Ações coletivas contra o controle estatal: Entre coquetéis molotov e bombas de efeito moral

October 7, 2017 | Autor: Allan M. Hillani | Categoria: Protest, Giorgio Agamben, Michel Foucault, Social Control, Charles Tilly
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AÇÕES COLETIVAS CONTRA O CONTROLE ESTATAL: ENTRE COQUETÉIS MOLOTOV E BOMBAS DE EFEITO MORAL

Allan Mohamad Hillani Lucas Parreira Álvares

Revista Jurídica Themis n. 25: Antropologia Jurídica e Sociologia do Direito

Resumo: A política contemporânea pode ser dividida em dois problemas: o problema da crise do Estado democrático de direito e o o problema da crise organizacional. Ambos estão ligados a um processo comum de crise da representação política. O Estado não contempla mais os anseios sociais e quando os cidadãos manifestam seu descontentamento são brutalmente reprimidos. Por outro lado, não há alternativas postas de organização que não sejam as velhas, engessadas e insuficientes organizações partidárias e sindicais. O presente trabalho busca compreender a relação entre ambas as crises e analisar as alternativas que possuímos.

Palavras-chave: controle; estado de exceção; violência; repertório; ações coletivas

1. Introdução É seu dever manter a ordem, é seu dever de cidadão. Mas o que é criar desordem? Quem é que diz o que é ou não? OS TITÃS, DESORDEM

Recentemente, os garis do Rio de Janeiro declararam greve. O seu Sindicato, ironicamente, se apresentou contrário à greve e diversas vezes se portou como criminalizador dos manifestantes (defendendo, inclusive, a demissão de 300 trabalhadores). Não obstante, atravessou a autonomia dos grevistas para negociar com a Companhia Municipal de Limpeza Urbana, negociação que foi ignorada pelo movimento nas ruas1. Seguindo em outra direção, após a morte do jornalista Santiago Andrade, que faleceu ao ser atingido por um rojão disparado por manifestantes, a mídia e o governo 1

A inspiradora trajetória do movimento grevista pode ser conferida na matéria feita pela Mídia Ninja do Rio de Janeiro aqui: https://medium.com/p/6098e4a9f3e0.

brasileiro fortaleceram a distinção entre manifestantes legítimos, que devem ser protegidos, e os terríveis “vândalos”, com quem a polícia não deve medir a truculência, aproveitando o momento para retomar os debates acerca da tipificação do terrorismo e da criminalização de abusos em manifestações2. Esses dois acontecimentos recentes evidenciam dois termos da política contemporânea: a crise da organização política e a crise do Estado democrático de direito. Para compreender ambas as crises é preciso antes compreender a política em si e as suas condições atuais. Na atual conjuntura não se pode ignorar a perspectiva do estado de exceção como paradigma de governo, o que significa dizer que a suspensão do direito para manter a ordem é modelo de governo, que no sentido foucaultiano do termo se refere à condução de condutas dos sujeitos políticos de uma comunidade. A análise da exceção é essencial para a compreensão da ação estatal violenta que estabelece a linha divisória entre a regra e a exceção, que define o que é a ordem e faz de tudo para mantê-la. É nesse sentido que violência e direito passam a ser indiscerníveis pois a repressão estatal se localiza nesse limiar entre a legalidade e a ilegalidade ao mesmo tempo em que impõe aos sujeitos políticos o limite do legal e do ilegal, do manifestante legítimo e do vândalo. Contra essa arbitrária decisão (que tem a mesma estrutura do estado de exceção, que cria a própria norma que busca manter, que define a ordem a ser reestabelecida), os movimentos de protesto têm abandonado as velhas vias institucionais para demandar politicamente, sem a intermediação entre trabalhadores, sindicatos e patrões, ou a intermediação entre cidadãos, partidos e Estado. Essa mediação tem perdido seu potencial mobilizador (tem inclusive ganhado caráter conservador), mas a mobilização não deixou de existir – começou a surgir autonomamente fora dessas instituições. Não é possível compreender a crise organizacional sem perceber o papel das instituições e vice-versa, o que exige um olhar atento e dialógico entre ambos os fenômenos. 2. “Porque eu quis”: o vandalismo de Estado

Em setembro de 2013, em uma manifestação no Distrito Federal, Bruno, o capitão do Batalhão de Choque da PM diz que os manifestantes ‘’não devem passar de um determinado ponto’’. Com bandeira no chão e muitos jovens sentados no gramado próximo à rodoviária, o capitão passa e dispara o spray contra alguns dos manifestantes, 2

Mais informações disponíveis em: http://blogs.estadao.com.br/marcelo-moraes/depois-da-morte-decinegrafista-senado-pode-votar-urgencia-de-projeto-que-tipifica-terrorismo/.

