Antecipação conversacional: aspectos interpretativos

May 25, 2017 | Autor: Fanuel Paes Barreto | Categoria: Pragmatics
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Cf. Paes Barreto (2001). A exposição aí apresentada é pressuposta na discussão que será aqui desenvolvida.
Este artigo constitui uma condensação, com as devidas adaptações, do quinto capítulo de Paes Barreto (1998).
Na exposição que segue não pretendo considerar detalhes técnicos das diversas versões dos modelos discutidos; busco apenas apresentar os elementos básicos, uma vez que parecem suficientes para demonstrar a inadequação desses modelos a um tratamento explanativo do fenômeno da antecipação. Para uma visão geral do enfoque psicolingüístico da compreensão, cf. Garman (1990: 301-69).
O corpus de material conversacional utilizado provém dos inquéritos audiogravados e transcritos pelo Projeto da Norma Lingüística Urbana Culta (NURC), conforme constam em Castilho & Preti (1987) e em cópias mimeografadas conseguidas junto à coordenação do Projeto NURC-RE, no Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco. A identificação dos inquéritos é oferecida na entrada de cada exemplo, acompanhada das linhas em que se localiza a passagem em pauta. Ao final deste artigo, encontra-se uma relação das convenções notacionais utilizadas nas transcrições dos inquéritos.

A rigor, não se pode identificar a visão "intencional" definida por Clark com o enfoque proposto por Gumperz, uma vez que a primeira perspectiva enfatiza os aspectos cognitivos, e a segunda, a base sócio-interacional da interpretação. Apesar disso, é lícito aproximar as duas abordagens por aquilo que elas têm em comum: ambas ressaltam a natureza inferencial da interpretação e entendem as inferências como processos pelos quais o ouvinte procura chegar à intenção comunicativa do falante.
A informação certamente era correta, pelo menos, em 1972, quando o inquérito em questão foi registrado.


ANTECIPAÇÃO CONVERSACIONAL: ASPECTOS INTERPRETATIVOS

Fanuel Melo Paes Barreto

Resumo

Neste trabalho, consideram-se algumas implicações do fenômeno da antecipação para o estudo dos processos interpretativos envolvidos no discurso conversacional. Entendendo-se a intervenção do antecipador como uma manifestação textual-discursiva de mecanismos inferenciais essencialmente prospectivos, analisam-se os recursos informacionais necessários para que o ouvinte projete isto é, configure de antemão o que o locutor pretende dizer no passo seguinte de sua fala.

1 Introdução

Em artigo publicado no número anterior desta revista, descrevi os aspectos formais e funcionais do que denominei de antecipação. Disse ali que o principal interesse teórico desse fenômeno reside, a meu ver, no que ele tem a evidenciar sobre a atividade interpretativa envolvida no discurso conversacional.
De fato, dois aspectos fundamentais dessa atividade se manifestam com clareza, quando consideramos o modo como se dá a intervenção do antecipador. Primeiro, a circunstância de que tal intervenção pode ocorrer a qualquer momento da fala do locutor corrente implica uma quase simultaneidade entre as etapas de produção e compreensão do discurso. Em segundo lugar, e principalmente, a natureza co-formuladora da antecipação ressalta que o esforço interpretativo do ouvinte corresponde bem de perto ao trabalho de planejamento por parte do falante, ou como diz Tannen: "os participantes em uma conversação precisam ser capazes não somente de decifrar o que já foi enunciado, mas também de antever quais os possíveis desenvolvimentos, tanto no nível da sentença quanto do discurso" (1989: 10). No presente trabalho, pretendo usar esses dois aspectos salientados pela antecipação como pedra de toque para a avaliação de alguns modelos teóricos da interpretação no discurso falado.

