António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista

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Ciências Humanas. 01, 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009

Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES - GO VOL. 01, No 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009.!

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ANTÓNIO SANCHES:! A VOZ ANGUSTIADA DE UM CRISTÃO-NOVO DE JUDEU ABOLICIONISTA! Mário Maestri∗ !

Resumo:! A partir do século 15, as poucas vozes que questionaram, no mundo lusitano, as justificativas religiosas, morais, éticas e sociais do tráfico e de da exploração do trabalhador escravizado foram duramente silenciadas, sobretudo pela Inquisição, sofrendo a prisão, o degredo, etc. Entre esses raros críticos da escravidão destacamse o gramático Fernão de Oliveira, e sua obra A arte da guerra do mar, de 1555, e o médico António Sanches. Português cristão novo de judeu, obrigado a viver no exílio devido às suas visões de mundo, no contexto das reformas pombalinas do ensino, de 1759, Sanches foi convidado por autoridade portuguesas a escrever, em Cartas sobre a educação da mocidade, suas propostas de remodelação do ensino , aproveitando o ensejo para tecer duras críticas à escravidão. O presente artigo traça sinteticamente a biografia de António Sanches e apresenta as diretrizes de sua visão abolicionista.!

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Palavras-chave: História das idéias; Abolicionismo em Portugal; A escravidão em Portugal.!

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From the 15 century, the few voices that had questioned the religious, moral, ethical and social justifications of the slave trade and worker’s exploration in the Lusitanian world were hardly silenced, especially by the Inquisition, suffering the arrest, the banishment, etc. Among these rare slavery’s critics are distinguished the grammarian Fernão de Oliveira, and his work “A arte da guerra do mar”, in 1555, and the doctor António Sanches. Portuguese New Christian of Jew, forced to live in the exile due to his world personal view, in the context of the Pombal’s education reforms, in 1759, Sanches was invited by Portuguese authorities to write, in “Cartas sobre a educação da mocidade”, his proposals for remodeling the education, taking to opportunity to hardly criticize the slavery. The present article traces, in a synthetically way, the biography of António Sanches and sets guidelines on his abolitionist vision!

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Key-words:! History of ideas; Abolitionism in Portugal; The slavery in Portugal.!

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Primeira e última potência negreira européia, Portugal jamais conheceu uma voz potente, como a do frei espanhol Bartolomeo de las Casas, que se levantasse denunciando o tráfico e a feitorização dos americanos e dos africanos. Porém, mesmo raras, houve palavras lusitanas lúcidas e destemidas que destoaram e se opôs ao coro negreiro. A relativa ignorância sobre essas vozes deve-se sobretudo ao fato de terem sido abafadas, no momento da sua enunciação, e subalternizadas, a seguir, 1

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pelas ciências sociais, no momento da seleção e legitimação dos locutores referenciais do passado.! Em geral, registram-se três autores ibéricos que teriam feito escutar em Portugal, com maior ou menor radicalismo, suas críticas contra o tráfico ou a escravidão, mais de cem anos após a chegada dos primeiros africanos em Lagos: Domingo de Soto, em 1556; Martín de Ledesma, em 1550-60 e Fernão de Oliveira, em 1555. Alguns eclesiásticos levantaram-se no Brasil contra a escravidão, conhecendo igual silenciamento. No século 16, os jesuítas Gonçalo Leite e Miguel Garcia, e em fins do século 18, o capuchinho José de Bolonha, opuseram-se à escravidão do nativo e, em alguns casos, do africano, devendo por isso abandonar a colônia [1].! O espanhol Domingo de Soto [1494-1570] ensinou teologia em Salamanca, foi confessor de Carlos I, destacou-se como comentarista das obras de Aristóteles, participou dos debates do Concilio de Trento e integrou a comissão de teólogos reunida em Valladolid, em 1550-1, para debater a escravização dos americanos. Em De Iustitia et Iure, interrogou-se “sobre a legitimidade das guerras entre africanos negros, embora se limitasse admoestar os amos de má consciência que vendessem aqueles de seus escravos capturados em semelhantes guerras”. [2] Ele terminou propondo que a escravidão podia ser «não apenas lícita» mas verdadeiro «fruto da misericórdia», quando livrava o escravizado de uma pena maior, como a morte. [3]! Após estudar teologia e ensinar em Salamanca, o dominicano espanhol Martín de Ledesma foi chamado, em 1541, por dom João III, para ensinar teologia em Coimbra, onde faleceu em 1574, com pouco mais de sessenta anos. Martín de Ledesma criticou parcialmente o tráfico, defendendo as conversões livres do africano, ao qual negou a condição de selvagem. Foi, portanto, bem mais longe do que seu coetâneo Porém, em Secunda Quartae, de 1560, aceitou a compra legal, condenando às penas do castigo sofrido na vida eterna apenas os detentores de cativos obtidos ilegalmente. Portanto, dificilmente pode ser proposto como crítico da escravidão. [4]!

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I. A vida atribulada do gramático Fernão de Oliveira, crítico radical da escravidão e do tráfico negreiro! Coube ao português Fernão de Oliveira [5] o privilégio da mais radical diatribe lusitana conhecida em defesa do homem negro escravizado. Filho de Heitor de Oliveira, juiz dos órfãos em Pedrógão, Fernão de Oliveira nasceu por voltas de 1507, na vila de Aveiro, no seio de família que ele próprio apresenta como modesta. Em 1520, aos treze anos, teria entrado como noviço no convento de Évora, da Ordem de São Domingos, onde estudou Gramática e outras disciplinas, na sua progressão em direção ao estado canônico. [6] Em 1532, aos 25 anos, por razões ainda desconhecidas, abandonou o convento dominicano para refugiar-se em Castela, de onde voltou, em 1535, para lecionar jovens fidalgos e publicar, em 1536, em Lisboa, aquela que seria a primeira Gramática da língua portuguesa conhecida. [7]! Nos anos 1530, o acolhimento de sua Gramática da língua portuguesa e a sua qualificação intelectual pareciam oferecer-lhe futuro social e profissional, se não radioso, ao menos seguro, como preceptor de filhos de algumas das mais ilustres famílias do Reino, entre elas, a de João de Barros, o cronista das Índias, e a de dom Fernando de Almada, ao qual dedica sua Gramática, por o ter acolhido, “com muita 2

