APOSTILA do curso O Rio de Janeiro e as favelas

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Apostila do curso O Rio de Janeiro e as favelas - Prof. Marcos Alvito 8





APOSTILA DO CURSO

O RIO DE JANEIRO E AS FAVELAS

Prof. Marcos Alvito

Universidade Federal Fluminense




"É uma cidade à parte"
Olavo BILAC, "Fora da vida", crônica de 1908

"Encravada no Rio de Janeiro, a Favela é uma cidade dentro da cidade"
Benjamim COSTALLAT, "A favela que eu vi", crônica de 1922

"Há, sem dúvida, duas cidades no Rio"
Orestes BARBOSA, "A favela", crônica de 1923

"O resultado desta política foi uma cidade partida"
Zuenir VENTURA, 1994

"As favelas do Rio são países estrangeiros"
Arnaldo JABOR, 1995







QUADRO SINÓPTICO DAS AVALIAÇÕES, PLANOS E INICIATIVAS
ACERCA DAS FAVELAS DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO
Período
Nome
Subordinação
Atribuições
Realizações
1893
Demolição do cortiço "Cabeça de Porco"; número de moradores controverso (400-2000); em 1890, para uma população de 522.651 habitantes, cerca de 130 mil (1/4) moravam em cortiços e estalagens (havia 1.449 deles em 1890)
Prefeito Barata Ribeiro e Chefe de Polícia da Capital Federal; engenhei-ro municipal, mé-dico municipal, secretário da Ins-petoria Geral de Higiene; oficiais da Armada, do Exército, da brigada policial e intendentes
Cerco (1ºBat. Infantaria e tb Cavalaria) e demolição completa do cortiço, permitindo-se a retirada de madeiras =>
Subiram o M.Providência (mais tarde da Favella) ?
1893-4
Revolta da Armada: governo aquartela tropas no Convento e, em seguida, no Morro de Santo Antônio
Governo Federal
Alguns soldados podem ter permanecido e a eles teriam se juntado outras pessoas
Em 1897, segundo um funcionário municipal, já havia 41 barracões cobertos de zinco lá construídos; quase todos teriam sido removidos em 1901
1897
Surgimento da primeira(?) favela no Morro da Providência, onde vie-ram a se alojar os sol-dados provenientes da campanha de Canudos
Autorização do governo federal

O morro já era esparsamente habitado, mas foi apenas a partir da chegada dos soldados de Canudos que foi percebido como uma aglomeração significativa
1902-1906
"Bota-abaixo": demoli-ção de "habitações anti-higiênicas" no Centro da cidade para a construção da Av.Central (atual Rio Branco); construção de Vilas Populares (no Estácio, p.ex.), para alo-jar parte da população afetada
Prefeito Pereira Passos

Estímulo duplo ao crescimento das fave-las:
opção para os desalojados e
atrai migrantes para trabalhar nas obras de remodelação urbana
1909-1910
Permissão para que os soldados do 9º Regi-mento, desalojados da Quinta da Boa Vista para construção de um horto florestal, se insta-lassem no Morro da Mangueira
Prefeito Serzedelo Correia


1920
Censo de 1920
Federal

Assinala 830 casas - Morro da Favella, 190 - Salgueiro, 6 -Arrelia, 16 - Cantagalo, 59 - Babilônia e 63 - S.José; M.Castelo e no M.S. Antônio
1920-22
Remoção (parcial) das favelas M.da Providên-cia, Sto. Antônio (in- cêndio) e Gávea-Leblon
Prefeito Carlos Sampaio

Parte dos moradores do M.Santo Antônio (incêndio suspeito em 1916) vai para o Morro da Mangueira;
1922-28
Arrasamento do Morro do Castelo



1927-1930
Plano de "extensão, remodelação e embe-llezamento" do Rio
Engenheiro francês Alfred Agache
Relatório que redunda em um livro, publicado em 1930. Nele, estima (erroneamente) a população favelada em 200 mil pessoas.
Um capítulo dedicado às favelas, vistas como "lepra" que ameaçava a ordem social, a segurança, a higiene e a estética da cidade. Propugna a sua destruição e a expulsão dos moradores. Propõe a contrução de vilas de residência para pequenos funcionários e empregados do comércio (nos morros da Conceição, Providência e Pinto)
1937
Código de Obras; decreto 6000 de 1-7-1937
Prefeitura
Regular as construções: prevê a construção de "casas proletárias" no art. 346 e, no art. 347, a eliminação das favelas, substituidas por "núcleos de habitação de tipo míni-mo"; o artigo 349 proibe a construção de favelas e a melhoria das existentes; art.348 proibe a formação ou construção de cortiços ou estalagens

1940
Serviço Nacional de Febre Amarela
Federal
entre outras, recensea-mento no qual constam os casebres (casas que não são de alvenaria)
c.1940: 63.317 casebres no D.F.
novembro de 1940
"esboço de um plano para o estudo e solução do problema das favelas no Rio de Janeiro"
elaborado pelo Dr. Victor Moura e entregue ao Secr. Geral de Saúde e de Assistência do Gov. do DF
Diagnóstico preliminar do problema e proposta de criação dos Parques Proletários

início de 1941
Criação da "Comissão encarregada do estudo dos problemas de higienização das favelas"
Secretário Geral de Saúde e de As-sistência do Go-vernador do DF


julho de 1941
Institutos de Aposenta-dorias e Pensões, que já construíam casas popu-lares, entram em en-tendimento com a Pre-feitura do DF para a construção de casas destinadas aos favelados
Ordem do Governo Federal


19 maio de 1942
Incêndio da favela do Largo da Memória (Lagoa)
Pref. Henr. Dods-worth, na presen-ça do Secr. Geral de Saúde e de As-sistência, do Secr. de Viação e Obras Públ. e do Comte. C. Bombeiros


maio de 1942
Inauguração do Parque Proletário da Gávea, na rua Marques de S.Vicente
Prefeito Henrique Dodsworth
Previa a construção de igreja, posto médico, centro de assistência, clube de malha, escola de educação física, creche, lactário e posto policial
Composta de 550 casas já construídas e 150 em construção (um ano depois, abrigava 6.000 moradores)
maio de 1942
Inauguração do Parque Proletário nº 2 (Caju)
Prefeito Henrique Dodsworth
Idem
Abrigava 322 famílias, 1.395 pessoas
18 de julho de 1943
Presidente Getúlio Vargas recebe as chaves de uma casa popular para seu uso pessoal



1943
Balanço do Plano

Transferência de 250.000 favelados para Parques Proletários
Quatro favelas destruídas, três parques instalados (Gávea, Caju e Praia do Pinto), abrigando entre 7 e 8.000 pessoas
1945
Criadas as primeiras Comissões de Mora-dores do Pavão/Pavão-zinho e depois Can-tagalo e Babilônia

Para evitar a ida para os Parques Proletários

1946
Comissão Interministe-rial (Educação e Cultura, Trabalho, Agricultura e Fazenda) mais o Prefeito do DF e alguns técnicos
Presidente Mal. Dutra
Estudar e propor soluções para o problema das favelas

1º de maio de 1946
Decreto-lei que cria a Fundação da Casa Popular
Presidente Mal. Dutra
Dedica-se ao problema habitacional no interior

1947
Comissão para a extinção das favelas (Diretor da Assistência Social, do Diretor do Depto. de Geografia e Estatística e do Diretor do Departamento de Limpeza Pública)
Prefeito Ângelo Mendes de Morais

Censo geral das favelas, em 1947-48, no levantamento inicial chega-se ao número de 119 favelas com 283.390 moradores (14% da população do DF)
1946-1947
Fundação Leão XIII
Arquidiocese e Prefeitura do DF
"Dar assistência material e moral" ("escolas, ambu-latórios, creches, materni-dades, cozinhas e vilas populares") dentro de uma perspectiva "cristã", visando: conhecer a fa-vela, tratar as famílias e extinguir a favela
Implantação de Centros de Ação Social; entre 1947-54 agiu em 34 favelas; estimulou e assessorou, durante muito tempo, as associações de moradores da favela; hoje em dia é um órgão governamental
maio de 1948
"Batalha do Rio"
Jornalista Carlos Lacerda
Publica uma série de artigos no C. da Manhã, na qual aponta as favelas como o pb nº 1 do DF e propõe sua extinção, co-meçando com 10% (30.000 pessoas) no pri-meiro ano; ataca o PCB, por defender a manuten-ção das favelas, junta-mente c/a burocracia.

8 de julho de 1948
Criação de Sete Comissões (busca e aquisição de terrenos, projetos, construção e recuperação do mate-rial, finanças e donati-vos, estatísticas e sele-ção dos habitantes, dis-tribuição de casas e mu-danças, saúde e assis-tência social)
Prefeito Mendes de Moraes, em acordo com o Pres. Dutra
Trabalhar na solução do problema das favelas
Elaboração do Plano da "Batalha do Rio"
30 novembro de 1950
Lei 539

Promete melhorias locais na favela: creche, posto de assistência social para a educação dos favelados, escola de ensino de serviços domésticos

25 abril de 1951
Nomeação de Guilher-me Romano p/ chefiar o Serviço de Recuperação das Favelas
Pref. João Carlos Vital
proposta de "urbanizar as favelas"

março de 1952
Criação do "Serviço de Recuperação das Favelas" SERFA
Prefeitura


27 de março de 1952
Criação da subcomissão de favelas da Comissão Nacional de Bem-Estar Social, no Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio
Por despacho do Pres. Dutra
Estudo do problema das favelas
Extinta em 1955
28 de janeiro de 1953
Nova Comissão das favelas, criada pela portaria 66
Pref. Dulcídio Cardoso
Remoção somente quando já houver sido providenciado outro local; Polícia de Vigilância impede construções e melhoramentos

29 setembro de 1955
Criação da Cruzada São Sebastião
Igreja Católica, D.Hélder Câmara é o Secr. Geral
"dar solução racional, humana e cristã ao problema das favelas no Rio de Janeiro"
Construção do Bairro S.Sebastião, no Leblon, inaugurado no dia 20 de janeiro de 1957, para onde foram 790 famílias; melhorias em diversas favelas, 51 redes de luz, urbanização do Parque Alegria; em 1958-9 negocia a não-remoção de Borel, Esqueleto e D.Marta
maio de 1956
Reunião dos Bispos do Nordeste, em Campina Grande, para a organização das migrações rurais



28 agosto de 1956
Criação do "Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-Higiênicas"
Prefeitura
Inicialmente, apenas apoiava as ações da Fundação Leão XIII e da Cruz. S.Sebastião; após o relatório SAGMACS publicado em 1960 passa a agir por conta própria.
Estímulo e orientação para a criação de associações de moradores em favelas (acordo de colaboração com 75 associações: programas educacionais e de bem-estar, urbanização da favela, impedir a construção de novos barracos, solicitar autorização para melhorias, auxílio na manutenção da ordem e do respeito à lei )
janeiro de 1957
Primeiro Congresso dos Favelados do Rio de Janeiro



1957
Criação da Coligação dos Trabalhadores Fa-velados do Distrito Federal

Lutar por melhores condi-ções de vida para os moradores das favelas "através do desenvolvi-mento de um trabalho comunitário

1962
COHAB
Governador Carlos Lacerda
Remoção das favelas, construção de conjuntos habitacionais
Atinge 27 favelas, 41.958 pessoas transferidas; termina em 1965
1963
Criação da FAFEG, Federação das Favelas do Estado da Guanabara


A Assembléia Legislativa destina 3% da arrecadação estadual para obras de melhoramento das favelas
1967
Ação Comunitária do Brasil (anticomunista)
Filial de um órgão criado em N.York em 1965, dirigida por empresários e patrocinada pelo comércio e indústria
"criar o espírito de auto-ajuda entre os favelados e capacitá-los para a solu-ção dos seus problemas com esforço próprio"; as-sessora projetos comunitários
Auxílio a alguns projetos comunitários em favelas (p.ex. Varginha)
1967-68
Decretos do Governo do Estado do RJ

Em 1967 coloca as associações de moradores sob controle da Secretaria de Serviços Sociais; em 68, outro decreto estabelece como "finalidade específica das associações de moradores a representação dos interesses comunitários perante o governo do Estado e estabelece exigências

1968-73
Coordenadoria da Habitação de Interesse Social na Área Metropolitana do Rio de Janeiro (CHISAM)
Federal
Remoção das favelas ("exterminar as favelas"), visando a "reabilitação social, moral, econômica e sanitária" da "família favelada"
Atuou até 1973; removeu cerca de 53 favelas, cerca de 100.000 pessoas
1972
III Congresso da FAFEG, com a participação de 79 associações

Defendem a urbanização das favelas ao invés da remoção

1979
Diretrizes para o Estabelecimento de uma política de ação para as favelas do município do Rio de Janeiro
Prefeito Israel Klabin e Secretaria de Desenvolvi-mento Social
Propõe a legalização da propriedade da terra e a urbanização, através da mobilização e da participação dos favelados
Inaugura esquema de coleta de lixo nas favelas pela COMLURB (Secretaria Municipal de Obras); campanhas educativas
1979
PROMORAR (Projeto Rio)
Min. do Interior Mário Andreazza
Erradicação das favelas (principalmente do Complexo da Maré), solucionar o problema das "habitações sub-humanas, as favelas e as palafitas, urbanizando-as quando for possível, e erradicando-as quando for 'caso perdido'
Até 83: móveis dos barracos não cabiam nas novas casas
1980
Projeto SDM/UNICEF
Pref. Júlio Coutinho
Continuação dos projetos do Pref. Israel Klabin

1983-85
Programa de Favelas da CEDAE, Programa de Iluminação Pública, Programa Cada Família um lote, COMLURB
Governador Leonel Brizola
Dotar as favelas de infra-estrutura urbana
Água e esgoto para 60 favelas; coleta de lixo adaptada às favelas; instalação de sistemas de iluminação pública; regularização da propriedade; política de direitos humanos
1990
Balanço do deficit de infra-estrutura urbana

dos domicílios em favela, menos de 20% eram aten-didos por sistema de esgoto, e cerca de 60% por água encanada (sendo o melhor índice o de energia elétrica, que che-ga a 85%) apenas 3,7% dos domicílios em favelas tinham títulos de pro-priedade em 1990

1994-2000
Projeto Favela-Bairro
Prefeito César Maia/ Pref. Luis Paulo Conde
"integrar a favela à cidade, dotando-a de toda infra-estrutura, serviços e equipamentos públicos"
Entre 1997-1999, seg. dados da Prefeitura, tinham sido beneficiadas 293.324 pessoas em 73.331 domicílios.

