Cartas de Cabul O Afeganistão vivido por um Soldado Português
Nuno Lemos Pires
Cartas de Cabul O Afeganistão vivido por um Soldado Português
Título: Cartas de Cabul Copyright © 2011, Nuno Lemos Pires e Tribuna da História – Edição de Livros e Revistas, Unipessoal Lda. Rua Vasco da Gama, 60-C 2775-297 Parede Telefone: 211 910 543 Fax: 214 678 719 Correio electrónico:
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Aos militares portugueses que perderam a vida no Afeganistão: Primeiro-sargento de Infantaria “Comando” João Paulo Roma Pereira (a 18 de Novembro de 2005); Soldado pára-quedista Sérgio Miguel Vidal Oliveira Pedrosa (a 24 de Novembro de 2007).
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ÍNDICE
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 Carta n.º 1 Carta n.º 2 Carta n.º 3 Carta n.º 4 Carta n.º 5 Carta n.º 6 Carta n.º 6a Carta n.º 7 Carta n.º 8 Carta n.º 9 Carta n.º 10 Carta n.º 11 Carta n.º 12 Carta n.º 13 Carta n.º 14
– Chegada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 – Afegãos e Americanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 – Comandante da ISAF . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 – De Moçambique a Cabul . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 – Eleições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 – Departamento Religioso e Cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 – Deslocamentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 – Noticiários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 – Do Paquistão a Cabul . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 – Tomada de Posse de Karzai . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 – Refugiados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 – Eid e Acção de Graças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 – A Escola . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 – Destacamento Médico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 – História do Afeganistão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
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Carta n.º 14a– Operações em Cabul . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 15 – No Bairro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 16 – Natal em Cabul . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 17 – Primeiro dia de 2010 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 18 – Kutchi Kandak . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 19 – Ataque em Cabul . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 20 – Homenagem na KCD . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 21 – Da Etiópia a Cabul . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 21a– Operações de Cerco e Busca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 22 – Conferência de Londres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 23 – Corrupção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 24 – Hospital Militar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 25 – Conspirações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 26 – Ajudar Sayed . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 27 – Parlamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 28 – Apoio Médico e Humanitário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 29 – Respeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 30 – Evoluções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 31 – Transições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 32 – Uma Escola Nova . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 33 – Cemitério dos Impérios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 34 – Visita de Obama . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 35 – Primeiras Despedidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta n.º 36 – Regresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
109 115 121 129 141 149 157 163 171 179 185 189 195 201 209 217 227 233 239 247 255 263 267 273
Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 287
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PREFÁCIO
Pediu-me o Nuno Lemos Pires, autor das Cartas de Cabul, que prefaciasse o seu livro. Faço-o com emoção e com gosto. Emoção, porque quem deveria fazê-lo, apesar de estar sempre connosco, já não está entre nós – era seu pai, o general Lemos Pires – e ele fá-lo-ia, certamente, melhor do que eu. Mas faço-o com gosto por o Nuno se ter lembrado de mim; por sermos “irmãos” na paixão pela História; porque apesar da diferença de idades há muita cumplicidade nos valores que defendemos; porque eu servi e ele serve com orgulho o nosso Exército; e porque tendo eu despido a farda, mas não a “camisola”, continuo atento, a viver e a vibrar com as acções e sucessos das nossas Forças Armadas. Enfim, além de sermos família, somos soldados. Sendo desejável que se seja razoavelmente frio e distante ao escrever um prefácio, nesta breve apreciação que vou fazer do livro, não poderei sê-lo, devido ao autor e à matéria. O autor é meu sobrinho e eu gosto muito dele; a matéria tem sido ao longo da minha vida o objecto principal das minhas reflexões – a Instituição Militar e a Guerra. O género de livro que agora se publica é pouco vulgar no nosso panorama editorial, porque são cartas de um militar durante uma missão no estrangeiro; porque para além das restrições que a segurança exige e a condição militar im-
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põe, há um certo acanhamento dos militares em, sobre o acontecimento, dar a conhecer missões exigentes (excepto em breves artigos para revistas militares); porque não se trata de um simples acontecimento, mas de uma difícil experiência, durante seis meses, num território longínquo; e porque as cartas foram escritas só para a família e alguns amigos próximos. As cartas surgem agora em livro devido à insistência, por parte de quem as leu, para serem publicadas. Desconhecendo-se em Portugal muito do que se passa no Afeganistão e descrevendo o autor aquilo que ali observou, achou-se que as cartas teriam interesse para um universo mais alargado do que o dos familiares e amigos que as conheciam. Há muito que os militares narram, para dentro da Instituição Militar, as suas experiências em missões, porque as lessons learned são importantes para o prosseguimento das mesmas, ou para missões futuras. Aprende-se com os sucessos e com os erros. Afinam-se procedimentos. Nestas cartas, porém, essas lições extravasam o meio militar, para tocar a população que, na retaguarda, deve saber o que se passa com seus militares, as dificuldades que sentem, os apoios de que necessitam, o respeito que merecem. Tirando raras excepções, os órgãos de informação nada nos dizem sobre isso. Estas cartas de Cabul falam-nos de uma acção das Forças Armadas em terras distantes, num “Cemitério de Impérios”, numa encruzilhada do espaço que tem gerado tempos continuados de guerra, em ambiente manifestamente hostil, em missões que trazem alguma esperança de pacificação, de resolução do conflito. A missão que percorre o livro é desenvolvida por um pequeno grupo de militares do Exército português, que está em apoio e assessoria de uma grande unidade do Exército afegão. Ela não tem por finalidade fornecer directamente segurança à população, mas dizer com muita dedicação, sabedoria, persistência e pedagogia: Do it yourself. Isto porque nestes conflitos é relativamente fácil entrar, começar uma intervenção militar do exterior, mas é difícil sair. Sem o concurso das forças nacionais do país, as forças estrangeiras serão sempre consideradas como forças de ocupação e a guerra tenderá a eternizar-se. O pequeno grupo de militares portugueses constitui aquilo que é designado por OMLT (Operational Mentor and Liaison Team), e tem gente dedicada e preparada para entender, organizar, corrigir, orientar – enfim, transmitir saber sem ferir susceptibilidades. Portugal é um pequeno país no mundo e, no âmbito da NATO, tem um poder militar modesto; mas o seu potencial humano tem qualidades raras. E no poder estratégico de a país é muitas vezes de maior valor a sua gente do que a riqueza e sofisticação dos meios militares disponíveis (basta lembrar as
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dificuldades que as grandes potências têm tido em conflitos com pequenas e médias potências nas últimas décadas). Os portugueses têm um enorme “apetite” em “descobrir” o que está para além da colina, do Bojador, ou da atitude aparente; em procurar conhecer; e uma grande capacidade para entender o “outro”. Estas qualidades são essenciais para distinguir o amigo do inimigo, particularmente quando eles se confundem na etnia e religião. E entendendo o “outro” (o amigo), respeitando as suas crenças e costumes, cria-se um ambiente de confiança que é fundamental neste tipo de conflitos e missões, por ser aquele que permite passar a mensagem em que se alicerça a cooperação, a aliança. Esta qualidade, num mundo em que se pratica uma certa sobranceria por parte dos poderosos, é um dom inestimável. É possível que esta característica – capacidade para entender o “outro” – pertença já ao nosso equipamento genético, por vivermos nesta finisterra europeia que ao longo de séculos recebeu vários e diferentes povos, e que teria sido posta à prova, ou se tenha desenvolvido a partir do século XV, com a descoberta de novas terras e novas gentes. Mas esta empatia existe, está bem presente nas Cartas de Cabul, e os nossos aliados têm-na observado, admirado e utilizado nos diversos teatros de operações em que temos participado. Deve igualmente sublinhar-se, porque é notória, a desenvoltura da nossa gente, a aptidão, a imaginação, a originalidade, o improviso com que procura resolver os problemas para os quais não existem soluções padronizadas. Além disso, como nos disse Jorge Dias: “O Português é sobretudo profundamente humano, sensível, amoroso e bondoso, sem ser fraco”. E esta ideia foi corroborada há dias pelo embaixador do Reino Unido, em Lisboa, quando disse que aquilo que é mais notável, no Português, é o “coração”. A humanidade que está de um modo geral associada à nossa acção leva-nos a tudo fazer para encontrar soluções para os problemas que mais nos sensibilizam. E esta aptidão é particularmente importante em ambientes de tensão e conflito, como aqueles que se vivem nas intervenções militares que têm vindo a acontecer. As Cartas de Cabul não pretendem fazer a apologia do militar português mas quem as ler encontrará nelas, abundantemente, tudo isto. Escrever é sempre expor-se… O que se é, o que se vive, o que se sente, o que se pensa… e para este desnudar há, muitas vezes, acanhamento (que vai das omissões à inibição de escrever). Felizmente, para nós, este não foi o caso do autor das Cartas de Cabul. A vontade de contactar, de dar a conhecer, de partilhar; a aptidão didáctica que está sempre presente nos seus escritos; o desejo de dizer o que fazemos e o que fazemos bem – levou-o a contar-nos (com as res-
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trições que as operações e o senso exigem) o que ali viveu. Fá-lo com naturalidade, com simplicidade, diz-nos da sua admiração, compara experiências, olha para nós de lá, mostra a sua maneira de sentir, as suas dúvidas, a sua esperança. Na introdução fala-nos com clareza da intenção subjacente ao livro – a necessidade de partilhar – mas nada nos diz sobre a força do impulso, a intensidade das emoções, as tragédias da guerra, a acção dos nossos militares. Só a continuidade das cartas nos vai dando a conhecer o panorama, descobrindo véus, esclarecendo. Se as cartas nos mostram o que se vai passando em Cabul e na célula militar portuguesa que apoia a Divisão Afegã, elas simultaneamente apresentam-nos o “outro”, dão-nos a conhecer as dificuldades, sublinham a necessidade de um vector militar eficaz para a segurança, falam-nos na necessidade de aprender, da obrigatoriedade de entender, de planificar, de registar experiências e ensinamentos. Mas sendo a razão das cartas a vontade de partilhar, ao lê-las apercebemo-nos das inquietudes, das preocupações, das ansiedades, do sentir dos nossos e dos outros. E isto ajuda-nos a obter um quadro mais nítido do conflito, a olhar a moldura envolvente, a vislumbrar os principais traços, a distinguir as luzes e as sombras – a compreender melhor aquele drama, o que ali se passa. O treino dos nossos militares para estas missões, por mais bem feito que seja, é sempre insuficiente; fica sempre mais por aprender. Só lá, face à realidade, ao ambiente, aos problemas do dia-a-dia, à diferença de valores e costumes, à intensidade das crenças religiosas, se fica mais apto para entender e para agir correctamente. Mas, para isso, é preciso ver com profundidade, ouvir com atenção e respeitar o “outro”. Entender a História, os costumes, a religião e os valores é essencial para criar o clima de confiança que lhes fará distinguir invasores de apoiantes, ocupantes de aliados. Só isto, também, permitirá contextualizar para agir, impedindo que se proponham procedimentos que ali são contraproducentes ou inaplicáveis. Sobre o aprofundamento do conhecimento do “outro” as cartas narram-nos interessantes diálogos com afegãos, particularmente com o intérprete. O intérprete, que o autor nos apresenta, não é apenas o “língua” – que referiam as nossas crónicas; é também, quando escutado atentamente, um mensageiro do pensamento e do sentimento dos afegãos. Outro tanto sucede com o mullah da mesquita, com a sua interpretação do Livro, com os seus ensinamentos e recomendações que faz para todos os actos diários da vida dos crentes. Sobre tudo isto é bem patente a atenção, a procura em ouvir e entender do autor das cartas. Estas referências, só por si, justificam a leitura deste livro.
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O registo daquilo que aconteceu, as soluções encontradas, os sucessos, as dificuldades; a dedicação da equipa portuguesa, do acompanhamento da organização, equipamento e funcionamento da Divisão afegã, ao apoio à população e cuidados médicos fornecidos – tudo isso é um manancial de factos muito útil para os militares que ali vão continuar a servir e para os portugueses perceberem melhor o que fazem os seus compatriotas naquelas paragens. Julgo, também, que algo deve ser dito neste prefácio sobre aquele singular “prefácio” com que o autor inicia todas as suas cartas – “sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul”. Numa interpretação damasiana como lemos n’O Erro de Descartes isto pode ser apenas o sublinhar da emoção e do sentimento que são parte importante da sua razão… Ergo sum. Na carta n.º 20 ele próprio diz que sentir é estar vivo. Numa abordagem com Ortega y Gasset seria o valor daquela circunstância – três filhos e a mulher que amo – no que ele é. E em todas as cartas esta “circunstância” é um refrão. Mas contendo a frase uma fortíssima ideia de pertença, de união, de amor, pensamos, também, que não deveria, naquilo que o autor é, excluir-se a si próprio, como se não coubesse no “sou”… como se fosse só estar em Cabul. O currículo do autor, estas mesmas cartas contrariam essa ideia de ausência. O Nuno é mais do que aquela referência amorosa. Finalmente, tendo as cartas uma intenção predominantemente narrativa, há nelas ensinamentos importantes que podem ser lidos e merecem a nossa reflexão: a globalização e intensidade da violência; o peso da população na resolução destes conflitos – quem não a tiver do seu lado não ganha a guerra; a importância dos outros vectores estratégicos para além da força; a variedade das missões militares e a importância das missões do tipo daquela que foi atribuída à equipa portuguesa; a aptidão dos portugueses para desenvolver acções de elevado valor nestes conflitos; a importância do apoio e conselho na reconstrução das estruturas que qualquer país necessita para exercer a soberania e promover o desenvolvimento. Julgo que as Cartas de Cabul, além de mais um livro, são um documento importante. Lê-lo fez-me bem. Isto porque sendo bem mais velho que o autor e afastado há muito da vida militar activa, estou inteiramente com ele – continuo motivado… António Barrento
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INTRODUçãO
Passados alguns meses de regressar do Afeganistão ainda vivo intensamente o quotidiano afegão, a instabilidade regional, as inquietações globais. Não estou completamente cá, uma parte de mim ficou lá. Quando viajei a primeira vez para Cabul, em Julho de 2009, fui num voo comercial que, entre outros títulos, disponibilizava o filme Slumdog Millionaire (Quem Quer Ser Bilionário?) que aproveitei para ver. Os filmes marcam-nos, mais ou menos, de acordo com o contexto em que são vistos e esta excelente obra cinematográfica marcou-me bastante, impressionou-me tão fortemente que levou, ainda que indirectamente, a tomar a decisão de escrever as Cartas de Cabul. A descrição da miséria, da extrema pobreza, do terror e horror em que vive uma grande parte da população marginalizada da Índia, era o que de mais próximo poderia relacionar com o ambiente a encontrar no Afeganistão. A vida já me levou a muitas áreas miseráveis do mundo, da Oceânia a África, do interior às grandes cidades mas, por mais que tenha tentado entrar no contexto local, nunca vivi verdadeiramente essa terrível miséria porque apenas quem a sente e sofre poderá dizer que a entende. Sou privilegiado, com muito mais do que preciso para ser feliz e, por consequência, vivo nesta procura de tentar perceber aquilo que não sou obrigado
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a viver, por isso a necessidade de contar, de partilhar, de querer que um pouco daquilo que penso, testemunho, cheiro, vejo, sinto, possa ser transmitido aos que são parte de mim – a família, os amigos e todos a quem a minha escrita possa não ser indiferente. O filme mostra-nos, de uma forma cruel e simples, a intolerância religiosa, a discriminação étnica, a insensibilidade social, a pura ganância, a violência fútil e leva-nos até uma dimensão que não temos em Portugal: a da gigantesca população. Portugal cabe em meia dúzia de bairros de Bombaim: o que são os nossos dez milhões comparados com os novecentos da Índia? E com os vários biliões da Ásia? Há um mundo muito maior que o nosso “pequeno mundo” e cada vez mais, neste espaço global em que vivemos, ganhamos tanto em aprender com e sobre os outros. Desejei e decidi então escrever as cartas para simplesmente poder contar as vivências, falar do que muitos fazem e sentem, dar uma ideia do sofrimento e das alegrias, procurar explicação para o inexplicável, reflectir, usar recordações e pensar o futuro. Foi também uma forma de me manter desperto e atento, ligado àqueles a quem devo o que sou e forçar-me na análise permanente, na inquietude inconformada, que nos deve levar sempre a tentar fazer e pensar melhor. No texto de e-mail que acompanhava a primeira carta enviada a partir de Cabul dizia então: “Queridos amigos e família: Perdoem-me este e-mail. Aqueles que o recebem entenderão que o faço com o gosto de partilhar com quem me conhece bem. É minha intenção de tempos a tempos escrever umas cartas de Cabul. Mais para falar de sentimentos e experiências do que do trabalho propriamente dito. Poderão ser um pouquinho lamechas, mas digo-vos com franqueza que é o sentimento que carrego e nada mais fácil do que escrever e partilhar com os amigos e família que respeitamos. Se não quiserem receber mais cartas basta dizerem, não levo nada a mal.” Não recebi qualquer recusa. A curiosidade foi crescendo e descobri leitores que “devoravam” as cartas conforme iam sendo enviadas. Com o passar dos meses o número de leitores foi crescendo, muitos me pediram então para as reencaminhar, o que constituiu um enorme motivo de alegria e, ao fim de quatro meses de missão recebi um e-mail (reencaminhado) de um dos leitores com as primeiras 25 cartas distribuídas a um grupo de interessados. Não podia haver melhor recompensa, era o sinal que faltava de que as pessoas verdadeiramente cuidavam, preocupavam-se e apoiavam-nos.
Introdução | 17
Por vezes temos a ideia que, na lufa-lufa dos nossos dias, perdemos o interesse ou a sensibilidade por problemas tão distantes dos nossos problemas, mas… não! Somos sim, homens e mulheres, dotados da verdadeira característica que nos diferencia das restantes espécies: humanidade. Como testemunho do que acabo de escrever, recebi ao longo dos quase sete meses em Cabul, inúmeras mensagens de apoio, que muito me ajudaram a cumprir a missão que Portugal nos tinha confiado e, sem referir os autores, transcrevo de seguida alguns extractos dos textos enviados: “Acabei de ler a tua primeira carta e de a ler alto ao meu pai. Foi uma emoção, obrigado dos dois. Só podemos desejar que corra tudo bem e ficamos à espera de todas as notícias que puderes ir enviando.” “Para mim manda sempre… é um prazer saber que alguém que nos é próximo está num fim do mundo desses a fazer algo, e tenho a certeza que esse algo será muito, e bem sucedido, por aqueles que merecem aí viver em paz.” “Abri uma pasta (olhe que para mim às vezes essas coisas são difíceis) para guardar todas as suas cartas de Cabul. Vocês, os mais novos, são capazes de partilhar coisas que para os velhos (é verdade, começo a ser!) não são fáceis, quase sempre por vergonha. Tudo o que julgo estar a sentir, tanto quanto aos seus antecessores como em relação aos afegãos com quem trabalha são, no meu entender, a forma correcta de ser homem e soldado.” “Querido amigo, gostamos imenso das cartas de Cabul. Continue a mandar! Obrigada por tudo o que está/estão a fazer aí.” “Muito obrigado por mais esta carta de Cabul. Deviam ser públicas. Os portugueses são boa gente, desde que a realidade do mundo lhes seja mostrada. Todos devíamos saber que os camaradas que estão no Afeganistão, estão a contribuir para que as nossas crianças possam ir à escola tranquilas, continuar a queixar-se da ‘seca que é’, sem sequer terem a consciência dessas outras crianças, que provavelmente nunca terão oportunidade de o ser.” “Obrigado pela carta que enviaste, pois é extremamente rica no seu conteúdo! Ensina-nos muita coisa e chama a atenção para as ‘pequenas’ coisas da vida que constantemente nos passam ao lado… a nós que fomos habituados a ter tudo… e que inconscientemente não valorizamos. Mas mais do que isso, e porque a vida hoje é diferente de há 30-40 anos, como é que se consegue transmitir às crianças de hoje o real valor das coisas? Se umas ficam contentes por ter a possibilidade de ir à escola, outras só ficam contentes quando se vêem com a PlayStation 3 ou o mini-car para, com 16 anos, já poderem dar as suas voltas… Tudo tem o seu valor relativo… e podemos dar graças a Deus por vi-
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vermos numa sociedade como a nossa; podíamos era realmente dar mais valor ao que temos!” “Nós sabemos que as coisas estão como estão mas quando nos são contadas na primeira pessoa e por alguém que nos é querido, muda tudo. Ocorreu-me uma ideia (que até pode ser disparatada): se juntássemos estas cartas todas e no fim as compilássemos para serem editadas num livro? Estes testemunhos, na minha opinião, são muito importantes para as pessoas saberem que os nossos militares não estão aí por dinheiro mas sim para dignificar a farda que vestem e Portugal.” “Obrigado por mais esta carta cheia de sentimentos e profundidade que nos levam até ti e à tua vivência. Estes registos são um notável exercício de partilha que nos levam a conhecer uma nova realidade, com uma proximidade tal que os media não nos dão e que os teus olhos e escrita nos transmitem de forma singular. Ficamos presos e viciados na sua leitura, esperando a chegada da próxima.” “Acabámos agora mesmo de ler a última carta. Embora não propriamente surpreendidos, ficámos profundamente emocionados. No mínimo, ressalta a reflexão de quanto tempo perdemos na futilidade do acessório e quanto se anda alheio de tantos sofrimentos e angústias que outros sofrem e, entretanto, andamos distraídos e distantes do que se sofre pelo mundo fora e, no caso, no Afeganistão, é preciso muita coragem e estamos certos que ela continuará a não te faltar.” “Acordei cedo, como sempre, ao som do rádio ouvindo as notícias e o meu primeiro pensamento e preocupação foi para ti, confiando e desejando que estivesses bem. A tua carta é a melhor ilustração do que é o relativismo. Tema que estou no momento a tentar ‘ensinar’ ‘transmitir’ aos meus alunos do 1.º ano na disciplina de antropologia. E não pude deixar de evocar a história de uma aluna angolana, freira (37 anos) com quem ‘aprendi’. Perguntei-lhe no final da aula se estava integrada e se os colegas (entre os 17 e 18 anos) a recebiam bem. A propósito do facto de ser freira contou-me como os colegas a questionavam ‘por não poder ter namorado’ ouvi e aprendi. Angola, no Huige, tempo de guerra que só lhe permitiu entrar na escola aos nove anos e durante sete anos não comeu sal. Aos 15 anos queria ser muito rica para ter uma casa muito grande para poder albergar muitas crianças, e posteriormente ser economista. Mas o Estado, de acordo com as notas escolares, enviou-a para o Huambo tirar enfermagem. Curso que fez ‘com todas as condições’, mas que não pôde colocar em prática quando foi trabalhar para o cenário de guerra e onde teve que ter procedimentos para salvar vidas que como me dizia ‘se fizesse aqui estava na prisão’! Vim para casa a pensar naquela
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rapariguinha cheia de força, alegre, que gostaria agora de ser médica e como a sua história de vida ilustrava muito mais o que era o relativismo cultural do que as duas horas de ‘teoria’ sobre o mesmo que eu tinha tentado debitar, mesmo tendo apelado a situações concretas. Mas pensei em cenários de guerra, que tive a sorte de nunca viver, e vi dois lados da moeda: tira os sonhos, vidas mas também simultaneamente pode dar nalguns casos a força existencial. Escreves ‘custa’ e imagino quanto, apesar de não ter a experiência! Mas as tuas cartas, que só hoje consegui ler, por défice do meu e-mail, são lições de humanidade.” “É com enorme prazer que leio as tuas cartas de Cabul. O tempo e as vidas diferentes afastam camaradas de Colégio. A vida apesar do afastamento aproxima-nos muito mais através de ideais comuns e um sentido de solidariedade, que cada um à sua maneira desenvolve. Uma vez, no contexto de uma entrevista, um jornalista colocou em destaque ‘posso mudar o mundo’. É o que eu sinto que cada um de nós pode fazer através do seu exemplo de cidadania, compreensão e sobretudo de tolerância. Por uma criança que se salva ou que muda para melhor e que no futuro vai mudar outras crianças e ensiná-las a viver com tolerância já valeu a pena a nossa passagem por aqui. […] Hoje mostrei a um dos meus filhos algumas das passagens das tuas cartas. Faz-lhes bem.” “Leio as tuas cartas e identifico-me com os sentimentos que nelas pões. Sabes que mais? Ajudam-me a saborear cada minuto que estou com os miúdos e com a… de uma maneira diferente. Lembro-me das saudades que passei e de como muitas vezes tomamos o facto de estar perto como uma coisa banal sem o saber apreciar. Por aqui as coisas vão andando, os miúdos a crescer, a gente a trabalhar. Nestes últimos dias, foi tempo de discursos e de palavras sentidas. […] Mas os meus votos batem sempre na mesma tecla, só espero que sejam tão felizes nesta vida como eu fui e sou. Apesar das arrelias que vamos apanhando pelo caminho, continuo a levantar-me considerando-me um privilegiado. Não sei se muita gente pode dizer o mesmo. A avaliar pelas caras com que as pessoas andam na rua, não sei. Bem, só queria partilhar este sentimento contigo. ‘Y demo gracias à la tropa que me hay dado tanto.’” “Como sempre adorei a tua carta, só tenho pena que alguém que já cá não está não a possa ler, pois teria imenso orgulho no seu filho e, por certo, partilharia inteiramente da tua opinião. A educação e verdadeiro espírito de camaradagem é algo que terá que ser sempre o sustentáculo das relações entre homens, povos e continentes, por mais díspares que sejam.”
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“Caro Nuno! Tiveste o privilégio de pôr um pobre frade franciscano a choramingar, alta madrugada, na solidão da sua cela e na amizade que nos une… Li e meditei sobre as tuas cartas… soube sentir como ‘cresceste’ aí… vais vir mais gigante! Vou conservar em arquivo a tua última carta… e isto na esperança que vá ter todas as outras em suporte de papel… bem hajas por essa ‘mochila’ de amor que trazes para casa…a juntar-se ao mar de amor que cá tens! Bem-vindo meu grande soldado de Portugal!” Recebi imensas e importantes mensagens que me ajudaram e deram força, muitas delas sugerindo a publicação das cartas. Gostaria de terminar esta pequena introdução com um excerto do e-mail do Professor Doutor Armando Marques Guedes: “Fiquei fascinado […] Foi com enorme gosto e proveito que, aqui na Noruega, li o que me faltava ler das cartas do Afeganistão que me enviou. Dei-as a ler a uma das minhas filhas (chama-se Leonor e tem 15 anos), que teve a mesma reacção que eu: publique-as quanto antes. Se quiser, para tanto, ajuda, conte comigo – tê-la-á toda.” Foi isso que fiz, pedi-lhe ajuda e recebi-a toda. O senhor professor teve a gentileza de escrever alguns apontamentos e pequenos textos que complementam e ajudam a entender o contexto das cartas. Sendo uma autoridade reconhecida e referência incontornável no mundo das Relações Internacionais, é para mim um enorme prazer, uma honra e uma distinção tê-lo presente neste livro. Pedi também ao meu querido tio, o general António Barrento, para fazer o prefácio do livro, e ele disse logo que sim. Mais uma grande prova de carinho e honrosa distinção. Por último mostrei o projecto ao Dr. Pedro de Avillez, da Editora Tribuna da História e também um antigo aliado da nossa História Militar. Sim! Foi a sua resposta pronta. Estou imensamente grato. Além dos textos do Professor Doutor Armando Marques Guedes, também as cartas foram um pouco “editadas”. Não se alterou em nada o conteúdo original, mas foram acrescentados dados novos, para melhor contextualizar os acontecimentos que são descritos, e melhorados a ortografia e gramática. A maioria dos acrescentos está devidamente assinalada, em nota de rodapé ou no final das cartas e sempre precedidos por “Nota do Autor”, quando escritas por mim ou “Nota de Armando Marques Guedes” se da responsabilidade do senhor professor. Obrigado por me lerem. Nuno Lemos Pires
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7 de Outubro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Hoje vi um menino a brincar com um papagaio de papel e lembrei-me do título do famoso livro, mais tarde transformado em filme, The Kite Runner 1. Foi bom. Durante o regime talibã, entre outros absurdos, estava proibido brincar com papagaios de papel. O menino brincava tranquilo, aparentemente não tinha medo. É bom. Para nós é apenas um pequeno indício de que há melhorias. Sentimos que estamos a fazer algo de útil e importante, se assim não fosse para quê os milhares de mortos e feridos? É para isso que somos soldados. É o nosso dever. E vamos tentar, de uma forma humilde mas dedicada, ajudar a melhorar para que um dia se viva em paz e segurança neste martirizado país. O que mais desejamos é sermos úteis. Deixámos Portugal no final de Setembro. Uma viagem militar de três dias que nos permitiu ajustar ao destino. No primeiro dia parámos na Grécia, foi
Nota do Autor: The Kite Runner (em Portugal O Menino de Cabul), primeiro romance do escritor Khaled Hosseini, publicado em 2003, que foi adaptado ao cinema com o mesmo título, em 2007.
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óptimo, no final de seis horas a bordo do mais inconfortável avião que conheço, o C-130, foi mesmo bom poder jantar comida grega e dar uma volta pelo centro de Tessalónica. No segundo dia voámos para Baku, no Azerbaijão. Definitivamente já não estávamos na Europa, três horas para sair do aeroporto, uma língua estranha, uma cidade absurda com enormes edifícios e auto-estradas rodeadas de velhos edifícios ao estilo soviético. Mas ainda assim pudemos dar uma voltinha. Todos sabíamos que este seria o último momento de liberdade – sim, ainda podíamos decidir por sair ou não, pedir um táxi, jantar fora ou simplesmente ir para o quarto e ver um programa da televisão internacional. Claro está – caí na primeira esparrela – como ainda não tinha trocado para dinheiro local tive de pagar no bar do hotel uma rodada ao pessoal com o cartão visa – pois – já verifiquei que foi cobrado duas vezes – Welcome to Azerbaijan! Ao terceiro dia chegámos a Cabul. Se tivéssemos dúvidas sobre o local para onde iríamos, as últimas duas horas em voo táctico deu-nos as boas vindas ao Afeganistão. Para mim foi a segunda vez. Já cá tinha estado no reconhecimento em Julho e não foi surpresa sentir o cheiro desagradável e a poeira que sempre anda pelo ar a estas altitudes. Blocos de cimento, barreiras policiais, arame farpado, paredes de betão, coletes balísticos, etc. Sim, estava outra vez no Afeganistão. Primeiro momento – um forte abraço aos que viemos render. Merecem bem regressar a casa. Não foi uma missão fácil. Serviram muitíssimo bem Portugal.
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Estes primeiros dias em Cabul têm sido uma correria louca, ainda não parámos para descansar. Treino, reuniões, mais treino, passagem do trabalho de rendição, mais treino e finalmente o início do nosso trabalho principal. Sabe bem poder ter Internet – essa maravilhosa invenção do Skype – assim mantemos a ligação com a família – são e serão os melhores momentos – quando nos encontramos no ecrã… Temos a atenção virada para nós. O nosso trabalho é descrito como fundamental. Os aliados só terão sucesso se puderem passar a responsabilidade de defesa aos militares afegãos. Nós, a nossa equipa, fazemos a “mentoria” à única Divisão Operacional do Exército Afegão – a Kabul Capital Division2. Que Nota do Autor: A Divisão de Cabul (111 Kabul Capital Division ou KCD) é a unidade militar responsável pela segurança na província de Cabul. A sua actuação dentro da cidade desenvolve-se em reforço e coordenação com a polícia (ANP – Afghan National Police) e os serviços de segurança (NDS – National Defense Service), ao passo que na restante província é a principal responsável pela segurança, com o apoio da ANP, NDS e, quando necessário, da própria ISAF. As principais tarefas da Divisão são a reacção a incidentes, limpeza de itinerários, patrulhamento constante e assegurar em permanência uma Quick Reaction Force (QRF) de nível companhia. A 111 KCD pretende ser uma unidade exemplar no Exército afegão (ANA), com elevados níveis de operacionalidade, prontidão, e com capacidade para poder garantir um ambiente calmo e seguro na região de Cabul. 2
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grande desafio! Pessoalmente vou “mentorar” um brigadeiro-general afegão que tem um passado glorioso como mujahedin – um soldado – um guerreiro. Os primeiros contactos foram óptimos, é extremamente simpático, fala um pouquinho de italiano (esteve quase dois anos em Itália a estudar, mas não deve ter sido a língua italiana…). Terei algo para lhe ensinar? Uma coisa está garantida – vou aprender muito com esta missão. Já sabemos que vamos ter um programa muito intenso à nossa frente – há muitíssimo por fazer e o tempo não perdoa. Isso é bom – estar muito ocupado ajuda a passar melhor o tempo. Mas estamos confiantes que temos muito para ajudar também. Somos portugueses, da terra de Vasco da Gama, e sempre soubemos integrar e relacionar com todos os povos e credos. Estamos motivados. Estou motivado. Agora só precisamos de sorte. Que Deus nos ajude a regressar todos, esta excelente equipa, esta minha outra família para os próximos seis meses.
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CARTAS DE CABUL – N.º 2
17 de Outubro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. A conversa estava agradável. São quase sempre muito agradáveis as conversas com os afegãos e quando são com os próprios intérpretes tudo se torna mais fácil porque não temos os inevitáveis tempos da tradução. À medida que nos vamos conhecendo melhor, aumenta a confiança, a cumplicidade. Afinal estes homens conhecem quase todos os nossos segredos de trabalho, são verdadeiramente a nossa voz de e para quem trabalhamos. E são boas pessoas. Tínhamos acabado de visitar a Clínica de Saúde da Divisão. Degradante, desumana. Para não entrar em pormenores desnecessários apenas conto que não tem água, electricidade e as salas de internamento não têm portas… O médico chefe da clínica, um verdadeiro gentleman, parecia resignado mas acreditava que o nosso médico iria ajudá-lo a fazer a diferença. E nós vamos fazê-lo. Nem tudo são operações militares e este também é o nosso trabalho – ajudar a melhorar as condições de trabalho, de vida, de saúde… seja na clínica seja no refeitório. Onde pudermos ajudar aí estaremos. Saímos da clínica e no caminho de regresso comecei uma conversa mais pessoal com um
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dos intérpretes. Que dignidade, que lição de vida. Escolhi algumas das frases que me disse: “Sim, cresci com os sucessivos regimes, os soviéticos, os mujahedin, os talibãs… durante este último fui preso duas vezes… tinha a barba curta de mais […] uma vez tive 24 horas detido e outra estive oito horas […] não me deixaram acabar o meu curso de medicina […] era o meu sonho […] a minha mulher não foi à escola […] não podia ir.” “Tenho três filhos, um rapaz e duas raparigas, o mais velho já está na escola e as meninas irão a seguir […] todos irão à escola […] é para isso que eu vivo […] já não posso prosseguir o meu sonho mas posso criar as condições para os sonhos deles […] a minha vida pertence a eles.” “Não quero ter mais mulheres […] amo muito a minha […] estarei com ela até ao fim.” “As pessoas não entendem o Islão […] um homem só deve ter outras mulheres se lhes puder dar as mesmas condições, o mesmo tempo, o mesmo carinho […] o problema é que as pessoas são ignorantes e não conhecem os seus direitos e […] por isso não reclamam”. Não posso evitar as comparações com as nossas prioridades do tipo ocidentais. Para muitas das nossas crianças a escola é geralmente referida como “uma seca” que lhes é apresentada como garantida e simultaneamente inevitável. Aqui agradece-se todos os dias a oportunidade de frequentar uma escola, evitam-se os ácidos que são atirados sobre as meninas que vão à escola, sobre as professoras… luta-se por este direito… compromete-se toda uma carreira pela possibilidade de os filhos terem o seu próprio futuro. Que dignidade! Já eram quase 17 horas e o capitão dos EUA, o simpático Chris, perguntava-me pela segunda vez “are the Generals late?” – não fiz caso, disse-lhe que não se previam grandes atrasos, era de facto uma grande delegação com muitos VIP que vinham ver de perto o nosso trabalho e o das forças afegãs – como tal era uma visita importantíssima. No fundo, o que queria dizer é que estávamos dispostos a esperar nem que fosse a noite toda (a bem dizer, aqui não temos uma vida social assim tão intensa que nos impossibilite de esperar a noite toda…). O Chris deve ter lido os meus pensamentos: “Sir, I do need to know if they will arrive late!” – isto não era nada do estilo dele – foi aí que me explicou: “The best US Steaks are comming to the base today!” e os soldados dele não lhe perdoariam se chegassem atrasados. Os melhores bifes dos EUA iam estar
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na base americana! Ele explicou-me melhor: Uma famosa cadeia de restaurantes prepara todos os anos uma refeição para trinta mil militares das Forças Armadas dos EUA numa das bases americanas espalhadas pelo mundo. No ano anterior tinha sido em África, há dois anos foi o Iraque, agora era a vez do Afeganistão e precisamente na base onde dormia o Chris e os seus homens. Esta refeição era totalmente oferecida pela cadeia de restaurantes e por milhares de pessoas que contribuíam para o transporte, compra, confecção e serviço desta “ementa” especial: The best US Seaks! É bom sentir esse carinho, a forma como os americanos cuidam dos ”our soldiers” (os nossos soldados) – se repararem os americanos não dizem “os soldados” ou “os militares” sempre afirmam com enorme pertença “os nossos soldados” ou “our men/women in uniform” (os nossos homens/mulheres em uniforme) – a dignidade com que são recebidos, a força que lhes dão quando têm de partir, o acompanhamento permanente com pequenos gestos… não
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retiram os perigos à missão e não evitam as mortes, mas dá sem dúvida outro sentido. Nós portugueses também? Sim, penso mesmo que sim, que há muito carinho e apoio, mas à boa maneira portuguesa não sabemos como ou de que forma o demonstrar. Se ao menos deixássemos de dizer “essa tropa”3… Agora que metemos verdadeiramente as mãos na massa começamos a ver os primeiros resultados do nosso trabalho: cada dia um pequeno progresso e, o mais importante, a confiança está a ser estabelecida. Estamos confiantes. Continuamos motivados.
Nota de Armando Marques Guedes: Cabe-nos a nós, cidadãos da sociedade civil, encontrar maneira de começar a fazê-lo. Não me parece particularmente difícil, desde que tenhamos bem em mente o que queremos conseguir com esse reconhecimento e essa identificação e sentimento de pertença. Publicações como esta, de cartas como estas, são potenciais passos gigantescos em frente, dados nessa direcção. Ao mesmo tempo que nos transformam em seres humanos melhores, ao alargarmos o âmbito dessa pertença e de reinvenção de uma identidade que devemos a nós próprios.
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CARTAS DE CABUL – N.º 3
24 de Outubro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Fui à Missa. Entrei na Torre de Babel. Um capelão belga esperava-nos à entrada da capela (um barracão de madeira no meio dos contentores) com um missal escrito em oito línguas diferentes. A celebração seguiu nas diferentes línguas, boas vindas em inglês, leituras em flamengo, francês, espanhol e italiano, cumprimentos em polaco, e, claro, cada um rezava na sua língua. Babel… no entanto, dá-nos que pensar! Muitas línguas e uma excelente harmonia. A homília foi muito bem dirigida – o capelão fez as analogias com a palavra Servir – servir a Deus, servir os homens, para nós militares a palavra sempre foi e é Servir – senti um novo sabor na palavra (dita em francês) Servir. E porque estávamos nós ali? Por fé? Não sei, não conhecia ninguém dos que estavam na missa… podia ser pelos motivos mais variados. Sei porque estou ali. Na Igreja Católica encontro a matriz social do meu povo, dos nossos povos, ali encontro uma paz de espírito, de comunhão. Ali penso mais nos outros e muito nos meus queridos que estão longe. Ali penso em valores e princípios e sinto que há algo de bom que nos leva a querer o bem. Será fé? Apenas sei que me sinto bem, em paz e rezo, por mim, pelos outros, pela minha família, por este povo martirizado do Afeganistão.
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Penso que é a primeira vez que escrevo sobre este tema que nós, portugueses, somos tão bons a fugir dele, e eu também. Nem tudo tem explicações fáceis e assumidas. Não farei por isso declarações assumidas de fé, mas posso dizer com muito orgulho: sinto-me bem na minha Igreja, na nossa Igreja. É bom poder ter um espaço e um tempo para rezar pelos outros, por nós, por cada um. É bom poder partilhar e sentir que nos identificamos em raízes culturais comuns. É bom sairmos de dentro de nós próprios e dar sentido ao que nunca parece ter sentido. Assim queira Deus. Conhecemos o nosso comandante, o general Stanley McChrystal. Tínhamo-nos ido despedir da rapaziada que regressava a Portugal e aí estava o comandante da ISAF no aeroporto4. Noutro qualquer ambiente, seria apenas Nota de Armando Marques Guedes: Stanley McChrystal é general de quatro estrelas, hoje na reserva, mas que até 23 de Junho de 2010, provindo de Bagdade, se viu colocado
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mais uma fotografia. Ele foi muito simpático; sim conhecia muito bem o nosso trabalho, sabia bem o que podia ser feito pela Kabul Capital Division e, assim, cumprimentou-nos a todos, tirou a foto, desejou-nos o maior sucesso e avisou para termos cuidado. Em qualquer outro local, noutro momento, teriam sido palavras de circunstância e apenas uma fotografia. Nunca a frase “a nossa vida depende dele” teve tanto sentido. De facto, este é um homem invulgar. É bom estarmos a tomar parte de um plano em que acreditamos, que faz sentido. As suas orientações são modernas, até revolucionárias. E nós identificamo-nos com elas. Foi bom conhecer o hono Afeganistão, onde conseguiu notáveis sucessos – designadamente a liquidação de al-Zarqawi, o chefe da al-Qaeda no Iraque. Antes de ser substituído em Cabul primeiro por um comandante interino britânico, e depois pelo general David Petraeus, S. McChrystal liderou o esforço militar aliado no Afeganistão, como comandante da ISAF e, em simultâneo, comandante das forças norte-americanas no Afeganistão. A 23 de Junho saiu de Cabul envolto em polémica, em resultado dos comentários, ora jocosos, ora derrogatórios, que fez, numa entrevista à revista Rolling Stone, sobre os seus superiores hierárquicos civis na sua cadeia de comando; os alvos mais comuns das críticas que formulou foram o vice-presidente Joe Biden e o embaixador Karl Eikenberry. McChrystal era de há muito popular pela sua marcadíssima e, finalmente, auto-destrutiva frontalidade. A Administração em Washington e o Presidente Barack Obama reagiram à entrevista com compreensível consternação – ainda que com firmeza. Como foi escrito à época, McChrystal foi o primeiro general comandante a quem foi retirado um comando no calor de uma refrega desde que, há mais de 50 anos, Harry Truman exonerou das suas funções o general Douglas MacArthur no pico da guerra da Coreia. É comum que os oficiais generais norte-americanos ao passar à reserva recebam convites para exercer funções como consultores de empresas e indústrias de segurança, mentores no quadro das Forças Armadas ou nas de Segurança, ou posições nos Boards de grandes empresas transnacionais, e McChrystal não foi excepção: desde o Outono de 2010, dá aulas na Universidade de Yale, em New Haven, no muito prestigiado Jackson Institute for Global Affairs. Tendo sido no passado Fellow da John F. Kennedy School of Government, em Harvard e no Council on Foreign Relations, McChrystal fá-lo no quadro de uma pós-graduação sobre Liderança, na qual, para além de quatro académicos da casa, estão já John Negroponte, um famoso ex-embaixador e sub-secretário de Estado no State Department, e Ernesto Zedillo, um ex-presidente mexicano. Segundo o site de Yale, o Instituto oferece este curso aos estudantes de Yale “interested in global affairs and provide career counseling and placement services for students interested in careers in diplomatic service or with international agencies”. O respeito que o autor das presentes Cartas de Cabul lhe dedica parece ter sido amplamente partilhado pela esmagadora maioria dos homens e mulheres que Stanley McChrystal foi chefiando ao longo da sua carreira castrense. Porventura em reconhecimento disso, o Secretário de Estado da Defesa Robert Gates limitou-se a “resignation as Commander of U.S. and NATO Coalition Forces in Afghanistan” do general, organizando-lhe uma despedida com toda a pompa e circunstância devida a “um herói”.
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mem por detrás da assinatura. Também é o nosso comandante. É sem dúvida a nossa missão. Estamos a colaborar nos planos para a segunda volta das eleições. Tem sido um desafio gigantesco mas com notas muito positivas. Aqui conseguimos juntar na mesma sala o exército afegão, as polícias, os serviços de informação, o município de Cabul, as forças da NATO, os representantes da Nações Unidas. E coordenamos todos juntos5. Conheço tantos países em que tal cenário de coordenação seria impossível… Mas enquanto levantámos os pressupostos de planeamento fomos ver os materiais e equipamentos que os soldados e polícias teriam para ajudar na segurança das eleições. O frio já chegou, nas casernas ainda não há um cobertor para cada um, por vezes dormem três soldados na mesma cama para se protegerem do frio. Não há botas para todos ou meias… Paro aqui. Começámos também por aqui. É este o desafio que temos permanentemente, começar sempre pelo princípio do princípio. É desesperante. É frustrante. E tem de ser feito no meio de muitos interesses, pouco dinheiro e muita corrupção. Mas ainda estamos motivados.
Nota de Armando Marques Guedes: Sob a égide da comunidade internacional, as eleições presidenciais tiveram lugar no Afeganistão a 20 de Agosto de 2009, em simultâneo com eleições para 420 lugares em “Conselhos Provinciais”. A maioria dos observadores eleitorais concordou que estas eleições foram manchadas por insegurança, intimidação de vários tipos e absenteísmo/abstenção (em grande parte devidos à posição dos talibãs que ameaçaram com retaliações e morte quem fosse votar), e por fraudes várias imputadas aos apoiantes do Presidente em exercício desde 2004, Hamid Karzai. Em resposta a numerosas pressões norte-americanas e aliadas, bem como a denúncias das ONG no terreno, uma “segunda volta” – desenhada para que os eleitores se decidissem pela manutenção de H. Karzai na chefia do Estado ou a sua substituição pelo seu mais popular opositor, Abdullah Abdullah, foi marcada para 7 de Novembro seguinte. Esta “segunda volta” (denominada por via de regra como uma “run-off election”) foi, porém, cancelada cinco dias antes da data aprazada, visto o opositor do Presidente considerar não existirem condições para a sua realização de forma “transparente” – no que teve a anuência da maioria dos observadores. Assim, a 2 de Novembro a “run-off election” foi cancelada pela “Comissão Nacional de Eleições” afegã, e Hamid Karzai viu-se reconduzido no cargo de chefe de Estado para um segundo mandato de mais cinco anos. A posição interna, muito crítica, da Administração norte-americana, tanto sobre Karzai como sobre este turbulento processo eleitoral, começou em finais de 2010 a ser divulgada pelo WikiLeaks.
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CARTAS DE CABUL – N.º 4
28 de Outubro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Estávamos em Junho de 1995 e tinha chegado há pouco tempo a Moçambique. Era o início da cooperação militar com Portugal e tinham passados poucos meses desde que terminara a missão de paz das Nações Unidas6. Por Nota de Armando Marques Guedes: A missão de paz portuguesa em Moçambique a que o autor se refere, integrou a Operação de Apoio à Paz das Nações Unidas intitulada ONUMOZ, que teve início em 1993. Lembremo-nos de que o processo de paz foi encetado em Moçambique em Dezembro de 1992. O contingente da ONUMOZ, que começou a chegar em Março de 1993 ao país leste-africano dilacerado por uma feroz guerra civil em Março de 1993, atingiu, no seu auge, efectivos de cerca de 6000 homens, que se mantiveram no terreno até Outubro de 1994 (com reforços, no período final, de destacamentos enviados para efeitos policiais e eleitorais). Durante todo o processo, não houve incidentes de maior. As unidades militares portuguesas que participaram no processo de paz em Moçambique incluíram um Batalhão de Transmissões e os membros da Missão Militar Portuguesa em Moçambique (MMPM). A MMPM – uma entidade nascida do compromisso português em apoiar a formação das novas Forças Armadas conjuntas de Defesa de Moçambique – congregava tropas da FRELIMO e da RENAMO. Tornou-se uma verdadeira história de sucesso: a MMPM foi responsável pela reabilitação e apetrechamento de numerosos Centros de Instrução, e conduziu a formação das Unidades de Forças Especiais e de Logística
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isso, tudo era novo, nós muito poucos e o trabalho imenso. Estávamos ali para cooperar com um exército completamente virado ao avesso num dos países mais pobres do mundo e, como éramos poucos, fomos acumulando projectos. Comecei com a reorganização do Estado-maior do Exército e acumulei com a assessoria ao Batalhão de Forças Especiais da Matola, a Polícia Militar da Machava e a Escola de Logística em Maputo. Vinha cheio de ideias e “muita juventude”. O último projecto a que fui dar uma ajudinha foi precisamente o da Escola da Logística. Aí aprendi uma grande lição. Fui acompanhado do excelente primeiro-sargento de Administração Militar, Nuno Crisóstomo, que tinha transitado da anterior missão de manutenção de paz em Moçambique e que por isso já contava com uma significativa experiência. Esperava-nos à entrada o comandante, o tenente-coronel Langa, um bom amigo, um dos primeiros moçambicanos a frequentar a nossa Acadeque substituíram as forças da UNOMOZ, garantindo com eficácia a segurança e liberdade de movimentos de pessoas e bens dos principais corredores de transporte de Moçambique – Maputo, Beira e Nacala. Os resultados foram francamente bons. A participação portuguesa louvadíssima: Aldo Ajello, o italiano chefe da Missão da ONUMOZ, não nos poupou elogios. Os portugueses foram elogiados pela sua “capacidade inventiva” e pelo “alto nível de profissionalismo” do nosso contingente, constando do relatório de fim de missão da ONU que “os militares portugueses foram os que melhor se adaptaram e inseriram no tecido social e local” [ver esta avaliação em UN Security Council, S/1994/1449, 23 December 1994, Final Report of the Secretary-General on the Termination of the United Nations Operation in Mozambique (ONUMOZ), disponível em www.undemocracy.com/S-1994-1449.pdf]. Embora a operação de algum modo lateralmente equivalente que teve lugar em Angola (as várias UNAVEM) não tenha tido o mesmo sucesso, compreensivelmente, a notável participação de militares portugueses nos muitíssimo atribulados processos de paz de Angola e Moçambique veio dar um forte impulso à Cooperação Técnica Militar (CTM) do Estado português com os PALOP. Em final dos anos 80 o Estado português assinou os primeiros acordos nesta área: primeiro com Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Moçambique (1988), depois com a Guiné-Bissau (1989) e, mais tarde, apenas em 1996, com Angola. Seguiram-se-lhe as criações institucionais de suporte e coordenação política: nomeadamente a criação, pelo Decreto Regulamentar n.º 32/89 de 27 de Outubro, de um Departamento de Cooperação Técnica Militar, integrado na Direcção Geral de Política de Defesa Nacional (DGPDN) do Ministério da Defesa Nacional. Tem sido épica a nossa actuação, nestes como noutros cenários globais. Estão actualmente em vigor com cada um dos PALOP Programas-Quadro de CTM bianuais, que se desdobram em diversos subprogramas – abrangendo o apoio à organização e funcionamento, em todos os países lusófonos (excepto o Brasil, naturalmente) dos seus Ministérios da Defesa, dos Estados-maiores das suas Forças Armadas e dos respectivos Comandos dos Ramos: Exército, Marinha, e Força Aérea. É assim facilmente compreensível o sentimento de orgulho que perpassa esta e outras cartas.