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despesa”, para sua “casa” onde “graciosa e compridamente” o conservara. [8] Em 1540, Fernão de Oliveira partiu outra vez para Espanha, sem que também se saiba os motivos. Durante viagem de Barcelona para Gênova, teria sido aprisionado pelos franceses, aos quais serviria como piloto. [9] Em 1543, voltava da Itália para Portugal, em companhia do núncio apostólico dom Luiz Lippomano. [10] Nos dois anos seguintes, viveu no ostracismo ou, talvez, em anonimato relativo. Em junho de 1545, sob falso nome, arrolou-se novamente como piloto em esquadra francesa que passava pelo Tejo para juntarem-se à expedição contra a Inglaterra.! No primeiro semestre de 1546, devido às vicissitudes da guerra do mar, a galé em que o sacerdote-gramático-piloto servia foi capturada no canal da Mancha. Na capital inglesa, o infeliz prisioneiro teria se arranjado para cair nas boas graças de Henrique VIII, às turras com Roma, o que nos ilumina fugazmente sobre a heterodoxia de sua visão de mundo, em relação ao universo ideológico e social ibérico da época. [11] Em janeiro de 1547, com a morte do soberano inglês, subiu ao trono Eduardo VI, que cedeu a Fernão de Oliveira licença para partir e carta de recomendação ao rei português, com a qual o sacerdote racionalista teria se apresentado a dom João III no “começo do outono de 1547”. Então, Fernão de Oliveira vivia como homem laico, muito ao estilo inglês, no “bairro de mareantes” de Cata-que-Farás.! Ao entardecer de 18 de novembro de 1547, à porta de livraria lisboeta, na rua Nova, Fernão de Oliveira, então com 40 anos, deixou-se envolver imprudentemente em provocação promovida pelo livreiro cristão-novo de judeu, seu desafeto, sobre a Inglaterra e as ações de Henrique VIII contra o papado, que foram por ele defendidas acaloradamente. Denunciado por João de Borgonha à Inquisição, as “primeiras inquirições” foram efetuadas dois dias mais tarde, já na prisão, onde o malogrado Fernão de Oliveira permaneceria por longo tempo. Diante do Santo Ofício, o prisioneiro teria se negado a condenar Henrique VIII, que disse tê-lo recebido e alimentado. [12] Em agosto de 1548, era condenado por suas “heréticas, temerárias e escandalosas” doutrinas e, possivelmente, por sua negativa de se dobrar às injunções do dito Santo Ofício. [13]! Retomando a Tonsura! Em “3 de setembro de 1550”, transcorridos três anos de encarceramento, segundo parece, sob intervenção direta do cardeal dom Henrique, Fernão de Oliveira foi libertado e enviado ao mosteiro de Belém, após abjurar seus erros, sob condição de“retomar o hábito e tonsura sacerdotal” do qual “há muito se desabituara”. [14] Em agosto de 1552, possivelmente em busca de ares menos opressivos, e certamente procurando pôr-se longe do alcance dos imensos braços da Inquisição, outra vez, Fernão de Oliveira embarcava-se, como sacerdote nos papéis, eventualmente como piloto nos fatos, em pequena expedição de cinco embarcações, enviada por dom João III, para “transportar e repor nos seus antigos domínios o destronado rei de Vélez, em Marrocos”. [15] Novamente, Fernão de Oliveira foi aprisionado, desta vez no porto de Vélez, por frota argelina, sendo transportado com outros prisioneiros para Argel, de onde, igualmente deslanchado, conseguiu partir, a seguir, para Lisboa, para tratar do resgate dos cativos. Em fins de 1552, após chegar à capital portuguesa, teria sido apartado da operação das negociações sobre o resgate por inspirar pouca confiança à administração real.! 3

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Como resultado de suas andanças pelos mares, Fernão de Oliveira escreveu A arte da guerra do mar, em Lisboa, em 1552-4, na casa de dom António da Cunha, pai de dom Nuno da Cunha, a quem dedicaria o livro. Porém, em janeiro de 1554, sofreu nova ordem de prisão, por suas opiniões, parece que denunciado pelo próprio hospedeiro. [16] Ao menos imediatamente, a ação punitiva não teria tido maiores conseqüências. Em dezembro de 1554, como fênix que renasce das cinzas, Fernão de Oliveira era nomeado revisor tipográfico da Imprensa da Universidade de Coimbra, onde teria ensinado “retórica” durante o ano acadêmico de “1554-5”, com “notável competência”. Suas funções na imprensa da Universidade permitiram concluir a publicação de seu livro, em 4 de julho de 1555. Possivelmente, esses foram os momentos de maior consagração e tranqüilidade da vida atribulada do pensador português. [17]! O livro surgia em tempos de conflitos e de rupturas. A arte da guerra do mar foi redigida precisamente no momento em que a coroa e as classes aristocráticas portuguesas apoiavam-se na Inquisição para combater a pressão das classes burguesas européias e portuguesas e a cisão causada pela Reforma no ordenamento político- ideológico feudal. Em 1555, quando A arte da guerra do mar foi conhecida, faziam cento e dez anos que negro-africanos haviam começado a ser filhados, aos magotes, nas costas do Continente Negro, para serem levados para a Península Ibérica ou reexpedidos, a seguir, para o Novo Mundo, tornando-se uma das principais fontes de riqueza das elites lusitanas. Mais ainda. No momento em que o autor estampava suas idéias, o fluxo negreiro era potenciado e reorientado parcialmente para as capitanias luso-americanas, devido ao esgotamento das possibilidades de expansão açucareira a partir da escravidão do americano. [18]! Em A arte da guerra do mar, livro síntese de suas experiências militares, Fernão de Oliveira dedica praticamente dois capítulos a atacar, um por um, frontalmente, os argumentos basilares da retórica justificadora do tráfico e da escravidão. Ou seja, um dos grandes eixos da aliança entre a Igreja, o Estado absolutista e as elites aristocráticas e mercantis lusitanas. [19] O segundo capítulo do livro – “De quem pode fazer guerra” – é dedicado à abordagem das condições gerais para que uma guerra fosse justa. Segundo o autor, o direito da guerra era de exclusiva alçada do príncipe, ou seja, do Estado. Porém, apesar do príncipe ter que prestar contas apenas a deus, seu único superior, ele devia agir em exclusiva defesa de seu povo e da verdadeira fé, para não ser tirânico. Destruía igualmente as razões propostas da captura de africanos. [20]! Eclipse Social! As razões fortes de Fernão de Oliveira foram sem dúvida escutadas, pelos ouvidos errados. Em 26 de outubro de 1555, pouco mais de três meses após a edição de Arte da guerra do mar, aos 48 anos, o pensador radical era novamente preso pela Inquisição, crê-se que até 1557. A publicação desse ensaio e o novo encarceramento assinalaram seu eclipse social, mesmo que tenha, possivelmente, alcançado a velhice, ativamente. [21] Pouco conhecemos sobre as últimas décadas da vida de Fernão de Oliveira. Salvo trabalho recente, a historiografia jamais dedicou estudo bibliográfico exaustivo a esse fabuloso e corrosivo pensador. Há possibilidade de que se encontrasse, em 1565, no convento de Pámela. O certo é que, nos anos 1570, 4

