CASO CLÍNICO
Anodontia Parcial Congênita em Paciente com Fissura Labiopalatal: Relato de Caso Clínico
Congenital Partial Anodontia in Cleft Lip and Palate Patient: Case report Denise Cristina Pazin* Aline Rogéria Freire de Castilho* Raquel Hussne* Lucimara Teixeira das Neves** Pazin DC, Castilho ARF de, Hussne R, Neves LT das. Anodontia parcial congênita em paciente com fissura labiopalatal: relato de caso clínico. JBP – Rev Ibero-am Odontopediatr Odontol Bebê 2005; 8(42):114-8.
A anodontia congênita pode ser total, quase sempre associada à Síndrome da Displasia Ectodérmica, ou parcial, acarretando, em ambos os casos, comprometimento estético e funcional ao paciente. Freqüentemente, acomete a dentição permanente e apresenta-se como uma característica rara na dentição decídua. A etiologia da agenesia é atribuída a fatores predominantemente genéticos, mas alguns casos estão relacionados a alterações locais, como trauma ou irradiação, sendo possível a manifestação uni ou bilateral. O objetivo deste trabalho é apresentar um caso clínico de paciente com fissura labiopalatina com anodontia parcial na dentição decídua, provavelmente de etiologia genética. PALAVRAS-CHAVE: Anodontia; Dente decíduo; Odontopediatria.
INTRODUÇÃO As anomalias dentárias hipoplasiantes são caracterizadas pela diminuição no número de dentes ou pelo seu desenvolvimento incompleto. Dentro deste grupo de anomalias dentárias estão a anodontia e a hipodontia. A anodontia verdadeira ou total caracteriza a ausência congênita e completa de todos os dentes decíduos e/ou permanentes. A hipodontia, oligodontia ou anodontia parcial caracteriza a ausência de um ou mais dentes (Shafer et al., 1987). A etiologia da hipodontia é atribuída a fatores predominantemente genéticos, resultantes de uma variação que pode se manifestar durante o período de desenvolvimento, iniciação ou proliferação e, como conseqüência, ocorre um distúrbio no número de dentes (McDonald, Avery, 1995; Antoniazzi et al., 1999). Em alguns casos esta anomalia pode estar associada a síndromes como displasia ectodérmica e síndrome de Down (Dhanrajani, 2002) ou ser decorrente da influência de fatores locais, como traumas, infecções ou irradiações (Cunha et al., 1999). A hipodontia pode ocorrer tanto na dentadura decídua quanto na permanente e apresenta-se em diversos graus de severidade, sendo considerada severa na ausência de seis dentes ou mais, excluindo os terceiros molares (Dhanrajani, 2002). De acordo com a literatura, a hipodontia na dentadura decídua é rara, apresentando prevalência menor que 1% (Meon, 1992; Shashikiran et al., 2002). Na dentadura permanente, a prevalência é de 15% a 30% (Brabant, 1967), sendo considerada uma variação do padrão de normalidade (Ooshima et al., 1988). * Aluna do Curso de Especialização em Odontopediatria do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo – HRAC-USP – Bauru, SP. ** Mestre em Odontopediatria pela Universidade de São Paulo e Professora do Curso de Especialização em Odontopediatria do HRAC-USP – Bauru, SP; Av. Nossa Senhora de Fátima, 12-16/ap.303, Jd. América – CEP 7017-040, Bauru, SP; e-mail:
[email protected]
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A incidência deste tipo de anomalia é variá-
ram-se as ausências dentárias mencionadas nas
vel nas diferentes etnias. Numericamente, alguns
idades de 1 ano e 5 meses; 1 ano e 11 meses;
autores relatam diferença na prevalência entre os
2 anos e 5 meses; 3 anos; 3 anos e 9 meses;
gêneros masculino e feminino, sendo o feminino o
4 anos e 5 meses (Figura 4); 6 anos e 4 meses
mais envolvido (Antoniazzi et al., 1999; Bennet,
(Figura 5).
Ronk, 1980).
