Apontamentos sobre o conceito de esfera pública política

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Apontamentos sobre o conceito de esfera pública política1

Wilson Gomes

Peço licença ao auditório para começar a minha discussão sobre o conceito de esfera pública política de um modo não usual, pois em vez de citar Jürgen Habermas e o seu famoso livro de 1962 gostaria de recitar um soneto do século XVII de Gregório de Mattos e Guerra sobre a cidade da Bahia. “A cada canto um grande conselheiro, / Que nos quer governar cabana e vinha; / Não sabem governar sua cozinha,/ E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem freqüente olheiro, / Que a vida do vizinho e da vizinha / Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha, / Para o levar à praça e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, / Trazidos sob os pés os homens nobres, / Posta nas palmas toda a picardia, Estupendas usuras nos mercados, / Todos os que não furtam muito pobres / E eis aqui a cidade da Bahia2”

Empregando a retórica de quem apresenta receitas de iguarias, solicito ao auditório que reserve, para usar depois, dois ingredientes desta iguaria. Primeiro a saborosa contraposição entre cozinha, cabana e vinha de um lado, e praça e terreiro, do outro, que são a versão colonial da clássica contraposição grega entre oikos e polis, os negócios particulares e privados e que é de interesse público. Depois, a informação sobre a praça e o terreiro, que poderiam ser qualquer praça e qualquer terreiro, mas se referem literalmente aos dois mais importantes espaços de sociabilidade da cidade colonial de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Que, aliás, se esparramavam e ainda se esparramam Ladeira da Montanha abaixo, através dos meretrícios, em direção aos bares e cabarés do Porto.

1

Publicação original: GOMES, W. S. Apontamentos sobre o conceito de esfera pública política. In: Maia, R. C. M.; Castro, M.C.P. (Org.). Mídia, esfera pública e identidades coletivas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, p. 49-62. 2 Soneto “À Cidade da Bahia”. O negrito é meu.

2 Acrescentemos ao tempero barroco uma pitadinha de Machado de Assis, descrevendo os costumes da nova capital, um par de séculos depois. É só uma frase, retirada do Quincas Borba, que diz o seguinte: “Siqueira era indiscreto, indiscreto em farejar e indagar negócios alheios; sê-lo-ia ao ponto de publicálos?” Reservem o publicar de Machado, aqui entendido num sentido bem diferente da acepção editorial ou publicitária contemporânea, mas reservem igualmente a contraposição entre os negócios alheios e privados e a sua transformação em negócios públicos, através, justamente, da publicação. Há obviamente uma equivalência entre o “levar à praça e ao terreiro” de Gregório de Mattos e Guerra e o “publicar” de Machado de Assis. É evidente que nos dois casos trata-se da publicação de negócios privados, trata-se daquilo que me atrevo a simplificar grosseiramente chamando de fofoca. Por isso mesmo, o ato é avaliado negativamente, como defeito de caráter de um personagem ou como a condenação dos costumes de uma cidade. Isso não quer dizer, entretanto, que não se possa inverter o trajeto e imaginar que também os negócios públicos controlados de maneira reservada por quem tem mando no Estado possam ser levados à praça e ao terreiro, possam ser publicados. No primeiro caso, temos o disse-me-disse, a indiscrição, o mexerico, a bisbilhotice, o boato, o fuxico, coisas que a arte brasileira de dar nomes fixou nessas expressões deliciosas. No segundo caso, temos uma atividade que ficou por muito tempo sem um designador preciso, mas que se fixa em expressões como “discutir política”, “falar de política e negócios”. A rigor, todavia, o que distingue os dois casos é apenas a matéria de que se fala e os sujeitos que falam dessas matérias. Falar da vida alheia é considerado coisa ignóbil e atribuída a defeitos de caráter, mesmo sendo arte praticada extensivamente. Em suma, a maledicência é coisa feia mas como “o errado é da conta de todo mundo”, uma deontologia ambígua permite que dos outros se fale e fale-se muito. Por outro lado, falar em público de arte, literatura, governo e partidos, das suas decisões e do funcionamento do Estado é considerado nobilíssimo e vem atribuído à elite cultural, econômica e política.