2 A antecipação e o processamento verbal

Nos domínios da psicolingüística, duas abordagens principais foram propostas para o estudo da compreensão da linguagem falada, ambas partindo da suposição de que, para entender um enunciado, o ouvinte tem não somente que reconhecer as palavras que o constituem, mas também identificar as relações gramaticais existentes entre elas. A diferença essencial entre as abordagens está em como esses dois aspectos do processamento verbal se relacionam.
Na primeira abordagem, que pode ser chamada de "modelo serial" (cf. Garman, 1990: 320-32), o reconhecimento das palavras, ou o "acesso lexical", se dá antes da análise gramatical. Isto significa que, primeiro, o ouvinte identifica todas as palavras que constituem o enunciado e, só então, inicia o processamento gramatical. Parece correto dizer, portanto, que o modelo serial concebe a interpretação como um processo essencialmente retrospectivo. Não é difícil perceber, de imediato, o quanto essa abordagem se mostra inadequada para explicar a rapidez com que a interpretação se realiza. Ainda mais inadequada para tratar o fato de que, na antecipação, o ouvinte é capaz de colaborar com a formulação do enunciado em qualquer ponto de sua extensão. Com efeito, somente um modelo no qual a análise gramatical ocorra a passo com o reconhecimento lexical pode explicar que o segmento antecipado se incorpore ao enunciado em formulação, dando-lhe continuidade sintática.
A simultaneidade entre os processamentos lexical e gramatical é exatamente o que caracteriza a segunda abordagem, chamada de "modelo paralelo" (cf. Garman, 1990: 332-55). Tal abordagem postula que o ouvinte inicia uma análise exaustiva já a partir da primeira palavra produzida, sem ter de esperar até que o enunciado esteja concluído. Dois traços fundamentais do modelo paralelo estão aqui envolvidos. O primeiro deles consiste no modo on-line de operação: em qualquer ponto de um enunciado, o processamento se dá não apenas com base nas propriedades do segmento em foco, mas também à luz de toda informação obtida na análise realizada até então. Temos, assim, um modelo bem mais equipado para explicar a velocidade com que se verifica a interpretação da linguagem falada, se comparado à abordagem serial, na qual somente após o enunciado estar concluído é que se inicia a análise principal.
A segunda característica do modelo paralelo está no efeito prospectivo da análise empreendida: a informação recolhida pelo processamento da parcela anterior do enunciado gera certas expectativas a respeito das propriedades da parcela subseqüente. Em conjunto, as duas características aqui mencionadas podem dotar o modelo em questão com maior força explanativa para o tratamento de algumas ocorrências da antecipação, sobretudo quando o segmento sugerido não passa de um item lexical ou um sintagma, como nos seguintes exemplos:

(1) NURC/SP 62: 382-385
L1 não inclusive eu estava respondendo para você:: colega... o o o:: fato de eu ter escolhido a profissão do do...
L2 economista...
L1 economista né?... [....]

(2) NURC/SP 62: 234-241
L1 [....] então a gente inclusive::... pede para que o indivíduo não perca tempo nesses horários certo?... e procure almoçar... no seu território de trabalho... por ali mesmo em vez de ter que se deslocar de um território de trabalho
L2 // para sua ca::sa...
L1 para sua residência... para voltar::... isso acarreta muita perda de tempo... [....]

Tomemos o caso do exemplo (2), que é mais complexo e, por isso mesmo, mais ilustrativo. Imaginemos que o processamento verbal realizado por L2, ao interpretar o enunciado de L1, tenha alcançado a palavra trabalho. De acordo com o modelo paralelo, o processamento on-line deve levar em conta as propriedades da palavra em foco e a análise da parcela anterior do enunciado. Com base nessa informação, a palavra trabalho pode ser tomada como um elemento que integra o sintagma preposicional [de trabalho], que se subordina ao sintagma preposicional [de um território [de trabalho]], que, por sua vez, se subordina ao sintagma verbal [[se] deslocar [de um território [de trabalho]]]. Por outro lado, devido ao seu caráter prospectivo, a análise gera expectativas sobre as propriedades da parcela seguinte do enunciado. Assim, uma vez que um sintagma constituído pelo verbo deslocar deve incluir dois sintagmas preposicionais subordinados [deslocar [...] [de...] [a, para...]], e tendo em vista que a palavra em foco pode fechar o primeiro sintagma previsto, [de um território de trabalho], o processamento neste ponto suscita a expectativa de que a próxima parcela do enunciado em produção possa constituir o outro sintagma preposicional requerido. Desse modo, ao antecipar a fala de L1, L2 o faz munido de informações que tornam a sua sugestão "gramaticalmente" plausível. De fato, a sobreposição dos segmentos para sua casa e para sua residência ratifica a proposta do antecipador: ambos os segmentos constituem o segundo sintagma requerido pelo verbo deslocar.
Observe-se, contudo, que o efeito prospectivo do processamento verbal limita-se às propriedades estruturais do enunciado. Essas propriedades talvez possam explicar certas opções lexicais realizadas pelo antecipador, dentre as várias alternativas compatíveis com a moldura sintática do enunciado em construção. Por exemplo, em (2), a informação sintático-semântica processada por L2 até o momento de sua intervenção pode ser um input suficiente para esse antecipador sugerir um item lexical (casa) semanticamente equivalente ao segmento (residência) proposto, em sobreposição de vozes, pelo locutor corrente, L1, para o mesmo lugar sintático do enunciado. Mesmo em um caso como (3),

