidores. As ânforas eram produzidas em série, em linha de montagem, com as partes feitas em grande quantidade e montadas. Essas fábricas deviam ser bem administradas e controladas pelas autoridades (ao menos para a cobrança de impostos). Para isso, surgiram os selos ou timbres. Eram marcas feitas por uma matriz em madeira ou metal no barro ainda úmido, de modo a que, após a cocção, ficasse ali uma informação visual. Podia haver uma imagem, às vezes da própria ânfora, outras de objetos, como a palma (símbolo da qualidade). Em geral, havia algo escrito: podia ser o nome do oleiro, da olaria, do proprietário rural ou mesmo do magistrado que controlava a produção. Atém mesmo informações - como o nome de um mês do ano - eram colocadas (para indicar o momento da produção). Essas marcas podiam ir nas alças e, às vezes, no colo, no lábio ou mesmo na pança, ainda que menos comumente. Esses selos referiam-se, portanto, antes de tudo, ao mundo da produção na fábrica das ânforas.

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Os gregos introduziram e os romanos expandiram o uso de inscrições pintadas. Estas eram feitas com tinta negra ou vermelha, em letras capitais, para serem vistas pelo consumidor, ou em letras cursivas, ainda para uso administrativo ou de controle. As inscrições em capitais forneciam informações que podiam ser importantes para o consumidor, tais como ano da produção do vinho, nome do produtor, da região, assim como podiam apregoar as qualidades do vinho. O adjetivo mais usado era “excelente”. Havia quem colocasse, também, o nome do comprador da partida de ânforas ou de uma ânfora específica. Essas inscrições eram muito comuns, mas, por serem pintadas, nem sempre são bem preservadas. Quando o são, dizem-nos muito, além de adquirem uma certa beleza, face ao despojamento do objeto em si. Por fim, havia quem escrevesse grafites nesses vasos, nas olarias, antes da cocção, com todo tipo de informações. Na maioria das vezes eram apenas assinaturas ou mesmo simples obscenidades anônimas (como no famoso caso de alguém que escreveu, repetidas vezes, futui, “possui”, em latim). Mesmo depois de pronta, no destino, havia quem escrevesse com um estilete coisas relacionadas ao re-uso do vaso. Assim, alguém escreveu capax, com letras garrafais, para dizer que o vaso era agüentava muito líquido (“com grane capacidade”).

A Arqueologia como registro histórico único

As obras antigas que chegaram até nós pouco nos falam sobre os processos de produção, transporte e consumo do vinho. Saberíamos que os antigos apreciavam o vinho, mas não teríamos como saber detalhes sobre a produção e comércio do vinho. Contudo, em qualquer escavação arqueológica no Mediterrâneo, aparecem restos de ânforas, sendo,

5 talvez, o tipo de artefato mais atestado. Em navios afundados, as escavações subaquáticas, desde a década de 1950, têm encontrado barcos com cargas inteiras, com centenas de ânforas vinárias in loco e intactas: até mesmo com vinho! Surgiram campos de pesquisa, no interior da Arqueologia, dedicados às ânforas e mesmo a aspectos específicos.

O primeiro campo, mais antigo e mais complexo, num certo sentido, consiste no estudo das inscrições em ânforas. A partir de selos, inscrições pintadas e grafites tem sido possível reconstruir a produção e comercialização dos vinhos antigos, de maneira até mesmo quantitativa. Foi possível determinar quais áreas exportaram vinho para quais regiões, e qual a variação no tempo. A partir do estudo das ânforas encontradas na Inglaterra, dá uma boa idéia do quanto se avançou na quantificação. A Britânia foi conquista pelos romanos em 43 d.C. e permaneceu como parte do Império Romano até início do século V. Foi possível constatar que ali se consumiam vinhos do Mediterrâneo Oriental, da Itália, da Espanha e da Gália. Esta última região, correspondente à França atual, dominou o mercado britânico a partir de 60 d.C., com níveis, nas diferentes cidades, entre 80% e 90%. A partir de meados do século III, o quadro muda de todo. Há uma diminuição geral do número de ânforas de vinho e as que chegavam vinham do Mediterrâneo Oriental. Isto nos faz pensar que o consumo de massa, da fase anterior, foi substituído por um consumo de elite, de vinhos de alta qualidade e preço, importados em ânforas. É provável que os vinhos baratos passassem a ser transportados em tonéis, que não se conservam bem em condições normais.

As ânforas têm sido estudadas, também, em outros aspectos. A forma dos vasos, chamada de tipologia pelos arqueólogos, forneceu muitas informações não apenas sobre a

6 existência de padrões e capacidade, como sobre a existência de uma semiótica dos vinhos. Hoje em dia, as garrafas indicam já algumas características do vinho (como no caso famoso dos Chianti). Mas isso foi ainda mais desenvolvido no mundo antigo. Isto é fácil de entender. Como a alfabetização era mais limitada do que hoje em dia, os rótulos eram lidos por poucos. Havia, portanto, um interesse que os transportadores, donos de bares e consumidores pudessem reconhecer o vinho pela forma da ânfora. Isso demonstra, também, a sofisticação do mercado de vinhos antigos, tanto dos caros, como dos baratos e de uso quotidiano. Só faria sentido haver tanta diferenciação nas formas se isso fosse relevante para produtores, intermediários e consumidores em geral.

Outro aspecto que tem sido muito explorado pelos estudos arqueológicos relacionase ao uso cultural dos vinhos. A presença de ânforas de vinho italiano na Gália, antes da conquista romana, desde o segundo século a.C. mostra como as elites gauleses preferiam o consumo de prestígio do vinho à cerveja consumida pelos comuns. Após a conquista, por Júlio César, as Gálias introduzem a vinha e tornam-se, em poucas décadas, grandes produtoras de vinho, exportando-o para outras províncias. Em lugares infensos à vinha, como na Bretanha romana (atual Inglaterra e País de Gales), o consumo de vinho atesta a importação de um hábito mediterrâneo por parte das classes médias e altas. Os mais pobres e mais nativos, os bretões, continuavam a beber cerveja, o que ressalta o caráter distintivo, do consumo do vinho atestado pelos vestígios arquelógicos.

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