Apocalipse Zumbi: Monsanto, Frankenfoods e um Olhar da Cultura Pop Sobre as Angústias Alimentares Contemporâneas

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PPGCOM  ESPM  –  ESCOLA  SUPERIOR  DE  PROPAGANDA  E  MARKETING  –  SÃO  PAULO  –  15  E  16  OUTUBRO  DE  2012

Apocalipse Zumbi: Monsanto, Frankenfoods e um Olhar da Cultura Pop Sobre as Angústias Alimentares Contemporâneas1 Joana Pellerano2 PUC-SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo  

Resumo A relação cultural com os alimentos privilegia uma dimensão simbólica que pode gerar medos relativos à incorporação, que permite tanto a assimilação de pureza quanto a possibilidade de contaminação. Na tentativa de livrar-se dos caprichos da natureza e garantir abundância alimentar, o homem vê o conceito de alimento ampliar-se na esteira da industrialização, gerando um constante medo da incorporação negativa, reforçado pela insegurança causada por alimentos transgênicos e pela ameaça do mal da vaca louca. O objetivo deste artigo é analisar esse fenômeno em um filme e duas séries de TV: “The Simpsons”, “Zumbilândia” e “Dead Set”. Em cada um destes o roteiro inclui ataques zumbis causados pela ingestão de alimentos contaminados, mostrando como a comida pode causar males simbólicos ainda maiores que a morte.

Palavras-chave: alimentação, incorporação, transgênicos, zumbis

No dia 16 de março de 2012 a cidade de Salinas, no estado norte-americano da Califórnia, foi atacada por zumbis. Cerca de 20 pessoas vestidas e maquiadas como mortos-vivos protestaram em frente à sede da Seminis, Inc., produtora de sementes de hortaliças que pertence à Monsanto, uma das maiores multinacionais do setor de agricultura e biotecnologia. O grupo protestava contra supostos esforços da Monsanto em “assumir o controle total da oferta de sementes do mundo patenteando sementes geneticamente modificadas” (INDY BAY, 2012). O protesto fazia parte do movimento Ocuppy Monsanto, que contou com manifestações pacíficas em diversos estados norte-americanos nessa mesma data, sempre em frente a sedes da                                                                                                                         1

Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Estética, do 2º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 15 e 16 de outubro de 2012. 2 Jornalista, mestranda em Ciências Sociais na PUC – SP, coordenadora e docente da especialização em Gastronomia: História e Cultura do Centro Universitário Senac – São Paulo. E-mail: [email protected].

   

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multinacional. O caso de Salinas é representativo porque ali a opção dos manifestantes por apresentarem-se como zumbis deixou claro o medo latente em relação ao projeto Terminator, que estaria criando o que os contrários à Monsanto chamam de sementes-zumbis.

Imagem 1 - Os “zumbis” do movimento Ocuppy Monsanto. Fonte: INDY BAY, 2012.

Terminator, nome original do filme “O Exterminador do Futuro”, foi o apelido que ganhou a Tecnologia de Restrição no Uso do Gene (GURT, na sigla em inglês). Por meio de engenharia genética, a Monsanto estaria destivando genes específicos para que suas sementes se tornassem estéreis. Assim, a cada safra os agricultores precisariam comprar as sementes novamente para poder plantar, ficando dependentes da companhia. A Monsanto declara oficialmente que não desenvolve nem comercializa as sementes que os protestos chamam de “zumbis”. Mas, além de abertamente investir em engenharia genética para alterar características de seu produto, a companhia admite os benefícios das GURTs, o que é suficiente para assustar parcelas da população. O tema foi parar no site da empresa: É verdade que as GURTs oferecem certos benefícios. Essa tecnologia pode ser usada para limitar o uso ou propagação de um material genético específico na agricultura. [...] As GURTs também podem auxiliar no manejo de culturas geneticamente modificadas 2

   

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oferecendo um meio para garantir que o material genético biotecnológico somente esteja presente nas culturas pretendidas. (MONSANTO, 2012)