Porcentagem representada pelos moradores de favelas em relação à pop. total do Rio de Janeiro (fontes: PERLMAN, BURGOS)

8,5%
16,0%
32,0%
40,0% (considerando também conjuntos habitacionais e loteamentos irregulares)




TEXTO No. 1: O morro do Castelo em 1871
Natureza e data do texto:
Nesta abertura do romance Esaú e Jacó, publicado em 1904, duas personagens do livro de Machado de Assis, Natividade e Perpétua, vão visitar uma "cabocla" com poderes divinatórios. Estes dois capítulos iniciais descrevem brevemente o morro do Castelo e seus habitantes, além de mostrarem a distância social que separava aquele sítio de Botafogo, onde residiam as duas consulentes. (edição utilizada: Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1982)

Texto:

CAPÍTULO PRIMEIRO / COUSAS FUTURAS!
Era a primeira vez que as duas iam ao morro do Castelo. Começaram de subir pelo lado da Rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglês, que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da metrópole e do mundo Natividade e Perpétua conheciam outras partes, além de Botafogo, mas o morro do Castelo, por mais que ouvissem falar dele e da cabocla que lá reinava em 1871, era-lhes tão estranho e remoto como o clube. O íngreme, o desigual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas. Não obstante, continuavam a subir, como se fosse penitência, devagarinho, cara no chão, véu para baixo. A manhã trazia certo movimento; mulheres, homens, crianças que desciam ou subiam, lavadeiras e soldados, algum empregado, algum lojista, algum padre, todos olhavam espantados para elas, que aliás vestiam com grande simplicidade; mas há um donaire que se não perde, e não era vulgar naquelas alturas. A mesma lentidão do andar, comparada à rapidez das outras pessoas, fazia desconfiar que era a primeira vez que ali iam. Uma crioula perguntou a um sargento: "Você quer ver que elas vão à cabocla?" E ambos pararam a distancia, tomados daquele invencível desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a necessidade humana.
Com efeito, as duas senhoras buscavam disfarçadamente o número da casa da cabocla, até que deram com ele. A casa era como as outras, trepada no morro. Subia-se por uma escadinha, estreita, sombria, adequada à aventura. Quiseram entrar depressa, mas esbarraram com dous sujeitos que vinham saindo, e coseram-se ao portal. Um deles perguntou-lhes familiarmente se iam consultar a adivinha.
—Perdem o seu tempo, concluiu furioso, e hão de ouvir muito disparate...
—É mentira dele, emendou o outro rindo; a cabocla sabe muito bem onde tem o nariz.
Hesitaram um pouco; mas, logo depois advertiram que as palavras do primeiro eram sinal certo da vidência e da franqueza da adivinha; nem todos teriam a mesma sorte alegre. A dos meninos de Natividade podia ser miserável, e então... Enquanto cogitavam passou fora um carteiro, que as fez subir mais depressa, para escapar a outros olhos. Tinham fé, mas tinham também vexame da opinião, como um devoto que se benzesse às escondidas.
Velho caboclo, pai da adivinha, conduziu as senhoras à sala. Esta era simples, as paredes nuas, nada que lembrasse mistério ou incutisse pavor, nenhum petrecho simbólico, nenhum bicho empalhado: esqueleto ou desenho de aleijões. Quando muito um registro da Conceição colado à parede podia lembrar um mistério, apesar de encardido e roído, mas não metia medo. Sobre uma cadeira, uma viola.
—Minha filha já vem, disse o velho. As senhoras como se chamam?
Natividade deu o nome de batismo somente, Maria, como um véu mais espesso que o que trazia no rosto, e recebeu um cartão, porque a consulta era só de uma, — com o número 1.012. Não há que pasmar do algarismo; a freguesia era numerosa, e vinha de muitos meses. Também não há que dizer do costume, que é velho e velhíssimo. Relê Esquilo, meu amigo, relê as Eumênides, lá verás a Pítia, chamando os que iam à consulta: "Se há aqui Helenos, venham, aproximem-se, segundo o uso, na ordem marcada pela sorte"... A sorte outrora, a numeração agora, tudo é que a verdade se ajuste à prioridade, e ninguém perca a sua vez de audiência. Natividade guardou o bilhete, e ambas foram à janela.
A falar verdade, temiam o seu tanto, Perpétua menos que Natividade. A aventura parecia audaz, e algum perigo possível. Não ponho aqui os seus gestos: imaginai que eram inquietos e desconcertados. Nenhuma dizia nada. Natividade confessou depois que tinha um nó na garganta. Felizmente, a cabocla não se demorou muito; ao cabo de três ou quatro minutos, o pai a trouxe pela mão, erguendo a cortina do fundo.
—Entra, Bárbara.
Bárbara entrou, enquanto o pai pegou da viola e passou ao patamar de pedra, à porta da esquerda. Era uma criaturinha leve e breve, saia bordada, chinelinha no pé. Não se lhe podia negar um corpo airoso. Os cabelos, apanhados no alto da cabeça por um pedaço de fita enxovalhada, faziam-lhe um solidéu natural, cuja borla era suprida por um raminho de arruda. Já vai nisto um pouco de sacerdotisa. O mistério estava nos olhos. Estes eram opacos, não sempre nem tanto que não fossem também lúcidos e agudos, e neste último estado eram; igualmente compridos; tão compridos e tão agudos que entravam pela gente abaixo, revolviam o coração e tornavam cá fora, prontos para nova entrada e outro revolvimento. Não te minto dizendo que as duas sentiram tal ou qual fascinação. Bárbara interrogou-as; Natividade disse ao que vinha e entregou-lhe os retratos dos filhos e os cabelos cortados, por lhe haverem dito que bastava.
—Basta, confirmou Bárbara. Os meninos são seus filhos?
—São.
—Cara de um é cara de outro.
—São gêmeos; nasceram há pouco mais de um ano.
—As senhoras podem sentar-se.
Natividade disse baixinho à outra que "a cabocla era simpática", não tão baixo que esta não pudesse ouvir também; e daí pode ser que ela, receosa da predição, quisesse aquilo mesmo para obter um bom destino aos filhos. A cabocla foi sentar-se à mesa redonda que estava no centro da sala, virada para as duas. Pôs os cabelos e os retratos defronte de si. Olhou alternadamente para eles e para a mãe, fez algumas perguntas a esta, e ficou a mirar os retratos e os cabelos, boca aberta, sobrancelhas cerradas. Custa-me dizer que acendeu um cigarro, mas digo, porque é verdade, e o fundo concorda com o ofício. Fora, o pai roçava os dedos na viola, murmurando uma cantiga do sertão do Norte:
Menina da saia branca,
Saltadeira de riacho...
Enquanto o fumo do cigarro ia subindo, a cara da adivinha mudava de expressão, radiante ou sombria, ora interrogativa, ora explicativa. Bárbara inclinava-se aos retratos, apertava uma madeixa de cabelos em cada mão, e fitava-as, e cheirava-as, e escutava-as, sem afetação que porventura aches nesta linha. Tais gestos não se poderiam contar naturalmente. Natividade não tirava os olhos dela, como se quisesse lê-la por dentro. E não foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer.
—Brigado?
—Brigado, sim, senhora.
—Antes de nascer?
—Sim, senhora, pergunto se não teriam brigado no ventre de sua mãe; não se lembra?
Natividade, que não tivera a gestação sossegada, respondeu que efetivamente sentira movimentos extraordinários, repetidos, e dores, e insônias... Mas então que era? Brigariam por quê? A cabocla não respondeu. Ergueu-se pouco depois, e andou à volta da mesa, lenta, como sonâmbula, os olhos abertos e fixos; depois entrou a dividi-los novamente entre a mãe e os retratos. Agitava-se agora mais, respirando grosso. Toda ela, cara e braços. ombros e pernas, toda era pouca para arrancar a palavra ao Destino. Enfim, parou, sentou-se exausta, até que se ergueu de salto e foi ter com as duas, tão radiante, os olhos tão vivos e cálidos, que a mãe ficou pendente deles, e não se pôde ter que lhe não pegasse das mãos e lhe perguntasse ansiosa:
—Então? Diga, posso ouvir tudo.
Bárbara, cheia de alma e riso, deu um respiro de gosto. A primeira palavra parece que lhe chegou à boca, mas recolheu-se ao coração, virgem dos lábios dela e de alheios ouvidos. Natividade instou pela resposta, que lhe dissesse tudo, sem falta...
—Cousas futuras! murmurou finalmente a cabocla.
—Mas, cousas feias?
—Oh! não! não! Cousas bonitas, cousas futuras!
—Mas isso não basta: diga-me o resto. Esta senhora é minha irmã e de segredo, mas se é preciso sair, ela sai; eu fico, diga-me a mim só... Serão felizes?
—Sim.
—Serão grandes?
—Serão grandes, Oh! grandes! Deus há de dar-lhes muitos benefícios. Eles hão de subir, subir, subir... Brigaram no ventre de sua veio busca mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É! só o que lhe digo. Quanto à qualidade da glória, cousas futuras! Lá dentro, a voz do caboclo velho ainda uma vez continuava a cantiga do sertão:
Trepa-me neste coqueiro,
Bota-me os cocos abaixo.
E a filha, não tendo mais que dizer, ou não sabendo que explicar, dava aos quadris o gesto da toada, que o velho repetia lá dentro:
Menina da saia branca,
Saltadeira de riacho,
Trepa-me neste coqueiro,
Bota-me os cocos abaixo,
Quebra coco, sinhá,
Lá no cocá,
Se te dá na cabeça,
Há de rachá;
Muito hei de me ri,
Muito hei de gostá,
Lelê, coco, naiá.

CAPÍTULO II / MELHOR DE DESCER QUE DE SUBIR
Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se. Natividade acabou entendendo a cabocla, apesar de lhe não ouvir mas nada; bastou saber que as cousas futuras seriam bonitas, e os filhos grandes e gloriosos para ficar alegre e tirar da bolsa uma nota de cinqüenta mil-réis. Era cinco vezes o preço do costume, e valia tanto ou mais que as ricas dádivas de Creso à Pítia. Arrecadou os retratos e os cabelos, e as duas saíram, enquanto a cabocla ia para os fundos à espera de outros. Já havia alguns fregueses à porta, com os números de ordem, e elas desceram rapidamente, escondendo a cara.
Perpétua compartia as alegrias da irmã, as pedras também, o muro do lado do mar, as camisas penduradas às janelas, as cascas de banana no chão. Os mesmos sapatos de um irmão das almas, que ia a dobrar a esquina da Rua da Misericórdia para a de S. José, pareciam rir de alegria, quando realmente gemiam de cansaço. Natividade estava tão fora de si que, ao ouvir-lhe pedir: "Para a missa das almas!" tirou da bolsa uma nota de dous mil-réis, nova em folha, e deitou-a à bacia. A irmã chamou-lhe a atenção para o engano, mas não era engano, era para as almas do purgatório.
E seguiram lépidas para o coupé, que as esperava no espaço que fica entre a igreja de S. José e a Câmara dos Deputados. Não tinham querido que o carro as levasse até ao princípio da ladeira, para que o cocheiro e o lacaio não desconfiassem da consulta. Toda a gente falava lava então da cabocla do Castelo, era o assunto da cidade; atribuíam-lhe um poder infinito, uma série de milagres, sortes, achados casamentos. Se as descobrissem, estavam perdidas embora muita gente boa lá fosse. Ao vê-las dando a esmola ao irmão das almas, o lacaio trepou à almofada e o cocheiro tocou os cavalos, a carruagem veio buscá-las, e guiou para Botafogo.

TEXTO No. 2: Canudos e o morro da Favela.
Natureza e data do texto:
Como se sabe, a palavra favela refere-se a uma árvore muito comum na região próxima ao arraial de Canudos, no sertão baiano. Algumas passagens de Os Sertões de Euclides da Cunha, publicado em 1902, dão subsídios às diversas hipóteses acerca da utilização da palavra para designar o antes chamado Morro da Providência.

"Do alto da Serra de Monte-Santo atentando-se para a região, estendida em tôrno num raio de quinze léguas, nota-se, como num mapa em relêvo, a sua conformação orográfica. (...) Tôdas [as serras da região] traçam, afinal, elíptica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos - e daí, para o norte, de novo se dispersam e decaem até acabarem em chapadas altas à borda do S.Francisco. [ver mapa pp.22-23]"

"Do alto da Favela
Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar para abranger de um lance o conjunto da terra. (...) O arraial, adiante e em baixo, erigia-se no mesmo solo perturbado."

"As favelas, anônimas ainda na ciência - ignoradas pelos sábios, conhecidas demais pelos tabaréus - talvez um futuro gênero cauterium das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em vilosidades, notáveis aprestos de condensação, absorção e defesa. Por um lado, a sua epiderme ao resfriar-se, à noite, muito abaixo da temperatura do ar, provoca, a despeito da secura dêste, breves precipitações de orvalho; por outro, a mão que a toca, toca uma chapa incandescente de ardência inaturável."

"Polícia de bandidos
Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o arraial, corrigindo os que saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia ali paradoxalmente instituída - a poeira, no dizer dos jagunços - viam-se, diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas.
Inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados, a justiça era, como tudo o mais, antinômica, no clã policiado por facínoras. Visava uma delinquência especial, traduzindo-se na inversão completa do conceito do crime. Exercitava-se, não raro duramente, cominando penas severíssimas sôbre leves faltas.
O uso da aguardente, por exemplo, era delito sério. Ai! do dipsomaníaco incorrigível que rompesse o interdito imposto !
Conta-se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do Juazeiro, foram ter a Canudos, levando alguns barris do líquido inconcensso. Atraía-os o engôdo de lucro inevitável. Levavam a eterna cúmplice das horas ociosas dos matutos. Ao chegarem, porém, tiveram, depois de descarregarem na praça a carga valiosa, desagradável surpresa. Viram, ali mesmo, abertos os barris, a machado, e inutilizado o contrabando sacrílego. E volveram rápidos, desapontados, tendo às mãos, ao invés do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas, amargos bolos com que os presenteara aquela gente ingrata.
Este caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao Conselheiro todos os perigos que adviriam dêste hachich nacional. Interdizia-o menos por debelar um vício que para prevenir desordens. Mas fora do povoado, estas podiam espalhar-se à larga. Dali partiam bandos turbulentos arremetendo com os arredores. Tôda a sorte de tropelias eram permitidas, desde que aumentassem o patrimônio da grei. Em 1894, as algaras, chefiadas por valentões de nota, tornaram-se alarmantes. Foram em um crescendo tal, de depredações e desacatos, que despertaram a ação dos poderes constituídos, originando mesmo calorosa e inútil discussão na Assembléia Estadual da Bahia."


"Porque o morro da Favela, como os demais daquele tracto dos sertões, não tem nem mesmo o revestimento bárbaro da caatinga. É desnudo e áspero. Raros arbúsculos, esmirrados e sem folhas, raríssimos cereus ou bromélias esparsas, despontam-lhe no cimo sôbre o chão duro (...)."

"O arraial - 'compacto' como as cidades do Evangelho - completava a ilusão.
Ao cair da noite, de lá ascendia, ressoando longamente nos descampados em ondulações sonoras. Os canhões da Favela bramiam, despertos por aquelas vozes tranquilas. Cruzavam-se sôbre o campanário humilde as trajetórias das granadas. Estouravam-lhe por cima e em roda os schrapnells. Mas lento e lento, intervaladas de meio minuto, as vozes suavíssimas se espalhavam silentes, sôbre a assonância do ataque. O sineiro impassível não claudicava um segundo no intervalo consagrado. Não perdia uma nota."

"Prisioneiros
(...)
Nem um rosto viril, nem um braço capaz de suspender uma arma, nem um peito resfolegante de campeador domado: mulheres, sem número de mulheres, velhas espectrais, moças envelhecidas, velhas e moças indistintas na mesma fealdade, escaveiradas e sujas, filhos escanchados nos quadris desnalgados, filhos encarapitados às costas, filhos suspensos aos peitos murchos, filhos arrastados pelos braços, passando; crianças, sem número de crianças; velhos, sem número de velhos; raros homens, enfermos opilados, faces túmidas e mortas, de cêra, bustos dobrados, andar cambaleante."

"Canudos não se rendeu
Fechemos êste livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em tôda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5 [de outubro de 1897], ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados."

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1952 [1902].22.ed.

TEXTO No. 3: A FAVELA COMO QUESTÃO DE POLÍCIA

Natureza e data do texto:
Do dualismo que persiste em muitas das interpretações atuais a respeito das favelas, o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, guarda um interessante documento datado de 4 de novembro de 1900. Trata-se de uma carta do delegado da 10ª circunscrição ao Chefe de Polícia, Dr. Eneas Galvão. Nela podemos ler:

"Obedecendo ao pedido de informações que V.Excia., em ofício sob nº 7071, ontem me dirigiu relativamente a uma local do 'Jornal do Brasil', que diz estar o morro da Providência infestado de vagabundos e criminosos que são o sobressalto das famílias no local designado, se bem que não haja famílias no local designado, é ali impossível ser feito o policiamento porquanto nesse local, foco de desertores, ladrões e praças do exército, não há ruas, os casebres são construídos de madeira e cobertos de zinco, e não existe em todo o morro um só bico de gás, de modo que para a completa extinção dos malfeitores apontados se torna necessário um grande cerco, que para produzir resultado, precisa pelo menos de um auxílio de oitenta praças completamente armadas."

A proposta do cerco, prossegue o delegado, nem ao menos era inédita:

"Dos livros desta delegacia consta ter ali sido feita uma diligência pelo meu antecessor que teve êxito, sendo com um contingente de cinqüenta praças, capturado, numa só noite, cerca de noventa e dois indivíduos perigosos. "

A solução ideal, entretanto, era outra, sugere o delegado ao Chefe de Polícia:

"Parece, entretanto, que o meio mais pratico de ficar completamente limpo o aludido morro é ser pela Diretoria de Saúde Pública ordenada a demolição de todos os pardieiros que em tal sítio se encontram, pois são edificados sem a respectiva licença municipal e não têm as devidas condições higiênicas.

Saúde e fraternidade
O delegado"

A carta do delegado foi encaminhada a um assessor do Chefe de Polícia, acompanhada do seguinte parecer, datado de 8 de novembro de 1900:

"Parece-me que ao Sr. Prefeito devem ser pedidas, a bem da ordem e moralidade públicas, as providências que julgar necessárias para a extinção dos casebres e pardieiros a que alude o delegado."

Dois dias, depois, com um lacônico "Sim", o Dr. Eneas Galvão, Chefe de Polícia do Distrito Federal, endossava o parecer de seu assessor. Aqui perdemos o fio da meada histórica e não sabemos se jamais o prefeito veio a receber tal correspondência. De qualquer forma, os dois documentos existentes no Arquivo Nacional são importantes por dois motivos. Em primeiro lugar, mostram que o "morro da Favella", apenas três anos depois do Ministério da Guerra permitir que ali viessem a se alojar os veteranos da campanha de Canudos (terminada em 1º de outubro de 1897), já era percebido pelas autoridades policiais como um "foco de desertores, ladrões e praças do exército". E mais, a carta do delegado da 10ª circunscrição parece conter a primeira menção à favela como um duplo problema: sanitário e policial (aos quais o assessor de Eneas Galvão acrescentou a "moralidade pública"), que poderia, por isso mesmo, ser resolvido de um só golpe. A idéia da favela como um "foco", a menção à "limpeza", isto é, a retórica centrada nas concepções de uma "patologia social" e da "poluição" estava destinada a uma longa permanência na cena institucional carioca do século XX. A proposta de cercar um morro habitado pelas "classes perigosas", entretanto, não era nova (como os registros da 10ª delegacia assinalavam) e nem parecia ser fruto único e exclusivo da mente das autoridades policiais. Assim podemos depreender de uma notícia publicada também no "Jornal do Brasil", na famosa coluna "Queixas do Povo", ainda no mês de novembro de 1900:

"Diversos caixeiros de lojas de fazendas da rua da Carioca vieram pedir que reclamássemos do sr. delegado da 6ª circunscrição urbana as providências contra uma quadrilha de menores gatunos que se acouta no morro de Santo Antônio, perto da passagem dos bonds elétricos.
Anteontem à noite, um desses larápios, auxiliado por um grupo de companheiros, furtou da casa nº 39 daquela rua um par de calças que estava à mostra."