3 Mesmo que a fala pública constantemente se mova da arte à vida privada dos artistas e do governo à alcova de quem governa. A publicação das coisas do governo e da política na praça e no terreiro, nos cafés e salões da sociedade, mas também nos bordéis das zonas do Porto, nas fontes e chafarizes, nos clubes e nos saraus, eis o que constitui aquilo que hoje se diz através da expressão, de boa cepa, “esfera pública política”. A praça e o terreiro podem, então, funcionar como metonímia para o locus onde se publicam, onde se tornam públicos os negócios do Estado, são a realização da publicidade política. E aqui a Prússia encontra o Brasil colonial pois se trata exatamente daquilo que Kant chamou de Öffentlichkeit, e que é precisamente aquilo cuja mudança estrutural chamou a atenção de Habermas 40 anos atrás (Habermas 1962). Eis que divisamos, então, a primeira acepção incluída na noção que estamos analisando e que consiste na idéia de publicação, de exposição nos espaços de sociabilidade, de conversa em público, de abertura. A expressão Öffentlichkeit é desses substantivos derivados de adjetivos que se apresentam como representando a propriedade comum a todos os entes que um específico adjetivo distingue. Em português temos uma porção dessas expressões, como a «publicidade» mesma, que pode ser entendida, dentre outros modos, como a propriedade comum entre todas as coisas que são públicas. No caso, a «Öffentlichkeit» vem do adjetivo öffentlich, que se traduz como “público” e mantêm mais ou menos as mesmas acepções do termo em português: o que é “comum a todos”, o “estatal” e o “notório”. Nesta perspectiva, a Öffentlichkeit é basicamente a publicidade, entendida no sentido indicado pouco antes. Mas «öffentlich», por sua vez, deriva obviamente de outro adjetivo mais elementar que é offen (em inglês open), que significa “aberto”, enquanto o adjetivo “público” se deriva do substantivo “povo”. Assim, há aqui uma espécie de separação entre os dois termos que nos autoriza a imaginar que o território da Öffentlichkeit seja mais metafórico do que a tradução por “publicidade” nos permite distinguir. De fato, ao repousar, por fim, na idéia de populus, a noção de publicidade revela as suas raízes republicanas, enquanto ao remeter, por último, à idéia de Öffnen ou Öffnung, abertura, a Öffentlichkeit destaca o campo

4 metafórico daquilo que é descoberto, disponível, acessível. A Öffentlichkeit é, então, literalmente a publicidade, mas de maneira figurada; é a propriedade comum a todas as coisas que são abertas, descobertas, disponíveis, acessíveis. Nesta perspectiva, a Öffentlichkeit parece basicamente representar uma determinada condição da vida social. Mais precisamente, ela parece representar aquela circunstância da vida social em que coisas, pessoas, idéias, instituições, normas e informações são tratadas abertamente. A metáfora da abertura evidentemente instaura um campo semântico que convoca, como contra-par, a idéia de fechamento, de clausura, de proteção, de modo que teríamos de um lado a abertura e a disponibilidade e do outro a reserva, a discrição, o recato, a oclusão, o segredo. Assim, a condição da Öffentlichkeit está em contraste com uma outra, a saber, aquela em que coisas, pessoas, idéias, instituições, normas e informações são tratadas reservadamente, veladamente ou secretamente. Aparentemente, cada modelo de vida social tem a sua específica Öffentlichkeit, que se configura, entre outras coisas, a partir das matérias que lhe são próprias e dos agentes sociais autorizados a constituí-la. Habermas mesmo fala de uma Öffentlichkeit grega e de uma Öffentlichkeit medieval antes de se ocupar da forma burguesa que está no centro da sua atenção. Além disso, fica igualmente claro que as matérias da Öffentlichkeit são diferenciadas e que não são apenas os temas relativos aos negócios de Estado que podem ser tratados abertamente.