Do laboratório à mesa Com o intuito de livrar-se da ameaça constante da fome, o homem esforçou-se na tentativa de dominar a natureza, enganar o tempo e driblar a sazonalidade para ter sempre à mão alimento variado e abundante. Montanari (2008) lembra que, apesar de imaginarmos as sociedades antigas vivendo em perfeita simbiose com a natureza, a busca por subjugá-la é uma constante na história humana. “O Éden, o paraíso terrestre na narrativa da Bíblia, não conhece estações: uma eterna primavera permite aos homens ter alimentos sempre frescos, sempre prontos, sempre constantes (Ibidem, p. 36). Tal esforço por controlar a natureza pode, curiosamente, nos ter afastado dela. Pollan (2008) nos relembra que a industrialização criou novas opções e formas de comer na década de 1960, fazendo com que a “comida de verdade” desse seu lugar nas prateleiras dos supermercados para uma “moderna cornucópia de produtos extremamente processados com aspecto de comida” (Ibidem, p. 21). Hoje vastas fábricas entregam grandes quantidades de alimentos básicos como farinha, óleo, açúcar e vinagre, no passado fabricados com métodos artesanais. Outras fábricas produzem refeições congeladas e alimentos processados e embalados. Alguns ingredientes disponíveis já prontos, como chocolate para cozinhar e leite condensado ou em pó, não existiam no passado. Outros, como a mostarda, manteiga e queijo, já foram preparados por camponeses ou artesãos, enquanto outros ainda eram produtos da cozinha familiar: geleias, conservas, peixes e carnes salgados e defumados, e pratos preparados agora disponíveis em latas ou congelados (FLANDRIN e MONTANARI, 1999, pg. 436) .3

Nina Horta confirma que comer é perigoso, engorda e mata. Isso porque já não somos tão íntimos da comida, com origem e composição desconhecidas. “Um chicken nugget não tem na memória o dia em que foi galinha botadeira, se é que o foi. Processado, micropulverizado, maquiado, não tem a menor afinidade com seu consumidor, e vice-versa” (1995, p. 30). Pollan                                                                                                                         3 “Today vast processing plants turn out huge quantities of such basic staples as flour, oil, sugar, and vinager, once fabricated by artisanal methods. Other plants produce frozen TV dinners and packaged processed foods. Some readily avaiable ingredientes, such as baker’s chocolate and condensed or powdered milk, did not exist in the past. Others, such as mustard, butter, and cheese, were once prepared by peasents or artisans, while still others were products of the family kitchen: jellies, preserves, salted and smoked fish and meat, and prepared dishes now avaiable in canned or frozen form.” (FLANDRIN e MONTANARI, 1999, pg. 436) 3

   

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lembra que, “enquanto antigamente só se podia comer comida, hoje há milhares de outras substâncias comestíveis com aparência de comida no supermercado” (2008, p. 9). A busca por produzir mais e melhor é também responsável pela popularização dos transgênicos, organismos geneticamente modificados cuja manipulação em laboratórios visa transformá-los em versões mais resistentes e produtivas. Ainda que a manipulação da natureza seja um dos princípios da agricultura, os transgênicos assustam porque seriam uma transgressão artificial da ordem natural das coisas. Por não ter sido precedida por testes práticos sobre uma potencial nocividade à saúde humana e ao meio ambiente, essa aplicação da engenharia genética atrai críticos que afirmam que seu benefício consiste apenas em enriquecer as grandes empresas do agrobusiness (CARTUJO, 2008). A aversão à comida desenvolvida em laboratório rendeu-lhe o apelido de Frankenfoods, uma alusão ao monstro criado artificialmente de partes de cadáveres pelo doutor Frankenstein na obra de Mary Shelley (MENASCHE, 2003). O medo revela-se no depoimento de um agricultor do Rio Grande do Sul, entrevistado por Menasche em sua pesquisa sobre o tema: “Eu não plantei. A gente escuta que vai nascer criança sem cérebro” (Ibidem). Segundo Menasche, a manipulação humana do que comemos é motivo de protestos desde a década de 1970, com a preocupação a respeito da quantidade de hormônios que vinham sendo injetados no rebanho bovino. Mas a primeira crise da vaca louca representa um marco na preocupação com a segurança alimentar. Vaca louca é o apelido dado à Encefalopatía Espongiforme Bovina, doença supostamente transmitida pela ração do rebanho confinado, que costuma conter farinhas elaboradas com carne e ossos de animais, inclusive outras vacas. Em meados da década de 1980 a enfermidade infectou pequenas partes do rebanho do Reino Unido e gerou muita insegurança por parte do consumidor no resto do mundo. O recorde mundial registrado foi em 1992, com 37.311 casos. Apesar da diminuição do número de casos, eles nunca desapareceram: em 2011 foram 29 e, em abril de 2012, o Departamento Norte-americano de Agricultura identificou um animal contaminado na Califórnia em um exame de rotina (CARTUJO, 2008 e CNN, 2012). Acredita-se que o consumo da carne ou outros derivados contaminados por parte dos sereshumanos cause uma enfermidade cerebral mortal chamada Creutzfeldt-Jakob, cujos sintomas são alterações comportamentais e psiquiátricas, além do comprometimento das capacidades cognitivas e