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mia Militar em Portugal, daí nos conhecermos bem. Eu era um jovem capitão e ele ostentava a patente de tenente-coronel comandante da Escola da Logística. Não podia haver melhor! Depois de um grande abraço fomos dar uma volta pela unidade. De todas as que tinha visto aquela parecia-me estar muito bem, à altura do comandante. Conversa puxa conversa e ele conta-me: “Nuno, estou sem director de Instrução o que me tem causado muitos problemas” – claro! Como pode uma escola funcionar bem sem o seu principal coordenador? “Ele foi de licença visitar a família e já passaram três meses e ainda não apareceu e não sei quando o fará…” Aproveitei a ocasião para aplicar a “minha cooperação”: “Langa, vamos aplicar o Regulamento de Disciplina Militar, vamos fazer um processo disciplinar exemplar e aproveitar para explicar a todos como se faz e…” O Crisóstomo começou a tentar interromper-me: “Meu capitão por favor…” “Espera Crisóstomo! Deixa-me terminar a conversa com o nosso tenente-coronel.” Mas o Crisóstomo insistia: “Meu capitão, por favor, apenas uma palavrinha…” Muito irritado lá pedi desculpa ao Langa e fui falar com o Crisóstomo. “Meu capitão” disse-me o Crisóstomo com aquela calma que se aprende em África “estas situações não são assim tão claras como gostaríamos de as entender. Temos de perceber o que está por detrás destas ausências…” E então contou-me: “Este major, o tal director de Instrução, era oriundo da RENAMO e em 1980, com apenas 12 anos, foi raptado na Beira quando ia a caminho da escola – foi levado para a RENAMO e nunca mais viu a família desde essa data.” Passados 15 anos foi visitar a família pela primeira vez. Como se aplicava então o Regulamento? Percebi7. Na cooperação o primeiro trabalho é Nota de Armando Marques Guedes: Tendo em mente a cada vez menos clara distinção entre “crises civis” e “crises militares”, e entre “segurança civil” e “segurança militar”, seria descabido não prestar aqui homenagem ao labor levado a cabo pelas Forças Armadas portuguesas, que nos aforam e projectam nos novos quadros internacionais em que a presença portuguesa ganha em ser mais visível e respeitada. Se estas Cartas têm uma tónica clara – e, em boa verdade, contêm várias – é a importância que sabemos realmente atribuir ao “conquering hearts and minds”: uma dimensão fundamental em conflitos assimétricos em que
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entender, ouvir, relativizar e por fim adaptar a melhor solução. Aprendi que só muito raramente a solução a aplicar seria uma cópia das nossas soluções. É tão importante ouvir, entender – contextualizar. 2009, Cabul, Afeganistão. Os soldados não têm cobertores! Já o tinha contado na última carta. Fui saber porquê. “Recebeste cobertores?” “Sim, recebi em Agosto.” “Sabias que eram para o Inverno?” Sim, ele sabia, mas quando teve uma licença, levou-os para casa. “Mas não sabias que os cobertores são propriedade do Exército afegão?” (Pausa.) “Os meus filhos têm frio… eu aguento o frio, mas eles…” Já não me passa pela cabeça aplicar o regulamento, aprendi há muito a ouvir, entender… Mas verdade seja dita, a grande maioria dos soldados não leva os cobertores para casa, sabem que pertencem ao governo… o que se passa é que quem não precisa deles para o frio, os responsáveis pela obtenção e distribuição, esquecem-se de os distribuir. Pois. Hoje acordámos com mais um ataque em Cabul. Foi rapidamente resolvido mas provoca sempre natural ansiedade nos nossos amigos e famílias. Esta semana também se registou mais um terrível atentado em Bagdade:160 mortos, 500 feridos. Esperemos que tais atrocidades não ocorram por aqui. Esperemos que tais atrocidades não ocorram mais no Paquistão, ou na Indonésia, ou em Londres, ou em Madrid ou… no nosso país8. o adversário muitas vezes logra comportar-se “como um peixe dentro de água”, para citar Mao Tsé-Tung. É esta empatia, junto à arte operacional que temos vindo a desenvolver nas nossas instituições de ensino superior militar, que constitui o real ”modo português de fazer a guerra” sobre o qual tão bem e tão elogiosamente escreveu, em Londres, no livro Contra-subversão em África – O Modo Português de Fazer a Guerra, o investigador e historiador militar norte-americano John P. Cann, e que, felizmente, perdura e se propaga mesmo a cenários mais historicamente alheios como os encontrados no Afeganistão. 8 Nota de Armando Marques Guedes: A alusão aqui feita é, evidentemente, a ataques terroristas brutais – e em larga medida inesperados, embora também previsíveis – como os que ocorreram a 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque e em Washington, a 11 de Março de 2004 em Madrid, a 7 de Junho de 2005 em Londres. Sublinho estes, visto que nesta carta compreensivelmente para quem a escrevia do Afeganistão – apenas arrolar ataques desencadeados por agrupamentos islamistas de uma ou outra maneira afiliados à al-Qaeda, ou dela aliados. A alusão a Portugal parece-me porventura ter como subtexto o facto de sermos o único dos Estados envolvidos na Cimeira das Lajes de 16 de Março de 2003 que todavia não foi atacado. Esta carta foi escrita meses antes da muito esperada visita do Papa
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Sim, também é por isso que aqui estamos, é por estes lados que temos de parar esta loucura, se não o conseguirmos, vamos ter de o fazer, com sacrifícios muito maiores, na nossa casa, nas nossas cidades, nos nossos países. É o paradoxo do nosso mundo ocidental – como não acontece – nós não acreditamos que possa ocorrer e se acontecer gritamos bem alto: “Porque não foi o ataque evitado?” Os que costumam ler os meus escritos terão lido um artigo que escrevi em 2005 em conjunto com o tenente-coronel Rui Ferreira intitulado “A Europa depois de um grande atentado”9. Infelizmente não vejo nenhuma razão para mudar uma linha desse texto. Espero bem não termos razão. Choveu na noite passada, as montanhas em redor de Cabul já estão cobertas de neve. É bonito. A falsa aparência da calma e a beleza… Bento XVI a Portugal, entre 11 a 14 de Maio de 2010, para a qual foi montado um dispositivo de segurança de enorme sofisticação comparativa. 9 Nota do Autor: Jornal do Exército, n.º 542, 2005.
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Já passou um mês desde que saímos de Portugal. Todos me disseram que o tempo passa depressa. Eu repito o mesmo lá para minha casa. Dizem-me que não. Pois não. O tempo leva o tempo que tem. E não me parece que esteja a ir depressa como gostaríamos. Mas está tudo bem, a família está bem e, assim, não custa tanto a passar. O trabalho intenso ajuda, mas eu sou os três filhos e… Custa! Deixemo-nos de tretas – custa a passar! Pelo menos a mim. É assim, faz parte da missão, faz parte dos sacrifícios. Nada que não se possa vencer. Mas lá que custa, custa. Seguimos motivados.
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CARTAS DE CABUL – N.º 5
2 de Novembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Estamos a meio de um processo eleitoral muito complexo e atribulado. Nada é como parece, aquilo que se diz não é o que se faz e o que se pretende dizer não é o que se afirma. Elaborar sobre este tema daria uma interessante reflexão de geopolítica mas este não é o momento nem o meio próprio para o fazer. Mas o facto de se pedir às pessoas para votarem de novo tem muito mais implicações que um qualquer processo eleitoral “ocidental”. É precisamente sobre as pessoas, que são chamadas de novo a votar10, que gostaria de escrever. Nós afirmamos que o voto é um direito e um dever. Aqui acrescenta-se: é um acto de coragem! Muitos dos que votaram na primeira volta foram ameaçados, humilhados e, infelizmente, muitos foram punidos por terem ido votar. Cortaram-se dedos, narizes, etc. Quantos dedos mais se podem perder? É esta a questão que nos põem todos aqueles com quem falamos: “Sim, votar é importante e fomos votar, as nossas mulheres foram votar, mas outra vez? Não se conhece já o vencedor?” Nota do Autor: De acordo com o sistema eleitoral a contagem de votos tinha levado à realização de uma segunda volta. 10
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Para o comum dos cidadãos afegãos, o acto de votar segunda vez não parece ser fundamental e comporta elevadíssimos riscos: além das ameaças já veiculadas pelos talibãs temos também o início dos rigores do Inverno que enchem de neve muitas das áreas do Afeganistão. A justiça de uma segunda volta parece ser incontestável, a necessidade de ir até ao fim sugere uma postura firme e decidida por um princípio humano e democrático. Mas para o cidadão comum, este direito e dever continuará a ser um acto de coragem e, no mínimo, teremos de compreender que se possa pensar duas vezes antes de ir votar. Quanto aos militares, internacionais e afegãos, não há dúvidas. Havendo eleições, ter-se-á de garantir a segurança dos eleitores. A missão será cumprida. É um dever inquestionável e se há reflexões de cidadãos, os mesmos enquanto militares não pensam sequer duas vezes em cumprir bem essa missão na segurança das eleições. E esta determinação enche-nos de esperança sobre as futuras Forças Armadas do Afeganistão e dá-nos orgulho no cometimento dos militares de todas as nações aqui presentes.
Todos os dias leio as notícias de Portugal. Magoam muito as notícias do meu querido Colégio Militar11. Como militar conheço os limites da ética e deontologia sobre posições que posso assumir sobre este tema, e por isso, com tranquilidade, assumo claramente o que escrevo de seguida. Aceito que nem todos concordem comigo. O meu Colégio é uma casa de excelência. O meu Colégio é uma instituição de Portugal. O meu Colégio foi e é uma das casas onde aprendi parte dos meus valores, princípios e conduta. O meu Colégio também é parte do que eu sou.
Nota do Autor: À data desta carta tinha saído nos órgãos de comunicação social nacional algumas notícias de casos antigos passados no Colégio Militar que denegriam bastante a instituição; também tinham saído algumas notícias positivas mas infelizmente a maioria apontava exclusivamente para os factores negativos. 11
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O Colégio Militar tem, como qualquer instituição viva, defeitos e virtudes, coisas boas e coisas más. Todos nós que o vivemos tivemos momentos bons e maus, momentos muito bons e momentos muito maus. Ali conhecemos pessoas extraordinárias e grandes bestas. E aprendemos muito com ambas. É esta a chave do sucesso do meu Colégio. Aprendemos com tudo o que há de bom e com o que há de mau. Na verdade sempre se passaram actos reprováveis, mas também sempre presidiu um sentimento de justiça. Lá dentro sentimos que alguns actos isolados de desnorte eram corrigidos por actos corajosos de quem velava por nós. Para cada mau graduado12 havia sempre outros graduados que faziam tudo quanto podiam para nos enquadrar, ajudar, ensinar e proteger. Assim fomos crescendo, e com muitos bons e poucos maus momentos fomos aprendendo a lidar com um mundo de pessoas boas e más, que, quando adultas, refinam a bondade umas, e abusam na maldade, as outras. Por isso somos cidadãos bem preparados, bem formados e fortes. O afastamento físico da família deu-nos a proximidade à mesma que só a distância permite medir. O ter de decidir sozinho deu-nos a força de poder decidir na vida. O Colégio terá sempre de evoluir, as práticas de outrora não serão as melhores práticas de hoje, todos sabemos isso. Mas os valores do meu Colégio, os princípios desta nossa casa, continuam como referência e farol. O meu Colégio tem na sua direcção pessoas que muito admiro e a quem tenho a honra de chamar meus amigos. Têm feito um esforço notável e sei que tudo farão para manter a força da nossa casa. Obrigado pela dedicação e empenho. Sou um ex-aluno orgulhoso do seu, Meu Colégio Militar. Talvez por estar no Afeganistão, um pouco mais sensível ao “um por todos, todos por um” não queria deixar de afirmar: Menino da Luz, sempre!
Nota do Autor: Graduado é o aluno do último ano, neste caso do 12.º ano, que tem a responsabilidade de ajudar a tomar conta dos mais novos. 12
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CARTAS DE CABUL – N.º 6
6 de Novembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Terramotos. Já sentimos dois. Gripe A, intoxicações alimentares. Neste pedaço de mundo em que tanta desgraça acontece parece que tudo se vira contra as pessoas. Há de facto “medo” no ar. Medo da doença, medo do atendimento médico, medo de sair à rua, medo de receber as cartas nocturnas “night letters” dos talibãs13. Medo de ser mais uma vítima de uma explosão. Medo de Nota de Armando Marques Guedes: As night letters (localmente conhecidas como shabnamah) constituem uma forma tradicional de comunicação pública, por norma levada a cabo pela via da afixação de “recados” em papéis azuis, colados – muitas vezes com fita-cola negra – nas portas das mesquitas nas sextas-feiras de manhã, quando os fiéis a elas acorrem em massa. Têm sido correntes sobretudo no sul do Afeganistão, nas chamadas “zonas tribais” que confinam com as do Paquistão, e no oeste, de onde é oriundo o líder talibã histórico, o famoso mullah Omar. Noutras conjunturas, designadamente por altura de eleições apoiadas pela ISAF, as shabnamah são enviadas directamente a professores, funcionários públicos, políticos locais e quaisquer outras pessoas com algum efeito multiplicador nas respectivas comunidades. O termo night letter foi porventura escolhido e traduz a expressão afegã vernácula (o mesmo termo é utilizado no Irão, em farsi, e ainda em muitos países árabes) por aquilo que sugere “recado”, ou “aviso” e furtivo. É curioso verificar que também os iranianos e os palestinianos as utilizam, bem como os grupos políticos israelitas “pró-paz” o fizeram
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ser afastado da família pelas opções assumidas. Medo de não ter trabalho, de nada ter para alimentar a família. Medo. E coragem. Muita coragem, para neste terrível ambiente tentar ter uma vida normal. Coragem para sair à rua, coragem para pedinchar trabalho, coragem para fazer tarefas abaixo da dignidade, como trabalhar um dia inteiro por um dólar – sim 1$! Apenas para não chegar a casa sem pão para as crianças. Sei que me repito um pouco sobre crianças, mas sou da terra de Fernando Pessoa – “o melhor do mundo são as crianças”. Quando as crianças brincam E eu as ouço brincar, Qualquer coisa em minha alma Começa a se alegrar. Fernando Pessoa, 05/09/1933 em várias localidades de Israel no decurso dos anos 70. No caso do Afeganistão, com o ressurgimento dos talibãs em 2004, as “cartas nocturnas” tornaram-se uma forma privilegiada de intimidação alargada utilizada pelos talibãs e dirigida aos “invasores cristãos”. Estão de volta em força, após um interregno prudente em que se viram forçados a dispersar aquando de um ataque da Aliança Norte que lhes foi durante muito tempo ingloriamente avessa, mas que se tornou eficaz uma vez apoiada pelas tropas norte-americanas enviadas pela Administração Bush depois dos ataques a 11 de Setembro e da recusa do governo afegão da época em entregar os militantes da al-Qaeda à comunidade internacional. É importante saber não subestimar o impacto das shabnamah, que por isso têm sido objecto de numerosos estudos tanto militares como académicos. Efectivamente, a razão de ser da sua extensiva generalização em palcos afegãos é fácil de compreender. Pense-se no exemplo paradigmático formado pelos momentos em que se tenta, a partir de um qualquer centro, pôr eleições em movimento: dada a ausência de qualquer tipo de propaganda eleitoral, ou de quaisquer posters sobre as candidaturas, o seu impacto é temível, e têm tido à partida uma enorme vantagem sobre os esforços tímidos dos afegãos que apoiam a construção de um Estado no país – atingem um público maior, emergem “em rede” chegando as suas mensagens a todos os estratos sociais, e fazem-no com mais veemência e, ademais, com uma aura de “tradicionalidade” que num forte sentido as legitimam. Embora nunca tivessem desaparecido, reemergiram em força antes das complicadas eleições de 2009, referidas nas cartas, altura em que se foram tornando progressivamente mais ameaçadoras no tom. As shabnamah são muitas vezes assinadas com a epígrafe “Os Talibãs”. Nas suas variantes afegãs, não são uma importação recente, bem pelo contrário. Durante os anos 80 tornaram-se instrumentos decisivos na mobilização e na luta dos mujahiddin contra a invasão desencadeada pela União Soviética. O seu regresso e o seu impacto “subversivo” potencial (ou talvez seja melhor dizer como meio de desencadear uma reacção favorável aos “insurgentes”, para utilizar uma terminologia afim à dos norte-americanos) tem sido difícil de controlar.
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Escrevi sobre “medo” e “coragem” em dois artigos em 2004 e 2005 para a Revista de Administração Militar. Falava do medo e da coragem dos soldados nos modernos campos de batalha, como este do Afeganistão. Hoje acrescentaria umas linhas sobre o medo e a coragem de viver. Porque as crianças brincam. Todos os dias passamos por elas e lá estão elas a brincar nas ruas, nos quintais. E parecem felizes, o que neste ambiente é no mínimo impressionante. Não tenho dúvidas de que muitos adultos vão buscar a coragem para viver ao sorriso das suas crianças, como não? As crianças além de, por si só, levarem a transcender-nos são também um símbolo do melhor que a humanidade tem: a esperança! E a esperança dá-nos
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força, a esperança dá-nos coragem. Pode-se perder tudo mas quando se perde a esperança perde-se a razão de viver. E não tenhamos dúvidas, a falta de esperança é a razão por que muitos aderem a movimentos fundamentalistas e não se importam de morrer por causas extremas. Esta também é a nossa missão: devolver a esperança a este lado do mundo e fazemo-lo da forma mais simples possível – estando ao seu lado, partilhando riscos e responsabilidades. Recebi mais uma tarefa que se transforma num desafio interessantíssimo! Além de “mentorar” o brigadeiro general chefe de Estado-maior da Divisão de Cabul, iniciei a “mentoria” ao brigadeiro-general chefe do Departamento Religioso e Cultural. Há muito que este notável general nos procurava por se sentir descriminado por não ter nenhum mentor. É um homem culto, com ideias muito claras sobre o que deseja fazer e sobre o que nós podemos aprender/ensinar-lhe. Claro que não estamos habituados a ver um departamento Religioso e Cultural numa unidade militar, mas aqui ninguém vive sem ele. Em Portugal temos os capelães, que têm por função o acompanhamento religioso e moral dos nossos militares. Mas aqui a dimensão é maior. Este Departamento não só faz a ligação entre o comando e os seus soldados como é ainda um importantíssimo interface entre o Exército e a comunidade e, em especial, as mesquitas. Este departamento é muitas vezes o único meio de comunicação com a sociedade afegã. Para a grande maioria dos cidadãos a única fonte de informação é o seu mullah local. Se receberem mensagens positivas sobre os militares estrangeiros seremos bem recebidos, se porventura se apelar à jihad… De facto os nossos capelães também fazem este importante papel de interface com a comunidade local, mas de forma geral, as pessoas são mais informadas e muitas não frequentam sequer a igreja. Aqui, 98% da população é muçulmana, quase todos frequentam as mesquitas e, para a esmagadora maioria, a “verdade” vem da boca dos mullah. Já aprendi que uma das grandes razões por que os soviéticos perderam a guerra no Afeganistão foi o facto de se oporem e mesmo tentarem aniquilar a religião. O general dizia-nos que quando os Russos perderam a guerra da religião perderam também a guerra. Nós não queremos ser aqui vistos como invasores soviéticos, mas infelizmente é essa a mensagem que os talibãs se esforçam por tentar passar: Que somos mais uns invasores e que também estamos aqui para acabar com a religião. Por isso é tão importante a “mentoria” a este departamento. Aqui, todos os dias se comunica com os soldados e com as mesquitas, há uma secção só para
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apoio às famílias, na sua composição há vários mullah, e realizam-se acções junto das escolas, dos refugiados, das famílias pobres14. São meio de comunicação, de apoio social e são a face da ajuda humanitária. Tanto que podemos fazer juntos, uma oportunidade fantástica. Esperemos estar à altura, espero estar ao nível de mais este desafio. Rotina no trabalho? Ná! É coisa de que não me queixo! Seguimos motivados.
Nota de Armando Marques Guedes: Este apoio dos mullah tem-se revelado como uma faca de dois gumes, uma vez que também é uma táctica de mobilização e conquista de hearts and minds utilizada pelos talibãs. De resto, em todo o mundo islâmico, grande parte dos apoios recebidos pelos islamistas – que por isso mesmo aí investem fortemente – resulta da sua criação sistemática de uma alternativa efectiva às redes locais e regionais de apoio e suporte que os Estados não têm querido, ou sabido, montar. O papel dos mullah tanto nos processos de state building, quanto nos de state failure e dissolution, quanto ainda nos de criação de estruturas paralelas, ainda em grande parte está por estudar – não apenas no Médio Oriente e na Ásia Central, mas também em África. Se podemos defender que os mullah são peças essenciais para uma legitimação local de actuações provindas do exterior, também é certo que muito do chamado fundamentalismo islâmico radica na capacidade geral de penetração que estes agentes religiosos têm tido, designadamente ao erigir um poder teocrático alternativo ao de Estados que muitas vezes brilham pela sua ausência. O autor das cartas tem por conseguinte inteira razão quando sublinha o papel diacrítico que os mullah preenchem, para o bem ou para o mal, na construção de uma comunidade política procedente. 14
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8 de Novembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Passaram três semanas desde que tivemos que proceder a uma evacuação para dentro dos bunkers 16. Havia mais uma ameaça de que estariam a tentar Nota do Autor: Esta carta só foi enviada para os amigos e família no último dia da missão. Como poderão entender sempre evitei preocupar a família com as verdadeiras actividades e riscos que corríamos. Como tal tentei passar a imagem, especialmente à minha família, de que a actividade se desenvolvia dentro das bases e que raramente andava pelas estradas do Afeganistão. Além desta carta, foram mais duas as cartas que só enviei no final da missão, por conseguinte estão identificadas com uma letra que é acrescentada ao número da carta precedente. 16 Nota do Autor: Nas bases em que estão colocadas as forças aliadas há edifícios construídos para dar protecção em caso de ataques, mas no nosso caso e durante os três primeiros meses da missão, estivemos alojados em contentores que não davam qualquer tipo de protecção pelo que, espalhados pelas bases, há construções de betão, com um sistema de comunicações, água e luz, que permitem, em caso de alarme ou ataque, buscar protecção e aí permanecer até a situação estar de novo controlada. Sempre que o alarme soava, e se não tivéssemos os coletes balísticos de protecção vestidos, rapidamente o colocávamos, levávamos para os abrigos (se o tempo o permitisse) uma pequena mochila com alguns alimentos e roupas além do obrigatório capacete, arma, etc. 15
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atacar a nossa base. A descoberta de um pacote suspeito com fios à vista levantou a suspeita, soou o alarme e lá fomos para o bunker esperar que a situação ficasse resolvida pelas equipas de desactivação de explosivos. Esta ameaça, juntamente com a de possíveis rockets sobre a cidade, lembra-nos a fragilidade da situação em que vivemos. A calma é sempre aparente e o descanso nunca é total17. Habituamo-nos a viver assim, mas não conseguimos fazer desta vida um padrão de normalidade. Não é normal. Nota de Armando Marques Guedes: Longos períodos de calma aparente são comuns, como em virtualmente todas a guerras subversivas e assimétricas, nas quais a capacidade de manter uma actuação cinética de maneira sustida é exígua – e em que o efeito surpresa e a dimensão psicológica das actividades militares se transformam em armas cruciais para a parte mais fraca. Trata-se de uma calma que, se letárgica, muitas vezes soletra uma vulnerabilidade acrescida na capacidade das “forças regulares” em se manter por muito tempo em bom estado de prontidão. Quando bem geridos, estes hiatos constituem uma autêntica arma, cujos efeitos desestabilizadores não podem ser ignorados; são calmarias que precedem tempestades. 17
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Dentro do bunker estavam todos os portugueses presentes nesta base. Quase todos estavam calmos mas dava para sentir as diferentes sensibilidades. Também é assim a natureza humana, reagimos de maneira diferente. Não era nada. Óptimo. Esperemos que o alarme não soe brevemente. Mas se tal ocorrer, estamos preparados. Para isso também treinamos. Tem de ser. Faz dois dias que dei mais uma volta pela Divisão. Ia acompanhado do meu fiel intérprete Wais quando decidimos visitar as Turkish Barracks. Nestas casernas estão dois dos batalhões (ou Kandaks com cerca de 600 homens cada um, de entre oficiais, sargentos e soldados) com quem trabalhamos frequentemente. Sentados no passeio estavam dezenas de soldados armados com espingardas automáticas M16, carregadas e prontas a fazer fogo. Todos olhavam para nós enquanto passávamos. Além da minha pistola Beretta não trazia mais qualquer protecção. É assim que trabalhamos todos os dias, durante os deslocamentos trazemos o capacete, o colete balístico, etc., mas, quando chegamos à Divisão, retiramos todo o equipamento, deixamos apenas ficar a pistola. Não faria sentido trabalhar nos gabinetes dos nossos “mentorados”, que estão totalmente desarmados, e nós completamente equipados e protegidos. Assim nunca poderia haver confiança. Tem de ser assim, é um risco naturalmente assumido e consciente. Durante a minha “voltinha”, disse-me o intérprete Wais: “Ouviu as notícias de ontem em que um polícia disparou sobre uma POMLT (são as OMLT congéneres que acompanham a polícia) britânica?” Sim, todos sabíamos essa triste notícia em que cinco britânicos tinham sido mortos e vários haviam sido feridos por um polícia, supostamente originário ou infiltrado na unidade de polícia que estavam a “mentorar”. “[…] E já reparou que todos estes homens que nos olham estão armados?” Pois, sabemos que corremos permanentemente este risco. Estamos conscientes, mas que podemos nós fazer? Da minha parte, discretamente apressei o passo, mas não posso fugir dali, todos os dias nos cruzamos com militares afegãos armados. Ao menos trazemos as nossas pistolas, sempre é uma ajuda em caso de um ataque repentino. Mas temos de mostrar confiança. Os militares afegãos também têm consciência que podem haver elementos infiltrados. Também eles prometem cuidar de nós como nós queremos cuidar deles. É esse o compromisso. Temos de cumprir. Este é o primeiro dos riscos que assumimos nesta missão.
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Hoje fomos, o comandante, eu, o médico e os militares que nos fazem a protecção Force Protection, numa viagem de reconhecimento ao batalhão (Kandak) Delta. O Kandak fica em Darulaman, ou seja no outro extremo da cidade, a sul. Demorámos mais de uma hora e meia a lá chegar e cerca de uma hora a regressar. Atravessámos algumas das “denominadas áreas perigosas” da cidade de Cabul. Aproveito mais este deslocamento para explicar o segundo maior risco que corremos, que é o de sofrer um ataque à nossa coluna de marcha durante um deslocamento. Tudo começa no dia anterior quando estudamos a ameaça para o deslocamento. Geralmente há sempre qualquer coisa, genérica, mas que nos lembra que a ameaça existe. Se esta não for demasiado grave mantemos o planeamento e preparamo-nos para o deslocamento, estudamos os mapas com os militares encarregados de nos fazer a protecção (no caso da nossa missão esta protecção é garantida por militares dos Comandos ou dos Fuzileiros), esses sim, são os que mais arriscam, que mais vezes se expõem, de quem nós dependemos. No dia seguinte fazemos o nosso briefing de segurança onde revemos todas as possíveis ocorrências no itinerário, desde avarias, furos, desvios, novas ame-
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aças, ou os possíveis ataques. Vestimos o pesado equipamento, preparamos as nossas armas e entramos nas viaturas blindadas. Por serem blindadas a visão do ambiente exterior não é muita18. Vemos o que se consegue: uma cidade cheia de gente a tentar levar uma vida normal. Correu tudo bem, estamos de volta à base. Esperemos que todas sejam assim. A questão não se põe se sentimos ou não medo a cada momento, a cada alarme, a cada ameaça, a cada deslocamento. Não, penso que não sentimos esse medo físico. A cada momento geralmente estamos calmos, tranquilos. O medo existe, mas está na nossa consciência. Sentimo-lo antes de vir para a missão e de tempos a tempos recordamo-nos das vulnerabilidades. Preparamo-nos o melhor possível, mantemo-nos alertas. E habituamo-nos. Nota de Armando Marques Guedes: De resto, toda a estrutura e morfologia dos Humvees se tem desenvolvido em resposta adaptável a conflitos como os em curso no Iraque e no Afeganistão, tendo em conta a natureza dos ataques possíveis a que são sujeitos. Assim tem sido, nomeadamente, no que diz respeito não só à composição como ao formato dos chassis – constantemente alterados para melhor resistir às minas e road-side bombs (as IED – improvised explosive devices) utilizadas pelas milícias locais. 18
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Aqui não sentimos medo por nós, sentimos medo pelos nossos que estão em casa, porque a última coisa que queremos é que sofram. Não falta coragem, mas garante-se a consciência, sabemos ser responsáveis. E rezamos por nós, pelas nossas famílias, por esta excelente equipa e pelos bravos militares que nos garantem a protecção, que se expõem todos os dias e que, bem sabemos, tudo farão para nos protegerem. P.S. (nota do autor) – Uns dias depois de terminarmos a nossa missão no Afeganistão, a 20 de Abril de 2010, quando a equipa que nos rendeu já lá se encontrava a trabalhar aconteceu aquilo que sempre tememos: um insurgente fardado com o uniforme de sargento, envergando um colete explosivo com 15 cargas explosivas, foi infiltrado dentro da Divisão através de um dos coronéis com quem trabalhávamos todos os dias, com a missão de tentar matar o general comandante da Divisão19. Nesse dia o general não se encontrava na Divisão pelo que ele decidiu executar a sua missão secundária, matar os mentores estrangeiros. No interior do edifício estavam os nossos mentores portugueses, cá fora, junto a um dos edifícios estava uma equipa americana (ETT – Embeded Traning Team – como já foi explicada, a equivalente americana das nossas OMLT e que tinha a missão de apoiar um dos batalhões da Divisão). Dirigiu-se a eles e fez-se explodir, no meio de tamanha desgraça pelo menos só rebentaram três das 15 cargas que transportava consigo. Mas ainda assim causou um morto e dois feridos graves. Os mentores portugueses, por sorte, estavam fora do alcance deste suicida20. Estes bravos americanos eram camaradas nossos que Nota de Armando Marques Guedes: Mais uma vez uma táctica corrente em guerras assimétricas, a de um esforço de decapitação sistemática das forças inimigas, quebrando-lhes desse modo as cadeias de comando. De notar que esta táctica não tem a mesma eficácia com agrupamentos subversivos, organizados em rede – e nos quais uma decapitação leva à criação de verdadeiras “metástases”, muitas vezes ampliando e não reduzindo a sua capacidade de combate. 20 Nota de Armando Marques Guedes: Seria um erro encarar estes suicidas como mera expressão do fanatismo religioso endémico – embora em parte o também sejam. É bom ver que a intensificação de ataques baseados em manobras de suicidas responde às assimetrias existentes de forma particularmente eficaz: tem um enorme efeito desestabilizador no adversário enquanto mobiliza um marcado esprit de corps interno, criando auto-intitulados “mártires”, ao mesmo tempo que torna os ataques muitíssimo mais fáceis, uma vez que dispensam exit strategies operacionais para os atacantes, o que lhes simplifica imenso o esforço. Por outro lado, servem como excelentes veículos para as mensagens ontológicas que os líderes dos movimentos islamistas utilizam para mobilizar apoios em contextos agonísticos, ao exprimir gestos de uma entrega altruísta, total e com um sabor a “transcendente” que os envolve numa aura de “superioridade moral” a que não é fácil responder. Auferir 19
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tinham chegado há pouco tempo ao Afeganistão e que conhecíamos bem. Homens de valor, determinados, e estavam a fazer um excelente trabalho. Transcrevo de seguida o relato feito pelo major americano em e-mail que nos enviou uns dias depois, quando já nos encontrávamos em Portugal: I hope you had a safe journey home and happy reunions with your families. I hate bringing bad news, but I thought you would want to know, since you worked with our ETTs. Last Monday at around 1100, a suicide bomber dressed as an ANA E7 detonated near one of our HMMWVs for the 6/1/111 Mentor Team. SGT Robert Barrett was killed and SPC Scott Deveau and SPC Michael Medur were both injured. Several other Soldiers were treated for concussions as a precaution. The Battalion is handling things well and the Soldiers on the 6/1/111 Mentor Team are strong. They have been talking and working, so they are doing as well as can be expected. Again, I hate to bring bad news, but I thought you would want to know. Thank you for serving with us and I’ll look for you when we eventually visit Portugal. Respectfully, Possível tradução: Espero que tenham tido uma viagem em segurança e um reencontro feliz com as vossas famílias. Lamento trazer-vos más notícias, mas penso que estariam interessados em recebê-las, uma vez que trabalharam com as nossas ETT (equivalente às nossas OMLT). Na segunda-feira passada por volta das 11h00, um bombista suicida fardado como sargento do Exército afegão (ANA E7) fez-se explodir perto de uma das nossas viaturas blindadas (HMMWV) pertencente à nossa equipa encarregue da “mentoria” ao 6.º Kandak (batalhão) da 1.ª Brigada da 111.ª Divisão de Cabul (6/1/111). O sargento Robert Barrett foi morto e os especialistas Scott Deveau e Michael Medur ficaram ambos
por isso de resultados político-militares e simbólicos poderosos e de modo nenhum despiciendos. Por isso proliferam, e infelizmente os homens e as mulheres-bomba tornaram-se, em consequência, uma espécie de imagem de marca do poder muçulmano anti-“ocidental” um pouco por toda a parte.
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feridos (entenda-se como gravemente feridos). Vários outros militares foram tratados por pequenos traumatismos por prevenção. O nosso batalhão está a lidar bem com a situação e os soldados mentores da equipa 6/1/111 são fortes. Têm falado sobre o assunto enquanto continuam o seu trabalho e assim continuam a cumprir bem a sua missão, como outra coisa não seria de esperar. De novo, lamento trazer-vos más notícias, mas penso que as quereriam saber. Muito obrigado por terem servido connosco (entenda-se como trabalhado lado a lado ou cumprido a missão em comunhão) e espero que nos possamos reencontrar um dia quando eventualmente possamos visitar Portugal. Respeitosamente, MICHAEL J. GREENE Major, FA, XO, 1-101 FA, “The South Regiment” Joint Task Force-Kabul, Camp Phoenix, Kabul, Afghanistan (Não resisto a contar uma curiosidade sobre esta excelente unidade americana que tanto nos apoiou e com a qual mantivemos uma óptima relação de trabalho – mais pormenores em cartas seguintes – é que 20% da unidade era constituída por militares de origem portuguesa, muitos dos soldados deste batalhão eram voluntários para se deslocarem à Divisão onde trabalhávamos só para poderem beber um cafezinho Delta e para trocar umas palavrinhas na língua de Camões.)21
Nota de Armando Marques Guedes: Um excelente exemplo de uma nova espécie de cosmopolitismo de base nacional que a interdependência complexa contemporânea viabiliza e incentiva. A resultante é a criação de laços transversais de cumplicidade e lealdade recíprocas, inestimáveis em todas as conjunturas, mas particularmente nas mais hostis. 21
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12 de Novembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Há dias fiquei pasmado com as notícias da RTP Internacional. Completamente esclarecido sobre os graves problemas do mundo – O Sporting está sem treinador!22 Trinta minutos com este tema, mais 10 minutos sobre o Benfica e o Porto… ah… em 30 segundos falou-se que houve uns mortos no Afeganistão, uma missão contra os piratas, mais um ataque no Paquistão e, o Cristiano Ronaldo foi convocado mas o Real Madrid… O que mais me magoa não é sentir o desinteresse dos órgãos de comunicação social mas antes saber que esta selecção de notícias possa reflectir o que de facto interessa aos leitores/telespectadores. Nesta mesma semana em que em Espanha o El Mundo publicava as 11 primeiras páginas sobre a missão no Afeganistão. A CNN, a BBC, a France 24, dedicaram provavelmente 40% das notícias a especiais sobre a reeleição de Karzai, o futuro aumento de tropas, a crescente ameaça no Paquistão, etc. Nota do Autor: À data desta carta ainda não existia substituto para o treinador Paulo Bento e outra das notícias usuais era a lesão(?) de Cristiano Ronaldo que o impedia de participar num jogo da Selecção Nacional. 22
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Não costumava ser assim em Portugal23. Antes apreciávamos bons noticiários com informação variada com uma grande abertura mundial. Agora nem sobre os países da língua de Camões damos notícias. É só a pequena história, o assalto em Cascais, o desastre na auto-estrada, etc.; o que se passa com o meu país? Ignoramos o mundo? O nosso mundo? Penso que sempre gostámos de ter uma postura universal, uma compreensão multicultural e um natural “jeito” para as relações entre povos. Agora, além de construirmos cada vez mais condomínios nas nossas cidades também levantamos muros à cultura, ao saber, aos outros. Alimentamos durante semanas a fio pequenas e baixas intrigas, as filmagens da Maitê em Portugal, o carro que o ministro levou à reunião do partido, o novo divórcio de… Bolas, ainda entendo que existam revistas especializadas em mexericos e que os adoradores destas notícias as possam devorar, mas nos nossos jornais e televisões de referência? Temo que a boçalidade se tenha tornado demasiado presente, que cada vez menos se respeite as pessoas, que a má-língua, o boato, a intriga estejam cada vez mais impunes. Há anos que detesto este novo papel dos comentários on-line em que qualquer um, a coberto de um nome/ título falso (por vezes bastante ridículo) ataca e diz o que quer sobre as pessoas de quem, naquele dia, lhe apeteceu dizer mal. E dizem muito mal, escrevem muito mal, ofendem, chamam nomes, difamam, com total impunidade e, tantas vezes, repetem, repetem, até à exaustão. Em finais do século XIX, princípios do XX havia muita intriga e má-língua nos nossos jornais. Mas todos tinham um rosto, uma assinatura e até uma forma literária de o fazer… “Morra Dantas morra Pi!” Podia-se não gostar, mas quem escrevia assumia e não se escondiam por detrás de nomes falsos (pseudónimos Nota de Armando Marques Guedes: Ancora aqui um dos motivos que me levaram a incentivar o autor a publicar estas notáveis Cartas de Cabul – como de resto me levou a redigir e publicar, com Luís Elias, um estudo sobre as actuações no exterior das Forças de Segurança portuguesas. Raia o absurdo que o esforço de homens e mulheres portugueses que, nos quatro cantos do mundo, projectam a nossa política externa, nem sequer obtenham o reconhecimento que lhes é devido pelos nossos decisores políticos, pela nossa opinião pública, e pelos círculos académicos. Como cidadãos, como contribuintes, e enquanto seres humanos, cabe-nos verificar nesta extraordinária projecção de força (numa escala que nem durante o “período imperial” tivemos, excepto no pequeno intervalo da guerra do Ultramar) a importância que ela efectivamente tem – mesmo que seja para dela discordar. Algo vai mal, de facto, no Reino da Dinamarca, quando vingam nele o desconhecimento e a apatia. 23
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talvez, mas facilmente identificáveis) com comentários boçais, curtos e sem qualquer objectivo construtivo. Que exemplo estaremos a dar aos nossos filhos? A ética, os valores, a honra, a dignidade, a deontologia são muito importantes. Mas para tantas pessoas, palavras sem qualquer significado. Aqui em Cabul, onde pouco há e tudo é difícil tenho recebido diariamente lições sobre cada uma destas palavras. Nesta imensa confusão, no meio de uma guerra, dentro desta continuada desgraça, busco orientação nos meus princípios. Aqueles que aprendi com os meus pais, no Colégio, no Exército, ou nos princípios fundadores da minha pátria. Não são palavras vãs, são valores que guiam a minha conduta, estaremos a saber passá-los às novas gerações? Será que as gerações de hoje ainda os sentem? Não quero parecer um velho conservador, mas para haver modernidade tem de haver ética. Novas ideias, novos valores, novas oportunidades! Óptimo, sempre aberto a recebê-los, a discuti-los. Mas o pior não são os novos valores, mas sim a ausência completa de valores; não há, ponto. Não se discutem, não interessam, simplesmente não têm qualquer relevância para a maioria dos telespectadores. Em suma, não são rentáveis do ponto de vista comercial. O meu menino faz hoje um aninho. Não estarei lá. Também, pelos mesmos motivos, faltei a aniversários das minhas queridas filhotas. Custa, claro. Estes momentos custam sempre um pouquinho mais. Mas acima de tudo estou muito feliz. Não estando fisicamente presente estou aí de alma e coração. Sei que não lhe falta amor e carinho. Ele saberá que da minha parte não lhe faltarão doses maciças de amor. Apenas não posso estar lá. Mas estou tão feliz pelo aninho do meu filho, estou feliz porque ele é feliz, nós somos felizes. Mesmo quando estamos longe, sabemos estar perto. Custa, mas reconforta-nos e dá-nos força. Se o Skype funcionar vamos estar juntos no ecrã24. No
Nota de Armando Marques Guedes: Têm sido publicados numerosos estudos sobre o impacto marcado e altamente positivo das novas tecnologias de comunicação para a moral das forças expedicionárias enviadas para cenários antes remotos e inacessíveis. Um segundo de reflexão mostra como o contacto diário, em tempo real, com som e imagem, pode ser para a consolidação de relacionamentos familiares e para a estabilidade emocional da nossa gente em missões no estrangeiro. Durante as “guerras coloniais”, o Movimento Nacional Feminino criou a figura das “madrinhas de guerra”, que de alguma forma preenchiam parte deste papel – para além de mobilizarem a sociedade civil portuguesa para um esforço colectivo difícil. O Skype, o Facebook, e a Internet em geral permitem-nos hoje, se bem utilizados, ir muitíssimo mais longe nessas mesmas direcções. 24
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resto do dia estaremos sempre juntos. Não passa um momento em que não esteja bem juntinho da minha família. Mandei uma carta para o meu menino; para ele mais tarde a poder ler e saber o que pensei neste dia – essa, perdoem-me, não a partilho, é dele. Nós por cá vamos andando, sempre motivados.
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CARTAS DE CABUL – N.º 8
15 de Novembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Há precisamente quatro anos, em Novembro de 2005, encontrava-me no Paquistão, na missão NATO Disaster Relief, em apoio das vítimas do terramoto que tinha atingido centenas de milhares de pessoas na região da Caxemira junto à fronteira com o Afeganistão25. Na altura, costumava trocar e-mails com o meu bom amigo e camarada Luís Dores Moreira, que se encontrava no outro lado das montanhas do Hindu-kush, no comando de uma difícil missão de Quick Reaction Force (QRF) aqui, em Cabul, no Afeganistão. Quis o destino que fosse agora a minha vez de estar em Cabul. Dessa curta missão no Paquistão (a NATO só foi autorizada pelo governo paquistanês a permanecer por três meses) gostaria de recordar um episódio que se mantém de uma extraordinária actualidade para o que agora temos de fazer. A NATO, sob o comando do Joint Command Lisbon26, colocou nas montanhas de Caxemira quatro companhias de engenharia, dois hospitais de camNota do Autor: Fui co-autor de um artigo que relata esta missão no Jornal do Exército intitulado “NRF – Missão no Paquistão” n.º 551, 2006. 26 Nota do Autor: O Comando Operacional da NATO em Oeiras. A NATO tem três importantes Comandos Operacionais e o Joint Command Lisbon é um deles. 25
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panha, centros de purificação de água, um destacamento de helicópteros, um centro de reabastecimento de combustíveis para helicópteros, organizou uma ponte aérea, etc. A nossa prioridade era tratar os feridos, abrir as comunicações, facilitar a distribuição de ajuda humanitária e construir o maior número possível de abrigos para proteger uma pequena parte do meio milhão de desalojados. E foi esta última parte que foi alterada. Recebemos um pedido, directamente da presidência do Paquistão, para construir escolas. Na batalha contra os talibãs, estes tinham sido mais rápidos a prestar apoio às populações e tinham aberto inúmeras madrassas onde os milhares de órfãos encontravam abrigo e conforto. Eram precisas alternativas às madrassas, muitas delas são verdadeiros viveiros de fundamentalistas. E assim foi, no pouco tempo que nos restava, aumentámos a distribuição de tendas para abrigos e construímos escolas, nomeadamente para meninas27. Nota de Armando Marques Guedes: Preenchendo, deste modo, o espaço deixado vago por um Estado paquistanês incapaz de o fazer – e evitando, assim, que os islamistas ra27
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Percebi como era importante esta iniciativa – hoje sei que continua sendo fundamental! A guerra contra o fundamentalismo começa dentro do Islão no apoio ao ensino moderado e desde a mais tenra idade. Nos dias de hoje ainda há quem pense nos assuntos de guerra como exclusivos dos militares: nada mais errado, nunca o foi e, neste caso, os militares dicais o ocupem. Não se trata, aqui, apenas de cumprir um imperativo moral, o que já não seria pouco. Está também em causa um jogo político de soma zero, que, como os ataques em Nova Iorque, Londres, Madrid, Ancara ou Carachi demonstraram em abundância, inclui hoje em dia a defesa da nossa integridade “clássica”. O envio crescente de forças expedicionárias na ordem internacional pós-bipolar abrange muitíssimo mais do que aspectos militares; num sistema internacional em que nos tornamos cada vez mais interdependentes, há que tentar estancar a interdependência de conflitos que continua a esbater a distância e a nitidez da distinção, cada vez menos clara, entre o antes que vislumbrávamos como o “externo” e o “interno”. Mesmo que nos queiramos ater a uma perspectivação apenas jurídica, aos clássicos jus ad bellum e jus in bello, vem assim adicionar-se um jus post bellum ainda infelizmente incipiente; e, quantas vezes, ética e politicamente míope.
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têm apenas mais um papel, importante sem dúvida, mas apenas mais um. Para haver paz e estabilidade no Afeganistão, ou no Paquistão e, por consequência, para se evitar uma propagação da ameaça nos nossos países são necessárias muitas e diversas linhas de acção. A guerra não passa só pela protecção física das pessoas ou no ataque aos inimigos. A guerra faz-se contra a corrupção, faz-se pelo desenvolvimento económico, pelo estabelecimento de forças credíveis de segurança e defesa (a nossa missão), pelo apoio ao islamismo moderado, pela educação, pela saúde e pela capacidade de assumir compromissos de longa duração. Os fundamentalistas não são os desesperados analfabetos que nada têm para viver – os tais sem esperança. Os desesperados são a base do recrutamento mas nos fundamentalistas encontramos pessoas cultas, ricas, conhecedoras e que, muitas vezes, interpretam o Islão “à letra”. Não podemos ignorar esta dimensão. Não podemos assobiar para o lado e limitarmo-nos a chamar nomes e catalogar pessoas. E, infelizmente, nunca poderemos pensar que este é um problema distante das preocupações do nosso dia-a-dia. É um problema de todos e em todos os locais, incluindo na nossa Europa, no nosso Portugal. Também conhecemos bem a afirmação “está escrito, ponto!”. Quantas vezes é a expressão usada por quem não quer pensar ou, mais ainda, não quer assumir responsabilidades. A tomada de uma decisão consciente comporta muitos riscos e é tão fácil responder: “Está escrito, ponto!”. No fundo ouvimos esta frase sempre que alguém se recusa a explicar, ou porque não sabe, ou, na maior parte das vezes, não quer saber. “Está escrito, ponto!” Ocorre no nosso dia-a-dia, no nosso trabalho ou nas discussões sobre a religião. É a chamada resposta fácil, sem riscos nem responsabilidades. Por isso não nos podemos admirar que os denominados “fundamentalistas islâmicos” também usem o “está escrito, ponto!”. Mas neste último caso há muita escrita a apelar à guerra, como tal, não pode ser um assunto encarado de forma ligeira, é preocupante e irresponsável ignorar. Existem soluções, temos de as saber encontrar. Hoje assistimos a uma aula de religião dada pelo mullah. Fomos convidados, senti-me honrado, as centenas de soldados presentes estavam satisfeitos e curiosos com a nossa presença, éramos três e fizemo-nos acompanhar por dois intérpretes. Ouvi atentamente os ensinamentos, as mensagens simples, parecidas com as nossas. O mullah agradeceu a nossa presença; nós também.
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Temos de ter humildade para compreender outras culturas, outras religiões. O mais importante é ouvir, acompanhar, apoiar. Não estamos aqui para comparar ou impor religiões, culturas. Temos tanto a aprender. No final o mullah dizia, com um enorme e simpático sorriso: “Todas as religiões desejam o bem, não é?”. É tão simples ouvir e com muita humildade estar disposto a ajudar e, sem preconceitos, aprender. Poderá passar por aqui parte da solução, sinto verdadeiramente que sim. Na última semana, recebemos uma avaliação externa ao nosso trabalho. Eram dois oficiais americanos, um coronel e um tenente-coronel, com grande experiência. Ambos tinham feito comissões no Iraque e no Afeganistão e ambos tinham comandado ETT (Embeded Traning Teams – que são as equivalentes americanas das nossas OMLT Operational Mentor and Liaison Teams
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– as equipas que, tal como a nossa, vivem e trabalham com unidades afegãs/ iraquianas com o objectivo final de as tornar auto-suficientes e eficazes). Embora estejamos ainda no início da nossa missão foi muito bom ouvir e receber um e-mail com esplêndidas expressões de apreço28. Eles acompanharam-nos por três dias, falaram com todos os nossos “mentorados”, assistiram ao nosso trabalho. Tenho de ser verdadeiro, depois deste enorme esforço inicial por parte da nossa equipa é muito reconfortante ver o trabalho reconhecido. Não posso garantir que tudo correrá bem no futuro mas gostava de aproveitar o momento para dizer que pertenço a uma equipa de excelência, com um grande ambiente de trabalho e camaradagem, comandada por um grande militar. No fundo, é o desejo de todos os militares terem estas condições para poderem trabalhar. Tenho esperanças que assim vá continuar. Geralmente esperamos sempre pelo término das missões para tecer elogios ou duras críticas e não sabemos aproveitar os pequenos momentos de alegria e motivação. Estamos a viver um bom momento, muito exigente, num ambiente nada fácil e esperam-nos muitas dificuldades e desafios. Mas estamos bem e por isso apeteceu-me dizê-lo, não por simples vaidade, mas por sentido orgulho.