Mesmo na formação da publicidade burguesa é claro para

Habermas que antes houve uma Öffentlichkeit cultural e só depois de ser assim experimentada e formatada se constituiu uma fala pública sobre os assuntos políticos. A Öffentlichkeit política burguesa na verdade não passa disso, isto é, de uma fala pública sobre os negócios políticos. Se Gregório de Mattos e Guerra reclamava dos desavergonhados que se metiam na vida dos outros levando os negócios alheios para a praça e o terreiro, isso é, de certo modo, paralelo ao que fazem os burgueses que metem o bedelho nos negócios em princípio reservados da condução do Estado e os levam para os salões e cafés. Trata-se

5 sempre do mesmo velho e bom enxerimento, pelo menos do ponto de vista dos aristocratas aos quais de jeito algum agrada o fato de que a patuléia e uns comerciantezinhos sem pedigree se metam a fuçar nos negócios políticos. A mais primitiva publicidade política burguesa se realiza, portanto, através do comentário público, da conversa nos espaços de sociabilidade, da fala coletiva sobre as decisões da esfera reservada da política e sobre o funcionamento do Estado. Pelo discurso dos Iluministas este “meter-se” nos negócios políticos ganha fumos de nobre função política. Trata-se, então, do uso público da razão, do tirocínio argumentativo público, do público debate dos homens livres e capazes de argumentar, da conversão do arbítrio em racionalidade e coisas que tais. Immanuel Kant, Hannah Arendt e Jürgen Habermas (Benhabib 1992) colocam-se numa linhagem de pensamento político dedicado à conversão em linguagem normativa de um domínio da vida social onde, no seu modo de dizer, pessoas privadas reúnem-se em público para discutir sobre as leis gerais que governam a vida civil, num debate orientado por regras que obrigam todos a procedimentos de racionalidade argumentativa, de suspensão das diferenças pré-argumentativas, de abertura e inclusão, além, naturalmente, de submeter todos ao princípio do melhor argumento como base de legitimação da decisão. O livro de Habermas sobre a mudança de estrutura da Öffentlichkeit, do início dos anos 60, é uma obra relativamente menor no percurso do filósofo, que ainda não tinha chegado à grande formulação da Teoria do Agir Comunicativo. O tema, não obstante a qualidade da sua formulação, não chegou a provocar maiores efeitos no ambiente filosófico de língua alemã de então, pois nem a idéia de Öffentlichkeit era nova nem a abordagem habermasiana pretendia oferecer alguma dimensão nova importante. Ao contrário, a novidade na tese de Habermas não era a idéia de Öffentlichkeit mas a idéia de que ela estava mudando estruturalmente nos últimos tempos, principalmente em função da comunicação e da cultura de massa. Esta última dimensão, a crítica da comunicação e cultura de massa como fatores responsáveis pela perda de autenticidade da esfera pública, foi recebida com mais interesse nos ambientes intelectuais europeus da sociologia e da comunicação, sendo a discussão francesa mais recente aquela mais