sem reação. Um deles então questiona o policial: “Capitão Bruno, a gente não ultrapassou o limite que o senhor impôs e mesmo assim o senhor agrediu a gente com gás”, diz. “Sim”, responde o capitão. O manifestante insiste: “Por quê”? “Porque eu quis. Pode ir lá denunciar”, responde o capitão sorrindo3. O capitão Bruno é o exemplo esdrúxulo que a soberania ainda mantém sua essência. O abuso do capitão bem como outros abusos policiais praticados contra manifestantes nos protestos recentes são somente abusos, excessos ou são condições estruturais (com alguns exageros) de funcionamento de um dispositivo de controle? Para compreender de forma mais crítica essa relação é preciso se debruçar sobre o principal motivo alegado para atuação policial: a preservação da segurança. “A fórmula por ‘razões de segurança’ funciona hoje (...) como um código para impor medidas que as pessoas não têm razão alguma para aceitar” (Agamben, 2014). Este paradoxo desconstrói a crença de que o direito (principalmente o direito constitucional e o direito penal) possa conter o poder soberano de possíveis abusos. Nesse sentido, a tarefa que se apresenta não é reivindicar a devida aplicação do direito e a proteção aos direitos humanos nesses casos, mas sim a compreensão radical do funcionamento desse mecanismo e a necessidade de ele funcionar dessa forma. Para isso, é preciso compreender as relações existentes entre poder, política e direito e a forma como essas figuras se articulam à ordem e à segurança. Uma das principais contribuições para compreender essas relações e a fragilidade do direito é a de Michel Foucault e, posteriormente, suas interpretações realizadas por Giorgio Agamben, principalmente a de que “o estado de exceção agora tornou-se a regra” (2004, p. 21). Para compreender, porém, o dispositivo do estado de exceção na política hoje é preciso antes compreender a relação entre violência, política e direito.

2.1 Violência e estado de exceção

Walter Benjamin, em um famoso ensaio de 1921 intitulado Para uma crítica da violência4 (2011), faz uma das teorizações mais significativas sobre a relação entre

3

Mais informações disponíveis em: http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2013/09/porque-eu-quisdiz-pm-questionado-por-jogar-gas-em-jovens-no-df-veja.html. 4 O trabalho original é intitulado Zur Kritik der Gewalt. O termo Gewalt em alemão pode significar tanto violência como poder, o que torna difícil a tradução do termo no texto. Na história, inicialmente Gewalt foi associada à potestas e ao poder político e posteriormente foi sendo utilizada como excesso de força,

direito, política e violência. Benjamin busca analisar a violência enquanto meio e a diferenciação teórica entre a violência sancionada (historicamente reconhecida) e não sancionada. Essa diferenciação entre a violência conforme e não conforme ao direito, porém, é difícil de ser traçada. “O direito positivo exige de qualquer violência um atestado de identidade quanto a sua origem histórica, de que depende, sob determinadas condições sua conformidade de direito, sua sanção” (p. 125). Esses fins sancionados são os chamados fins de direito, enquanto que os não-sancionados são os fins naturais e estes fins naturais, para o direito, só podem ser alcançados mediante violência (e portanto estão em conflito com os fins de direito) (p. 126). “O direito considera a violência nas mãos dos indivíduos um perigo capaz de solapar a ordenação do direito” (p. 127). A violência fora do controle estatal, porém, para Benjamin é tida em si mesma perigosa, independentemente de perseguir fins naturais ou de direito. Não é por estar de acordo com os valores constitucionais que uma ação é tida como legítima. “O poder jurídico identifica neste desafio uma ameaça. E hoje sabemos até que ponto este sentirse ameaçado (ou melhor, este apresentar-se como ameaçado) pode levar os detentores do poder a utilizar uma carga de violência inimaginável” (Seligmann-Silva, 2009, p. 3). Dessa forma, afirma Benjamin, “o Estado reconhece uma violência cujos fins, enquanto fins naturais, ele às vezes considera com indiferença, mas em caso sério (...) com hostilidade” (2011, p. 129). Ao se referir à greve geral (e poderíamos aqui falar de qualquer manifestação política que se insira nos limites do aceitável e do inaceitável em uma democracia, como o direito de protestar), percebe que quando esta passa a ter um caráter revolucionário, “o Estado a classifica como abuso (Missbrauch, ou seja, como uma ameaça ao Estado de direito) e apelará para decretos especiais” (Seligmann-Silva, 2009, p. 4) para manter a situação como está. O crucial, portanto, seria estabelecer a linha divisória entre o uso e o abuso do direito, que justificaria a violência, mas a grande questão é que essa decisão cabe, no fim das contas, ao Estado, ou seja, àquele que reprime a ameaça a si mesmo: “quando deixados falar por si, os Estados têm poucos problemas em distinguir o uso legítimo e o uso ilegítimo da violência: o uso da força é legítimo porque é legitimado (pelo Estado)” (De La Durantaye, 2009, p. 338-339). Percebe-se, portanto, que não há uma divisão a priori entre a violência legítima e ilegítima, mas sim uma disputa pela possibilidade de dizer o direito, de afirmar a (i)legitimidade de uma situação política e de uma violência. violência. Neste sentido ambíguo e intraduzível que deve-se ler o termo violência aqui (N. E. em Benjamin, 2011, p. 122).