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escreveria a Ars náutica, ainda inédita, e, no início da década seguinte, sua última grande obra, sobre a construção náutica, em parte inconclusa.! O Livro da fábrica das naus, tido como o “primeiro tratado enciclopédico escrito por um português [...] sobre as matérias navais, entre as quais a construção naval [...], foi publicado, por primeira vez, por Henrique Lopes de Mendonça, em 1898”, mais de três séculos após suas redação. [22] É possível que Fernão de Oliveira tenha-se refugiado na França, devido às lutas pela sucessão dinástica, em 1580. Encontram-se na Biblioteca Nacional, em Paris, “várias obras autógrafas” suas, entre elas uma “História de Portugal”, um “Livro da antigüidade, nobreza, liberdade e imunidade do reino de Portugal” e uma tradução ao português da “De re rustica” de Columella, o célebre agrônomo romano. [23] ! No trabalho sobre a história de Portugal e em uma outra obra de cunho historiográfico, sustenta a independência portuguesa contra a anexação espanhola. Ou seja. Defende a posição da burguesia comercial e marítima, dos mesteirais, da arraia miúda do campo e da cidade contra a grande aristocracia portuguesa. Como nada mais se conhece da pena de Fernão de Oliveira, acredita-se que tenha morrido na segunda metade da década de 1580, com mais de setenta anos, idade venerandíssima para época em que, com cinqüenta anos, os homens já eram anciães. [24] ! Aventureiro de Gênio! A falta de estudos biobibliográficos aprofundados sobre Fernão de Oliveira tem permitido que esse pensador radical e atípico lusitano seja apresentado comumente como “aventureiro de gênio” que conheceu, quase por vocação, uma “vida aventurosa” e atribulada. [25] Para essa visão, suas dificuldades com a Inquisição e com o Estado lusitano são quase deduzidas de uma inclinação natural à aventura. Ao contrário, parece-nos que suas fugas do Reino nasceram da necessidade de se pôr ́ ao largo das contrições intelectuais e fisicas de um Estado despótico e obscurantista, dedicado incessantemente a fazer calar as razões inaceitáveis às classes proprietárias hegemônicas da época.! Arte da guerra do mar, de Fernão de Oliveira, seria reeditado apenas no século 20. A segunda edição, de 1937, foi apresentada pelo comandante Quirino da Fonseca e Alfredo Botelho de Souza. A terceira, de 1969, reproduziu a anterior e a quarta, de 1983, fez o mesmo, apresentando em fac-símile o texto original. Todas foram publicadas sob os auspícios do Ministério da Marinha de Portugal. As três reedições não se deveram ao caráter radical e precoce da crítica do autor do tráfico negreiro e da escravidão do trabalhador, mas ao fato de se tratar de talvez o “mais antigo tratado de estratégia e tática naval de que há memória em letra de forma”, como lembra o responsável do Ministério da Marinha, na edição de 1970.! Pensador racionalista radical, Fernão de Oliveira foi o autor da primeira gramática portuguesa e o principal crítico ibérico do tráfico de cativos e da escravidão. Por todas essas razões, urgem estudos que desvelem as razões e articulações profundas desse pensador que emergiu dos mundos das chamadas elites dominantes para interpretar os segmentos mais explorados de sua época, sofrendo, por isso, a prisão, a perseguição e o abafamento de suas idéias, devido ao poder das forças sociais a que a elas se antepuseram, no passado e no presente.! 5

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! ! II. Vicissitudes de António Nunes Sanches, cristão novo de judeu, abolicionista radical!