Nota do Autor: “You all are a fine example of what OMLT does and should be!! Thanks again for all that you did. As a former ETT, I was most impressed with all your team and there skills” – numa possível tradução: “São um excelente exemplo do que uma OMLT deve ser e fazer!! Muito obrigado por tudo o que têm feito. Como antiga ETT, fiquei muito bem impressionado com toda a vossa equipa e as capacidades demonstradas.” 28
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CARTAS DE CABUL – N.º 9
21 de Novembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Almoçámos na sala privada do brigadeiro general chefe de Estado-maior da Divisão. A refeição estava óptima, comigo estavam mais dois mentores e o comandante da Force Protection, embora desconfiados ao princípio, acabaram por se render à qualidade da alimentação. Borrego no forno e guisado, batatas fritas, arroz, alguns vegetais, maçãs e Fantas e Coca-colas para beber. Pratos não havia, em sua substituição cada um colocou a comida sobre uma grande fatia redonda de pão. O pão aqui é óptimo! Parece uma espécie de piza, em formato e tamanho, serve para acompanhar a refeição e também como prato. Como talheres tínhamos uma colher e um garfo. Quando o general nos viu um pouco atrapalhados com os pães a servirem de pratos, fez rapidamente uma distribuição dos que estavam a servir como travessas e em pouco tempo todos tínhamos o nosso prato. Eu não me importo de comer em cima do pão, gosto do “em Roma sê Romano”, mas tenho de admitir que não é fácil comer arroz em cima do pão. Claro, o meu inseparável intérprete, Wais, também participava e notava-se que se sentia orgulhoso pela comida e pelo cuidado que o seu compatriota nos oferecia.
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Foi um almoço feito à pressa, tínhamos saído do centro de operações29 onde o almoço que se preparavam para nos oferecer tinha de facto muito mau aspecto e o refeitório estava cheio, com uma grande fila de espera. O general não teve dúvidas: “Vamos para a nossa Divisão, para o meu gabinete e lá vos oferecerei almoço”. O trajecto ainda levou cerca de 30 minutos e como não estavam à nossa espera, demorou um pouco, mas foi óptimo. Estávamos todos muito bem-dispostos. Pouco tempo antes tinha terminado a fase mais crítica de uma operação que ajudáramos a planear e executar. Tratava-se de garantir a segurança na tomada de posse do Presidente do Afeganistão, Karzai. Mais de 800 convidados, vindos de muitos países, muitos deles bem conhecidos (por exemplo a Hillary Clinton30) tinham de chegar, assistir à cerimóNota do Autor: O Centro de Operações do Ministério da Defesa afegão fica no centro da cidade junto à denominada Green Zone. Foi a partir deste centro que as operações foram coordenadas para esta importante acção de segurança. 30 Nota de Armando Marques Guedes: Ao contrário do que tem acontecido com a maioria dos nossos aliados, dos cenários em que estão a actuar, as nossas Forças Armadas e as nos29
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nia e partir em segurança. Foi essa a missão do exército, polícia, serviços de segurança afegãos e das forças da ISAF. A nossa equipa esteve no meio deste planeamento, coordenação e execução. A operação começou com três dias de antecedência e tudo correu muito bem. Durante aquela manhã estive ao lado do general no centro de operações e, felizmente, tivemos pouco trabalho, o contrário indicaria muitos incidentes. Durante o almoço disse o brigadeiro-general: “Os europeus: italianos, portugueses, belgas, são diferentes […] estão cá com humildade, aprendem e ouvem-nos, e assim aprendemos muito, para nós é uma honra trabalhar com os europeus […] ao contrário dos […] que pensam que chegam aqui e […] fazem tudo como querem […]”. Não necessito de acrescentar outros pormenores, mas foi bom ter dito isto perante os restantes mentores. Já mo dissera várias vezes. Acredito que sejam palavras sinceras. Já o tinha comentado em cartas anteriores, mas é bom confirmar que estes feelings são correctos, afinal, tudo não passa de bom senso e educação. Se me perguntarem qual deve ser o perfil para um militar ser nomeado para estas importantes missões de assessoria, provavelmente resumiria a: bom senso, boa educação, vontade de trabalhar e espírito de equipa. O resto vem por acréscimo. A educação é fundamental. A nossa educação ensina-nos a respeitar e ser respeitado, a evitar a boçalidade bacoca, a fugir da má-língua fortuita. A educação dá-nos as ferramentas para sermos honestos e compreensivos, no fundo, dá-nos a possibilidade de manter a cabeça levantada. Por sermos educados também o são para connosco. Porque respeitamos, somos respeitados. Camaradagem. As palavras ganham novo sentido quando estamos em missões difíceis. E ganham um sentido mais universal. Tive o privilégio de, entre 2002 e 2007, estar cinco anos ao serviço da NATO, num ambiente multinacional por excelência, três anos no Corpo de Intervenção Rápida, em Valência, em Espanha e dois anos no Comando Conjunto de Lisboa, em Oeiras, em Portugal. Aprendi então que a nacionalidade a que pertencemos, os ramos das
sas Forças de Segurança têm estado largamente ausentes, por pura incúria, os nossos mais altos decisores políticos. Quando o fazem não têm recebido a cobertura mediática que nos restitui, enquanto cidadãos, contribuintes e seres humanos, um droit de regard e uma responsabilidade que nos cabe, e de que precisamos para de uma vez por todas começarmos a maturar e a acordar para um mundo que nos entra pelas vidas adentro.
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forças armadas ou armas combatentes31 significam muito pouco quando nos encontramos a trabalhar juntos. O que verdadeiramente conta são as pessoas. Há boas e menos boas em todas as nações, em todos os ramos, em todas as armas. Tenho amigos de verdade em várias nações, militares e civis. Sei que alguns deles ficaram para a vida. Por exemplo, as mensagens de apoio que vou recebendo aqui no Afeganistão demonstram bem esse carinho e amizade. Cada dia que aqui passamos, ficamos mais próximos dos militares com quem trabalhamos. Além dos militares afegãos lidamos diariamente com militares americanos (a maioria), búlgaros, espanhóis, turcos, ingleses, etc.32 Quando estamos no mesmo espaço a desempenhar a mesma missão, correndo os mesmos riscos, assumindo as mesmas responsabilidades, desenvolve-se um certo clima de cumplicidade, dependência e camaradagem. É difícil descrever por palavras, mas há um sentimento de união que a distância, a missão e o local levam a uma identificação comum, e por isso nos consideramos verdadeiros camaradas – “brothers in arms”. Sabemos, sem ninguém ter de o dizer, que, se for necessário, nos defenderemos juntos. A cada dia cresce essa confiança, cuidamos mais uns dos outros, preocupamo-nos, perguntamos mais pelas dificuldades que cada um está a passar. Da intimidade também surge alguma rivalidade, mas não é assim entre pessoas que trabalham juntas? Partilhamos espaço, tempo, comida, cafés (o sucesso da bica portuguesa!) falamos das nossas famílias, das ambições e projectos – camaradagem. E nunca deixamos um camarada para trás. Não é um código de uns, é de todos. Sentimos isso, não o dizemos, mas sabemo-lo. A magia da honra militar.
Nota do Autor: Ramos das Forças Armadas são o Exército, a Marinha e a Força Aérea e as armas combatentes são Infantaria, Cavalaria e Artilharia. 32 Nota de Armando Marques Guedes: Tenho (temos todos) ouvido leituras destas formuladas de maneira incessante. Por muito que custe a alguns aceitá-lo, ou até encará-lo, a participação de forças militares e policiais em operações militares internacionais gera, nos seus agentes, uma responsabilização, uma ownership, e um cosmopolitismo que se adequam melhor que os velhos modelos à ordem internacional emergente. 31
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25 de Novembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Das actividades que mais prazer me dão realizar são as denominadas actividades CIMIC – Civil-Militar. Estas actividades incluem reuniões com as autoridades locais, apoio na segurança local, projectos de desenvolvimento de infra-estruturas, apoio humanitário, etc. Ontem concluímos com sucesso a nossa primeira missão de Apoio Humanitário (uma nota: todas as fotos nesta carta são da operação). Tudo começou no gabinete do brigadeiro-general chefe do Departamento Religioso e Cultural. Logo no primeiro dia nos tinha dito que havia um gabinete de apoio às populações e outro de apoio às famílias dos militares. Sem nos comprometemos, lá lhe fomos dizendo que iríamos tentar ajudar em ambos. É muito importante nada prometer que não se possa cumprir. Prometemos tentar, nada mais. Nesse mesmo dia fomos pedir ajuda a vários organismos, dentro da própria ISAF, às Nações Unidas, aos americanos que nos apoiam, etc. Sentimos que poderiam haver apoios e voltámos uns dias depois ao gabinete do brigadeiro-general: “Pensamos poder ajudar, mas ainda não nos podemos comprometer, diga-nos por favor quem deseja apoiar?” Ele sorriu: “Tanta gente, tanta miséria, milhares de
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acampamentos, escolas degradadas, aldeias sem saneamento ou água, […] por onde querem começar?” Senti necessidade de lhe dar opções claras, tinha noção dos apoios que possivelmente poderíamos receber, mas não me queria comprometer sem ter a certeza. “Procuramos pequenas escolas, campos de refugiados, não podem ser muito grandes […]” Temos de começar por algum lado. “Voltem amanhã que vos dou localizações precisas de campos de refugiados e escolas.” No dia seguinte cumpriu: informações completas sobre cinco acampamentos de refugiados oriundos do Paquistão e do Irão. A informação incluía a localização exacta, o chefe de cada acampamento, as “péssimas” condições em que se encontravam, etc. Deu-nos também mais um campo fora de Cabul e mais tarde dar-nos-ia localizações de escolas mais necessitadas. Estas últimas poderiam esperar, pois encontram-se em férias escolares forçadas devido à gripe A. Entretanto já tínhamos recebido da ISAF uma pequena quantidade de mochilas, lanternas, lápis, não chegavam a sessenta, mas era o bastante para apoiar
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uma pequena escola da província de Cabul. Era bom mas não era o mais urgente, não tão urgente como estes refugiados desgraçados com frio, fome, etc. Voltámo-nos para os nossos americanos, digo nossos, porque são aqueles que nos apoiam na Divisão e de uma forma geral, à medida que vamos trabalhando mais com eles, sentimos um maior apoio. Não nos desiludiram: “Sim, podemos apoiar imediatamente”. (como gostava de utilizar esta palavra em Portugal! Imediatamente é um conceito impossível na burocracia lusitana…). “Até 300 famílias podemos dar um cabaz com cobertores e 5 kg de arroz, 5 kg de farinha de milho, 5 kg de trigo, 5 litros de feijão, 5 litros de óleo, chá, etc. e também poderemos disponibilizar algumas tendas. Também podemos apoiar projectos de longa duração, construir escolas, abrir poços, colocar pequenas pontes pedestres, etc., mas isso leva algum tempo a aprovar. Quanto ao apoio humanitário directo é só apresentarem o projecto (deram-nos as condições) e mandem-nos um e-mail que nós analisamos e prometemos não demorar muito a aprovar/recusar”.
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Pedi-lhe para repetir o que me acabara de dizer ao brigadeiro-general. Queria que o general afegão sentisse que estávamos empenhados e, ao mesmo tempo, não queria que ele pensasse que seriamos só nós a prestar este apoio. Correu muito bem, o tenente americano (tenente! Com autoridade para disponibilizar projectos de milhares de dólares… em Portugal nem um tenente-coronel…) explicou-lhe tudo o que me tinha dito, foi transparente e directo e acrescentou que o seu trabalho era apoiar a nossa equipa e tudo o que fosse proposto seria analisado e disponibilizado através dos portugueses33. Seguiu-se o complicadíssimo processo de aprovação de um projecto desta envergadura: seriam 310 famílias, nós pedíramos os tais cabazes para cada família e se ainda fosse possível algumas tendas… Levou imenso tempo. DeNota de Armando Marques Guedes: A pontaria das críticas aqui implícitas é louvável. Que melhores ficaremos quando deixarmos para trás lastros hierárquicos e corporativos descabidos e cada vez mais perigosos. 33
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pois de mandar o e-mail, um simples e curto e-mail… uma hora depois estava aprovado! Tal qual como em Portugal, não é? Seguiram-se as perguntas, quando quer levantar? Quem o vai fazer? Quando vai distribuir? Por favor depois mande-nos umas fotos do evento para anunciarmos o apoio. Simples. Da nossa parte tínhamos posto uma condição que os americanos não só aceitaram como apoiaram na totalidade: Quem apareceria a fazer a distribuição seriam os militares afegãos – mais ninguém. Seria o brigadeiro-general e os mullah com mais uns soldados – de afegão para afegão. Estávamos todos de acordo. Para cobrir o evento disponibilizou-se o meu inseparável intérprete, Wais, que se manteria em contacto permanente comigo e também faria as fotos. No dia 22 de Novembro o brigadeiro-general foi com os coronéis distribuir as 310 senhas às famílias mais necessitadas, e para isso contou com os denominados “chefes” dos cinco acampamentos. As senhas são fundamentais
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para evitar o “caos” no momento da distribuição. E no dia 23 lá fomos até à base americana, Camp Phoenix, carregar o material. Comigo, além do nosso comandante, vieram mais mentores, a Force Protection (nesse dia eram fuzileiros) e dois coronéis, um major (todos eles mullah) e 12 soldados da Divisão. Fiquei a saber que no departamento religioso existem mais mullah e todos são de uma simpatia imensa. Fazem mesmo muita questão de ajudar os necessitados. A temperatura tem estado a baixar muito, não passa dos dois graus e chove bastante, por isso não foi fácil preparar o material a chuver! Se a farinha apanhasse chuva… mas tivemos sorte, a farinha ficou seca. Demorámos mais de quatro horas a fazer os ditos cabazes, quero dizer, “trouxas”: um cobertor no chão onde colocávamos os produtos e depois dávamos uns nós no cobertor (pesavam cerca de 35 kg cada um) e carregávamo-los nas viaturas. Conseguimos também 15 tendas, menos mal, sempre dava para 15 famílias. Enquanto fazíamos as trouxas, montámos uma linha, e íamos contando a 20 de cada vez, aprendi a contar numa série de línguas, os
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soldados metiam-se comigo e quando já contava bem em dahri, começaram a contar em phastun, quando finalmente estava a atinar em phastun começaram em uzbeque!34 Brincadeiras simples, mas com muito boa disposição e verdadeira alegria. Via-se que esta era uma tarefa que todos gostavam de fazer. O mullah mais velho dava o exemplo, mas ao fim de 140 trouxas confessou-me: “Estou cansado.” Aconselhei-o a sair da linha mas continuou a distribuir material e a ajudar. A meio, vieram os nossos fuzileiros e os outros mentores e ajudaram muito… A minha farda estava branca de farinha e os braços ainda me doem.
Nota de Armando Marques Guedes: É de facto extraordinariamente complexo o mosaico sociocultural e etnolinguístico da Ásia Central. Os pashtun são o maior dos agrupamentos “tribais” do Sul do Afeganistão, com uma ampla presença para além fronteiras, no vizinho Paquistão. E são tidos como porventura a principal base de recrutamento e apoio das milícias talibãs. 34
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Ontem foi o dia da distribuição. Conforme combinado nós não iríamos aparecer. Ajuda afegã ao povo afegão. Mas não foi fácil. O meu intérprete foi o primeiro a chegar e, além de tirar estas fotos impressionantes, descobriu que o “chefe” de um dos cinco campos tinha ficado com a maioria das senhas e não as tinha distribuído. O transporte desde a Divisão também começou mal, porque uma viatura avariou e foi necessário passar a carga para outra. À chegada dos militares o coronel (mullah) corrigiu de imediato a questão das senhas não distribuídas. Começou-se a distribuição e, basta ver as fotos! Todas as 310 famílias que deveriam receber as “trouxas”, de facto receberam-nas, e assim, pelo menos
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nos próximos dias (as trouxas foram planeadas para alimentarem uma família durante pelo menos um mês), terão um pouco mais de calor e comida. Já estamos a preparar mais uma operação, desta vez será na escola que falei no início, temos as mochilas preparadas com o material escolar e, porque não, uns chocolatinhos. É mais uma gota de água neste oceano de miséria, mas grão a grão… e no fundo é um dois em um – beneficiamos pessoas, crianças, famílias, e ajudamos os militares afegãos a progredir, a organizar operações, a ficarem com melhor reputação, e, se notarem nas fotos, a aumentarem o seu orgulho por serem militares. Eu também estou mais orgulhoso. Passo a passo lá vamos andando, e sempre motivados.
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29 de Novembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Hoje é o último dia do Eid ul-Adha (em inglês aparece escrito Eid al-Adha). Também é conhecido como o dia da Celebração (ou Festa ou Festival) do Sacrifício. Acontece no décimo dia do último mês do calendário islâmico (Dhu al-Hijjah). É celebrado pelos muçulmanos e recorda a acção do profeta Ibrahim (Abraão) no sacrifício do seu filho Ismail (Isaac). Descrevo a versão do Islão que é naturalmente parecida com a cristã. Deus conversou com Ibrahim durante um sonho, disse-lhe que teria de sacrificar o que tinha de mais precioso e amado: o seu filho, Ismail. Ibrahim contou ao filho a vontade de Deus e este concordou com o sacrifício. Ambos partiram para Mina, cidade perto de Meca, onde Ismail iria ser sacrificado. Pelo caminho, Ibrahim foi tentado pelo demónio, que lhe disse para desobedecer a Deus. Mas Ibrahim ignorou a tentação, colocou uma venda nos seus olhos e cortou a garganta ao sacrificado. Quando Ibrahim retirou a venda, reparou que Deus tinha colocado ao lado do seu filho um carneiro, e que foi a este que Ibrahim cortou a garganta deixando assim viver o seu filho. Assim, até aos dias de hoje, os muçulmanos que tenham posses devem sacrificar carneiros como forma de lembrar o acontecimento. A carne que resul-
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ta destes sacrifícios é distribuída por familiares, vizinhos e pobres. Se não se tiver carne disponível podem ser distribuídos outros donativos. Faz parte da celebração visitar amigos e familiares. A celebração dura até quatro dias e a deste ano começou na quinta-feira passada, no dia do Arafah (véspera do Eid ul-Adha) e coincidiu, neste ano de 2009, com o tradicional dia de Acção de Graças americano, que também vou sucintamente explicar: Na última quinta-feira de Novembro de cada ano celebra-se a Acção de Graças ou Thanksgiving que é talvez, especialmente para americanos e canadianos, uma das celebrações mais importantes do ano. Esta celebração de Acção de Graças começou há muito tempo quando as pessoas se reuniam para comemorar o final das colheitas, mas adquiriu muito maior relevância quando, em 1620, os peregrinos que viajaram a bordo do Mayflower chegaram à América oriundos da Europa em busca de liberdade religiosa. A pouca comida e o Inverno rigoroso acabaram por levar à morte quase metade dos peregrinos. Foi então que, com a ajuda dos índios da tribo Wampanoag, aprenderam a caçar, a pescar e a cultivar plantas nativas. Quando obtiveram a primeira boa colheita, o governador achou por bem celebrar o dia na companhia dos índios. Assim se celebrou o primeiro Thanksgiving Day, que passou a ser considerado como celebração oficial por George Washington a partir do ano de 1789. Neste dia, juntam-se as famílias e os amigos e agradece-se. Provavelmente muitos rezam, outros encontram-se e, para alguns, é apenas o início da temporada das compras para o Natal (Black Friday). Vem esta reflexão a propósito de que, na passada quinta-feira e por coincidência de calendário, estiveram muçulmanos e cristãos, em todo o mundo, a rezar, a agradecer, a partilhar com famílias e amigos, a dar aos necessitados. Milhões de pessoas em todo o mundo, todos a pedirem praticamente o mesmo. Na quinta-feira os muçulmanos recordaram o Arafah que é um monte, conhecido por Monte da Misericórdia, e nessa celebração juntaram-se milhões de crentes de todas as raças e condições numa acção que representa a igualdade universal e a união da humanidade35. Neste mesmo dia juntaram-se também
Nota do Autor: “Arafah is a hill called ‘Mount of Mercy’ and its surrounding empty plain near Mecca. On this climax of the Hajj season millions of pilgrims of all races and backgrounds, including thousands of Americans, will assemble for supplication to God. This is a physical representation of universal equality and the unity of humankind. […] As 35
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milhões de cristãos em todo o mundo, nos seus momentos de recolhimento, e se não pediram exactamente o mesmo, terão ao menos dado algum dos seu tempo a pensar nos outros, nas famílias, na humanidade. Um grande amigo de longa data, que esteve em Cabul em serviço três semanas antes dizia-me, uma vez mais – já mo diz desde que fomos cadetes – que o meu maior problema era ser ingénuo, acreditar demasiado na boa fé das pessoas. E dou-lhe sempre a mesma resposta desde essa altura: melhor assim e poder dizer sempre o que penso e o que faço. Sei que ele tem alguma razão, mas ainda não descobri porque haveria de mudar; são riscos assumidos, e neste preciso momento, em mais um que pode ser de profunda ingenuidade, acredito que estas coincidências, onde cristãos e muçulmanos no mesmo dia fazem as suas orações um pouco por todo o mundo, devem trazer força e esperança. Têm de trazer! Hoje fui, pela segunda vez desde que aqui me encontro, à missa multinacional, e acendeu-se a primeira vela pelo primeiro domingo do Advento. O capelão lembrava que deveríamos ter esperança neste período e que Ele nos ouviria. Falou da esperança, falou de sermos ouvidos. Deus deve ter ouvido milhões de muçulmanos e cristãos a pedir o mesmo no mesmo dia. E acredito que aqui, neste lugar que parece esquecido por Deus, também foram ouvidas as palavras, a palavra, a esperança. Já passaram dois meses desde que deixámos Portugal e as nossas famílias. Estes dias de Eid possibilitaram-nos os primeiros dois dias seguidos de descanso. Nós descansamos apenas um dia por semana e, porque trabalhamos com afegãos, calha no mesmo dia dos muçulmanos, à sexta-feira. Mas como em Portugal é dia de trabalho, nunca conseguimos ter verdadeiramente um dia de descanso, há sempre telefonemas, relatórios, briefings, videoconferências, etc. Na verdade, desde que aqui chegámos, posso afirmar que nunca parei, nunca parámos, só nestes dias. Foi muito bom. Finalmente distraí-me do dia-a-dia, arrumei as coisas que aguardavam arrumar, passei algum tempo de barriga para o ar a descansar, depois fui fazer umas comprinhas nas pequeninas lojecas que existem dentro da base e juntámo-nos nuns petiscos bem portugueses, com a presença da nossa força aérea, with Thanksgiving, Eid al-Adha is a time when everyone counts their blessings and offers thanks for friends and family, even if circumstances may not be the best in any particular year.” (Washington, 24 de Novembro/PRNewswire-USNewswire).
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com militares dos três ramos que prestam serviço no hospital multinacional, com os civis portugueses que por aqui trabalham no aeroporto de Cabul. Foi mesmo bom. Nestes dias tivemos mais tempo para falar com a família e amigos, para pensar na família, para meditar. E também mais tempo para falar entre nós, conversar, partilhar. Inclusive fomos jogar uma partidinha de futebol. Eu não tenho jeito nenhum para futebol e, claro, a meio do jogo mandei uma pantufada na bola, passou para lá da vedação e… foi-se. Como não tínhamos outra bola adiámos para outro dia a partidinha. Arranjei assim forma de ninguém se esquecer da minha performance em campo… Foi o primeiro fim-de-semana que tivemos e, embora sempre fardados e dentro da base, foi bom poder parar um pouco. Agora vou engraxar as botas porque amanhã há muito por fazer. Mais recuperados, seguimos sempre motivados.
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4 de Dezembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Estar no local quando se faz história pode não fazer grande diferença mas dá-nos outro olhar, outra forma de sentir, mais envolvimento no que se faz. No dia 2 de Dezembro de 2009 acordei antes das seis da manhã a ouvir na CNN o anúncio do Presidente Barack Obama sobre o Afeganistão36. Passadas
Nota de Armando Marques Guedes: A data é histórica, no que ao conflito no Afeganistão diz respeito. Em resposta a um pedido do general McChrystal, o Presidente Barack Obama anunciou a 2 de Dezembro de 2009 o deployment (envio) rápido de mais 30 000 militares norte-americanos para o palco afegão. Uma acção que anteciparia, ao que afirmou, o princípio do regresso a casa do contingente a partir de meados de 2011. Num discurso proferido in loco, que foi recebido em Washington com um misto de entusiasmo e preocupação por todos os quadrantes políticos domésticos, uma decisão de fundo foi anunciada. Com efeito, no contexto de uma descrição do extremismo islamista como “no idle danger, no hypothetical threat”, Barack Obama delineou o que acabaria por redundar numa surge rapidamente executada de um ponto de vista operacional. Fê-lo de forma diferente e mais complexa daquela outra surge antes ensaiada no Iraque: projectando de uma vez dezenas de milhares de tropas de combate para frentes bem escolhidas, ao mesmo tempo que prometia “um início de saída do Afeganistão” para dezoito meses depois. O Presidente Obama, menos polemicamente,
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duas horas estava no Centro de Operações a ouvir o general McChrystal a explicar como se iria aplicar a nova estratégia americana e aliada. Na mesma sala também estava o brigadeiro-general chefe de Estado-maior da Divisão a quem presto “mentoria”. Outras duas horas depois encontrávamo-nos no seu gabinete a discutir o que fazer na Divisão face a este anúncio. Política – Estratégia – Operações e execução. Assim se faz o processo de decisão militar. Desta vez não é doutrina, é real, muito real, e obriga-nos a pensar na enorme responsabilidade do nosso trabalho. A mensagem mais importante foi sem dúvida: “Reforçar as capacidades afegãs de modo a transferir a responsabilidade da segurança para o exército e polícia afegãos”. É a essência da nossa missão. asseverou ainda que “I make this decision because I am convinced that our security is at stake in Afghanistan and Pakistan […] This is the epicenter of the violent extremism practiced by al-Qaida. It is from here that we were attacked on 9/11, and it is from here that new attacks are being plotted as I speak”. Como é sabido, o Partido Republicano reagiu a esta tomada de posição, argumentando que a marcação de uma data de saída prejudicava as tropas no terreno por levar o inimigo a tentar utilizar o tempo a seu favor.
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Durante a apresentação no Centro de Operações em Cabul37, o general McChrystal utilizou um exemplo sobre o empenhamento das forças aliadas com as forças de segurança e defesa afegãs que dá sentido ao que escrevi na última carta: Num remoto posto de combate perto da fronteira com o Paquistão um pelotão americano comemorou o dia de Acção de Graças em conjunto com os polícias que ali prestavam serviço. No fundo tudo se resume a esta simples imagem, lado a lado, no melhor e no pior para que um dia os afegãos possam assumir por si só as suas responsabilidades. No final desse dia, estive colado à televisão a ver a transmissão em directo das seis horas de inquirição por parte da comissão de defesa do congresso americano aos Secretários de Estado, de Defesa e ao CEMGFA dos EUA, Clinton, Gates e Mullen38. Destaco o papel de sincronia entre negócios estrangeiros e Nota do Autor: Faz parte do quartel-general da ISAF. Fica na denominada Green Zone no centro da cidade de Cabul. 38 Nota do Autor: As referências correctas são: Secretary of State Hillary Rodham Clinton; Secretary of Defense Robert Gates e Chairman of the Joint Chiefs of Staff Admiral Mike Mullen. 37
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defesa – não houve contradições entre os dois ministros, ambos se complementaram e defenderam o trabalho de cada um no objectivo comum39. Foi para mim tocante ver as respostas directas, bem preparadas do CEMGFA, “Senhor almirante Mullen – com este aumento de tropas aumentarão as baixas americanas?” “ Provavelmente sim.” É cedo para fazer análises sobre se esta estratégia vai resultar ou não mas sensibilizou-me muito ver durante seis horas os três responsáveis máximos dos EUA sobre defesa e política externa a responder claramente e com muita coordenação às exigentes perguntas dos congressistas. Foi também relevante para quem está no terreno ouvir o presidente americano a anunciar a sua estratégia e apenas duas horas depois estar a receber indicações no local como se deveriam aplicar e desenvolver. Sem perdas de tempo, directos ao assunto e para nós, mãos à obra que há muito para fazer. Ontem fizemos a nossa segunda operação humanitária. Foi numa escola em Cabul, dentro de um bairro degradado. Digo escola porque tem professores e alunos. Mas não tem mais nada. Não tem janelas, portas, paredes, electricidade, água. A casa de banho é um buraco no edifício (da qual não vou divulgar imagens…). Chove lá dentro, entra ar vindo de todos os lados, e só há bancos para as turmas dos mais velhos, os mais novos sentam-se no chão, na terra, em cima de uns improvisados panos. Como não há paredes, ou as que resistem estão completamente destruídas, colocaram lençóis a fazer de paredes. À volta da escola há lixo por todo o lado, muita lama e um bairro muito degradado. Quem tem dinheiro não manda para ali os filhos, quem tem dinheiro não dá ali aulas. São professores pobres a dar aulas a alunos pobres. Mas dizem-me que esta escola não é das piores, há algumas em que o chão é a própria lama e o tecto são panos de tenda… Já tinha visto em África escolas miseráveis e tenho visto o monumental esforço do nosso bom frei Teixeira nas escolinhas do mato no norte de Moçambique40. Mas aqui junta-se o factor frio! Muito frio! Tínhamos pouco para dar, mochilas para 60 alunos e dentro de cada uma, blocos de notas, canetas de várias cores, lápis, borrachas, uma lanterna que não necessita de pilhas (de longe o item mais apreciado – na maioria das casas 39 40
Nota de Armando Marques Guedes: Sem comentários. Nota do Autor: Ver mais sobre este tema no site: http://www.afim.com.pt/.
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não há luz), umas garrafas de água e chocolates. Tão pouco e a eles pareceu-lhes tanto… Desta vez o brigadeiro-general insistiu para que estivéssemos presentes na distribuição. Nós queremos manter o “afegão para afegão” mas ele insistia, “Está bem, mas aliados a apoiar afegão para afegão.” Fomos recebidos de braços abertos. Foram os afegãos que transportaram as mochilas, que as distribuíram e, com muita insistência do general e do mullah, acabei por fazer a entrega de uma. Nesta escola não há um edifício escolar, há uma ruína. Não há condições mas há disciplina, respeito, dedicação. Todos os alunos se encontravam no seu lugar a ouvir o seu professor(a) a escrever as suas notas, atentos. As crianças são crianças em qualquer lugar do mundo e como nós viemos destabilizar a rotina em breve todas se metiam connosco, riam-se, diziam em inglês Good Morning! Hello! Sempre com grandes sorrisos, todos a pedirem para tirar fotografias. Numa escola que pouco ou nada tem para oferecer pareciam estar
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felizes, aplicados, interessados. Só pareciam ricos num aspecto, tinham bons e dedicados professores. O general fez uma pequena alocução na sala dos professores. Disse que o Exército afegão se preocupava não só com a segurança mas também com futuro do Afeganistão, com crianças que eram o futuro. Falou bem, os professores agradeceram e depois olharam para mim. Eu disse que a arma mais poderosa que existia no Afeganistão eram os professores, reiterei que o futuro e a segurança estavam na educação das crianças. E acrescentei que tinha uma enorme admiração por um grupo de professores que dá aulas sem quaisquer condições, que era sem dúvida um acto de coragem. Na resposta, além do agradecimento sincero do director ouvi esta espantosa frase: “O Senhor fique descansado que aqui, esteja o clima que estiver, nunca deixámos de dar todas as aulas.” Foi pouco o que levámos para esta escola mas não vamos desistir. Sem nada prometer vamos ver se é possível arranjar algo de mais definitivo. Faremos o
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trabalho de casa, agora que visitámos a escola poderemos submeter um projecto, nem que seja para arranjar plásticos para tapar as janelas, mas vamos tentar fazer algo mais. Esta não é a nossa missão principal, temos o nosso tempo muito ocupado com as restantes operações, mas enquanto pudermos, iremos dar atenção nesta área tão fundamental para esta pobre nação41. No final do dia disse-me o general no seu gabinete: “Vamos fazer muitas coisas juntos, os portugueses cumprem, estou profundamente agradecido.” Não, nós é que estamos profundamente agradecidos, com tão pouco recebemos tanto. É claro que continuamos motivados.
Nota de Armando Marques Guedes: Talvez esteja aqui a mensagem mais importante destas cartas – a centralidade do state-building, para lá das acções militares propriamente ditas. Um ponto a que irei regressar. 41
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9 de Dezembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Mais um momento de conversa com o Wais, o fiel intérprete. Tínhamos ficado apenas os dois na sala dos mentores durante a hora de almoço, aguardávamos a visita do comandante das Forças Armadas afegãs à Divisão e lá fora o frio era intenso. Nem demos conta, tal foi o interesse da conversa, que tinha caído um nevão, mas devido ao sol que aquecia o chão a neve não pegou. Ele perguntou-me sobre a minha família, os costumes das mulheres portuguesas, o sentido de família, etc. Respondi a tudo, gosto de partilhar e recordar, é sempre bom. Depois perguntei-lhe como estava a mulher, que sei estar grávida de quatro meses, e aí, entre perguntas, comentários, comparações, respostas muito francas e sinceras, aprendi um pouco mais da cultura afegã. Uma breve síntese sobre uma típica família de classe média afegã, nas palavras do Wais. (Uma nota: pedi-lhe permissão para contar esta conversa aos meus amigos e família.)42 Nota do Autor: Continuo através de correio electrónico a manter um contacto regular com o Wais. Actualmente ele já não está como intérprete e é oficial dos Serviços de Segurança do Afeganistão. Nesta sua nova função foram importantes as referências positivas que fizemos do seu trabalho (carta de recomendação e louvor) e não temos dúvidas de que ele está à altura das importantes responsabilidades assumidas. 42
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“Ao contrário do habitual conheci a minha mulher antes do casamento, era uma das minhas alunas na universidade, nunca falei com ela mas ‘engracei’; contei à minha mãe. A minha mãe prometeu nada dizer ao meu pai e aos meus tios e lá recomendou iniciar a procura de uma mulher para mim nessa família […] se o meu tio imaginasse que eu já a tinha conhecido antes nunca se estabeleceria o contacto […] ele é muito conservador… e é a tradição, praticamente todos assim o fazem. A família dela visitou a minha e apareceu de surpresa no meu emprego, fez todo o tipo de perguntas aos meus patrões, aos meus colegas, como eu era, se era compreensivo, quanto dinheiro ganhava, se era honesto, trabalhador, etc. Na visita para combinar o casamento em minha casa falei com ela apenas dois minutos e na presença da família, pouco tempo depois casámo-nos. Uma semana depois do casamento a família dela foi a nossa casa e deu-nos praticamente tudo que necessitávamos, pratos, roupas, electrodomésticos, televisão, etc., a família dela é de classe média/alta, os pais têm formação superior e os irmãos também.
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Toda a minha família vive no mesmo edifício, os meus irmãos, os meus pais. Todos os meses dou ao meu pai cem euros para alimentação e gastos colectivos; a minha mulher não limpa só a nossa casa, limpa também a dos meus pais porque a minha mãe já não o consegue fazer; ela trata de tudo, eu transporto coisas pesadas, faço reparações e trago as compras, ela vai com a minha mãe e as minhas tias fazer as compras de roupas, nunca vai sozinha, nunca sai de casa sem me pedir permissão, de vez em quando pede-me para passar uns dias em casa dos pais e eu deixo sempre; para ir dar aulas (é professora de inglês) há uma carrinha da escola para a levar e trazer. Não compreendo o esquema ocidental dos pais viverem longe dos filhos, nós cuidamos dos nossos pais e avós até ao dia em que partem, aqui não há lares, aqui só nos separamos dos restantes irmãos se houver graves problemas de personalidade; praticamente não há divórcios e se aparecem problemas no casal ela vai para a casa da família e, leve o tempo que levar, as famílias tentam resolver os problemas e quase sempre voltam a estar juntos ao fim de um determinado tempo. Sim, amo a minha mulher, ela respeita-me, trata de tudo, dedica-se à minha família como eu me dedico à dela; à noite falamos muito e vemos filmes, temos TV Cabo e DVD, não vamos ao cinema, são sítios degradados em Cabul, há muito barulho e não se respeita as nossas mulheres.” Houve mais alguns pormenores, eu também contei tudo o que ele queria saber, somos de gerações diferentes, ele tem apenas 26 anos e o entusiasmo de um jovem recém-casado. Cultura muito diferente mas objectivos comuns: “O que quero da vida? Ser feliz, para já considero-me feliz, estar junto dela, ver crescer os meus filhos, se calhar emigrar, estudar e aprender, gostava de andar de avião ou de helicóptero…” Claro que este é um relato de uma família de classe média/alta, não será assim em todo o Afeganistão e em todas as famílias, basta ler as terríveis histórias das esposas imoladas… não queria estragar o relato mas também não seria honesto da minha parte se não recordasse este outro lado da moeda43. Nota de Armando Marques Guedes: O autor aqui mostra não pecar por uma versão idílica do Afeganistão e dos afegãos enquanto entidade política. Fá-lo, porém, manifestando uma clara preferência (patente ainda que implícita) relativamente ao valor da educação e da tolerância – atributos que parece considerar mais comuns naquilo que apelida da “classe média/ alta” do país. Discordar desta leitura é simples, descontando-a como, por exemplo, idealista e messiânica. Uma tal atitude falharia porém o alvo, visto o que está verdadeiramente em causa no ângulo de entrada assumido parece-me ser um esforço incessante – e altamente meritório – 43
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Os momentos solenes tornam-se especiais quando estamos longe de casa. Com toda a dignidade possível fizemos a promoção de quatro sargentos enfermeiros portugueses que prestam serviço no Hospital Internacional. Foi uma cerimónia simples, formatura geral como nas nossas unidades em Portugal, muito digna e bem sentida. No final houve a tradicional petiscada lusa com militares de outros países presentes. É curioso como se espalha a fama das nossas farinheiras, alheiras, paios, morcelas, etc. O destacamento médico português é composto por 16 elementos de entre médicos, enfermeiros, socorristas, técnico de laboratório e fisioterapeuta (homens e mulheres) dos três ramos das Forças Armadas e é o segundo maior contingente a prestar serviço neste hospital “Role 2E” (em terminologia militar e de uma forma muito simplificada, Role 2E significa que tem todas as capacidades para a primeira intervenção a um ferido ou doente, desde a sala de emergência até aos blocos operatórios e internamento). Já cá estávamos quando chegou esta equipa. Vieram naturalmente apreensivos, muitos desconheciam o que iriam de facto fazer. Mas bastou pouco tempo para vermos um grupo altamente motivado. Aqui não há rotina e a actividade no hospital, infelizmente, não pára. Têm de fazer de tudo, estar sempre disponíveis e com o que há, rapidamente e bem, salvar vidas a forças aliadas e afegãs. Os feridos podem aparecer de tantas maneiras, até um bebé embrulhado em jornais. (Uma nota: o bebé ficou bem, acabou por sobreviver nas mãos competentes dos nossos médicos e enfermeiros.) São excelentes profissionais, são gente da nossa terra! Juntaram-se à celebração duas das crianças internadas no hospital, uma delas, amputada, vítima desta guerra brutal que é cega na destruição que causa. O carinho dos portugueses é evidente, as crianças agarram-se ao nosso pessoal médico, falam uma série de palavras em português e parecem felizes, ainda que tenham a vida definitivamente comprometida. Esse é o nó na garganta, quando saírem como será? Com deficiências, sabe-se lá em que condições irão viver, olhamos para aqueles sorrisos, o olhar vivo e esperto, e sentimos esta pancada no estômago. Mas uma coisa é certa, entre aqueles dedicados portugueses continuarão a receber todo o carinho e apoio necessário. O nosso pessoal médico tem todo o direito de se sentir orgulhoso e motivado com o seu trabalho. Eu tenho imenso de fazer inflectir algo que já lá está em direcções construtivas consentâneas com os objectivos do interveniente, evitando, assim, o radicalismo essencialista de criações inteiramente ex novo.
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orgulho neles. Podem-se orgulhar também aí em casa porque “em perigos e guerras esforçados” levantam bem alto o nome de Portugal. Mais uma aula de religião. Desta vez o tema era sobre as relações conjugais. Não vou, naturalmente, relatar. Mas foi ao pormenor, nenhum assunto ficou por clarificar, todas as dúvidas foram esclarecidas ao detalhe. O Islão tem praticamente tudo pensado para cada momento da vida. É um código de conduta, é um livro de etiqueta, são regras para tudo, para cada momento da vida, para o dia-a-dia. Claro que podemos discordar de muitas das regras mas o que se torna relevante é que assim, através dos mullah, todos aprendem uma forma de fazer as coisas. Do acordar ao deitar, o que comer, quando limpar e como fazer a higiene pessoal, maneiras e hábitos sociais, praticamente está tudo previsto na religião muçulmana. E pelo menos há este caminho, que aparentemente todos conhe-
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cem, depois se o seguem ou não, isso será outro tema. Uma coisa é certa, há muitas regras que são seguidas e que evitam muitos problemas de saúde, de higiene, de alimentação, etc. Concordemos ou não, há pelo menos esta forma de informação e como cada vez mais a educação geral e obrigatória se vai disseminando, os jovens afegãos disporão de outras informações, mas para quem mais nada sabe pelo menos dispõe deste conjunto de regras. Na realidade, o analfabetismo e a ignorância ainda abundam por estas terras. Já aqui referi o extremismo e como pode ser explorado no abuso desta condição, mas também não seria justo deixar de reconhecer que o islamismo moderado é a única forma que muitos têm para aprenderem a viver e a conviver em sociedade.
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Daquilo que ouvi naquela aula fiquei com a convicção de que há muitos jovens no nosso país que nunca aprenderam nada parecido com o que ali foi explicado, e, quer se concorde ou não, a informação existe e é verdadeiramente partilhada. Ligeiramente mais sabedores, continuamos motivados.
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14 de Dezembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Uns dias antes de começarmos o nosso trabalho na Divisão de Cabul, o comandante da mesma faleceu, vítima de um ataque cardíaco. Assumiu funções interinas o segundo comandante e, passados mais de dois meses, ainda não se encontra nomeado um novo comandante. Pode parecer estranho tanto tempo para fazer uma nomeação, mas, para estas importantes funções (entre outras é o primeiro responsável pela segurança da capital do Afeganistão), é um processo muito complexo. Não basta pensar na melhor pessoa para o cargo, aqui revestem-se de extrema importância a etnia, as ligações com as diversas autoridades e o passado nas recentes guerras. Não é fácil. Vou, em síntese, tentar explicar um pouquinho melhor porquê. Devido à sua posição geográfica o Afeganistão sempre foi um “melting pot” de culturas, migrações e povos. Parte ou todo do território que hoje constitui o país já integrou outras nações, do século VI ao IV a. C. fez parte do Império Persa e no ano de 329 a. C. foi conquistado por Alexandre, o Grande, da Macedónia. Depois de Alexandre houve um fraccionamento e um desses territórios, o reino independente de Bactriana (250 a 125 a. C.), deixou marcas
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culturais significativas pelo cruzamento entre as civilizações helénicas e indianas com o budismo. Entre os séculos II e I a. C. foram muitas as invasões de tribos nómadas indo-europeias, nomeadamente citas ou partos, que acabaram por substituir esta civilização. Até ao século VI d. C. perdurou o império dos Kushana, oriundos da China, trazendo o budismo como religião oficial. Este império serviu como elo de ligação entre o império Romano, a China e a Índia. O final do século VII marca o fim de uma era e caracteriza-se por variadas guerras e invasões. Os árabes conquistam a região (Herat em 651) e a partir do século VIII a região passará a ser designada como Khorassan (País de Leste). Com o passar do tempo muitas populações locais converteram-se ao Islão, mas mantiveram as suas línguas iranianas. Depois de um período de domínio turco (Império Ghaznavid 962-1151), seguiu-se um curto período de domínio Tajique (Império Ghorid 1151-1219). Os mongóis (Gengis Khan seguido mais tarde por Tamerlão) invadem e ocupam o território a partir do século XIII. O Uzbeque Babur (descendente mongol) estabeleceu um império com a capital em Cabul por volta de 1504, expandindo-se para o sul da Ásia em 1525 e impondo a sua governação em muito do que é hoje o Paquistão e norte da Índia por volta de 1527. Vai ser Portugal, indirectamente, com a descoberta do caminho marítimo para a Índia e, consequentemente, retirando importância à rota da seda, que vai alterar o equilíbrio de poderes na região permitindo assim que os pashtun assumam maior importância. No século XVIII, o Afeganistão foi invadido pelos persas e posteriormente conquistou a sua independência com Ahmed Xá44, em 1747. Foi fundamentalmente o receio de uma invasão russa que precipitou o Império Britânico sobre o Afeganistão em meados do século XIX. Os ingleses sofreram imenso, as perdas foram elevadíssimas e não conseguiram a ocupação. Anos mais tarde e pelos mesmos motivos, a pressão russa, voltaram ao Afeganistão e de novo sofreram pesadas baixas. Saíram do território mas conseguiram ainda assim um aliado em Cabul45. Nota do Autor: Os pashtun vieram juntos a Kandahar em 1747 e escolheram Ahmad Shah, que mudou o seu último nome para Durrani (que significa “pérola das pérolas” em persa), para ser o rei. 45 Nota de Armando Marques Guedes: Uma linha estratégica que o Império Britânico tentou sempre seguir como menor denominador comum – e que, no limite, foi do que mais viabilizou a criação de um Commonwealth que ainda está longe de ter desaparecido como 44
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No final da Primeira Guerra Mundial (o Afeganistão manteve-se neutral tanto na Primeira como na Segunda Guerra Mundial), em 1919, deu-se a terceira guerra com os britânicos, e no final ficou confirmada a autonomia do Afeganistão, seguindo-se um período prolongado de estabilidade. Durante a guerra fria, a aproximação foi maior à União Soviética do que aos EUA e a partir de 1964 o Afeganistão tornou-se uma monarquia constitucional. Em 1973 um golpe de Estado instalou o regime republicano e a aproximação à Arábia Saudita. Em 1978 sobe ao poder um partido de cariz comunista, apoiado pela União Soviética, e um ano mais tarde este país invade o território. Dez anos mais tarde, em 1989, os soviéticos, depois de sofrerem inúmeras baixas às mãos dos mujahedines (apoiados pelos EUA, pela Arábia Saudita, pelo Paquistão, pela China e por outros países da região), abandonam o território. Seguiram-se divisões e lutas entre as várias facções mujahedines e a partir de 1992 o país entra numa terrível guerra civil. Os talibãs assumiram o poder em 1996, mas foram ficando cada vez mais isolados internacionalmente. Na sequência do 11 de Setembro de 2001 acabam por terminar o seu reinado às mãos da Aliança Norte46 apoiados, fundamentalmente, pelos EUA. actor político, quase um século volvido sobre um seu fim assaz inglório. Uma linha de orientação que tem gerado vantagens de que se augura que tanto o Reino Unido como as entidades com que se foi emparelhando continuará a usufruir por muitos e bons anos. Num gradiente interessante, note-se que houve casos – os vários reinos hashemitas que os britânicos foram semeando por todo o Grande Médio Oriente são um exemplo mais feliz do que o menos logrado na África Oriental, e menos do que aquele conseguido em grandes “colónias de implantação como o Canadá, a Austrália, ou a Nova Zelândia – em que o sucesso foi menor que noutros. Mas a visão política a que deram corpo perdura. 46 Nota de Armando Marques Guedes: A Aliança Norte foi uma entidade política anti-talibã com uma genealogia curiosa e bastante complexa. Depois da queda, em 1992, do regime comunista de Mohammad Najibullah que fora criado sob a égide dos soviéticos após a invasão – Najibullah foi o quarto e último Presidente da República Democrática do Afeganistão, um factotum de Moscovo – muitas das diversas facções e dos “partidos” afegãos celebraram um acordo de paz e de partilha do poder apelidado de os Acordos de Peshawar. Com estes acordos viu-se criado o Estado Islâmico do Afeganistão. Foi sol de pouca dura, pois desde o dia da sua criação anunciada até finais de 1994, momento em que esta reacção se tornou muito mais sólida, milícias apoiadas pelas forças militares paquistanesas, financiadas por elas e por fontes árabes sauditas, e lideradas por Gulbuddin Hekmatyar, opuseram-se-lhe ferozmente. A reacção não se fez esperar e uma auto-intitulada Frente Islâmica Unida para a Salvação do Afeganistão foi constituída enquanto entidade político-militar – e foi esta entidade que se tornou conhecida em meios internacionais como a Aliança Norte, liderada a partir de 1996 pelo Ministro da Defesa Ahmad Shah Massoud, que se coligou com o seu arqui-inimigo Abdul Rashid Dostum para criar a Aliança contra
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Os maiores líderes dos grupos de oposição e diáspora chegaram a acordo para um novo governo e Hamid Karzai foi designado Chefe Interino da Autoridade Afegã (AIA) em Dezembro de 2001. Após a realização de uma
os talibãs, radicada essencialmente no norte do país. A Aliança Norte incluía ab initio tajiques, uzbeques, hazaras, numerosos membros de agrupamentos “túrquicos”, bem como alguns pashtun. O sul do Afeganistão não era – e em parte continua a não ser – controlado por milícias externas nem pelo governo de Cabul, estando antes sujeito a líderes locais com milícias próprias e uma geometria altamente variável de coligações político-militares. A evolução das coisas acelerou o passo. Logo em 1994, os talibãs (um movimento que foi emergindo das escolas religiosas criadas por refugiados afegãos a viver no vizinho Paquistão) apareceram, em larga medida em resposta ao despotismo do governador da província de Kandahar, mas depressa a extravasando. Nesse mesmo 1994 os talibãs conseguiram capturar e controlar várias províncias do sul e do centro afegão. No final desse ano, no entanto, as forças de Massoud infligiram uma enorme derrota militar às numerosas milícias que então se batiam pelo controlo de Cabul. Massoud tentou à época desencadear um processo de “paz e consolidação democrática” ao nível nacional, que incluía os talibãs – que, todavia declinaram associar-se-lhe, reiniciaram ataques a Cabul, bombardeando incessantemente a cidade e, finalmente, ocupando-a a 27 de Setembro de 1996 – e anunciando a constituição do Emirato Islâmico do Afeganistão (uma entidade que apenas se viu reconhecida pela Arábia Saudita, o Paquistão, e os Emiratos Árabes Unidos). Os talibãs impuseram a sua interpretação politico-jurídica do Islão a todo o país (com mais sucesso nalgumas regiões, designadamente no sul e centro), exarando éditos que proibiam as mulheres de trabalhar fora do lar, frequentar escolas, ou sequer sair de casa se não fossem acompanhadas por familiares do género masculino. Famosamente, os talibãs deram também albergue à al-Qaeda de Osama Bin Laden em território afegão. Foi o Presidente paquistanês Pervez Musharraf (então chefe do Estado-maior General em Islamabad) quem enviou dezenas de milhares de cidadãos/civis e militares paquistaneses para combater ao lado dos talibãs e da al-Qaeda contra as forças de Massoud – no que tiveram sucesso. Apesar de uma conjuntura internacional cada vez mais carregada como foi a do final da década de 1990, no Afeganistão os processos integrativos pareceram desacelerar o passo sob a mão férrea de líderes internos como o mullah Omar e externos como o saudita bin Laden e os aliados então no poder no Paquistão no qual cada vez mais crescia a distância entre a retórica política assumida e os actos levados a cabo no terreno. Só depois dos ataques a Nova Iorque e Washington as coisas iriam mudar. Em finais de 2001, com a reacção norte-americana conhecida ao fatídico 11 de Setembro amplamente organizado em território afegão e face à recusa talibã em entregar ou expulsar a al-Qaeda, a Frente Unida logrou retomar a maioria do território afegão das mãos dos talibãs, com a assistência e o encorajamento de pequenos agrupamentos das Forças Armadas norte-americanas e de Forças Especiais enviadas para o terreno pela Administração Bush. Com o intuito de evitar uma guerra civil semelhante à de 1992-1996, as diferentes facções da Frente Unida – então quase universalmente conhecida como a Aliança Norte aceitou a formação de uma “administração interina” liderada pelo depois Presidente Hamid Karzai. O resto é história mais conhecida.