Quando a mídia e o Estado buscam diferenciar os “manifestantes legítimos” dos “vândalos”, é precisamente essa operação que se aplica, legitimando a repressão para manter o controle da situação – ainda que esta seja amplamente desproporcional. É nesses casos limites, na passagem do uso aceitável de um direito e sua possibilidade de desestabilizar a ordem jurídica que o direito torna-se violência (em ambos os sentidos, tanto o direito de manifestação passa a ser encarado como violento pelo Estado como o direito estatal passa de mero direito para violência em forma de direito). O direito não impede a utilização de violência para alcançar fins naturais porque estes não seriam fins de direito, mas sim pela intenção de garantir o próprio direito: “a violência, quando não se encontra nas mãos do direito estabelecido, qualquer que seja este, o ameaça perigosamente, não em razão dos fins que ela quer alcançar, mas por sua mera existência” (Benjamin, 2011, p. 127, minha ênfase), isso lhe é constitutivamente necessário. É aqui que a “faceta de preservação interna do ordenamento se vê diante da violência como método de autoproteção, revelando uma espécie de núcleo violento no interior do próprio ordenamento” (Vieira, 2012, p. 83). Isso não significa dizer que Benjamin identifica plenamente violência e direito, que seriam a mesma coisa, mas sim que ele busca expor como o funcionamento interno do direito tem na violência um elemento essencial de sustentação quando outros mecanismos de controle são ineficazes (p. 85). A violência, portanto, não é um elemento oculto no direito que surge nos momentos críticos: a violência está sempre lá. Essa é a essência do dispositivo de controle que Giorgio Agamben (a partir de Carl Schmitt) definiu como estado de exceção. O estado de exceção não é um mero recurso interno ao Estado de direito a ser reivindicado em momentos de crise (um evento excepcional que difere do “estado normal” de coisas a ser restituído), mas sim uma estrutura permanente, um dispositivo essencial aos Estados contemporâneos para controlar as possíveis insurreições políticas por meio de uma legalidade e, por esta razão, “tende a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea” (Agamben, 2004, p. 13). O que percebemos hoje é que “um estado de exceção formal não é declarado e vemos em vez disso, noções vagas – como as razões de segurança – serem usadas para instalar um estado estável de emergência assustador e ficcional sem nenhum perigo identificável” (Agamben, 2014). O estado de exceção permite a suspensão do direito para garantir o próprio direito, não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico, ele “diz respeito a um patamar, ou uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam.

A anomia por ela instaurada não significa [a] abolição [do direito]” (Agamben, 2004, p. 39), mas sim sua suspensão permanente. O estado de exceção, portanto, não se caracteriza por um regime em que o soberano possui plenos poderes (tipicamente ditatorial), mas sim em que o direito (que regulamenta o poder) nunca está garantido, o direito passa a ser um lugar vazio (p. 79). Essa interpretação radical da insuficiência do direito na contenção do poder estatal (que mina as bases de todo o constitucionalismo moderno) se dá pela separação da lei e da “força de lei”5, ou seja, da lei em vigor e sua aplicação. O estado de exceção “define um ‘estado de lei’ em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem ‘força’) e em que, de outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua ‘força’” (Agamben, 2004, p. 61). Essa separação possibilita uma “força de lei sem lei”, uma “força de ausência de lei” (uma “força de lei”, riscada pelo próprio Agamben), uma violência que não se baseia no direito ao mesmo tempo em que é essencial para a manutenção deste. Isso nos faz concluir que o que de fato importa não é tanto a existência de uma lei positivada que garanta direitos e estabeleça os limites do poder, pois existe sempre a possibilidade de aplicá-la ainda que não positivada (não importa a lei, mas a “força de lei”) ou de deixar de aplicá-la ainda que em vigor (pois a lei depende da sua “força”). É nesse sentido que se dá a indistinção entre violência e direito formulada por Agamben. Essa indistinção se apresenta para Agamben na figura do soberano, ou seja, “o ponto de indiferença entre violência e direito, o limiar em que a violência traspassa em direito e o direito em violência” (2010, p. 38). O soberano aplica o direito (em sentido amplo, não se resumindo ao judiciário, mas sim à aplicação concreta do direito) e é ele quem age de forma (mais ou menos) arbitrária não aplicando a lei posta ou aplicando a lei inexistente, ou seja, se utilizando da “força de lei”. A possibilidade de aplicar ou não a lei é uma disputa, no final das contas, sobre a soberania, a figura que em si articula o poder constituinte e o poder constituído. Agamben vai definir a relação de exceção do soberano com seus súditos (a soberania) como uma relação de bando, no sentido de que “aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco” (2010, p. 34). A relação de bando é a exposição dos súditos ao poder do soberano. É pela relação de bando que o autor resgata o pensamento hobbesiano, mostrando que o fundamento da soberania não é a cessão livre do direito natural de liberdade para a “O sintagma ‘força de lei’ vincula-se a uma longa tradição no direito romano e no medieval, onde (...) tem o sentido geral de eficácia, de capacidade de obrigar” (Agamben, 2004, p. 59). 5