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Dois séculos após a crítica radical de Fernão de Oliveira do tráfico e do escravista, em 1760, as justificativas cristãs daqueles fenômenos seriam igualmente impugnadas pelo cristão-novo de judeu António Nunes Sanches. Nesse então, vivíamos o início da agonia do ciclo minerador escravista brasileiro e das tentativas pombalinas de reformar a ordem feudal, mercantil e colonial lusitana. Filho legítimo de Simão Nunes e Ana Nunes, António Nunes Ribeiro Sanches nasceu na vila de Penamacor, no centro-leste de Portugal, próximo à fronteira com a Espanha, em 7 de março de 1699, no seio de família de cristãos novos de judeus, mantida como era ́ habitual sob a dura vigilância da Inquisição. Seu pai exercia o oficio de sapateiro, atividade que deve ser compreendida em um sentido lato, já que era homem de relativas posses, que tinha irmão e sobrinhos médicos, profissão exercida tradicionalmente pelos judeus.! Desde jovem, António Sanches foi destinado aos estudos, possivelmente na residência paterna. Segundo ele, aos 12 anos, já conhecia o latim, o espanhol, a gramática, a história e a geografia. Para prosseguir sua educação, aos treze anos, mudou-se para a casa de parentes, na Guarda, onde conheceu as vexações e descriminações anti-semitas então habituais. [26] Finalmente, em 1716, em Coimbra, inscrevendo-se “nas aulas de filosofia ministradas pelos jesuítas”. Inicialmente, estudou “direito civil”, vislumbrando a possibilidade de seguir a advocacia. Porém, terminou matriculando-se nas cadeiras de medicina, retomando a orientação paterna. [27]! Em 1719, a Universidade de Coimbra vivia dias sombrios, sob o domínio da escolástica dogmática e das violências de estudantada organizada de boa família que chegou ao fim apenas em fevereiro de 1721, com a intervenção de batalhão de quatrocentos soldados, chegado do Porto, e a condenação à morte e ao degredo do chefe e de membros da pandilha. [28] Sob injunção paterna, António Sanches abandonou Coimbra, no terceiro ano de Escola, para matricular-se, em 28 de novembro 1720, na Universidade de Salamanca que conhecia igual tacanhice intelectual emburrecedora, mas vivia sob a plena ordem civil.! Finalmente, em abril de 1724, aos 25 anos, António Sanches concluía os estudos em medicina, o que permitiu que retornasse, sem delongas, a Portugal. Durante a estada em Espanha, escondera cuidadosamente sua origem cristã-nova, para escapar às vexações e perseguições antijudaicas castelhanas. [29] De volta ao Reino, instalou-se em Benavente, nas proximidades de Lisboa, onde clinicou por dois anos. Porém, em outubro de 1726, a Inquisição denunciava um seu primo que, durante o interrogatório, citou seu nome, entre os Sanches “moseístas”. A maior denúncia de familiares, sobretudo próximos, era quase exigida pela Inquisição, para que abrandasse, nem que fosse relativamente, as penalidades do réu. !

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Pernas para que te quero! Sem confiar seu destino aos azares da sorte, o jovem médico deixou discretamente Portugal, em novembro ou dezembro do mesmo ano, embarcando-se em veleiro inglês que se dirigia à Inglaterra. Apesar de ter mantido, sempre, estreitos laços culturais e científicos com Portugal, António Sanches jamais retornaria a terra em que nascera. Anos mais tarde, escreveria sobre as vexações que lhe agoniavam em Portugal: “Entra este rapaz cristão-novo no comércio do mundo, e a cada passo observa que os cristãos-velhos, por trinta modos, o insultam e desprezam. Quanto ́ mais vil é o nascimento e oficio do cristão-velho mais insulta o cristão novo [...]. [...] o carniceiro, o mariola, o tambor e mesmo algoz e o negro escravo são os primeiros que insultam e que dão a conhecer com infâmia um cristão-novo.”! Porém, não se tratava discriminação nascida da incultura: “Os que têm melhor educação lá dão seus sinais de distinção, mas com maior decência: um, quando fala com ele, lhe diz uma meia palavra de cão; outro, por gíria, lhe chama judeu; outro põe a mão no nariz; outro, antes que fale, dá umas cutiladas de dedos pelos bigodes; amaior parte faz acenos que tem rabo …”. [30] Desde os séculos anteriores, era voz corrente em Portugal que os hebreus, assassinos de Cristo, sugavam o sangue das crianças e possuíam rabos, ao igual que os macacos! Ao lusitano de origem judaica era-lhe desconhecida a nacionalidade portuguesa plena, apanágio daqueles que podiam apresentar, com ou seu razão, longa ascendência sem mancha hebréia, muçulmana ou africana.! No século 20, Joaquim Ferreira, na sua ampla, arguta e radical apresentação biográfica de António Sanches, na qual nos baseamos, ao denunciar indignado o antisemitismo em Portugal, termina recuperando a exclusão dos hebreus da nacionalidade lusitana que denuncia: “Nos olhares e nas meias palavras dos circunstantes surpreendia Sanches o rancor ancestral dos portugueses ao moiseísmo [...].” No século 18, as perseguições antijudaicas das quais António Sanches fugia não se restringiam a descriminações e a estadas nas duras masmorras do Santo Ofício, como comprova o “assassínio do comediógrafo António José da Silva, estrangulado no garrote e queimado o cadáver no auto-de-fé de 18 de outubro de 1739.” [31]! Em Londres, António Sanches foi acolhido por seu tio Diogo Nunes Ribeiro, também médico, que ali se refugiara, com esposa e cinco filhos, após participar de “auto-de-fé de 19 de outubro de 1704” e ser condenado ao cárcere perpétuo. Na Inglaterra, o jovem médico ampliou seus conhecimentos estudando anatomia, ́ matemática, fisica e química. [32] António Sanches empregou-se igualmente como preceptor de um “mancebo da família Solis, opulentos judeus lusitanos”, também homiziados na Inglaterra. Seu pupilo orientava-se igualmente para os estudos em medicina. Dois anos mais tarde, em 1728, talvez em companhia do aluno, mudou-se para Montpellier e, meses depois, para Marselha, na França.! Cidadão do mundo! Em 1729, António Sanches clinicava em Bordéus, residindo como hóspede na residência dos Solis dessa cidade. Porém, muito logo, em inícios de 1730, seguia para os Países Baixos, com seu pupilo, para estudarem medicina, na universidade de Leyde, sob a direção de Hermann Boerhaave (1668-1738). Por dois anos, António Sanches trabalhou sob a direção do célebre atomista e patologista, sem deixar de 7