A relativa insignificância do objeto furtado, entretanto, não parece ter impedido uma reação imediata e coletiva dos comerciantes daquela rua, denotando, talvez, a freqüência do problema:

"Perseguidos pelos reclamantes referidos, evadiram-se por aquele morro, sendo presos somente dois, por um guarda noturno; os outros, antes de fugirem à polícia, juraram aos seus perseguidores vingarem-se deles."

A providência solicitada pelos comerciantes à autoridade policial é a seguinte:

"Um cerco bem dado, estudando o sr. delegado antecipadamente o terreno do morro, teria bom resultado".

Extraído da Introdução do livro Um século de favela. Organizado por Alba Zaluar e Marcos Alvito. Rio de Janeiro, FGV, 1998.


TEXTO No. 4: QUEIXAS DO POVO AO JORNAL DO BRASIL
Natureza e data do texto:
Esta notícia, publicada no Jornal do Brasil em 29 de outubro de 1900, já apresenta uma queixa endereçada ao delegado da 10ª circunscrição referido no texto anterior. À época, o Jornal do Brasil era um jornal bastante popular, por sua postura de oposição ao governo e por dar espaço ao "jogo dos bichos", aos crimes e reivindicações populares (cf. SILVA,Eduardo.As queixas do povo. Rio de Janeiro,Paz e Terra,1988). As "Queixas do Povo" era um dos carros-chefes do jornal, pois eram publicadas gratuitamente e nem mesmo era necessário saber escrever: as reclamações podiam ser feitas diretamente no jornal ou em suas agências. Mantivemos a grafia original.
"Pedem-nos que chamemos a atenção do Sr. Delegado da 10ª circumscripção para um grupo de vagabundos que estaciona quasi todos os dias na rua da Providencia, incommodando as familias alli residentes, que são obrigadas a ouvir constantemente palavrões desses desocupados."

Também já apareciam queixas contra menores:

"Queixam-se os moradores da praça da República da grande quantidade de gatunos e menores vagabundos que trazem em sobressalto as familias daquelle lugar, e pedem-nos que reclamemos providencias à policia, afim de reprimi-los, pois dia e noite fazem alli proezas de toda a sorte."
(3/11/1900)



TEXTO No. 5: NOTICIÁRIO POLICIAL
Natureza e data do texto:
Como já foi dito, um dos motivos para que o Jornal do Brasil fosse chamado de popularíssimo era o fato de publicar notícias policiais à gosto da população, anunciadas por manchetes sensacionalistas. Vejamos algumas chamadas de "factos policiaes" do Jornal do Brasil :

"EM UM BAILE "TENTATIVA DE ASSASSINATO
CIUMADA À NAVALHA"
SCENA DE SANGUE
FUGA DO CRIMINOSO"

"ACTO DE DESESPERO [suicídio] "O ZEZINHO ["gatuno audacioso"]
NA RUA DE SÃO JORGE" EM FLAGRANTE"

"SUICIDIO "APEDREJADO"
QUESTÕES DE AMORES "COUSAS DA POLICIA"
UMA CARTA" "CAVALLO ROUBADO"
(6/11/1900)

"TENTATIVA DE ASSASSINATO
NAMORADO FEROZ
A REVÓLVER
EM PAULA MATTOS"
(18/10/1900)

"ESPOSA INFELIZ
MARIDO QUE MATA
CRIME DA RUA DO PROPOSITO
RELATORIO DO DELEGADO"
(30/9/1900)

"ACTO DE DESESPERO
POR CAUSA DE CIUMES
A KEROSENE"
(15/10/1900)

"ASSASSINATO
EM CASCADURA
A FOUCE E PUNHAL
O INQUERITO POLICIAL
PROMENORES [sic]
NOTAS E INFORMAÇÕES"
(20/11/1900)

"A BAYONETA
BARBARO ASSASSINATO
ENTRE MENORES
NO BECCO DA BATALHA
PRISÃO DO CRIMINOSO
CONFLICTO E FUGA
NA RUA DA MISERICÓRDIA
AS PROVIDENCIAS DA POLICIA
OS DEPOIMENTOS TOMADOS"
(3/11/1900)

Agora o exemplo de uma notícia completa (1/11/1900):

"UMA FACADA
ASSASSINADO
NA RUA GENERAL CAMARA

Às nove horas da noite, menor, com 15 anos, Julião Francisco, copeiro, negro, matou o português Albino Ferreira, empregado de um açougue. Negou o crime mas depois confessou ao repórter: diz Julião que era inimigo de Albino Ferreira, por tel-o este convidado á pratica de actos reprovados, e que já não era a primeira vez que com elle se atracava por tal motivo."

Mesmo os folhetins que o jornal publicava parece que davam ênfase à questão criminal. A edição da tarde do Jornal do Brasil de 3/11/1900 anunciava dois folhetins: Fama do crime, de Fernandez y Gonzales; A filha do assassino de Xavier de Montépin; isto sem falar no título da Bibliotheca do Jornal do Brasil posto à venda: O ladrão, "interessante romance de Pul Bertney"; além disso, o JB publicava, diariamente, sob a rubrica Brigada Policial, os oficiais de serviço nos diferentes regimentos e guarnições e também da Guarda Nacional e até mesmo nomeações da Polícia.

Os morros já começavam a aparecer neste noticiário, como nos dois exemplos que se seguem, talvez demonstrando uma vigilância mais cerrada nas cercanias do Morro da Providência:

"Hontem, às sete horas da tarde, foi recolhido ao xadrez o nacional Antonio Joaquim de Oliverira, preso na subida do morro da Providencia, por estar armado de uma faca de ponta.
O delegado da 10ª circumscripção abriu inquerito."
(em 3/11/1900)

"PUNHALADA

Alexandre da Silva foi hontem preso pelo delegado da 10ª circumscripção, por ter ante-hontem, às 9 horas da noite, no morro da Providência, aggredido e ferido com uma punhalada no peito a Antonio Joaquim da Silva, que se acha em tratamento no Hospital da Misericórdia."
(em 29/10/1900)

Os "criminosos" já tinham seus "perfis" traçados com o desprezo e a ironia habituais (havia até uma seção mais ou menos constante chamada "Os Larápios"), fazendo-se referência à cor da pele ou à sua morada em lugares já vistos como suspeitos:

"FACTOS POLICIAES

Jayme Fernandes, Virgilio Bezerra e Henrique de Brito são tres valientes do morro do Pinto, que antehontem foram presos e trancafiados no xilindró da 10ª delegacia, por promoverem grande charivari na rua Visconde de Sapucahy.
Contra a perniciosa trindade procede na forma da lei o respectivo delegado."
(em 11/11/1897)

"SCENA DE SANGUE
EM UM BOTEQUIM
DESORDEM E HOMICÍDIO
O CRIMINOSO

Hontem, à uma e meia da tarde, no gabinete medico legista da policia, os doutores Marcher Serzedello e Moraes e Brito examinaram Alfredo Manuel do Nascimento, vulgo Alfredo da Bahiana, o autor do assassinato de Abel de Souza Pereira, crime que se deu na madrugada de 12 do corrente, no café 'Flor da Mocidade', no largo do Matadouro [Praça da Bandeira].
Alfredo é um pardinho imberbe, pernostico, magro, de altura regular e cheio de si.
Trajava um bello paletot de flanella azul, correcto, camisa de linho, sem collarinho; calça preta a balão, tendo a bocca da mesma justa aos sapatos, que eram de lona branca com tiras de couro amarello.
Falla bem, mas affectadamente.
Tirado o paletot para o exame medico legal, a camisa apresentava-se rasgada em diversos pontos, primeiramente nas mangas demontrando [sic] grande luta.
Então, por que foi matar um homem assim à tôa ? Perguntou um dos medicos.
Eu não matei porque fosse de minha vontade, respondeu o criminoso, fazendo rolar nas mãos o chapeu molle.
Elle provocou-te, bateu-te ?
Não senhor: eu estava apanhando muito, todos me davam de cacete e alguns até me ameaçavam de revólver em punho; então puxei de meu ferro [grifo no original] para defender-me e fiz assim... (e sacudiu ambas as mãos em semi-círculo horizontal, como abrindo caminho).
...
... e a minha faca foi ferir o moço, entrando-lhe no peito.
Eu não sou malandro, não senhor, continuou Alfredo, tanto que quando fui para aquelle café, havia sahido de meu trabalh nas obras do Cel. Santos Rodrigues.
Alfredo apresentava um ferimento contuso na testa e, depois do exame, foi recolhido á Casa da Detenção.
Como vêem os leitores, Alfredo da Bahiana resolveu-se a confessar o crime."
(em 15/10/1900)


TEXTO No. 6: DE OLHO NA FAVELLA
Natureza e data do texto:
Trecho do artigo "Onde moram os pobres", de Everaldo Backheuser, publicado na revista Renascença, RJ, Ano II, maio de 1905 (Apud ZYLBERBERG,Sônia, Morro da Providência: Memórias da 'Favella'. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.p.26)

"O ilustre Dr.Passos, ativo e inteligente Prefeito da Cidade, já tem as suas vistas de arguto administrador voltadas para a 'Favella' e em breve providências serão dadas de acordo com as leis municipais, para acabar com esses casebres. É interessante fazer notar a formação dessa pujante aldeia de casebres e choças no coração mesmo da capital da República, eloquentemente dizendo pelo seu mudo contraste a dois passos da Grande Avenida, o que é esse resto de Brasil pelos seus milhões de quilômetros quadrados."


"TEXTO" N.7: "UMA LIMPEZA INDISPENSÁVEL"
Natureza e data do texto:
Charge publicada na revista O Malho em 1908, com o título acima, faz referência aos planos de Oswaldo Cruz, à frente da Delegacia de Hygiene: evacuar os moradores do Morro da Favella em dez dias. Isto acabou não ocorrendo. Coleção Nosso Século, volume 1, apud ZYLBERBERG,Opus cit., p.27.








TEXTO No. 8: "FORA DA VIDA"
Natureza e data do texto:
Crônica de Olavo Bilac com o título acima, datada de 1908 e publicada também no livro Ironia e Piedade, em 1916 (Rio de Janeiro,Francisco Alves). Apud ZYLBERBERG, Opus cit., pp.109-110.

Texto:
"Perco-me muitas vezes, por dever profissional, visitando escolas, no alto destes morros que intumescem de espaço a espaço a topografia do Rio de Janeiro – Conceição, Pinto, Livramento, confusos dédalos de ladeiras íngremes, em que se acastelam e equilibram a custo casinhas tristes, de fachadas roídas e janelas tortas, cujo conjunto dá a impressão de um asilo de velhas desamparadas e inválidas, encostando-se e aquecendo-se umas às outras.
É uma cidade à parte...
O Rio já é uma aglomeração de várias cidades, que pouco a pouco se vão distinguindo, cada uma adquirindo uma fisionomia particular e uma certa autonomia de vida material e espiritual. O bairro de Copacabana, por exemplo, um bairro nascido ontem, já tem a sua população fixa, o seu comércio, os seus passeios, os seus clubes – e até o seu jornal, O Copacabana, uma folha diária cujos redatores escrevem gravemente 'os interesses de Copacabana', como escreveriam 'os interesses de Roma, ou de Berlim, ou de NY'.
Mas de todas as cidades, que formam a federação das urbes cariocas, a mais original é a que se alastra pelos morros da zona ocidental, e onde vive a nossa gente mais pobre, denso formigueiro humano, onde habitualmente se recruta o pessoal barulhento das bernardas (revoltas), de motins contra a vacinação obrigatória, contra o aumento do preço das passagens dos bondes, contra a fixação do preço máximo das carroças.
É essa a mais original de nossas subcidades (...) a mais original e a mais triste. Algumas ladeiras desses morros não conheceram nunca, por contato, ou sequer de vista, uma vassoura municipal. Em muitas delas, apodrecem lentamente ao sol, durante semanas e semanas, sob nuvens de moscas, cadáveres de galinhas e de gatos. E as faces humanas que por lá se encontram têm quase todas esse ar de apática indiferença que vem do largo hábito da miséria e do desânimo.
Indiferença por tudo, pelo prazer e pelo sofrimento, pela vida e pela morte...
Há nesses morros muita gente que nada sabe do que se passa cá embaixo, e cujo espírito só tem como horizonte vital o espaço limitado por duas ou três ladeiras tortuosas e sujas.
Há poucos dias, no morro da Conceição, lá no alto, encontrei uma velha mulher, lavadeira, que não vem ao Centro da cidade há trinta e três anos ! Trinta e três anos – toda uma existência !
Foi ali morar, em 1874 e ali tem vivido, sem curiosidade, sem desejos, sem aspirações, ganhando o minguado pão, vendo todos os dias as mesmas pessoas, dormindo todas as noites o mesmo sono, sem compreender a significação do barulho que estronda na planície – conflitos, festas, tragédias, apoteoses, revoluções, lutos, glórias, desgraças. Fizemos cá embaixo a Abolição e a República, criamos e destruímos Governos, passamos por períodos de vacas gordas e por períodos de vacas gordas e por períodos de vacas magras, mergulhamos de cabeça para baixo no sorvedouro do 'Encilhamento', andamos beirando o despenhadeiro da bancarrota, rasgamos em avenidas o velho seio urbano, trabalhamos, penamos, gozamos, deliramos, sofremos – vivemos. E, tão perto materialmente de nós, no seu morro, essa criatura está lá trinta e três anos tão moralmente afastada de nós, tão separada de fato da nossa vida, como se, recuada no espaço e no tempo, estivesse vivendo no século atrasado, e no fundo da China ou da Austrália...
Não sei se é desgraça ou felicidade isso. Talvez seja felicidade: vibrar é sofrer; quando não é sofrer, é fazer sofrer; e essas criaturas apagadas e tristes, apáticas e inexpressivas, que vivem fora da vida, se não têm a glória de ter praticado algum bem, podendo [sic] ao menos ter o consolo de não ter praticado mal nenhum, consciente ou inconscientemente...

TEXTO No. 9: "OS LIVRES ACAMPAMENTOS DA MISÉRIA"
Natureza e data do texto:
Texto de João do Rio, o controvertido jornalista e escritor que nos deixou brilhantes relatos da vida cotidiana dos cariocas, muitas vezes descrita com um misto de fascínio e horror, como nesta crônica acerca do morro de Santo Antônio. Publicada em Vida Vertiginosa, 1917, apud Histórias da Gente Alegre, Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.pp.79-84

"Certo já ouvira falar das habitações do morro de Santo Antônio, quando encontrei, depois da meia-noite, aquele grupo curioso – um soldado sem número no boné, três ou quatro mulatos de violão em punho. Como olhasse com insistência tal gente, os mulatos que tocavam, de súbito emudeceram os pinhos, e o soldado, que era um rapazola gigante, ficou perplexo, com um evidente medo. Era no Largo da Carioca. Alguns elegantes nevralgicamente conquistadores passavam de ouvir uma companhia de óperas italiana e paravam a ver os malandros que me olhavam e eu que olhava os malandros num evidente início de escandalosa simpatia. Acerquei-me.
Vocês vão fazer uma seresta ?
Sim senhor.
Mas aqui no largo ?
Aqui foi só para comprar um pouco de pão e queijo. Nós moramos lá em cima, no morro de Santo Antônio...