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Assembleia (Loya Jirga) em 2002, Karzai foi eleito presidente. A partir daqui a história é recente e penso que todos a conhecem relativamente bem. O Afeganistão cresceu sob vários povos, culturas, religiões, etnias e poderes. Mudou de mãos demasiadas vezes e o poder internamente pertenceu a mais do que uma etnia ou coligação, desde uzbeques, tajiques, pashtun, hazaras, etc. Qualquer solução estável de poder tem de ter em conta estes difíceis equilíbrios, qualquer distribuição de cargos elevados no Exército afegão também. Ainda não está nomeado o novo comandante da Divisão de Cabul47. Não é, de facto, fácil.
Nota do Autor: Quando terminámos a nossa missão em Abril de 2010, quase sete meses depois do falecimento do anterior, ainda não se encontrava nomeado o novo comandante da Divisão. Só em Maio de 2010 é que finalmente tomou posse. 47
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Ainda outra aula de religião. Cada vez mais me convenço de que estas aulas são a melhor forma que encontramos para entender o que se passa, para onde vamos e como melhor podemos ajudar. Se mais nada fosse, é um enriquecimento cultural inestimável e o estreitar de relações mais fortes e saudáveis. Desta vez o tema abordava as relações sociais com família, amigos, vizinhos e emigrantes. Começou o nosso simpático mullah por lembrar que os muçulmanos nunca devem duvidar da palavra de Alá, e ao longo da sessão, tal como costuma fazer em todas as sessões, relembra sempre as punições em caso de incumprimento das regras. Depois estabeleceu prioridades, o mais importante é rezar, depois são os pais, a restante família, os amigos, sempre por esta ordem. Falou que era uma obrigação respeitar e ajudar os vizinhos, quer fossem muçulmanos quer não e mesmo que estes não os respeitassem deveria manter-se sempre o respeito pelo vizinho. Avisou que era por vezes mais importante estimar os vizinhos, porque estão sempre perto, do que a família que pode viver afastada. Falou dos cuidados com o lixo, a água, os esgotos, tudo tem regras e ensinamentos. São regras de bom senso, são as regras do Islão, muitas assemelham-se aos nossos princípios, outras não, mas no fundo lembram-nos como somos todos feitos do mesmo barro, ou, nas palavras do mullah, vimos todos de Adão. No final da aula vínhamos os quatro a conversar, o meu comandante e os dois mullah, falávamos do facto de o Islão ter regras para tudo e para cada momento da vida. Depois de alguns exemplos concretos sobre as regras ele dirigiu a conversa para as regras de humanidade, de respeito e disse: “Admiro muito homens como vós, que aguentam o sacrifício de estar longe das famílias para nos virem ajudar, e penso que não vêm só ajudar o Afeganistão, é muito mais do que isso, estão cá por princípios base de humanidade, de ajuda fraterna, estão cá para ajudar outros homens e mulheres, só vos podemos agradecer.” Poderão parecer-vos palavras de circunstância, mas para nós, que já nos começamos a conhecer melhor, pensamos que são palavras sinceras e, na verdade, fazem-nos sentir muito bem. Por isso seguimos motivados.
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17 de Dezembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Foram dois dias difíceis. Um deslocamento longo para reconhecer os check-points 49 instalados na periferia da cidade e mais uma missão humanitária dentro de uma zona menos protegida da cidade de Cabul50. Já tive oportunidade de explicar como se processa a preparação e execução de deslocamentos mas gostaria de acrescentar nesta ocasião o processo de decisão que nos leva a decidir pelos deslocamentos. Como devem calcular não é fácil. Nota do Autor: Esta é a segunda carta que só foi enviada no final da missão. Nota do Autor: Operação de reconhecimento aos Postos de Controlo Permanentes que correspondem às portas (denominadas de “Gates”) de entrada em Cabul e que permitiu à nossa equipa, para além de supervisionar o correcto emprego operacional dos militares da Divisão na Defesa da cidade também permitiu identificar as vulnerabilidades logísticas e operacionais destes postos de controlo, e apoiar a elaboração de uma proposta para as solucionar. 50 Nota de Armando Marques Guedes: A todo o redor de Cabul foram construídos edifícios e estruturas nodulares no que redunda numa série de perímetros de defesa que protegem os acessos à cidade. 48 49
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Sempre que nos preparamos para sair temos a análise das ameaças, especialmente o número de viaturas suspeitas (com condutores suicidas prontos a atacar colunas militares) e qualquer outra ameaça relevante, para além do (a)normal estado de ameaça de explosivos improvisados, rockets, ataques directos, raptos, etc.51 Temos de medir sempre muito bem o equilíbrio entre a necessidade de fazer deslocamentos, a ameaça no momento/local, e a nossa Nota do Autor: Há várias motivações que levam à existência de uma ameaça permanente em Cabul. Questões económicas, territoriais e religiosas que são materializadas pelos, para além dos conhecidos talibãs, Haqqani e HIG também pelos senhores da guerra, da droga e extremistas religiosos. Infelizmente a instabilidade e a insegurança não tem deixado de subir nos últimos tempos. Os ataques aumentaram 88% desde 2005 e, no Verão de 2009, registaram-se 10 vezes mais ataques que em igual período de 2005. O ano de 2010 começou ainda pior. A OMLT KCD sabia que operava num ambiente de guerra e em acelerado aumento do risco. 51
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ausência na Divisão que “mentoramos”. Além disso temos também de saber quem poderá ir nesses deslocamentos, por exemplo, é importante que num mesmo deslocamento não vá o comandante, o chefe de Estado-maior e o oficial de Operações. Como tal não fui no primeiro deslocamento e o meu comandante não foi no segundo. Não sei qual me causou maior preocupação. No primeiro, ao ficar para trás, fiquei também com a responsabilidade de manter tudo a funcionar e garantir um sistema de alerta. Na verdade, enquanto estes longos deslocamentos não terminam nunca conseguimos descansar. Fui acompanhando toda a fase dos deslocamentos pelo rádio e só quando chegaram todos é que respirei fundo. No segundo, pouco tempo antes de iniciarmos o deslocamento, houve um ataque suicida em Cabul. Sabíamos que íamos para uma área perigosa da cidade mas tínhamos uma operação para realizar. (Uma nota: a operação é des-
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crita na carta seguinte.) Não foi fácil decidir, mas fomos porque se tratava de famílias necessitadas e, embora a distribuição do material fosse uma responsabilidade dos militares afegãos, tínhamos sido nós a preparar, dividir e organizar os materiais, pelo menos era importante estar no início da operação para assegurar que tudo correria bem. Decidimos ir mas permanecer o menos tempo possível. A área da missão era num bairro degradado dentro da cidade de Cabul. Quando entrámos no aceso ao bairro parecia que estávamos em Mogadíscio na Somália e fazia-nos lembrar um pouco o filme Cercados. Logo se nos deparou um problema inicial: os caminhos de terra e lama de acesso teriam de ser os mesmos no regresso, o que deve ser sempre evitado pois se alguém nos quiser atacar espera-nos no regresso. Estivemos de facto pouco tempo no local. Saímos das viaturas e as pessoas rodearam-nos, mas a nossa divisão afegã tinha uma segurança muito bem pre-
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parada, e como tal sentimo-nos seguros entre aquelas pobres famílias. Entrámos no átrio da mesquita, cumprimentámos o mullah e o “chefe do bairro” e de seguida preparámos o material para se iniciar a distribuição. Fizemos a primeira entrega e depois deixámos a tarefa, como sempre o temos feito, aos militares afegãos. O regresso começou mal, quando iniciámos a marcha demos conta de um pneu completamente em baixo, mas decidimos seguir. Ali não era o local para mudar o pneu. Lá fomos descendo (este bairro é como se fosse uma espécie de favela brasileira, mas não tão elevada) devagar e a viatura ia aguentando a marcha. Felizmente avistámos uma tenda, do tipo oficina de pneus, que tinha um compressor. Tirei quatro euros do bolso e aproveitámos para rapidamente encher o pneu e lá seguimos na descida. Sempre daria para chegar à Divisão. Depois de sair do bairro sentimo-nos muito mais aliviados, mas ainda faltava chegar à Divisão e no caminho encontrámos o trânsito completamente
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congestionado. Por causa do ataque da manhã, grande parte do centro de Cabul estava fechado ao trânsito e não houve outro remédio senão ter paciência e esperar para chegar bem ao destino, o que acabou por acontecer cerca de 40 minutos depois. Foi mais uma missão, mas para nós, a decisão nunca é fácil. Arriscamos não só a nossa vida como a de quem nos protege, os fuzileiros e comandos, da Force Protection52. Para além da decisão consciente, uma preparação completa e profissional, a segurança de ter militares muito responsáveis pela nossa protecção temos também de ter sorte e fé, sim, porque nestes momentos não nos esquecemos de pedir alguma ajuda, pelo menos a Nossa Senhora. Quem tem todo este peso é sem dúvida o comandante. No final ele é sempre o último responsável por todos os movimentos e o nosso respeito por ele aumenta todos os dias, que tem de manter a cabeça fria para decidir o melhor possível. Esperamos chegar ao fim todos e todos bem, é o que mais queremos, fazer bem, cumprir bem, ajudar quem precisa e voltarmos todos, Deus queira.
Nota do Autor: Quando chegámos à Divisão o brigadeiro-general Raouf, chefe de Estado-maior, estava à minha espera visivelmente irritado. Mal saí da viatura deu-me uma valente “descascadela” porque tinha ido fazer uma operação para uma área extremamente perigosa. Naquele bairro encontrava-se o quartel-general de um dos grupos insurgentes responsáveis pela maioria dos ataques em Cabul. Como o planeamento tinha sido efectuado com um dos coronéis da Divisão assumi que o general havia sido informado de tudo mas, aprendemos nesse dia, que a informação não flui da mesma forma que nas nossas organizações. Foi mais uma lição, prometi (e cumpri) nunca mais fazer nenhuma operação sem o conhecimento e concordância do general. Ele disse-me que não me deixaria sair para operações sem estar presente. Senti nesse dia, ainda mais, como ele verdadeiramente se preocupava comigo e com a nossa segurança. Não gostei de ouvir a reprimenda mas senti uma enorme admiração por este general que se preocupava tanto comigo, connosco, e com a nossa segurança. Por vezes aprende-se muito mais com os erros. Tínhamos aprendido e a nossa confiança estava agora visivelmente reforçada. 52
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18 de Dezembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Com esta já são três as operações humanitárias. Trabalho gera trabalho, sucesso gera sucesso, cumprir gera confiança. Ainda bem que temos tido a oportunidade de ajudar. São tantas as carências… Mas um pouquinho de cada vez sempre vai fazendo a diferença. Desta vez escolhemos um bairro degradado mesmo no centro de Cabul. Assim uma espécie de Favela, só que com menos inclinação. Aqueles que nos apoiam já sabem que a ajuda chega a quem necessita, daí a vontade de nos continuarem a ajudar a ajudar. E nós ajudamos a ajudar. As fotos são da operação, de novo tiradas pelo nosso intérprete Wais. Cada vez mais se nota o orgulho dos militares afegãos em poder ajudar os seus concidadãos. Sabemos bem que muitos dos soldados têm problemas e carências graves em casa mas, até ao momento, a ajuda foi sempre entregue. Desta vez eram cerca de 100 famílias, tínhamos cobertores, roupas, botas (galochas para os mais pequenos – é impressionante ver no meio da lama e do frio crianças descalças…) e termos para manter o chá quente. As famílias reuniram-se junto à mesquita e de lá foram chamadas para receber a ajuda.
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Tudo estava organizado pelos militares da Divisão, pelo mullah local e o “chefe do bairro”. Correu bem. Ainda por cima esta operação decorreu enquanto se dava mais um ataque mortífero na zona das embaixadas, causando oito mortos e 40 feridos. Assim as populações podem comparar. Esperemos que saibam também decidir quem devem apoiar53. Nota de Armando Marques Guedes: Tal como antes sublinhei, o que está muitas vezes em causa nestes alinhamentos é um jogo político-económico de soma zero que apenas pode ser ganho uma vez que o state-building e o jus post bellum sejam como parte integrante de uma missão que não se esgota de maneira nenhuma na sua dimensão militar. Estaremos, em consequência, perante uma situação de “neoprotectorados” que inevitavelmente irão descambar em formas de “colonialismo”? The jury is still out on that one, como diriam os anglo-saxónicos. O que parece em todo caso evidente é que uma “recolonização”, caso ela esteja nas cartas, será levada a cabo pela comunidade internacional e não por um qualquer Estado para tanto mandatado – os processos serão assim, decerto, muito diferentes daqueles que foram encetados tanto depois da Conferência de Berlim de 1884-85, como os 53
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Dão muito trabalho, sim, no meio de tantas actividades que temos estas são de facto actividades bastante difíceis e cansativas, para carregar mais de 300 cobertores, 400 pares de botas, etc., só podemos contar com a nossa pequena equipa, mas… teriam de ver as caras do nosso pessoal, ainda que poucos, todos querem ajudar e é com um enorme orgulho que entregámos aos militares afegãos duas camionetas completamente carregadas de material e tudo devidamente organizado e pronto para a distribuição. Não, não necessitamos dos agradecimentos das pessoas apoiadas, elas agradecem aos militares afegãos e nós sentimo-nos bem. Depois são os militares depois desencadeados após a Paz de Versalhes, em 1919. Outras figuras emergirão. Embora seja impossível prever o futuro, muito há que indica como mais plausível um desenrolar que leve a processos de “democratização” muito generalizados, amplamente baseados na instrução e modernização das economias e dos sistemas políticos – e, por essas vias, das mentalidades. Embora o trajecto a seguir para tal realizar seja tudo menos óbvio.
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afegãos que nos agradecem devotadamente. Ainda por cima estamos perto do Natal e assim damos outro sentido à palavra e à época, ainda que seja só para nós… e também para vós que estão em Portugal, que sei que nos apoiam incondicionalmente. Tentaremos ajudar mais. É habitual por alturas do Natal. Representantes do Estado e das Forças Armadas visitam os vários territórios onde se encontram a maioria dos militares. Fomos visitados nos últimos dias por uma delegação do Estado-maior das Forças Armadas e dos três ramos, Exército, Marinha e Força Aérea. Eram cinco os militares, incluindo dois oficiais generais. Não vieram só por simples circunstância, não sentimos que em momento algum estivessem cá a fazer um frete ou a cumprir calendário. Sentimos verdadeiro interesse, apoio, camaradagem e vontade de fazer mais por nós e por este pobre país. Ainda bem que nos visitaram e, ainda por cima, transportaram no C-130 as guloseimas (e bacalhau CLARO!) para a nossa ceia de Natal além das prendas das nossas famílias54. A visita foi muito mais importante do que à partida poderia pensar-se. Primeiro, tivemos a oportunidade de mostrar o que andamos por aqui a fazer. Foi um programa intenso mas não ouvimos nenhuma queixa da delegação,
Nota de Armando Marques Guedes: Entre nós, a instituição militar sabe cuidar dos seus muitíssimo melhor que os políticos ou a sociedade civil, ao que parece. Depois surpreendemo-nos ao verificar que as transições políticas, a partir de um certo limiar, têm sido invariavelmente conduzidas, em Portugal, por forças castrenses – ao que tudo indica, a ideia de que Portugal está localizado na Europa do século XXI e não num século XX sul-americano resulta de uma insondável conspiração dos cartógrafos. E a capacidade política de aprendizagem que temos continua a deixar muito a desejar. 54
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apenas sentimos determinação e vontade de aprender. Em pouco mais de 24 horas conseguiram acompanhar o trabalho não só da nossa equipa como também da outra equipa de “mentoria” (OMLT de guarnição), o destacamento médico (do Hospital Internacional) e o módulo de apoio (que nos presta apoio a todos: comunicações, manutenção, Force Protection, etc.). No total somos quase uma centena de militares no Afeganistão. Segundo, pudemos conviver com militares que conhecemos bem e que nos conhecem bem. Viram e acompanharam-nos nas nossas rotinas, dificuldades, riscos e desafios. Jantámos, almoçámos juntos e falámos francamente, expusemos todos os nossos problemas e sabemos que fomos ouvidos. Tivemos bons momentos de convívio, descontraímos um pouco e demos umas boas gargalhadas, sinal do excelente ambiente que aqui vivemos e que estes militares vieram acrescentar. Por último, sabemos que ficaram com outra perspectiva do que verdadeiramente aqui fazemos. Tiveram oportunidade de falar com membros de outras nações e principalmente ouviram o que os afegãos lhes tinham para dizer. Na nossa divisão estavam todos à espera da delegação portuguesa, desde os oficiais generais, todos os chefes de divisão até aos soldados nos vários im-
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pedimentos que, horas antes da chegada, limparam meticulosamente toda a unidade. O que mais nos tocou foi que nós não tínhamos pedido nada disso. Apenas tínhamos pedido para receberem os nossos generais. Foi um evidente sinal de carinho. As conversas foram francas e abertas, os elogios a Portugal foram constantes e, creio, muito sinceros. A visita foi importantíssima. Assim, quando voltarem à nossa pátria, além de saberem o que nós fazemos, também sentiram, ouviram, cheiraram, viram e sabem muito melhor onde está o dinheiro e o esforço português a ser colocado. Nesta época, neste local, a esta distância de casa, foi muito bom receber os nossos superiores militares. Sentimo-nos mais apoiados, melhor compreendidos, recebemos um pouco mais de calor para o Natal e, claro, continuamos motivados.
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24 de Dezembro de 2009, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Hoje somos Natal. Hoje, na nossa ceia de Natal, nos nossos alojamentos que mais não são mais do que alguns contentores rodeados de bunkers na base da NATO, em Cabul, a nossa equipa, os militares do destacamento médico e mais alguns militares e civis que por aqui trabalham vão estar à mesa possível numa calorosa ceia de Natal. Sentados seremos cerca de 40, mas presentes seremos centenas. Em cada lugar à mesa está um de nós e com cada um de nós, estão todos os que somos, os nossos filhos, as nossas mulheres/maridos ou namoradas/namorados, os pais, irmãos, primos, tios, avós, amigos; hoje seremos todos Natal. Lá fora também se preparam celebrações. Nas nações muçulmanas recorda-se a Ashura para os xiitas e a Memória de Muharram para os sunitas, porque neste ano de 2009 o décimo dia do mês de Muharram calha a 27 de Dezembro55. Para os xiitas, é o recordar da morte do neto de Maomé, Hussein, na baNota do Autor: O calendário muçulmano é baseado num sistema lunar, no Irão e no Afeganistão é solar, pelo que os dias raramente coincidem com o nosso calendário, por exemplo, o Ramadão, que é o mais conhecido, tanto pode ocorrer no Inverno como no Verão. 55
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talha de Kerbala. Para os sunitas recorda-se também a forma como Maomé se juntou aos judeus na celebração da data da fuga dos judeus do Egipto, e como nesse dia Maomé jejuou junto dos judeus, em sinal de tolerância e respeito por outras religiões, deve-se, neste dia, jejuar e oferecer comida aos necessitados. Na última aula de religião foi referido o crime contra os Budas de Bamiyan (destruídos pelos talibãs no Afeganistão em 200156). O mullah chamou a este terrível acto um símbolo da intolerância para com as outras religiões e reNota de Armando Marques Guedes: Os Budas de Bamiyan eram duas estátuas monumentais do século VI, de budas em pé esculpidos na face de uma colina no vale de Hazarajat, na província de Bamiyan, numa região a 230 km a norte de Cabul, a 2500 metros de altitude. As estátuas foram criadas, uma no ano 554, a outra no ano 557 da era cristã, e foram esculpidas no estilo híbrido Gandara, que fundia as tradições indiana e grega clássica, e terá resultado das incursões de Alexandre Magno nesta região da Ásia Central – designadamente com a sua conquista do reino de Gandara. Embora nos primórdios do regime talibã, o mullah Mohammed Omar ele mesmo tivesse considerado as enormes estátuas – uma delas tinha 55 metros de altura, a outra 37 – como “históricas”, em 2001 reclassificou-as como “ídolos” e os talibãs decidiram dinamitá-las, decretando os artefactos como “idólatras” e “não-islâmicos”. O que foi feito de maneira elaborada, pois dada a sua escala e resistência, foi preciso demolir parte delas com artilharia pesada e rockets. 56
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lembrou que é um dever de qualquer muçulmano respeitar todas as religiões. Olhou para nós, sorriu, continuou com a aula. Muitos dos afegãos com quem Este acto de destruição de monumentos classificados pela UNESCO como Património Mundial da Humanidade chocou o mundo, sendo tido como testemunho da intolerância e do fanatismo dos talibãs, não só por entidades privadas como por Estados como a Suíça e o Japão. Mesmo os Estados que reconheciam o regime dos talibãs (designadamente a Arábia Saudita, o Paquistão, e os Emiratos Árabes) protestaram contra ”a barbárie do acto” Nova Delhi ofereceu transportar as estátuas para a Índia, onde seriam salvaguardas, sem sucesso. Uma grande parte da população afegã reagiu de igual modo, e a 26 de Janeiro de 2007, Mawlawi Mohammed Islam Mahammadi, o governador talibã da província de Bamiyan que tinha sido eleito em Setembro de 2005 para o Parlamento afegão, foi assassinado em Cabul. As estátuas eram geralmente consideradas como os artefactos culturais mais importantes da rota da seda, e a eles estavam associadas cavernas e túneis nas colinas, onde tinham residido, há milénio e meio, monges budistas ermitas, que deixaram nas grutas que ocupavam frescos de cores vivas e estatuária em grande quantidade – foram encontradas em 12 das 50 grutas conhecidas ao seu redor. Os especialistas consideram que os enormes budas, hoje reduzidos a pó, foram criados por monges budistas apostados em transformar a região num centro activo de peregrinações. O que o vale de Bamiyan se tornou logo a partir do século que se seguiu à sua construção. Em 2008, arqueólogos descobriram uma terceira estátua, de 19 metros de comprimento no vale, de um buda reclinado simbolizando a sua passagem para o nirvana.
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nós trabalhamos perguntam-nos quando é o nosso Natal para nos prestarem cumprimentos neste dia, tal como se faz no Eid ul-Adha (ver Carta n.º 11). O mullah fez-nos então um convite, raro e especial, que muito nos honrou: para que a 24 de Dezembro viéssemos rezar com ele na mesquita, em antecipação dos feriados religiosos, os deles, mas também o nosso. Hoje está um sol radioso e quando chegámos à Divisão estavam todos à nossa espera. O mullah acompanhou-nos até à porta da mesquita e disse-nos o que tínhamos de fazer. Não necessitávamos de nos descalçar porque os militares em uniforme não têm de o fazer. Todos os muçulmanos à entrada das mesquitas devem dizer uma oração que em síntese diz: Acredito em Deus, em todos os profetas, em Maomé como mensageiro de Deus. Nós teríamos de fazer o mesmo para entrar só que, sendo convidados especiais, e de outra religião teríamos de dizer o mesmo substituindo a palavra “acredito” por “respeito” e assim fizemos, repetimos em dahri: Respeito o Deus único, respeito todos os profetas… Entrámos, sentámo-nos junto ao mullah e assistimos à cerimónia. A cada um que o desejasse eram entregues 30 versículos do Corão e durante cerca de meia hora, cada um rezou para si. Depois um dos mullah explicou a razão de ser da celebração religiosa. Além do que já tínhamos aprendido ficámos a saber que no décimo dia do Muharram também tinha sido criado Adão, este se tinha casado neste mesmo dia e que o profeta… (não consegui saber o nome) tinha caminhado sobre brasas57. Nota de Armando Marques Guedes: Muharram é o primeiro mês do calendário muçulmano. Alguns dos crentes fazem jejum durante o dia no nono e no décimo, ou no décimo e no décimo primeiro dos dias desse mês do calendário localmente aceite. Nem todos os muçulmanos observam estes dias do mesmo modo. Para alguns, Muharram é o “mês de luto” em que comemoram a batalha de Karbala. Um exemplo chegará por todos. No estado de Kerala, na Índia, por exemplo, envolvem-se então na pulikali, também conhecida como a “dança do tigre”, pintando os corpos com listas de tigre, e organizando verdadeiras paradas pelas ruas nas quais dançam e imitam estes animais. Tal é feito com o intuito afirmado de celebrar a “coragem” do imã Hussain, neto do Profeta Maomé – um imã também conhecido como Husayn ibn Ali. Tanto Sunnis como Shias, na Índia como por todo mundo, observam o décimo dia de Muharram. Em geral, como li algures num blogue: “The 10th of Muharram marks the date when carnage took place at Kerbala and when Imman Hussain died in 680 CE. Imman Hussain was the Prophet Muhammed’s grandson. Many Muslims believe that he died on the ninth, 10th or 11th day of the month of Muharram. It is also believed that God created Adam and Eve on the 10th of Muharram, which was also when an Egyptian pharaoh and his soldiers drowned in the Red Sea later in time”. Para as mesmas questões parece haver, por isso, diferentes respostas. 57
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Todos os generais da Divisão estavam presentes e o comandante da Divisão iniciou as celebrações com umas palavras sobre o evento. Logo no início dirigiu-se a nós agradecendo a nossa presença, falou a todos da importância de estarmos ali, do respeito, da tolerância e no final, depois de cerca de 25 minutos, terminou de novo referindo a grande alegria que sentia por nos ter ali entre eles. Para encerrar seguiu-se uma oração cantada brilhantemente pelo nosso conhecido mullah. Foi comovente o som da oração e o silêncio de todos. No fim foram distribuídos caramelos para adoçar as palavras do mullah. À saída da mesquita, com as pernas bem dormentes porque não estamos habituados a estar naquela posição por mais de uma hora, disse-me o brigadeiro-general chefe de Estado-maior: “Foi muito bom terem estado connosco, da última vez que tentei levar um mentor a uma mesquita, ele foi corrido pela população. Agora não, todos vos têm imenso respeito, obrigado por terem vindo… e já agora: Feliz Natal!” Falta acrescentar que antes de começar a cerimónia o nosso fiel intérprete Wais nos ofereceu a cada um o lenço que vêem na fotografia e acrescentou: Feliz Natal! É de facto possível, entre os muçulmanos, sentirmos que estamos no Natal e foi uma óptima maneira de começar a nossa véspera de Natal. Hoje somos Natal. Há de facto motivos para cada um de nós celebrar o Natal, qualquer que seja o credo ou religião, e mesmo para quem não pertencer a nenhuma religião hoje também se pode recordar as tradições pagãs e celebrar o solstício de Inverno, e pensar que os dias passarão a ser maiores. Todos temos razões para celebrar esta época porque o Natal é uma festa de solidariedade universal, comemorada em todo o mundo. O Natal é sentir o próximo e querer fazer algo por outrem, o Natal leva-nos a ser menos egoístas, mais carinhosos, mais sentimentais, mais família, mais amigos, mais devotados. O Natal são cores, luzes, pinheiros decorados, bonecos de neve e prendas na lareira. O Natal é fundamentalmente o presépio, o nascimento, o Menino, é acreditar, a esperança, a noção mais pura de bem e do Bem. O Natal é entrega, o querer servir os outros, o aceitar sacrifícios para que outros possam ter uma vida melhor. O Natal é estar disposto a contribuir para a segurança e bem-estar de outros povos, de outras religiões, em qualquer parte no mundo. O Natal também é ajudar o povo do Afeganistão.
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Aqui temos poucas luzes, há pinheiros improvisados, pequenos e toscos presépios e cada um de nós pensa hoje, talvez mais do que em qualquer outro dia, em todos com quem hoje não pode estar. Custa muito, muitíssimo! É deveras difícil não poder abraçar aqueles que naturalmente estariam connosco nesta ceia. No entanto, estando longe fisicamente estamos muito, muito perto espiritualmente. Por isso seremos centenas à mesa. Por isso somos tantos e sentimos tanto carinho. Por isso somos Natal. Hoje, minha querida mãe, o pai também vai estar aqui comigo, porque como agora ele pode, vai estar aí e aqui simultaneamente. Como sempre esteve, e sempre estará. Hoje somos todos, presentes/ausentes e ausentes/presentes, o verdadeiro Natal. Feliz Natal a todos!
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1 de Janeiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. No dia 11 de Setembro de 2001 encontrava-me em Luanda, Angola, em mais uma missão de cooperação militar. Tínhamos acabado de regressar do Instituto Superior de Estudos Militares, onde leccionava História Militar e dava uma mãozinha na Estratégia, quando vimos na televisão a primeira das torres gémeas a arder. Não larguei mais a televisão. Passados uns minutos fui dos milhões de pessoas a ver em directo o impacto na segunda torre. Marcou-me muito esse dia, mas o que mais me impressionou foi sentir a indiferença com que tanta gente acompanhou o evento. No dia seguinte, nós, os três professores do Departamento de Estratégia (do antigo Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM), actualmente designado Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM), em Pedrouços, Lisboa) presentes em Luanda forçámos um debate sobre o acontecimento e, embora existisse muita agitação sobre o mesmo, parecia que muito poucos sentiam o verdadeiro impacto que faria nas nossas vidas. Aquando da destruição dos Budas de Bamiyan no Afeganistão, uns meses antes, tinha também provocado um debate em Lisboa com o curso de Estado-maior. Mas, aprendi eu nesse
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ano de 2001, parece que está na natureza humana só sentir a importância dos eventos quando estes chocam directamente connosco. Não me parece que tenha mudado muito. Foi esse grande evento, o agora já longínquo 11 de Setembro de 2001, que indirectamente me trouxe aqui em 2009. De Angola para o Afeganistão. De um cenário de pós-guerra fria para um conflito de contra-insurgência. Nove anos depois, que poderemos nós esperar para 2010? Bom, não vou substituir o papel de milhares de colunistas que por estas datas enchem os jornais com previsões, análises e estudos prospectivos mas, como me encontro por estes lados, vou arriscar algumas ideias sobre o que se pretende fazer para melhorar a vida deste povo e, indirectamente, aumentar a segurança de todos. A ideia base é muito simples, apostar na segurança das populações, preparar as forças afegãs para que possam, progressivamente, garantir a sua própria segurança e criar condições de desenvolvimento económico que sustentem uma paz estável e criadora de emprego. Não é uma ideia nova, é muito antiga e também muito portuguesa. O que aparentemente está a mudar é a forma de aplicação no terreno, porque desta vez não é uma nação a fazer contra-
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-insurgência por si só, é uma coligação, são várias alianças e centenas de organizações e, como sabemos, é este o facto novo. Daí que seja necessário quebrar barreiras psicológicas. É necessário estar disposto a partilhar informações, abrir os sistemas de comunicações, integrar as acções das milícias locais, colocar as populações como o centro de gravidade, criar condições para a entrada das organizações não governamentais, partilhar o comando de operações com entidades civis, criar organismos integrados com a polícia, os serviços de segurança, as Forças Armadas, etc. Este é o verdadeiro desafio. A mudança não está nos princípios nem na estratégia, ambos são históricos e amplamente entendidos, o desafio reside na mudança de atitudes, procedimentos, formas de trabalhar e diferentes organizações na liderança58. 2010 será o ano da mudança porque se vai implementar uma nova forma de trabalhar. Nós, a OMLT portuguesa na Kabul Capital Division, no nosso pequenino cantinho desta gigantesca mudança, estamos mesmo no centro da mesma. Nota de Armando Marques Guedes: Uma polémica surda tem estado em curso em Portugal quanto a este e outros pontos conexos. Embora contenha várias facetas, aquilo que parece estar essencialmente em causa são questões corporativas e problemas de comando e controlo.
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Não haverá evolução no Afeganistão se Cabul não evoluir, não haverá segurança em Cabul se a Divisão não se tornar mais eficaz, não haverá melhor coordenação entre forças de segurança e defesa se o órgão de coordenação existente na Divisão não se tornar mais activo, coordenado e interventor. Não é da responsabilidade da OMLT criar estas condições, mas é indubitavelmente nossa missão ajudar para que tal aconteça, é a nossa humilde contribuição, o nosso desejo e é também o nosso desafio. No dia 11 de Setembro de 2001 o mundo mudou, mas na altura muitos não se aperceberam da profunda mudança. Andámos estes últimos anos a reagir, a adaptar, a repensar modelos, políticas e práticas. Foram de facto necessários os vários choques climáticos, de segurança e financeiros para o mundo querer mudar. Parece querer mudar. Em 2010 o mundo prepara-se finalmente para agir em vez de apenas reagir, adoptou novas visões, recuperou velhas estratégias, parece querer encontrar uma nova forma de se governar. O tubo de ensaio passa naturalmente por aqui, pelo Afeganistão. Há que ter esperança, eu tenho esperança. Nesta última semana de 2009 demos passos significativos numa das nossas prioridades dentro da Divisão: o funcionamento do Centro de Operações Tác-
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tico ou, por outras palavras, o cérebro e coração da Divisão. Neste Centro de Operações estão representadas todas as áreas da Divisão. Aqui se processam as informações, elaboram-se propostas, preparam-se operações e tomam-se decisões. O bom funcionamento deste centro é um indicador preciso sobre o funcionamento da Divisão como um todo. Em boa hora decidiu Portugal apoiar esta área fundamental da nossa missão e podemos afirmar que, finalmente, este centro ganhou vida, está activo, cada dia mais funcional e, por extensão, a Divisão está hoje mais eficaz. Ainda falta muito para fazer em 2010, mas definitivamente esta tem sido uma opção claramente ganhadora. Com um bom centro de operações, teremos (esperemos, se todos os restantes sistemas funcionarem, porque só o centro sozinho nada garante) um aumento da segurança em Cabul59. E no dia 30 de Dezembro terminámos a fase final do novo plano de segurança de Cabul. Não vos poderei dar pormenores do mesmo, como entenderão, mas a nossa contribuição, ainda que modesta e proporcional à nossa dimensão, foi relevante60. Estivemos presentes em todos os grupos de trabalho
Nota do Autor: Portugal dedicou grande parte do esforço ao levantamento do centro de operações na Divisão (TOC – Tactical Operational Centre) que é hoje o “coração e cérebro” da KCD. Além do apoio material em equipamentos e infra-estruturas foi também um apoio em procedimentos, práticas e rotinas que levaram a um significativo crescimento operacional da KCD. O projecto iniciou-se com a reorganização espacial da sala, maximizando e optimizando a área disponível, implementação do controlo de acessos e isolamento da área e da sala de comunicações. Com recurso a materiais nacionais, equipou-se esta sala com novas secretárias e cadeiras para os representantes de cada área de Estado-maior; mesa de reuniões de forma a permitir a realização de videoconferências e briefings, bem como outro equipamento diverso de apoio. Dotou-se também o TOC com novas cartas de situação de operações (geral, particular e fotografia aérea da cidade de Cabul), carta de situação de informações, das transmissões e diversos quadros de potenciais de meios, de pessoal e logística. Finalmente foram propostas e aceites diversas Standing Operating Procedure (SOP – equivalentes às nossas NEP – Normas de Execução Permanente) sobre a constituição, organização e funcionamento do TOC da Divisão, o que incrementou substancialmente a capacidade de comando e controlo e assim permitindo regular procedimentos operacionais. 60 Nota do Autor: a nossa equipa teve de facto um papel relevante de apoio à Divisão no planeamento e coordenação do Plano Conjunto de Segurança de Cabul (denominado de OMAID Plan). A Divisão assume, de acordo com este plano, uma posição central na coordenação e execução do mesmo e a nossa OMLT ainda ajudou a coordenar semanalmente as patrulhas conjuntas entre militares da ISAF e da Divisão – KCD, o treino e instrução das subunidades da KCD, o processo de aquisição de informações para toda a Divisão e a coordenação permanente com a polícia – ANP, Serviços de Segurança – NDS, ISAF e ONU. 59
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aos mais variados níveis e em todas as estruturas, Ministério da Defesa, do Interior, ISAF, Polícia, Serviços de Segurança e claro, sempre lado a lado com cada um dos nossos “mentorados” para ajudar a elaborar o contributo, fundamental, da Divisão de Cabul. Como referi no início desta carta, estamos a trabalhar no centro de novas doutrinas, acompanhamos novas atitudes e práticas, assistimos no lugar da frente a novas formas de trabalhar. Sim, os conceitos são antigos, mas se forem efectivamente abordados nesta nova forma cooperativa, integrada e transparente poderá fazer toda a diferença. Veremos. Concluímos com sucesso, a nossa última operação humanitária de 2009. O brigadeiro-general chefe do Departamento Religioso e Cultural tinha-nos falado de um novo campo de refugiados, oriundos de uma das províncias afegãs mais afectadas com a guerra, Helmand. Um campo pequeno, com 23 famílias e o principal problema identificado era o frio e a falta de abrigo, este último não existia para metade das famílias, para ser mais exacto, 12
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das 23 famílias estavam praticamente a dormir ao relento. Pedimos 12 tendas ao nosso apoio americano, conseguimos conjuntos com três cobertores, roupas, lanternas, lápis, blocos de notas, por família, junto da ISAF e com os nossos próprios meios tratámos de juntar alguma comida, chocolates, doces, manteigas, bolachas, etc., tudo o que arranjámos para ajudar um pouco as 23 famílias. Basta ver as fotos, a miséria, as “cabanas” sem tecto e sem qualquer protecção, o lixo por todo o lado, só não se pode mostrar o cheiro. Garantidamente estas famílias ficaram ligeiramente melhores. Já estamos a planear mais operações humanitárias, numa das próximas vamos levar os médicos da Divisão para fazer pequenos rastreios e dar medicamentos (que entretanto já conseguimos). Nesta área específica não nos faltará trabalho, infelizmente. Recebemos a medalha NATO pelo nosso serviço no Afeganistão. Tem apenas esse significado, a partir de um mês de missão, todos os militares da NATO têm direito a usar esta medalha. Parece uma insignificância, uma mera formali-
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dade mas é muito mais do que isso. O que ela significa é que os militares que a recebem mostraram disponibilidade. Prontidão para servir. Sacrificaram estar longe das famílias para poder servir o seu país, a sua aliança (a NATO) e o Afeganistão. Não reflecte se o trabalho foi bem ou mal feito, apenas distingue quem se disponibilizou a estar aqui, e este modesto reconhecimento ajuda as nossas famílias a entenderem melhor os sacrifícios que elas, muito mais do que nós, têm de suportar. Um dos meus bons amigos, Edward (Ned) Fish, coronel dos EUA e que regressou há pouco tempo do Iraque, mandou-me, num e-mail a desejar um bom Natal, uma citação, que muito me sensibilizou, de um antigo e conhecido Presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, apresentada em 1913 durante uma conferência na Universidade de Sorbonne: “It is not the critic who counts; not the man who points out how the strong man stumbles, or where the doer of deeds could have done them better. The credit belongs to the man who is actually in the arena, whose face is marred by dust and sweat and blood; who strives valiantly; who errs, who comes short again and again, because there is no effort without error and shortcoming; but who does actually strive to do the deeds; who knows great enthusiasms, the great devotions; who spends himself in a worthy cause; who at the best knows in the end the triumph of high achievement, and who at the worst, if he fails, at least fails while daring greatly, so that his place shall never be with those cold and timid souls who neither know victory nor defeat.”61
Nota de Armando Marques Guedes: Um dos maiores presidentes norte-americanos, Theodore Roosevelt, era adulado pelos seus conterrâneos como um homem de acção e grande coragem. Efectivamente um homem de terreno, Teddy Roosevelt notabilizou-se quando, num breve período de férias em Novembro de 1902, numa expedição de caça a American black bears no Mississípi, o Presidente Teddy Roosevelt se recusou a matar a sangue frio um urso capturado pelo governador do estado que o instou a fazê-lo, considerando que matar um urso preso seria uma manifestação indigna e “unsportmanslike”. Com a publicação na edição do The Washigton Post de 16 de Novembro desse ano de um terno cartoon político da autoria do grande desenhador Clifford Berryman, a notícia correu célere; nesse mesmo Natal, as grandes cadeias de armazéns de Nova Iorque venderam quantidades maciças do que começou a ser apelidado de Teddy Bears – nome que, note-se, ainda hoje mantêm os ursos de peluche. Em 1906, os Teddy Bears tinham-se tornado na Europa e nos Estados Unidos num must, em alturas festivas, para amplos sectores da população e por isso altamente rentável para as inúmeras unidades fabris que foram criadas para começar a produzi-los. 61
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No final do e-mail o Ned reforçava, referindo-se à minha presença no Afeganistão: “Know that you will never be seen as one of “those cold and timid souls who neither know victory nor defeat.”. Estar e não ter medo de arriscar, de errar, de tentar e assumir as derrotas. Sei que faço parte de uma equipa que não tem medo de arriscar, de estar na arena. São homens que querem dar mais e sempre mais. Se aqui não estivéssemos nunca poderíamos sentir o sabor das pequenas vitórias e o desespero das derrotas. Não sabemos se a nossa missão continuará a correr bem ou mal, mas podemos dizer que ainda aqui estamos e queremos continuar a tentar. Só isso. Por isso a medalha. É porque estamos aqui, a nossa OMLT está no Afeganistão. Em nome de Portugal estamos aqui, porque Portugal sempre soube estar na arena quando para tal foi chamado. Recebemos as medalhas em conjunto com os militares espanhóis. Ouvimos os hinos da NATO, do Afeganistão, da Espanha e de Portugal. Tem outro sabor ouvir o nosso hino e saudar a nossa bandeira numa tarde fria e soalheira de Cabul. Acima de tudo recebi uma medalha porque Portugal não receia co-
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nhecer a vitória ou a derrota. Diz-se que os amigos conhecem-se nas ocasiões difíceis; é durante as dificuldades que verdadeiramente sabemos quem são os nossos amigos. Com as nações é o mesmo, estão aqui 4362 nações, num ambiente difícil e exigente, onde todos os dias uns conhecem vitórias e outros, derrotas. Portugal também está. Somos portugueses, com muito orgulho. Quase a meio da nossa missão, não encontro ainda nenhuma razão para não seguirmos motivados. Feliz ano novo de 2010!
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Nota do autor: Actualmente são 49 as nações da coligação presentes no Afeganistão.
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17 de Janeiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. O Kuchi Kandak é um batalhão completamente diferente na nossa Divisão. A designação do batalhão é “Transition Kandak” ou também é referido por “Movement Kandak” mas para mim, gosto de lhe chamar o “Kuchi Kandak”, porque é um batalhão excluído, afastado, que ninguém entende bem e que aparentemente, ninguém o deseja ter sob seu comando. O nome Kuchi vem dos povos conhecidos como kuchis, nómadas, muito famosos no Afeganistão e nos países fronteiriços. São o povo cigano destas paragens. Têm uma presença constante em todo o território e geram muita desconfiança e manifestações de exclusão, de xenofobia, de incompreensão, de intolerância. À história oficial deste povo juntam-se centenas de lendas, mitos e afirmações que, na sua maioria, são fruto da tal incompreensão e intolerância que existem sempre nos cinco cantos dos mundo. Há mais de três milhões de kuchis no Afeganistão dos quais cerca de 60% ainda são perfeitamente nómadas. São tradicionalmente criadores de cabras e ovelhas e movimentam-se no Afeganistão para fazer os seus mercados. Antes das fronteiras com o Paquistão se fecharem as migrações anuais chegavam
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ao centro da Índia. Actualmente estão representados no governo e detêm 10 lugares no Parlamento. São considerados pelas Nações Unidas como dos grupos mais vulneráveis neste país. Entre os mitos sobre a vida destes povos, que recolhi nas minhas amenas cavaqueiras, apresento alguns: “Quando se casam decidem que apenas ou o homem ou a mulher trabalha e esta decisão é para a vida.” “Apenas tomam banho e lavam a roupa uma vez por mês.” “Vendem e traficam tudo e mais alguma coisa.” “[…]”. O Kuchi Kandak é um batalhão de transição. Aí são colocados temporariamente os militares que aguardam transporte aéreo para as suas províncias. Na sua maioria são militares que concluíram os seus contratos e desejam regressar a casa. Os deslocamentos dos militares têm de ser efectuados por avião, porque se forem pelas estradas do país, ao saberem que são/foram militares, constituem-se como um alvo privilegiado dos talibãs. No início do nosso trabalho nem tínhamos dado pela presença deste batalhão. Está localizado numa área afastada dentro da Divisão, tem um portão
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que abra para dentro da divisão e outro que dá directamente para o exterior, na sua maioria os militares aguardam a data de regresso trajando à civil (para não serem reconhecidos como soldados), pelo que, quando os visitámos a primeira vez, parecia de facto, um acampamento de kuchis. Sem entrar em muitos pormenores encontrámos um conjunto de casernas que faziam lembrar as instalações de um campo de concentração – numa única divisão com beliches apinhados dormiam cerca de 120 militares, cheiro intenso a lenha dos aquecedores (que aqueciam muito pouco) e três WC portáteis afastados do edifício (imaginem o estado). Na segunda área de alojamentos estava também um refeitório e uma cozinha – esta última, de facto miserável, praticamente a descoberto, a lenha, e sem sistema de esgotos. Tínhamos de fazer alguma coisa. Claro que a responsabilidade não é, de todo, nossa. O nosso trabalho é com o Estado-maior da Divisão e a “mentoria” dos batalhões está entregue a outras equipas que aqui já referi, denominadas ETT ou OMLT de Kandaks. Mas este Kuchi Kandak estava esquecido por tudo e por todos… e não conseguimos ficar indiferentes e fingir que nada víamos. Envolvemos toda a gente. Primeiro o comando da Divisão, que renitentemente e depois de receber uma indicação peremptória da hierarquia, lá começou a interessar-se mais pelo Kandak. Depois alertámos a ISAF (forças americanas), fizemos um breve relatório da situação em que se encontravam e pedimos para que se deslocassem equipas de reconhecimento de engenharia para ver o que se poderia fazer. Ainda estamos longe de ter transformado este Kandak num local digno para se viver, mas ainda que os militares estejam apenas aqui em transição, conseguimos importantes melhorias. Imediatamente veio um apoio, apesar de simbólico, do próprio Ministério da Defesa afegão: pratos, talheres, copos, tapetes, lenha para aquecimento e cozinha, algumas tendas para improvisar lugares de oração e arrecadações. Com o apoio internacional fizeram-se projectos urgentes e “because the Portuguese will help to control the development and ensure that the Kapital Division’s staff stay on top of the Kandak” (despacho do general que autorizou) conseguiram-se verbas significativas para a reabilitação dos alojamentos, sanitários, recolha de lixo e, prioridade das prioridades, uma cozinha nova. Está a ser mais uma pequena conquista, mais uma preocupação e uma responsabilidade. Talvez não faça parte das nossas responsabilidades directas, mas moralmente é impossível fingir não ver aqueles homens, apenas com a
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roupa que têm no corpo, com frio, a viver em condições sub-humanas, e nada fazer. Há dois meses não sabíamos se poderíamos ajudar, hoje sentimo-nos melhores por ter de facto tentado. Já que falamos de projectos gostaria de recordar que, nas primeiras cartas, descrevi as condições da clínica médica, do refeitório, da cozinha, das condições dos alojamentos, etc. e disse, na altura, que íamos tentar fazer tudo para conseguir uma melhoria dos mesmos. No início do nosso trabalho descobrimos que existiam projectos antigos para fazer melhorias na Divisão mas que estava tudo parado, congelado ou, simplesmente, tinha sido retirado. Tivemos de começar tudo de novo e, muito pacientemente, bater em todas as portas. Não é possível ter uma Divisão eficaz na segurança de Cabul se não houver um mínimo de condições para viver, trabalhar, treinar, etc.