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de locomoção. Essas são, justamente, algumas das características mais marcantes apresentadas pelos zumbis em filmes e séries de TV. Zumbis famintos Coincidência ou não, não demorou para que a preocupação com a origem e a qualidade do que comemos ultrapassasse as fronteiras da academia, ocupasse os noticiários e atingisse a indústria do entretenimento: as Frankenfoods já andam causando ataques zumbis no mundo da ficção. Três produções - duas norte-americanas e uma britânica - destacam-se no fim da última década, como veremos a seguir. O primeiro exemplo é “Dead Set”, série britânica em cinco episódios exibida originalmente em 2008 pelo canal E4.

Figura 2 - Reprodução de cena da série de TV Dead Set.

A história fictícia se passa no set real do Big Brother, reality show que teve sua própria versão no Reino Unido entre 2000 e 2010. No meio da eliminação de uma participante, um ataque zumbi invade a plateia e ameaça todos os que estão no estúdio, inclusive os confinados dentro da casa monitorada por câmeras de TV.

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Os participantes do programa permanecem alheios ao ataque até que Kelly, uma das assistentes de produção, aparece em sua “sala de estar” coberta de sangue e com uma tesoura em punho, fugindo de um morto-vivo. No segundo episódio, ainda incrédulos, os confinados observam as criaturas do terraço do estúdio, e debatem possíveis motivos para seu aparecimento (DEAD SET, 2008): Veronica: Quem são eles? Kelly: O nome daquela era Claire. Veronica: E eles estão mortos? Kelly: É. Marky: Tem que ser alguma bobagem terrorista. Lançaram algum gás que deixa as pessoas lunáticas! Space: Gás que deixa as pessoas lunáticas? Marky: Você tem uma explicação melhor? Joplin: O governo ou exército deve ter testado algo que não deveriam! Veronica: O quê, como alimentos geneticamente modificados ou algo assim? Joplin: Talvez. Ou WiFi... Só Deus sabe o que isso faz com as suas moléculas!4 Por desconhecer o efeito dos transgênicos no corpo humano, especula-se que esses alimentos (ou a internet sem fio, outra tecnologia recente e pouco conhecida) possa ser a responsável por transformar a população da Grã-Bretanha em seres cujo único instinto é alimentarse de outros humanos. Os zumbis de “Dead Set” têm suas capacidades cognitivas destruídas: não sabem girar maçanetas nem pular obstáculos; em uma cena, uma morta-viva cai em uma piscina rasa e não sabe como levantar.                                                                                                                         4 “Veronica: Who are they? Kelly: Her name was Claire. Veronica: And they’re dead? Kelly: Yeah. Marky: It's gotta be some terrorist bollocks... They've released some loony gas! Space: Loony gas? Marky: You got a better explanation? Joplin: The government or army must have tested something they shouldn't! Veronica: What, like GM foods or somink? Joplin: Maybe. Or WiFi... God knows what that does to your molecules!” (DEAD SET, 2008) 6

   

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Zumbis mais espertos aparecem na popular série de animação “The Simpsons”. Foi na micro-história “Don't Have a Cow, Mankind”, parte do vigésimo episódio especial de Dia das Bruxas da série, “Treehouse of Horror XX”, exibido em 18 de outubro de 2009. Ainda que essa não seja a primeira vez que zumbis aparecem na cidade em que se passa a série, Springfield, o motivo nunca tinha sido relacionado à alimentação antes5. Tudo começa com um novo sanduíche da rede de lanchonetes Krusty Burger.