(3) NURC/SP 360: 941-947
L2 [....] eh chega a ponto de até às vezes ele éh éh ele:: escrever PAra a faculdade... pedindo... os melho/ ah os nomes dos melhores alunos... dos últimos anos... para poder eh poder // procurar
L1 localizar
L2 para poder localizar... porque REalmente a dificuldade é grande

em que os segmentos sobrepostos apresentam contraste semântico, será talvez admissível aceitar que o processamento verbal prévio possibilitou a L1 fazer uma proposta lexical mais adequada, a ponto de L2 ser levado a se corrigir.
No entanto, informações meramente sintático-semânticas não parecem bastantes para explicar ocorrências da antecipação nas quais o segmento proposto tem a complexidade de uma oração. Dois exemplos:

(4) NURC/SP 360: 368-375
L2 é... e outra coisa eles estão na escola de manhã provocado por alguma coisa porque como eu trabalho de manhã
L1 certo você teve que adaptar o horário deles::...
L2 é... aliás // eles já é
L1 ao seu
L2 ele já ia à escola da manhã que eu comecei quando eu comecei trabalhar... comecei a trabalhar há dois anos... [...]

(5) NURC/SP 360: 1207-1216
L1 então eu... saí do::... ah ah:: pedi demissão do meu serviço mas consciente de que aquilo era o melhor... para aquela família que se //iniciava
L2 ahn ahn
L1 sabe? ... e::
L2 e // realmente você conclui agora
L1 ( )
L2 que foi melhor
L1 que foi melhor embora futuramente eu pretenda trabalhar [....]

É possível alegar que, em ambos os exemplos, os segmentos oracionais antecipados atendem a expectativas estabelecidas pelo processamento da seqüência verbal prévia, produzida pelo locutor corrente. Assim, em (4), podemos dizer que a ocorrência da oração porque como eu trabalho de manhã cria a expectativa de outra, que satisfaça a relação de subordinação assinalada pelos conectivos porque e como, sendo que esta outra oração deve corresponder à segunda parte de uma relação causa-efeito. Já em (5), a presença da conjunção e na seqüência prévia pode ser tomada como fornecendo base para expectativas sobre a continuidade do enunciado. No entanto, é óbvio que apenas as expectativas estruturais geradas pelo processamento verbal não são suficientes para explicar o grau de elaboração dos segmentos oracionais antecipados nesses exemplos. Por outras palavras, as propriedades lexicais e sintáticas do enunciado em produção não bastam para se compreender, em casos como (4) e (5), a progressão que a iniciativa do antecipador proporciona ao tópico da fala em curso.
Portanto, é necessário reconhecer que na antecipação, e na interpretação em geral, atuam também outros processos que não os considerados no modelo paralelo. Processos que mobilizam informações de outra natureza que não a sintático-semântica. Na próxima seção, iremos avaliar uma perspectiva de abordagem da antecipação que busca superar os limites do conceito de interpretação baseado apenas no processamento da informação estrutural.

3 Uma abordagem inferencial da antecipação

Se desejamos avançar no entendimento de como é possível ao antecipador prefigurar o que o falante tenciona dizer no passo seguinte do seu enunciado, importa considerar a interpretação daquele ponto de vista que Clark chama de "intencional", ou seja,

em que a compreensão é concebida como o processo pelo qual as pessoas chegam a uma interpretação do que o falante pretendeu que elas captassem daquele enunciado naquele contexto (...) tal visão requer que os ouvintes façam inferências que vão bem além do sentido literal ou direto do enunciado (...) mas (...) limita as inferências àquelas que os ouvintes julgam ter o falante pretendido que eles fizessem. (apud Garman, 1990: 363)

Como se vê, essa perspectiva, que se desenvolveu, sobretudo, a partir dos trabalhos de Grice (1975, 1978), trata a interpretação do discurso falado essencialmente como um processo inferencial. Gumperz (1982: 153) pode então chamar de "inferência conversacional" ao "processo de interpretação situado ou contextualizado, através do qual os participantes de uma interação avaliam as intenções dos outros, e sobre o qual baseiam suas respostas." Portanto, antes de discutirmos as implicações dessa perspectiva para o tratamento da antecipação, convém fazer algumas observações gerais sobre como se processa a inferência na conversação.