A mãe foi então questionada sobre possíveis
No grupo de pacientes com fissuras labiopa-
extrações realizadas fora do Hospital, mas a mesma
latinas, a agenesia é uma ocorrência comum na
relatou não ter feito nenhum tratamento odontológico
região anterior próxima ao defeito, acometendo
em outro serviço de atendimento. Quanto ao histórico
em grande parte dos casos o incisivo lateral (Poyry,
familiar de anomalias dentárias, a mãe relatou ser
Ranta, 1985).
portadora de agenesia de alguns elementos dentários
O objetivo deste trabalho é apresentar um
na dentadura permanente. Ao exame clínico intra-
caso clínico de paciente com fissura labiopalatina
bucal realizado na mesma, constatou-se agenesia de
que apresentou anodontia parcial na dentição
incisivo lateral superior esquerdo, primeiro pré-molar
decídua de caráter genético. Devido às alterações
inferior direito e segundo pré-molar inferior esquerdo.
funcionais, estéticas e até mesmo psicológicas que
Foram solicitadas radiografias ortopantomográficas
pode ocasionar, é de grande importância que a ano-
da criança (Figura 6) e da mãe (Figura 7) a fim de
malia seja identificada precocemente, possibilitan-
concluir o diagnóstico e planejar a reabilitação.
do um adequado plano de tratamento e prevenção, que levem à reabilitação do paciente.
Ao exame radiográfico verificou-se no paciente agenesia também na dentição permanente de incisivo lateral superior direito e primeiros pré-
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molares inferiores e superiores, além da constata-
Paciente M.S.S., gênero masculino, leuco-
ção radiográfica da ausência clínica dos primeiros
derma, com fissura transforame incisivo unilateral
molares decíduos superiores e inferiores e caninos
direita, 6 anos de idade, compareceu ao Hospital
decíduos superiores.
de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Uni-
O exame radiográfico da mãe reiterou a age-
versidade de São Paulo (HRAC-USP) para consulta
nesia do incisivo lateral superior esquerdo, primeiro
de rotina no Setor de Odontopediatria. Ao exame
pré-molar inferior direito e segundo pré-molar in-
clínico, observou-se agenesia de primeiros molares
ferior esquerdo.
decíduos inferiores e superiores, caninos decíduos
Diante da definição clínica e radiográfica do
superiores e incisivo lateral superior direito, coin-
diagnóstico, o paciente foi submetido à reabilitação
cidindo com a localização da fissura (Figuras 1 e
por meio de próteses parciais removíveis.
2). Além disso, o canino decíduo inferior esquerdo apresentava formato conóide (Figura 3). Diante da constatação de agenesias múltiplas e suspeita de associação a síndromes, avaliou-se o material fotográfico realizado previamente e arquivado pelo HRAC-USP. Por serem agenesias múltiplas, suspeitou-se que a etiologia fosse genética, assim analisou-se a avaliação genética realizada no hospital por meio da ficha do setor de genética do prontuário do paciente. Nessa avaliação, nada constava sobre suspeita ou hipótese diagnóstica de síndrome associada a fissura. Já ao analisar-se o material fotográfico para acompanhamento pós-cirúrgico, verifica-
FIGURA 1: Arco superior mostrando a ausência dos primeiros molares decíduos, caninos decíduos e incisivo lateral direito. JBP – Rev Ibero-am Odontopediatr Odontol Bebê 2005; 8(42):114-8
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FIGURA 2: Arco inferior com ausência dos primeiros molares decíduos.
FIGURA 5: Vista dos arcos superior e inferior em oclusão fotografada na idade de 6 anos e 4 meses.
FIGURA 3: Canino decíduo inferior esquerdo com formato conóide.
FIGURA 6: Radiografia ortopantomo-gráfica realizada na criança.
FIGURA 4: Arco superior fotografado aos 4 anos e 5 meses.
FIGURA 7: Radiografia ortopantomográfica realizada na mãe da criança.