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manter estreitos contatos com o embaixador português em Haia, para quem teria produzido plano de “reformas na Faculdade de medicina de Coimbra”, absolutamente desconsiderado em Portugal. [33]! No outubro de 1731, aos 31 anos, António Sanchez chegava à Rússia como! um dos três clínicos designados por Boerhaave, em resposta a um pedido da czarina Ana Ivanovna [1693–1740]. Como registra, pelo seu trabalho, receberia 600:000 réis de salário. Em 1735, estabeleceu-se em São Petersburgo, na função de “médico dos exércitos”. No “posto de médico-chefe dos serviços sanitários”, partiu para a Criméia, devido à guerra entre a Rússia e a Turquia. Em 1736, foi nomeado médico da Escola Militar de São Petersburgo, onde estudavam quinhentos cadetes filhos da aristocracia. Três anos depois, era nomeado médico efetivo da corte e, a seguir, elevado à situação de clínico privado da czarina, posto que ocupou, segundo parece, até a morte da imperatriz, em 1740.! Na Rússia, António Sanches prosseguiu carteando-se com administradores e homens de cultura portugueses, entre eles jesuítas eruditos estabelecidos na China. Essa última correspondência teria ensejado projeto jamais realizado de visitar aquelas distantes e exóticas regiões do mundo. Após dezesseis anos na Rússia, António Sanches partiu de retorno à Europa Ocidental, coberto de honrarias: foi agraciado com o foro de “fidalgo hereditário”, tornou-se sócio emérito da Academia das Ciências de São Petersburgo, recebeu subsídio vitalício da casa real russa. [34]! Em 1747, após visitar o rei da Prússia, estabeleceu-se em Paris, onde passou! a clinicar, estudar, escrever e pronunciar-se principalmente sobre os fatos portugueses. Entre suas relações parisienses ilustres encontrava-se o monsenhor Pedro da Costa e Almeida Salema, ministro plenipotenciário de Portugal na França. A obra de maior repercussão de António Sanches foi certamente seu compêndio Tratado da conservação da saúde dos povos, publicado em Paris, em 1756, e reeditado, após correção, no ano seguinte, em Lisboa. Nas duas edições, a obra não levava o nome do autor. Consultamos a primeira edição no Real Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro. [35]! Saúde pública! O Tratado, escrito “em estilo tão claro, que todos o pudessem entender”, foi o primeiro grande compêndio em português a apresentar, às autoridades e ao público culto, em 31 capítulos, o conhecimento médico da época sobre a saúde pública. “Nele pretendo mostrar a necessidade que tem cada Estado de leis, e de regramentos para preservar-se de muitas doenças, e conservar a saúde dos súbditos; se estas faltarem toda a ciência da Medicina será de pouca utilidade [...].” [36] Em 1759, devido ao Alvará pombalino de 28 de junho, que abolia as “classes e os colégios dos jesuítas” e instituía o ensino secundário estatal em Portugal, a pedido do monsenhor Salema, António Sanches apresentou suas idéias sobre a educação em pequena obra concluída em fins de dezembro daquele ano. [37]! Estampada em Paris, a primeira tiragem de Cartas sobre a educação da mocidade contava apenas com cinqüenta exemplares, enviados apenas saídos do prelo para Portugal. Por sua “faina na reorganização da Universidade”, António Sanches recebeu tensa anual de 360:000 réis”, suspendida no período 1761-69, devido à proteção que acordara ao matemático Soares de Barros, perseguido por 8

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Salema. Sem jamais voltar a Portugal, António Sanches faleceu, em Paris, em 14 de outubro de 1783, aos 83 anos, poucos anos após o transpasso do marquês de Pombal, que caíra em desgraça desde o falecimento de seu protetor, dom José, em 1777, morte que ensejara a entronização de dona Maria I e a viradeira conservadora e feudal que pôs fim ao reformismo pombalino. [38]! Compilação do conhecimento da época, o Tratado da conservação da saúde dos povos registra o esforço de um homem de ciência para arrancar Portugal do atrasa em que se empantanara. Definitivamente superado pela ciência, não foi objeto, nas décadas e nos séculos posteriores, de reedições. Ao contrário, as Cartas sobre a educação da mocidade garantiriam a António Sanches destaque entre os racionalistas portugueses de sua época, ao registrar sua avançada e original visão de mundo. A livro assegurou-lhe igualmente o laurel de crítico precoce do escravismo moderno. ! Ao enviar um exemplar do livro ao monsenhor Salena, António Sanches reitera que devido às “preocupações” que tomara, os cinqüenta exemplares – “toda a impressão” – chegariam, no dia seguinte, às mãos do diplomata. [39] Os cuidados que cercaram a redação, a impressão e, sobretudo, a circulação do opúsculo registram o caráter transgressor das propostas. O radicalismo das Cartas explica por quê, mesmo servindo como subsídio do reformismo pombalino, era inaceitável que elas fossem difundidas além do estrito círculo da mais alta burocracia estatal portuguesa.! Abordagem histórica! O ensaio de António Sanches dividia-se em duas grandes partes. Inicialmente, apresentava “sucinta história da educação civil e política que tiveram os cristãos católicos romanos até os nossos tempos” e, a seguir, “uma notícia das Universidades”, como subsídio para a reforma educacional pombalina, vivamente apoiada por Sanches. [40] Na “introdução”, “historia-se a génese e a evolução das escolas medievais sustentadas pela Igreja, as características civis da sociedade, os excessos do clero na política, a natureza eclesiástica das Universidades e, em especial, a de Coimbra; na segunda desenvolvem-se, num largo plano educativo, as directrizes pedagógicas que ele propunha e defendia.” [41]! António Sanches defende proposta de ensino laico, racionalista, sob o controle do Estado, orientado para a satisfação do que entende serem as reais necessidades da nação portuguesa. Nesse sentido, o ensino seria pago e o erário público subvencionaria alunos excelentes mas sem recursos. A abordagem historicista da questão educacional registra a importância da reflexão histórica para o autor. Portanto, compreende-se o destaque que dá ao estudo da história nos cursos preparatórios. “Mas esta história [...] não se há-de incluir a quantos reis teve uma monarquia, quantas vezes foi conquistada e quantos reis conquistou.” [42]! Expressão do pensamento racionalista burguês, António Sanches opõe-se conseqüentemente à educação popular. “O povo não faz boas nem más ações que por costume e por imitação, e raríssimas vezes se move por sistema nem por reflexão: será cortês ou grosseiro, sisudo ou trabalhador, pacífico ou insultador, conforme for tratado pelo seu cura, pelo seu juiz, pelo escudeiro ou lavrador honrado.” Na medida que não supunha e não propunha modificações essenciais nas duras condições de existência dos trabalhadores rurais da época, perguntava-se, não sem razão: “Que 9