Eu tinha do morro de Santo Antônio a idéia de um lugar onde pobres operários se aglomeravam à espera de habitações, e a tentação veio de acompanhar a seresta morro acima, em sítio tão laboriosamente grave. Dei o necessário para a ceia em perspectiva e declarei-me irresistivelmente preso ao violão. Graças aos céus não era admiração. Muita gente, no dizer do grupo, pensava do mesmo modo, indo visitar os seresteiros no alto da montanha.
- Seu tenente Juca – confidenciou o soldado – ainda ontem passou a noite inteira com a gente. E ele quando vem, não quer continência nem que se chame de seu tenente. É só Juca... Vossa Senhoria também é tenente. Eu bem que sei...
Já por esse ponto da palestra nós íamos nas sombras do Teatro Lírico. Neguei francamente o meu posto militar, e começamos a subir o celebrado morro, sob a infinita palpitação das estrelas. Eu ia à frente com o soldado jovem, que me assegurava do seu heroísmo. Atrás o resto do bando tentava cantar uma modinha a respeito de uns olhos fatais. O morro era como outro qualquer morro. Um caminho amplo e maltratado, descobrindo de um lado, em planos que mais e mais se alargavam, a iluminação da cidade, no admirável noturno de sombras e luzes, e apresentando de outro as fachadas dos prédios familiares ou as placas de edifícios públicos – um hospital, um posto astronômico. Bem no alto, aclareada ainda por um civilizado lampião a gás, a casa do doutor Pereira Reis, o matemático professor. Nada de anormal e nem vestígio de gente.
O bando parou, afinando os violões. Essa operação foi difícil. O cabrocha que levava o embrulho do pão e do queijo, embrulho a desfazer-se, estava no começo de uma tranqüila embriaguez, os outros discutiam para onde conduzir-me. O soldado tinha uma casa. Mas o Benedito era o presidente do Clube das Violetas, sociedade cantante e dançante com sede lá em cima. Havia, também, a casa do João Rainha. E a casa da Maroca ? Ah! mulher! Por causa dela já o jovem praça levara três tiros... Eu olhava e não via a possibilidade de tais moradas.
Você canta, tenente ?
Canto, mas vim especialmente para ouvir e ver o samba.
Bom. Então, entremos.
Desafinadamente, os violões vibraram. Benedito cuspiu, limpou a boca com as costas da mão, e abriu para o ar sua voz áspera:

O morro de Santo Antônio
Já não é morro nem nada...

Vi, então, que eles se metiam por uma espécie de corredor encoberto pela erva alta e por algum arvoredo. Acompanhei-os, e dei num outro mundo. A iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade. O caminho, que serpeava descendo, era ora estreito, ora largo, mas cheio de depressões e buracos. De um lado e de outro casinhas estreitas, feitas de tábuas de caixão com cercados, indicando quintais. A descida tornava-se difícil. Os passos falhavam, ora em bossas de relevo, ora em fundões perigosos. O próprio bando descia devagar. De repente parou, batendo a uma porta.
Epa, Baiano! Abre isso...
Que casa é esta ?
É um botequim.
Atentei. O estabelecimento, construído na escarpa, tinha vários andares, o primeiro à beira do abismo, o outro mais embaixo sustentado por uma árvore, o terceiro ainda mais abaixo, na treva. Ao lado uma cerca, defendendo a entrada geral de tais casinhotos. De dentro uma voz indagou quem era.
É o Constanço, rapaz, abre isso. Quero cachaça.
Abriu-se a porta lateral e apareceu primeiro o braço de um negro, depois parte do tronco e finalmente o negro todo. Era um desses tipos que se encontram nos maus lugares, muito amáveis, muito agradáveis, incapazes de brigar e levando vantagem sobre os valentes. A sua voz era dominada por uma voz de mulher, uma preta que de dentro, ao ver quem pagava, exigiu logo seiscentos réis pela garrafa.
- Mas, seiscentos, dona...
- À uma hora da noite, fazer o homem levantar em ceroulas, em isco de uma constipação...
Mas, Benedito e os outros punham em grande destaque o pagador da passeata daquela noite,e, não resistindo à curiosidade, eles abriram a janela da barraca, que ao mesmo tempo serve de balcão. Dentro ardia, sujamente, uma candeia, alumiando prateleiras com cervejas e vinhos. O soldadinho, cada vez mais tocado, emborcou o copo para segredar coisas. O Baiano saudou com ar de quem já foi criado de casa rica. E aí parados enquanto o pessoal tomava Parati como quem bebe água, eu percebi, então, que estava numa cidade dentro da grande cidade.
Sim. É o fato. Como se criou ali aquela curiosa vila de miséria indolente ? O certo é que hoje há, talvez, mais de quinhentas casas e cerca de mil e quinhentas pessoas abrigadas lá em cima. As casas não se alugam. Vendem-se. Alguns são construtores e habitantes, mas o preço de uma casa regula de quarenta a setenta mil-réis. Todas são feitas sobre o chão, sem importar as depressões do terreno, com caixões de madeira, folhas de Flandres, taquaras. A grande artéria da urbs era precisamente a que nós atravessávamos. Dessa, partiam várias ruas estreitas, caminhos curtos para casinhotos oscilantes, trepados uns por cima dos outros. Tinha-se, na treva luminosa da noite estrelada, a impressão lida na entrada do arraial de Canudos, ou a funambulesca idéia de um vasto galinheiro multiforme. Aquela gente era operária ? Não. A cidade tem um velho pescador, que habita a montanha há vários lustros, e parece ser ouvido. Esse pescador é um chefe. Há um intendente geral, o agente Guerra, que ordena a paz em nome do doutor Reis. O resto é cidade. Só na grande rua que descemos encontramos mais dois botequins e uma casa de pasto, que dá ceias. Estão fechadas, mas basta bater, lá dentro abrem. Está tudo acordado e o Parati corre como não corre a água.
Nesta empolgante sociedade, onde cada homem é apenas um animal de instintos impulsivos, em que ora se é muito amigo e grande inimigo de um momento para outro, as amizades só se demonstram com uma exuberância de abraços e de pegações e de segredinhos assustadora – há o arremedo exato de uma sociedade constituída. A cidade tem mulheres perdidas, inteiramente da gandaia. Por causa delas tem havido dramas. O soldadinho vai-lhes à porta, bate:
- Oh, Alice ! Alice cachorra, abre isso ! Vai ver que aí está o cabo ! Eu já andei com ela três meses.
- Que admiração, gente! ... Todo o mundo !
Há casas de casais com união livre, mulheres tomadas. As serenatas param-lhes à porta, há raptos e, de vez em quando, os amantes surgem rugindo, com o revólver na mão. Benedito canta à porta de uma:

Ai! Tem pena do Benedito
Do Benedito Cabeleira.

Mas também há casas de famílias, com meninas decentes. Um dos seresteiros, de chapéu panamá, diz de vez em quando:
Deixemos de palavrada, que aqui é família !
Sim, são famílias, e dormindo tarde porque tais casas parecem ter gente acordada, e a vida noturna ali é como uma permanente serenata. Quase todos são operários, 'mas estão parados'. Eles devem descer à cidade, e arranjar algum cobre. As mulheres, decerto, também descem para apanhar fitas nas casas de móveis, amostras de café na praça – 'troços por aí'. E a vida lhes sorri e não querem mais e não almejam mais nada. Como Benedito fizesse questão, fui até a sua casa, sede também do clube das Violetas de que é presidente. Para não perder tempo, Benedito saltou a cerca do quintal e empurrou a porta, acendendo uma candeia. Eu vi, então, isso: um espaço de teto baixo, separado por uma cortina de saco. Por trás dessa parede de estopa, uma velha cama, onde dormiam várias damas. Benedito apresentou vagamente:
Minha mulher.
Para cá da estopa, uma espécie de sala com algumas figurinhas nas paredes, o estandarte do clube, o vexilo das Violetas embrulhado em papel, uma pequena mesa, três homens moços roncando sobre a esteira de terra fria ao lado de dois cães, e, numa rede, tossindo e escarrando, inteiramente indiferente à nossa entrada, um mulato esquálido, que parecia tísico. Era simples. Benedito mudou o casaco e aproveitou a ocasião para mostrar-me quatro ou cinco sinais de facadas e de balaços no corpo seco e musculoso. Depois, cuspiu:
Epa, José, fecha...
Um dos machos que dormiam embrulhados em colchas de chita ergueu-se, e saímos os dois sem olhar para trás. Era tempo. Fora, afinando os instrumentos, interminavelmente, os seresteiros estavam mesmo como paus-d'água e já se melindravam com referências à maneira de cantar de cada um. Então, resolvemos bater à porta da caverna de João Rainha, formando um barulho formidável. À porta – não era bem porta, porque abria apenas a parte inferior, obrigando as pessoas a entrarem curvadas – clareou uma luz, e entramos todos. Numa cama feita de taquaras dormiam dois desenvolvidos marmanjões, no chão João Rainha e um rapazola de dentes alvos. Nenhuma surpresa, nenhuma contrariedade. Estremunharam-se, perguntaram como eu ia indo, arranjaram com um velho sobretudo o lugar para sentar-me, hospitaleiros e tranqüilos.
Nós trouxemos ceia! – gaguejou um modinheiro.
Aí é que lembramos o pão e o queijo, esmagados, amassados entre o braço e o torso do seresteiro. Havia, porém, cachaça – a alma daquilo – e comeu-se assim mesmo, bebendo aos copos o líquido ardente. O jovem soldadinho estirou-se na terra. Um outro deitou-se de papo para o ar. Todos riam, integralmente felizes, dizendo palavras pesadas, numa linguagem cheia de imprevistas imagens. João Rainha, com os braços muito tatuados, começou a cantar.
O violão está no norte e você vai pro sul, comentou um da roda.
João da Rainha esqueceu a modinha. E, enquanto o silêncio se fazia cheio de sono, o cara de papo pro ar desfiou uma outra compridíssima modinha. Olhei o relógio: eram três e meia da manhã.
Então, despertei-os com três ou quatro safanões:
Rapaziada, vou embora.
Era a ocasião grave. Todos, de um pulo, estavam de pé, querendo acompanhar-me. Saí só, subindo depressa o íngreme caminho, de súbito ingenuamente receoso que essa tournée noturna não acabasse mal. O soldadinho vinha logo atrás, lidando para quebrar o copo entre as mãos.
Ó tenente, você vai hoje à Penha ?
Mas nem há dúvida.
E logo vem ao samba das V ioletas ?
Pois está claro.
Atrás, o bolo dos seresteiros berrava:

O morro de Santo Antônio
Já não é morro nem nada...

E quando de novo cheguei ao alto do morro, dando outra vez com os olhos na cidade, que embaixo dormia iluminada, imaginei chegar de uma longa viagem ao um outro ponto da terra, de uma corrida ao arraial da sordidez alegre, pelo horror inconsciente daquela miséria cantadeira, com a visão dos casinhotos e das caras daquele povo vigoroso, refestelado na indigência em vez de trabalhar, conseguindo bem no centro de uma grande cidade a construção inédita de um acampamento de indolência, livre de todas as leis. De repente, lembrei-me que a varíola cairia ali ferozmente, que talvez eu tivesse passado pela toca dos variolosos. Então, apressei o passo de todo. Vinham a empalidecer na pérola da madrugada as estrelas palpitantes e canoramente galos cantavam por trás das ervas altas, nos quintais vizinhos.

TEXTO No. 10: "SONO CALMO"
Natureza e data do texto:
Crônica de João do Rio, publicada em um dos seus livros mais famosos, A alma encantadora das ruas (1907).

"Os delegados de polícia são de vez em quando uns homens amáveis. Esses cavalheiros chegam mesmo, ao cabo de certo tempo, a conhecer um pouco da sua profissão e um pouco do trágico horror que a miséria tece na sombra da noite por essa misteriosa cidade. Um delegado, outro dia, conversando dos aspectos sórdidos do Rio, teve a amabilidade de dizer:
Quer vir comigo visitar esses círculos infernais ?(...)
À hora da noite quando cheguei à delegacia, a autoridade ordenara uma caça aos pivettes, pobres garotos sem teto, e preparava-se para a excursão com dois amigos (...)
O delegado sorria, preparando com o interesse de um maître-hôtel o cardápio das nossas sensações.
Afinal ergueu a bengala.
Em marcha!
Descemos todos, acompanhados de um cabo de polícia e de dois agentes secretos (...). É perigoso entrar só nos covis horrendos, nos trágicos asilos da miséria. Íamos caminhando pela Rua da Misericórdia, hesitantes ainda diante das lanternas com vidros vermelhos. Às esquinas, grupos de vagabundos e desordeiros desapareciam ao nosso apontar (...)
Há muitos desses covis espalhados pela cidade ? indagou o advogado (...)
- Em todas as zonas, meu caro.
Em cinco noites, visitando-os depressa, informou o agente, V.Sa. não dá cabo deles. É por aqui, pela Gamboa, nas ruas centrais, nos bairros pobres. Só na Cidade Nova, que quantidade! Isso não contando com as casas particulares, em que moram vinte e mais pessoas, e não querendo falar das hospedarias só de gatunos, os 'zungas'. (...)
O soldado bateu à porta com a mão espalmada. Houve um longo silêncio. O soldado tornou a bater. De dentro, uma voz sonolenta indagou:
Quem é ?
Abra! É a polícia! Abra!
O silêncio continuou. Nervoso, o delegado atirou a bengala à porta.
- Abra já! É o dr. delegado! Abra já! (...)
O mau cheiro era intenso.
Mostre-nos isso! Fez a autoridade, minutos depois.
Não há acusação contra a casa, há sr. doutor ?
Não sei, ande. (...)
E começamos a ver o rés-do-chão, salas com camas enfileiradas como nos quartéis, tarimbas com lençóis encardidos, em que dormiam de beiço aberto, babando, marinheiros, soldados, trabalhadores de face barbuda. Uns cobriam-se até o pescoço. Outros espapaçavam-se completamente nus.
A mando da autoridade superior, os agentes chegavam a vela bem perto das caras, passavam a luz por debaixo das camas, sacudiam os homens do pesado dormir. Não havia surpresa. Os pobres entes acordavam e respondiam, quase a roncar outra vez, a razão porque estavam ali, lamentavelmente. (...) O delegado, entretanto, gozava aquele espetáculo. (...)
Subamos ao último andar!
Havia com efeito mais um andar, mas quase não se podia lá chegar, estando a escada cheia de corpos, gente enfiada em trapos, que se estirava nos degraus, gente que se agarrava aos balaústres do corrimão – mulheres receosas da promiscuidade, de saias enrodilhadas. Os agentes abriam caminho, acordando a canalha com a ponta dos cacetetes. Eu tapava o nariz. A atmosfera sufocava. (...) Em cima, então, era a vertigem. A sala estava cheia. Já não havia divisões, tabiques, não se podia andar sem esmagar um corpo vivo. A metade daquele gado humano trabalhava; rebentava nas descargas dos vapores, enchendo paióis de carvão, carregando fardos. (...)
Grande parte desses pobres entes fora atirada ali, no esconderijo daquele covil, pela falta de fortuna. Para se livrar da polícia, dormiam sem ar, sufocados, na mais repugnante promiscuidade. (...)
- Não se emocione, disse o delegado. Há por aqui gatunos, assassinos, e coisas ainda mais nojentas. (...)
Não se sabia onde acabara o pesadelo, onde começara a realidade.
Basta, dizia o adido, basta. Já tenho uma dose suficiente.
Também é tudo a mesma coisa. É ver uma, é ver todas. (...)
Neste momento ouviu-se o grito de pega! Um garoto corria. O cabo precipitou-se.
Já outros dois soldados vinham em disparada. Era a caçada aos garotos, a 'canoa'. A 'canoa' vinha perto. Tinham pegado uns vinte vagabundos, e pela calçada, presos, seguidos de soldados, via-se, como uma serpente macabra, desenrolar-se a série de miseráveis trêmulos de pavor.
- Canalhas! Bradou o dr. Delegado. E ainda se queixam que eu os mande prender para dormir na estação.
Nós devíamos ter asilos, instruiu o adido.
- É verdade, os asilos, a higiene, a limpeza. Tudo isso é muito bonito. Havemos de Ter. Por enquanto Nosso Senhor, lá em cima, que olhe por eles!"


TEXTO No. 11: A FAVELLA NA DÉCADA DE 20
Natureza e data do texto:
Crônica de Orestes Barbosa acerca do Morro da Favella, publicada no livro Bambambã em 1923. O autor, de origem popular, autor do antológico "Chão de Estrelas", era um agudo cronista da vida carioca, que retratava de forma original (usando gírias de época) e inusitada (esteve preso e escreveu crônicas da prisão). Edição utilizada: Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1993. 2.ed. (Biblioteca Carioca).

"A FAVELA
O morro da Favela ficou como uma lenda na cidade, entretanto, nada mais real do que os seus mistérios.
Pouca gente já subiu aquela montanha – raríssimas pessoas chegaram a ver e a compreender o labirinto das baiúcas, esconderijos, sepulturas vazias e casinholas de portas falsas que formam toda a originalidade do bairro terrorista onde a polícia do 8º distrito não vai.
Os chauffeurs, depois de dez horas da noite, não aceitam passagem para a rua da América.
Os bondes depois dessa hora passam a nove pontos, e o motorneiro e o condutor levam nas mãos as suas pistolas engatilhadas.