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Pois, estas coisas das obras e projectos levam o seu tempo, mas podemos afirmar com orgulho que passados cerca de três meses as coisas estão de facto a andar. Desde o final de Dezembro estão a decorrer obras de fundo na reabilitação de um dos edifícios principais e está a ser construída de raiz uma nova bomba de combustíveis (onde os furtos e o descontrolo têm sido uma constante…). Temos a garantia de que os alojamentos vão ficar todos com aquecimento (cerca de 25% estavam sem aquecimento). As obras na clínica vão começar em breve, e para já foi colocada água, electricidade, e a ambulância já está 100% operacional e equipada. Aguarda-se também para breve o início da construção de uma nova cozinha [a actual (ver na foto) ainda é a lenha]. Em resumo, mais de uma dúzia de projectos estão no bom caminho. Claro que não fomos só nós que o conseguimos, é um trabalho de equipa entre as várias forças internacionais e o Estado-maior da Divisão. Mas não tenho dúvidas que foi o nosso empurrão, persistência, coordenação e acompanhamento que levaram ao andamento destes projectos. O desastre humano do Haiti tocou-nos a todos63. Como já tive oportunidade de referir estive em 2005 na operação NATO de ajuda ao terramoto do Paquistão na região de Caxemira, nos Himalaias. Foi uma experiência “para a vida” e ao ver as repetidas imagens na televisão do Haiti, recordo as vítimas soterradas que continuámos a descobrir nas semanas seguintes ao ocorrido, o cheiro nauseabundo em todas as vilas destruídas, e a pior recordação de todas, logo após a chegada ao terreno, o cheiro da gangrena no hospital de campanha canadiano. No Paquistão a grande preocupação era preparar o Inverno, arranjar alojamentos para os milhões de desalojados numa zona de temperaturas muito baixas; no Haiti o problema é o calor sufocante. No Paquistão a atenção dos media começou a desaparecer rapidamente e a ajuda foi diminuindo, no Haiti parece que a atenção dos media se vai manter alta, devido à proximidade dos EUA, por ser numa capital, assim espero. Nota de Armando Marques Guedes: Como é bem sabido, o Haiti foi flagelado por um terramoto de nível 7 na escala de Richter, a meio da tarde de terça-feira, no dia 12 de Janeiro de 2010. Seguiram-se-lhe mais de 50 réplicas de alta intensidade nos dias seguintes, com mais de três milhões de pessoas severamente afectadas. O epicentro teve lugar a umas escassas dezenas de quilómetros da capital Port-au-Prince. As estimativas quanto ao número de mortos variam entre 90 000 casualidades e um milhão e meio. A cobertura mediática destes terríveis acontecimentos tornou a catástrofe numa questão virtualmente sentida a nível global. 63
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Situações distintas para problemas parecidos, contudo a solução passou nos dois casos pela ajuda militar. Não foi e não será esta ajuda a mais importante, mas tanto num caso como noutro foi decisiva. Porque, embora não tenhamos os meios mais apropriados para lidar com este tipo de operações, a verdade é que temos disponibilidade quase imediata de meios humanos e materiais. E temos organização, disciplina e uma elevada capacidade de comando e controlo. Claro está, temos também a capacidade de ajudar a restabelecer a segurança. É bom saber que há cada vez mais uma aproximação integrada da utilização dos meios. Afinal os meios pertencem aos Estados e os Estados somos todos nós. Não faz qualquer sentido ainda haver as “quintas” e os “feudos” que compartimentam o uso dos meios e a sua eficaz complementaridade. Seja entre forças de segurança e Forças Armadas, ou bombeiros, médicos, militares, técnicos, organizações governamentais e não-governamentais, etc. Foi bom ver que Portugal respondeu também com esta integração de meios no Haiti, um C-130 com a AMI (ONG) e a Protecção Civil64. É assim que tem de ser. É assim que estamos a trabalhar no Afeganistão, integrados com a polícia, com os serviços de segurança, em cooperação com as Organizações não Governamentais e Organizações Governamentais, etc. Da cooperação nasce o entendimento, mantêm-se algumas rivalidades que, por vezes, animam um melhor desempenho, e obtém-se uma muito maior eficácia, racionaliza-se o uso dos recursos, poupa-se dinheiro e aumenta-se a produtividade. O que também todos sabemos é que o trabalho cooperativo dá muito mais trabalho e, inerentemente, obriga a muitos compromissos e flexibilidade, mas no final ficamos todos a ganhar e, acima de tudo, aqueles para quem nos dedicamos, ficam muito melhor servidos. A isso chama-se cumprir bem a missão. Seguimos motivados.
Nota de Armando Marques Guedes: A AMI (Assistência Médica Internacional) é uma Organização não Governamental portuguesa, privada, independente, apolítica e sem fins lucrativos. Desde a sua fundação, a 5 de Dezembro de 1984, pelo médico cirurgião Fernando Nobre, um urologista antes ligado aos Médecins Sans Frontiéres de Bernard Kouchner, a AMI assumiu-se como “uma organização humanitária inovadora em Portugal, destinada a intervir rapidamente em situações de crise e emergência e a combater o subdesenvolvimento, a fome, a pobreza, a exclusão social e as sequelas de guerra em qualquer parte do Mundo”. A AMI tem sido uma companheira constante das missões portuguesas no exterior, embora delas seja inteiramente independente. 64
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21 de Janeiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. No passado dia 18 de Janeiro houve mais um ataque em Cabul. Foi o que se designa por ataque coordenado complexo65 e que envolveu entre 15 a 20 insurgentes. Visavam fundamentalmente o Palácio Presidencial, onde decorria Nota de Armando Marques Guedes: Talvez o mais impressionante “ataque coordenado complexo” que porventura conheço tenha sido aquele que ocorreu em Bagdade no Verão de 2005. O dia 18 de Agosto de 2005, pelo menos em Bagdade, foi doloroso. Num bairro xiíta do leste da capital iraquiana, um carro-bomba conduzido por um suicida explodiu perto de uma estação da polícia, mesmo em frente de uma paragem de autocarro. A hora era de ponta. Dez minutos mais tarde, quando uma multidão se juntou perto do posto policial para observar a devastação e comentar os esforços frenéticos e desesperados da ajuda civil e militar de emergência que acorreu ao local, um segundo carro pilotado por um bombista suicida entrou pela estação adentro – e explodiu por sua vez. A carnificina daí resultante foi horrenda. O ataque não tinha, porém, acabado. Uma vintena de minutos mais tarde, quando as vítimas dos dois primeiros rebentamentos foram transportadas para o desde há muito tristemente célebre hospital de Kindi e familiares e amigos aflitos convergiram para a porta, um terceiro carro-bomba, ao que parece já lá estacionado há algum tempo, estoirou junto à entrada. Escuso-me de entrar em pormenores. Aproveitando a confusão e o afluxo de forças de segurança ao local, vários outros ataques foram perpetrados nesse mesmo dia noutros lugares da cidade. 65
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a cerimónia de tomada de posse dos novos ministros, a zona ministerial da capital e um centro comercial bem conhecido em Cabul. Não obtiveram sucesso nas zonas governamentais mas conseguiram um efeito significativo ao incendiar um centro comercial, imagens que passaram no mundo inteiro, inclusive! Durante alguns minutos, em Portugal. A falha mais evidente prendeu-se com a ineficaz prevenção deste ataque. Embora existissem alguns indícios não se alertou em tempo da probabilidade de ocorrência, e assim mais de uma dezena de insurgentes conseguiram passar pela apertada malha de segurança ao redor e dentro de Cabul para efectuar um ataque com bastantes explosivos, armas e munições. Embora os insurgentes não conseguissem levar viaturas carregadas de explosivos até aos alvos pretendidos, o que lhes teria permitido maiores efeitos, foi no entanto suficientemente grave para chamar a atenção em todo o mundo. Mesmo que as baixas não tenham sido muitas, as imagens do edifício a arder e o combate no centro da cidade permitiu a notoriedade que os insurgentes, neste caso, os talibãs, desejavam. Isto foi o que de mau aconteceu mas há sempre dois lados da mesma moeda. A reacção à acção, maioritariamente conduzida pela Divisão que estamos a “mentorar”, foi bastante eficaz e rápida. Os militares que apareceram na televisão a combater pertencem à nossa Divisão. Como estávamos na Divisão na altura do atentado vou contar a “inside” história omitindo, por razões que penso que entendem, pormenores de índole operacional e táctico. Estava na altura a regressar de mais uma visita ao Kuchi Kandak, para ver o início das obras, quando ouvimos claramente uma explosão e de imediato visDe um ponto de vista táctico-organizacional, há dois traços distintivos particularmente edificantes nesta história. Em primeiro lugar, note-se, um enorme passo foi dado, em relação ao que até então tinham sido, em Bagdade e no resto do Iraque, resultados avulsos e largamente independentes uns dos outros: os atacantes obviamente dedicaram um esforço substancial ao planeamento da operação, e designadamente no que diz respeito à antecipação dos lugares onde multidões se iriam formar. Os feddayyin que gizaram a operação, claramente não pensaram apenas num acontecimento discreto, mas congeminaram antes o encadeamento de uma série de eventos ligados uns aos outros, e entrosados de tal modo que pudessem, logo à partida, ter algum controlo sobre os resultados finais presumidos por que ansiavam. O efeito destrutivo foi, por isso mesmo, exponencial, e muitíssimo maior do que teria sido se tivesse havido um só acontecimento – ou se tivessem ocorrido uma série de acções avulsas, seguidas mas desligadas umas das outras. Criaram-se sinergias. A eficácia deste tipo de ataque não pode, por conseguinte, senão ser medida a partir da mecânica “causal” de como a primeira explosão gerou uma segunda e depois ambas, por seu turno, desembocaram numa terceira, culminando num quase total controlo, de certa forma garantido ab initio, da definição do “campo de batalha”.
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lumbramos o fumo. Dirigimo-nos imediatamente para o centro de operações da Divisão (TOC – Tactical Operational Center que já aqui descrevi na carta n.º 17). Rapidamente soubemos o que estava a acontecer, os sistemas de alerta estavam a funcionar e a Quick Reaction Force da Divisão foi de imediato accionada. Em poucos minutos, a companhia que estava em alerta com mais de uma dúzia de viaturas blindadas, saiu para o local. Dentro da cidade de Cabul, quem tem a primeira responsabilidade de responder a incidentes, são a polícia e os serviços de segurança, mas as fragilidades da polícia para responder a este ataque complexo foram evidentes e o nosso conhecido chefe de Estado-maior da Divisão, o qual como sabem estou a “mentorar”, recebeu uma ordem para se deslocar para o local e comandar a acção. Nós ficámos no TOC a acompanhar a acção e aqui e ali fomos dando uma mãozinha. Primeiro “agarrámos” o comandante do batalhão a que pertencia a companhia, que estava aos berros ao emissor/receptor na estrada paralela à nossa divisão e levámo-lo para o TOC para aí dirigir os seus homens e manter-nos informados do que se ia passando. No TOC existem comunicações muito mais eficazes e não só ele ficou melhor servido como ainda o pessoal do TOC ficou a apoiar melhor a acção. Depois pedimos para se reforçar a ligação com a polícia e com os serviços de segurança. Assim, enviámos pessoal ao outro centro de operações que existe na Divisão, designado OCC-K (Operational Coordination Center-Kabul) onde estão os representantes das forças de segurança e mantivemos em aberto permanentes comunicações com todos. Por último, sugerimos um pedido de meios aéreos à ISAF66, que foi prontamente aceite pelo chefe do TOC e passado pouco tempo tínhamos o apoio aéreo no local. Aqui e ali, os vários mentores portugueses foram dando pequenas sugestões: para melhorar a segurança de outras áreas (nunca se sabe se outros ataques estão a ser planeados em conjunto com esse), para preparar reabastecimentos de gasóleo, munições, alimentação, e mais alguns detalhes que, como já expliquei, não poderei descrever. A reacção a este ataque ficou resolvida em menos de três horas, todos os insurgentes foram mortos ou capturados e as baixas entre o pessoal da Divisão foram mínimas (três feridos sem gravidade).
Nota do Autor: A ISAF também mandou uma QRF para o local para, se fosse necessário apoiar, reforçar a operação. Este é o conceito em vigor para Cabul, primeiro a polícia, depois o exército e só se estes não forem capazes então entram as forças da ISAF. No entanto, desde o início da operação, a ISAF apoiou com informações, reforço de segurança, disponibilidade de meios aéreos, etc. 66
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As coisas poderiam ter corrido melhor, mas, o que podemos afirmar com algum orgulho, é que se este ataque tivesse ocorrido há três meses a resposta não teria sido tão eficaz. As evoluções neste exército são necessariamente lentas, mas passo a passo, as coisas estão efectivamente a melhorar e como já tinha descrito, a nossa acção para pôr a funcionar eficazmente o TOC é uma das nossas primeiras prioridades. Portugal tem apoiado este nosso esforço com o envio de bastantes meios, fundamentais para um centro destes operar, desde as comunicações, a informática, os projectores até às cadeiras, mesas, etc. Assim vale a pena. Foi bom saber que o comandante das Forças Armadas afegãs elogiou no local o chefe de Estado-maior da Divisão pelo trabalho realizado; sabemos também que o Ministro da Defesa ficou satisfeito. Nós também ficámos satisfeitos. Mas ainda há muito, muito por fazer. Por isso nos reunimos com todos os que estiveram envolvidos naquilo que em Inglês de designa por “After Action Review” e que tem por finalidade identificar os problemas ocorridos, propor soluções imediatas e preparar novos estudos para problemas mais profundos. Foi feito e está a ser feito. De facto houve tanto a aprender e há tanto a melhorar mas, não tenho dúvidas, estamos no bom “longo” caminho. Embora esteja aqui como chefe de Estado-maior da OMLT KCD continuo nomeado como comandante do 2.º batalhão de Infantaria Mecanizado (2.º BIMec) da Brigada Mecanizada de Santa Margarida. Tenho estas funções desde Novembro de 2007 e por decisão superior mantenho-me com este cargo durante a minha missão no Afeganistão. Claro que estando aqui não posso comandar à distância o 2.º BIMec. Assim, teve por isso que ser o meu leal segundo comandante a assumir o comando do batalhão enquanto durar a missão. Tenho toda a confiança nele e na equipa que está na direcção desta excelente unidade do Exército português. O 2.º BIMec é um jovem batalhão com 14 anos de existência, mas tem dado provas de ser uma unidade de excelência do nosso Exército. Na sua curta história já conta com cinco missões no exterior e vamos em breve, em princípio, partir para mais uma missão no Kosovo67. Para mim tem sido
Nota de Armando Marques Guedes: A missão portuguesa no Kosovo constituiu um momento marcante na nossa projecção internacional de forças. A UNMIK, a missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo teve contornos inovadores. Sem querer ir além do que escrevi com Luís Elias em 2010, noto e sublinho que “a UNMIK foi criada pela
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uma honra comandar esta unidade. É um desafio muito exigente, com muitas tarefas e permanentes missões atribuídas, mas tenho tido todo o apoio necessário. Primeiro porque herdei a unidade em excelente forma, não podia ter corrido melhor a tomada de posse, do anterior grande comandante que deixou tudo pronto, de forma transparente com os problemas bem identificados e com uma Resolução 1244 (1999) de 10 de Junho do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Esta Resolução autorizou o Secretário-Geral da ONU a estabelecer no Kosovo uma administração interina provisória, dirigida pelas Nações Unidas. A UNMIK redundou numa missão complexa e multidimensional – na medida em que envolveu diversas componentes: militar, de polícia civil, de ajuda humanitária, de direitos humanos, de reforma do sistema judicial, de administração, entre outras, cobrindo assim um conjunto de áreas fundamentais para a (re) construção de instituições e para que fosse atingido um objectivo de longo prazo que consistia na convivência pacífica entre grupos étnicos num território pós-conflito marcado pela violência e pela incerteza do seu futuro político. Teve, para além de uma dimensão militar, uma vertente policial. Mais, esta foi a primeira missão em que a componente policial assumiu poderes executivos, pelo que os elementos policiais desempenham as suas funções armados. As funções desempenhadas pelos 71 polícias portugueses estiveram em grande medida relacionadas com a componente operacional da missão”. O padrão ir-se-ia repetir.
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unidade muito motivada, disciplinada e eficaz. Ainda por cima tive o privilégio de ficar com o seu segundo comandante por bastante tempo, que sendo também um oficial de excelência, facilitou imenso o início do meu comando. Tive um excelente segundo comandante para iniciar o meu comando, continuo com outro excelente segundo comandante para o terminar. Tenho acompanhado a boa prestação que o meu 2.º BIMec tem feito, “Eficácia e Prontidão”68, com imensa tranquilidade e confiança. Quando se recebe o trabalho de uma grande equipa e se continua a trabalhar com outra grande equipa, as coisas só podem correr bem. Penso que um comandante, e ao contrário do que muitos pensam, só confirma se faz bem o seu trabalho quando a sua ausência não é notada. Comandar é criar condições para que a unidade se desenvolva, tenha iniciativa, ganhe confiança 68
Nota do Autor: Lema do 2.º BIMec.
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e que nunca esteja dependente de um só militar ou alguns militares. Quando a máquina está bem oleada, a falta de algumas peças são prontamente substituídas sem que esta pare de funcionar. Com a excelente equipa que tenho na liderança do 2.º BIMec, embora sabendo que a minha ausência obriga a um esforço acrescido, sei que esta unidade continuará entre as primeiras do nosso exército. É de facto uma honra poder ainda intitular-me comandante do 2.º BIMec. E como aqui pertenço a outra excelente equipa, não tenho mesmo razões para me queixar da vida. Se Deus nos ajudar, chegarei bem ao fim de ambas as tarefas dentro de poucos meses, que mais pode um soldado pedir? Trabalhar entre os melhores, comandar entre as melhores unidades. Acreditem, não é vaidade, é orgulho, há tanto de bom no nosso exército e tantos passam tanto tempo a só ver o mal e a dizer mal de tudo e todos… Aqui em Cabul continuo fiel ao lema do 2.º BIMec: Eficácia e Prontidão!
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25 de Janeiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Hoje de manhã fomos convidados, o meu comandante e eu, para estarmos presentes numa pequena cerimónia de atribuição de recompensas pela operação realizada no dia 18 de Janeiro (descrita na última carta). Alguns militares receberam promoções, outros receberam relógios, louvores ou dinheiro e só ficaram por atribuir as recompensas aos feridos que ainda não tiveram alta. Todos os militares da Divisão estavam presentes e, depois de uma breve leitura sobre o sucesso da operação, foram chamados um a um para receber a recompensa. Os premiados apresentavam-se, recebiam o prémio das mãos de um dos generais ou coronéis mais antigos e, pormenor que gostei bastante, viravam-se para a formatura e gritavam bem alto: “Quero trabalhar pelo meu Afeganistão!” e todos aplaudiam. A presença de dois portugueses foi uma forma de nos distinguirem e também de agradecerem a nossa ajuda. Foi-nos pedido que fizéssemos a entrega de dois dos prémios. Foi uma honra. Uma cerimónia simples mas cheia de significado, os afegãos são por natureza generosos no reconhecimento do sucesso e exigentes na punição das falhas.
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Sentimos o pessoal motivado, vimos o orgulho nos olhos dos premiados, ouvimos as suas vozes bem alto. Há esperança. Sem dúvida. Saudade. Uma palavra portuguesa sem tradução para outras línguas. Quando estamos fora da família, principalmente quando estamos fora de Portugal e, ainda mais, se nos encontramos num ambiente difícil como aqui, sentimos saudade. Tudo o que sentimos estar em falta se valoriza mais, todos os momentos, sabores, memórias, experiências, locais, paisagens, tudo toma outro peso, talvez por vezes exagerado e, em alguns momentos, ansiado. Aqui ficamos um pouco mais Fado, Fátima, Futebol e… Família, Farturas, Filhoses, Figos (a fruta e o do futebol)… etc. Mas não quer dizer que passemos o nosso tempo a ouvir fado ou a tentar ver os jogos de futebol. Talvez até, pelo contrário, nos distanciemos um pouco mais das notícias e dos sabores da nossa terra, dos jogos de futebol, menos bacalhau, menos tinto, menos fado… afinal não são assim tão importantes – só a bica é que não pode faltar! O que verdadeiramente nos faz falta são esses momentos vividos em conjunto, não é
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de um prato de bacalhau que sentimos falta mas, antes, o de poder comer um bacalhau em nossa casa, com a família ou amigos, junto ao mar, ver o futebol na nossa televisão, em segurança junto dos nossos. Saudade é querer voltar. Saudade é pensar em tudo o que nos recorda a família e amigos, o que nos torna portugueses e querer sentir tudo isso ao mesmo tempo. Ouvir um fado ou comer uma posta de bacalhau permite o desencadear de uma memória, de um prazer, é o reavivar da saudade. Por vezes é bom mas nem sempre, a saudade deve ser servida em doses moderadas. Porque em excesso a saudade vira ansiedade e à medida que o tempo passa essa ansiedade pode-se transformar em obsessão. É bom recordar, mas não se pode desesperar. Tão importante é a saudade como é abraçar o que estamos a fazer, envolvermo-nos no nosso trabalho, perceber outra cultura, sentir os efeitos da nossa missão. Ambas em doses moderadas e equilibradas. Por isso é humano experimentar momentos de euforia, de alegria, de tristeza, de amargura, de tensão, de esperança, de desespero. Aqui passamos todos
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estes sentimentos de uma forma mais intensa, mas como estamos preparados para os viver, fazemo-lo com boas quantidades de sensatez e sabemos equilibrar/diferenciar cada sentimento e cada momento. Moderamos ambição e vaidade com paciência e humildade. Pessimismo e tristeza com realismo e trabalho. Vivemos a saudade com naturalidade, sem amargura, equilibrando com dedicação à missão, com algum espírito de entrega, com a crença que podemos ajudar. Tudo, sempre tudo, em doses moderadas. E o tempo, a distância, o ambiente exigente em que nos encontramos leva-nos, sem grandes reflexões, a dar valor ao que poucas vezes damos valor quando nos encontramos em casa. Porque aqui podemos fazer as comparações correctas. Aqui comparamos as nossas raízes com a realidade da vida do povo afegão, o nosso dia-a-dia com as 43 diferentes nações que aqui trabalham. Fora de Portugal não fazemos a tradicional asneira de só nos compararmos com aqueles que nunca seremos, aqui não queremos ser todos Cristiano Ronaldo, Bill Gates ou Brad Pitt. O choque da realidade faz-nos ver que temos muito mais do que pensávamos, que fazemos parte de uma minoria privilegiada que tem permanente acesso à segurança, saúde, casa, carro, comida, férias, roupas, televisões, etc. Aqui lembramo-nos que em Portugal vivemos num país que tem uma só língua, uma cultura, um povo, uma longa história e um futuro promissor. Quando estamos em Portugal a tendência é a de sempre pensar que caminhamos para o abismo, a fatalidade do nosso destino, o nosso fado! Não é verdade! Eu vivo num dos melhores países do mundo, entre as melhores pessoas, cheio de problemas e desafios, que “não se deixa governar e que não se sabe governar”69, mas é o meu país, carregadinho de mazelas, de mesquinhez, de mediocridade, de saloiice, de umbiguismo e a transbordar de talento, de espírito de iniciativa, de desenrascanço, de imaginação, de muito sentimento, muita entrega, imensa generosidade. Por isso somos grandes, sempre grandes, no que fizemos e queremos fazer, nas asneiras e nos feitos, na saudade e na entrega, no trabalho e na preguiça. É
Nota do Autor: Entre o século III a I (?) a. C., foi um general romano (não é claro quem seria, nuns casos refere-se Sertório, noutros Caio Júlio César) em carta endereçada ao imperador, aquando da conquista da Península Ibérica pelos romanos, que disse a célebre frase “Há, na parte mais ocidental da Ibéria, um povo muito estranho: não se governa nem se deixa governar”. 69
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sempre em grande! Por isso, aqui, se queremos estar bem, e na verdade estamos todos bem, é porque servimos tudo em doses moderadas. Sabe bem ouvir de vez em quando um bom fado, beber um bom tinto, mas também é bom sentir o clima de uma mesquita, o arroz de um guisado, o chá verde de todos os dias, o sorriso de um soldado. Os Portugueses são uns sentimentalões, e depois? Sentir é estar vivo, e nada melhor do que verdadeiramente sentir o que vale a pena, sentir fortemente a falta dos nossos e a força do que fazemos, tudo, sempre tudo, em doses moderadas mas em cada momento, de forma intensa, em grande, à maneira portuguesa! Seguimos com imensa saudade e motivação.
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30 de Janeiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Em 2006 e 2007 desloquei-me à Etiópia, mais propriamente à capital, Addis Abeba, no âmbito da missão da NATO em apoio da União Africana no Darfur, no Sudão70. Foram duas viagens distintas, na primeira viajei com o meu bom amigo Hasan, diplomata e Political Advisor do Joint Command Lisbon com o objectivo de garantirmos a implementação de acordos pré-estabelecidos. Na segunda ida acompanhei o comandante, o almirante Stufflebeem (comandante do Joint Command Lisbon e também um bom amigo: nestas andanças militares em sítios e missões exigentes criam-se laços fortes para a vida, independentemente do posto, nação ou ramo das forças armadas71) para implementar a coordenação futura entre todos os países e as organizações presentes nesta operação. Nota de Armando Marques Guedes: A alusão é à missão da NATO que foi levada a cabo, entre 2006 e 2007,em apoio a uma União Africana em apuros no Darfur, no Sudão. 71 Nota do Autor: Em Outubro de 2010 fui, no âmbito de um projecto de investigação da Academia Militar (esta Academia, como uma excelente universidade nacional que é, tem desenvolvido importantes projectos de investigação que muito têm contribuído para o aumento do conhecimento científico, especialmente na área da segurança e defesa, para 70
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Nesse ano de 2006 já tinha perdido muita da ingenuidade do início da minha carreira e estava preparado para entrar na arena diplomática e “lutar” pelos interesses de uma missão que sabíamos importante para a União Africana, para a NATO, para o nosso Joint Command Lisbon e, acima de tudo, para o martirizado povo do Darfur. Bom… pensava eu que estava preparado… a real politik naquele fim do mundo fez-me mudar de opinião. Descobri então que o mundo ainda se encontra numa fase de mudança nas atitudes e na política. Já deveríamos ter ultrapassado a barreira do simples Estado nação, a tal antiga ordem mundial em que o Estado vem sempre primeiro: “Os interesses nacionais estão a acima de tudo!”. Mas não. Para muita gente, muitas nações, muitos de todos os quadrantes, ainda é o Estado acima de tudo! Mesmo que o seu Estado assim não pense… E torna-se tudo cinzento, impossível, maquiavélico! Portugal) a Washington, mais concretamente aos arquivos Nacionais dos EUA e durante esses poucos dias tive oportunidade de me reencontrar com dois dos meus melhores amigos: o coronel do Exército dos EUA Ned Fish e o almirante da Marinha dos EUA, John Stufflebeem. Como já referi anteriormente o coronel Fish (tantos momentos que partilhámos, tantos momentos entre as nossas famílias, o muitíssimo que aprendi com ele na área das informações, bom, daria para escrever mais uma carta…). O Ned estava à minha espera no aeroporto de Washington e, passados uns dias, fui jantar com ele e a sua família – já não nos encontrávamos desde 2005 (embora sempre tenhamos mantido um contacto permanente via telefone e e-mail). Quando ele esteve no Iraque em 2006-07 estive sempre ao seu lado, do lado de cá do e-mail, do telefone e quando estive no Afeganistão foi ele que esteve sempre do lado de lá – prometemos a nós próprios que haveríamos de nos juntar e beber uma grande cerveja após as respectivas missões. Foi um reencontro emotivo, natural e intenso, duas pessoas com passados, culturas e vivências tão diferentes e, no entanto, tão próximas, o que nos une? O respeito, as famílias, os valores, a verdadeira camaradagem. Do almirante Stufflebeem, hoje reformado mas ainda com imensa actividade, aprendi imenso. Um homem brilhante com uma visão fantástica e uma inteligência muito acima da média. Tive o privilégio de partilhar com ele, mais precisamente ao seu serviço, muitos momentos de tensão em lugares tão distintos como o Paquistão ou a Etiópia, nas muitas reuniões em Bruxelas, Mons, Paris, Madrid, Brunsum, Norfolk e nasceu entre ambos, além das tais diferenças culturais, com uma diferença significativa na idade e no posto, uma relação de grande confiança, de mútuo respeito, de cumplicidade e não tenho dúvidas de amizade. Assim, o almirante foi buscar-me ao hotel em Washington e levou-me a jantar com a família na sua casa nos arredores da capital dos EUA. O reconhecimento daquilo que fazemos ou como nos comportamos pode não ser imediato, como muitos sempre anseiam, vem a prestações, muito mais saborosas, com muito mais significado, quando o reconhecimento é, assim, genuíno e inteiramente não formal, sabe bem ser soldado.
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Aprendi muito nessas duas viagens. E logo tinha de ser em África, o continente do planeta que mais necessita de coordenação e ajuda internacional, de forma integrada, direccionada. Pois ali, infelizmente para os africanos e para todos nós, é onde tudo se joga e os interesses de cada um estão “explicitamente” em permanente conflito. Nós representávamos o parceiro mais neutral possível, como na NATO só se decide por unanimidade, tudo o que fizéssemos no Darfur fora previamente sancionado pelas 26 nações que a constituem, incluindo aquelas que geralmente confrontam os seus interesses em África: EUA, Alemanha, França, Reino Unido… Esta foi a mensagem que fizemos questão de transmitir em todo lado onde íamos, em todas as reuniões, com os vários países, organizações, entidades – “TODOS os países da NATO estão de acordo com o que queremos fazer, é UNÂNIME!” Repetir! Repetir! Até nos ouvirem, nos aceitarem… e depois mãos à obra, lá conseguimos começar, de facto, a trazer ajuda para o terreno! Na segunda das viagens, o senhor almirante organizou um almoço com todos os embaixadores da NATO presentes em Addis Abeba e reforçou, repetiu esta mensagem, e fomos finalmente ouvidos. Mas foi muito difícil passar a barreira dos cinzentões, que vêem conspirações em todos os lados, e quando tentamos explicar objectivos simples põem aquela mão no queixo, o sorrisinho irónico e fazem extraordinárias afirmações boçais (baixinho, olhando para todos os lados): “Até parece que eu não sei que os […] estão por detrás disto… já cá ando há muito tempo… sei bem o que eles querem” e depois não há volta a dar. Ficam convencidos da sua conspiraçãozinha e vão a correr relatar para o seu país a nova ofensiva secreta de… Ainda é assim, penso que lentamente estará a mudar, mas muito lentamente. A missão da NATO em África ainda continua, discreta, pequena, mas muito eficaz. Por teimosia, muita teimosia lá arranjámos o nosso espaço para poder trabalhar e por lá continuamos a ajudar, e temo-lo feito, ainda que modestamente, bastante bem. Devo dizer-vos, que me encontrava entre os maiores teimosos, porque sempre acreditei na lógica desta missão, estava convicto da importância da NATO naquelas paragens e achava que era uma excelente forma de rentabilizar os recursos de um comando operacional NATO colocado em Lisboa, entre os portugueses que, como ninguém, entendem bem África. Era e é uma natural fórmula de sucesso. Felizmente, continua a ser. Pois, aqui no Afeganistão, neste outro lado do mundo, encontro por vezes as mesmas personagens, os cinzentões que pensam Estado antes de pensarem nas pessoas, que não perceberam que o mundo está mudar.
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Os desafios são cada vez mais globais, defender os interesses do Estado é acima de tudo representar bem o país na contribuição global para um problema global. É ser um parceiro, um contribuinte e não um jogador ambicioso para ganhar o máximo possível. O mundo necessita de sinergia. Defender os interesses nacionais é fundamental, mas com a noção clara, que hoje se defendem quase sempre melhor, numa perspectiva cooperativa, organizada e direccionada. Nas reuniões em que participamos, nas operações, nos grupos de trabalho, no planeamento, encontramo-nos com as mais variadas pessoas, entre as 43 nações aqui presentes. Há de tudo. Há os cinzentões, os que se estão nas tintas e apenas contam o tempo para regressarem a casa, os que nada pensam e limitam-se a obedecer a instruções do seu Estado, os que se interessam, os que lutam e os que fazem toda a diferença. Na sua maioria são os que se interessam e lutam que prevalecem mas, por vezes, basta um cinzentão para estragar todo
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um planeamento, uma acção ou, como em tantas vezes pela falta de vontade, fazer perder uma oportunidade. Aqui, como em qualquer outro lugar, vamos conhecendo melhor com quem podemos contar e aqueles que devemos evitar, mas nem sempre é possível escolher, e, engolindo alguns sapos, lá tentamos trabalhar com tudo e com todos. Tem de ser assim. Há interesses acima dos interesses dos Estados, dos nossos e dos dos outros. O que não podemos é ter a ingenuidade de pensar que é sempre assim. Para cada caso uma leitura, para cada situação uma visão, para cada acção uma estratégia. Penso que neste campo temos em Portugal brilhantes diplomatas que sabem ver essa diferença, destrinçar os momentos da luta contra interesses de outros Estados dos momentos da estratégia cooperativa. Para quem gosta de história sabe que a eficácia e a competência dos nossos diplomatas sempre foram fundamentais nos sucessos de Portugal.
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Na Etiópia tive oportunidade de aprender ainda outra grande lição. Não saí de lá sem conhecer a famosa Igreja Copta. Lá, como aqui no Afeganistão, foi importante conhecer outra religião, essa tão próxima da nossa e antiga, mesmo anterior ao cristianismo em muitas partes da Europa. A Igreja Ortodoxa Copta, que de acordo com a tradição, foi estabelecida pelo apóstolo São Marcos no Egipto em meados do século I (aproximadamente no ano 60), é uma Igreja cristã independente da Igreja Ortodoxa e da Igreja Católica. Nos primórdios da Igreja Ortodoxa Copta, a grande maioria dos cristãos etíopes estavam sob a jurisdição do Papa da Igreja Copta. No caso da Etiópia, desde o século IV até 1959, o Papa de Alexandria, como Patriarca de toda a África, sempre indicou um egípcio (copta) para ser abune, ou arcebispo da Igreja etíope. Porém, em 1959, a Igreja Ortodoxa etíope (que tem actualmente 40 a 45 milhões de fiéis) obteve finalmente o direito de ter o seu próprio patriarca, tornando-se assim independente. A invasão islâmica, no século VII, deixou a Etiópia isolada do mundo bizantino e ligada só à Alexandria. No século XVII, houve uma aproximação com a Igreja Romana, graças à ajuda militar dos portugueses. Lá está Portugal a aparecer um pouco por todo o mundo, neste caso, na demanda de Preste João72. Outra aventura fantástica do nosso pequeno/grande país que vale bem a pena conhecer! No século XX a Etiópia (Abissínia) foi dominada pela Itália e libertada pelos ingleses, em 1941. A religião copta manteve-se como Igreja oficial até 1974, quando se separou a Igreja do Estado. Em síntese, a Igreja Copta, uma das mais antigas Igrejas do mundo, continua bem viva na Etiópia e eu não podia deixar de visitar um dos seus principais templos em Addis, a Catedral de São Jorge (na primeira foto estamos junto à estátua do arcebispo abune Petros que foi fuzilado naquele local pelos Italianos em 1936)73. Nota do Autor: Sobre este tema recomendo o interessantíssimo “velhinho” livro escrito sobre esta busca tão portuguesa, por Elaine Sanceau: Em demanda do Preste João, Barcelos, Ed. Civilização, 1983 e mais recentemente, uma obra obrigatória: Campanha da Etiópia (1541-1543) 400 Portugueses em Socorro do Preste João, de Luís Costa e Sousa, Editora Tribuna da História, 2008. 73 Nota de Armando Marques Guedes: A estátua do bispo (o termo utilizado na Igreja Ortodoxa etíope para esta função na hierarquia é o de “abune”) Petros que foi fuzilado naquele local pelos italianos em 1936. Um pouco de contexto põe em relevo o que estava 72
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Contudo recordo este episódio por uma razão muito simples. São séculos de sã convivência entre cristãos e muçulmanos. Na Etiópia, o islamismo é a segunda religião e representa cerca de 35 a 40% da população. Foi na Etiópia que um grupo de seguidores de Maomé encontrou refúgio e segurança em 615. É um país de misérias, guerras, fome, mas também de encontro de religiões, de tolerância. Nunca mais esquecerei a visita à catedral, entusiasticamente guiada pelo padre responsável pela mesma. A amizade com que nos falou, a mim, católico e ao Hasan, muçulmano. Foi um daqueles momentos mágicos. Procurar o encontro é sempre possível, o que é preciso é tentar. Na semana passada, em mais uma das aulas de religião, o mullah explicava porque o extremismo religioso é contra a religião muçulmana. Referiu o perigo das interpretações abusivas. Disse que os extremistas seriam condenados por Alá por irem contra o Islão. Extremistas sempre existiram em todas as religiões. Todos podemos aprender com todos. “Quanto mais sei mais sei que nada sei”, mas ouvindo, sinto que percebo cada vez melhor, mesmo que nada saiba, querer aprender, ver, sentir e ouvir é o primeiro passo para uma sabedoria de vida, que sabe bem apreciar. A única coisa que sempre lamento em algumas destas fantásticas experiências que tenho tido é o de não poder partilhar no local com quem mais queria. Quem me dera poder estar com a minha família em tantos destes locais e vivermos juntos algumas destas experiências, sentirmos as paisagens, os sons, os cheiros. É sempre uma sensação de vazio e é o paradoxo da nossa vida militar, que acabam por retirar um pouco do momento que queríamos que fosse único, mas não o é, se não o pudermos partilhar com quem mais amamos e, no enem causa. O bispo ortodoxo Petros foi fuzilado em Addis Ababa, na Etiópia, no local representado na fotografia a 29 de Julho de 1936, pelas tropas enviadas por Benito Mussolini. O abune Petros tornou-se numa importante fonte de conforto e apoio espiritual para os líderes da resistência local armada contra as tropas italianas fascistas. Uma vez capturado, foi-lhe dado a escolher entre um retractar-se seguido de um apelo ao fim da resistência, ou a morte. Face à sua recusa, foi “julgado” por um tribunal ad hoc criado rapidamente para o efeito e sumariamente executado no lugar onde foi construído este monumento. As consequências foram de algum modo as inversas das esperadas: ao local começaram de imediato a confluir peregrinos etíopes, tendo, com isso, as populações ganho novo alento na sua luta contra os invasores italianos. Ainda hoje, oito décadas volvidas, a estátua é um destino de peregrinações da população etíope.
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tanto, também não os queríamos connosco quando a segurança está em jogo. É um compromisso difícil entre segurança e oportunidade, estou certo que se a minha família estivesse comigo em alguns destes momentos também não desfrutaria nem um minuto, daí o paradoxo, é o preço que se paga. Mas compensamos estes momentos vivendo intensamente todos os outros em que estamos juntos. E, através de cartas, de relatos, de fotografias, de descrições tentamos levar o máximo que sentimos junto dos nossos. E isso dá outro sentido, obriga-nos a pensar mais e tem a enorme vantagem de nos levar a recordar. Como o estou a fazer agora. Mais informados, seguimos motivados.
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6 de Fevereiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Recebemos a informação no sábado. Havia uma elevada concentração de insurgentes na região de Pahgman. Eram dois grupos distintos num total de 24 insurgentes. Planeavam, entre outras acções, um ataque complexo a Cabul. Tínhamos de agir. Propusemos então ao oficial de operações da Divisão que se planeasse uma operação, foi com satisfação que descobrimos que já tinham pensado nisso. Faltava dar um empurrãozinho, o que imediatamente fizemos junto do chefe de Estado-maior. Na segunda-feira o plano foi levado à aprovação no Ministério da Defesa, enquanto a aprovação não vinha continuámos as coordenações. Os nossos mentores para as Operações e Planos prepararam um briefing sobre a operação para ser explicado aos participantes. Seria uma operação conjunta, liderada pela Divisão com a participação da polícia, dos serviços de segurança, elementos femininos (para poder revistar mulheres – como sabem os homens não o podem fazer) e algumas forças da ISAF (meios aéreos e equipas de desactivação de explosivos). 74
Nota do Autor: Esta é a terceira carta que só foi enviada no final da missão.
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A aprovação foi confirmada na terça-feira. Por motivos evidentes de segurança, foram deliberadamente escondidos pormenores sobre a exacta localização da operação, itinerários a utilizar e a data e hora para executar a operação. Todos estes dados só seriam conhecidos em cima do início da operação. Quarta-feira à tarde foi divulgado que a operação teria início na madrugada seguinte. A nós foi pedido para estarmos na Divisão às três da manhã do dia 4 de Fevereiro de 2010. Já tínhamos decidido participar, faltava agora acertar “o como”. Sempre que temos uma grande operação no exterior é preciso ponderar muito bem os riscos em causa. Sabíamos que a operação seria a cerca de 40 km de Cabul, numa área naturalmente perigosa. A decisão foi a de dividir a nossa OMLT em três grupos: o primeiro iria junto com o Posto de Comando Avançado da Divisão, não excederíamos o número de três mentores e a respectiva Force Protection (ou seja duas viatu-
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ras Hummvee e seis militares comandos ou fuzileiros); o segundo grupo iria para o Centro de Operações da Divisão (TOC) e para o Centro de Operações Conjuntas (OCC-K também na Divisão e que inclui os representantes de todas as forças policiais, serviços de segurança, ISAF, etc.); um terceiro grupo ficaria na nossa base em Kabul International Airport (KAIA) para garantir comunicações em permanência e accionar a emergência se tal fosse necessário (emergência médica ou um reforço da Force Protection vindo da outra base – Camp Warehouse – onde se encontram os restantes portugueses). Como devem calcular não poderei falar de todos os pormenores, mas de uma forma genérica foi este o planeamento. O nosso comandante informou Portugal e obteve a anuência para participar nesta importante missão. Desta vez foi decidido que eu ficaria no segundo grupo, junto do Centro de Operações da Divisão. Confesso que queria ir para a frente, porque lá estaria o chefe de Estado-maior, mas, como quem efectivamente iria comandar
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a operação seria o oficial de Operações da Divisão, faria mais sentido irem os nossos mentores das operações (dois oficiais e um sargento). O nosso comandante argumentou depois que, na sua decisão, estava também o facto de eu já ter estado em várias operações… há que dividir o risco. Bom, embora quisesse estar na frente, penso que se fosse eu o comandante também teria decidido assim. Na tarde de quarta-feira apresentámos a nossa ordem preparatória e às 21h30 fizemos as coordenações finais. Depois foi preparar a comida, comunicações, combustível, armamento, etc. Partimos às 2h30 da madrugada, como devem calcular o descanso foi muito pouco e, confesso, os nervos eram muitos. Às três estávamos na Divisão. A força era grande: mais de 1000 os efectivos envolvidos, 150 viaturas e helicópteros, entre forças do exército, da polícia, dos serviços de segurança, forças da ISAF e… nós.
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É sempre impressionante ver centenas de viaturas com os faróis ligados, os motores em marcha, aguardando a ordem de partida. Só nesse momento foi divulgada a localização exacta da operação – a surpresa é fundamental!75 Às 3h30 partiram as forças com os mentores portugueses para a operação, e nós fomos para o TOC e OCC-K acompanhar e coordenar a operação. Às cinco as forças estavam a rodear as cerca de sete povoações em que se escondiam os insurgentes e deu-se a ordem para se iniciarem as buscas casa a casa. A operação demorou até às 13h30. Os resultados não poderiam ser melhores: sete insurgentes capturados, dos quais quatro eram líderes de células, também foram encontradas armas, granadas, explosivos, fardas da polícia, etc. Entre os insurgentes foi, por coinci-
Nota de Armando Marques Guedes: A surpresa e a não-detecção. Enquanto a surpresa amplia o impacto de uma acção militar de ataque, o trabalho discreto e/ou encobertos são também um meio privilegiado de defesa – ao manter silêncio e recato sobre o planeado, logra-se muitas vezes evitar que as forças sejam esperadas por inimigos apostados em utilizar, eles próprios, a surpresa. 75
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dência, capturado um bombista suicida que se encontrava a passar por aquela área em direcção a Cabul para se fazer explodir. Toda esta acção decorreu sem que fosse disparado um tiro, sem qualquer violência sobre as populações, foi mesmo um sucesso. Evitou-se assim muito sangue derramado em Cabul. Terminada a operação, começava, para nós, uma das fases mais perigosas: o regresso à Divisão. Sabemos que estas operações atraem muito a atenção dos insurgentes e seria muito provável que os caminhos de regresso estivessem armadilhados76. Acompanhámos junto às comunicações todo o regresso à Divisão. Finalmente, cerca das três da tarde, os militares regressaram à Divisão. Juntámo-nos a eles e regressámos juntos à nossa base. Às quatro da tarde estávamos todos de volta à base, respirámos fundo e fomos descansar um pouco. Afinal não dormíamos há mais de 36 horas… Um descanso curto porque ainda faltava fazer os relatórios para Portugal e para a ISAF. Finalmente caí na Nota de Armando Marques Guedes: Designadamente por snipers, ou com minas anti-carro ou anti-tanque e às já referidas road-side bombs. 76
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cama às 11 da noite. Tinha corrido tudo bem, aliás, tinha corrido tudo muito bem! Os militares da nossa Divisão estavam satisfeitos, os seus superiores hierárquicos e os nossos também. Este domingo, tal como tínhamos prometido antes da operação, eu e o comandante vamos à Missa (está bem, não deveria ser assim… devíamos ir sempre à missa, mas quando tememos pela vida dos nossos… olhem, a verdade é esta e não a deixo de contar).
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7 de Fevereiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. No passado dia 28 de Janeiro realizou-se a conferência de Londres para se avaliar o futuro do Afeganistão. No final, a mensagem da comunidade internacional pode ser resumida a: reforçar a liderança do governo afegão; dar capacidades e recursos às forças de segurança e instituições afegãs; amplo programa de reconciliação nacional e reforço da colaboração com os países vizinhos. Nada teve mais impacto imediato entre os afegãos que o anúncio de uma possível reconciliação nacional, nomeadamente com os “talibãs moderados”. É aqui o tema de todas as conversas, é a notícia principal de todos os noticiários e jornais77. Para ajudar a reconciliação seriam disponibilizados importantes recursos financeiros para reintegrar os adversários (ou seja, pagar para entregar as arNota de Armando Marques Guedes: O conceito de “talibã moderado” tornou a estar em voga no último ano, embora seja discutível. Tal como no tempo de Massoud, aquilo que está em causa é a urgência de lograr uma aproximação pragmática dos vários agrupamentos políticos e milícias em contenda, com vista a garantir hipóteses para a tão almejada “reconciliação nacional” que permita uma saída das tropas e outras forças estrangeiras do território afegão. 77
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mas) numa vida normal e em paz. Este ponto ainda gerou mais discussão entre os afegãos. Como dizia um dos intérpretes: “Ainda acorda um de manhã a dizer que é talibã, vai pedir o dinheirinho para deixar de combater e no final do dia volta a fazer a sua vida normal”. Para muitos surge finalmente uma oportunidade de paz, mas para outros é o abdicar de uma luta de décadas sem justificar o sangue derramado e sem garantias que os mesmos não voltem ao combate. Quem terá razão? Não sei responder, mas acredito que tudo deve ser tentado para acabar esta guerra, e procurar negociações e reconciliações, parece-me um caminho acertado. Mas negociar com talibãs tem muitos oponentes, entre eles, as mulheres, que têm medo de perder os poucos direitos entretanto adquiridos, as ligas de direitos humanos, pelo possível endurecimento do sistema de justiça e os pashtuns, de um lado e outro da fronteira do Afeganistão com o Paquistão, que receiam ser tratados de forma diferente. Os pashtuns estão divididos por mais uma das muitas linhas artificiais fronteiriças inventadas nos finais do século XIX e princípios do século XX: na fronteira do Afeganistão com o Paquistão, denominada Linha Durand e que, pela importância que tem para entendermos o que se passa no Afeganistão, passo brevemente a descrever:
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Depois de se chegar a um impasse em duas das guerras entre britânicos e afegãos (ver Carta n.º 14), os britânicos forçaram a 12 de Novembro de 1893 o Emir Abdur Rahman Khan, do Afeganistão, a um acordo para delimitar a fronteira entre o que era então o Afeganistão e a Índia britânica. A Linha Durand recebeu o nome de Sir Mortimer Durand, secretário dos Negócios Estrangeiros. Excluindo a parte de deserto, 84% da linha segue por pontos notáveis do relevo (rios ou tergos). O traçado preciso dos restantes 16% é composto por segmentos em linha recta e foi demarcado em 1894-95, estando também nos mapas à escala 1:50 000 feitos pelos soviéticos depois da invasão do Afeganistão em 1980. A fronteira é constantemente atravessada pelos talibãs que têm bases dos dois lados e ambos os países reclamam áreas do outro lado como sendo deles… um problema. Num dos países mais pobres de mundo, em guerra nos últimos 30 anos, com enorme iliteracia, muitas divisões étnicas, geográficas, religiosas, linguísticas e sociais, negociar com um grupo, que se espalha entre dois países com interesses pouco convergentes, é uma tarefa muito difícil. Só para dar uma imagem da situação complexa que se vive neste país recordava algumas das histórias que ouvi dos intérpretes e que retratam bem o nível de violência com que se tem de viver: “Na província de Khost por causa
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de uma disputa de galos foram mortas 40 pessoas de duas famílias […] aí, depois de os homens serem mortos numa operação, as mulheres vestiram-se como homens e atacaram durante a noite as tropas […] nessas áreas; um intérprete, apenas porque fala estrangeiro, é considerado responsável por trazer estrangeiros para a sua aldeia, como tal, nunca podemos andar de táxi ou de autocarro nesses territórios […]”. Reconciliações aqui não são o mesmo que dois países na Europa se sentarem a uma mesa para discutir um problema fronteiriço… Mas ainda assim vale a pena tentar, tem de se tentar todas as soluções, por mais difíceis que possam parecer, vamos ter esperança… Recebemos nos últimos dias a visita do comandante e do chefe de Estado-maior da OMLT que nos irão render, se Deus quiser, lá para meados de Abril. Este reconhecimento ao Afeganistão por parte do comando da próxima equipa é fundamental para uma correcta preparação da força. O meu comandante e eu estivemos aqui em reconhecimento em Julho de 2009, também cerca de dois meses e meio antes de assumirmos a missão. Por mais informação que tivéssemos recebido nada se compara ao choque da realidade. Desde os problemas das viagens, alojamentos, segurança, fardas e equipamentos até ao sentir dos ambientes e envolvências. Tudo mudou para nós depois do reconhecimento. As primeiras impressões marcaram muito e não me esqueço desses primeiros dias. O cheiro nauseabundo, estávamos no pico do Verão, o calor, a poeira, a poluição, a sujidade em todo o lado, os primeiros encontros com os militares afegãos, as operações militares que desenvolviam, os enormes problemas logísticos que teríamos pela frente. Havia tanto a fazer e o tempo para início da missão pareceu-nos tão curto… Mas com método lá metemos mãos à obra e, além do obrigatório relatório sobre o reconhecimento, fizemos um estudo profundo para apurar e descriminar de entre as tarefas fundamentais, as tarefas importantes e as restantes. Num cenário de guerra como este, tudo o que estava ligado à protecção das nossas forças recebeu a natural prioridade. Tópico a tópico, fomos “atacando” todos os problemas e introduzimos imediatamente alterações ao nosso processo de aprontamento (termo militar que significa a preparação em treino e equipamento que uma força faz antes de entrar no território onde desempenhará a missão – inclui cursos, treinos, exercícios e inúmeras tarefas administrativas – passaportes, vacinas, uniformes,
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equipamentos, seguros, procedimentos, legislações, etc. – permite que uma força fique pronta para o início da missão)78. O que nunca se pode, nestas ocasiões, é desanimar pela lentidão e complexidade na resolução dos problemas ou, por outro lado, exagerar informação, não partilhar, não dizer tudo, etc. O nosso princípio foi sempre o de “máxima transparência, informação detalhada” e sempre, a “nossa opinião” assim, quem tinha de decidir podia fazê-lo tranquilamente. Em Julho de 2009 ainda estávamos longe de imaginar tudo o que já passámos por estas bandas. Na altura as preocupações eram tantas que ainda não sentíamos bem o que seria o nosso trabalho de “mentoria”, apenas ficámos com a nítida noção de que seria uma tarefa complexa, muito exigente e vivida em ambiente difícil. Por isso, agora em Fevereiro de 2010, demos tudo o que tínhamos para a equipa que nos vem render. Por coincidência, puderam assistir ao planeamento e execução de uma grande operação de segurança na região de Cabul, que descrevo sucintamente de seguida79:
Nota do Autor: O aprontamento para as missões tem uma duração de três a seis meses (normalmente são seis meses) e inclui desde a fase de nivelamento, individual e colectivo com um natural destaque para a técnica individual de combate e tiro. O plano de formação contemplou instrução nas seguintes áreas: transmissões na vertente de operador do rádio, inibidores de frequência (jammers), curso de suporte básico de vida certificado pelo INEM, adaptação às viaturas existentes no Afeganistão com condução defensiva, orientação básica, digital cartográfica e por GPS, instrução com o armamento existente e armamento do ANA (Afghan National Army). Relevantes foram também as várias conferências proporcionadas por militares que tinham estado no Afeganistão em missões anteriores: para se evoluir é necessário aprender com as experiências anteriores “lessons learned”, tema que o Exército português tem dado uma grande importância através da recolha sistemática das experiências vividas pelos nossos militares nas variadíssimas missões por este mundo fora. O treino de aprontamento culminou com um exercício em território nacional, mais concretamente em Vila Real no Regimento de Infantaria n.º 13, denominado “Kabul 09” onde foi possível juntar todas as forças que estariam no Afeganistão, tendo sido realizados treinos conjuntos com a OMLT de Guarnição e o Módulo de Apoio, e mais em detalhe com a Force Protection (20 elementos comandos e 20 fuzileiros). Durante este exercício a OMLT foi submetida a uma avaliação externa, denominada CREVAL, por parte da Inspecção-Geral do Exército para assim se poder aferir das verdadeiras capacidades e limitações de cada unidade a ser projectada. 79 Nota do Autor: Já foi referida na carta anterior mas, como notaram, a mesma só foi enviada no final da missão, optei ainda assim por manter o texto original porque, embora repita parte das informações descritas, pode o leitor entender como as cartas foram sendo de facto enviadas à família para não criar o tal alarme desnecessário. 78
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Com base em informações recebidas de que um grande grupo de insurgentes se juntava numa determinada localização, os nossos mentores apoiaram os oficiais da Divisão a planear uma operação para prevenir que aqueles pudessem efectuar ataques em Cabul. Estivemos presentes no planeamento, acompanhámos e facilitámos a coordenação com as diversas entidades e estivemos em todas as fases da execução da operação. Foram mais de 1000 os efectivos envolvidos, 150 viaturas e helicópteros, entre forças do exército, da polícia, dos serviços de segurança, do destacamento feminino (para as revistas…), forças da ISAF e… nós. No final da operação foram capturados mais de meia dúzia de insurgentes, incluindo vários líderes, muito material, armas e explosivos. Por coincidência até foi capturado um bombista suicida que passava naquela área a caminho de Cabul para executar a sua missão, foi um momento de sorte e assim também se evitou esse ataque. Tudo feito sem ser disparado um tiro, sem uma única baixa, sem causar problemas entre as populações. Correu muito bem. O Ministério da Defesa está muito satisfeito com a Divisão. A ISAF congratula-se com a eficácia dos nossos “mentorado” e nós estamos, naturalmente, muitíssimos satisfeitos. Afinal, é nos resultados operacionais que se mede o nosso trabalho. Bom, a próxima equipa já se prepara para nos substituir e começamos “a ver a luzinha ao fundo do túnel” do regresso a casa. Deixámos de contar os dias que aqui passámos para começar a contar os dias que faltam. Todos desejamos terminar esta missão bem e em segurança, mas o facto de nos sentirmos cada vez mais úteis naquilo que fazemos, tempera-nos este desejo e motiva-nos para o trabalho em cada dia.
