Ao forjar repertório, Nélida Pinõn inventa seu lugar no mundo

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Folha de S. Paulo – Ilustrada - 05/01/2017 Ao forjar repertório, Nélida Pinõn inventa seu lugar no mundo JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA ESPECIAL PARA A FOLHA

Filhos da América, coletânea de ensaios de Nélida Piñon, é um livro estruturado em torno de uma palavra: repertório. Eis a voz onipresente, que se encontra em quase todos os textos. E, desde a primeira ocorrência, se evidencia a razão de sua centralidade: "É inevitável mencionar minha origem. De onde provenho, a quem devo o sortilégio de dispor de um repertório que não me falha ao cobrar porções inestimáveis com as quais dar início a uma narrativa". No ensaio dedicado à história da Academia Brasileira de Letras, "A Morada Centenária", a palavra delineia o perfil de Machado de Assis: "Um criador que, ao dominar os saberes universais, se aliava aos mais ecléticos repertórios". No fundo, "Filhos da América", em que pese a dicção ensaística, é o romance de formação da autora Nélida Piñon. Por isso mesmo, ilumina seus percursos de leitora –dos gregos aos hispano-americanos, ou seja, dos clássicos aos contemporâneos. Em "A Épica do Coração" encontra-se o esclarecimento decisivo: "Mas convém saber que tudo que se conta surge do que já existe. Dos tópicos gregos, hebraicos, dos povos que inventaram deuses para fazerem milagres. Da matéria originária dos formuladores da invenção, que são os escritores". Adquirir um repertório (sólido) demanda apropriar-se de tradições (múltiplas), implica situar a leitura como atividade matriz e a escrita como forma de radicalização daquele gesto. Daí a vizinhança das noções

de repertório e de invenção: dois modos de encarecer o alcance da obra da autora de "A República dos Sonhos" (1984). Recupere-se a etimologia. O substantivo inventio é derivado de um dos verbos mais sugestivos da língua latina, invenire, vale dizer, ir ao encontro de algo que já existe. Ora, uma inventora sempre é aprendiz: de Heródoto, de Homero e de todas as tradições da "aventura de narrar", como se afirma no primeiro ensaio deste livro. A voz invenção também é dominante nos textos, eclipsando criação, de uso mais corrente hoje em dia. Compreende-se a escolha: creatio é derivado de um verbo arrogante, creare, que evoca o desejo ingênuo da creatio ex nihilo –esse criar a partir do nada, e, sobretudo, de ninguém. Ingenuidade que nunca ocorreria a Nélida Piñon; afinal, como ela recorda, "desde a mais tenra idade senti os efeitos da dupla cultura". Brasil e Galícia; português e galego (também o espanhol); enraizamento à roda da biblioteca e olhos livres para apreciar culturas e paisagens as mais diversas. A contínua ampliação do repertório ganha força com outra escolha vocabular. No caso, em lugar de referir-se ao mundo latino-americano, Nélida quase sempre prefere aludir ao universo ibero-americano. Desse modo, não somente funde as literaturas brasileira e hispanoamericana, como também incorpora a elas o legado português e espanhol. Essa é a regra de ouro da rica trajetória da autora: por que contentar-se com o que já se domina? A relevância de uma inventora de ficções é diretamente proporcional a seu compromisso com o risco de aventurar-se em horizontes inéditos. Por exemplo, Nélida foi pioneira no diálogo intenso com os autores hispano-americanos.

Em "Senhora da Luz e da Sombra", um elogio à amizade com Clarice Lispector, rememorada como opção tanto ética quanto estética, Nélida menciona o obstáculo que precisou superar: "o sistema literário que tudo fazia para dificultar o desabrochar de uma pena de mulher". A autora soube enfrentar o desafio, pois, ao forjar o próprio repertório, inventou seu lugar no mundo: eis a lição de "Filhos da América". Nos dias céleres que correm, um projeto decididamente transgressor e incontornável.

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