**
A Favela não é mesmo graça.
Quem vai pela rua da América bem sabe que já nesta rua devia sentir temor...
Ao longe a Favela tem até uma aparência poética – aqueles casebres que dão idéia de pobreza resignada, alguns arbustos descontentes com o terreno em que vivem, e os lampiões, em pontos diferentes, tortos, como bêbados, piscando o olhar cá para baixo. Mesmo de dia, observada por um visitante, que lhe desconheça a vida íntima, a Favela é tristonha e ordeira – tem uns ares de sono, de acabrunhamento, como se pensasse na sua própria vida.
O leitor já visitou o Museu do Crime, na Polícia Central ?
Lá está uma caveira trespassada por um punhal.
É o crânio de um marinheiro que foi apunhalado assim na Favela.
Sem mutilar-lhe o crânio não se podia tirar o punhal.
Para que mutilar ?
Foi sepultado assim.
Fizeram anos depois, por ordem da polícia, a exumação do cadáver e o crânio, como um ex-libris futurista, lá está mostrando como a Favela no crime é original.
Para que um agente da autoridade role morto naquelas rampas – um agente ou um bambambã que faça qualquer presepada num samba, ou queira tapear na divisão de um toco – não há ensaios.
As amantes dos moradores da Favela vivem, de dia, quase em ociosidade.
De quando em quando, uma delas surge, de uma biboca, com uma lata d'água à cabeça.
E nisto consiste a maior ocupação das famílias daquele bairro.
Não têm casa para arrumar.
Os filhos não vão ao colégio.
Não há também muita roupa para lavar.
Andam em frangalhos.
Negras de longas mamas balançando entre quatro trapos de corpinho, com a saia sungada nas nádegas, mostrando toda a perna, passam o dia na tagarelice das vendas sórdidas – que são os bars chics dali – ou nas pocilgas, deitadas em esteiras descosidas, praticando o vício.
Há sempre, nesses tambos [covis], barbianas [amásias de gatunos] de carnes luzidias e fogosas – odaliscas de galho de arruda atrás da orelha e cachimbo de cabo de bambu.
Os gatunos, às horas mortas, sobem ali e durante o dia por ali ficam, porque o chefe de polícia da Favela não é desembargador nem general – é o José da Barra, com quem o chefe de Polícia da capital da República não quer conversa.
Macaco é outro.
Quem quiser que pegue em rabo de foguete.
O José da Barra é cabo eleitoral de gente importante, e, além disso, se ele quiser, ninguém sobe lá.
Quando chega à delegacia do 8º distrito a notícia de que há dança de rato na Favela, o comissário de serviço fica surdo no telefone:
Não estou ouvindo nada. Fale mais alto!
Olha, seu Sampaio: quem fala aqui é o guarda rondante da travessa Rego Barros.
Mas que é? Não entendo!...
- O João do Brum e a quadrilha assaltaram, há pouco, um chauffeur aqui. Para que o homem não pudesse guiar o automóvel, retalharam-ne as mãos à navalha. E o João Brum deu-lhe ainda um tiro no pé.
Como ?
O João do Brum...
Não escuto nada. A linha está horrível...
Desliga e diz para o prontidão da delegacia:
Esta Light...
Se o guarda toma o alvitre de vir falar pessoalmente ao comissário, este diz, com uma voz comovida:
- Você resolva. Você é um policial excelente. Vá lá. Fale ao José da Barra. Aonde está o João do Brum ? Está na casa dele ? Pois vá lá. Fale em meu nome. Tudo o que você fizer está bem feito.
- Quando o policial é novato, fica cheio de vento e vai ver mesmo a coisa de perto.
E morre – o que já tem acontecido a uma porção.
O comissário fica fresquinho, na delegacia, fazendo a parte e tomando café.
O chefe de polícia, José da Barra, é um personagem que se impôs pela valentia e pelo aparente bom senso das suas decisões.
Os criminosos analfabetos que vivem ali na mais impune liberdade, elegeram, sem sentir, um chefe que é esse José.
Aquele mono de aparência tranqüila tem a sua vida própria – vida intensa, misteriosa, que, à primeira vista, ninguém pode penetrar.
O criminoso tem seus princípios.
Um gatuno pode roubar um cidadão, menos um gatuno.
Nós dizemos que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Um larápio que vá atrás desse brocardo, para ver o que lhe acontece...
É preciso ser leal na carreira do crime.
Vá assaltar a casa do relojoeiro Laboriau, em Santa Teresa.
Estrangule o negociante Castro Guedes, na rua Canabarro, mas deixe em paz a roupa nova do moleque Tancredo, que custou um susto e uma carreira.
Não está direito ?
José da Barra existe por isto: é o chefe celerado dos celerados.
E os criminosos compreendem a utilidade pública do José da Barra, porque sem o José da Barra o Três de Copas afanaria aquele terno de roupa do moleque Tancredo e seria um nunca mais se acabar.
O José da Barra dirige tudo e a vida corre sem perturbação.
Se a polícia achar que aquilo deve mesmo acabar, leve para lá uma força de linha e bombardeie.
Já fica sabendo que bombardeia casebres vazios.
A população da favela é oscilante.
A Favela, quando vê que não pode matar a polícia, não aceita a luta e foge para todos os lados em que tem saída.
Fugirá, por isso, em tempo.
E quando a força de linha desguarnecer a região conflagrada, a população voltará toda, bela e formosa.

**
Como Madureira e D.Clara, a Favela reúne o que há de eminente no nosso mundo criminal.
Mas, também em Madureira e D.Clara, se o leitor saltar, alta noite, há de dizer consigo mesmo que tudo isso é mentira dos cronistas dos jornais.
O leitor principiará vendo tudo deserto e em silêncio.
Mas se o leitor sair da estação, talvez não volte para desmentir o escritor...
Se entrar pela travessa Carlos Xavier ou pelas bananeiras verá o monte [jogo de cartas] fervendo em mesas toscas com os punhais cruzados num sinal apavorante de união ou morte...
Marinheiros, soldados, fuzileiros navais, ladrões do mar e rebombeiros das docas Floriano arriscam, sofregamente, as moedas escassas, num jogo que é comumente o prólogo do último dia, como o foi para o Vicente Vigorito, negociante de bois, apunhalado e saqueado por João Agi que era o seu amigo do coração...

**
Então o Rio é um mistério ?
O leitor quer saber.
Eu digo o que sei – o Rio tem algumas novidades em artigo nacional...
O Rio tem a Favela, D.Clara e Madureira; tem o Portugal Pequeno, o Buraco Quente e o Recreio das Paraguaias...
Nesses bairros vive um povo diferente dos outros arrabaldes e subúrbios daqui.
Botafogo tem o High-Life, o Club dos Diários e as pensões chics – o Recreio das Paraguaias tem o rendez-vous da Emiliana, uma preta obesa que fornece mulheres e vatapá.
Botafogo toma ópio na rua do Roso ou no beco dos Ferreiros, que não oferece perigo, porque os bandidos não gostam de ópio e não vão lá – o largo do Rocio janta na casa da Marocas ou na Georgina, mulata macia da rua Morais e Vale...
A um baile do Lírio do Aragão, que custa 1$100 (1$000 a entrada e um tostão do chapéu), o dr. Humberto Gottuzo não vai.
Vai à casa da Olímpia, à rua Carlos de Carvalho, onde também vai o senador Alfredo Ellis, porque ali, o mais que lhe pode suceder é ser pilhado de cuecas, com as calças penduradas no bico de gás, como naquele dia em que o delegado Lucena, procurando a demissão, fez aquela canoa [diligência policial] sensacional.
Há, sem dúvida, duas cidades no Rio.
A Misteriosa é a que mais me encanta.
Eu gosto de vê-la na luta contra a outra – a cidade que todos têm muito prazer em conhecer...
Tão viciado e tão perverso quanto a Favela, mas muito mais obtuso, Botafogo não me entusiasma porque é postiço.
Na Favela o observador vê uma sociedade de espíritos excepcionais.
Talvez a miséria apure os sentidos.
Seja como for, o pessoal do banga la fumenga [baile na zona dos malandros] mostra aos olhares curiosos a beleza de uma batalha em que o talento, a graça e a coragem aparecem na mais franca exibição.
Sem imunidades parlamentares, sem dinheiro para comprar juízes, promotores ou desembargadores da Corte de Apelação, a Favela mata sempre que é preciso matar.
Sem ter sido colega de turma do dr. Pontes de Miranda, a Favela tem talento e humor de fazer inveja.
Cada vagabundo da rua é uma inteligência espontânea, criadora de frases que logo a cidade toda aceita e não sabe criar.
Da Favela e zonas congêneres saem a modinha e o samba que as melindrosas mandam comprar, cantam e dançam, com vontade logo de meter a perna de uma vez e quebrar no maxixe autêntico, que é muito mais gostoso que o fox-trott.
E mais prático...

**

Pai João
Pai José
Hoje você me maltrata
Amanhã, você me qué...

**

O povo desses locais escusos é próprio.
São como são, naturalmente, na sua mistura, no seu imprevisto, no seu horror.
E por isso tudo é admirável.
Eu gosto da Favela."

TEXTO No. 12: A FAVELA SEGUNDO UM JORNALISTA
Natureza e data do texto:
Benjamin Costallat (1897-1961), bacharel em Direito (RJ) foi jornalista e literato, tendo "nacionalizado" o folhetim com sucesso. Escreveu uma série de crônicas encomendadas pelo Jornal do Brasil acerca dos subterrâneos da cidade do Rio de Janeiro e que posteriormente serão publicadas sob o título de Mistérios do Rio em 1924. Edição utilizada: Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1995. (Biblioteca Carioca).

"A FAVELA QUE EU VI

Vamos ao morro do crime ?...
Vamos...
A Favela, ao longe, com os seus casebres minúsculos, parecia um presépio imenso.
Descemos na Rua da América. Uma das ruas mais sórdidas do Rio de Janeiro. Enlameada, imunda.
Ligada ao morro do Pinto pela Ponte dos Amores, A Favela, com seus casebres, rebrilhava ao sol.
Ponte dos Amores!...
Ela bem que podia se chamar Ponte dos Suspiros, como a sua colega de Veneza.
Apesar de não ser de mármore, como a ponte dos doges, e sim de madeira muito tosca, a ponte que liga o Pinto à Favela tem visto também suspirar muita gente. Tem visto muito suspiro de agonia...
Há bem pouco tempo, assaltava-se em pleno dia, na Ponte dos Amores. À noite, matava-se.
Hoje, tudo está melhor.
Mas ainda é perigosa, muito perigosa, a ponte de madeira, agasalhadora dos amores violentos dos malandros e das crioulas...
A rua da América estendia-se, poeirenta.
À sua frente, do outro lado de um enorme paredão de pedras, cruzavam-se trens, apitando, enfumaçados, em manobras pelos desvios, a toda velocidade pelas linhas, com ruídos de ferros, numa iluminação de vapor.
Bondes passavam levantando poeira.
Vinha um automóvel, aos solavancos, pelos buracos da rua.
Casas de sobrado, muito feias, muito sujas, todas fechadas, como se seus habitantes ainda estivessem dormindo àquela hora de manhã resplandescente.
- Quase todos os moradores desta Rua da América são ladrões e intrujões. O intrujão é o negociante do roubo. É o comprador e vendedor do objeto roubado... Com a Favela, esta zona daqui é a que mais fornece pensionistas para as prisões. Lá em cima, no morro, é o crime, é a facada, a violência, a vingança, a valentia; cá embaixo, na Rua da América, é o roubo, é a astúcia, é o profissional da gazua e do pé-de-cabra...
Mas então as especialidades estão assim tão bem separadas ?
- O crime tem seus especialistas e sua perfeita organização. Assim é que no morro do Pinto só moram vigaristas. Não há confusão. Cada especialista no crime tem a sua zona predileta para morar. E não é, geralmente, a zona em que ele age. O ladrão não mora no lugar onde ele opera. Se você quiser estar garantido contra o roubo, venha morar, com toda a paz de espírito, aqui na rua da América...
- Não, muito obrigado...
Tínhamos chegado à subida da Favela, uma das muitas entradas do morro sinistro.
Quando as turmas de agentes dão batidas na Favela, para prender um criminoso renitente, refugiado e escondido no alto do morro, os policiais são distribuídos pelas várias entradas. Combinado o ataque para uma determinada hora, produz-se um verdadeiro assalto, subindo polícia por todos os lados, pela Saúde, pela Gamboa, pela Marítima e pelo Pinto.
Estávamos na subida que desemboca na Rua da América e que é conhecida por 'Pedra Lisa'.
É um caminho de cabras. Não se anda, gravita-se. Os pés perdem a função normal de andar, transformam-se em garras.
Primeiro é uma rampa forte, talhada na própria rocha. Depois são pequenos degraus – e que degraus ! – esperanças de degraus, degraus esboçados na rocha viva, escorregadios, perigosos, traiçoeiros; e lá embaixo é a rua, o precipício, a grande possibilidade de se quebrar o pescoço.
Anda-se. Sobe-se. Vai-se para adiante como por um milagre.
E quanto mais se sobe, mais se arrisca um tombo fatal, a uma queda na pedreira imensa.
Falavam-me sempre do perigo de subir à Favela. Nos seus terríveis valentes. Nos seus malandros que assaltam com a mesma facilidade com que se dá bom-dia.
O maior perigo que encontrei na Favela foi o risco, a cada instante, de despencar-me de lá de cima pela pedreira ou pelo morro abaixo.
E dizer que há uma população inteira que todos os dias desce e sobe a Favela, mulheres que fazem o terrível trajeto com latas cheias de água na cabeça, e bêbedos, alegres de cachaça, as pernas bambas, ziguezagueando, por cima dos precipícios, sem sofrer um arranhão!...
Os pequeninos casebres feitos de latas de querosene também suspendem-se no ar, por cima de verdadeiros abismos, num milagre de equilíbrio, mas também não caem.
Deus protege a Favela!...
E a Favela merece a proteção divina porque ela é alegre na sua miséria.
Aquela gente, que não tem nada, dá uma profunda lição de alegria àqueles que têm tudo.
Sem higiene, sem conforto, naqueles pequeninos casebre fétidos e imundos, que se arriscam, a cada instante, a voar com o vento ou a despencar-se lá de cima; aquela população de homens valentes – estivadores, carvoeiros, embarcadiços – e de mulheres anemiadas e fracas, e de crianças mal alimentadas e em trapos, cria porcos, bebe cachaça, toca cavaquinho e canta!...
À noite, tudo samba.
Apesar da miséria em que vive, toda a Favela, sambando, é feliz sob um céu salpicado e lindo de estrelas!...
A Favela não tem luz. Não tem esgotos. Não tem água. Não tem hospitais. Não tem escolas. Não tem assistência. Não tem nada...
Mas a Favela é alegre, lá em cima de seu esconderijo, com o maravilhoso panorama da cidade que se desdobra aos seus pés.
A Favela que samba, quando deveria chorar, é um maravilhoso exemplo para aqueles que têm tudo e ainda não estão satisfeitos...
Pobre e admirável Favela !...
Subimos, fomos subindo.
A Favela não tem ruas.
As choupanas se fazem umas sobre as outras, à vontade do proprietário.
O terreno é de ninguém, é de todos...
A sarjeta, a rua, o esgoto, é tudo a mesma cousa, e essa mesma cousa é uma enorme vala onde se passa aos pulos, saltando-se de buraco em buraco, e onde os porcos engordam, imensos e sonolentos, e as porcas, de ventre para o ar, as mamas inchadas de leite, alimentam a voracidade de uma quantidade de porquinhos...
A Favela tem seu comércio. Comércio exclusivamente feito de vendas, onde o parati é artigo de primeira necessidade.
As vendas são construídas pelo mesmo processo da lata de querosene, pregadas umas nas outras, tendo as fachadas mais fantasistas, conforme os rótulos das latas e a felicidade com que foram pregadas.
É um estilo que não se vê na Avenida Atlântica.
É o estilo próprio e inconfundível da Favela !
Estamos no 'quarteirão' denominado 'Portugal Pequeno', zona de portugueses.
Aqui não há cinema ?
Fizemos essa pergunta a uma negra, ainda moça e faceira, que na porta de seu casebre de zinco procurava alisar a carapinha.
Pra que cinema ?
E os olhos brilhando de inteligência e de malícia, a crioula caiu numa grande gargalhada.
- Cinema ? Oh! meu santo ! Pra quê ? Mas não é 'perciso' ! Temos aqui cinema todo dia, toda hora. Olhe, ainda a semana passada, 'tá' vendo aquele barracão vermelho, lá 'prus' lado do 'Buraco Quente', uma crioula pegou fogo nas suas saias com querosene e se alumiou toda que nem uma fogueira ! Tudo isso por causa de um menino bonito, de um 'gigolote', como vocês chamam lá embaixo!... 'Pra' que cinema ? Temos cinema todos os dias. Mulheres nuas, tiros, facadas, paus-d'água. 'Pra' que cinema na Favela, se a Favela já é um cinema ? 'Pra' que cinema, meu santo ?...
A vida aqui é boa ?
- É, vivo com o meu homem que trabalha no carvão dos 'navio'. É português, mas chega preto em casa...
O homem é ciumento ?
- 'Terrive' ! ... Não me deixa nunca ir lá embaixo sem ele... Qualquer coisa que 'percise': fósforos, feijão, arroz, ele mesmo é que traz ! Qualquer desconfiança que tenha, lá vem bordoada.
A negra suspirou:
- É, mas sou feliz. Tenho experiência. Deixei aquela 'bagunça' lá embaixo e agora vivo quietinha no meu canto... Já é tempo de descansar!...
(...)
O Rio desdobrava-se, com as suas casarias minúsculas, numa extensão imensa. O canal do Mangue era uma reta de palmeiras, pequeninas, como as árvores japonesas. As estradas de ferro, rasgando a cidade de trilhos, pareciam um brinquedo de criança. Na bafa, o Minas Gerais tinha proporções de um couraçado de bazar...
Estávamos, em plena Favela, fora do mundo.
Vinha-me, então, ao espírito, a crônica terrível do morro sinistro, o morro do crime.
Encravada no Rio de Janeiro, a Favela é uma cidade dentro da cidade. Perfeitamente diversa e absolutamente autônoma. Não atingida pelos regulamentos da prefeitura e longe das vistas da Polícia.
Na Favela ninguém paga impostos e não se vê um guarda civil. Na Favela, é a lei do mais forte e do mais valente. A navalha liquida os casos. E a coragem dirime todas as contendas.
Há muito crime, muita morte, porque são essas as soluções para todos os gêneros de negócios – os negócios de honra como os negócios de dinheiro.
Na Favela, não há divórcios, porque ninguém se casa. Não se fazem contratos. Não há inquilinos, nem senhorios. Não há despejos.
Se o inquilino é mais forte do que o senhorio, o aluguel nunca é pago. Se o senhorio for mais valente, então, sim, a casa é paga, pontualmente, todos os começos do mês...
É a lei de inquilinato da Favela !
A bofetada e a navalha resolvem tudo...
É natural que os valentes e os malandros procurem a Favela, como uma moradia ideal. É um refúgio e um paraíso.
Precisam de dinheiro ? Vão buscá-lo no bolso dos outros.
Assim viviam Sete Coroas e seus companheiros.
Assaltavam, roubavam, matavam com uma simplicidade comovedora.
Durante a [epidemia de gripe] 'espanhola', subiu um padre à Favela para distribuir esmolas entre as famílias necessitadas.
Os malandros arrancaram a batina do padre, deram-lhe uma formidável surra e lhe levaram todo o dinheiro !...
Nada mais comum.
Mas, um dia, chegou à Favela um homem – Zé da Barra. Vinha da Barra do Piraí. Já trazia grande fama. Suas proezas eram conhecidas. Era um valente, mas um grande coração. E Zé da Barra chegou e dominou a Favela...
E a Favela, que não conhece polícia, não conhece impostos, não conhece autoridades, conheceu Zé da Barra e a ele teve que obedecer !
E Zé da Barra ficou sendo o chefe incontestável da Favela !
Para defender o seu prestígio, Zé da Barra tem a sua coragem e a sua força. E, principalmente, um formidável cacete que cai como um raio na cabeça dos malandros. Ele também é capoeira. Ele também é valente. O rei dos valentes. E, todos os dias, em rixas, em barulhos, em 'bagunças', ele tem que defender o seu reinado...
A casa de Zé da Barra, o presidente da pequena república da Favela, é a única que tem telhado, feito de telha, de boa e verdadeira telha francesa.
É também a maior venda do morro, onde o consumidor tem um legítimo balcão de madeira para beber o seu parati.
Quando lá chegamos, Zé da Barra veio ao nosso encontro, sorridente, amável, os pés espalhados, o andar moroso dos malandros.
'Seu' José, viemos ver essa Favela tão falada...
- Agora está tudo calmo por aqui. Só a semana passada é que houve uma morte. Uma rixa depois de um samba. Mas agora está tudo tranqüilo.
- Olho para Zé da Barra. É um mulato alto, forte, corpulento, o ar simpático, exprimindo-se bem. Tem a fisionomia autoritária e boa de um legítimo chefe. E como um legítimo chefe oferece-nos a sua hospitalidade e o seu almoço.
Almoçamos com Zé da Barra. E nunca comi uma galinha tão gostosa !
À hora do café, acesos os charutos, o chefe da Favela nos contou a sua história:
- Cheguei da Barra do Piraí ainda moço. Mas já trazia o meu prestígio. Aqui na Favela tenho lutado muito, mas tenho sido, graças a Deus, feliz ! Várias emboscadas têm me sido armadas. Mas tenho me saído bem de todas elas. A última vez escapei por milagre. Ia subindo o morro, tarde da noite, quando atrás das pedras alvejaram-me a tiros.
(...)