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CARTAS DE CABUL – N.º 23
12 de Fevereiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. O segundo comandante da Polícia da província de Kapisa, o coronel Attaullah, foi preso por ser corrupto, estar associado aos senhores da droga e conivente com os talibãs80. A paz aqui é complicada? Muito, mesmo muito, mas não é razão para pensar que não é possível.
Nota de Armando Marques Guedes: O problema da droga no Afeganistão é especialmente complexo, pois coloca em rota de colisão a subsistência de populações que de outro modo teria dificuldades em assegurá-la e a criação de um Estado e de Estado de Direito no país. Em Março de 2010, a NATO recusou formalmente uma proposta russa de destruir as plantações afegãs utilizando meios aéreos e spraying, com a alegação de que tal comprometeria a sobrevivência de populações locais profundamente carenciadas e sem alternativas viáveis. À época da feitura desta carta, o Afeganistão tinha acabado de conseguir tornar-se no maior produtor mundial de ópio, à frente da Birmânia e dos restantes países do Triângulo Dourado. A produção tem vindo a subir desde 2001 e a entrada aliada no Afeganistão. Em área, em 2010, as plantações ocupam uma extensão de terra maior do que do conjunto de terras dedicadas à produção de cocaína na América Latina. Em 2007, um total de 92% da produção de opiáceos no mundo tinha lugar no Afeganistão; desde então esta percentagem tem vindo a aumentar. O total estimado para o ano de 2010 foi de 64 000 milhões
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Na Divisão o… foi acusado de ter desviado ferro-velho e lenha, o chefe da repartição de… levou cinco sacas de arroz no seu carro, o… recebeu x dólares, estavam várias viaturas civis a abastecer nas bombas de gasolina militares e por aí fora. Parte destas acusações não são verdade, outras são e há tantas coisas que não vemos, não sabemos ou não controlamos. O que podemos afirmar é que o controlo logístico continua como uma das nossas maiores prioridades na Divisão. E, embora não vos escondendo nada como lêem, podemos afirmar que as coisas estão muito, muito melhores. Há mais controlo mas não está controlado, há menos desvios mas ainda há corrupção, há mais atenção mas ainda há muita negligência. Conseguimos que em cada reunião, em cada encontro, em todos os planeamentos, os generais afegãos se dirijam aos restantes militares e lhes falem, de forma veemente, sobre o combate à corrupção, sobre a boa gestão dos recursos financeiros, sobre a necessidade de melhores mecanismos de controlo, regras, procedimentos. Sabemos que as coisas estão cada vez melhores, mas neste campo específico, onde as faltas são tamanhas, ainda há muitíssimo a fazer. As resistências são muitas, foram anos e anos de desvios, de economias paralelas, de hábitos de corrupção. É um terreno perigoso, muito armadilhado e que não pode ser evitado. Mas já nada é “à tripa-forra”. Contra alguns conselhos recebidos, decidimos armazenar os meios para as próximas operações humanitárias dentro da própria divisão: “Não façam isso! Vai desaparecer tudo!”, por lá temos deixado cobertores, estão lá centenas de medicamentos, lápis, mochilas, etc., e de lá temos levado os meios para as
de dólares americanos. O Afeganistão é também o primeiro produtor mundial de haxixe. Mais de metade dos lucros vai parar às mãos das elites afegãs, criando assim redes de corrupção robustas e causando uma erosão persistente nas hipóteses de criação no país de uma rule of law efectiva. A produção sistemática de opiáceas começou no Afeganistão depois da invasão soviética de 1979-80, com apoio tácito norte-americano, tendo Zbigniew Brzezinski famosamente afirmado a jornalistas que o entrevistavam que “the secret operation was an excellent idea. [a de provocar uma intervenção russa]. It drew the Russians into the Afghan trap and you want me to regret it? On the day that the Soviets officially crossed the border, I wrote to President Carter, saying, in essence: ‘We now have the opportunity of giving to the USSR its Vietnam War”’. O impacto político deste comércio ilegal é bastante claro: as províncias com maior intensidade de produção de ópio são as de Helmand e Kandahar, no sul pashtun e mormente talibã, junto à fronteira com o Paquistão, e na de Herat, um dos centros de gravidade da Aliança Norte, uma província que por sua vez confina com o Irão. A capital, Cabul, está estrategicamente situada entre estas três extensas províncias.
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últimas operações humanitárias, sabem o que desapareceu? Nada, estava tudo lá, está tudo lá. Confiança gera confiança, responsabilidade gera maior responsabilidade e nós nem sequer temos a chave do depósito. Dizia-me o encarregado do depósito: “Então se eu sou mullah haveria de desviar ofertas destinadas aos pobres?” Corruptos há em todo o lado, nos países mais pobres há mais, mas há mais gente de bem que gente corrupta. Se não tentarmos acreditar não se poderá progredir, é preciso arriscar e depois, quando a corrupção for evidente agir de forma determinada. Em Portugal, como no resto do mundo, como aqui, há corrupção, é preciso saber agir na escala local e apropriada, adaptada, mas os princípios, o sentimento de honra e honestidade, esses, são e serão sempre os mesmos. Morreu um sargento da Divisão que tinha ficado ferido nos acontecimentos que aqui relatei do dia 18 de Janeiro.
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Não morreu por causa dos ferimentos, infelizmente foi vítima do frio extremo. Fora baleado durante a operação a proteger a vida do seu comandante, recuperou bem e foi-lhe concedida licença para ir a casa. No regresso à unidade passou pela “passagem de Salang” (diz-se por aqui que é a passagem de montanha mais alta do mundo, são quatro quilómetros de túneis e estradas a mais de 3000 metros de altitude) e aí ficou encurralado, como milhares de outros afegãos, devido a uma avalancha. Foram quase 200 os mortos, encurralados na passagem das montanhas e o nosso sargento foi mais uma vítima desta desgraça. É importante dizer que também foram militares que salvaram a vida de muita gente depois da avalancha. Se calhar não devia contar estas histórias mais tristes, mas é a verdade e quero partilhar este momento para realçar um sentimento que fomos adquirindo: o de pertença a uma unidade afegã que já consideramos um pouquinho como nossa e aos homens que lá servem que já lhes chamamos também de nossos. Não conheci o sargento em causa mas conheço bem o batalhão em que servia e muitos dos homens que ali trabalham. Este homem foi um valente, protegeu o seu comandante e foi ferido em combate. Merece ser recordado. Nós, os portugueses desta equipa, há muito que deixámos de dizer eles da Divisão e passámos, inconscientemente, a dizer os nossos da Divisão. Não ficamos por isso indiferentes, preocupamo-nos e sentimos mais as alegrias e tristezas dos nossos. Aos feridos da última operação juntámos uns pequenos cabazes para lhes oferecer a eles e às suas famílias, o nosso sargento também iria receber, vamos tentar que a sua família ainda o possa receber, é o mínimo que podemos fazer. Um pouco tristes, soldados entre soldados, seguimos motivados.
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14 de Fevereiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Fomos fazer a entrega dos prometidos cabazes aos militares feridos nas últimas operações. Como tinha havido um civil que, no trajecto para a operação Paghman, fora atropelado pelos militares da Divisão, também lhe destinámos um cabaz. No total seriam seis, quatro feridos militares, um civil e a viúva do sargento falecido na passagem de Salang. O general Azimullah, nosso conhecido chefe do Departamento Religioso e Cultural, faria a entrega e nós acompanharíamos. Começámos por entregar ao ferido mais grave, amputado de uma perna, e que se encontrava internado no Hospital Militar81. O Hospital Militar é um edifício grande, aparentemente bem gerido e a primeira impressão foi de muitos médicos, médicas, enfermeiros, bem vestidos, com as suas batas limpas e de um hospital limpo, só que a rebentar pelas costuras.
Nota do Autor: O Hospital Militar está localizado no centro de Cabul e é sem dúvida uma estrutura moderna, relativamente bem equipada. O grande problema que tem é o número excessivo de internados face à capacidade para que foi construído. 81
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A segunda imagem não podia ser pior. Depois de subir pelas escadas até ao quarto andar, onde parecia que se encontrava o nosso ferido, logo no primeiro quarto que entrámos deparámo-nos com dois amputados, um deles amputado de pés e mãos, mais uma vítima de um IED (improvised explosive device – explosivo improvisado) na terrível região de Helmand. Ele olhou-me longamente, um olhar desamparado, perdido, eu não desviei o olhar, é duro, muito duro suportar este tipo de olhar… Sentimo-nos tão impotentes! Mas ainda assim todos pareciam bem tratados, ao menos isso. Sei que poderá parecer de mau gosto estar a descrever estas situações, mas sinto que devemos dar a conhecer o que de facto resulta deste tipo de guerra, terrível como qualquer outra, mas esta especialmente traiçoeira, cega, insensível. Não encontrámos o nosso ferido. O médico de serviço tinha uma lista de pacientes internados e não encontrava o nome em lado nenhum, reparei depois que a lista tinha a data de 22 de Dezembro de 2009… pois, ele ficou ferido a 18 de Janeiro de 2010… pela lista não íamos lá. Talvez no quinto piso! Connosco, iam mais dois mentores, o fiel intérprete Wais e um mullah do departamento. Todos carregavam qualquer coisa, cobertores, lanternas, roupas para crianças, jogos e lápis e muita comida (farinha,
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arroz, leite, frutas em calda, chá, bolachas, chocolates, etc.). Quando pensámos em oferecer cabazes lembrámo-nos dos familiares, no caso deste ferido, mulher e três filhos, daí as coisas para os filhos… No quinto piso não o encontrámos! Perguntámos a outro médico: “O Harot? Amputado de uma perna?” Resposta: “São quase todos amputados os que estão neste piso, não conheço o nome e não saberei quem é, vão procurar.” Procurámos, fomos vendo… imagens que me escuso a descrever… Não, ali não estava o… O general telefonava a todos, o Wais falava com todos. Mas este hospital é muito grande e cheiíssimo, infelizmente com centenas de amputados. Fomos para o sexto piso. De novo corremos todo o piso e nada… ninguém sabia onde estava ou quem era. Finalmente o general conseguiu o telemóvel dele, ligou e atendeu… estava no quarto piso, onde tínhamos começado, no último quarto do corredor. Fizemos a entrega, com ele estava um familiar, no meio desta enorme desgraça e miséria não deixo nunca de admirar o apoio que as famílias prestam aos seus… Magro, triste, muito débil, aceitou com o sorriso possível a oferta do general e depois agradeceu-nos… o que mais gostou foram as lembranças para os filhos.
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Se a segunda imagem que recebemos deste hospital foi das piores a última não lhe ficava atrás. Quando nos dirigíamos para a saída, um amputado de ambas as pernas começou a berrar para o General: “Não há justiça! São sempre para os mesmos! Eu não tenho pernas! Comigo está ali um que não tem pernas nem braços e vocês ajudam sempre os mesmos! Os das vossas famílias! A nós ninguém nos ajuda!” O general tentou falar com ele e explicar que não era da família, era um militar da Divisão, mas ele nada ouvia, gritava bem alto para o general e olhava para mim a procurar compreensão: “No Afeganistão é só corrupção! Ajudem quem precisa…” e continuou a berrar enquanto saíamos. Era um grito de revolta. Um jovem, um miúdo de pouco mais de 20 anos e que ficou sem pernas… tem todo o direito de estar revoltado, tem todo o direito de berrar, o general também não o levou a mal… Afinal também ele se revoltava com estas desgraças, com tanta desgraça, e impotente para ajudar
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a todos. Nós, os portugueses que ali estávamos, sentíamos o mesmo. Só nos passava pela cabeça o que poderíamos fazer mais… De volta à Divisão entregámos cabazes a outros dois feridos, que já tinham tido alta do hospital, e convalesciam nas casernas do seu batalhão. Para o civil pedimos a um capitão que lhe fosse entregar o cabaz a casa e ainda faltava entregar à viúva, o que seria feito em breve. É pouco, mas é alguma coisa, o general não parava de nos agradecer, os mullah diziam que não havia estrangeiros tão generosos como nós. Porque então não nos sentíamos bem? Porque não olhamos para o lado, vale a pena, porque queremos tentar ajudar mais, vale a pena, porque somos reconhecidos no nosso esforço, vale a pena, mas há tanto por fazer… os momentos difíceis não nos esmorecem… acordam-nos, sacodem-nos com mais força e motivam-nos cada vez mais. Afinal é para isso que somos soldados.
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17 de Fevereiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. As teorias da conspiração sempre me irritaram, no entanto, confesso, sempre gostei de as saber, de as ler, de as ver. Em cenários de guerra estão sempre a aparecer teorias fantásticas, algumas muito bem pensadas, com pequenas ideias que nos fazem, no mínimo, interrogar. Mas as teorias da conspiração que vou conhecendo associadas ao Afeganistão, embora tenham umas larachas engraçadas, não fazem muito sentido. Há anos que tenho uma teoria própria sobre as teorias da conspiração. Sustentado em nenhuma base científica ou académica, acredito que a esmagadora maioria das grandes conspirações não existem ou nunca existiram, porque para se montar uma grande conspiração são no mínimo necessárias as seguintes condições: • Um grupo de pessoas com grande inteligência e organização; • Uma vontade inquebrantável de prosseguir os objectivos em completo secretismo e em tempo/duração indeterminados; • Uma razão muito forte que justifique a lógica de uma dedicação extrema.
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Quaisquer as três condições são possíveis de per se mas não acredito que seja possível juntar as três simultaneamente. Vamos esmiuçar: Um grupo de pessoas com grande inteligência e organização, claro, conhecemos muitos grupos de reflexão, sociedades, organizações que juntam habitualmente muitas pessoas, entre elas, de enorme inteligência. Mas estarão estes grupos imunes às divisões sociais? Às mudanças de humor tão humanas? À tendência/fraqueza de mais cedo ou mais tarde haver sempre um que revele o segredo? Não sabemos nós como as pessoas se zangam, se cansam dos amigos, se separam famílias, se dividem casais? Então estes grupos nunca se zangam? Mantêm-se sempre unidos, coesos e nunca revelam o segredo a ninguém? Pois não conheço muitos assim… Mas vamos imaginar que sim, existem estes grupos determinados, com grande inteligência e organização, mas aguentarão eles manter os mesmos objectivos durante toda a sua vida? E passarão às próximas gerações, como algumas teorias defendem? Juntando as duas primeiras condições as coisas ficam mais difíceis, senão vejamos, teremos de imaginar grupos que são: determinados, inteligentes, organizados, imunes à revelação de segredos, sem quaisquer possíveis divisões, comprometidos por toda a sua vida e, por vezes, pela vida dos seus sucessores. Muito, muito difícil, mas… OK, vamos admitir que sim, que existem semelhantes grupos de pessoas, falta então juntar a última condição: que razão fortíssima levará este grupo de pessoas a uma determinação tão extrema? Que objectivo tão remunerador é esse que leva as pessoas a utilizarem todos os meios para atingirem os seus fins? É que se fosse um objectivo nobre e respeitável não haveria qualquer necessidade de ser secreto, pois não? Na base das grandes conspirações, são quase sempre associados objectivos maquiavélicos, doentios, que dão por vezes origem a mortes suspeitas e que têm como simples fim a conquista de poder e/ou dinheiro. Pois, imagino que muitas pessoas tenham para si esses objectivos terríveis, mas tenho muita dificuldade em imaginar que as mesmas se conheçam, sejam efectivamente muito inteligentes, se juntem, organizem, confiem inteiramente umas nas outras e sejam devotas entre si, em segredo, profundamente insensíveis, cruéis e enormemente ambiciosas. Por fim, se são assim tão inteligentes, porque não se importam com a vida humana, com a destruição, com o sofrimento? Que alguns pensem assim, acredito, que muitos se juntem e todos pensem assim, custa-me acreditar. Como disse no início, não tenho qualquer base científica ou académica que sustente as minhas palavras. Admito que algumas das teorias possam ser ver-
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dadeiras, aceito que partes das teorias tenham um fundamento de verdade, mas, para mim, a esmagadora maioria das teorias da conspiração simplesmente não têm fundamento. Acredito, isso sim, no aproveitamento mesquinho da desgraça dos outros. Não é preciso inventar uma guerra para aumentar os lucros, sempre houve muitas guerras onde tanta gente se aproveitou, para vender mais, para endividar mais, para comprar mais82. Não é preciso criar/inventar guerras ou desgraças porque o mundo, tal como o conhecemos, ou simplesmente os homens, criam a cada dia novas desgraças, novas pobrezas, misérias, desigualdades e guerras. E há efectivamente muitos que se “estão nas tintas” para a má sorte dos outros; são também muitos os que não têm qualquer prurido em se aproveitar da miséria, da morte, do sofrimento. Mas esses imbecis não são, com toda a certeza, os tais grupos de gente inteligente, organizada, devotada e capaz de agir em secretismo durante toda a sua vida. Esses, a ralé da humanidade, são apenas isso, ralé, insensíveis e egoístas. Desses está o mundo cheio, e creio que, na sua esmagadora maioria, não poderão ser assim tão inteligentes… espertos? Alguns talvez, mas inteligentes? Em jeito de conclusão, gostaria de afirmar que não estou aqui ao serviço de uma grande companhia de petróleo americana que quer destruir o Afeganistão para construir um novo pipeline entre… e… obrigar por isso o Irão a aceitar um acordo que… e depois permitirá vender biliões de dólares em armamento ao Iraque que etc., etc. Estou aqui em nome do meu país, para se construir a paz e garantir que milhões de pessoas possam viver em segurança, com justiça e desenvolvimento. E, de forma clara e aberta, sem qualquer conspiração, tenho muito orgulho nisso. Fomos tomar um chá ao gabinete do nosso mullah, professor de Religião. Há muito que nos convidava para um dia passarmos por lá, mas ainda não surgira a oportunidade. O meu comandante, eu e o intérprete Abdul aparecemos de repente. O gabinete fica no meio de uma caserna entre diversos alojamentos e, como em
Nota do Autor: Não resisto a inserir esta recomendação de um dos homens mais ricos de sempre, o barão de Rothschild: “Compre quando existir sangue nas ruas” frase proferida após a célebre batalha de Waterloo em Junho de 1815 que opôs os aliados a Napoleão “Buy when there’s blood in the streets, even if the blood is your own.”. 82
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tantos gabinetes que existem na Divisão, é um “dois em um”, ou seja, gabinete e quarto de dormir. A sua felicidade ao ver-nos chegar foi notória. O espaço é muito apertado, com um armário, uma secretária e um beliche. Primeiro tentou arranjar umas cadeiras e de seguida foi a correr fazer o chá (chá verde, é o que é bom para prevenir o cancro, como aqui sempre nos dizem). Até aqui tudo bem, mas depois sentimos os efeitos da autêntica cultura afegã: é que entravam cada vez mais militares para dentro destes 8 m2. Porque nos encontrávamos lá dentro, apareceram logo o coronel comandante do batalhão e o seu oficial de operações e, atrás, não sei, iam aparecendo uns atrás dos outros. Todos cumprimentavam, sorriam, como eu estava junto à porta fartei-me de levar com a dita nas canelas… Depois, e porque o comandante do batalhão se encontrava ali, entraram também militares para despachar assuntos, assinar papéis, etc. Uma enorme confusão!
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É assim, é “à afegã”, e no meio deste imparável vaivem de gente, o mullah ofereceu-nos o melhor que tinha para dar em aperitivos e doces. Gostei especialmente de uma espécie de amoras secas. “Que saboroso!” dissemos nós. “Quando voltarem para Portugal, vou dar-lhes uma saca para oferecerem às vossas famílias” ofereceu ele. Os assuntos foram variados, entre o esforço que ele fazia para trazer os fundamentalistas de volta para o verdadeiro Islão, a admiração que tinham por nós por estarmos longe das famílias ou, simplesmente, os pedidos do comandante de batalhão para ajudarmos a requisitar uma impressora ou uma televisão para os soldados. Quando aqui chegámos ainda éramos vistos com alguma indiferença mas agora, somos os Liedsons cá do sítio: os portugueses resolvem! Falam-nos com imenso respeito, são educadíssimos, e agradecem muito o facto de irmos ter com eles e não ficarmos à espera sentados. Nós não vamos por frete, nem por obrigação, vamos com muito prazer. Somos recebidos como amigos, com a maior das cordialidades, no melhor que cada um pode oferecer. Sentimo-nos por isso muitíssimo bem. Continuamos assim sempre motivados.
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22 de Fevereiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Esta pequena história começou há três meses, no final de Novembro de 2009. Um dos nossos mentores veio ter comigo e disse que um militar afegão tinha um filho hemofílico: “ […] O pai do menino está desesperado, o remédio que o rapaz precisa encontra-se esgotado no Afeganistão e no Paquistão e é: Hemofil Mantihemofhilic Factor […] O menino tem cinco anos e precisa urgentemente deste remédio. Se puder fazer alguma coisa […] Muito Obrigado.” Bom, nestas alturas o melhor é não pensar muito, e lá fui bater a todas as portas possíveis. Chateei os meus queridos padrinhos médicos do Porto, os meus amigos médicos do Hospital Militar, o médico da nossa equipa, os médicos do destacamento médico no Afeganistão e o meu comandante também atacou envolvendo hospitais civis. A ninguém escondemos que estávamos a ir em várias direcções. O importante é ajudar, o menino tinha de viver. Primeiro vieram respostas pouco encorajadoras: “Este medicamento não se encontra nas farmácias.” “Só é possível administrar nos hospitais.” “Tem de ser autorizado ao mais alto nível.” “É um medicamento caríssimo – 300 a 600 eu-
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ros por semana.” “Este medicamento específico encontra-se esgotado.” “Só se um laboratório o quiser oferecer.” “Só interessa ajudar se se conseguir garantir o fornecimento para a vida do menino.” Não ia ser fácil. Na segunda volta de contactos apareceram as primeiras boas notícias e pelo menos três possibilidades: ou se tentava através de um laboratório, que tinha um programa de apoio a países necessitados e, eventualmente, poderia estar disposto a ajudar este menino ou através da World Federation of Hemophilia ou a terceira hipótese e de carácter mais oficial, submeter um pedido a Portugal, ao Alto Comissariado do Ministério da Saúde. A solução da World Federation of Hemophilia não foi possível pelo que nos restava ou a via nacional ou o apoio do laboratório internacional. Optámos por tentar primeiro a via nacional e, caso não conseguíssemos, tentaríamos a segunda (se ambas não funcionassem não iríamos desistir, todos os envolvidos demonstravam essa firme determinação).
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Para formalizar o pedido era necessário confirmar a doença do menino e organizou-se tudo, literalmente, “à portuguesa”. Falou-se com o pai do menino e marcou-se uma consulta no hospital internacional em Cabul num dia em que os médicos de serviço eram portugueses. Assim foi feito. Na manhã de sábado do dia 19 de Dezembro, o menino deu entrada no hospital e foi logo internado porque: “por infecção respiratória das vias aéreas superiores e sinais externos de coagulopatia (problema de coagulação); determinação de anemia/parâmetros de inflamação, ficou internado 24 horas em vigilância – teve alta com melhoria da sintomatologia respiratória sem perdas hemáticas activas”83 e foram feitos os exames. Os nossos médicos não tiveram dúvidas, ainda antes de qualquer exame, era visível a hemofilia. Nota do Autor: Relatório da primeiro-tenente, a Dra. Carla Pinto, médica de Marinha a prestar serviço no Hospital Internacional. 83
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O menino tocou muito os nossos médicos e enfermeiros, de cinco anos, acompanhado pelo irmão mais velho, muito simpático e, claro, quando viu as seringas… eu não o cheguei a ver, ainda fui no dia seguinte ao hospital quando regressava da Divisão mas quando lá cheguei já lhe haviam dado alta. Os resultados preliminares não ofereciam dúvidas mas os exames definitivos demorariam quase um mês a serem recebidos. Não queríamos perder mais tempo. Com base no relatório e nas análises preliminares iríamos fazer o pedido. Não queríamos fazer um pedido oficial ao Alto Comissariado sem ter a autorização do chefe de Estado-maior General das Forças Armadas Portuguesas para executar contactos directos. Pedimos a Portugal e o despacho não podia ser mais encorajador: Autorizadíssimo! Não faltava boa vontade em lado nenhum. Fizemos um requerimento oficial através da médica responsável do destacamento médico (estava em contacto directo com o Alto Comissariado) e assina-
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do conjuntamente pelo meu comandante e pelo comandante do destacamento médico português. Passados uns dias estava aprovado o envio e sustentação do apoio médico para o menino. Faltava fazer chegar os medicamentos cá, a boa vontade continuava e a Força Aérea garantiria o transporte na primeira oportunidade que, infelizmente, tardou muito mais do que esperávamos. Na semana anterior à vinda do medicamento, contactei o pai do menino através do nosso, e de vós já conhecido, intérprete Wais. Não lhe queria dizer tudo, apenas deixar uma nota de esperança e avisar que seria contactado em breve. Mais uma vez não nos comprometemos, tinham de chegar os medicamentos. Chegaram finalmente no dia 17 de Fevereiro. A alegria foi grande entre todos e quando digo todos, são literalmente todos os da nossa equipa e os que pertencem ao destacamento médico português no Hospital Internacional. É muito bom sentir este envolvimento e preocupação pela vida de um menino, que ninguém conhecia, e que no entanto a todos afligiu; que lição de humanidade. Pedi então ao nosso mentor, que me levantou a questão há mais de três meses, para ser ele a falar com o pai do menino no dia seguinte, contar-lhe a boa notícia e marcar de imediato uma consulta no hospital, de acordo com a disponibilidade (total!) da médica portuguesa que tivera o papel principal na resolução deste problema. Senti nele o orgulho de quem prometeu tentar e poder mais tarde voltar junto do pai do menino e dizer: “Aqui está!”. Entretanto, a nossa doutora, que termina a sua missão em meados de Março, combinou com os restantes médicos franceses do hospital a garantia de que o menino seria seguido, acompanhado no hospital, em princípio, para o resto da sua vida. Não foi difícil convencê-los, aderiram de imediato e deram a palavra de que assim seria feito. Com portugueses ou franceses existe o comprometimento e em Portugal, da parte do Ministério da Saúde, através do Hospital S. José e Hospital da Luz, o fornecimento do medicamento estará sempre assegurado (para já este primeiro lote tem o prazo de validade até Abril de 2011). Quando o pai soube, por parte do nosso mentor, da boa notícia, ficou muitíssimo aliviado. Falei depois também com ele, agradecia-nos profundamente, via-se claramente que era um pai sofredor pela sorte do filho, como qualquer um de nós seria numa circunstância difícil como esta. No fundo, nada é mais humano do que nos lembrarmos dos nossos filhos quando acompanhamos a (má) sorte de outros. Ficou a consulta marcada para
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o dia 22 de Fevereiro, o menino seria acompanhado pelo pai, dois dos nossos mentores e um intérprete. Assim foi cumprido hoje, o menino e o pai tiveram toda a atenção possível, um enorme carinho de todos e o firme compromisso de continuar a acompanhar. É bom poder participar, ajudar, tudo vale a pena quando ajudamos um menino a viver, a crescer e sentir a sua família mais sossegada. Também somos soldados destas batalhas, também podemos ajudar na sobrevivência de todos os dias e quando se ajuda a salvar uma vida, as nossas vidas ganham novo alento. Foi um gesto pequeno, a contribuição de cada um foi simples e humilde, mas a vida de um menino é uma vitória enorme que a todos enche de orgulho e nos motiva. Que Deus guarde o menino por muitos e muitos anos84. Que Deus proteja SAYED FARDIEN, filho de Sayed Nagibullah.
Nota de Armando Marques Guedes: Tenho desde sempre uma repugnância visceral por cálculos aritméticos de mortos e feridos – embora, naturalmente, os considere imprescindíveis. Evitar uma morte basta como motivo para que se envidem todos os esforços, pelo menos de um ponto de vista ético. Ao ler esta história empatizei de imediato e compreendi, ao que julgo, o esprit de corps que tal actuação coordenada suscita. Não foi apenas uma criança que se salvou, o que por si só justificaria inteiramente a nossa presença no Afeganistão. Fazê-lo consolidou as motivações de todos os que nela participaram – aumentando a probabilidade de que outros se lhe sigam. Obrigado, Nuno, por esta descrição tão pungente de humanidade. 84
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24 de Fevereiro de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. No passado sábado tivemos mais uma grande operação na cidade de Cabul. Tratava-se de garantir a segurança à cerimónia inaugural do novo Parlamento. Como é hábito, a nossa equipa esteve presente no planeamento, preparação, colocação do dispositivo de segurança e execução. Vou contar parte do que é possível sobre uma operação que correu muitíssimo bem. A nossa equipa dividiu-se, como tem sido usual nestas operações, em três grupos (com cerca de cinco mentores cada) que acompanhariam o Posto de Comando Avançado da Divisão (junto às forças), o Posto de Comando Principal (no TOC – Centro de Operações Táctico) e um Posto de Comando Recuado (na nossa base em KAIA). Na véspera, as forças já tinham ocupado as posições e na madrugada de sábado accionámos os três postos de comando. Fiquei no TOC e depois de actualizarmos as primeiras informações recebidas preparámo-nos para acompanhar a operação. Desloquei-me então ao gabinete do general comandante da Divisão, o brigadeiro-general Farooq, e pedi-lhe para se dirigir ao TOC cerca das 10h00 para
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receber um briefing sobre a forma como decorria a operação. Recebêramos entretanto a confirmação de novas ameaças, dois bombistas-suicidas que estavam a tentar entrar no Parlamento e uma possível viatura que tentaria fazer o mesmo. A reacção foi imediata e os ataques prontamente impedidos de serem executados. Tínhamos o dispositivo muito bem montado, ainda bem. O Presidente Karzai iniciara o seu discurso no Parlamento e o nosso general pediu-me para ouvir o discurso antes de nos dirigirmos ao TOC. No gabinete só estava o general, eu e o intérprete Abdul, e enquanto o discurso decorria em duas línguas – pashtun e dhari, o Abdul ia traduzindo para mim e o telemóvel do general não parava de tocar…
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Durante o discurso presenciei um episódio que muito me tocou. O Presidente Karzai mostrou uma fotografia de uma menina de oito anos que tinha ido a um hospital/morgue identificar 12 membros da sua família. Era a única sobrevivente. Notei então que o Abdul chorava enquanto me traduzia as palavras sentidas do Presidente e quando olhei para o general, ele chorava também. O general Farooq é um reconhecido mujahedin, esteve em todas as guerras do Afeganistão, os soviéticos prenderam-no durante dois anos, foi ferido em combate, um guerreiro, um líder, um sofredor, um soldado. Mas ali estava ele a chorar pela má sorte de uma menina85. Quando terminou o discurso do Presidente, o general contou-me então que, uma vez, teve de organizar o funeral de 25 membros de uma mesma família e depois, falou, falou, falou com enorme sentimento e emoção: disse-me ser um optimista, que o Afeganistão iria melhorar, falou do nosso papel fundamental na ajuda ao Exército afegão, mas que teriam de ser eles a assumir as responsabilidades pela segurança do país; contou-me histórias passadas de outras guerras, e muito mais… quase uma hora depois fomos então ao TOC para receber o briefing. A operação estava quase no fim, as ameaças foram anuladas, o Presidente regressara em segurança ao Palácio Presidencial e os deputados saíram do Parlamento em boa ordem e segurança. O general estava satisfeito, nós também, no entanto faltavam chegar os nossos que tinham ido para fora da cidade de Cabul a acompanhar as operações. Só quando regressaram à base é que de facto pudemos respirar fundo. De imediato fizemos uma primeira leitura do que tinha corrido bem e mal, anotámos as sugestões e, depois, preparámos a continuação do trabalho, que nunca termina, pela segurança da província de Cabul. No dia seguinte iria decorrer a reunião sobre as patrulhas conjuntas em Cabul (entre forças da ISAF e da Divisão – são mais de 150 patrulhas por mês) e faltava ainda acertar pormenores. Noutro tipo de importantes missões que este exército realiza, iniciámos o planeamento de mais uma operação humanitária, desta vez para um campo de refugiados oriundos de Helmand que fugiram da recente ofensiva que aí decorre. A segurança do Parlamento foi mais uma missão cumprida, pela Divisão de Cabul, pela equipa portuguesa e mais um passo para um melhor Exército afegão. 85
Nota de Armando Marques Guedes: I rest my case.
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As operações militares vão desde as mais duras operações de guerra, passam pelas operações de paz e segurança até às operações humanitárias, é o que designamos pelo espectro das operações, do combate intenso à ajuda humanitária, e os militares preparam-se em permanência para todo o tipo de operações, de um extremo ao outro do espectro. Sabemos bem que, se estivermos bem preparados para as operações mais difíceis, então estaremos aptos para as menos exigentes do ponto de vista do risco e da ameaça. É isso que as melhores Forças Armadas dos países mais desenvolvidos fazem; é isso que estamos a tentar fazer com as Forças Armadas do Afeganistão e é isto que vejo fazer cada vez mais, com muito orgulho, no meu país. É muito bom poder ver o papel relevante das nossas Forças Armadas na recente tragédia da Madeira. Desde que me recordo na vida militar sempre defendi a participação crescente das Forças Armadas nas três vertentes da defesa nacional (conforme a doutrina defendida pelo meu pai): Defesa Externa, Defesa Interna e Defesa Civil.
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Como qualquer Força Armada de um país evoluído temos de saber liderar na defesa externa do nosso país e reforçar, cooperar, complementar as forças de segurança e forças de Protecção Civil nas defesas internas e civil. É simples, eficaz e racional, especialmente numa nação de escassos recursos onde não faz sentido ter meios sem utilização, estruturas sem aproveitamento e forças sem cooperação efectiva na defesa dos seus86. A primeira vez que escrevi sobre este tema foi em 1997 onde defendia um maior intercâmbio entre militares e civis e continuei depois em vários fóruns87, onde sempre foram aparecendo mais vozes concordantes, em especial recordo a voz do meu pai que sempre defendeu esta participação crescente das nossas Nota de Armando Marques Guedes: O que, infelizmente, está muito longe de ser o caso no nosso país. 87 Nota do Autor: “Intercâmbio entre Militares e Civis”, revista Azimute, n.º 164,1997, “Contributos para a Definição de uma Estratégia Militar Estrutural que potencie as operações conjuntas e combinadas”, Boletim do IAEM, 2000; “A Europa depois de um grande atentado”, Jornal do Exército, n.º 542, 2005 e “NRF – Missão no Paquistão”, n.º 551,2006; “Novo Mundo, Nova Sociedade”, Revista Militar, 2006. 86
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Forças Armadas e que de vez se deixassem de lado os receios bacocos, típicos de países de terceiro mundo, das Forças Armadas aparecem como os tomadores ilegítimos do poder… Estes receios não fazem qualquer sentido nos dias de hoje, muito menos no Portugal moderno e democrático em que vivemos88. Por isso foi bom ver as nossas Forças Armadas entre as primeiras na ajuda à Madeira. Soube de camaradas do Exército que não dormiram nos primeiros três dias da tragédia, no contínuo apoio às populações, na busca de sobreviventes entre os escombros. Vi o Regimento cheio de gente, vi os militares encharcados a trabalhar, vi partir a nossa fragata, o C-130, a engenharia, senti Nota de Armando Marques Guedes: Curiosamente, e como atrás aludi, os contornos da polémica desencadeada ao redor desta discussão têm-se vindo a tornar mais complexos, designadamente com disputas quanto à centralização do comando e controlo das forças em presença – tema que discutimos longamente no livro que redigi com Luís Elias em 2010, e que intitulámos Controlos Remotos. Dimensões Externas da Segurança Interna em Portugal. Remeto por isso para a sua leitura aqueles a quem o tema possa interessar. O livro foi publicado pela Almedina, com a chancela do Centro de Investigação de ISCPSI, a edição foi apoiada pelo Sistema de Segurança Interna e a obra foi lançado a 15 de Janeiro de 2011, no Instituto Superior de Ciências Policias e Segurança Interna (o ISCPSI) pelo general J E. Garcia Leandro. O alcance simbólico do gesto e a sua intencionalidade, que então tive a oportunidade de exprimir com alguma veemência, não terão passado despercebidos a nenhum dos presentes. 88
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a mobilização, afinal somos todos soldados e a única coisa que nos move é SERVIR. No fundo, quando os nossos políticos perguntam às Forças Armadas se são capazes de agir, recebem sempre a nossa natural resposta “tipo Obama”: “YES WE CAN!”. Nós Podemos, mas gostaria de acrescentar: Nós Queremos e acima de tudo, NÓS SABEMOS! Quem treina para tudo suportar, viver e combater nas mais difíceis circunstâncias, aguentar os piores dos tormentos, sabe naturalmente ajudar quem mais sofre, chegar onde outros não chegam, organizar o que parece o caos e garantir segurança onde for necessário. Sinto um enorme orgulho pelos meus camaradas que estão desde o primeiro minuto a lutar pela nossa gente na Madeira. Vê-se bem que estão motivados e a nós, assim, motivam-nos mais.
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1 de Março de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Fizemos mais uma operação humanitária, esta foi especial porque juntámos ao habitual fornecimento de alimentos e cobertores uma significativa ajuda médica. Esta missão de apoio humanitário tinha um carácter de urgência. Devido à recente ofensiva aliada na província de Helmand muitos dos habitantes dessa martirizada província do sul do Afeganistão, procuraram refúgio na capital. Começaram a “amontoar-se” no norte da cidade e estão a viver nas piores condições possíveis. Segundo o testemunho do general Azimullah, o desespero levou a que um pai tivesse tentado vender duas das suas filhas para arranjar alimentos…89 Pedimos medicamentos, alimentos e cobertores às várias entidades com quem trabalhamos. Este acampamento crescia a cada dia e pedimos para 80 famílias. Conseguimos os medicamentos e os cobertores mas só conseguimos os alimentos (as tais “trouxas” que descrevi na carta n.º 10) para 50 famíNota de Armando Marques Guedes: Uma prática infelizmente comum nesta e noutras partes do mundo, a que há que encontrar maneira de pôr cobro. 89
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lias. Pedimos então a Portugal (Estado-maior General das Forças Armadas – EMGFA) que nos disponibilizasse verba para comprarmos os alimentos para as restantes 30 famílias – a resposta foi encorajadoramente positiva. Pedimos aos nossos intérpretes que comprassem a comida no mercado local. Fizeram-no no seu dia de descanso, na sexta-feira, e ainda por cima num dia em que Cabul sofrera outro ataque (descrevo o ataque na segunda parte desta carta). Curiosa a afirmação do Abdul, o nosso intérprete mais antigo, de que os donos do mercado fizeram um desconto significativo quando souberam que os alimentos eram para os refugiados de Helmand – há solidariedade em todo o lado… No sábado preparámos tudo para a operação: os medicamentos foram divididos em lotes, as 80 “trouxas” foram preparadas e acrescentámos os cobertores com camisolas e lápis. O general Azimullah conseguiu que a subgovernadora local trouxesse com ela duas médicas e duas enfermeiras – na Divisão todos os médicos e enfermei-
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ros são homens e, como sabem, as mulheres apenas podem ser consultadas por outras mulheres. Tínhamos também à nossa disposição uma viatura grande, uma ambulância, duas tendas para fazer as consultas e uma companhia operacional para garantir a segurança no local. Não foi uma logística fácil mas a boa vontade prevaleceu e, na madrugada seguinte com o tradicional atraso afegão, lá partimos para a operação. Como sempre, a nossa posição é a de ajudar a montar, assegurar que tudo está preparado e depois deixar que sejam os militares afegãos a conduzir a operação. Chovia muito, estava bastante frio e o campo, como podem ver pelas fotos, é uma autêntica miséria… Gostei muito de ver um dos refugiados, que ao ver as crianças sentadas à chuva, retirou o seu “agasalho” e cobriu as crianças… há muita miséria, histórias de grande violência mas continua a predominar o enorme sentido de família…
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Receberam os alimentos e cobertores e depois todos puderam ser assistidos pelos médico(a)s e foram devidamente medicados. Numa das fotos podem ver a farmácia improvisada nas traseiras da ambulância onde as enfermeiras distribuíam os medicamentos. Correu muito bem, foi uma excelente experiência, dá gosto poder ajudar e de cada vez fazer ligeiramente mais, de forma mais sustentada… Tivemos mais um ataque coordenado em Cabul. Desde o passado 18 de Janeiro que os ataques tinham sido evitados mas não se podem evitar todos e este foi de alguma dimensão, 16 mortos e quase 40 feridos. Foi na sexta-feira, no dia livre afegão e também o nosso dia livre, infelizmente, colocou-nos de alerta e assim não tivemos muito descanso. Desta vez, no entanto, não foi preciso mobilizar a nossa Divisão, a questão foi resolvida pela polícia e pelas forças especiais que se encontravam mais próximas. Apenas se aumentou o grau de segurança e prepararam-se forças prontas a partir. Sentimos melhorias na segurança e pensamos que as forças afegãs estão muito mais eficazes mas, não tenhamos ilusões, ainda estamos longe de poder viver em paz e segurança e, naturalmente com uma ofensiva aliada no sul do território, são de esperar reacções noutros locais.
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Faz parte da realidade e é com realismo que se lida com os problemas. A verdade é que estamos num país em guerra, há melhorias em muitas áreas e sectores, há hoje mais segurança onde antes nada havia mas, como sempre disse desde a primeira carta, é um longo processo. Na base onde vivemos, em KAIA (vem do nome do aeroporto de Cabul: Kabul International Airport), encontram-se actualmente mais de 3500 militares das muitas nacionalidades presentes no Afeganistão. É uma autêntica Vila, está em acelerado crescimento e a cada dia que passa as instalações melhoram e as condições de vida também. A base é neste momento gerida por Espanha e foi por sua iniciativa que se organizou um campeonato de futebol. Mais de uma dúzia de nações inscreveram-se e Portugal, embora tenha um dos contingentes mais pequenos nesta base, apenas a nossa equipa (17) e o destacamento médico (16) não deixou de se inscrever (os restantes portugueses presentes no Afeganistão encontram-se, na sua maioria, noutra base, denominada Camp Warehouse, onde estão actualmente cerca de 150 militares)90. Há um jogo por semana (nas tardes de sextas, sábados ou domingos) e até agora ganhámos os dois primeiros, contra a República Checa (2-0) e contra a Espanha (4-0)91. É claro que eu não jogo, nesse caso teríamos perdido de certeNota do Autor: “As capacidades e valências presentes no TO do Afeganistão passaram a partir de Outubro de 2010, a representar um efectivo de 182 militares (Equipas de Formadores/Instrutores) (30 militares), a OMLT de Guarnição (11 militares), a OMLT da Kabul Capital Division (17 militares), o Módulo de Apoio (112 militares), a CIM (4 militares), Pil.F-16-Dest. Belga (1 Militar) e o pessoal destacado nos HQ e outros cargos no TO do Afeganistão (7 militares)”, em http://www.emgfa.pt/pt/operacoes/missoes/fnd-afeg (consultado a 22 Outubro de 2010). Portugal já regista no Afeganistão dois mortos pela pátria, tendo sido recordados de uma forma particular por todos nós em Novembro de 2009, em Cabul, mais propriamente em Camp Warehouse, onde se encontra uma placa em sua homenagem junto a todos os mortos da ISAF no Afeganistão. Nunca Portugal esquecerá o enorme sacrifício dos nossos camaradas: primeiro-sargento de infantaria “comando” João Paulo Roma Pereira (a 18 de Novembro de 2005) e o soldado pára-quedista Sérgio Miguel Vidal Oliveira Pedrosa (a 24 de Novembro de 2007). 91 Nota de Armando Marques Guedes: Embora não sendo grande apreciador de futebol, não posso deixar de me congratular por o que constituiu um prenúncio feliz dos 7-0 que lográmos infligir à selecção da Coreia do Norte em 2010, no Campeonato do Mundo de futebol, 44 anos depois de termos conseguido guindar a jogo de uns lamentáveis 3-0, no fi90
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za. No final do jogo com a Espanha os jogadores de ambos os países juntaram-se numa petiscada e o tema principal foi que Portugal é um dos favoritos para a final, o outro favorito é a França. Será um bom prenúncio para o Mundial de África do Sul? Vi ontem, pela RTP Internacional, o nosso Colégio Militar a desfilar na Avenida da Liberdade em Lisboa. Comemora o seu 207.º aniversário e não há vento, nem chuva, nem frio que trave os alunos do Colégio Militar. Que força, que garbo, que orgulho! Não há melhor imagem que esta: contra as forças da natureza, ou contra outra força qualquer, ali estavam eles, os Meninos da Luz, com a garra da juventude, no melhor que o nosso Portugal nal da primeira parte, para uns heróicos 5-2, com quatro golos quatro marcados pelo nosso grande Eusébio na segunda. Mas foi infelizmente só um vaticínio antes do jogo.
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tem. Com grandes pequenos homens como estes como não ter esperança? Um Zacatraz desde Cabul! E entre esta fantástica equipa no Afeganistão que é a materialização, a cada momento, do verdadeiro “um por todos e todos por um”, cá seguimos sempre e mais motivados.
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5 de Março de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. O Respeito. Foi o que nos disse o Abdul, o nosso intérprete mais antigo, que os portugueses mostram imenso respeito em todas as suas atitudes e, como tal, somos respeitados. Por exemplo, disse ele: “Os portugueses nunca se esquecem de cumprimentar a nossa bandeira” no segundo andar do Quartel-general, e também “cumprimentam sempre os intérpretes dos outros estrangeiros. Os… nunca nos cumprimentam”. Além disso pedimos sempre licença para entrar, cumprimentamos todos na Divisão, não berramos nos corredores, não saímos disparados a meio das reuniões, não entramos nos gabinetes a comer e a beber café, etc. Dizia também o brigadeiro-general chefe de Estado-maior, Raouf, que nos admirava muito pela paciência que tínhamos para os ouvir sempre até ao fim. É respeito; é acima de tudo o reflexo da nossa educação, a que aprendemos em casa e no nosso país. Sinto verdadeiramente que somos muitíssimo respeitados. Disse ao brigadeiro-beneral Azimullah que, do nosso lado, o que mais admirávamos era o imenso respeito que os afegãos devotam aos “mais velhos”.