3.1 A inferência conversacional: aspectos gerais

Brown & Yule (1983: 33-35) observam que o tipo de inferência que comumente utilizamos na interpretação do discurso é de natureza bem diferente da inferência dedutiva ou lógica. Nesta, toda a informação necessária para se chegar a uma conclusão como (6c), no exemplo abaixo, deve estar explícita em enunciados como (6a) e (6b), que servem de premissa.

(6a) Se faz sol, faz calor.
(6b) Faz sol.
(6c) Logo, faz calor.

No discurso comum, porém, acontece com freqüência que, de um enunciado como (7a),

(7a) João está a caminho da escola.

somos levados a concluir, por exemplo, que

(7b) João é um estudante.

Ou, se o enunciado (7a) vem seguido por (8a),

(8a) Semana passada, ele foi incapaz de controlar a classe.

abandonamos (7b) e concluímos que

(8b) João é um professor.

Observe-se que, enquanto a verdade de (6a) e (6b) assegura a verdade de (6c), a verdade de (7b) e (8b) não é garantida pela verdade de (7a) e (8a). Isto porque estes dois enunciados não explicitam toda a informação necessária para as conclusões (7b) e (8b).
A questão que se coloca é a de saber quais são as fontes dessa informação adicional, que se torna decisiva para a geração das inferências normalmente encontradas na conversação. Na definição apresentada acima, Gumperz caracteriza esse tipo de inferência como sendo um processo "situado ou contextualizado". Isto é: a fonte informacional específica das inferências conversacionais se encontra na situação concreta de comunicação e no contexto socio-cultural. Segundo Gumperz (1982: 153-71), os encontros conversacionais são caracterizáveis em função das atividades de fala que neles se desenvolvem, e que podem ser descritas por meio de expressões como "discussão sobre política", "conversa sobre futebol", "palestra sobre ecologia". Essas atividades estruturam o conhecimento sócio-cultural na forma de restrições e expectativas sobre a condução e o conteúdo do discurso. Constituem, portanto, a base das inferências conversacionais. Como foi dito, tanto o enfoque de Gumperz quanto a visão "intencional" da interpretação se voltam para as inferências que o ouvinte faz sobre o que ele julga ser o propósito comunicativo do falante. Nesse processo inferencial, portanto, o ouvinte deve fazer uso de informações contextuais que ele julga pertencer ao conhecimento partilhado pelos envolvidos na interação verbal.
Examinando o papel da noção de conhecimento mútuo na teoria da inferência conversacional, Gibbs (1987) oferece um argumento que é particularmente importante para o nosso contexto de discussão. O argumento se baseia no princípio da cooperação, formulado por Grice (1975: 45), segundo o qual os interlocutores devem fazer suas contribuições em atenção ao propósito ou direção da interação conversacional no momento em que essas contribuições ocorrem. Tal princípio constituiria um mecanismo para gerar apenas as inferências "autorizadas" pelo falante e operaria em conjunto com uma série de "máximas", dentre as quais talvez a mais importante seria a que estabelece: "seja relevante." Assim, em (9a) e (9b):


(9a) A: Você vai à festa hoje à noite?
(9b) B: Eu soube que o Jairo vai.