própria proteção, mas sim a manutenção do poder do soberano de fazer qualquer coisa com qualquer um. Slavoj Žižek afirma que no nível jurídico, formal, declarado de um Estado democrático são os indivíduos, os sujeitos de direito que conformam a vontade do soberano, controlam-no, decidem seus rumos. Porém essa possibilidade incondicional de o soberano fazer o que quiser em última instância (que Agamben remete a Hobbes), esse “excesso obsceno é um constituinte necessário da noção de soberania – a assimetria é estrutural aqui, i. e., a lei somente pode sustentar sua autoridade se os súditos ouvirem nela um eco da obscena auto-afirmação incondicional” (Žižek, 2012, p. 117). A ação estatal soberana (que se dá por meio do direito na maioria das vezes) possui essa violência intrínseca como condição de exercício. “O direito só existe dentro deste espaço (negado e temível) entre a lei e sua realização. Ele sempre depende, em última instância, do poder decisório dos que dominam o aparelho jurídico. Ele é sempre, portanto, poder instituinte e mantenedor” (Seligmann-Silva, 2009, p. 7). Benjamin no referido ensaio já diferenciava dois tipos de violência que, de uma forma ou de outra, se articulam no Estado: a violência que instaura o direito e a violência que o mantém (2011, p. 132). Essas duas funções da violência vão se articular numa das principais instituições do Estado moderno: a polícia, que cria o direito (se utiliza da “força de lei” para aplicar um direito inexistente) e mantém o direito (aplica o direito para manter a ordem). Na violência policial “está suspensa a separação entre a violência que instaura o direito e a violência que o mantém” (p. 135). Se o soberano marca o ponto de indistinção entre direito e violência suspendendo o direito no estado de exceção, “a polícia sempre está operando num estado de exceção semelhante” (Agamben, 2000, p. 104). A essência da polícia, nos diz Benjamin, está no fato de que “o ‘direito’ da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência, seja devido às conexões imanentes a qualquer ordem de direito, não consegue mais garantir, por meio dessa ordem, os fins empíricos que ele deseja alcançar a qualquer custo” (2011, p. 135). Por esta razão que a polícia “intervém ‘por razões de segurança’ em um número incontável de casos nos quais não há nenhuma situação de direito clara” (p. 136), podendo assim manter os cidadãos sob controle (Seligmann-Silva, 2009, p. 5). Os mecanismos de controle e de segurança, porém, não se resumem ao exercício da violência (ainda que não seja possível desprezá-la). O mecanismo de controle é mais complexo e envolve uma série de contenções pacíficas que permitem conduzir a liberdade dos indivíduos de modo que eles ajam como o desejado. Esta é a essência do que Foucault chamará de relação de poder.

2.2 Governo, controle e resistência

Michel Foucault teve uma contribuição determinante para a compreensão do poder em nossas sociedade ao percebê-lo como uma relação. Para Foucault, o poder não é uma substância que possa ser possuída, transferida, tomada: o poder só existe em ato, em práticas concretas (2013, p. 287). O termo “poder” designa relações entre “parceiros” em que se leva em conta um modo indireto de ação de uns sobre outros. Foucault diferencia o poder da violência (também referida como estados de dominação) pois esta age diretamente sobre um corpo: “ela força, dobra, quebra, destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto a si, outro polo senão o da passividade” enquanto que o poder, por outro lado, depende “que o ‘outro’ (aquele sobre o qual se exerce) seja reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis” (p. 288). Além disso, “por se tratarem de ‘ações sobre ações’, as relações de poder são reversíveis, enquanto que nos estados de dominação não impera o jogo de liberdades, mas o exercício da violência” (Castro-Gómez, 2010, p. 27). É entre os jogos de poder e os estados de dominação que Foucault vai localizar o que ele chamou de tecnologias governamentais (Castro-Gómez, 2010, p. 38). A tecnologia governamental está entre “aquelas que determinam a conduta dos sujeitos (sujeição) e aquelas que permitem aos sujeitos dirigirem autonomamente sua própria conduta (subjetivação) (p. 39). Nem sujeição plena, nem autodeterminação absoluta: a meta destas tecnologias é a autorregulação: “conseguir que o governado faça coincidir seus próprios desejos, decisões, esperanças, necessidades e estilos de vida (...) com objetivos governamentais fixados de antemão” (p. 43). Por esta razão pode-se dizer que “governar não significa obrigar a que outros se comportem de certa forma (e contra sua vontade), mas conseguir que essa conduta seja vista pelos governados mesmos como boa, honrável, digna e, a cima de tudo, como própria, como proveniente de sua liberdade” (p. 43). O poder só pode se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto “livres” entendendo-se por isso “sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidades em que diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer” (Foucault, 2013, p. 289). Porém, os sujeitos só “se experimentam a si mesmos como livres, mesmo que os objetivos de sua conduta sejam postos por outros” (Castro-Gómez, 2010, p. 12).

Uma das características essenciais do governo foucaultiano é ser um modo de ação sobre as ações: não intervém diretamente por meio da repressão, intervém “sobre o campo possível de suas ações. Não se busca então anular a liberdade dos sujeitos, mas conduzila (...). Governar significa, então, conduzir a conduta de outros mediante a intervenção regulada sobre seu campo de ações presentes e futuras” (Castro-Gómez, 2010, p. 44). Não significa determinar fisicamente a conduta dos sujeitos como se esses fossem objetos passivos. “Envolve oferecer razões pelas quais os governados deveriam fazer o que lhes é dito, e isso significa que eles podem também questionar essas razões” (Oksala, 2011, p. 108). Em suma, nas palavras do próprio Foucault: Ele não é em si mesmo uma violência que poderia, às vezes, se esconder, ou um consentimento que, implicitamente, se reconduziria. É um conjunto de ações sobre ações possíveis: ele opera sobre o campo de possibilidades em que se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou dificulta, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite coage ou impede absolutamente, mas é sempre um modo de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações (Foucault, 2013, p. 288).