6 conhecida entre nós3. Na Alemanha mesma o tema não parece ter prosperado de maneira decisiva e mesmo na Europa continental nos anos oitenta o debate parecia ter-se esgotado. Até que em 1989 veio a tradução em língua inglesa do livro dos anos 1960 e o debate reacendeu completamente (Calhoun 1992), tornando-se então uma temática anglo-saxônica que surpreendeu até mesmo o próprio Habermas (1990: 11). Difícil explicar a razão de tanta repercussão. Um fator importante é certamente, a escolha terminológica para traduzir Öffentlichkeit, que à diferença da publicità da versão italiana e do espace public da versão francesa, preferiu a expressão public sphere, esfera pública, que por sinal foi a mesma escolha do tradutor brasileiro. Na verdade, a expressão “esfera pública” acrescenta conteúdos ou propriedades semânticas na discussão em língua inglesa, notadamente a metáfora espacial, que são ausentes da idéia de Öffentlichkeit. Com o debate anglófono, a noção de esfera pública ganha nos últimos anos uma centralidade nas ciências humanas que supera em muito, em volume e intensidade, toda a discussão que gerou nos primeiros trinta anos. Uma simples consulta a qualquer base de dados do verbete “public sphere” nos dará mais de cinco centenas de títulos publicados nos últimos cinco anos. Sem falar no seu desdobramento mais recente no debate em língua inglesa, quando a idéia de esfera pública deságua na noção de democracia deliberativa (Benhabib 1996; Dryzek 1990 e 2000; Bohman 1996; Bohman e Rehg 1997; Elster 1998; Gutmann e Thompson 1996; Fishkin 1991; Nino 1996; MacEdo 1999), outro tema da moda no debate teórico contemporâneo sobre política. Com relação ao campo da comunicação política o debate repercutiu em cheio no conjunto dos seus temas. É claro que a noção chega ao campo da comunicação pela mão do próprio Habermas, como disse há pouco. Mas a repercussão é tão grande que a esfera pública tornou-se uma espécie de campo magnético que atrai para o seu centro os novos e os velhos temas das interfaces entre comunicação e política e entre comunicação e democracia. Do 3

São bem conhecidos do público brasileiro dois dossiês franceses dos anos 90. Primeiro, o dossiê do volume 4 da revista Hermes, de 1991, intitulado Le Nouvel Espace Public, com artigos importantes de Jean-Marc Ferry (1991) e Dominique Wolton (1991), dentre outros. Depois, o vol. 18 da revista Quaderni, em 1992, onde encontramos, entre outras coisas, a primeira tradução do famoso novo prefácio de Habermas (1992) para a nova edição de 1990 de Strukturwandel der Öffentlichkeit.

7 velho tema da opinião pública (Savigny 2002; Ku 1998 e 2000; Carpignano 1999) à propaganda, do jornalismo (Haas e Steiner 2001; Allan 2003) à internet (Papacharissi 2002; Savigny 2002; Tsagarousianou 1998; Gimmler 2001; Dean 2003), aparentemente de tudo se pode falar empregando como chave a noção de esfera pública. A pesquisa sobre a internet, por exemplo, levou essa decisão ao paroxismo, de forma que nos últimos cinco anos não há título que fale das possibilidades políticas e democráticas da internet que não se refira a ou se apóie na noção de esfera pública. Não há dúvida quanto ao fato de o termo “esfera pública” ser bem apropriado para traduzir a velha Öffentlichkeit iluminista e burguesa. Desde que ela venha a ser entendida como a esfera ou o âmbito ou o domínio daquilo que é público. Desconfio, entretanto, que a ela se tenha acrescentado uma dimensão substantiva que desloca numa direção precisa – e nem sempre adequada - o sentido do termo. Ainda é melhor falar de esfera pública do que de espaço público, que é a expressão concorrente entre nós e a preferida dos franceses, que é ainda mais substantiva, mas a esfera pública desliza da clássica (e, hoje em dia, ambígua) “publicidade” na direção de uma materialidade determinada. Assim, a Öffentlichkeit é a propriedade comum à aquilo que é disponível, acessível, sem reservas, é a condição das coisas e fatos naquilo que neles é aberto, visível, exposto. A esfera pública, entretanto, antes que o domínio a que é pertinente tudo aquilo que é público, acaba sendo entendida como a arena pública, o locus onde se processa a conversa aberta sobre os temas de interesse comum, o espaço público. Em outros termos, a velha Öffentlichkeit é a condição a que se submetem as coisas tratadas na praça e no terreiro, a propriedade de abertura, de publicidade que caracteriza tais coisas nesta circunstância, enquanto a esfera pública tende a ser compreendida como a própria praça e o próprio terreiro onde as coisas são tratadas abertamente. Feito este deslocamento, para se começar a fala de múltiplas esferas públicas foi um breve passo (Fraser 1992). Substantivada como arena da conversa aberta sobre as coisas de interesses comum, a esfera pública precisou ser multiplicada de acordo com as classes e os gêneros dos interlocutores que a ocuparam. De tal modo que na literatura mais politicamente correta dos