Figura 3 - Reprodução de cena da série The Simpsons.

Ao vivo em um programa de TV, o proprietário da franquia, Krusty – um palhaço como Ronald McDonald’s, mascote da maior rede de fast food do mundo - apresenta seu novo sanduíche, preparado de forma a evocar o mal da vaca louca (THE SIMPSONS, 2009): Krusty: Começamos com carne de primeira, que usamos para alimentar outras vacas, depois matamos essas vacas e servimos os resultados profanos em um pão de sete grãos. Hambúrguer ao Quadrado! 6 Do outro lado da telinha, a reação da família Simpson (THE SIMPSONS, 2009): Lisa: Vacas comendo vacas? Isso é uma abominação!                                                                                                                         5 Em “Dial 'Z' For Zombies” (1992), os mortos acordaram por magia negra, enquanto em “The Fright to Creep and Scare Harms” (2002), conhecidos contraventores, como William "Billy the Kid" Bonney, escapam de suas covas aproveitando que a cidade de Springfield entrou em uma campanha antiarmamentista para cometer novos crimes. 6 “Krusty: We start with Grade A beef, feed that to other cows, then kill them and serve the unholy results on a seven-grain bun. Burger Squared!” (THE SIMPSONS, 2009). 7

   

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Marge: Lisa, você é vegetariana, mas essas vacas fizeram uma escolha diferente. 7 O repórter prova o sanduíche, transforma-se em zumbi e ataca Krusty. Na tela, um letreiro informa que se passaram 28 dias – uma brincadeira com o filme do gênero “Extermínio”, que em inglês chama-se “28 Days Later” – e a cidade está infestada. Cansado de se alimentar apenas de frutas, Bart Simpson prova um Burger Squared e descobre-se imune. Ao chegar a uma zona segura, mantida pelo exército, a família Simpson precisa proteger o menino, já que os demais sobreviventes querem matá-lo e comer sua carne para salvar-se da epidemia. Para evitar o canibalismo e ainda assim compartilhar da imunidade de Bart, os sobreviventes acabam bebendo a água em que o menino tomou banho. O terceiro exemplo é o filme “Zumbilândia”, também de 2009. O enredo dessa comédia evoca o episódios dos Simpsons: retrata uma população de zumbis infectada por um hambúrguer contaminado pelo mal da vaca louca. O personagem principal, o estudante universitário Columbus, resume tudo nessa frase (ZUMBILÂNDIA, 2009): Columbus: A praga do século XXI, lembram, a doença da vaca louca? Bom, vaca louca virou pessoa louca que virou zumbi louco. É um vírus que age rápido e te deixa com o cérebro inchado e uma febre de fúria, te deixa violento, com ódio e um caso muito ruim de larica8. “Zumbilândia” traz mortos-vivos mas ágeis e resilientes que os humanos, mas Columbus dedica-se a ditar regras de como fugir deles, sendo sempre bem sucedido.

                                                                                                                        7 “Lisa: Cows eating cows?! That's an abomination! Marge: Now, Lisa, you're a vegetarian, but these cows have made a different choice” (THE SIMPSONS, 2009). 8

“Columbus: The plague of the 21st Century, remember mad cow disease? Well mad cow became mad person became mad zombie. It's a fast acting virus that leaves you with a swollen brain, a raging fever, makes you hateful and violent and leaves you with a really bad case of the munchies.” (ZUMBILÂNDIA, 2009) 8

   

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Figura 4 - Reprodução de cena do filme “Zumbilândia”.

Angústias contemporâneas O que esses três exemplos mostram é como a comida pode causar cenários desoladores de sociedades dizimadas, à beira do fim. De acordo com estudiosos do gênero, conectar o alimento ao apocalipse zumbi realça o papel que este representa nas nossas angústias contemporâneas. Dendle (2007) defende que a popularidade da cultura zumbi funciona como um indicador dos níveis de ansiedade coletiva nos Estados Unidos desde “White Zombie”, filme de 1932 com Bela Lugosi. Quando o medo é mais palpável - como durante a Segunda Guerra Mundial ou com a tensão racial da década de 1960 - filmes, livros, quadrinhos e, mais recentemente, videogames tornam-se povoados de mortos-vivos. Bishop (2009) compartilha tal percepção, ressaltando o renascimento do gênero após o tentado de 11 de setembro de 2001, quando as torres do World Trade Center foram destruídas em um atentado terrorista, fazendo milhares de vítimas. O autor acredita que as cenas de metrópoles desoladas e desertas, pilhas de cadáveres e gangues passando por cima das leis e da moral para sobreviver são tão assustadoras – e por isso interessantes – por sua similaridade com a história recente. 9