com base nessa máxima, a resposta de B pode ser interpretada como uma negação ou como uma afirmação, na dependência de A saber que B gosta de Jairo ou que deseja evitá-lo. Contudo, como diz Gibbs (1987: 580), "o ouvinte nesta situação deve não apenas utilizar um contexto que inclui informação sobre o que o falante acredita, ele deve reconhecer também que o falante de (9b) sabe que ele dispõe dessa informação." Em outras palavras, a apreensão, por parte do ouvinte, da intenção do falante requer a existência de uma base mútua de conhecimentos.
Clark & Marshall (1981; sigo a síntese em Gibbs, 1987: 576) propõem três fatores contextuais (co-ocurrence heuristics) sobre os quais se baseiam os participantes em uma conversação para estabelecer o conhecimento mútuo. O primeiro é o contexto lingüístico, que abrange tudo o que se disse na conversação, incluindo-se o enunciado em processo de interpretação. O segundo fator é o contexto físico, que envolve tudo o que os participantes estão vivenciando ou já vivenciaram. Por fim, temos o fator de se pertencer a uma mesma comunidade, sendo a informação aqui representada em estruturas ou esquemas (schemata, frames, scripts) mentais, incluídas as convenções lingüísticas sobre a fonologia, sintaxe e semântica do enunciado em foco. Normalmente, o conhecimento mútuo é estabelecido por uma combinação desses três fatores contextuais.
A noção de conhecimento mútuo ou partilhado apresenta íntima relação com o conceito de envolvimento. Este termo apresenta certa diversidade de uso entre os vários autores, mas aqui o adotaremos no sentido com que Tannen (1989: 12) o emprega: "uma conexão interna, até mesmo emocional, sentida pelos indivíduos e que os liga a outras pessoas, como também a lugares, coisas, atividades, idéias, memórias e palavras", não constituindo, porém, algo "dado, mas uma conquista na interação conversacional". O conhecimento mútuo ou partilhado está, assim, vinculado ao empenho dos participantes em considerar, a cada passo da conversação, as perspectivas uns dos outros. Como Wilkes-Gibbs (1995) demonstra, o esforço contínuo de coordenar essas perspectivas se reflete na dinâmica interacional e possibilita a compreensão mútua, dele emergindo, em parte, a coerência do discurso.
A decisão de considerar como conversacionais apenas as inferências que o ouvinte julga "autorizadas" pelo falante, possibilita contornar o problema que Brown & Yule (1982: 269) encontram no fato de que, em princípio, o processo inferencial tem um caráter "aberto", ou seja, um mesmo enunciado permite diversas alternativas de inferência, dependendo dos pressupostos do analista. Segundo os autores, tal fato torna extremamente difícil chegar ao conjunto de inferências feitas por um leitor ao interpretar um texto escrito em circunstâncias naturais. E a conclusão é quase desanimadora:

O fato é que, até podermos desenvolver técnicas experimentais que nos permitam tirar conclusões sobre como as pessoas processam dicursos naturais em contextos da "vida real", continuaremos a subestimar o entendimento humano e a superestimar nossas metáforas analíticas simplistas. Isto se aplica não somente à natureza da inferência, mas ao próprio conceito mais geral de compreensão. (1983: 269)

Na conversação, porém, o envolvimento dos participantes canaliza o processo inferencial em direção a uma interpretação negociada e, por isso mesmo, "autorizada". Na antecipação, em particular, a interpretação do ouvinte se textualiza e, então, é ratificada ou rejeitada pelo falante. Exatamente por esse motivo, as ocorrências desse fenômeno podem proporcionar condições singulares para o estudo dos mecanismos inferenciais da compreensão.


3.2 Os processos inferenciais na antecipação

Mesmo quando reconhecem a natureza on-line da interpretação do discurso falado, os estudos sobre a inferência conversacional tendem a representar o ouvinte como empenhado na compreensão de enunciados completos, já concluídos. Isto equivale à reintrodução sub-reptícia da concepção da atividade interpretativa como a ação de mecanismos que operam apenas retrospectivamente sobre a fala produzida. Ora, se a modelagem do processamento estrutural do enunciado tem, como vimos, procurado realçar as características prospectivas dessa atividade, também a teoria da inferência conversacional deve fazê-lo. E talvez de maneira mais enfática. Pois, enquanto o processamento verbal percorre o curso linear, palavra a palavra, do enunciado em produção, gerando apenas expectativas estruturais de curto alcance, os processos inferenciais permitem "saltos" interpretativos, ou seja, possibilitam que o ouvinte capte a intenção do falante bem antes de o enunciado estar concluído, como mostram os exemplos (4) e (5) acima.
Proponho reservar o termo "projeção" para designar esse aspecto prospectivo da interpretação conversacional. Em outra ocasião, esclareci a relação entre projeção e antecipação (Barreto 2001: 56). Cabe insistir aqui neste ponto. Defino a projeção como a configuração mental que o ouvinte faz, de antemão, do que ele julga ser a intenção comunicativa do falante. Já a antecipação consiste na manifestação textual e discursiva da projeção. Do fato de que a antecipação pode ocorrer em qualquer momento da fala em curso, conclui-se que a projeção permeia toda a atividade interpretativa do discurso conversacional. (Mais que isso, é possível extrapolar o âmbito da conversação e supor que a projeção esteja presente também na interpretação de um texto monologado ou escrito, embora normalmente não encontre, nessas circunstâncias, meio de manifestar-se.)
Procuremos, então, analisar como são mobilizados os recursos informacionais que possibilitam a geração de inferências nas iniciativas de antecipação. Sem pretender um tratamento exaustivo, tentemos descrever o processamento do input de dados, ou como sugiro chamar, dos incrementos informacionais, que possibilita ao ouvinte fazer a projeção da intenção comunicativa do falante. Considere-se o seguinte exemplo:

(10) NURC/SP 360: 1305-1308
L1 ele gostaria de:: jogar no::
L2 no dente de leite
L1 no dente de leite... mas o horário para mim era ruim... mas NO Palmeiras ele me fez inscrevê-lo

Um primeiro incremento informacional que podemos considerar aqui provém, naturalmente, do processamento sintático-semântico do enunciado em produção ele gostaria de jogar no... Esse processamento cria no ouvinte, L2, a expectativa de que o próximo segmento a ser acrescentado à seqüência verbal deva ser um substantivo que designe o lugar onde "ele gostaria de jogar". Um segundo incremento resulta do contexto lingüístico do enunciado, no qual o falante corrente, L1, diz que o seu filho de treze anos gostaria de ser jogador profissional de futebol. Tal contexto permite entender que o verbo jogar, no enunciado em foco, significa "praticar futebol" e o referente do pronome ele é um menino de treze anos. O terceiro dado de que se serve o ouvinte para projetar o que o falante pretende dizer em seguida é de natureza cultural: crianças que aspiram a ser jogadores de futebol geralmente se matriculam em escolas de preparação. Se, ao intervir, o antecipador tem o intuito de dar continuidade ao enunciado de acordo com a intenção comunicativa do falante, L2 aqui deve pressupor que o dado cultural seja também do conhecimento de L1, embora não necessariamente que L1 saiba que o termo adequado para tais escolas de preparação seja "dente de leite". Portanto, o terceiro incremento parece, nesse caso, constituir a informação decisiva para o ouvinte projetar a intenção comunicativa do falante e se adiantar a este na produção do enunciado em curso.
Uma análise semelhante pode ser feita com o próximo exemplo:

(11) NURC/SP 360: 1324-1326
L1 ele segue o salário dos jogadores... através da:: revista Placar... é uma revista::
L2 especializada em esporte...
L1 especializada em esporte... /.../

Evitando insistir em considerações sobre o processamento verbal, diremos que o primeiro incremento informacional provém do conhecimento de mundo de L2: Placar é uma revista especializada em esportes. Um outro incremento relevante decorre da própria situação de comunicação: L1 e L2 são do sexo feminino. O terceiro incremento consiste em uma informação de caráter sócio-cultural: não é comum que as mulheres leiam revistas sobre esportes. A projeção de L2, portanto, é a de que L1 pretende explicar a natureza da revista mencionada, que trata de esportes, e não, por exemplo, fazer uma apreciação do tipo "é uma revista muito boa", o que seria uma expectativa plausível, fossem os interlocutores do sexo masculino. Mais uma vez, essa projeção só será possível se L2 supuser que L1 tem conhecimento dos dados que constituem os três incrementos aqui mencionados.
Reconsideremos os exemplo (4) e (5) acima, que são reapresentados como (12) e (13) a seguir:

(12) NURC/SP 360: 368-375
L2 é... e outra coisa eles estão na escola de manhã provocado por alguma coisa porque como eu trabalho de manhã
L1 certo você teve que adaptar o horário deles::...
L2 é... aliás // eles já é
L1 ao seu
L2 ele já ia à escola da manhã que eu comecei quando eu comecei trabalhar... comecei a trabalhar há dois anos... [...]

(13) NURC/SP 360: 1207-1216
L1 então eu... saí do::... ah ah:: pedi demissão do meu serviço mas consciente de que aquilo era o melhor... para aquela família que se //iniciava
L2 ahn ahn
L1 sabe? ... e::
L2 e // realmente você conclui agora
L1 ( )
L2 que foi melhor
L1 que foi melhor embora futuramente eu pretenda trabalhar [....]