8 americanos temos esfera pública de todo o tipo, a começar da contraposição entre esfera pública dominante e esfera pública proletária, encerrando com a idéia de esfera pública feminista/feminina (Meeks 2001; Rabinovitch 2001; Scott 2000; Arnot et al. 2000; Rendal 1999). Uma versão mais distante desta espacialização anglófona da Öffentlichkeit poderia melhor assegurar a esfera pública como a esfera do debate ou do conflito argumentativo público. Esta acepção tem a vantagem de distinguir a discussão pública do próprio público que discute, distinção que a noção de espaço público não é capaz de oferecer, e para isso centra o foco no domínio deliberativo da vida social. Nesta acepção, a esfera pública não é um terreiro ou uma praça onde se conversa sobre os negócios do Estado e do interesse civil, mas é a própria conversa ou debate que aí se processam. De alguma maneira esta concepção autoriza que se pense que onde há conversa, debate, circulação de idéias e informações aí há esfera (de argumentação) pública. Como a internet, por exemplo, é basicamente uma rede de discussões e circulação de informações e um repertório de idéias, não poderia deixar de ser uma esfera pública. Hoje a expressão esfera pública inclui um conjunto tão ampliado de acepções que convém empregá-la sempre com muita prudência. Numa resenha rápida e despretensiosa, encontro pelo menos cinco sentidos para o termo: 1) esfera pública como o domínio daquilo que é público, isto é, daquilo sobre a qual se pode falar sem reservas e em circunstâncias de visibilidade social, que acredito ser o sentido mais original da expressão; 2) esfera pública como a arena pública, isto é, como o locus da discussão sobre temas de interesse comum conduzida pelos agentes sociais; 3) esfera pública como espaço público, isto é, como o locus onde temas, idéias, informações e pessoas se apresentam ao conhecimento geral, sem que necessariamente sejam discutidas; 4) esfera pública como domínio discursivo aberto, isto é, como conversação civil; 5) esfera pública como interação social, como sociabilidade. Pode-se sempre recorrer a uma alternativa ecumênica, assumindo todos esses sentidos como acepções que podem ser simplesmente justapostas. Não haveria, a meu ver, qualquer vantagem neste procedimento, gerando-se mais

9 confusão do que explicação dos fenômenos. De todo modo, interessa muito pouco aos meus propósitos disciplinar o emprego coerente da expressão. Interessa-me bem mais a possibilidade de não perder, através de um uso descuidado da expressão, a possibilidade de se pensar com sutileza e fecundidade os fenômenos a que ela se refere. Sem poder desenvolver muito mais este argumento, dada a limitação do tempo, proponho que separemos os fenômenos que se escondem ou são apagados por um emprego excessivamente amplo da expressão esfera pública e que, conforme a minha visão das coisas, são muito importantes para a compreensão da política e da democracia contemporâneas. 1. A idéia de esfera pública tem sido importante para se pensar uma dimensão crucial da relação entre sociedade civil e sociedade política, a saber, a luta conduzida pela cidadania para controlar cognitivamente a esfera onde se produz a decisão política. Historicamente, primeiro os burgueses reivindicaram, contra o modo aristocrático de condução da decisão política que se servia da reserva e do segredo, a publicidade das coisas de concernência comum, ou seja, o direito e a obrigação de se falar abertamente sobre os negócios do Estado. Depois, quando os burgueses conquistam o Estado, estabelecem o princípio de publicidade como norma de funcionamento do modo de produção da decisão política no interior da sociedade política, através do modo parlamentar, mas as constituições democráticas liberais não introduziram uma exigência de publicidade para os negócios do Estado na esfera civil. Isso não obstante, ao formar-se uma sociedade civil forte ao redor da sociedade política, esta exigência de publicidade ainda que não formatada como norma jurídica ganhou uma dimensão moral que foi conquistando adesões crescentes. A publicidade dos negócios do Estado na sociedade civil, a esfera pública, tornase princípio importante, por exemplo, para a recente retomada da idéia de democracia deliberativa. Vamos chamar essa dimensão, que é essencial ao ethos democrático, de controle cognitivo e argumentativo da decisão política pela sociedade civil. 2. Além disso, é preciso reconhecer uma diferença importante entre a deliberação política, entendida como a produção da decisão, e a fala pública