   

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Talvez por refletir as angústias contemporâneas a temática zumbi não permaneça estática, já que as razões para a ansiedade das sociedades mudam com o tempo. Os zumbis já foram vistos como metáfora para a escravidão e representação do medo do sobrenatural, e, atualmente, costumam ser entendidos como uma crítica ao consumismo (sendo “Madrugada dos Mortos”9 o exemplo mais citado) ou válvula de escape para o medo dos avanços da biotecnologia (foco de filmes como o filme “Eu Sou a Lenda”10 e da série de TV “The Walking Dead”11). A alimentação é realmente o fator preocupante da vez? Quando a desconfiança em relação à origem do que comemos e aos efeitos que o alimento causará em nossos corpos chega à indústria do entretenimento é possível entender o alcance desse medo. Newbury (2012) acredita que os filmes de zumbi salientam os aspectos negativos do jeito moderno de comer. Em análise do filme “Extermínio”, de 2002, o autor nota que a fonte de alimentação dos sobreviventes é basicamente comida industrializada – barras de chocolate, salgadinhos e refrigerantes –, o que revela uma dificuldade em se descobrir fontes alternativas de alimentos fora do sistema que nos fornece nutrição processada. Para ele, ao associar o apocalipse zumbi à alimentação industrializada, esses filmes fazem o mesmo papel que livros de ativistas como Michael Pollan e Marion Nestle12, que defendem uma alimentação mais saudável e independente das grandes indústrias do setor. A angústia alimentar inerente à contemporaneidade deve-se a uma relação cultural com os alimentos que privilegia uma dimensão simbólica que permite comer o alimento e o simbólico (POULAIN, 2004). Por esse motivo é possível perceber um medo contemporâneo ligado à incorporação, "(...) o movimento pelo qual fazemos o alimento ultrapassar a fronteira entre o mundo e nosso corpo, o de fora e o de dentro" (Fischler, 1995, p. 65). O que o autor chama de                                                                                                                         9 “Madrugada dos Mortos” é um clássico do gênero criado pelo diretor George Romero em 1978. A história retrata um grupo de sobreviventes de um ataque zumbi refugiando-se dentro de um shopping center. Apesar da situação assustadora, o grupo consegue se divertir, entrando nas lojas para provar roupas, usar artigos esportivos e até mesmo fazer jantares sofisticados. O filme ganhou um remake em 2004 com o diretor Zack Snyder. 10 Em “Eu Sou a Lenda”, de 2007, um vírus desenvolvido em laboratório com o objetivo de curar o câncer é o responsável pelo apocalipse zumbi. 11 Inspirada na grafic novel homônima publicada desde 2003 pela Image Comics, “The Walking Dead” é uma série exibida o canal de TV norte-americano AMC desde 2011. Aqui o vírus que reanima os mortos seria transmitido pelo ar, ou seja, ainda que não tenham contato com outros zumbis, os sobreviventes sabem que se transformarão neles se vierem a falecer. 12 Michael Pollan é jornalista e autor de livros como “O Dilema do Onívoro” e “Em defesa da comida: Um manifesto”. Já Marion Nestle é nutricionista e autora de livros como “Food Politcs” e “Safe Food: The Politics of Food Safety”. 10

   

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contaminação analógica permite que certas características do alimento sejam transferidas para o comedor física e simbolicamente. Para Dória (2009), a fusão entre o consumidor e o produto consumido é um ato aberto tanto à assimilação de pureza quanto à possibilidade de contaminação, o que exige a classificação dos alimentos segundo o impacto que possam ter sobre o corpo de quem o come. Justamente aí instala-se o que Fischler (Ibidem) chama de paradoxo do onívoro, a dualidade entre a liberdade e a necessidade, ou neofobia e neofilia. Por um lado, por ser dependente da variedade, o onívoro se vê impelido à diversificação, à inovação, à exploração, à mudança, que podem ser vitais para ele. Mas, por outro lado e simultaneamente, é impelido à prudência, à desconfiança, ao ‘conservadorismo’ alimentar: todo alimento novo, desconhecido, é, de fato, um perigo potencial (Ibidem: 63).