Já discutimos esses casos como exemplos de ocorrências da antecipação que não podem ser adequadamente explicadas dentro dos limites do modelo paralelo. Vejamos, agora, como a abordagem inferencial consegue avançar no esclarecimento dos aspectos interpretativos de tais ocorrências. Comecemos com o exemplo (12). Vimos que, em termos de processamento verbal, a presença do conectivo subordinativo como gera a expectativa de que adiante deverá ocorrer uma oração que satisfaça a relação de subordinação e corresponda à segunda parte de uma relação causa-efeito. Para dar conta do conteúdo da oração, porém, é necessário que essa expectativa estrutural se converta em projeção da intenção comunicativa do falante. E o incremento informacional decisivo para isto é, outra vez, de caráter sócio-cultural e se refere à distribuição das tarefas domésticas, em que cabe à mãe a principal parte no cuidado com os filhos. Isto explica o fato de que L1 acha natural que L2 ponha os filhos na escola durante o período em que está ausente de casa, trabalhando. Daí a antecipação (enfatizada pelo marcador de convergência certo), tão logo L2 formulou a primeira parte da relação causal.
Em (13), L1 vinha falando sobre a sua opção de desistir do emprego para cuidar dos filhos. O enunciado em formulação poderia estar concluído não fosse a ocorrência do conectivo e, que gerou a espectativa de continuidade da fala. O primeiro incremento para a projeção por L2 está no sentido literal do próprio enunciado em produção: "pedi demissão do meu serviço mas consciente de que aquilo era o melhor... para aquela família que se iniciava". Contudo, note-se que, em sua intervenção, L2 muda o plano temporal da fala em curso, do passado para o presente. Isto sugere o recurso à informação, de caráter genérico, sobre a possibilidade de as pessoas reavaliarem suas decisões. Acrescentando-se a isso, a resposta negativa de L1, no contexto imediatamente anterior do enunciado, quando interrogada se tinha alguma frustração por ter parado de trabalhar, parece justificada a projeção feita por L2 de que L1 poderia estar pretendendo reafirmar o acerto de sua decisão. No entanto, devido à extensão do segmento antecipado e ao fato de que, sem o conectivo e, o enunciado de L1 estaria potencialmente concluído, alguém poderia tomar o exemplo (13) como um caso de mero desdobramento, em que a contribuição se faz em relação a uma seqüência potencialmente completa. Como conseqüência, outra seria a análise aqui proposta, uma vez que a iniciativa de L2 não refletiria a projeção da intenção comunicativa do locutor corrente. No entanto, o enunciado em curso antes da intervenção do interlocutor encontra-se marcado por diversos sinais de hesitação, inclusive o alongamento do conectivo e::. Além disso, é importante notar que L2, ao intervir, repete o conectivo, integrando assim o segmento antecipado à moldura sintática do enunciado de L1. Esses traços formais, a meu ver, sustentam a decisão de tomar (13) como um caso de antecipação (reparadora e, talvez monitoradora, do ritmo) e, portanto, desenvolver a análise com base no processo de projeção.
Na análise dos exemplos (1)-(3), aventou-se a possibilidade de a antecipação (logo, também a projeção) resultar apenas do processamento verbal nos moldes da abordagem paralela. Os exemplos (14) e (15), a seguir, parecem corroborar essa hipótese:

(14) NURC/SP 396: 1097-1101
L2 [....] mas vovó não pagava porque vovó tinha casas depois... vovó cedeu a ca::sa... para o:: // o:: (isso)
L1 Macedo Soares... // ( )
L2 (doutor) Macedo soares...

(15) NURC/SP 360: 1104-1108
L2 [....] então o Macedo Soares veio pedir... para ela::... se ela podia ceder a casa... para ele fazer éh // dormitório...
L1 (dormitório)
L2 então fez o colégio de::le::... [....]

Nesses exemplos, L1 e L2 são irmãos (os dois já bastante idosos) e falam para uma terceira pessoa (o documentador) sobre os costumes da época em que eram jovens. Em ambos os casos, L2 encontra-se numa passagem narrativa de fatos que foram vivenciados por ele e por L1. Parece claro que as duas intervenções de L1 não decorrem de um esforço inferencial, mas, sim, que o processamento verbal do enunciado em produção ativa a memória de L1 no sentido de recuperar detalhes daqueles fatos, possibilitando que L1 intervenha para contribuir com L2 na apresentação ordenada desses detalhes. Tal contribuição, no entanto, deve ser considerada como uma ocorrência da antecipação, uma vez que o ouvinte se adianta ao falante, em sintonia com a intenção deste. Em casos de tentativa de antecipação como (14) e (15), um eventual insucesso da iniciativa pode ser explicado em termos de uma falha na recuperação da informação. É o que acontece no seguinte exemplo:

(16) NURC/SP 396: 1006-1010
L1 um par de sa/sapato de senhora muito fino... custava::...
L2 nove cruzeiros (ou)?...
L1 não... nesse tempo // custava...
L2 quanto era?...
L1 dezessete cruzeiros ou dezoito cruzeiros...