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́ filho de pastor quererá ter aquele oficio de seu pai, se à idade de doze anos souber ler e escrever?”! Para ele, a educação era “a origem por que os filhos dos lavradores fogem da casa de seus pais”. Assim sendo, o trabalho devia ser o único grande recurso pedagógico da população laboriosa e, sobretudo, “o remédio” seria apenas um, “abolir todas as escolas” em meio rural. [43] Na primeira metade do século 20, registrando as condições de vida dos trabalhadores, Joaquim Ferreira lembrava sem papas na língua que era a falta de trabalho, pão e moradia que desertavam, no passado e no presente, os campos portugueses de seus trabalhadores: “Comem troços adubados com sal e dois pingos de azeite, a que chamam caldo.” [44]! Crítica radical da escravidão! Sem vínculos orgânicos com a sociedade portuguesa, António Sanches pode expressar crítica racionalista radical sobre a escravidão que, para ele, fora instituição nascida do domínio de um povo sobre outro que se perpetuara na história muito além do que justificava o progresso humano. Portanto, na sua opinião, a instituição era fenômeno histórico sem qualquer base natural ou religiosa. “[...] todas as nações conquistadoras [...], os gregos, romanos e godos conheceram e usaram dos povos vencidos como escravos. Esta prática se conservou em Portugal pela conquista do Reino contra os maometanos; e se continuou pela conquista de Guiné e de Angola. [...].”! Apenas devido essa razão, a escravidão havia sido “permitida em todo o Domínio Português” sem que, até então, “ninguém” ponderasse “os males que causa[va] ao Estado, à Religião e à educação da mocidade”. Portanto, propunha que a instituição fosse responsável pelo atraso, e não sustentáculo do progresso português. [45] Era frágil a argumentação de Sanches de como a escravidão prejudicava o Estado português. Sua sanção ao cativeiro era, sobretudo, moral e política, e não econômica. Afirmava que o “Estado” não “recupera[va] pelos escravos, os súditos” que perdia “na conquista, na navegação e nos estabelecimentos que tem na África”. Procurava assim inverter a tradicional equação que justificava o tráfico e o cativeiro pelas riquezas que produziriam.! A solução que propõe para a falta de braços livres no império português certamente causou calafrios aos seus leitores aristocratas. Em verdade, ela apoiavase em exemplo histórico abusivo, já que apresentava a permissão de matrimônio entre homens livres decaídos e os cativos ligados à terra – servus – da Alta Idade Média como a legalização do casamento entre cidadãos romanos e trabalhadores escravizados. [46] “Já disse que os romanos permitiam aos escravos casarem-se, mesmo ainda com as mulheres romanas, e que os seus netos vinham a ser cidadãos, e desse modo cada ano recuperava a República pela escravidão, o que perdia pela conquista.” Ou seja, propunha o matrimônio de portugueses e africanos escravizados para a produção de cidadãos livres portugueses em duas gerações!! Sem o radicalismo de seu predecessor Fernão de Oliveira, fulminou a explicação do tráfico como resgate de pagãos: “Eu não posso conceber como os eclesiásticos não têm remorsos de consciência em permitirem que fique escravo o menino que nasceu de pai e mãe escrava, no meio do Reino e da Religião Católica.” Não apresentava, entretanto, por razões políticas, a proposta de libertação dos 10

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trabalhadores escravizados que, na sua época, eram já essencialmente negroafricanos. Certamente tinha consciência dos limites da abertura política pombalina e que seu livro dirigia-se às autoridades civis, a quem absolvia taticamente da responsabilidade pela ordem negreira.! Nação inconclusa! Apenas por “razões políticas” e “não por aquelas do Evangelho”, Sanches aceitava que “o adulto” que fora “cativo, ou comprado na África” permanecesse “escravo depois que [...] batizado”. Mas para ele era “incompreensível” que “o mesmo” ocorresse “com seu filho nascido nos Domínios Portugueses, e batizado nos braços da mãe cristã”. Repetia, portanto, para o cristianismo, a interdição bíblica da escravidão dos hebreus. Sanches lembrava que, segundo a “religião cristã”, todos os “fiéis” eram “iguais” enquanto observassem “os mandamentos da Igreja”. Os “eclesiásticos” deveriam estender “fora da Igreja esta igualdade” fazendo “entrar os escravos cristãos na classe do súdito livre, e cidadão”.! Defendia, sobretudo, a libertação dos ventres das cativas africanas e crioulas batizadas. Uma ação que apresentava como necessária à “instrução” e humanização da “mocidade portuguesa”. “Se eu pretendera somente que a mocidade portuguesa fosse perfeitamente instruída [...] não havia de reprovar a escravidão introduzida em Portugal.” Seu “intento” era mais ambicioso. Queria dotar os jovens de “humanidade”, não apenas de “instrução”. O que dizia ser impossível “enquanto um senhor” tivesse “um negro a quem” dava “uma bofetada pelo menor descuido”. Para ele, a escravidão tornava “cada menino, ou menina, rica” “soberbos, inumanos, sem idéia alguma de justiça, nem da dignidade que tem a natureza humana”. [47]! Jacobino avant la lettre, propunha a impossibilidade da construção de nação cidadã enquanto vigesse o cativeiro e a “desigualdade civil” entre os cidadãos! “Como dos privilégios dos fidalgos e da nobreza procedeu a escravidão, assim das imunidades eclesiásticas, procedeu a intolerância civil.” Aproveitando o nadir dos jesuítas em Portugal, centrava sua crítica dos privilégios nos eclesiásticos, deixando à margem do espinaframento a nobreza lusitana. “Se a escravidão faz perder aquela igualdade civil que faz o vínculo e a força do Estado, a intolerância faz perder aquela humanidade, que é o desejo de a conservar para imitar o Supremo Criador [...].” “O poder eclesiástico é e deve ser sobre aquele cristão que vai espontaneamente oferecer-se à Igreja para satisfazer a sua consciência: mas não tem direito nenhum sobre aquele cristão ou gentio que não quer entrar na Igreja. Logo, os eclesiásticos não podem assentar por máxima universal que a tolerância, ou liberdade de consciência, é contrária à conservação da Religião.” [48]! Sanches associava sua crítica da escravidão à defesa da liberdade de religião e de consciência. “Como a escravidão” causava “distinção e preeminência entre os súditos, assim a intolerância civil” levantava “um muro de separação entre o cristão da religião dominante e o persecutado ou o intolerado [...].” [49] A impiedade de Sanches chegava a ponto de defender a superioridade da civilização muçulmana e indiana diante da portuguesa. “[...] era impossível conservar o que conquistaram os portugueses, sendo intolerantes das religiões daquelas nações conquistadas: nações, tanto a maometana ou indiana, que não conhecem tal máxima, qual é a intolerância: 11