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Então ele explicou-me mais um pouquinho do sentido de família que existe no Afeganistão: O respeito pelos pais está entre as primeiras prioridades no Islão – “Se a tua mãe não te perdoar Alá também não perdoa”[…] “os três degraus para o púlpito do mullah na mesquita significam: 1.º acreditar em Maomé como mensageiro de Deus; 2.º respeitar os pais; 3.º praticar o jejum e orações” […] “O paraíso encontra-se aos pés dos teus pais” […] “Quanto maior é a idade maior deve ser o respeito”. Mais tarde, os nossos intérpretes Wais e Abdul, complementaram a informação: “Na nossa tradição é o filho mais novo que deve cuidar dos pais, mas eles podem escolher quem querem que cuide deles” […] “É um dever de qualquer filho cuidar dos pais até ao fim, e quando estão fraquinhos lavamo-los, alimentamo-los, ficamos sempre com eles”. Também não me esqueço do brigadeiro-general Raouf me dizer que respeitava o comandante interino, o brigadeiro-general Farooq (têm a mesma patente o que por vezes causa alguns atritos) porque ele era “Mais Velho”.
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Há muitas coisas na tradição afegã que não concordo, nomeadamente as que estão relacionadas com os (não) direitos das mulheres porém, tenho de admitir, sinto alguma inveja por este sentimento forte de família e que, de alguma forma, temos vindo a perder no nosso mundo, dito ocidental. No nosso mundo do corre-corre os pais passam/pensam pouco tempo com os seus filhos e depois são os filhos que se esquecem de estar/pensar com os pais… e por extensão, há tanta gente que perdeu a paciência para os “mais velhos”, ou pior ainda, simplesmente não lhes ligam nenhuma. Que desperdício, que estupidez; temos tanto, mas mesmo tanto a ganhar em manter, ou ressuscitar, o respeito pelos nossos pais, pelos nossos avós/bisavós/ tios, em geral pelos “mais velhos”. Nunca lamentei o tempo que ganhei a ouvir os “mais velhos”… há quem diga perder tempo… nada de mais errado. É sabedoria, são lições de vida, mesmo que na altura (claro sempre cheio de pressa para qualquer coisa) nos pareçam divagações e histórias repetidas, pois geralmente não são. Aprendi
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há muito tempo que são selecções criteriosas do que é mais importante, mais significativo, o que vale mesmo a pena recordar. Para muitos que me lêem, reconhecerão o nosso saudoso Tudela e sei que muitos de vós fizeram o mesmo que agora quero partilhar com os restantes leitores. O Tudela era um velhote algo casmurro, com aparente mau feitio e, sem dúvida alguma, uma das personagens mais queridas e respeitadas da Escola Prática de Infantaria em Mafra. Não vou agora contar a sua história, daria para muitas cartas92. Passava o seu tempo a trabalhar e algum do pouco tempo livre que tinha era passado na nossa sala de oficiais. Tantas vezes me sentei, junto a ele, em Nota do Autor: Foi publicada na revista Azimute, n.º 183, Agosto de 2007, a revista da Infantaria. A história deste grande homem, escrita pelo major (actualmente tenente-coronel) Álvaro Campeão e onde também pude dedicar uma pequena prosa poética ao nosso saudoso Tudela. 92
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silêncio e esperei. Não precisava de esperar muito, quase sempre ouvia reprimendas, avisos, recomendações e muitas histórias da sua rica e experiente vida, por vezes as histórias prolongavam-se… e depois? Todo o tempo que passei com o Tudela foi tempo ganho. Noutro dia, aqui na Divisão em Cabul, discutíamos onde se deveria construir o caminho entre uma caserna e as casas de banho e lembrei-me logo de uma das lições do Tudela: “Menino… não faça já o caminho aí (eu era o comandante da Companhia de Serviços). Espere para ver por onde passam os soldados e depois construa o caminho por lá, senão vai ter de fazer dois caminhos…”. Quando estava no Instituto de Altos Estudos Militares, sempre apareciam antigos oficiais da casa e o que ganhei em ouvir as suas histórias – sim, tinha imensas aulas para preparar, pouco tempo, mas não me arrependo de um minuto, foi tempo sempre ganho, enormes lições de vida. Lições que hoje me ajudam a decidir, a contextualizar melhor o que vou vivendo e o respeito que recebi de quem me quis contar as suas histórias. O respeito com que as ouvi atentamente e com enorme prazer, deram-me a riqueza de poder hoje contar com “mais velhos” que se preocupam comigo, com a minha família, que sei que lhes posso telefonar e pedir um conselho, uma palavra e, creiam-me, são sempre palavras sábias, têm-me (nos) ajudado tanto. É bom sentir que a tradicional educação portuguesa faz a diferença nestas paragens mas também é importante reconhecer que deveríamos fazer melhor na nossa perdida relação que vivemos hoje com os “mais velhos”. Não há respeito pelos “mais velhos” se não houver primeiro respeito pelos nossos pais, é isso que ensina o Islão, penso que é também isso que ensinamos em casa, mas são tantos os que se esquecem de praticar… O futuro de Portugal está na educação! OK, sempre ouvimos isso, mas educados significa antes de tudo respeitadores e não há dia que passe, no nosso país, em que não se oiça/berre “que falta de respeito!” de quem é a culpa? De todos nós. Noutro dia, numa amena cavaqueira entre a nossa equipa discutimos este tema. Estávamos todos de acordo, é fundamental saber ouvir, respeitar, incluir, aprender dos que mais nos deram, dos nossos “mais velhos”. É contando com todos que se constrói uma sociedade forte e coesa. É o que faz de nós verdadeiros seres humanos e humanizados. É com bom equilíbrio, na força das três idades, que se edifica um grande país. Cá seguimos, respeitadores, respeitados e motivados.
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9 de Março de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. O menino já sorriu, Sayed permitiu a primeira fotografia com um grande sorriso (ver Carta n.º 26)93. Esta é a boa parte da notícia mas tivemos um susto na passada sexta-feira quando o pai do Sayed nos telefonou a dizer que o menino não parava de sangrar. É assim, é a realidade desta doença: a hemofilia. Sabemos que ele não terá uma vida fácil. Mas o sistema funcionou, o nosso mentor foi de imediato levar o menino ao hospital, a nossa médica lá estava à espera dele e depois de duas horas a tentar parar a hemorragia o menino estabilizou. Ficou mais dois dias no hospital, desta vez foi a mãe que ficou com ele. Estão lá os medicamentos e todos os médicos e enfermeiros disponíveis para tratar o menino. Esperemos que não tenha de voltar tão cedo.
Nota de Armando Marques Guedes: Esta fotografia justifica, por si só, a publicação e a publicitação deste livro e destas cartas, a meu ver. 93
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No dia 8 de Março também em Cabul se comemorou o dia Internacional da Mulher. O Presidente Karzai esteve presente nos eventos. Muitas mulheres participaram. Passa por aqui o futuro do Afeganistão. Por isso é preciso apoiar estas iniciativas e não adianta gritar porque não é através de insultos que se vai aumentar imediatamente a integração das mulheres na sociedade. São realidades culturais diferentes, mas são gente sensível e inteligente. Vai melhorar, está a melhorar94, tem de melhorar. Este ano já houve mulheres a receber prendas dos seus maridos, amigas dos seus amigos. Muitas foram as que saíram à rua e o Presidente Karzai destacou a importância dos direitos das mulheres. Vêem-se melhorias. Foi emitida, em Inglaterra, uma fatwa contra o terrorismo e os bombistas suicidas. Foi no princípio de Março assinada por Muhammad Tahir ul-Qadri, um dos mais importantes clérigos muçulmanos do Paquistão: “Os atentados suicidas e os ataques contra civis não são só condenados pelo islão, mas deixam os perpetradores totalmente fora do rebanho do Islão; em outras palavras, tornam-se infiéis”. Não é a primeira fatwa a ser emitida mas esta tem por base um estudo bastante exaustivo de análise doutrinária que confirma esta tese95. É importante, porque assim é possível contrariar as teses dos fundamentalistas que fazem dos suicidas uns heróis mártires do Islão96. Os suicidas são Nota do Autor: Como foi já referido em várias cartas, uma grande parte da população, as mulheres, são discriminadas e, além de possuírem as mais baixas qualificações, são também vistas, ainda por muitos sectores da sociedade afegã, como seres humanos de condição inferior. Através de um crescente papel nas Forças Armadas e na polícia as mulheres – apoiadas por OMLT como a nossa – estão a ganhar protagonismo, respeito, importância e a contribuir, assim, para um maior desenvolvimento do país. As primeiras mulheres oficiais foram formadas na Escola de Comando e Estado-Maior afegão em Maio de 2010 (já depois de terminarmos a nossa missão) e tiveram como instrutores mulheres afegãs e equipas da NATO. Além do exemplo que representam para o Exército e para a polícia, pretende-se que se crie um efeito de integração que se transmita à restante população afegã conseguindo assim uma maior igualdade na sociedade. 95 Nota do Autor: “O clérigo, Tahir ul-Qadri, afirma que a sua fatwa de seiscentas páginas põe a nu a ideologia por detrás da violência de al-Qaeda e proíbe os ataques bombistas suicidas sem desculpas, pretextos ou excepções” em http://www.bbc.co.uk/portugueseafrica/ news/story/2010/03/100302_islamlondonlv.shtml. 96 Nota de Armando Marques Guedes: A questão tem tido uma clara evolução diacrónica que acelerou em anos recentes. Esperemos que como canto de cisne. 94
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mártires porque “está escrito. Ponto!” (ver Carta n.º 8), mas este religioso demonstra que o que está escrito é o contrário. Também é por aqui que se ganha a guerra, são mensagens de esperança, são mensagens de paz. De repente a nossa Divisão quase duplicou a sua capacidade operacional. Já temos mais um batalhão operacional a trabalhar, outro que chega no próximo mês, foi activado o Quartel-general da primeira brigada e os batalhões de apoio de serviços e de apoio de combate estão quase operacionais. Significa mais homens e viaturas no terreno, mais check-points guarnecidos, mais patrulhas e operações para impor a segurança. Poderá significar mais segurança na província de Cabul se o trabalho com a polícia e os serviços de segurança melhorarem também. É para aí que vai agora o nosso esforço. Tudo vale a pena se conseguirmos melhorar ligeiramente a segurança e sabemos que a recente ofensiva em Helmand provocou a mudança de acções por parte dos insurgentes. Estamos atentos e tentamos melhorar.
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A Divisão é agora um grande estaleiro. É óptimo! As obras por que tanto lutámos estão em pleno desenvolvimento. A nossa responsabilidade aumenta por cada obra realizada, a motivação dos militares afegãos também. Em todo este processo de melhorias envolvemos sempre os militares afegãos, e eles agradecem as obras e a inclusão. Nós discutimos as prioridades, mas são os generais afegãos que as definem. Nós estudamos os projectos, mas sempre com os afegãos, que depois supervisionam, opinam, corrigem, pedem alterações e nós fazemos tudo ao nosso alcance para o cumprir. Todos estamos a ganhar, as entidades que nos apoiam, as unidades que apoiamos e no nosso papel de mentores. Credibilidade, responsabilidade, palavra. De todos, com todos. Adoro ver as obras em andamento. Só faz obras quem acredita em melhorias. Ainda faltam dois meses para o dia da Independência mas já começaram os treinos para o grande desfile. Todos os dias, de manhã e à tarde! É um assunto levado muito a sério.
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Fui com o meu comandante assistir a um dos treinos, contámos pelo menos oito coronéis e um general a orientar os treinos. Bom, tanta patente junta também confunde um pouco. Todavia é assim, faz parte da realidade cultural, tem de correr bem! É uma questão de prestígio para a Divisão. Tivemos de adaptar um pouco as nossas rotinas. Durante os treinos é bem possível que os nossos “mentorados” estejam na parada, improvisada na placa do aeroporto e por muito tempo. Estivemos a assistir desde as 8h30 até às 10h30, já um pouco cansados perguntámos se ainda demorava muito: “Apenas mais uma hora!” Se é importante para a Divisão também será importante para nós. Gostaram de nos ver a assistir ao treino. Seguimos, como sempre pacientemente, motivados.
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14 de Março de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Partiram os militares do 2.º Destacamento Médico e chegaram os que os vieram substituir. É o ciclo das missões. O destacamento médico fez, de alguma forma, também parte da nossa missão. Vimo-los chegar e estivemos presentes na despedida. Vimos o ar ansioso, nervoso, com que chegaram e sentimos a força, o orgulho, a alegria com que partiram. A alegria maior foi, sem dúvida, por voltarem à família, mas era nítido em todos estes militares, lia-se bem nos seus sorrisos, o sabor da Missão Cumprida! Quem já sentiu este sabor de missão cumprida sabe que é a melhor recompensa que um militar pode ter. Estes militares, dos três Ramos das Forças Armadas, fizeram um trabalho notável, referenciado por todos os que passaram pelas suas mãos, desde afegãos a militares de muitas nacionalidades, homens e mulheres e, muito em especial, pelas crianças, que nunca esquecerão o enorme carinho português, para além da reconhecida competência técnica.
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Como habitualmente organizámos uma jantarada portuguesa com todos os portugueses presentes em KAIA para nos despedirmos e agradecermos o seu esforço e dedicação. Como exemplo da profunda dedicação conto um último episódio: embora tivessem de estar prontos para embarcar para Portugal às quatro da tarde, ainda estavam, um médico e um enfermeiro, nas urgências até à uma (tinha havido vítimas de uma explosão e nem hesitaram em trabalhar). Estivemos também presentes na recepção aos novos. Garantimos-lhes o nosso completo apoio. É a gente da nossa terra; farão também um excelente trabalho, só deixarão boa imagem de Portugal, estou certo disso. Conduzimos ao longo da semana passada uma avaliação interna da Divisão. Todas as áreas foram avaliadas: liderança, treino, operações, logística, informações, gestão de pessoal, etc., foram verificados procedimentos, doutrina, documentos, rotinas, e muito mais
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Não nos ficam grandes dúvidas: a evolução foi enorme nos últimos cinco meses mas ainda falta um caminho muito longo a percorrer97.
Nota de Armando Marques Guedes: O estudo e a decantação das lessons learned, muito desenvolvidos entre os militares portugueses, não são infelizmente i) extensíveis a outros corpos, e ii) raramente incluem os debriefings essenciais para uma boa coordenação de esforços. Como escrevi com Luís Elias, “num plano […] ‘táctico’, ou menos macro, notam-se ainda lacunas na preparação de quadros nacionais para missões internacionais, designadamente a falta de briefings regulares promovidos ao nível do MNE em parceria com o MDN, MAI, MJ, entre outros, sobre os interesses estratégicos nacionais no teatro de operações, contexto sócio-político e eventuais riscos e ameaças para os interesses portugueses. Por outro lado, a realização de debriefings prioritariamente direccionados para os militares/polícias/diplomatas/civis portugueses que desempenharam key positions, no quadro de diversas missões internacionais, deveria constituir igualmente uma prática sistemática, de modo a poder ser colhida informação de âmbito estratégico, táctico ou operacional, levantamento de problemas e dificuldades, bem como para corrigir erros através das lições aprendidas ou replicar boas práticas (do’s and dont’s). Assimilar as lessons learned… 97
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Para nós, esta avaliação foi como que um recordar de tudo o que nos propusemos a fazer desde a nossa chegada. Honestamente, confesso que nunca imaginei chegarmos tão longe, as dificuldades que encontrámos eram imensas, por isso esta foi mais uma grande lição de vida para todos nós, insistir, incomodar, lutar, barafustar, não desanimar com as respostas dos cinzentões (ver Carta n.º 21) e, no final sentir que de facto, compensa. Se compensa! Não se ganham todas, muitas ficam incompletas, contudo agora que tivemos de olhar para trás, foi mesmo muito o que conseguimos fazer, e quando digo nós, não me refiro só à nossa equipa, refiro-me também aos afegãos, a todos os de outras nações que também contribuem para a constante melhoria da Kabul Capital Division. Muito do que nos parece ser de melhorar resulta, aliás, de considerações advenientes da mais simples sensatez. A formação integrada e conjunta entre quadros e unidades militares, policiais, de emergência médica, de protecção civil (incluindo exercícios regulares) que ajudem a robustecer e a consolidar uma intervenção integrada em cenários de crise parece-nos também essencial. Esta formação para cenários internacionais poderia ser rentabilizada ao nível interno, através da sistematização de procedimentos em situações de desordem pública de grande dimensão, atentado terrorista e catástrofe natural de âmbito nacional”. O que nem sempre tem sido o caso.
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Como consequência, trabalho gera muito mais trabalho. Há tanto, mas mesmo muito, ainda por fazer. Mas temos a certeza de uma coisa, compensa bem todo este esforço. Ontem morreu o ferido, amputado da perna, que fomos visitar e oferecer um cabaz no Hospital Militar há cerca de um mês (ver Carta n.º 24). Aparentemente morreu devido a uma infecção grave. Os generais Azimullah e Raouf disseram-me que foi tratado com negligência. Não sei. Apenas sei que sinto uma revolta enorme. É diferente quando são nomes sem rosto, mas este ferido… falei com ele, ele falou-me dos seus três filhos e mulher, e agora? Olhar para a frente. Sugeri ao general, que no futuro, os médicos da Divisão fossem regularmente ao Hospital Militar verificar a situação dos seus militares e, caso a situação justificasse, tentaríamos uma consulta no Hospital Internacional. Há dois dias uma mulher foi acidentalmente baleada numa perna, em frente da Divisão por um procedimento incorrecto nas operações de segurança a uma arma. Não devia ter ocorrido mas foi de imediato transportada para o Hospital Militar e a família recebeu pronto apoio. O general Raouf foi apresentar-se perante a família e pedir desculpa. A família, muito pobre e em choque, aceitou as justificações.
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O general ficou para a intervenção cirúrgica que teve lugar à 1h30 da manhã. São estes pequenos gestos de responsabilidade que nos motivam. O responsável pela Divisão foi de imediato assumir as responsabilidades e, depois, pediu-nos apoio para fazer um cabaz para a família. Já estamos a tratar disso. A vigilância no hospital vai ser desta vez mais apertada. Não se poderá repetir mais uma desgraça. Os generais estão atentos, nós também. As temperaturas subiram, a neve derreteu e parece que a Primavera chegou mais cedo. Com o sol chegaram as árvores para plantar. Por todo Cabul vêem-se árvores a serem plantadas, também na nossa divisão se vão plantar mais de 2000 árvores.
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Há 30 anos, os mais velhos recordam-se de Cabul e arredores cobertos de árvores. Mas foram os 30 anos de conflito que levaram à contínua destruição das árvores, dentro e perto da cidade, porque na esmagadora maioria foram cortadas para servirem de aquecimento, construção, cozinhar e, nomeadamente pelos soviéticos, foram cortadas para retirar sustento aos insurgentes! A terrível política de terra queimada. É claro que não se plantaram árvores novas. Por isso é hoje uma cidade da cor do deserto, seca, cheia de poeira. Esta é uma actividade que se iniciou em 2004 e tem vindo a manter-se. O Presidente Karzai tem dado o exemplo e já nesse ano de 2004 afirmava que as pessoas “vão tomar conta das suas árvores como tratam os seus filhos”98. Plantar para pôr de novo a cor verde, querem melhor sinal de esperança do que este? Pode não se traduzir em paz e segurança mas sem dúvida que traduz o que mais precisam estes povos no Afeganistão: esperança! Um pouco de alegria no pessimismo em que milhões vivem agarrados. Cá seguimos, com esperança e motivados.
Nota do Autor: “We are very happy to be planting trees in Kabul. And I hope through this planting of trees, the people of Afghanistan will – in their homes, in front of their businesses and shops and workplaces, and wherever they can – plant a tree and look after that tree for the beauty of their place of work, of their homes, of the country; for the good weather of the country, for the greenery of the country, for reducing the dust and dryness in the environment of our country. And that they will look after the trees that they plant like they look after their own children.”, discurso proferido por Karzai em http://www.rferl.org/ content/article/1052030.html. 98
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CARTAS DE CABUL – N.º 32
21 de Março de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Mais uma operação humanitária num campo de refugiados. Desta vez foi apenas a parte médica, sabíamos dos problemas graves de saúde que existiam neste campo e não esperámos mais tempo. Como ainda havia medicamentos suficientes avançámos para mais esta operação. De novo tivemos os médicos e enfermeiros da Divisão, as médicas e enfermeiras que ajudaram na última operação, a coordenação e liderança pelo Departamento Religioso e Cultural e a protecção da força garantida pelo 2.º Kandak. Foi prestada assistência, separadamente, a homens, mulheres e crianças e correu tudo muito bem. É interessante ver os desenvolvimentos na preparação e coordenação de operações. Na anterior operação que aqui descrevi (ver Carta n.º 28), houve algumas resistências para pôr diferentes departamentos da Divisão a cooperar. Mas o sucesso e o sentido de utilidade que experimentaram tornou fácil, excelente, o nível de cooperação para mais esta ajuda a famílias em severas necessidades.
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Sinal de que as coisas já “rolam” sozinhas foi o facto de, ao contrário da última operação em que tivemos quase duas horas de atraso para a iniciar, esta foi lançada antes da hora determinada. Excelente sinal. É esta precisamente a nossa missão que, no futuro, tudo se possa fazer sem a nossa ajuda. Foi mais um passo importante. Lembram-se da escola degradada onde fomos distribuir mochilas? Nessa altura ficámos tão impressionados com as péssimas condições da mesma que prometemos tentar fazer qualquer coisa. Recordo que a escola serve uma população de 2300 alunos, entre meninos e meninas divididos em três turnos. Sem portas, sem janelas, sem cadeiras… Bom, têm a descrição completa na carta n.º 12. No mesmo dia em que regressámos da escola escrevemos um memorando a descrever a situação e perguntar o que seria possível fazer. Qualquer “coisinha” já seria bom: janelas, portas, cadeiras e mesas, ou mesmo plásticos grossos para tapar as janelas, algumas obras. Contudo, referimos que bom mesmo
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seria construir uma escola nova. Completámos o memorando com a descrição da escola, a exacta localização, dependências, os nomes da direcção e, claro, juntámos fotografias. Há dois meses recebemos a primeira boa notícia, o tenente Chisam disse-nos que o nosso pedido estava bem encaminhado. Perguntei em que sentido? Resposta: “ Vamos tentar construir uma escola nova!” Na semana passada tivemos a confirmação: foi aprovado o projecto, só falta agora elaborar o contrato com uma empresa construtora. Insistir compensa, principalmente se fizermos bem o nosso trabalho de casa. Fui contar ao general Azimullah as boas notícias. Os seus olhos brilharam!!! Mas ainda há muito para fazer, para coordenar, para garantir a pronta construção da escola. Dizia-nos o Tony (tenente-coronel da Força Aérea dos EUA, responsável pelo apoio logístico à Divisão) antes de terminar a sua missão: “Sabem, muitos dos que aqui tomam decisões têm hoje um fraquinho pela vossa OMLT, se são os portugueses da KCD a pedir, então vamos dar toda a atenção…”.
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Uma escola nova!! Esta, sim, é uma operação humanitária com efeitos permanentes, obra que fica feita! Nós apenas demos um empurrãozinho mas estamos muito orgulhosos! O futuro está nestas crianças. Fui ontem agraciado com a Medalha Militar de Campanha da Bulgária. Foi uma grande honra. Em mim, os militares da Força búlgara, quiseram agradecer toda a cooperação que receberam da nossa equipa. No início da missão os militares da Força búlgara encontraram alguma dificuldade em estabelecer a ligação com as restantes Forças da ISAF e afegãs. Dirigiram-se a nós e pediram-nos ajuda. Nós demos-lhes todo o apoio e apresentámo-los aos militares afegãos, às Forças internacionais, incluímo-los nas nossas reuniões e, mais importante, ficámos disponíveis 24 horas por dia. Ao longo destes seis meses fomos cooperando, ajudando e coordenando. São “gente brava”, estes militares da Bulgária, têm a difícil responsabilidade da segurança na zona norte de Cabul em redor do aeroporto. Todos os dias faziam no mínimo quatro patrulhas por dia e muitas vezes guarneciam check-points durante 24 horas a norte da cidade. Quando havia um ataque na área
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sob sua responsabilidade eram quase sempre os primeiros a chegar. Também lhes devemos a nossa segurança. Assim, ontem foi a cerimónia de transferência de autoridade entre as Forças búlgaras na parada “Patriot Square” de Camp Phoenix aqui em Cabul. Ao meu comandante entregaram uma placa em reconhecimento do nosso esforço, e foi-me entregue a medalha (também recebi um diploma: ainda não sei o que lá está escrito porque o meu cirílico não é lá grande coisa…). Além de altas entidades civis e militares de vários países, também estava presente o brigadeiro-general Raouf em representação do Exército afegão, assim foi mesmo uma cerimónia entre amigos. Foi uma enorme honra, uma distinção e, ainda para mais, pelo prazer de sermos reconhecidos por “gente brava” de grande qualidade.
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Hoje faz anos a minha menina mais nova. É mais um aniversário que não estou presente, mas mandei-lhe uma cartinha especial (penso que compreenderão, não a vou partilhar). Sei que tem uma festinha óptima com a família e amigos e eu lá tentarei estar com a ajuda do Skype! A minha menina passa a teenager, assim já fico com duas em casa, embora adore as minhas meninas ainda bem que aprendi a viver em condições difíceis no Afeganistão, sempre ajudará a lidar com duas teens ao mesmo tempo… Todos os dias agradeço a fantástica família que tenho, somos de facto muito felizes, tenho esperança de que assim continue a ser por muitos e muitos anos. Parabéns filhota! Hoje é o primeiro dia do ano novo no calendário islâmico, 1 de Hamal de 1389. Neste dia de festa, seguimos motivados.
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25 de Março de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. “Cemitério dos Impérios” assim se chamou a excelente reportagem do jornalista da RTP, Luís de Castro, que passou ontem na RTP 1 no programa Linha da Frente 99. Perdoem-me o desabafo mas, finalmente, se dá alguma atenção ao que os militares portugueses fazem no Afeganistão100. Nota do Autor: A reportagem está disponível no blogue do jornalista Luís de Castro: http://cheiroapolvora.blogs.sapo.pt/. Também é possível encontrar no blogue, alguns posts seus e comentários de muitas pessoas sobre o trabalho dos militares portugueses no Afeganistão. O Luís, num dos seus posts, incluiu extractos desta carta. 100 Nota de Armando Marques Guedes: Confesso que foi este um dos principais motivos que me levaram a incentivar o Nuno a publicar este livro e a participar com ele na sua feitura: a vergonha que desde há muito sinto quando penso no quase total alheamento da nossa gente (e sobretudo dos nossos governantes e jornalistas) em relação ao esforço titânico das nossas Forças Armadas e das nossas Forças de Segurança e ONG em múltiplos cenários de conflito por esse mundo fora. A história de sucesso da “cooperação portuguesa”, é uma perna essencial da nossa política externa. Já é tempo de os responsáveis nacionais deixarem de encarar os nossos que nelas se embrenham – com enormes riscos e sucessos, sofrimentos e maturação – como meros instrumentos de conveniência política. 99
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A reportagem foi feita no passado mês de Fevereiro. Já conhecia o Luís pessoalmente de algumas trocas de palavras no passado, mas conheci-o melhor, tal como cada um de nós, através do grande nível profissional do seu trabalho. Quando aqui chegou falámos um pouco, e depois de discutirmos variados temas, veio o assunto das cartas de Cabul. Acabei por lhas entregar e ele faz, desde aí, com grande prazer meu, parte dos destinatários das cartas. Já aqui escrevi no passado, há gente boa e menos boa em todas as áreas, em todas as profissões, mas o Luís é de facto um símbolo de excelência no jornalismo português. Não digo isto por o considerar também meu amigo, afirmo-o com convicção, pela admiração do seu trabalho, da obra produzida, pelos livros que editou, os riscos que correu, as verdades que ousou dizer, as boçalidades que nunca disse, a grande educação e respeito que demonstra por todos, em todos os momentos e, fundamentalmente, pelas excelentes reportagens que realiza.
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Connosco foi de uma correcção extrema. Sabia o que queria mas nada impôs, nós nada lhe impusemos também. A Acompanhar o Luís de Castro vinha o repórter de imagem Paulo Oliveira. Formam uma boa equipa. Acompanharam-nos num dia normal de trabalho, falaram com quem quiseram, filmaram o que desejavam, perguntaram o que tinham pensado perguntar e sentiram o que fazemos por estas bandas. Afinal é esta a grande diferença entre um bom trabalho e um trabalho de excelência, é que na excelência há emoção, entrega, verdadeiro interesse e vontade de saber mais. Estiveram connosco na Divisão, foram nas nossas viaturas até um check-point nos arredores de Cabul e visitaram os militares do destacamento médico. Gostámos de os ter por cá. Sentimos orgulho por termos sido assim referidos, ainda mais por esta boa imagem de Portugal e das suas Forças Armadas. Graças a esta reportagem na Linha da Frente, os portugueses passaram a saber o que fazemos por cá em seu nome.
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Provavelmente fizemos a nossa última operação de Cerco e Busca, numa zona a sul de Cabul. Foi mais uma missão, difícil e exigente, numa área complicada onde sabíamos estarem escondidos muitos insurgentes. Como nas anteriores operações dividimos a equipa em três grupos, na frente no posto de comando avançado, na Divisão no posto de comando principal (no TOC) e na base de Kaia no posto de comando recuado. Iniciámos a operação às 3h15 do dia 24 de Março mas às três já o 1.º Kandak tinha isolado a área onde se desenrolaria o cerco e busca às casas, ao longo de um vale numa extensão considerável. As buscas só se iniciaram pelas seis a cargo da polícia e dos serviços de segurança, que integrava elementos femininos. Correu muito bem. Foram capturados três insurgentes, material variado e armamento e, tal como na última operação, sem ter sido disparado um único tiro. Participaram nesta operação 25 elementos dos serviços de segurança, 250 da polícia e 230 da Kabul Capital Division. A máquina está cada vez mais “bem oleada”, estive no posto de comando principal desde as quatro horas e foi com satisfação que vi a informação a fluir, pequenas decisões a serem tomadas e preocupações com possíveis alterações na operação.
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Acompanhámos também os nossos na “linha da frente”, da OMLT e da Force Protection, e confirmámos que de facto a informação que íamos recebendo era exacta. Conversando com o brigadeiro-general chefe de Estado-maior, Raouf, disse-lhe que agora que está para breve a nossa partida, me dava cada vez mais prazer trabalhar com os militares afegãos. Resposta dele: “Tenho muita pena que se vão agora. Porque não vais a Portugal ver a família e depois voltas para cá?” Amanhã é a final de futebol de Kaia: Portugal – França. Já tinha referido este campeonato na carta n.º 28 e depois das vitórias que aí narrei contra checos e espanhóis continuámos, no caminho até à final, a vencer todos os jogos. Derrotámos a Turquia, a equipa internacional dos bombeiros (que tinha dois portugueses…), a Roménia e agora é a final com a França. Depois conto o resultado, mas já ganhámos muito: respeito pela forma como nos comportamos em campo, pelo apoio geral dos poucos portugueses que estão em Kaia (até cartazes e bandeiras levam para os jogos!) pelo agradável convívio com muitos países e, acima de tudo, pelos bons momentos de descontracção neste exigente ambiente em que nos encontramos.
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E jogámos bem! (eu não jogo por isso posso falar…), nas meias-finais contra a Roménia estivemos a perder 2-0 e acabámos a ganhar 5-2101, muita garra e determinação, prontamente elogiado por muitos militares de várias nacionalidades que ao longo dos últimos dias o têm referido aos nossos jogadores. Vamos lutar por conquistar a final102 mas a vitória de “saber jogar e apoiar” já é nossa! Chegou hoje a equipa que nos vem render e iniciámos um período de três semanas de sobreposição103. Mais perto de voltarmos a casa, seguimos motivados. Nota de Armando Marques Guedes: Quase como com a Coreia do Norte e o nosso Eusébio, no Campeonato do Mundo de 1966. 102 Nota do Autor: E ganhámos! Foi uma final renhida mas vencemos, no campo e fora dele, no entusiasmo e no apoio de militares de muitas nacionalidades. Depois foi a festa a possível. 103 Nota de Armando Marques Guedes: Estes debriefings são muitas vezes cruciais. 101
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2 de Abril de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. O Presidente dos EUA, Barack Obama, fez uma curta visita a Cabul. Chegou de surpresa, reuniu-se com o Presidente Karzai, alguns membros do governo e foi a Bagram, a gigantesca base dos EUA a norte da cidade, onde falou às tropas. O Presidente dos EUA é, como são muitos chefes de Estado de outros países, incluindo Portugal, o Comandante Supremo das Forças Armadas. E falou como um Comandante. Parecia que estava a seguir o articulado de uma ordem de operações104. Começou por enquadrar o ambiente difícil que se vive, a “situação”, primeiro local, depois regional e global, das forças aliadas e dos insurgentes. Nota do Autor: A ordem de operações é talvez o documento mais conhecido entre os militares, é através dele que se executa uma operação militar com um articulado estandardizado que todos os militares sabem de cor. Primeiro descreve-se a situação geral e particular, depois vem a missão e a intenção do Comandante, segue-se o conceito da operação, a execução com as missões às várias unidades e a seguir as tarefas no âmbito logístico e de comando e controlo (bom, tem muito mais do que isto com inúmeros anexos e apêndices, mas estes parágrafos gerais nunca deixam de estar referidos).
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Depois falou da “missão” e foi claro, repetiu a sua/ nossa estratégia e o que desejava no final. Explicou detalhadamente a “Intenção do Comandante”105 e a relação entre as acções no terreno e os objectivos vitais a defender pela nação. No parágrafo da “execução” referiu os perigos, as operações principais, a relação com actividades militares a decorrer no Paquistão, o esforço logístico, etc. Terminou com prazos, planos de curto, médio e longo prazo e terminou com a certeza de que todos estavam ali para vencer, sem esquecer a importância dos aliados e do povo afegão: “Estou absolutamente convencido de que, Nota de Armando Marques Guedes: A “intenção do comandante” é a tradução portuguesa corrente da expressão commander’s intent. Até aos anos 70, os militares norte-americanos tendiam a centralizar enormemente os mecanismos de tomada de decisão; mas cedo a realidade os fez compreender que era preciso ir mais longe, e fazê-lo de modo adaptável. Embora variantes informais de alguma descentralização o tenham antecedido, o conceito operacional de commander’s intent apareceu como doutrina oficial norte-americana no US Army Field Manual (FM) 100-5, intitulado Operations, em 1982. Em Portugal o conceito foi pouco depois igualmente adoptado. A noção é no fundo uma transformação-adaptação do conceito de Auftragstaktik, usado pelo Exército alemão desde o século XIX – a que o commander’s intent dá uma interpretação moderna. A expressão Auftragstaktik dos prussianos é melhor traduzido como um comando mission-oriented – e o conceito foi desenvolvido em resposta aos métodos de fazer guerra de Napoleão, que deslocaram, varrendo-as do terreno os exércitos tradicionais com as suas tácticas lineares, a sua disciplina de ferro e obediência cega ligada a uma quase total intolerância relativamente a quaisquer acções independentes. Mais do que um mero conjunto de procedimentos avulsos, a Auftragstaktik transformou-se numa “norma social”, numa autêntica “filosofia” que permeou o Exército alemão – com grande proveito operacional – embora lá nunca seja referida. Na sua base, está tomada de consciência de que batalhas são lugares de confusão, ambiguidades, e imprevisibilidade – nos quais os actores são forçados a operar “on the edge of chaos”, como hoje dizemos. Os generais das Forças Armadas germânicas decidiram, em resultado, trocar a certeza do controlo pela segurança de actuação auto-induzidas, ao desenvolver com toda a deliberação uma “norma cultural” militar de apoio e expectativa de que acções decisivas podiam e deviam ser levadas a cabo pelos seus subordinados em resposta à incerteza e/ou à ambiguidade com que tinham de se confrontar no terreno. O ponto fundamental da Auftragstaktik, de acordo com a formulação implícita da doutrina alemã, era “a confiança”: a confiança de que os seus subordinados saberão tomar as melhores decisões face à informação que têm, e a confiança dos subordinados em que essas suas decisões serão apoiadas pelos comandantes. No meu livro Ligações Perigosas. Conectividade, Coordenação e Aprendizagem em Redes Terroristas, publicado pela editora Almedina, de Coimbra, e lançado na Academia Militar, discuto nalgum pormenor este conceito e as suas variantes modernas, viabilizadas pelas novas tecnologias de comunicação. Infelizmente, este vínculo fundacional de “confiança” tem sido muitas vezes perdido nas transposições do conceito de commander’s intent para outras doutrinas.
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com os nossos parceiros, seremos capazes.” […] “Queremos construir uma relação de longo prazo com base em interesses e respeito mútuo.” No meio deste intenso e curto discurso, falou directamente para as tropas e disse algo muito importante, que os media quase não referiram: que ele cuidava das famílias dos militares enquanto estes estavam na “linha da frente”. Descreveu o aumento do apoio às famílias, em creches, escolas, saúde, na procura de emprego para o casal, na protecção social e médica, num aumento dos vencimentos e subsídios, numa melhor política de recuperação dos deficientes das Forças Armadas, etc. A grande preocupação, para quem anda nestas andanças, não é pela própria segurança, é antes pelo bem-estar daqueles que deixamos para trás e a última coisa que desejamos é que os nossos sofram, seja pela incapacidade de não estarmos lá para ajudar nas mais pequenas coisas… um cano que rebenta, o carro que não pega, levar um dos miúdos que deu uma queda ao hospital, responder a uma carta das Finanças, tarefas no jardim, na cozinha, na casa… seja em assuntos mais graves, que não será necessário enumerar e, o que verdadeiramente nos preocupa, é pensar que um dia aqueles “que somos” possam receber uma má notícia vinda destes lados. O Presidente dos EUA percebe esse sentimento e por isso complementou o seu discurso: “Quero agradecer os esforços inimagináveis e os enormes sacrifícios dos soldados no terreno” – é isso que se quer ouvir de um Comandante e, políticas à parte, Obama foi um bom Comandante nessa noite.
Ontem tivemos um dia muito triste. Uma das obras em que tanto nos empenhámos, nós, os americanos que nos apoiam, as chefias da Divisão, na construção de alojamento temporário em tendas para o 6.º Batalhão (Kandak), aqui designado de “Tent City”, teve um incêndio devastador. Infelizmente vivi a situação desde o primeiro minuto. Estava mesmo a passar ao lado da tenda onde tudo começou. Plásticos, pano e madeira… material altamente combustível, o alastramento às outras tendas foi ime-
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diato. No total arderam 17 das 28 tendas e ficaram danificados sete dos 14 contentores WC. A boa notícia, de longe o factor mais importante, é que não houve vítimas. A acção da nossa equipa foi bastante relevante, ajudámos a coordenar o combate ao fogo, no isolamento da área (há sempre munições por perto além de quatro geradores cheios de combustível) e na posterior procura de soluções para montar novos alojamentos e adquirir materiais urgentes (camas, cobertores, água, sacos-cama, geradores, WC, etc.). Foi uma longa maratona… Custou-me muito ver a “Tent City” destruída. Lutámos tanto para que estivesse pronta a tempo de receber estes novos soldados e, depois, quando estes fossem para instalações definitivas sempre ficaríamos com instalações para reforçar a capacidade alojamento de militares “em trânsito” pela unidade, nomeadamente os do “Kutchi Kandak” (ver Carta n.º 18). Mas queria realçar que não fugimos dali quando o incêndio começou, ajudámos, demos a cara e fomos à luta para encontrar soluções no curto, médio e longo prazo. Em conjunto com os nossos parceiros afegãos e da ISAF conseguimos elaborar um plano exequível e condigno. No final do “longo” dia dizia-nos o brigadeiro-general Raouf, chefe de Estado-maior: “Sei que vocês ainda sofrem mais que nós por esta perda […], nós nunca vos vamos esquecer […] sempre estiveram ao nosso lado e nestes momentos difíceis ajudaram-nos imenso! São gente muito honesta e dedicada. Obrigado”. Estamos tristes, mas ao mesmo tempo… E se o incêndio tivesse ocorrido durante a noite? Graças a esta desgraça encontrou-se uma solução permanente para o alojamento destes militares; pode ser que assim ainda fiquem melhor instalados… vamos ver. Com todo este reconhecimento do nosso trabalho, nos melhores e nos piores momentos, não podemos deixar de nos manter motivados. Uma Páscoa Feliz.
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7 de Abril de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Num momento em que os efeitos do assassínio de Terre’Blanche106 estão a marcar a actualidade gostaria de falar sobre o mundial de futebol na África do Sul. Como devem ter depreendido por algumas das minhas cartas tenho uma especial paixão por África. E este ano o Mundial poderá ser fabuloso! Não sei se Portugal vai ganhar ou não, espero bem que faça um excelente campeonato, mas sei que o mundo vai ganhar imenso! Pois… lamento desiludir alguns dos leitores mas sou daqueles que acredito na força do desporto, em concreto, do desporto-rei: o futebol. Não encontro nada de mal em ver uma nação com bandeiras por todo o lado durante um europeu, como foi em 2004, adoro ver as pessoas comoveNota de Armando Marques Guedes: Eugene Terre’Blanche foi um bóer sul-africano, fundador de um movimento que apelidou de Afrikaner Weerstandsbeweging – AWB (Movimento de Resistência Africaner, que defendia o apartheid na República da África do Sul). Foi assassinado na sua fazenda por dois dos seus empregados numa rixa que teve lugar a 3 de Abril de 2010. O Presidente sul-africano, Jacob Zuma, do African National Congress, com grande dignidade, de imediato classificou a morte como “a terrible act”, que pôs em causa a harmonia nacional do pós-apartheid.
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rem-se durante o hino, com as vitórias, a berrarem pelo seu país. Pode haver sempre um lado negativo, mas une-nos por um bom motivo; e quando é jogado com nobreza e fair-play, então é um espectáculo de força, garra, honra e muito importante, é uma luta sem feridos ou mortos, onde um vencido pode sentir admiração pelo vencedor, sem rancor. Muitos dos jogos poderão não ser assim, mas quando o são… é uma sensação extraordinária. E porque estou eu a falar de futebol em Cabul? Porque o que mais precisamos no Afeganistão é de esperança (talvez a palavra que utilizei mais vezes nas cartas) e o campeonato de futebol em África pode fazer muito pelo reavivar de esperança no mundo. Já me sinto a ver as danças, as músicas, o profundo entusiasmo, a entrega total, as cores vivas, a loucura dos africanos durante os jogos de futebol… vão contagiar tudo e todos, vão fazer cantar os mais desafinados, fazer dançar os que nunca se levantam das cadeiras; tudo isto num ambiente fantástico de
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cor, energia, com gente de todas as religiões, culturas, continentes, oriundas de países em paz e em guerra, apenas para desfrutar, torcer, se calhar rezar pela vitória de um país. Mas será, tenho esperança, uma festa de todos107. E um continente sofredor como África, poder ser o exemplo da alegria, da esperança, só pode ter um efeito alastrador. Logo na África do Sul, país que muitos julgavam hoje no meio de uma terrível guerra civil… cheia de antigos ódios e divisões… que este triste episódio Terre’Blanche veio avivar. Todavia na sua maioria os sul-africanos têm lidado com muita tolerância e compreensão, embora existam muitas tensões e problemas por resolver. Todos esperamos que continuem em paz. Nota do Autor: Na altura não sabia ainda o que era uma vuvuzela infelizmente esse som ensurdecedor abafou muita da festa, dos sons, dos ritmos e dos cantares, foi uma pena, mas ainda assim a festa foi de facto óptima.
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Se a África do Sul pode viver em paz e organizar um campeonato como este porque não poderão ter esperança os países que hoje sofrem? Que o Afeganistão possa sentir este efeito de união, de encontro, de tolerância, de vontade e acima de tudo de Esperança! Começaram as despedidas. São momentos difíceis, tristes e alegres, por um lado significa estarmos mais perto de casa, do outro, dizer adeus a quem muito estimamos. Ouvimos e dizemos palavras sentidas, nunca imaginei que me sentiria desta forma, com enorme orgulho pelas amizades construídas, com grande tristeza de os deixar… Primeiro despedimo-nos dos nossos intérpretes, mas foram eles que nos convidaram para um almoço de despedida. Nós cedemos o espaço e eles trouxeram tudo. Foi sem sombra de dúvida, a melhor refeição que tive no Afeganistão. Uma carne deliciosa, um arroz estupendo, o pãozinho, hummmmm!, e o mais importante, num ambiente fantástico de grande amizade e franca camaradagem. Afegãos e portugueses, afegãos de todas as etnias e militares de Portugal, em grande comunhão, com enorme respeito, com sentida emoção pela despedida, com orgulho pelo trabalho que realizámos em conjunto, por, no fundo, nos termos tornado uma só equipa. A eles demos as nossas “moedas” (medalha da nossa OMLT, quem a recebe passa a pertencer à equipa), entregámos os merecidos louvores e eles retribuíram, além do delicioso almoço, com o chapéu e lenço tradicional “à Massoud”. Depois foi a despedida dos portugueses, antigos militares da Força Aérea, que trabalham no aeroporto internacional de Cabul.
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Um petisco bem português, bacalhau, presunto, cerveja Sagres e vinho tinto nacional. Para eles também a moeda, para nós uma placa. Gente que representa muito bem Portugal por estas paragens, além da elevadíssima competência técnica reconhecida por todos; são excelentes instrutores dos pilotos afegãos e à boa maneira portuguesa são o símbolo do bom ambiente que todas as nações aliadas reconhecem108. Nessa noite, depois do jantar, tivemos mais um bonito momento: inaugurámos a Bandeira Nacional no Bar multinacional de KAIA. Foi com orgulho que nos juntámos, uns à civil (nota-se que não despiram completamente a farda…) e nós fardados juntos à nossa bandeira. Acreditem, tem outro sabor em terras distantes e difíceis, quando pudemos fazer a diferença e ouvir “Portugal! Very Gooood!” Falta pouco para a partida e o trabalho não pára: estamos a meio de uma avaliação externa, muito exigente e abrangente, à nossa Divisão. As operações continuam com resultados cada vez mais visíveis, ainda ontem foram apreendidas centenas de munições de morteiro (ver foto) e hoje foram, durante uma operação a norte de Cabul, capturados quatro insurgentes; estamos naturalmente satisfeitos. C’est la vie! As emoções apertam, a saudade pela família já queima, de Portugal chovem avisos para termos cuidado nestes últimos dias, desejando nós também que tudo corra bem até ao último minuto, seguimos bem motivados.
Nota de Armando Marques Guedes: Mais do que isso, e talvez mais importante do que esse reconhecimento, é o facto de o Estado português ter sabido manter-se, nos últimos anos, como um aliado fiável.
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CARTAS DE CABUL N.º 36
14 de Abril de 2010, sou três filhos, a mulher que amo e estou em Cabul, no Afeganistão. Se Deus quiser (e a Força Aérea ajudar) esta é a última carta que escrevo desde Cabul. Diz-se que um homem não chora, um militar está sempre no posto, não mostra medo nem temor, enfrenta tudo com força e determinação e, por isso, quando tem alguma fraqueza deve esconder esses sentimentos e nunca os mostrar em público. Estou de acordo, mas no entanto vou, contra todas as elementares normas de prudência e sensatez, expor algumas das minhas fraquezas na intimidade desta última carta. Já levo alguns anos de missões militares e passei por algumas situações apertadas, estive várias vezes longe da família e tenho tido uma vida extraordinariamente feliz. À boa maneira portuguesa, fico com aquela sensação de que isto não se deveria dizer porque pode a seguir ocorrer algo de mal… pois também nisto sou imprudente. Nunca vos aconteceu, quando estão sozinhos, que gostariam de
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chegar a casa e dizer às vossas mulheres/maridos/namorada(o)s/filhos/… que os amamos verdadeiramente, que têm tido uma felicidade enorme porque… mas depois não dizemos, porque ou temos vergonha, ou não sabemos como dizer, e ficamos a pensar que somos portugueses e estas coisas, “estas lamechices”, não têm de ser ditas. Pois, pelo menos a mim já me aconteceu demasiadas vezes e por isso quero aproveitar esta oportunidade em que estou com a saudade/emoção ao máximo e a razão no mínimo, e dizer o que me vai na alma. Quero primeiro agradecer aos meus queridos amigos e família pelo tempo que dedicaram à leitura das minhas cartas. Fizeram-me muita companhia, obrigaram-me a pensar no que fazia, porque fazia e para quem o fazia… Revivi também momentos antigos, fiz reflexões novas, aprofundei pensamentos e as inúmeras mensagens que recebi de conforto, reflexões, encorajamento foram sempre muito importantes e ajudaram-me imenso, porque também vivi uns poucos momentos de ansiedade, saudade… não, aqui ninguém me viu deprimido ou chocho, porque são momentos vividos na intimidade, mas tive os meus ups and downs, que confesso não me afectaram no desempenho da missão, mas, quando nos lembramos daqueles que somos e não os podemos ter ao nosso lado, custa muito, são momentos que depois passam e mais tarde voltam… É bom sinal, temos a quem amar e sentimos que temos quem nos devolva o sentimento, haverá melhor sensação? Dizia-me um dos oficiais que nos vieram render que se recorda de mim dos tempos do Colégio Militar, como estando sempre bem-disposto. Ele na altura estava no primeiro ano do Colégio Militar e eu no último. Acrescentou que sempre me viu assim… Não é verdade que ande sempre bem-disposto, mas sempre escondi os meus “tristes estados de alma”, a emoção contagia e estar muito tempo com um trombudo faz-nos trombudos também. Por isso sou um fervoroso adepto do “tristezas não pagam dívidas” e que se devem guardar os momentos de partilha de sentimentos menos alegres para ocasiões de recato, com um ou outro amigo, com a minha mulher ou outro familiar mais próximo, mas de resto, sorriso gera sorriso! Convicção contagia motivação! E nada melhor que uma sincera gargalhada. Aos meus amigos queria agradecer a sincera amizade, obrigado por me fazerem sorrir, por estarem aí. À minha querida e fantástica família onde tive a sorte de crescer, obrigado por o serem, pelo apoio incondicional que deram, especialmente à minha cara-
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-metade e aos meus filhotes (este agradecimento também é extensível aos muitos amigos que sempre estiveram disponíveis). A vida faz muito mais sentido assim. Entre as forças aliadas fiz novas amizades, conheci grandes homens de uma enorme humanidade e dedicação, também tive de trabalhar com cinzentões mas isso… é assim em todo o lado. É bom trabalhar dentro do global, o que nos move é o mesmo, a segurança e o bem-estar do Afeganistão para assim garantirmos a nossa própria segurança e bem-estar nas respectivas pátrias. O mundo é pequeno e reencontrei aqui amigos de longa data, O coronel Majón de Espanha e o major dos EUA Rob Firman com quem estive na missão do Paquistão e aqui trabalhámos, especialmente com o Rob, diariamente com o mesmo espírito e camaradagem que tivemos em 2005; também encontrei o
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tenente-coronel dos EUA Jay Martin e o major Perez de Espanha com quem trabalhei em Espanha durante três anos; o coronel do Reino Unido Nick Lipscombe, amigo de longa data da história militar109, e tantos outros. Há algo de especial nestes reencontros; faz diferença a forma como nos comportamos ao longo da vida. É quase sempre uma enorme alegria o reencontro, ajuda imenso nas relações e “a verdade é como azeite e vem sempre ao de cima”. Se as memórias são boas o apoio nestes momentos é fenomenal. A propósito de coincidências permitam-me recordar um episódio antigo: em 1996, no norte de Moçambique, em Nacala, ao telefonar para Maputo e para saber se havia novidades, perguntaram-me se o tenente Rui Oliveira tinha chegado bem… Pois, tinham-se esquecido de nos avisar que ele chegava de um longo voo vindo Lisboa nesse dia e o aeroporto era em Nampula, a mais de 300 km… Nota do Autor: Continuo a trabalhar com o coronel Lipscombe aqui em Portugal, fazemos ambos parte do PW 200, sobre as comemorações dos 200 anos da guerra Peninsular (Peninsular War) e mantemos um excelente clima de colaboração: Em Outubro fizemos uma apresentação conjunta sobre a guerra Peninsular no Forte de S. Julião da Barra a todos os militares da NATO em serviço em Portugal. Soube bem esta acção de coordenação depois de nos termos encontrado nas montanhas do Afeganistão.