Foucault ainda afirma que o poder não está centralizado no Estado, como sempre afirmou a teoria constitucional: há uma microfísica do poder, ele está disperso, ainda que maneira não uniforme perpassa diversas relações sociais modificando-as e sendo modificado por elas (Oksala, 2011, p. 81). Isso não siginfica dizer que ele seja “anárquico” ou “democrático”, pois ele possui uma racionalidade própria, “uma série de intenções e objetivos, e os meios de alcançá-los” (p. 84). “As práticas e instituições de governo são permitidas, reguladas e justificadas por uma forma específica de raciocínio ou racionalidade que define os fins e meios adequados para alcançá-los” (p. 105). E uma das principais características do poder, como nos lembra o próprio Foucault, é ser “um conjunto de mecanismos e de procedimentos que têm como papel ou função e tema manter – mesmo que não o consigam – o próprio poder” (2008b, p. 4, grifo nosso). E quando o poder não consegue se manter? Como já visto, Foucault é bastante claro na distinção entre o poder e a dominação. As relações de poder são reversíveis e transformáveis enquanto que os estados de dominação perdem esse caráter e impedem sua subverção (Oksala, 2011, p. 85), mas quando que uma relação de poder passa a ser um estado de dominação ou vice-versa? Os estados de dominação são evidentemente mais instáveis e mais custosos pois resultam em resistências diretas enquanto que o poder governamental conta com a adesão dos súditos. Seguindo uma lógica foucaultiana para afirmar o que Foucault nunca afirmou poderíamos dizer que o que faz uma relação

estratégica passar a ser de dominação é o cálculo econômico sobre o controle da ordem. Assim que ele está verdadeiramente ameaçado, deixa de ser ótimo manter uma relação pacífica com os governados sob pena de perder a relação de governo em si mesma. O governo está ligado na obra de Foucault à segurança. Os dispositivos de segurança inserem os fenômenos em uma série de acontecimentos prováveis, insere um cálculo de custo no que tange às reações do poder e, após, estabelece uma média ótima, os limites aceitáveis de existência desse fenômeno (Foucault, 2008b, p. 9). “No fundo, a economia e a relação econômica entre o custo da repressão e o custo da delinquência é a questão fundamental” (p. 12). A segurança se refere ao problema do tratamento do aleatório (p. 15), “é a gestão dessas séries abertas, que, por conseguinte, só podem ser controladas por uma estimativa de probabilidades” (p. 27). Há uma taxa aceitável de atividades não controladas pelo governo, mas há o momento de ultrapassagem desse aceitável e é aí que entra novamente o problema do estado de exceção. Agamben é preciso em definir o estado de exceção como um dispositivo de governo (2004, p. 13) o que faz com que a relação entre controle, governo e estado de exceção passa a fazer sentido. Dispositivo, para Agamben, é um termo técnico essencial na obra foucaultiana para se referir à rede de que se estabelece entre sujeitos e relações. O termo dispositio, do latim, assume em si a complexa semântica da oikonomia teológica, isto é, o “conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens” (Agamben, 2009, p. 39, grifamos). Agamben, como afirma Edgardo Castro, “generaliza a noção de dispositivo até fazê-la coincidir com qualquer mecanismo que seja capaz de governar a vida” (2012, p. 164). O existente se divide em duas classes: os dispositivos e os seres viventes e a função dos dispositivos é, justamente, capturar o vivente e dar lugar aos processos de (des)subjetivação (Agamben, 2009 p. 46-47). De um lado a ontologia das criaturas, de outro a oikonomia dos dispositivos e entre os dois, como terceiro, os sujeitos, ou seja, “o que resulta da relação corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos” (Agamben, 2009, p. 40-41). O estado de exceção, como dispositivo, portanto, conforma os sujeitos, age diretamente na constituição de suas subjetividades por meio da suspensão do direito. A violência passa a ser também produtora de subjetividades e condutora de condutas (se não dos alvos da repressão, ao menos dos outros sujeitos da sociedade). A suspensão do direito para fins de segurança e a instabilidade permanente causada pelo estado de

exceção altera a relação de governo e exige outra formas de crítica a esse governo que não mais e diferencia tanto da dominação. Não existe nas relações humanas uma determinação absoluta de condutas, nem mesmo no mais violento dos estados. Há sempre uma resistência, uma desconformidade. Quanto mais direta a força, mais direta será a resistência – e por essa razão o governo se apresenta tão eficaz, pois não existe propriamente uma resistência ao governo, mas uma demanda de outro governo, de outra forma de governar. É nesse limiar entre a resistência e a construção de um governo alternativo que se encontra a política contemporânea.

3. Ações Coletivas: alternativa ou necessidade?

As teorias acerca da participação política são predominantemente ocidentais. Endossado por uma “busca pela estabilidade” de uma determinada sociedade, essas teorias

correspondem,

sobretudo,

a

uma

lógica

institucionalista

motivada

substancialmente pelo controle estatal. Vale ressaltar que o presente artigo não se propõe a romper com essa lógica, entretanto, problematizará as defasagens existentes nesse modelo a fim de encontrar o lugar em que as “ações coletivas” se inserem nesse contexto.