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toda a Ásia e toda África são tolerantes; e nós queríamos fundar nestes povos subjugados Império Português.” [50]! Vozes silenciadas! A lógica da análise de António Sanches arrastava-o à critica da colonização lusitana na África: “Assim se vai criando naquele ânimo uma aversão para a humanidade; um ódio para os homens que não sujeitos às mesmas idéias que eles crêem e adoram; daqui vieram aquelas tiranas inumanidades que exercitaram os castelhanos na conquista da América e nós também em alguns lugares da África.” [51] António Sanches não era crítico extraordinário. Ao contrário, era apenas expressão excelente de um difuso movimento de crítica à escravidão e ao tráfico que perpassava, verticalmente, a sociedade lusitana, com formas e conteúdos desiguais.! A resistência antiescravista, em Portugal, na África e nas colônias americanas certamente alimentariam e enriqueceriam esse movimento de crítica dominado na Europa pelo racionalismo burguês revolucionário, em dura oposição às representações culturais, intelectuais, estéticas, éticas, políticas, etc. feudais. Portanto, dentro ou fora do Reino, nas últimas décadas do século 18, não faltavam vozes lusitanas que se alçassem contra o comércio e a ordem infame. Sobretudo, faltava terreno fértil para que a boa nova frutificasse, alimentando e fortalecendo a luta dos segmentos sociais em oposição à ordem vigente.! Também a crítica de Sanches sobre o tráfico e a escravidão não deixou traços entre os intelectuais e a sociedade portuguesa de sua época. As razões certamente não se encontram na pequena e restrita tiragem da obra. Os discursos transgressores da época não eram naturalmente estéreis. representante do bloco feudal-colonial dominante, o Estado lusitano mobilizava-se com singular precisão e afinco para calar as vozes dissonantes e ensurdecer os ouvidos sensíveis.! Inquisição, ponta-de-lança do controle ideológico, não foi jamais paradoxo histórico, mas órgão estatal com objetivos e práticas absolutamente coerente com os objetivos gerais e particulares das classes proprietárias que representava. O fato de que o Santo Ofício tenha perseguido com o mesmo afinco o cristão-velho Fernão de Oliveira, de límpidas raízes cristãs, e o cristão-novo de judeu António Sanches, de família indiscutivelmente hebréia, é uma outra prova tangível de sua função essencialmente supra-religiosa.! A manutenção na submissão, objetiva e subjetiva, do mundo do trabalho constituía necessidade imprescindível para o prosseguimento de um Estado e de uma ordem profundamente parasitários. O absolutismo não alimentava a ordem negreira. Ao contrário, era por ela poderosamente alimentado. Os escravizadores exigiam que as únicas vozes escutadas fossem as de suas razões esdrúxulas.!

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NOTAS!

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1. Cf. LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro. 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 35; LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugália, 1938. T. 2, pp. 227-230; “Opinião de um Frade Capuxinho sobre a Escravidão no Brasil em 1794”. RIHGB, 60 (1897): 155-157.! 12

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2. SAUNDERS, A.C. de C. M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994. [Ed. orig. University of Cambridge, 1982.] p. 72! 3. SOTO, Domingo, Iustitia et iure IV,2,2! 4. SAUNDERS, A.C. de C. M. História social […]. p. 72.! 5. MENDONÇA, Henrique Lopes de. O Padre Fernando Oliveira e a sua obra nautica – Memoria comprehendendo um estudo biographico sobre o afamado grammatico e nautographo e a primeira reprodução typographica do seu tratado inedito “Livro da Fabrica das Naus”. Lisboa: Academia Real das Ciencias, 1898; ALBUQUERQUE, Luís de. Navegadores, viajantes e aventureiros portugueses nos sécs. XV e XVI. II. Lisboa: Círculo de Leitores, 1987. pp. 128-42; DOMINGUES, Francisco Contente. “Experiência e conhecimento na construção naval portuguesa do século XVI: os tratados de Fernão de Oliveira”. REVISTA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, XXXII (1986), pp. 343-7.! 6. Cf. ASSUNÇÃO, Carlos & TORRES, Assunção. “Introdução”. OLIVEIRA, Fernão de. Gramática da linguagem portuguesa. [1536]. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 2000. p. 12.! 7. Cf. ASSUNÇÃO & TORRES. “Introdução”. ob.cit. p. 12.! 8. Id.ib. p. 4.! 9. Cf. DOMINGUES, & BARKER “O autor e seu obra”. Ob.cit. p. 11.! 10. Cf. FONSECA, Comandante Quirino. “Comentário preliminar” [da edição de 1937] pp.XI-XXV. OLIVEIRA, Padre Fernando. A arte da guerra do mar. Lisboa: Ministério da Marinha [1970]. ! 11. Cf. DOMINGUES & BARKER “O autor e seu obra”. Ob.cit. p. 12.! 12. Cf. Loc.cit. p. 12.! 13. Cf. Loc.cit.! 14. Cf. Loc.cit. p. 12; ASSUNÇÃO, Carlos & TORRES, Assunção. “Introdução”. p. 14-5.! 15. Cf. DOMINGUES & BARKER. “O autor e seu obra”. p. 12. ! 16. Cf. loc.cit.! 17. Cf. FONSECA, Comandante Quirino. “Comentário preliminar”. Ob.cit.; ]! 18. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; SALVADOR, José Gonçalves. Os magnatas do tráfico negreiro: séculos XVI e XVII/ José Gonçalves Salvador. São Paulo: Pioneira, 1981; CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985; GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico. 3a ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975; SILVA, Alberto da Costa. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Biblioteca Nacional, 2002.! 19 Cf. TORRES, Amadeu. “A paz da Fé e a fé na Pax Christiana: cruzadismo e irenismo na expansão atlântica”. Actas do Congresso Internacional sobre Bartolomeu Dias e a sua Época, Universidade do Porto, vol. V, 1989, pp. 605-15.!