Não podíamos deixar o morro, sem visitar o 'Buraco Quente', a zona mais perigosa da Favela, a zona em que Sete Coroas imperou, espalhando o terror e a morte.
Zé da Barra nos dissera:
- Sete Coroas não era o pior. Foi o que ganhou mais fama. Mas não era o pior. Terríveis eram seus dois companheiros que morreram: o Camisa e o Benedito.
Morreram os dois ?
- Morreram. O Camisa morreu num pavoroso tiroteio com a polícia, aqui no Buraco Quente...
E o Benedito ?
- Ah! O Benedito foi encontrado morto. Mas, na véspera, ele tinha sido descoberto pela polícia na casa de uma velha, onde havia se refugiado...
Então, foi a polícia que assassinou ?!
Não sei. São mistérios...
Não insistimos. Zé da Barra não queria contar o que sabia sobre a verdadeira morte do malandro Benedito, assassinado pela polícia em represália à morte de dois agentes do Corpo de Segurança.
(...)
Vinha descendo a noite sobre a baía.
Já era hora de nos retirarmos, de descermos por aquelas rampas perigosas.
Nos casebres, lâmpadas de querosene já se iam acendendo, pouco a pouco...
Com muito custo descemos, chegamos, finalmente, à rua, ao pé do morro. Voltávamos à vida, à cidade, com luz, com ruas, com bondes. (...)"


TEXTO No. 13: AGACHE E A "SOLUÇÃO" PARA AS FAVELAS
Natureza e data do texto:
Alfred Agache foi um urbanista francês contratado pela Prefeitura do então Distrito Federal no ano de 1927 para elaborar um plano de "remodelação, extensão e embelezamento" da cidade do Rio de Janeiro. No seu relatório, publicado em 1930 (A cidade do Rio de Janeiro, remodelação, extensão e embelezamento. Paris: Foyer Brèsilien) ele dedica um capítulo às favelas, vendo-as enquanto sério problema (incêndios, infecções epidêmicas) e propondo uma solução:

"as favelas constituem um perigo permanente para todos os bairros através do que se infiltra. A sua lepra suja a vizinhança das praias e os bairros mais graciosamente dotados pela natureza...
Sua destruição é importante não só pelo ponto de vista da ordem social e da segurança como sob o ponto de vista geral da cidade e de sua estética."
(Apud ABREU,Maurício de A. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:IPLAN-RIO/Jorge Zahar ed.2.ed.pp.88-89, citado por QUIROGA, Ana Maria, "Violência e dominação: as favelas voltam à cena", In: Sociedade e Estado, X(2),1995,p.433)

A origem das favelas seria a seguinte:

"Pouco a pouco surgem casinhas pertencentes a uma população pobre e heterogênea, nasce um princípio de organização social, assiste-se ao começo do sentimento de propriedade territorial. Famílias inteiras vivem ao lado uma da outra, criam-se laços de vizinhança, estabelecem-se costumes, desenvolve-se pequeno comércio: armazéns, botequins, alfaiates etc. (...) É um fato curioso, grave sob o ponto de vista social visto estimar-se a população das favelas em 200.000 almas, grave igualmente porque o abandono a uma liberdade individual ilimitada criada dos sérios obstáculos não só do ponto de vista da ordem social e da segurança, como sob o ponto de vista da higiene geral da cidade sem falar da estética."

Como solução, propõe a transferência da população 'provisória' e sua substituição:

"Os morros que confinam com o porto, os da Conceição, da Providência e do Pinto, devido a sua proximidade do centro comercial e das vantagens higiênicas que lhes confere a sua elevação, poderão ser facilmente remodelados em vilas de residência para os pequenos funcionários e os pequenos empregados do comércio."
(Apud ZYLBERBERG,Opus cit.,p.33)


TEXTO No. 14: COMENTÁRIO SOBRE O PLANO AGACHE
Natureza e data do texto:
O plano de Alfred Agache mereceu um comentário desfavorável por parte de Annibal Bonfim, publicado na Revista Para Todos em 24 de setembro de 1927 com o título "Descobrindo a Favela: habitações sórdidas descortinando paisagens maravilhosas". Apud ZYLBERBERG, Opus cit., p.111.

"Descobrir a Favela, eis a última moda!!!
Marinetti, Agache, o Prefeito, todos... a lançaram.
Resolvi também fazer minha descobertazinha. Brasileiro, criado no Rio e aqui vivendo há trinta anos, lembro-me da admiração com que ouvia contar as lendas da Favela na minha meninice... impressão de castelo inexpugnável onde se foram refugiar os desordeiros da Gamboa e da Saúde... senti sempre que a Favela devia permanecer o reduto último da malandragem. Acho que aquilo é parte integrante do nosso Rio, é a única tradição carioca em que os vários prefeitos modernizadores não puderam tocar.
... Não seria talvez, uma boa idéia deixá-lo lá nas alturas, onde o ar oxigenado e o sol purificador combatem em grande parte a falta de higiene das casas onde moram ?
Este é o meu ponto de vista, depois da visita que fiz ao famoso morro.
Acabem com as 'favelas' disseminadas nas encostas dos morros de Copacabana, de Vila Isabel e pelos vales do Leblon; urbanizem esses pontos facilmente acessíveis a novas linhas de bondes e outros meios de transporte. Deixem, porém, a Favela verdadeira entregue a seus primitivos donos. Aquilo é quase inexpugnável e não é o empregado de comércio nem o funcionário público que subirá uma escada de 166 degraus, depois de galgar uma ladeira íngreme de mais de um quilômetro. Os desordeiros que lá habitam amam a liberdade e a beleza natural – deixem-nos lá ficar..."

TEXTO No. 15: A VIDA DOS MORROS EM 1933
Natureza e data do texto (xerox em anexo):
Segunda parte do livro Na Roda do Samba, publicado em 1933. O autor, Francisco Guimarães, mais conhecido como Vagalume, era repórter musical e policial do Jornal do Brasil. Negro, filho de pais pobres, foi admitido como auxiliar de trem em 1887 na Estrada de Ferro D.Pedro II, sendo encaminhado ao jornalismo pelo famoso abolicionista negro Luiz Gama. Na primeira parte do seu livro, ele fala das origens do samba e ataca a sua comercialização. Eis um bom exemplo do seu propósito:

"O SAMBA é hoje uma das melhores indústrias pelos lucros que proporciona aos autores e editores.
Antigamente os sambas surgiam na Favela, no Salgueiro, em São Carlos, na Mangueira e no Querosene, que eram os 'morros-academias' onde se abrigavam os mestres do pandeiro (também chamado ADUFO) do chocalho, do reco-reco, da cuíca, do violão, do cavaquinho e da flauta.
Depois desciam à aprovação do povo do Estácio seguiam à consagração da gente do Catete. (...)
O QUE hoje há por aí, tem apenas o rótulo, é um arremedo de samba.
O que os poetas fabricam, são modinhas que estão longe do que, antigamente, escapando à classificação de samba, tinha a denominação de 'lundu'.
O samba, é irmão do batuque e parente muito chegado do cateretê; é primo do fado e compadre do jongo."

(...)

"2a. PARTE – A vida dos morros

OS MORROS

Não há cidade no Brasil, que tenha mais morros que a nossa.
Existem cento e tantos, na terra carioca !
Os morros no Distrito Federal, são cheios de poesia e beleza e cada um tem a sua história, mais ou meno, empolgante, a sua lenda ou a sua fama.
(...)
Os morros onde nascem as chamadas academias de samba ou que constituem redutos de bambas, são capítulos especiais que vamos agora apresentar aos leitores.
Não houve preocupação de uma descrição minuciosa sobre o histórico de cada um, como faria Rocha Pombo de saudosíssima memória.
Damos apenas ligeiras impressões, ligando as suas relações com os bambas e os sambas.
Em cada um morro, escolhemos um cicerone.
Se o leitor quiser acreditar nele, fará muito bem e se não quiser acreditar, fará melhor ainda."
(...)

"É interessante e curiosa a vida dos morros. Cada um deles tem a sua história e abriga a sua gente, especializada neste ou naquele mister, na roda dos que trabalham, dos que trabalham muito, afrontando as intempéries, sem que tenham um dia a compensação dos seus esforços, ao menos, com um simples sorriso da Felicidade ou um ligeiro aceno da deusa da Fortuna.
Há os que procedem de modo justamente contrário: - adeptos da lei do menor esforço – não fazem força... não trabalham e levam a vida folgadamente, confiados na autoridade que a valentia lhes impõe ou nas sua habilitações – na roda do samba...
Os primeiros, se dedicam somente ao trabalho que nobilita o homem e os outros, 'matam o tempo', tentando a sorte na 'orelha da sota', como exímios que são no preparo de um 'kagado' ou arranjo de um 'macete'.
Um baralho e um violão e um cavaquinho, uma harmônica, um pandeiro, um reco-reco, um chocalho, uma cuíca, chegam para garantir a zona...
Os 'catedráticos' dos morros são respeitados e se fazem respeitar.
São ágeis nas pernas e por isso heróis na batucada. Não fazem cerimônia de apertar o dedo no gatilho da F. N...
Para ser 'catedrático' e chegar a empunhar o 'bastão de leader', é preciso ser 'bamba' mesmo de verdade, porque, no dia em que 'entregar os pontos', e lhe rasgarem a 'carta de valente', ficará reduzido a 'subnitrato de coisa nenhuma...'


VIVER NOS MORROS

Há quem diga que viver nos morros, é morar perto do Céu e ser vizinho de Deus, Nosso Senhor...
Deve ser assim mesmo...
Mas, havemos de convir que nem sempre os vizinhos nos agradam: uns são bons e se fazem excelentes amigos e outros são, como dizem os sertanejos – cabras safados da peste...
(...)
Há os que vivem nos morros, arrastados pela necessidade e há outros que, fora deles, a vida lhes seria tormentosa com o seu cortejo de misérias.
Para este, o morro é um Paraíso e para aqueles um Inferno.
Todos, porém, se confundem – na roda do samba – principalmente aos sábados à noite, entrando a batucada pelo domingo.
As noites de segunda e sexta-feira são geralmente destinadas aos segredos do fetichismo ou magia negra, na solenidade do candomblé...
Os morros sempre tiveram fama e os seus habitantes são orgulhosos de si mesmos e cada um preconiza o morro em que nasceu ou viveu ou reside.
Lá está o do

QUEROSENE

É de todos eles, o mais imundo e infecto.
Três ou quatro indivíduos de nacionalidade portuguesa tomaram-no de assalto, como se aquilo fosse 'gado sem dono...'
Construíram uns cochichos, verdadeiras 'arapucas' armadas 'a sopapo', com tábuas de caixões e cobertas de folhas aproveitadas das latas de banha e querosene.
Tais pardieiros que são alugados de 30$000 a 60$000 mensais, constituem verdadeiros atentados aos foros de uma cidade limpa, habitada por um povo civilizado.
Lá em cima não há ruas.
São picadas perigosíssimas, à noite principalmente, pela falta de iluminação.
Nos dias chuvosos, é uma temeridade chegar ao alto do morro.
Há subidas íngremes, dando passagem apenas a uma pessoa e deixando ver o medonho despenhadeiro !
Pelas picadas, à guisa de ruas existem valas abertas, que servem de escoadouro dos 'pardieiros'.
Quando a sol a pino, é insuportável o fétido desprendido de tais valas.
Há quem ache tudo isto um verdadeiro Éden e nos seus sambas chorosos, conte o Morro do Querosene desta forma:

Deixe eu viver somente aqui
A minha vida não envenene
Quero morrer onde nasci
No meu Morro do Querosene.

Minha vida desta maneira
É de encantos, é tão bela!
Não me passo p'ra Mangueira
Nem para o Morro da Favela...

O Salgueiro não vale nada
Nem a copa do meu chapéu
O Querosene na batucada
Só respeita a Chácara do Céu*"

* Obs (M.A.): Chácara do Céu era como antes se chamava o atual Morro de São Carlos.
(...)