3.1 Repertório e Vibrações Sonoras O amadurecimento dos estudos acerca da “ação coletiva” são advindos principalmente da Escola Sociológica de Chicaco desde o fim do século XIX até meados dos anos 60. Principalmente após a expansão dos “meios de comunicação em massa” na década de 60 e em consonância com a atuação dos medias como mecanismos fundamentais para a fomentação dessas práticas, são diversos os conceitos de “ação coletiva” produzidos ao longo das últimas cinco décadas. A referência aqui utilizada (um desses conceitos recentes) será baseada na obra From mobilization to revolution (1977) de Charles Tilly, onde ele propõe um diálogo entre os clássicos Marx, Weber e Durkhein em sintonia com os elementos políticos e sociais que constituíram a contemporaneidade, rompendo com conceitos deterministas e solidificados. Tilly, amante de música, apresenta o conceito alinhado à ideia de repertório, expressando as diversas possibilidades de ações, ou seja, a criatividade coletiva. Para David Harvey, a única pergunta interessante é se os resultados dessas ações são criativos ou destrutivos. Normalmente são ambos: “a cidade tem sido por muito tempo um

epicentro de criatividade destrutiva” (Harvey, 2013, p. 30). A maioria dos norteamericanos do século XX, por exemplo, souberam como organizar diferentes formas de manifestações: marchas, assembleias com discursos, ocupação temporária de edifícios. Várias formas de manifestações pertencem ao repertório norte-americano do século XX – para não mencionar o Canadense, Japonês, Grego, Brasileiro, e outros tantos. A ideia de repertório inclui também diversas variedades de greve, envio de petições, organização de grupo de pressão, e umas tantas outras maneiras de articular reivindicações e demandas (Tilly, 1977, p. 151-152). Em Tilly, a tendência do conceito é proeminente desvinculado das possibilidades institucionais de reivindicações coletivas. Os exemplos como “ocupações”, “assembleias”, além de outras tantas alternativas, como “boicotes”, “plebiscitos populares”, são exemplos de faixas desse repertório. Seguindo nessa linha “musical” proposta por Tilly (1977), essas ações coletivas não institucionais sempre estiveram em consonância com as conquistas de direitos que ecoam desde a modernidade. Nunca estática, a expressão das reivindicações populares são caracterizadas pela temporalidade da alternativa de participação. Elas não são instrumentos que os indivíduos possuem, e que podem fomentar essas vibrações sonoras em momentos condizentes. Ao contrário, é exatamente a expressão de uma construção rítmica, em que, por uma determinada razão, mediante um momento propício, a melodia surge de acordo com as características envolvidas, ou seja, as variáveis notas musicais. Com isso, se justifica a permanente sonoridade dessas possibilidades de ação, acrescentando cada vez mais faixas a esse repertório e, se tratando como algo propulsor da construção de direitos, a tendência é que essas sonoridades não venham a ser silenciadas. O repertório de ações coletivas contemporâneas apresenta duas características que rompem com alguns paradigmas modernos: a horizontalidade e as mídias digitais. As experiências recentes de ações coletivas não institucionais possuem duas características essenciais: primeiro, a utilização massiva do princípio da horizontalidade, onde se dissipa a lógica ortodoxa de um “maestro que rege a orquestra”; segundo, a “ressonância” dessas ações causadas pelas mídias digitais, possibilitando a “audição” cada vez mais “aguda” pela sociedade civil (Tilly, 1977). A primeira tem como marco uma ruptura com os meios tradicionais de ações. A horizontalidade na organização surge em detrimento dos próprios modelos institucionais de participação, como conselhos municipais, orçamentos participativos, além da uma percepção da impossibilidade de atuação nos partidos políticos, se expressando pelo

repúdio aos mesmos. A lógica institucional de participação é hegemonicamente verticalizada. Não bastasse isso, as defasagens nos mecanismos de participação pra além do voto (como cooptação de lideranças em comunidades, aparelhamento burocrático), causadas pelo próprio aparato estatal, contribui para um distanciamento entre esses instrumentos e a sociedade civil. É nesse sentido que a horizontalidade surge como característica da organização. Um fator importante dessa nova lógica, é que ela causa um rompimento da personificação de um ou mais sujeitos da ação, dificultando (ainda que de maneira discreta) a criminalização dessas organizações. Entretanto, essa tentativa de se esquivar do controle estatal não é suficiente para que as ações possam ser reconhecidas como legítimas. Se por um lado a tendência das ações coletivas é se estabelecer nessas fragilizadas margens do poder público, a tentativa pelo estado de coibir tais ações também se dá nessas fendas debilitadas das organizações populares. A segunda característica surge como meio facilitador de mobilizações populares. As mídias digitais, sobretudo pela grande possibilidade de acesso quase global à internet, se tornaram indispensáveis no estímulo e na divulgação de tais ações. Abriram-se novas formas para que milhões de pessoas comuns pudessem estabelecer uma rede e coordenar suas atividades coletivas (Žižek, 2014). É nesse sentido que as ações coletivas contemporâneas se diferenciam substancialmente das ações coletivas tradicionais. Porém, esse advento das mídias digitais também possui um potencial de agir de maneira considerável contra as próprias organizações populares, seja em função de algum interesse de iniciativas privadas, ou pela própria lógica de controle estatal. Dentro desse panorama, retomamos a questão apresentada: as ações coletivas surgem como alternativa ou como necessidade? Essa provocação está intimamente relacionada ao funcionamento do Estado: se são uma alternativa, a organização assume que há uma possibilidade de participação dentro dos mecanismos estatais, se são necessidade, assume-se um esgotamento desses mecanismos institucionais a fim de que se criem novos meios de ação (ou novas faixas que integrarão o repertório). Contudo, não há uma resposta específica no que tange a uma guinada sólida desses substantivos. A garantia importante a ser estabelecida é a da livre possibilidade de organização coletiva baseada nesse caráter marginal. É marginal, não em um sentido do termo como substantivo (delinquente, bandido), mas numa análise como adjetivo (que se situa à margem do âmbito legal). Assim, as ações das organizações marginais tendo como