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20 Cf. MAESTRI, Mário. Filhos de Cã, filhos do cão: o trabalhador escravizado e a historiografia. O período colonial. Revista História Debates e Tendências. Passo Fundo: , v.4, n.1, p.80 - 98, 2003.! 21. Cf. MENDONÇA, Henrique Lopes de. O padre Fernando Oliveira e sua obra náutica. Lisboa: 1898; BARKER, R.A “Fernando Oliveira: the english episode, 1545-1547”; DOMINGUES, Francisco Contente. Experiência e conhecimento na construção naval portuguesa do século XV: os tratados de Fernando Oliveira. Lisboa: 1985.! 22. Cf. DOMINGUES & BARKER “O autor e seu obra”. Ob.cit. p.14.! 23. Cf.FONSECA, Comandante Quirino. “Comentário preliminar”. Ob.cit.! 24. Cf. DOMINGUES & BARKER “O autor e seu obra”. Ob.cit. p. 14.! 25. Cf. Id.ib. p. 11.! 26.FERREIRA, Joaquim. “António Sanches”. SANCHES, António Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Pref. e notas de FERREIRA, Joaquim. Porto: Domingos Barreira, s.d. p. 17.! 27. Id.ib. p. 18! 28. Id.ib. p. 20, 24.! 29. Cf. MARQUES. Os sons do silêncio. Ob.cit. p.79.! 30. FERREIRA. “António Sanches” pp. 25-7.! 31. Id.ib. p. 17! 32. Id.ib. p. 27! 33. Id.ib. p. 34! 34. Id.ib. p. 41.! 35.[SANCHES, A.N.Ribeiro]. Tratado da conservação da saude dos povos. Obra util, e igualmente necessaria a os Magistrados, Capitaens Gerais, Capitaens de Mar, e guerra, Prelados, Abbadessas, Medicos, e Pays de Familias: com hum Appendix. Consideraçõins sobre os Terremotos, com a noticia dos mais consideraveis, de que fas menção a Historia, e dos ultimos que se sentirão na Europa desde o I de Novembro 1755. Paris, MDCCLVI.! 36. Id.ib. p. vi. Atualizamos.! 37.Cf. SANCHES, A[ntónio] N[unes] Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. [Nova edição revista e prefaciada. Maximiano Lemos]. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922. p. V-XV; Cartas sobre a educação da mocidade. Prefácio e notas de FERREIRA, Joaquim. Porto: Domingos Barreira, s.d.]! 38. FERREIRA. “António Sanches” p. 45! 39.Cf. SANCHES. Cartas sobre a educação da mocidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922. p. IX.! 40. Cf. Id.ib. 2.! 41. Cf. Id.ib. p. 53.! 42. Cf. Id.ib. p. 60.! 43. Id.ib. p. 67! 44. Id.ib. p. 67! 45. Id.ib. 88! 46. Cf. DOCKÈS. La libération médiévale. Ob.cit. p. 140.! 47. Id.ib. p.90.! 14

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48. Id.ib. p. 96! 49. Id.ib.,p.95.! 50. Id.ib.,p.93.! 51. Id.ib.,p.95.!

! ! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS! ! ALBUQUERQUE, Luís de. Navegadores, viajantes e aventureiros portugueses nos sécs. XV e XVI. II. Lisboa: Círculo de Leitores, 1987.! MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, No 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009.! ASSUNÇÃO, Carlos & TORRES, Assunção. “Introdução”. OLIVEIRA, Fernão de. Gramática da linguagem portuguesa. [1536]. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 2000.! CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985.! DOCKÈS, Pierre. La libération médiévale. Paris : Flammarion, 1979.! DOMINGUES, Francisco Contente. Experiência e conhecimento na construção naval" portuguesa do século XV: os tratados de Fernando Oliveira. Lisboa: 1985.! DOMINGUES, F. Contente & BARKER, R.A. “O autor e seu obra”. OLIVEIRA, Fernando. Liuro da fabrica das naos. Lisboa: Academia da Marinha, 1991.! FERREIRA, Joaquim. “António Sanches”. SANCHES, António Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Pref. e notas de FERREIRA, Joaquim. Porto: Domingos Barreira, s.d. FONSECA, Comandante Quirino. “Comentário preliminar” [da edição de 1937] pp.XI-XXV.! GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico. 3a ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.! LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro. 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988! LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugália, 1938. ! MARQUES. Os sons do silêncio. o Portugal de oitocentos e a abolição do tráfico de escravos. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 1999.! MENDONÇA, Henrique Lopes de. O Padre Fernando Oliveira e a sua obra nautica – Memoria comprehendendo um estudo biographico sobre o afamado grammatico e nautographo e a primeira reprodução typographica do seu tratado inedito “Livro da Fabrica das Naus”. Lisboa: Academia Real das Ciencias, 1898! OLIVEIRA, Padre Fernando. A arte da guerra do mar. Lisboa: Ministério da Marinha [1970]. ! MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.! SALVADOR, José Gonçalves. Os magnatas do tráfico negreiro: séculos XVI e XVII/ José Gonçalves Salvador. São Paulo: Pioneira, 1981.! 15

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SANCHES, António Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. [Nova edição revista e prefaciada. Maximiano Lemos]. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922. p. V-XV; Cartas sobre a educação da mocidade. Prefácio e notas de FERREIRA, Joaquim. Porto: Domingos Barreira, s.d.! SANCHES, António Nunes Ribeiro. Tratado da conservação da saude dos povos. Obra util, e igualmente necessaria a os Magistrados, Capitaens Gerais, Capitaens de Mar, e guerra, Prelados, Abbadessas, Medicos, e Pays de Familias: com hum Appendix. Consideraçõins sobre os Terremotos, com a noticia dos mais consideraveis, de que fas menção a Historia, e dos ultimos que se sentirão na Europa desde o I de Novembro 1755. Paris, MDCCLVI.! SAUNDERS, A.C. de C. M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994. [Ed. orig. University of Cambridge, 1982.]! SILVA, Alberto da Costa. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Biblioteca Nacional, 2002.

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