O QUE NOS DISSE UM HABITANTE DO MORRO

Meio-dia.
Sol a Pino.
Calor de rachar!
Um inferno! Um suplício! Um horror! Um verdadeiro castigo, galgar o Morro do Querosene, pela Rua do Itapiru !
Não sabemos em quantas etapas, fizemos o arrojado 'raid'.
(...)
Em meio do caminho, encontramo-nos com um velho morador do morro, que, pelo nosso cansaço, pela afobação que demonstrávamos, percebeu logo, que se tratava de estrangeiro... e nos disse:
Está estranhando, hein, patrão ?!
Que horror ! Uff! ... Nunca mais voltarei aqui.
Ainda que 'mal lhe pergunte' – o senhor é da polícia.
Não.
'Prestação' não é que eu conheço... Então é Oficial de Justiça. É só estas três 'castas' de gente de fora, que se atreve a subir o morro a esta hora.
Eu sou da imprensa.
Olá... lá! Ainda melhor! Veio fazer alguma reportagem?
Vim ver isso.
O Morro do Querosene, meu chefe, 'é uma cuíca para conferir...' Aí está uma coisa que eu aprovo e sou capaz de lhe auxiliar.
Terei nisso muito prazer.
Olhe, só lhe peço um favor: quando o 'pau comer' não bote o meu nome nas folha, porque senão, sou um homem 'intralhado na vida'.
Como assim ?
Porque o senhor, por força, vai 'meter o malho' e eles não vão gostar. Mas, comigo quem acha 'ruim faz meio-dia...'
Eles quem ?
Estes piratas e exploradores do nosso suor.
Quem são ?
Os donos destes 'BARRACOS'; o Lindolfo Magalhães, o José Reis e o outro lá do alto, dono da falada 'Venda do Galo'.
Estávamos no meio do morro.
O nosso cicerone nos disse:
Repare só: aqui é a tendinha do José Reis. Lá está ele.
É brasileiro ?
É português-africano. Aquilo que está vendo ali, é de 'má raça, de má casta, de mau pelo e mau cabelo' ! O que tem de pequenino e socado, tem de sabido! Como ele, só o Manoel Martins, que figura em tudo quanto é testamento encrencado.
(...)
Chegamos, afinal, ao cimo.
Lá se destaca a 'Venda do Galo'.
É um armazém de secos e molhados, com respeitável sortimento.
À entrada do estabelecimento, há um alpendre, a guisa de 'Marquise', sustentado por duas colunas de madeira.
O armazém não tem tabela, funciona aos domingos e feriados e abre a qualquer hora da noite, como as farmácias...
O alpendre, toma a única passagem que há, obrigando assim toda a gente a passar pela 'Venda do Galo'.
O nosso cicerone nos segredou:
Lá está o homem que tem ganho mais dinheiro neste morro! Isto para ele é um chuá!...chuá!... Não paga impostos e não dá satisfação a higiênica. É o maior proprietário de 'barracos'.
Encaramos o gajo.
É um português forte, robusto, gorducho, barrigudo e ostentando uma grande medalha, redonda, cravejada de brilhantes.
O cicerone continuou:
Está riquíssimo à nossa custa! Ele já fez quatro viagens à Europa! É proprietário de vários prédios em Santa Tereza e em Irajá.
Então, ele está bem...
Aquele homem, que ganha dinheiro aqui, explorando a gente com estes 'barracos' imundos, é incapaz de fazer o menor benefício a esta zona.
O cicerone nos falava com um certo rancor.
Depois de uma pequena pausa, continuou:
Para o 'seu reporte' fazer uma pequena idéia, vou lhe mostrar um 'barraco' por dentro.
Entramos então num cortiço!
As famílias vivem numa verdadeira promiscuidade, pois, de um para outro chamado 'barraco', há apenas parede divisória de latas de querosene eferrujadas e esburacadas, divulgando-se o que se passa do outro lado.
É um horror!
O visitante, sente logo um mal-estar, chega mesmo a sentir náuseas.
Como pode aquela gente viver assim ?
Deus que se apiede, dos moradores do Morro do Querosene."

O PRECIOSO LÍQUIDO

Água no Morro do Querosene vale ouro!
O H2O, o precioso líquido, não se dá a ninguém!
Lá no alto do Morro, quem quiser beber um pouco d'água numa caneca, pagará 200 réis (...).
Durante o dia, vê-se aquelas pobres mulheres galgarem o morro curvadas ao peso de uma lata cheia d'água!
Para obterem-na, descem às Ruas Itapiru e Azevedo Lima, pedindo, como esmola, um pouco do precioso líquido, para os misteres mais urgentes.
(...)

A VISITA DE PEDRO ERNESTO

O Senhor Dr. Pedro Ernesto, digno e honrado Interventor do Distrito Federal, não tem se descuidado dos mais legítimos interesses da cidade, em boa hora, confiada à sua governança.
Não lhe preocupa somente a chamada zona 'chic' ou a central.
S.Ex. vai também aos subúrbios, à zona rural e sobe aos morros, como já subiu ao de São Carlos e ao do Querosene.
Em São Carlos, que é uma verdadeira cidade alta, como em Santa Tereza, o grande Interventor notou que muito há que fazer para torná-lo digno dos seus honrados habitantes.
Tudo quanto há ali, é devido unicamente à iniciativa particular.
No Morro do Querosene, porém, a impressão do Governador da cidade foi muito outra.
É uma vergonha!
O Dr. Pedro Ernesto quer como interventor, quer como médico, condenou-o. A impressão foi a pior possível.
Ali, só há uma coisa a fazer, a bem da higiene – é por abaixo tudo aquilo, mesmo como medida preventiva, acauteladora da saúde, não só dos moradores do Morro do Querosene, como de todo o bairro onde ele se levanta ameaçadoramente como um foco epidêmico.
Ou o Morro do Querosene será saneado e embelezado ou terá destino muito pior que o da Favela.
É este o modo de pensar do 'super-homem', a quem para felicidade dos cariocas, o Chefe do Governo Provisório confiou os destinos da nossa terra.

* * *

Já dissemos, minuciosamente, pondo os pontos nos ii, o que é o Morro do Querosene – é o mais imundo, o mais infecto, o mais perigoso e o mais explorado!
A gente, porém, que o habita, não é má, como em geral, a que reside nos morros, porque os ruins que aparecem, ou se regeneram ou caem no mangue... É raro encontrar-se um ladrão-valente, na extensão da palavra, razão porque, o 'bamba' sempre lhe infunde respeito.
O valente de verdade, não é o pirata vulgar.
Quando os 'bambas' descobrem no morro um ladrão pirado na sua zona, é canja...
Fazem, como faziam os tiras, antigamente – exigem logo o toco, sob pena de dar a cana...
O toco não impede o ultimatum: o ladrão pirado, tem o prazo muito limitado para desinfetar o reduto e se não o fizer, ou vai conversar com o majorengo para receber o bilhete para a justa ou na melhor das hipóteses o pau come gente e o lunfa, entra nas comidas...

Não se diga que um buliçoso não possa ir num morro.
O morro não é privativo dos seus habitantes e eles até gostam, quando vêem a 'zona floreada' com caras estranhas...
Quantos e quantos lunfas, acossados pela polícia cá por baixo, sobem ao morro e lá ficam arribados, num daqueles casebres de um amigo, em segredo de justiça, sem dar a cara na rua, até que o – caso policial – caia em exercícios findos ?"
(...)

MORRO DA MANGUEIRA

"Não se pode negar a sua fama, a sua tradição.
Quando Favela estava no apogeu, Mangueira olhava-o com indiferença.
Era a certeza da sua importância, do seu grande valor no futuro.
De vez em quando anunciavam que uma caravana faveliana, salgueirense, querosenense ia fazer um raid à Mangueira e então o pessoal se preparava para receber os visitantes como personas-gratas ou como personas-ingratas, conforme o modo de proceder dentro da zona e principalmente com referência ao – Nono Mandamento da Lei de Deus – porque o pessoal do Morro da Mangueira, por ser muito católico, respeita a mulher do próximo e é sujo com este negócio de divórcio apressado...
(...)
Eu quisera viver no Morro da Mangueira – pela lealdade e sinceridade daquela gente boa e generosa, porque com toda a sua pobreza, nos tempos que correm, eles praticam a verdadeira caridade, socorrendo os que têm fome, dividindo o seu pão dormido com aqueles que estendem a mão à caridade pública.
Não há, no meio deles, a menor hipocrisia, como também não admitem que se use para com eles de falsidade – é cartas na mesa e jogo franco.
(...)
A Mangueira diverge em tudo e por tudo do Querosene.
Há ruas abertas e mesmo alinhadas; há casinhas bem construídas e há até logo na subida um palacete mandado construir por um bicheiro!
Temos por lá os casebres, os cochicholos, mas, que à vista dos do Querosene são verdadeiros bungalows...
Nem a favela dos seus tempos saudosos, poderia ser comparada ao Morro da Mangueira de hoje.
(...)
"a Mangueira sempre se orgulhou de ter melhor gente que a Favela em tudo e por tudo: mais ordeira, mais caprichosa, mais valente e menos sanguinária.
As construções, as ruas, o comércio da Mangueira sempre foram superiores ao Querosene, Favela e Salgueiro.
O Morro da Mangueira, sempre teve Majestade !

A INVASÃO DOS BÁRBAROS

"Foi então [à época de Pereira Passos] quando um delegado de higiene, teva a idéia de fazer demolir em curto prazo, os Morros da Favela e da Mangueira.
As estalagens começaram a ser condenadas e as casas de habitações coletivas também tiveram a mesma sorte.
Só os grandes pistolões faziam recuar as exigências...
A gente das estalagens e das casas de cômodos corria para os morros e aí encontrava a mesma barreira!
Findo o prazo, eis que surgiu no Morro da Mangueira uma grande turma da Saúde Pública e deu início à demolição dos casebres, tentando até levar tudo de vencida pelo fogo!
Era, para bem dizer, a invasão dos bárbaros, pondo ao relento homens, mulheres e crianças!
Houve, como era natural, uma séria resistência e o Governo teve de intervir em favor dos pobres, para acalmar os ânimos.
(...)
Este foi o maior golpe que sofreu o Morro da Mangueira e do qual se defendeu com heroísmo, fazendo recuar a horda invasora, que operava em nome do progresso...
(...)

COMO SE VIVE NO MORRO DA MANGUEIRA

A vida no Morro da Mangueira, é muito mais fácil que no do Querosene ou mesmo da Favela e do Salgueiro.
Não há aquela revoltante exploração, aquele verdadeiro cativeiro, sendo o inquilino obrigado a comprar na tasca do seu senhorio.
Se na Mangueira alguém se lembrasse ou se lembrar de abrir uma tasca e construir cochicholos para explorar miseravelmente os inquilinos pode contar que é rifado, rifada e recebe logo o bilhete azul, em forma de 'ultimatum', porque, ali, não é o Morro do Querosene.
Os estabelecimentos na Mangueira, têm os seus gêneros tabelados e não podem abusar no preço porque são muitos e a concorrência, é a dominadora da ganância do varejista.
(...)
O bom pagador, tem crédito no Morro da Mangueira. Eis a razão porque a vida é relativamente fácil e toda a gente vive perfeitamente bem, alegre e feliz naquele monte maravilhoso.
As casas são em conta.
(...)

MORRO DE SÃO CARLOS

Parodiando o grande Júlio Dantas, na Ceia dos Cardeais, diremos: 'Como é diferente a vida em São Carlos!'.
O ambiente é muito outro, à vista do Querosene, seu vizinho, do da Mangueira e do Salgueiro.
(...)
A VISITA DO PROGRESSO

É muito diferente, o que se observa no Morro de São Carlos, com relação aos outros.
Casas boas, bem construídas; sobrados e 'bungalows', vão se levantando aqui, ali e acolá.
É a visita do progresso que já se faz sentir.
O Morro de São Carlos tem hoje, a defender os seus legítimos interesses, o Centro Político Republicano e do qual fazem parte pessoas de grande representação social.
Todos os prédios são numerados e contribuem, para a Prefeitura e o Tesouro, com o Imposto Predial e a Pena d'Água.
As casas comerciais estão devidamente licenciadas e os negociantes contribuem com o Imposto da Indústria e Profissão.
Há calçamento a macadame, o qual será em breve substituído por outro a paralelepípedos, nas subidas, passando o macadame para a parte mais alta.
O Morro de São Carlos mereceu há dias a visita honrosa do Sr.Dr. Pedro Ernesto, digníssimo e honrado Governador da Cidade, que verificou que tudo quanto se tem feito ali, é unicamente devido à iniciativa particular.
S.Ex. prometeu fazer melhoramentos inadiáveis, levando em conta o progresso do Morro, tão abandonado dos poderes públicos.
De uns 30 anos para cá, que os respectivos moradores vêm lutando para transformá-lo como aliás transformaram, fazendo de um reduto mal recomendado, uma localidade familiar, calma e pacífica."
(...)

MORRO DO SALGUEIRO

Aquele mastodonte, que se divulga daqui de baixo, e, em cujo dorso em desalinho, destacam-se uns casebre, uns pardieiros e uns cochincholos – é o Morro do Salgueiro ! O 'bamba' dos 'bambas', a Academia do Samba, o Inferno de Dante e ao mesmo tempo um Céu aberto!
Valentões em outras zonas, ali são mofinos !
(...)
OUVINDO UM 'BAMBA'

Escolhemos as primeiras horas da manhã para subir ao Salgueiro.
O diabo não é tão feio quanto pintam-no.
O que dizem cá por baixo, não é positivamente o que se verifica aqui em cima.
Meia hora de convívio com aquela gente, basta para modificar qualquer juízo temerário previamente feito. E, ao contrário, o visitante sente-se bem e até passa horas alegres, ouvindo o fraseado de um pernóstico, os acordes de um tocador de violão, o floreado de uma harmônica ou um samba choroso de um 'acadêmico' do Salgueiro !
(...)
A impressão é bem diferente da do Morro do Querosene, que fica muito distanciado.
No Salgueiro, há casas propriamente ditas: construídas de tijolos, de telha e com todos os requisitos higiênicos.
Há armazéns e botequins, como nos Morros da Mangueira e do São Carlos.
Pagam impostos e existem ruas abertas e casas numeradas.
No meio de tudo e em maior quantidade, muito maior, surgem os chamados 'barracos'.
Eles são iguais em toda a parte.
No Querosene, porém, é preciso por tudo aquilo abaixo como medida urgentíssima de higiene.
Mas no Salgueiro, é preciso apenas – um pouco mais de saneamento, o que compete ao Governo.
Já que não se resolve o problema de pequenas habitações para os pobres, para os trabalhadores, que ao menos o Governo facilitasse que eles fizessem os seus barracões de madeira, sobre alicerces sólidos, de modo que fossem pouco a pouco melhorando a sua habitação.
Sobre tais barracões poderia ser lançado um imposto, que representasse uma prestação suave, a fim de que o inquilino, não sendo funcionário público pudesse deste modo, saldar a sua dívida com o Estado.
O maior desejo do pobre, é morar no que é seu."
(...)

AMIGOS PARA A VIDA E PARA A MORTE

Seu Xande, a certa altura nos perguntou:
Qual é a sua impressão ?
É muito melhor do que antes de haver subido!
O que supunha que isto aqui era ?
Uma espécie de Inferno de Dante!
Pois olhe, isto aqui, é um Céu aberto ! A gente vê cara e não vê coração! Aqui no Salgueiro, há amigos para a vida e para a morte; há homens que tiram a última camisa para socorrer um amigo e são mesmo capazes de dar o seu sangue para salvar um inimigo.
E quando não são amigos ou são inimigos rancorosos ?
Na hora da luta, o melhor é ninguém se meter entre duas feras e deixar que se devorem...
Não é humano!
O que não é humano, é o senhor se meter a separá-los, levar uma pregada e esticar a canela. Isto é que não é negócio...
E estas duas feras, nunca mais se reconciliam ?
Às vezes tornam-se excelentes amigos. Outras vezes, passam uma esponja no passdo, mas, ficam de pé atrás e outras vezes...
O que acontece ?
Um fica e o outro embarca... para o outro mundo.
E no flagrante quem vai depor ?
Que flagrante ? Então quem faz um 'serviço' destes, deixa-se prender em flagrante ? Mete o pé no mundo e vai cuidar de outra vida. Mete a cara no Pindura a Saia e vai sair na Sacra Família do Tinguá...
E se o azar o perseguir e ele for preso em flagrante ?
Neste caso há seus conformes. Se o crime for razoável, se foi uma coisa justa, uma desafronta de homem para homem, as testemunhas dão o fora. Mas, se houve covardia, traição, perversidade, premeditação, emboscada ou se matou pelas costas, as testemunhas aparecem e até auxiliam a polícia na captura do criminoso. O senhor quer ver um camarada passar mal aqui no morro ? É andar com falsatas [sic], fazendo trancinhas. Então, come da banda podre...
E como se arranjam vocês com o Dr. Moreira Machado ?
Muito bem – é um camaradão! Antigamente, ele dava cartas e jogava na mão. Oh! branco bom, para embrulhar estes políticos!... Manifestação era com ele! ... Chegava aqui, distribuía uns 'caraminguás' e mandava descer o pessoal. Quando chegava lá em baixo, tome automóvel! Era uma beleza! Também naquele tempo ele mandava um pedaço bom, em qualquer delegacia! Muitos flagrantes foram rasgados, muitos processos abafados, só por ordem dele!
Então para vocês, ele tem cotação.
E grande, porque sempre foi bom camarada, bom amigo.
(...)
Então vocês idolatram o Dr. Moreira Machado ?
E não continua a ser bom camarada ?
Com a República Nova, ele está off-side...
Mas, não era ele o Chefe dos trabalhadores da estiva ?
Isso foi tapeação naquele tempo... Até eu, figurei como estivador e fui passear em São Paulo, quando a estiva em geral foi levar a sua solidariedade ao Dr. Júlio Prestes!
(...)
E dinheiro ?
Não é tanto assim. Gostamos dele, porque foi camarada, bom amigo e um bom vizinho. Mas, estamos pagos; fizemos e recebemos favores. Elas por elas não doem. Amanhã, se o senhor tiver prestígio e puder fazer alguma coisa por nós, estaremos também a seu lado. Aqui com político – é toma lá, dá cá..."
(...)