referencial os limites do Estado, vem se apresentando por meio do confronto e da violência. Essas ações podem ser justificadas?

3.2 Confronto político e ação (não) institucional O termo confronto político compõe a tríade “Movimentos Sociais, Revoluções e Ações Coletivas”, onde cada um desses termos está intimamente identificado com uma subárea específica (Tilly; Tarrow; McAdam, 2009, p. 12). A necessidade do confronto como meio, está majoritariamente vinculada a um processo de reconhecimento do indivíduo, ou do coletivo6, e até por meio de reivindicações pontuais de “resposta” de um órgão público. Essa ideia de confronto para Tilly, Tarrow e McAdam se caracteriza por duas especificações básicas: 1) ela envolve confronto, ou seja, faz reivindicações vinculadas a outros interesses e 2) pelo menos um grupo de interação (incluindo terceiros) é um governo, isto é, uma organização que controla os principais meios de coerção concentrados num território definido (Tilly; Tarrow; McAdam, 2009, p.12). Esse processo se dá até um ponto de intensidade máxima, depois seguida por um declínio na frequência, no sucesso e na civilidade das reivindicações e dos demandantes (Tarrow, 2012, p.23). O confronto como método, pode estar relacionado tanto pelo início de ação da organização, tanto quanto por uma possibilidade durante o período processual. Nesse sentido da ação, os variáveis meandros institucionais ou marginais, dissocia a lógica de semelhanças entre a atuação “institucional” e a “não institucional”. Basicamente pela (não) necessidade de accountabilitty ou de outros “padrões” institucionais pela organização marginal. Assim, se pensássemos que os movimentos sociais são simples agregados de identidades e interesses, estaríamos inclinados a estudálos por meio de seus documentos, de suas declarações públicas, e de sua negociação interna de identidades coletivas. Mas os movimentos também combinam as reivindicações coletivas às autoridades com demonstrações de que a população é merecedora, unificada, numerosa, e comprometida (Tilly; Tarrow; McAdam, 2009, p. 35). Quando se classifica a violência fora do controle estatal como abuso (ou como já dito antes: uma ameaça ao Estado de direito), assegura-se o desequilíbrio entre a violência

Os “mecanismos marginais de participação”, não buscam o seu reconhecimento como um fim na institucionalidade, pois, assim sendo, deixariam de ser marginais. Entretanto é uma alternativa pra que os indivíduos possam buscar o reconhecimento através do mecanismo. 6

“estatal” e a “não institucional”. Legitima-se o uso das “bombas de efeito moral” pelo estado, e criminaliza-se a utilização do “coquetel molotov” pelos manifestantes. O estudo sistemático da violência, iniciada no despertar dos tumultos de guetos nos anos 60 frequentemente foi visto isoladamente do estudo do protesto pacífico (Tilly, 2009, p. 13). Dissocia-se então, as concepções de “repertório” de ações pacíficas e ações violentas, e surge uma nova necessidade de classificação desses estudos específicos. E isso dirige as atenções para as ações públicas – as performances – que os movimentos apresentam, tanto para marcar suas demandas às autoridades como para criar e manter seus adeptos. Em outras palavras, a concepção de movimento dirige o foco metodológico para um estudo sistemático e historicamente estruturado da ação coletiva de confronto (Tilly; Tarrow; McAdam, 2009, p. 35). Na perspectiva de Slavoj Žižek, “um movimento político nasce de alguma ideia positiva em prol da qual ele se esforça, mas ao longo de seu próprio curso essa ideia passa por uma transformação profunda, pois a ideia em si é comprometida no processo” (2013, p. 105). Assim, surge a utilização de outras formas de atuações, pautadas por uma estratégia momentânea. Žižek justifica essa “violência comum” dos manifestantes pautando-se exatamente na ideia de que a “violência estrutural” (por parte do Estado) é permanente. “Muito se falou da violência por parte dos manifestantes. Mas o que é essa violência comparada àquela necessária para sustentar o sistema capitalista global funcionando normalmente?” (p. 105). Pra Žižek, as próprias possibilidades de expressão dessa violência dos manifestantes podem ser motivadas também por outro tipo de violência, a “simbólica”, onde se estabelece um padrão intersubjetivo nas relações humanas, “motivando” a exclusão do “diferente”. David Harvey vai afirmar que a “diferença” também pode resultar em intolerância e segregações, marginalidade e exclusão, quando não em fervorosos confrontos (2013, p. 30). Pensando nesse “impasse” institucional/não institucional causado sobretudo pelo capitalismo, surge a ideia da estabilidade negativa. A problemática de aceitação/conivência com o atual sistema de controle é permeada continuamente pelo modelo de violência estrutural. A condição de submissão do indivíduo em relação à participação institucional se expressa nesse atual modelo. Žižek diz que “a ideia liberal programática é que os problemas podem ser resolvidos gradualmente um a um, sendo que esse ‘problema’ é a premissa subjacente de que seja possível obter tudo isso dentro do capitalismo global em sua forma atual” (2013, p. 105). Acontece que dentro dessa concepção “liberal programática” esses problemas do