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DISCUSSÃO
deste último ser extremamente rara caracteriza
A etiologia das anomalias dentárias presentes
hipodontia severa. (Bennet, Ronk, 1980). Já a
na dentadura decídua envolve diversas hipóteses e
agenesia do incisivo lateral decíduo superior direito
é atribuída a vários mecanismos, o que torna difícil
provavelmente esteja relacionada com a presença
estabelecer com precisão o que pode levar a um
da fenda, pois esta é uma alteração comumente
quadro como o da hipodontia.
encontrada em pacientes com fissura (Poyry,
Mais de 60 síndromes catalogadas no On-line
Ranta, 1985). Da mesma forma, a constatação
Mendelian Inheritance in Man estão associadas a
radiográfica da agenesia de incisivo lateral supe-
anomalias dentárias (McKusick, 1992). A mais cita-
rior direito permanente e primeiros pré-molares
da em associação à agenesia dentária é a síndrome
explica-se pela grande probabilidade de agenesia
da displasia ectodérmica (Freire-Maia, Pinheiro,
do sucessor permanente acompanhando a ausên-
1984), mas também há relatos dessa alteração
cia na dentadura decídua (Ooshima et al., 1988;
associada à síndrome de Down e à displasia con-
Magnusson, 1984).
droectodérmica (Winter, Gueddes, 1967).
A constatação clínica e radiográfica que mais
Muitos autores acreditam que a hipodontia
chama a atenção no caso relatado é a agenesia
é uma desordem hereditária ligada ao um gen
dos caninos decíduos superiores e a presença do
autossômico, gen ligado ao sexo ou um modo de
germe dentário dos caninos permanentes supe-
herança poligênica (Alvesalo, 1971). Uma das hi-
riores. Embriologicamente isso não seria possível,
póteses que explicam a ocorrência da hipodontia
pois a formação do germe permanente deriva de
é chamada “Brook’s unifying model”, de acordo
uma proliferação epitelial (lâmina acessória) do
com a qual a anomalia envolve fatores genéticos
germe decíduo denominado de broto do dente
e ambientais (Brook, 1984).
permanente. Ocorrência semelhante foi relatada
No caso apresentado, não encontramos sín-
também por Suzuki et al, em 1992, sugerindo que
drome associada ou histórico de doenças sistêmi-
uma possível explicação para este achado seria
cas, infecção, trauma ou irradiação que pudesse
a atuação de algum fator etiológico alterando a
ter causado as ausências dentárias. Sendo assim,
lâmina dentária, impedindo a formação do dente
com base no quadro clínico e radiográfico, hipote-
decíduo e, posteriormente, o sucessor permanente
tizou-se que o fator genético tenha determinado
se desenvolveria de um remanescente dessa lâmina
essa condição bucal no paciente e na mãe, o que
dentária afetada.
está de acordo com a literatura que relata grande parte dos casos clínicos de agenesia única ou múl-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
tipla associada ao fator genético na determinação
Assim, ressalta-se a importância do diag-
de ausências dentárias na dentadura decídua
nóstico precoce desta patologia e de qualquer
(Ranta, 1985).
outra entidade que caracterize anormalidade
De acordo com a literatura, os dentes mais
das condições fisiológicas do meio bucal. Isto é
acometidos pelas agenesias nesta fase da denta-
possível por meio da realização de uma boa ana-
dura decídua são o incisivo lateral superior, incisivo
mnese, com exames clínico e radiográfico, que
central superior e mais raramente os primeiros
permitirão ao Cirurgião-dentista intervir por meio
molares. O caso clínico em questão vem de en-
da reabilitação, antecipando-se à instalação de
contro a esses dados, pois verificou-se agenesia
maloclusões (Cunha et al., 1999) e interferindo
de incisivo lateral superior e primeiros molares
positivamente na estética, função e bom convívio
decíduos, sendo que pelo fato da ocorrência
social da criança.
Pazin DC, Castilho ARF de, Hussne R. Congenital partial anodontia in cleft lip and palate patient: case report. JBP – Rev Ibero-am Odontopediatr Odontol Bebê 2005; 8(42):114-8.
Congenital anodontia may be total, which is almost always associated to ectodermal dysplasia, or JBP – Rev Ibero-am Odontopediatr Odontol Bebê 2005; 8(42):114-8
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partial, and both cause esthetic and functional impairment to patients. It frequently affects the permanent dentition and appears as a rare characteristic in the primary dentition. The etiology of tooth agenesis is mainly assigned to genetic factors, but some cases are related to local alterations, such as trauma or irradiation, with the possibility of unilateral or bilateral incidence. The purpose of this paper is to present a case report of a patient with cleft lip and palate with partial anodontia in the primary dentition, probably due to genetic etiology. KEYWORDS: Anodontia; Tooth deciduous; Pediatric dentistry.
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