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Não havia um momento a perder, num velhinho UMM, sem comunicações de longa distância (ainda não havia telemóveis na altura) levando como companhia a inseparável G3 e a bandeira nacional no exterior da viatura arrancámos, já a escurecer, para Nampula. Lá estava o 94 – Pileca, do meu curso do Colégio Militar110, sozinho no parque de aeroporto há várias horas à espera… de noite. Rapidamente colocámos as coisas dele no carro e fizemos as quatro horas de viagem de regresso a Nacala. Em 1996 não se faziam deslocamentos à noite em Moçambique, mas nós nunca deixamos ninguém para trás. Eu nunca mais me esqueci deste episódio, ele também não. Pois é, 14 anos depois aqui estava eu no aeroporto de Cabul para lhe dar as boas vindas, ele é o novo G4 (mentor do oficial da Logística) da equipa que nos rendeu. Coincidências… A primeira coisa que fizemos quando nos vimos foi a de relembrar o episódio de Nampula em Nacala. Já nos conhecemos desde os 10 anos de idade mas nunca pensámos que os reencontros seguissem ao longo da vida nestes locais mais improváveis. Tenho também de realçar o monumental esforço e sacrifício de todos os aliados, incluindo Portugal, como os media só dão as notícias catastróficas, 110
Nota do Autor: É tradição do Colégio Militar, conhecermo-nos pelos números e alcunhas.
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omitem frequentemente que entre as forças aliadas há no Afeganistão uma média de uma dezena de mortos e duas dezenas de feridos por semana, e omitem ainda os mais de 100 mortos e 250 feridos semanais entre todas as forças presentes, militares e civis, afegãos e insurgentes. É uma guerra mortífera. Por cada morto ou ferido está por detrás uma família, tantos milhares afectados, e a certeza que temos de que se cá não estivéssemos seriam muitos mais os mortos e feridos e uma existência vivida em clima de terror sem qualquer futuro ou esperança. Honra e gratidão por quem deu o que mais de precioso tem para dar – a vida. Nunca me esqueço, e garanto que nunca me vou esquecer, o respeito por quem deu tudo; é o mínimo que devemos fazer enquanto militares, mas acima de tudo, enquanto cidadãos111. Aos afegãos devo-lhes o muito que aprendi, as lições no campo da honra, a forma digna de viver, a vontade e força de sobreviver. Talvez a frase que lhes ouvi mais vezes “é uma desonra para nós que sangue estrangeiro seja vertido pela nossa defesa” e sentir como dita com emoção verdadeira. Os problemas são imensos, as dificuldades enormes, a esperança ainda é pouca, mas dignidade não falta. Saio de cá com a convicção de que querem vencer, ou na pior das hipóteses vão continuar a lutar para sobreviver, e não me esquecerei das grandes manifestações de carinho, de amizade, de camaradagem. As despedidas foram muito sentidas, sabemos distinguir um adeus de circunstância de um abraço forte de reconhecimento, por vezes com a lágrima a aparecer, deles e nossas… Agradeço profundamente a todos os afegãos pelas lições diárias de vida, de dignidade, de família, de garra e até de optimismo, que recebi. Do muito que partilharam comigo, da humildade como me ouviram, da cultura que me ensinaram, da palavra amiga que me dispensaram quando as coisas não corriam de feição. Desejo profundamente ver um Afeganistão em paz e segurança e que seja para o mais breve possível.
Nota de Armando Marques Guedes: Dedicámos, eu e o meu Amigo e doutorando Intendente Luís Elias, da Polícia de Segurança Pública, o livro que publicámos em finais de 2010 “A todos os portugueses e portuguesas das nossas Forças de Segurança que dão aquilo que têm de mais sagrado pelo bem comum”. Tal como as nossas Forças Armadas.
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Agradeço profundamente à equipa à qual pertenço – são “Gente do Caraças!”, homens de grande coragem, enorme disponibilidade e sentida camaradagem. Não tivemos problemas entre nós, o apoio foi sempre colectivo, trabalhámos como um e a distinção que cada um recebeu individualmente foi sempre o produto do esforço abnegado de todos. Se repararam nunca referi um nome dos da nossa equipa, apenas fiz ocasionais referências ao comandante, mas, porque somos um e nunca quis destacar apenas alguns, hoje quero fazê-lo e prestar a minha imensa gratidão por me poder considerar como um entre todos. As palavras de carinho que a nossa equipa recebeu por estes dias foram imensas e seleccionei algumas, de entre afegãos e aliados, que falam um pouco por si: “Gostava de os levar aos sítios mais bonitos do Afeganistão para mostrarem às vossas famílias como é belo o meu país, vocês merecem levar uma imagem bonita…” (Coronel Niazi, oficial de Planos/G5 da KCD);
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“Vão sair de cá sem eu vos convidar a jantar em minha casa […] é uma pena estas questões da segurança […] aos grandes homens sempre nos despedimos em nossa casa […] a vossa equipa trabalhou muito mais pelo nosso país que nós próprios afegãos” (Coronel Zarif, oficial de Operações/G3 da KCD); “Enquanto os… e os… andavam a tirar fotografias do incêndio vocês estavam lá a ajudar-nos […] e depois ficaram […] os portugueses são diferentes” (Coronel Alakuzaday, oficial de Informações/G2 da KCD); “Ficam no nosso coração […] só queremos que voltem bem para as vossas famílias e gozem de muita felicidade” (Soldados do gabinete do chefe de Estado-maior/CEM da KCD); “Não se pode esconder de ninguém […] está à vista de toda a gente a obra que os portugueses fizeram nesta Divisão […] são os mais honestos e trabalhadores […] trabalham com o coração […] entendem-nos como ninguém […] a avaliação externa muito positiva que recebemos esta semana é 90% uma vitó-
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ria da OMLT portuguesa” (Brigadeiro-general Raouf, chefe de Estado-maior da KCD); “Portugal não tem agenda nem interesses escondidos […] são os únicos que trabalham apenas para ajudar os afegãos […] a nossa Divisão é também a vossa Divisão […] prometo que nunca vos vou esquecer” (Brigadeiro-general Farooq, comandante da KCD); “A OMLT portuguesa esteve sempre um passo à nossa frente […] foram fundamentais para estreitar os laços com os militares afegãos […] um exemplo para todos os do Regional Command Capital (RC-C)112 […] de uma forma incrível demonstraram energia e alegria até ao último minuto da missão” (CoNota do Autor: É o órgão da ISAF de onde dependíamos em termos operacionais, o RC-C tinha a responsabilidade de apoiar os afegãos na segurança da cidade e província de Cabul e é liderado pela Turquia.
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ronel Ali Varlik, chefe de Estado-maior, Turquia, do RC-C e tenente-coronel Istambulus, comandante da OMLT turca da 1.ª Brigada); “A OMLT portuguesa marcou a diferença […] são um exemplo e fizeram um trabalho excepcional […] muito obrigado em nome da ISAF” (Brigadeiro-general Bowles, Canadá, ISAF); “A OMLT de Portugal deve ser considerada um modelo para todas as OMLT a trabalhar no Afeganistão […] resolveram tudo com grande capacidade de diálogo e sem conflitos […] são a melhor equipa que conheci” (Tenente-coronel Outzen, EUA, oficial de ligação do general McChrystal no RC-C). Não é a minha intenção transcrever todos os elogios que ouvimos, foram muitos e muito sentidos, e também sei que não levam a mal este pequeno “auto-elogio” mas é pelo imenso orgulho que tenho na nossa equipa que queria ainda referir que recebemos diplomas de louvor do comandante do RC-C, o brigadeiro-general Çolac (da Turquia); todos recebemos diplomas de louvor
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da Joint Task Force Kabul dos EUA e, de longe a melhor/maior distinção: cada um de nós recebeu um diploma de louvor do comandante das Forças Armadas do Afeganistão, o general Bismullah Khan. Como calculam não é normal receber tantas e tão importantes distinções. Aqui vos deixo a foto, bem afegã, e os nomes do nosso grupo a que tenho a honra de pertencer. Comandante e Sénior
Cor Inf Para
José Manuel Lopes dos Santos Correia
Chefe de Estado Maior
TCor Inf OE
Nuno Correia Barrento de Lemos Pires
Sargento-mor
SMor PQ
José Francisco Antunes Farinha
G1/Oficial Pessoal
Cap Inf Para
Ricardo Jorge Capelo Marques
G2/Oficial Informações
Maj Inf Cmd
Miguel Ricardo Rodrigues Pimentel Cruz
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G3/Oficial Operações
TCor Inf OE
Domingos Jorge Fernandes Rodrigues
G4/Oficial Logística
Maj Inf Para
Rui Monteiro Gonçalves
G5/Oficial Planos e CIMIC
Maj Inf Para
Óscar Manuel Verdelho Fontoura
G6/Oficial Transmissões MEDAD Officer/ /Oficial Médico
TCor Tm TenMed Para
António Pedro Velez Quaresma Rosa Sérgio Agostinho Dias Janeiro
G1 NCO/Sargento Pessoal
SAj PQ
André Manuel Peixoto da Silva Pena
G2 NCO/Sargento Informações
1Sar Inf
Sérgio Afonso Borges
G3 NCO/Sargento Opreações
SAj PQ
Carlos Alberto de Sá Canas
G4 NCO/Sargento Logística
SAj PQ
Hermes Loureiro Mateus
G5 NCO/Sargento Planos e CIMIC
1Sar Art
Rui Miguel Lages Fernandes
G6 NCO/Sargento Transmissões
1Sar Tm Para
G7 NCO/Sargento Engenharia
1Sar Eng Para Luís Dinis Santos
Domingos Manuel Gomes Gonçalves
Queria transcrever uma frase que escrevi na primeira carta de Cabul: “Que Deus nos ajude a regressar todos, esta excelente equipa, esta minha outra família para os próximos seis meses”. Deus protegeu-nos, ajudou-nos e cuidou desta fantástica equipa. No dia 12 de Abril de 2010 transferirmos a autoridade para a equipa que nos veio render. Tive a honra de ser o comandante das forças em parada durante a cerimónia de transferência de autoridade de três das cinco forças portuguesas no Afeganistão. A todas as forças portuguesas que ficam em nome de Portugal no Afeganistão desejo as maiores felicidades, muita sorte e que Deus os proteja.
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Sou três filhos, a mulher que amo e inicio hoje o regresso a casa, fiz mais amigos, aprendi a ser melhor pessoa e tive a honra de ser mais um soldado por Portugal. Nada melhor para um militar do que poder dizer: MISSÃO CUMPRIDA! Nuno Correia Barrento de Lemos Pires
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POSFÁCIO
A pedido do autor, de Nuno Lemos Pires, cabe-me aqui enunciar uma das possíveis visões de conjunto quanto a esta publicação. Não irei escrever muito. Mas não me parece bem desperdiçar a oportunidade para alguns comentários provindos de vários ângulos diferentes uns dos outros. Uns sobre questões internacionais em si, outros relativos ao papel de Portugal e dos portugueses, outros ainda, sobre o porquê das múltiplas intersecções a que tal dá azo. O esforço, nesta derradeira dúzia de páginas, é o de melhor contextualizar as Cartas de Cabul redigidas por Nuno Lemos Pires. Para repetir as palavras do general António Barrento, esta colectânea de cartas retrata a experiência de um oficial português durante a sua recente missão em terras do Afeganistão – e ao fazê-lo oferece-nos “um manancial de factos muito útil para os militares que ali vão continuar a servir e para os portugueses perceberem melhor o que fazem os seus compatriotas naquelas paragens”. Concordo inteiramente, como não podia, aliás, deixar de ser; por isso, como outros dos que as leram, instiguei o autor a publicá-las. Mas as cartas fazem também mais do que isso, pois são uma fonte abordável de outras perspectivas. Sobre algumas delas quero debruçar-me neste texto final. Começo pela “natureza estrutural intrínseca” desta colectânea, por assim dizer. As cartas ora publicadas contêm uma dimensão peculiar a que gostaria
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de dar relevo nas escolhas que faço quanto ao que abordo no que se segue: o Nuno falava directamente com a família quando queria (tinha para isso o Skype e o telemóvel), mandava-lhes à medida que o decidia fazer registos visuais do que ia vendo (por SMS ou via e-mail), sempre que quisesse dizia-lhes “directamente” aquilo que sentia, telefonando-lhes. Com tudo isto à mão – alternativas que lhe permitiam maior imediaticidade e intimidade – escrevia “epístolas” porquê? Presumo que com intuitos identitários e “construtivistas” q.b., num sentido quase etimológico: para se ir delineando enquanto figura contra fundo – como homem de família, como oficial, como Aliado, como português, como ser humano. Creio que reside aqui uma das chaves interpretativas mais importantes no decifrar do gesto de um autor que, ao escrever, se foi recriando – na maioria dos casos com base em reportórios pessoais ancorados em experiências passadas que nunca se coíbe de trazer à baila. Para além de tudo o mais, reside aí a mais-valia mais diacrítica destas cartas: a experiência de maturação pessoal a que deram corpo. Radicam também nesse espaço charneira, nele se implantando, tanto a compilação quanto a publicação deste livro – como tentativa de partilha disso mesmo, do processo de feitura de um português enquanto membro de uma humanidade mais inclusiva. Uma convicção que tanto eu próprio como o Nuno Lemos Pires, o autor das cartas, como o nosso editor Pedro de Avillez, partilhamos – embora decerto nos revendo nela de maneiras diferentes – foi por isso que este projecto avançou. Aos leitores caberá ou não dela participar. Podemos concordar ou discordar das posturas que o autor das cartas nelas assume, simpatizar ou não com as reminiscências que os acontecimentos narrados nele desencadeiam e com o acervo de vivências e “memórias” e “projecções” com que na sua produção o autor se reinventa dialogando. Mas não lhes ficamos decerto indiferentes. O que suscita questões mais amplas na sua alçada, mas também de maior minúcia nos seus pontos de aplicação. Trata-se de textos dirigidos à família e a uma mão-cheia de amigos redigidos por um oficial das nossas Forças Armadas que foi chefe de Estado-maior de um pequeno grupo de militares do Exército português que ao Afeganistão se deslocou em apoio e assessoria junto a uma grande unidade do Exército local. A célula portuguesa aí colocada não tinha nem tem por finalidade fornecer directamente segurança à população – mas antes de a ajudar a conseguir a maior auto-suficiência que lhe seja possível, segundo vários modelos e formatos de actuação a que as cartas vão levantando o véu. Como com lucidez e pontaria escreveu o general Barrento no seu Prefácio
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a estas Cartas de Cabul, “tendo as cartas uma intenção predominantemente narrativa, há nelas ensinamentos importantes que podem ser lidos e merecem a nossa reflexão: a globalização e intensidade da violência; o peso da população na resolução destes conflitos – quem não a tiver do seu lado não ganha a guerra; a importância dos outros vectores estratégicos para além da força; a variedade das missões militares e a importância das missões do tipo daquela que foi atribuída à equipa portuguesa; a aptidão dos portugueses para desenvolver acções de elevado valor nestes conflitos; a importância do apoio e conselho na reconstrução das estruturas que qualquer país necessita para exercer a soberania e promover o desenvolvimento”. Têm as cartas, neste ponto, uma clara dimensão didáctica. Delas podemos ainda extrair mais do que isso. Neste Posfácio gostaria de trazer à tona algumas das questões nesta obra equacionadas, e de algum modo ampliar a sua resolução. Tocarei apenas nalguns dos muitos pontos em que poderia fazê-lo – aqueles nos quais me parecem adequados a uma edição como esta. As escolhas são minhas, mas resultam de algum modo das do autor das Cartas e das tónicas que privilegiou. Afloro, assim, três tópicos de fundo, e mantenho-os sempre presentes em cada uma das subdivisões do que se segue: i) a progressão da guerra no Afeganistão e as suas transformações no que estas significam para o evoluir adaptável da condução de operações no terreno, designadamente com a cristalização progressiva de dimensões novas que as afectam; ii) o formato, nesse quadro em transformação, da participação das Forças Armadas portuguesas – sem tocar sequer nos outros tipos de presença que lá temos, e são muitos; e, por último, iii) o que isso significa para as actuações das nossas Forças Armadas, e os “ecos estruturais” que elas em consequência nos ajudam a entrosar nos palcos políticos e também militares internacionais contemporâneos. Como é bom de ver, é também em redor destas questões que os temas abordados pelas cartas se dispõem. Uma cláusula de salvaguarda: muitíssimo maior pormenor e minúcia do que a economia de um Posfácio me consente seria possível, e porventura desejável. Atenho-me a uma mera salva de abertura no que espero venha a ser um fluxo de publicações deste tipo, coisa com que todos ganharíamos. 1. Começo, então, a desenredar os três tópicos de fundo que seleccionei. Há dois tipos de periodizações que são comuns entre os autores que escrevem sobre o conflito no Afeganistão. Para uma destas famílias de periodizações, é preferível uma leitura abrangente, que inclua a proxy war em que os EUA – com o apoio
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explícito do Paquistão e da Arábia Saudita – se embrenharam com a União Soviética depois de esta, em Dezembro de 1979, ter tomado a decisão fatídica de invadir o país. Nesta primeira fase, o que estava em jogo era organizar, treinar, equipar e escorar uma resistência local afegã (os célebres mujahiddin, decerto as figuras emblemáticas do que a Administração Reagan popularizou como heróicos freedom fighters) às tropas soviéticas e ao regime pró-Moscovo instalado em Cabul. As principais finalidades eram duas, ambas muito menos ligadas a questões políticas afegãs e encaradas no quadro geopolítico do conflito bipolar entre os EUA e a URSS: uma primeira tinha por objectivo impedir os soviéticos de utilizar o território do Afeganistão como fulcro de uma irradiação regional maior do bloco de alçada global, como hoje diríamos, liderado pela União Soviética – o que incluía o desígnio de bloquear Moscovo na sua tentativa de conseguir um acesso directo aos “mares quentes” (para além das bases navais que tinha no Vietname, na Síria e no Iémen) que o Kremlin tanto ambicionava; o envolvimento norte-americano dava, ao mesmo tempo, corpo a uma segunda finalidade – visava atolar as forças militares do adversário bipolar numa guerra de guerrilha semelhante à que Washington tinha tido de combater, com efeitos pouco recomendáveis, duas décadas antes, na Ásia do Sudeste, sobretudo no Vietname. Este primeiro período foi encetado ainda durante a Administração Carter, com Zbigniew Brzezinski como National Security Advisor. Esta fase inicial terminou em 1989 com uma retirada soviética inglória, com Ronald Reagan no poder em Washington e Mikhail Gorbatchov ainda no Kremlin. Para estes autores, uma segunda fase – a segunda parcela de um longo período em que o envolvimento norte-americano foi indirecto – correu entre 1989 e 2001. Embora o desafio soviético se tivesse dissipado (e depois do desmembramento da União Soviética, em 1991, desaparecido) os EUA mantiveram fortes empenhamentos em terras afegãs, querendo segurar o país como uma sua zona de influência. A Administração tentou fazê-lo por intermédio da correia de transmissão paquistanesa e admitindo que os mujahiddin islâmicos que tinha apoiado governassem o Estado afegão pós-soviético. Em 1996 tornou-se claro que o empenhamento de Washington não estava a surtir o efeito desejado, sobretudo quando a coligação apelidada de Talibã tomou as rédeas do poder em Cabul e se começou a instalar no resto do território – e menos ainda, quando um Paquistão cada vez mais altivo relativamente a influências regionais norte-americanas permitiram e ajudaram os talibãs a oferecer santuário ao agrupamento jihadista de Osama Bin Laden, a al-Qaeda – uma al-Qaeda que depressa começou a desferir ataques cada vez de maior impacto contra os EUA e os seus
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interesses na Ásia do Sul, na região do golfo Pérsico e da península Arábica e na África Oriental. Como é que esta primeira etapa se tem traduzido no terreno? Sem me repetir, não posso deixar de retomar aquilo que sublinhei em várias notas de rodapé a respeito dos conflitos afegãos, contra o pano de fundo da invasão soviética de 1979 e, depois, do tecido e textura da intervenção norte-americana, e depois Aliada, no Afeganistão, em finais de 2001. Como escrevi, a Aliança Norte começou uma entidade política marcadamente anti-talibã e senhora de uma genealogia tão curiosa quão complexa. Numa intrincada dança de coligações e coordenações de geometria altamente variável, um “conglomerado” de granularidade heterogénea foi sedimentando. Depois da queda, em 1992, do regime comunista de Mohammad Najibullah que fora criado sob a égide dos soviéticos após a invasão – Mohammad Najibullah foi o quarto e último Presidente da República Democrática do Afeganistão, um factotum de Moscovo – muitas das diversas facções e dos “partidos” afegãos celebraram um acordo de paz e de partilha do poder apelidado de Acordos de Peshawar. Num crescendo inexorável, ocupando o vácuo deixado, milícias “político-partidárias” lideradas por personalidades como Gulbuddin Hekmatyar, Ahmad Shah Massoud e Abdul Rashid Dostum bombardearam e destruíram de forma brutal tudo e todos por onde passavam. Pressões da ONU e das ONG em resultado aumentaram. Em 1992, já não era de facto sem tempo que uma solução política minimamente consensual fosse encontrada, pois a guerra civil que grassava e opunha as mais diversas facções em várias zonas de Cabul destroçaram a cidade; enquanto em Kandahar eram facções tribais pashtun que se digladiavam com ferocidade característica. Com estes Acordos viu-se criado o Estado Islâmico do Afeganistão. Foi sol de pouca dura, pois desde o dia da sua criação anunciada até finais de 1994, momento em que esta reacção se tornou muito mais sólida, milícias apoiadas pelas forças militares paquistanesas, financiadas por elas e por fontes árabes sauditas, e lideradas por Gulbuddin Hekmatyar, opuseram-se-lhe ferozmente. A reacção não se fez esperar e uma auto-intitulada Frente Islâmica Unida para a Salvação do Afeganistão foi constituída enquanto entidade político-militar – e foi esta entidade que se tornou conhecida em meios internacionais como a Aliança Norte, liderada a partir de 1996 pelo ministro da Defesa Ahmad Shah Massoud, que se coligou com o seu arqui-inimigo Abdul Rashid Dostum para a criar como coligação contra os talibãs, implantando-a sobretudo na parte mais setentrional do país. A sua composição etnolinguística reflectia
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amplamente a sua distribuição geográfica no mosaico afegão: a Aliança Norte incluía ab initio tadejiques, uzbeques, hazaras, e numerosos membros de agrupamentos “túrquicos”, embora também nela se albergassem alguns pashtun O sul do Afeganistão não era – e em parte continua a não ser, em inícios de 2011 – controlado nem por milícias externas nem pelo governo de Cabul, estando antes sujeito a líderes locais com milícias próprias e uma geometria altamente variável de pequenas coligações político-militares de oportunidade, por norma tramas muitíssimo débeis e instáveis. Com a consolidação da Aliança Norte, a guerra mudou de novo de fase e a evolução das coisas acelerou o passo. Novos actores entraram em cena. Logo em 1994, os talibãs (um movimento que foi emergindo das escolas religiosas – as célebres madrassas – criadas por refugiados afegãos a viver no vizinho Paquistão) apareceram, em larga medida, em resposta ao despotismo do governador da província de Kandahar, mas depressa a extravasando. Nesse mesmo ano de 1994 os talibãs conseguiram capturar e controlar várias províncias do sul e do centro afegão. No final do ano, no entanto, as forças de A. Shah Massoud infligiram uma enorme derrota militar às numerosas milícias que então se batiam pelo controlo de Cabul. Com ambição, Massoud tentou à época desencadear um processo de “paz e consolidação democrática” ao nível nacional, que incluía os talibãs – que, todavia declinaram associar-se-lhe, reiniciaram ataques a Cabul, bombardeando incessantemente a cidade e, finalmente, ocupando-a a 27 de Setembro de 1996 – e anunciando, logo de seguida, a constituição do Emirato Islâmico do Afeganistão, uma entidade que apenas se viu reconhecida pela Arábia Saudita, pelo Paquistão e pelos Emiratos Árabes Unidos. Sob a liderança de jovens “professores” educados num número crescente de madrassas radicais afegãs e noroeste paquistanesas, os talibãs impuseram a sua interpretação político-jurídica do Islão a todo o país (com mais sucesso nalgumas regiões, designadamente no sul e centro), exarando éditos que proibiam as mulheres de trabalhar fora do lar, de frequentar escolas, ou sequer de sair de casa se não fossem acompanhadas por familiares do género masculino. Famosa e infamemente, os talibãs deram também então albergue à al-Qaeda de Osama bin Laden em território afegão; a organização terrorista explorou a oportunidade com rapidez e eficácia criando, no território, numerosos campos de treino a que acudiram radicais oriundos um pouco de toda a umma islâmica. Aproveitando, no essencial, os acessos providenciados por uma longa e convoluta fronteira tribal autónoma que confinava com a do Estado, vizinho, as
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ligações entre o Afeganistão talibã e o governo do Paquistão tornaram-se cada vez mais densas e intrincadas. Como correia de transmissão foram mobilizados, ao que se sabe, os mais variados agrupamentos locais, sobretudo pashtun. De forma encoberta, os serviços de intelligence militar de Islamabad, capital da República Islâmica do Paquistão, foram instrumentais ao longo de todo o processo. A opção foi clara: o Presidente Pervez Musharraf (então chefe do Estado-maior General das Forças Armadas de Islamabad) quem enviou dezenas de milhares de cidadãos/civis e militares paquistaneses para combater ao lado dos talibãs e da al-Qaeda contra as forças de Ahmad Shah Massoud – no que tiveram um forte (embora não decisivo) sucesso. Em todo o caso, obrigaram a “resistência” a um recuo de assaz longa duração, ao fornecer apoios logísticos, armamento, aconselhamento estratégico e informações várias, como foi dito numa nota de rodapé. Assim, e apesar de uma conjuntura internacional cada vez mais carregada como foi a do final da década de 90, no Afeganistão os processos integrativos pareceram desacelerar o passo sob a mão férrea de líderes internos como o mullah Omar e externos como o saudita bin Laden e os seus aliados objectivos então no poder no Paquistão no qual cada vez mais crescia a distância entre a retórica política assumida e os actos levados a cabo no terreno. Só depois dos ataques a Nova Iorque e Washington as coisas iriam mudar. 2. Como se traduziu isto? Atentemos, de novo, ao pormenor. Em finais de 2001, com a reacção norte-americana conhecida a um fatídico 11 de Setembro amplamente organizado em território afegão e face à recusa talibã em entregar ou expulsar a al-Qaeda, a Frente Unida (a Aliança Norte, na terminologia então convertida em universal) logrou retomar a maioria do território afegão das mãos dos talibãs – fê-lo com a assistência e o encorajamento de pequenos agrupamentos das Forças Armadas norte-americanas e das já referidas Forças Especiais enviadas para o terreno pela Administração Bush. É importante ter em mente que, em finais de 2001, um mero mês depois dos ataques da al-Qaeda a Nova Iorque e Washington, o Pentágono não teve tempo de organizar uma invasão que utilizasse as Forças Armadas norte-americanas como a expressão da sua vontade: a maioria das forças que, no terreno, combateram contra os talibãs eram afegãs. As equipas de tropas especiais norte-americanas inseridas em território afegão serviram como coordenadores e “oficiais de ligação” com e entre estas forças afegãs, tendo tido ainda um papel crucial na identificação de alvos para os B-52. Muitos destes homens
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eram membros de agrupamentos que tinham sido derrotados pelos talibãs durante a guerra civil – o que incluía a Aliança Norte, que no essencial se tinha mantido próxima de Moscovo no período anterior; mas agregaram-se-lhes também agrupamentos xiitas oriundos do oeste do Afeganistão, muitos deles com ligações à Índia ou ao Irão, mobilizando ainda grupos locais a quem Washington pagou somas avultadas para combater, em muitos casos gente por uma ou outra razão hostil aos talibãs. Assim, a presença de norte-americanos nos cenários de guerra tornou-se directa: por um lado equipas especializadas de “botas no chão” e, por outro, a utilização sistemática de uma Força Aérea de Washington que foi crucial no combate aos guerreiros talibãs concentrados ao redor das cidades do Norte do país. A “vitória” foi surpreendentemente rápida, em larga medida em resultado da decisão táctico-operacional dos talibãs de evitar confrontações desiguais. Judiciosamente, os mujahiddin (e os jihadistas da al-Qaeda que sobreviveram aos ataques desencadeados aquando da invasão contra os campos de treino que tinham disseminados pelo país) preferiram dispersar e diluir as suas forças nas populações autóctones. Os bombardeamentos levados a cabo pelas vagas de B-52 depressa os dissuadiram de tentar manter posições fixas, de novo dada a disparidade de meios. Não houve, no entanto, uma derrota militar dos talibãs, note-se; estes pura e simplesmente se limitaram a recusar embates nos termos de Washington. Os mujahiddin limitaram-se a reconfigurar a guerra nos seus próprios termos preservando forças para depois se ir reagrupando. Seguindo um modus operandi “clássico” de guerra subversiva (a doutrina dos EUA prefere a expressão, bem diferente no seu campo semântico, de insurgency) os guerrilheiros talibãs compreenderam que o controlo das cidades não lhes era por regra possível, na situação de assimetria em que se encontraram e, mais importante, perceberam que era o controlo das zonas rurais que lhes iria permitir um eventual controlo de cidades que depressa começaram a isolar em acções empreendidas a partir do “campo” – e, assim, as tropas norte-americanas e aliadas ficaram cada vez mais confinadas a cidades, sem capacidade efectiva para neutralizar os talibãs. Uma vez Cabul retomada, e com o intuito de evitar uma guerra civil semelhante à de 1992-96, as diferentes facções da Frente Unida – com o protagonismo que teve então universalmente conhecida como a Aliança Norte – aceitou a formação de uma “administração interina” liderada pelo depois Presidente Hamid Karzai. Efectivamente, com a chegada ao terreno dos norte-americanos e depois dos aliados tudo se tornou diferente – embora de novo aos poucos e como
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que em câmara lenta. Para melhor entrever o que se passou, é mais uma vez útil ordenar por fases os sucessivos momentos cronológicos. Uma terceira fase (claro está que para os autores que se recusam a associar entre si o período de pré-envolvimento directo norte-americano com este último período, esta será a primeira e não a terceira fase da guerra) começou em Dezembro de 2001, depois dos ataques da al-Qaeda do 11 de Setembro. E uma última (a segunda ou a quarta, de acordo com a inclusividade do que diferentes analistas chamam “a Guerra do Afeganistão) teve início em princípio de 2009, com a Administração Obama a decidir-se por um empenhamento mais ambicioso e pesado dos norte-americanos e dos aliados presentes no terreno – em cumprimento de uma promessa eleitoral enunciada desde inícios de 2008. Assim, a 20 de Dezembro de 2001, mais de dois meses depois do início dos ataques liderados pelos norte-americanos, os membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas autorizaram a criação de uma International Security Assistance Force (ISAF), como força constituída com o mandato de prestar a assistência necessária ao governo interino no seu esforço de manter a segurança no Afeganistão. Por insistência de uma Administração norte-americana empenhada em garantir uma legitimidade tão grande quanto possível à presença de forças militares estrangeiras no Afeganistão, o comando da ISAF tinha desde há muito passado para a NATO, a 11 de Agosto de 2003. Isto fez crescer os números no terreno. Em Julho de 2009, a ISAF tinha cerca de 65 000 soldados no país, oriundos de 42 Estados, com os então ainda apenas 25 Estados-membros da Aliança Atlântica como núcleo duro da força. Em finais de 2010, inícios de 2011, como iremos ver, o número total de militares aliados no país tinha subido para 150 000 – e estava a aumentar. A mudança desencadeada foi grande. Com efeito, até então, embora os talibãs tivessem sido empurrados para fora das cidades e as “células de comando” da al-Qaeda tivessem sido forçadas a esconder-se no noroeste do Paquistão, a ausência de forças suficientes em campo impediam a ISAF de infligir derrotas militares efectivas tanto a uns quanto a outros. As finalidades da presença militar aliada, durante a Administração Bush, eram “recatadas”, se e quando encaradas numa óptica comparativa. Washington e depois a ISAF tinham três objectivos relativamente modestos. Uma primeira finalidade era a de neutralizar a al-Qaeda, confinando-a e, eventualmente, destruindo a sua presença na região. Uma segunda consistia no estabelecimento de um governo afegão – mesmo que sem grande consistência, eficácia, ou sequer legitimidade – para que este viesse a transformar-se no núcleo duro de uma verdadeira entidade
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de governação – embora o statebuilding em boa verdade não fosse encarado como mais do que uma linha distante e vaga de horizonte (em contra-distinção com a guerra na frente iraquiana, onde Bush tinha começado a compreender a centralidade do esforço). A terceira finalidade era a simples contenção dos talibãs, consubstanciada no essencial ao seu confinamento às zonas não-urbanas. Como tem sido muitas vezes notado, a operação afegã foi – nesta primeira fase de um envolvimento directo de Washington – concebida como uma holding operation bastante limitada. As regras do jogo eram simples e algo ralas: a estratégia prosseguida foi tão-só a de evitar a reconstituição de bases jihadistas no país, a manutenção do controlo das cidades e (o que cada dia se ia tornando menos fácil) dos percursos logísticos, numa resignada, e largamente implícita, de que os interesses e o poder dos Estados Unidos e outros aliados (ademais cada um deles com “regras de empenhamento” e caveats diferentes) no país eram limitados. 3. Foi nesta fase que teve início a participação militar portuguesa na ISAF. O primeiro grupo a ir foi uma Equipa Sanitária, integrando médicos dos três ramos das nossas Forças Armadas – que a 27 de Fevereiro de 2002 reforçou um hospital de campanha inglês. Tratou-se de uma equipa de oito militares que se juntou à ISAF I. A partir daí, a evolução dos números fala por si. De Abril a Junho desse mesmo ano juntou-se-lhe um destacamento de C-130 a operar a partir de Carachi, no Paquistão, com 15 militares, que também se integrou no ISAF I. A partir daí foram para o Afeganistão, em fins de Maio de 2004, já no quadro da NATO, cinco bombeiros militares da Força Aérea Portuguesa e, em Junho seguinte, para lá seguiu uma equipa de três controladores aéreos, para o ISAF V/VI, como lead nation no Grupo de Comando do Aeroporto de Cabul (KAIA). A 21 de Julho desse mesmo 2004 agregou-se ao ISAF V/VI/VII um destacamento aéreo C-130 de 18 militares. Os números iriam aumentar em 2005, ano em partiram para o Afeganistão, a 1 de Agosto, para o comando de KAIA 37 militares, para o ISAF VIII – dos quais 33 do Exército e um da Marinha; deu-se depois um reforço das operações em KAIA, ISAF VIII/IX, com 11 militares das Forças Armadas. Ainda em 2005, vimos este número crescer com grande ímpeto: de 4 de Agosto desse ano a 31 de Julho de 2008, partiram seis Quick Reaction Forces (QRF), cada com 157 dos nossos militares. Tratou-se de uma Companhia de Infantaria do nosso exército (dentro das Forças Especiais Portuguesas: Comandos e Pára-quedistas), que viria a operar ininterruptamente no Afeganistão
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durante três anos conduzindo operações nas áreas mais difíceis do território, como por exemplo: Kandahar. Em Agosto de 2008 saiu para o Afeganistão um destacamento C-130 de transporte aéreo intra-teatro com 40 militares, posto que em Maio desse ano e mais tarde em Abril de 2009, partiram respectivamente uma Operational Mentor and Liaison Team (OMLT) de Guarnição, inicialmente com 10 militares e a partir da 2.ª OMLT com 11 PAX, e uma OMLT de divisão com 17 militares. A 1 de Julho de 2009 saiu uma equipa de saúde Role2E de 16 militares – que evoluiu para Role 3 em Dezembro desse ano. Num crescendo, a 29 de Julho de 2009 saiu para terras afegãs um destacamento aéreo C-130 de 41 militares. Embora com um intervalo, a bola de neve continuou a rolar: a 31 de Março de 2010, depois de um intervalo de um ano e meio, Portugal voltou a pôr no Afeganistão uma 7.ª QRF, com 162 militares; e em Setembro seguinte equipas de formadores com 40 militares. Como diz a página relativa ao ISAF no site do Estado-maior General das Forças Armadas, “Portugal desde 2002 tem participado regularmente com militares dos três ramos das Forças Armadas para o esforço internacional no Afeganistão tendo já passado por aquele teatro de operações mais de 2000 homens e mulheres”. O preço foi alto – embora irrisório se comparado com o de algumas das outras forças em presença. O esforço operacional aliado consistiu sempre em concentrar as forças portuguesas no Sul e junto à fronteira, em garantir a segurança da Ring Road e das Main Commerce Routes, em assegurar a tranquilidade nas principais cidades, com ênfase para a capital afegã, Cabul. A primeira baixa mortal de um português teve lugar a 18 de Novembro de 2005, num incidente em que houve mais três feridos ligeiros. Embora se sucedessem os feridos e escoriados em emboscadas e incidentes com IED, uma segunda baixa portuguesa só viria infelizmente a ocorrer a 24 de Novembro de 2007. Desde o início e até hoje, e ao contrário de muitas outras forças aliadas, os portugueses operaram sem quaisquer caveats, facto sempre muito sublinhado pela Aliança e pelos militares afegãos. Como vimos, em 2009, com a Administração Obama entrámos numa quarta e última fase do conflito, a corrente, e foi neste enquadramento que as cartas que o leitor tem entre mãos foram escritas. Para Obama e os seus maîtres-penseurs (entre eles geopolíticos notáveis como Zbigniew Brzezinski), embora a visão e finalidade não sejam tão claras – talvez pelo seu maior grau de complexidade tal seja inevitável – o Afeganistão transformou-se numa arena imprescindível para os interesses geopolíticos e geoeconómicos maiores dos Estados Unidos e do “Ocidente” e para a credibilidade da Aliança Atlântica.
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O que George W. Bush tinha encetado como uma war of choice – que reagia aos ataques desferidos contra a população e o território dos EUA a partir do Afeganistão – tornou-se quase num teste de sobrevivência; o que ficou em causa foi uma permanência que, segundo esta nova leitura de Obama, tinha sido posta em xeque com a “política limitada nos objectivos” seguida pelo seu antecessor. É certo que a capacidade da “al-Qaeda prime”, como a “cabine de controlo” liderada por bin Laden se tornou conhecida, se revelou incapaz, com a pressão resultando das acções desencadeadas pelos aliados no Afeganistão, de montar quaisquer ataques na escala dos do 11 de Setembro. Tal como os talibãs não lograram mais impor o seu regime fosse onde fosse de forma minimamente estável. Mas a dupla ameaça permanecia incólume, contando o tempo – ou assim Barack Obama e os seus conselheiros (militares e civis) insistiram, sem sombra de dúvida com toda a razão – para uma reentrada em força num Afeganistão essencial para os interesses a um tempo militares, civis, políticos, económicos, e até de afirmação global dos Estados Unidos e do “Ocidente”. Foi face às solicitações da Administração norte-americana de Barack Obama que o crescendo de tropas portuguesas no Afeganistão aumentou. Antes de nos debruçarmos sobre as dimensões mais políticas da presença de forças militares portuguesas no Afeganistão, vale a pena sublinhar que Obama mantém as mesmas finalidades de Bush, mas de maneira muito mais robusta e acrescentando-lhes camadas político-militares austeras. 1. Quer negar, de maneira definitiva, quaisquer “safe-havens” à al-Qaeda no Afeganistão e, por isso, no Paquistão, ou seja no todo do AfPak. 2. Que criar uma “estratégia de saída”, tal como foi o caso no Iraque, pela via de todas as negociações possíveis, intensificando para o efeito o uso da força, não excluindo pela via do estabelecimento de acordos da coligação no poder com os “talibãs moderados”. 3. (E muitíssimo mais polémico, aí com maior elasticidade, nas versões recentes) Obama tem insistido na marcação de uma data para o “início de uma saída” norte-americana e aliada do país, “a partir de meados de 2011”. Para o efeito, Obama e a sua Administração têm vindo a dar realce a três medidas conjuntas e sucessivas: um aumento no número e na agressividade (inicialmente falou-se numa “surge”, embora muito diferente da do Iraque) das tropas norte-americanas e aliadas; a criação e formação de forças militares e de segurança afegãs capazes de assumir a liderança de maneira progressiva, em tandem com a saída da ISAF; finalmente, na urgência de abrir um fosso entre os talibãs e a população afegã em geral, pela via de uma estratégia concertada de “counter-insurgency”.
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Estão, neste momento, 150 000 soldados da NATO no Afeganistão, e depois das solicitações e promessas resultantes da Cimeira de Lisboa, em finais de 2010, prevê-se que o seu número possa aumentar significativamente – embora este aumento pareça pelo menos em parte coincidir (e portanto colidir) com a diminuição anunciada…Como tem sido com argúcia notado, “tudo o que os talibãs têm agora a fazer é não perder a guerra de modo a ganhá-la”. A ver vamos. O Estado português prometeu um aumento de efectivos, de novo em resposta às solicitações aliadas. Fá-lo-á, como tem sempre feito, como aliado fiável que desde sempre é. Para citar de novo o site do Estado-maior General das Forças Armadas, “[a]s capacidades e valências presentes no TO [teatro de operações] do Afeganistão passaram a partir de Outubro de 2010, a representar um efectivo de 182 militares (Equipas de Formadores/Instrutores (30 militares), a OMLT de Guarnição (11 militares), a OMLT da Kabul Capital Division (17 militares), o Módulo de Apoio (112 militares), a CIM (4 militares), Pil. F-16-Dest. Belga (1 Militar) e o pessoal destacado nos HQ [headquarters] e outros cargos no TO do Afeganistão (7 militares). […] A missão das OMLT é a de treinar, ensinar e mentorar as unidades do Exército Nacional Afegão (ANA), servir como elo de ligação e de Comando e Controlo entre a International Security Assistance Force (ISAF) e o ANA e, quando solicitado, apoiar o planeamento e emprego operacional do ANA, de forma a facilitar o desenvolvimento de um ANA competente, profissional e auto-suficiente”. O que iremos continuar a fazer, estou seguro. Não vale decerto a pena perder muito tempo a discorrer sobre a importância geopolítica da presença da Aliança Atlântica no Afeganistão, face aos desafios e às ameaças oriundas de uma região do mundo – a Ásia Central, a velha Rota da Seda – que constitui uma extensão natural de uma das mais importantes interfaces e zonas de contacto entre o “Ocidente” e o islamismo político radical, e entre o “Ocidente”, a Federação Russa, a Índia, a China e o Irão. Um dos lugares centrais para o equilíbrio mundial – na qual têm sido gizadas instituições várias que visam, sem grande sucesso, estabelecer uma arquitectura regional de segurança. Uma região onde grassa a pobreza, a miséria e o isolamento, mas onde estão localizados (nela e nos seus arredores) recursos naturais, nomeadamente os energéticos, que nos são imprescindíveis – na qual estão em curso conflitos pesados e se sentem tensões enormes, do Iraque ao Paquistão, do Irão ao Cáucaso do Sul e do Norte; uma região em que prolifera agrupamentos islamistas radicais que irão dar que falar se não forem rapidamente desmantelados. O que vale a pena, isso sim, é aqui enquadrar nesse
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âmbito geopolítico maior as Cartas do Nuno Lemos Pires – e dar corpo àquilo que elas nos demonstram no que diz respeito às mais-valias das missões expedicionárias portuguesas nesta e noutras regiões. Sem querer entrar em grandes pormenores, note-se que é fácil delinear, em esquisso, uma periodização informal para as fases do empenhamento global do Estado português nas missões internacionais que tanto têm sido emblemáticas da rearrumação, todavia em curso, que tem vindo a emergir do fim da ordem internacional bipolar – nas da ONU, da NATO e da União Europeia. Nem custa pôr em evidência o nosso interesse em participar, como parte activa, em actuações colectivas de entidades nas quais uma pertença empenhada e leal nos pode claramente beneficiar no qui pro quo inevitável de inputs e outputs que marcaram e marcam este período de transição que ainda vivemos – tal como, aliás, o protagonismo conseguido, e o prestígio angariado, pelo mero facto da nossa participação em actuações “securitárias” (e outras) no exterior. Nos anos 70 e 80, um Estado português reingressado à ONU depois de duas décadas de relativo ostracismo, encontrou assento pleno na organização. Atarefadas como estavam as nossas elites políticas em reorganizar tanto essa participação como uma retaguarda problemática – para além da defesa da criação e manutenção de um estatuto transitório para o território de um Timor-Leste ocupado pela Indonésia – pouco mais foi feito, no quadro das Nações Unidas, nessa década e meia do que garantir uma pertença plena portuguesa a uma entidade então ainda pouco activa. Quanto a missões da NATO, “fora de área” não existiam ainda; e só entramos no que veio a tornar-se na União Europeia a 1 de Janeiro de 1986. Como é bem sabido, na década de 90 o panorama da ONU mudou: face às novas exigências emergentes para uma organização então muito mais ágil e procurada, Portugal empenhou-se em acompanhar as missões que lhe foram crescentemente acometidas – e para as quais começou a ser solicitado o nosso apoio concreto. Com os desaires sofridos pelas Nações Unidas no início da última década do século XX e a entrada em palco de uma NATO alterada q.b. – começando a actuar “fora de área” – e ainda a de uma União Europeia a levantar a cabeça timidamente, também estas duas entidades começaram a exercer sobre o Estado português uma pressão cada vez maior para nos envolvermos nas suas missões. Se de início podia haver hesitações, cedo elas se tornaram impensáveis em termos de meros cálculos racionais de ganhos e perdas. Em inícios do século XXI tornara-se claro que cada vez mais os problemas que afligiam um sistema internacional em acomodação pós-bipolar tinham um
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dimensionamento securitário marcado – e, nas frentes ONU, NATO e União Europeia, o Estado português não pode nem quis recuar num envolvimento que se tornara num palco cada vez mais importante de participação e afirmação em modalidades inovadoras de uma governança regional e global que, com rapidez, se tem vindo a cristalizar. Hoje poucos são os que consigam articular dúvidas convincentes quanto às vantagens de um nosso empenhamento. A questão já não é apenas – se alguma vez o foi – a de uma aposta numa estratégia de ultrapassagem da exiguidade de peso específico que a descolonização significou para Portugal. Nem tão-só a de cumprirmos os nossos compromissos enquanto aliados e membros das nossas comunidades de integração regional e global de uma maneira firme e previsível. Trata-se de tentar assegurar uma participação condigna do Estado em processos de interdependência e governação que nos torne num sujeito pró-activo deles e não em seu objecto passivo. Os números são de novo eloquentes: desde 1991, forças militares portuguesas participaram em 37 missões das Nações Unidas, 21 da União Europeia e 18 da NATO. E sem dúvida que, como estas Cartas ora publicadas mostram à saciedade, o fazemos bem – a participação portuguesa nas formas emergentes de governação global tem sido amplamente louvada. Um só exemplo bastará, que vou buscar a uma outra missão, num outro quadro e num outro lugar – a Missão das Nações Unidas em Moçambique (ONUMOZ). Isto mesmo o “Relatório de Fim de Missão” enfatizou: “[O] regulamento disciplinar da ONU [era] muito rígido […]. Foram criadas restrições […] ao contacto com a população local que eram completamente incompreensíveis para o nosso pessoal […]. A verdade é que houve várias declarações proferidas por responsáveis de vários quadrantes, pela imprensa e pelo próprio representante do Secretário Geral, Dr. Aldo Ajello, que afirmaram que os militares portugueses tinham sido os que melhor se adaptaram e inseriram no tecido social e local […]”. Efectivamente, Aldo Ajello, o italiano chefe da missão ONUMOZ, como sublinhei numa das minhas notas, não poupou elogios à “capacidade inventiva” e ao “alto nível de profissionalismo” do nosso contingente. Ecos de tais louvores se têm ouvido desde o início dos anos 90. As consequências deste e de muitos outros reconhecimentos não se fizeram esperar. Para lograr sucesso, afirmação, posicionamento e imagem andam hoje de mãos dadas – para além, naturalmente, de tal nos tornar parceiros fiáveis na boa criação de um mundo cada vez mais interligado e mais complexo. Nunca tantos portugueses ocuparam lugares de comando e estado-maior de forças internacionais. Não é decerto por acaso que temos hoje líderes de peso
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na ONU e um assento, embora não permanente, no Conselho de Segurança, que o Presidente da Comissão da União Europeia é um português, que o Tratado que “constitucionalizou” a Europa foi assinado em Lisboa e tem o seu nome, e que aquela que foi porventura a mais importante Cimeira da Aliança Atlântica foi a recente Cimeira de Lisboa. Adquirimos voz e respeito e disso auferimos em termos de uma mais efectiva soberania ao ajudar uma reformatação do mundo em termos em que nos revemos. Ganhámos em experiência e modernizámos as nossas Forças Armadas, em esforços continuados para garantir sossego e desenvolvimento a gente que deles tanto precisa. Política como militarmente, tem sem dúvida valido a pena – e estas Cartas ajudam-nos a perceber porquê. Armando Marques Guedes