capitalismo são tidos como “distúrbios acidentais”, quando na verdade são “estruturalmente necessários”, o que justificaria as ações violentas por parte dos manifestantes. A ideia “liberal programática” causa uma estabilidade no sistema estrutural do estado. Entretanto essa “estabilidade” é pautada pelo capital, caracterizando-a como “negativa” não meramente por uma questão ideológica, mas pela condição de “refém” que o estado passa a assumir em detrimento do poder econômico. Assim sendo, a condição de estabilidade estrutural passa a ser cada vez mais “irreversível” na medida em que a aplicação desses “programas liberais” vão se perpetuando com o tempo. É nesse sentido que se torna necessário o afastamento do meio “estrutural/estatal” afim de que se tente mudar esse panorama hegemônico de maneira centrípeta. O programa liberal está intrinsicamente relacionado à concepção de “cidade”, ou de “cidade mercado”. David Harvey afirma que as “cidades globais do capitalismo são divididas socialmente entre as elites financeiras e as grandes porções de trabalhadores de baixa renda”, sendo que essas minorias acabam se fundindo com outras minorias, como “marginalizados e desempregados”. Sabe-se que as cidades sempre foram lugares de desenvolvimentos geográficos desiguais, traçando o cenário propício para o conflito social; e que nunca foram lugares “harmoniosos”, sem confusão, conflito ou violência (Harvey, 2013, p. 29). Cabe problematizar então se estamos dispostos a mudar esse panorama, ou se é justamente esse panorama que está disposto a mudar nossas problematizações.

4. Considerações (nem um pouco) finais Na crônica contemporânea entre a “caneta e a vassoura”, a “caneta” acabou tendo que se ceder, rompendo com sua própria lógica hegemônica, e só lhe restou legitimar a “vassoura”. A conquista dos garis do Rio de Janeiro, ao fazer uma greve durante o carnaval de 2014 (e na “cidade do carnaval”) desvinculada do próprio sindicato, contra a atuação e manipulação da mídia, em detrimento da repressão e subestimação do prefeito municipal, porém com o apoio popular, é a mais sublime forma da ação coletiva desvinculada do estado. A greve dos garis pode definitivamente ser tida como um evento, no sentido filosófico do termo. A Comuna de Paris, o Outubro de 1917 na Rússia, o verão de 1967 na China ou o Maio de 1968 na França são o que Alain Badiou e Slavoj Žižek consideram como eventos, rupturas históricas que surgem pontualmente e desconfiguram

a lógica do desenvolvimento histórico, abrindo um leque de possibilidades de rumos a serem tomados que eram impensáveis e inviáveis até o seu acontecimento (Badiou, 2012, p. 120). Nossa experiência histórica possui uma forma de narrativa, que liga os pontos e forma um encademaneto lógico até que uma reviravolta inesperada transforme as coordenadas e deixe em aberto a inserção dele na narrativa ou a transformação dessa narrativa em outra narrativa com outro enredo (Žižek, 2014). O evento é definido pelas suas consequências, portanto, e não há consequência mais relevante do que criar no mundo o que antes não existia (Badiou, 2012, p. 120). A dificuldade imposta para a crítica hoje é formular o que ainda não existe, pensar em formas de sociabilidade política para além das formas capitalistas – ou quaisquer outras da história que tenham de algum modo reproduzido uma desigualdade social. E esse processo radicalmente criativo (que não se reduz, porém, ao exercício intelectual, mas está articulado com as dinâmicas práticas dos movimentos políticos) se inicia hoje, não vai surgir magicamente após uma tomada de poder. Inclusive, resta aberto se haverá algo como uma “tomada de poder”, levando em conta o funcionamento do controle pelo governo em nossas sociedades. E, caso haja tal “tomada”, como ela lidará com os problemas que se apresentam como intrínsecos de qualquer organização institucional (destacadamente o Estado) que é o problema de sua própria manutenção. O trabalho que resta, portanto, é duplo para um problema igualmente duplo: como se organizar para fazer frente à dominação e ao controle exercido contemporaneamente e como lidar com as consequências dos nossos atos de forma que estes não se revelem repetições farsantes das tragédias revolucionárias passadas. Como desenvolver formas de organização social e política que ao mesmo tempo em que se apresentem como eficazes no cumprimento dos objetivos transformadores traçados consigam se perpetuar sem serem esmagadas pela “segurança” de um “projeto revolucionário”, como têm sidos todos os exemplos históricos. Em suma, é preciso voltar às raízes e, como fez Lênin, se perguntar novamente: o que fazer? E talvez as ruas já estejam nos dando algumas pistas para essas perguntas.

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