10 acerca dos negócios políticos. Nas constituições liberais, a deliberação (no sentido de decisão) política é reservada para a esfera política, que, por outro lado, foi autorizada a exercê-la pela esfera civil. Se não exerce diretamente a decisão política, a esfera civil, por outro lado, produz discursos, impressões, opiniões e até debates sobre a agenda política, aquilo que acho que podemos apropriadamente chamar de conversação civil. Não sustenta a idéia de conversação civil a noção de debate, de disputa, mas simplesmente a idéia de fala pública, de expressão, de publicação. O debate é apenas uma das espécies do gênero da conversação, que inclui ademais desde a fofoca até o jornalismo, passando por todas as formas de expressão discursiva sobre os negócios públicos. 3. É preciso reconhecer, além disso, no interior do domínio social discursivo, aquilo que mais especificamente constitui o debate público, isto é, a contraposição argumentativa, a disputa de interesses mediada pela linguagem, as interações lingüísticas competitivas sobre as matérias de interesse político coletivo. Para alguns, a natureza de esfera do debate e do conflito públicos constituiria propriamente a esfera pública, e de tal forma que o declínio do debate ou a perda de sua autenticidade consistiria na decadência desta. O problema é que o debate público hoje se tornou mais complicado do que na sociedade burguesa, onde ele se realizava inteiramente nos espaços de sociabilidade da esfera civil. Primeiro, porque no Estado burguês o debate público capaz de produzir decisão política se ritualizou nos plenários dos Parlamentos e Assembléias Nacionais no interior da esfera política. Em suma, a esfera civil pode discutir o que quiser e quanto o queira, mas quem decide é a esfera política. Segundo, porque em uma sociedade de massa e de cidadania estendida não há mais como conceder valor nacional aos poucos públicos que se reúnem aqui e ali para a discussão face-a-face. Esses públicos já não representam a esfera civil. Perde-se o face-a-face e, ademais, com o fim das assembléias, perde-se a capacidade civil de concluir discussões. O debate civil depende crescentemente de meios de comunicação de largo alcance, que, por sua vez, dificilmente se dispõem apenas a mediar, por amor cívico, a grande discussão da comunidade política nacional.

11 4. A última dimensão que gostaria de desentranhar da noção de esfera pública é a esfera de visibilidade pública política. Trata-se do repertório de idéias, opiniões, noções, informações e imagens que constitui o conhecimento comum sobre a esfera política e os negócios públicos. Trata-se de uma espécie de esfera pública expositiva, que contrasta com a esfera pública discursiva apresentada há pouco. A esfera de visibilidade pública, por sua vez, nem se orienta pelos valores democráticos nem pelo serviço ao interesse público, embora não necessariamente lhe seja contrária. A sua forma predominante é controlada pela indústria da informação, mas isso não impede a existência de esferas alternativas ou especializadas que podem ser igualmente muito importantes. De todo modo, a noção de esfera pública nos coloca no centro de um debate sobre comunicação política e sobre a democracia contemporânea que está ainda muito longe de se encerrar.

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