 

Sentir medo e fascínio pela novidade à mesa seria então inerente ao ser humano. Essa relação conturbada com a variedade alimentar nos coloca à mercê de alimentos que causariam efeitos desconhecidos a longo prazo, como os transgênicos. O medo que esses alimentos geneticamente modificados geram no consumidor pode ser tão facilmente percebido que é possível encontrar exemplos dentro da própria Monsanto. Em 1999, a empresa Sutcliffe Catering, responsável pelo refeitório de uma das fábricas da Monsanto na Inglaterra, optou por retirar soja e milho geneticamente modificados de seu cardápio para que o consumidor “sinta-se confiante em relação à comida servida” (MCCARTHY, 1999). A Monsanto, curiosamente, apoiou a decisão. Ao lidar com tantas novidades alimentares, corremos o risco de ingerir alimentos contaminados que nos causam males físicos irreversíveis. Mas pior ainda: a incorporação de comida feita em laboratório, Frankenfoods com potencial de causar doenças ainda desconhecidas, poderiam gerar males simbólicos ainda maiores que a morte. Os filmes de zumbi nos lembram dessa realidade, funcionando como alerta e válvula de escape de uma ansiedade que não tem data para terminar.

Referências  

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BISHOP, Kyle. Dead Man Still Walking: Explaining the Zombie Renaissance. Journal of Popular Film and Television, Marquette, vol. 31, n. 1, 2009, p.16-25. CARTUJO, Jósean Larrión. Estilos de gestión de incertidumbre: Los productos transgénicos y la polémica sobre la viabilidad del principio de equivalencia sustancial. Athenea Digital. Cerdanyola del Vallès, n. 14, p. 105-122, outono 2008. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 20012. CNN. Mad cow case confirmed in California. Disponível . Acesso em: 15 jul. 2012.

em:

DEAD SET. Direção de Yann Demange. Reino Unido: E4, 2008. 141 min. DENDLE, Peter. The zombie as barometer for cultural anxiety. In SCOTT, Niall (ed). Monsters and the monstrous: myths and metaphors of enduring evil. Nova York: Rodopi Amsterda, 2007, p. 45-57. Don’t have a cow, mankind! 7 min. In THE SIMPSONS, Treehouse of Horror XX. Direção: Mike B. Anderson e Matthew Schofield. Estados Unidos: Gracie Films e 20th Century Fox Television, 2009. 21 min. DÓRIA, Carlos Alberto. A culinária materialista. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009. INDY BAY. GMO Apocalypse Zombies "Occupy Monsanto" at Seminis Office. Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2012.

FISCHLER, Claude. El (h)ominívoro: El gusto, la cocina y el cuerpo. Barcelona: Anagrama, 1995. FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo (eds). Food: A Culinary History. Nova York: Columbia University Press, 1999. HORTA, Nina. Não é sopa: crônicas e receitas de comida. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. MCCARTY, Michael. GM food banned in Monsanto canteen. The Independent. Londres: 1999. Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2012. MENASCHE, Renata. Frankenfoods e representações sociais: Percepções contemporâneas sobre biotecnologia, natureza e alimentação. Theomai, Quilmes, n. 99, 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2012.

MONSANTO. A Monsanto Vai Desenvolver Ou Comercializar Sementes "Terminator"?. Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2012. MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008. NEWBURY, Michael. Fast Zombie/Slow Zombie: Food Writing, Horror Movies, and Agribusiness Apocalypse. American Literary History, Nova York, vol. 24, n. 1, 2012, p. 87-114.

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POLLAN, Michel. Em defesa da comida. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008. POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da alimentação: Os comedores e o espaço social alimentar. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004. ZUMBILÂNDIA (Zombieland). Direção de Ruben Fleischer. Estados Unidos: Columbia Pictures, Relativity Media e Pariah, 2009. 88 min.

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