Diferente, porém, é o que se observa neste outro exemplo de insucesso na iniciativa de antecipação:

(17) NURC/RE 266: 162-167
L2 é: o que infelizmente está havendo pai deixa de ser pai mãe deixa de ser mãe... passa a ser uma criadora não é? e o pai... fica éh...
L1 um sustentador
L2 entra entra quase como Pilatos no Credo... [...]

Aqui, L2 discorre sobre a desagregação da família e procura caracterizar a situação mostrando a que ficam reduzidas a figura do pai e da mãe. Toda essa informação, naturalmente, o ouvinte obtém do sentido literal do enunciado. Note-se que, embora tentando descrever uma situação de drásticas alterações na organização familiar, L2, ao caracterizar o papel da mãe como sendo agora o de uma "criadora", reproduz uma concepção tradicional da função da mulher, ou seja, baseia-se em certos esquemas culturais. Parece ser com base nesses mesmos esquemas que L1 infere que, no passo seguinte do enunciado, L2 pretende caracterizar o restrito papel do pai na nova ordem familiar também em termos tradicionais, como sendo apenas o "sustentador" da família. No entanto, o desdobramento que L2 deu ao enunciado mostra que a sua intenção era a de atribuir à figura do pai uma função completamente marginal, como a de "Pilatos no Credo".
Casos de insucesso como esse demonstram o caráter "aberto" das inferências conversacionais na projeção, isto é, que o processamento inferencial dos incrementos informacionais pode levar a variadas configurações da suposta intenção do falante. No modelo de processamento verbal, a expectativa estrutural gerada pela análise da parcela já produzida do enunciado se caracteriza pela rigidez com que os elementos prévios condicionam a ocorrência dos elementos subseqüentes. Na medida em que esse modelo vincula o significado à forma, também a interpretação do enunciado se torna rígida. Portanto, o insucesso na tentativa de antecipação pode ser explicado apenas em termos semelhantes aos que usamos na análise do exemplo (16), e que são inadequados para o tratamento de insucessos como (17). Já quando analisamos este último caso no quadro da abordagem inferencial, podemos compreendê-lo como resultando do fato de que o ouvinte, ao fazer inferências sobre a fala em curso, tem que processar informações bastante diversificadas, que não se limitam às propriedades semânticas e sintáticas dos enunciados. A circunstância de que o sucesso ou insucesso da projeção é, numa ocorrência da antecipação, indicado pela presença ou ausência de indícios de ratificação ilustra como funciona a negociação de sentidos que, na interação conversacional, canaliza as inferências em direção a uma interpretação "autorizada".



4 Conclusão

Finalizando, parece correto dizer que a antecipação, quando vista como o resultado de processos inferenciais, possibilita "visualizar" uma certa independência da interpretação em relação à forma do discurso. Ou seja, permite entender que os fatores contextuais são tão decisivos na interpretação do discurso falado que o ouvinte pode fazer projeções da intenção comunicativa do falante mesmo quando a informação estrutural não é suficiente para tanto. Isto parece representar um forte argumento em favor da concepção apresentada na abertura deste artigo: a atividade do ouvinte está longe de ser uma mera decodificação do que já foi enunciado. Pelo contrário, o seu esforço constante é o de se adiantar àquilo que está sendo dito, e buscar compreender, da maneira mais rápida e eficiente possível, o que o falante tem a comunicar.

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Anexo: O sistema de transcrição do corpus

Na medida do possível, foram mantidas as convenções para a transcrição dos inquéritos utilizadas nas fontes originais do Projeto NURC. Contudo, devido à necessidade de adequar essas convenções aos recursos gráficos do equipamento empregado na edição deste trabalho, introduziram-se algumas modificações.

( ) incompreensão de palavras ou segmentos
(hipótese) transcrição hipotética
(( )) ação não-verbal do locutor ou comentário do transcritor
[....] omissão intencional de parte do turno
/ truncamento de palavras
// ponto em que um enunciado é sobreposto pelo enunciado transcrito na linha imediatamente abaixo
:: alongamento de vogal ou consoante
... qualquer pausa
-- -- desvio temático
? entoação ascendente
MAIÚSCULA sílaba ou palavra pronunciada com ênfase
____ localização da ocorrência do fenômeno em discussão

RE Recife (na identificação dos inquéritos)
SP São Paulo (na identificação dos inquéritos)


(Publicado em Travessia, Olinda, Ano IV, N.º 01, 2002, p. 47-68.)

[Revisão concluída em 27/7/2003]


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