MORRO DA FAVELA

" Apareça quem for valente
quem for duro se levante
Na hora 'o pau come gente...'
Que o Buraco se garante...

Desde que a Favela passou a ser reduto de valentes e cabras 'escolados' nas várias modalidades de malandragens, crimes e contravenções, o seu nome jamais foi olvidado no cadastro sangrento do noticiário policial dos matutinos e vespertinos cariocas.
(...)
Como nos causasse estranheza que todos os homens que subiam, fossem portadores de embrulhos, a explicação não se fez esperar:
Esta gente veve da estiva. Os que vão subindo agora ou deixaram o serviço ou não foram aproveitados nas turmas da manhã.
E os embrulho ?
Uns de roupa do trabalho e outros são de mantimento que compraram com o dinheiro que receberam.
(...)
Para nós o que toca é samba desta qualidade:

É noite escura
Acende a vela
Sete Coroas
Bam-bam-bam lá da Favela.

Quer saber de uma coisa ? Este Sete Coroas foi uma invenção dos tiras. O 26, à sombra do Sete Coroas, fez uma porção de violências aqui no morro. Alta noite, ele vinha com uma turma grande e invadia estes casebres, onde quebrava tudo e espancava barbaramente pobres homens trabalhadores. Duma feita pegaram lá do lado da Providência dois homens que desciam para o trabalho. Quando metiam o pau de rijo num, o outro correu. Eles perseguiram disparando seus revólveres. Foi um tiroteio medonho. Quando o dia clareou, lá estava o pobre homem numa vala.
Estava ferido ?
Estava morto.
E depois ?
Ficou por conta do Sete Coroas. Onde os tiras faziam tiroteios e feriam gente, era o Sete Coroas!
(...)

JOÃO* DA BARRA

Não se pode falar em Favela, sem citar, e, aliás, com muito respeito, o nome de João da Barra.
É tipo de nortista, homem sisudo e que representa meio termo entre o calmo e o exaltado.
Quando lhe chegam a mostarda ao nariz, 'não dá para trás' e noutras épocas fez muita gente 'tomar nojo da luta e entregar os pontos...'
João da Barra, no tempo em que a Favela era mesmo a zona tórrida, bancava o Grande Chanceler, o Juiz de Paz e o Delegado de Polícia...
Nas questões de terrenos, porque era muito comum um avançar no terreno que não pertencia a nenhum dos dois... o árbitro era o João da Barra e o que ele decidisse, não tinha apelação.
Brigas de mulher com marido, ele resolvia pacificando o casal.
Muitos assassinatos não ficaram impunes, porque ele se não prendia o criminoso em flagrante, providenciava para a sua captura.
Ainda hoje se fala em João da Barra, com respeito e acatamento.
Mais não fez, porque não lhe foi possível.
(...)
Eis a razão porque não se pode falar em Morro da Favela, sem citar o nome de João da Barra."
(...)

* Parece haver aqui um engano, trata-se de JOSÉ da Barra (como citado por Orestes Barbosa e Benjamin Costallat) e não João da Barra.


TEMPO AO TEMPO

"Por muito que se esforcem, os defensores da Favela, jamais conseguirão soerguê-la, porque nem a Prefeitura, nem a Saúde Pública permitirão que novos cochicholos sejam ali levantados, sob qualquer pretexto.
O embelezamento do morro se impõe diante do progresso e da grande evolução da cidade nestes últimos anos.
Ali, no coração da metrópole, não é possível esconder aquela espécie de aldeamento de indígenas, contradizendo com a beleza da mais linda capital das nações civilizadas de todo o mundo !
O expurgo da Favela se fará paulatinamente, numa ação conjunta entre os governos federal e o municipal, dando um prazo razoável aos que lá habitam para que melhorem ou desocupem os pardieiros.
A Favela, é bem parecida com o Morro do Querosene.
O próprio governo municipal poderia auxiliar o seu embelezamento, mandando limpá-la, calçá-la, para então, fazer as exigências que entendesse.
As companhias edificadoras que existem, também entrariam em acordo com aquela gente, cobrando prestações razoáveis por uns novos tipos de casas pequenas.
Por sua vez, feito o arruamento, certamente a Light teria uma nova fonte de rendas ligando três morros: o do Pinto, o da Favela e o do Barroso, fazendo assim pendant como o de Santa Tereza.
Há muito que fazer no Morro da Favela, mesmo sob o ponto de vista estratégico, para a defesa da cidade.
E como a Favela, outros morros deveriam merecer a atenção do Ministério da Guerra.
Haja vista a proeza que tomou o nome de Praia-Preta.
Suba o Sr. Ministro da Guerra à Favela, leve em sua companhia o Chefe do Estado-Maior e fiquem as duas autoridades do nosso Exército uns quinze minutos, fazendo observações a olho nu e de binóculos, e, certamente ficarão convencidos de que a Favela não deve ficar fora das suas cogitações.
Um quartel na Favela !
Onde, o de artilharia de montanha ficaria melhor situado para os seus próprios exercícios diários, com destacamentos nos demais morros ?
Seria este um meio prático, rápido e utilíssimo de sanear e embelezar o Morro da Favela, sem grandes dispêndios, por se tratar de utilidade pública. (...)"






TEXTO No. 16: O CÓDIGO DE OBRAS DE 1937
Natureza e data do texto:
Decreto municipal número 6000 de 1º de julho de 1937, regulando, nos artigos abaixo, a construção de "casas proletárias", a eliminação das favelas, proibindo melhoria nas mesmas e também a formação ou construção de cortiços e estalagens. Fonte: VALLADARES,Lícia do Prado. "A gênese da favela carioca: a produção anterior às ciências sociais", Revista Brasileira de Ciências Sociais, Volume 15, n° 44, outubro de 2000.
Art. 349 — A formação de favelas, isto é, de conglomerados de dois ou mais casebres regularmente dispostos ou em desordem, construídos com materiais improvisados e em desacôrdo com as disposições deste decreto, não será absolutamente permitida.
# 1º Nas favelas existentes é absolutamente proibido levantar ou construir novos casebres, executar qualquer obra nos que existem ou fazer qualquer construção.
# 2º A Prefeitura providenciará por intermédio das Delegacias Fiscais, da Diretoria de Engenharia e por todos os meios ao seu alcance para impedir a formação de novas favelas ou para a ampliação e execução de qualquer obra nas existentes, mandando proceder sumàriamente à demolição dos novos casebres, daqueles em que for realizada qualquer obra e de qualquer construção que seja feita nas favelas. [...]
# 7º Quando a Prefeitura verificar que existe exploração de favela pela cobrança de aluguel de casebres ou pelo arrendamento ou aluguel do solo, as multas serão aplicadas em dôbro [...]
# 8º A construção ou armação de casebres destinados a habitação, nos terrenos, pátios ou quintais dos prédios, fica sujeita às disposições deste artigo.
# 9º A Prefeitura providenciará como estabelece o Título IV do Capítulo XIV deste decreto a extinção das favelas e a formação, para substituí-las, de núcleos de habitação de tipo mínimo. [...]
TEXTO No. 17: O RELATÓRIO MOURA
Natureza e data do texto:
Relatório elaborado pelo Dr. Vitor Tavares de Moura, diretor do Albergue da Boa Vontade e apresentado ao Secretário Geral da Saúde do Governo Henrique Dodsworth, em novembro de 1940. Propunha um plano para o estudo e solução do problema das favelas. Nestre trecho, cita-se um recenseador do Morro da Favela, perto do Cais do Porto:

"A vida lá em cima é tudo quanto há de mais pernicioso. Imperam os jogos de baralho, de chapinha, durante todo o dia, e o samba é diversão irrigada a álcool. Os barracões, às vezes com um só compartimento abrigam cada um, mais de uma dezena de indivíduos, homens, mulheres e crianças, em perigosa promiscuidade. Há pessoas que, vivendo lá em cima, passam anos sem vir à cidade e sem trabalhar. E este morro está situado no coração da cidade, junto ao centro de trabalho intenso que são o porto, os moinhos Fluminense e Inglês, as Usinas Nacionais..."

Fonte: Citado por VALLA,Victor Vincent, "Educação, participação, urbanização: uma contribuição à análise histórica das propostas institucionais para as favelas do Rio de Janeiro, 1941-1980", Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1984. Mimeo. p. 2.


TEXTO No. 18: O RIO NÃO-PARTIDO SEGUNDO S.WEIG
Natureza e data do texto:
In: Brasil, País do Futuro, p.171. Publicado em 1940 ? Citado por Gastão Cruls, 1965:780 (vol. 2).

"... Mas a apenas dois passos do portão de uma dessas residências podemos estar numa 'favela' ou num bairro operário; aquela e este, cercados ambos pela mesma vegetação verde-escura e banhados pela mesma luz radiante, não se perturbam mutuamente. Nesta cidade os extremos divergem muito, mas apresentam transições entre si, de especial harmonia. A riqueza aqui não é provocadora. De certo modo, nesta cidade, pela força unitiva da natureza, o contraste não foi suprimido, mas se tornou menos forte, e esta constante e suave influência recíproca dos contrastes parece-me característica do Rio. O arranha-céu e o casebre, as avenidas suntuosas e as ruas estreitas e de casas baixas, as praias e os morros, que, altivos, erguem seus cabeços, tudo parece mais completar-se do que se hostilizar. A vida social tolera nesta cidade todos os contrastes; podemos tomar um sorvete numa confeitaria refrigerada, que por seus preços lembra as de Nova York, e muito perto dela, muitas vezes no mesmo prédio, podemos tomá-lo por alguns tostões, e podemos com o mesmo terno de brim andar num automóvel ou num bonde com os operários; nada nesta cidade se hostiliza, e encontramos em todas as pessoas, no engraxate e no aristocrata, a mesma polidez que aqui une harmonicamente todas as classes sociais. O que se separa com hostilidade e desconfiança nos outros países, aqui se combina livremente. Quantas raças encontramos nas ruas: o preto de casaco roto, o europeu com o terno bem talhado, o caboclo de olhar grave e cabelos pretos e lisos; em centenas e milhares de matizes, as mesclas de todos os povos e de todas as nacionalidades, mas todos, não como em Nova York e outras cidades, separados em bairros, aqui negros, ali brancos, acolá mestiços, mais adiante, italianos, irlandeses ou japoneses. Todos aqui se misturam, e a rua, pela grande variedade de fisionomias, se torna um quadro constantemente cambiante. Que habilidade se torna necessária, aqui, para atenuar os contrastes, sem destruí-los, para conservar a variedade, sem a preocupação de ordená-la e organizá-la à força!"

TEXTO No. 19: UMA ASSISTENTE SOCIAL NA FAVELA
Natureza e data do texto:
Passagens do livro de Maria Hortência do Nascimento e Silva, Impressões de uma assistente sobre o trabalho na favela, publicado em 1942. Trata-se, na verdade, de um misto de trabalho acadêmico (foi apresentado como tese ao Instituto Social) e de relatório das atividades desenvolvidas pelo Departamento de Serviço Social da Secretaria de Saúde da Prefeitura do Distrito Federal (que edita o livro) junto às favelas cariocas. Privilegia-se o caso da favela do Largo da Memória (Lagoa-Leblon), cujos moradores chegaram a ser removidos para o primeiro Parque Proletário (da Gávea) no ano de 1942. No final do livro (p.99) temos o desenho das instalações do Parque Proletário No. 1, na rua Marquês de São Vicente. É, portanto, um documento acerca da primeira intervenção efetiva do Estado nas favelas cariocas.

As favelas não são problema tipicamente brasileiro:
"São favelas os enormes bairros imundos de Changai, o Casbad, da Argélia, La 'Zone', de Paris, o White Chapel, de Londres, Valle dell'Inferno, em Roma, enfim todos os recantos do mundo onde a miséria se refugia, longe da higiene, do progresso e do conforto, para deixar-se viver solapada pela adversidade.
São favelas também os famosos 'Mocambos', de Recife, as 'Cafuas' mineiras, e as 'Casas de Palha', do Nordeste brasileiro."

As favelas cariocas e seus dilemas:
"Para o carioca, então, a favela é uma velha conhecida. Em nossa linda cidade, elas nascem e crescem com prodigiosa rapidez, às vistas de todos e, o que é peor, nas melhores zonas, deixando flagrante aos olhos de qualquer turista o enorme atraso urbanístico em que elas nos colocam.
No Rio, cidade de coloridos e galas exuberantes, a luz forte que ressalta a graça inconfundível de uma
p.8 natureza inigualável, faz da favela um grito ainda mais dissonante, que se destaca na afinação maravilhosa de tanta riqueza e tanta graça.
Talvez seja por isso que nossas favelas pareçam mais miseráveis e sórdidas que todas as outras.
É uma pobreza tremenda que se abriga naqueles barracos remendados, um abandono assustador que confrange o coração dos que penetram neste mundo à parte, onde vivem os renegados da sorte.

E o carioca, indiferente, vai criando para os monstrengos que surgem os nomes mais curiosos que a sua fantasia sugere:
'Cidade Maravilhosa' é o lugar onde a miséria geme,
'Latolândia', onde o pobre se abrasa ao sol tropical,
'Chácara do Céu', onde não se encontra nada de celestial, e assim por diante.
Mas ainda há algo de mais estranho: enquanto alguns se compenetram da gravidade do problema e procuram remediar a situação desses desgraçados, os cronistas se encantam pelo morro e o enaltecem, fazem dele um fenômeno típico, a visitar por todos aqueles que querem conhecer o verdadeiro Brasil.
O antro da indigência é transformado num centro de interesse onde se levam os turistas de renome.
Será que do malandro querem fazer uma personalidade, e do samba um hino nacional ?
Toda a ignorância e o fetichismo dos pobres desgraçados só acrescenta maior sabor ao fenômeno, a 'Macumba', a 'Mandinga' são cantadas em prosa e verso. Quando o 'Morro' dá uma exibição de sua dansa [sic] bárbara, então o sucesso chega ao máximo. Filma-se aquela pretaria alucinada pelo batuque ensurdecedor, a contorcer-se e requebrar-se como fanáticos, numa de-
p.9 monstração de sensualidade desenfreada e instintos selvagens que os escravizam a seu bárbaro passado.
E estes filmes são tirados por estrangeiros, que no momento, se dirão entusiasmados com o espetáculo inédito, mas que os exibirão nas suas terras como demonstrações curiosas da civilização do nosso povo. E assim, em vez de pudicamente escondermos este aspecto doloroso de nossa terra, deixamos exibir o que temos de peor!

A Mangueira:
"a [favela] do 'Morro da Mangueira', favela antiquíssima, uma perfeita cidade de malandros, com sua vida à parte. Seus habitantes levam anos sem descer à cidade. Nela foi encontrado um rapaz de 18 anos que declarou não conhecer a cidade. A Escola de Samba da Mangueira, é muito fa-
p.10 lada nas rodas de compositores de músicas populares."

Praia do Pinto (exemplo de favela em terreno plano):
"Situada nas imediações do 'Jockey Club'. São terrenos pantanosos, em parte, e noutra, arenosos; pois termina na praia. É uma das favelas mais imundas que existem. Os barracos são aglomerados, colados uns nos outros, quase sem espaço a separá-los. Sua população é das peores. Cada dia mais se desenvolve. Todas as casas de cômodos dissolvidas e vilas de operários destruidas nas imediações vêm aumentá-la e peorar, portanto, a condição de vida dos que já se comprimiam nela. Conta hoje, de acordo com um recenseamento feito há pouco, mais de 1000 barracos."

O tipo de terreno onde se instalam as favelas, municipal ou particular, e sua influência sobre a vida do favelado:
MUNICIPAL - "Em terreno municipal, o pobre não paga nenhum aluguel pelo terreno. Constrói seu barraco com uns 500$000, e vive nele até ser demolida a favela.
É o caso do Largo da Memória, Praia do Pinto etc.
Os poucos que pagam aluguel pagam-no pelo barraco que outro construiu e explora, mas nunca pelo terreno.
PARTICULAR - "Ao passo que, para as favelas instaladas em terrenos particulares, o proprietário recebe mensalmente um aluguel variável de cada um dos favelados. Os aluguéis vão de 15$000 a 40$000, e como o proprietário não tem a menor despesa com as casas e sua conservação, aufere um lucro enorme.
A favela da Rua Macedo Sobrinho [entre o Humaitá e a Lagoa] é o melhor exemplo de tal exploração. Cada dia aumentam os seus moradores. Vai da Rua Macedo Sobrinho até a Rua Fonte da Saudade, já na Lagoa Rodrigo de Freitas.
São terrenos de uma viúva rica, que só daí deve retirar uma soma fabulosa sobre a qual não paga impostos, nem mesmo o de renda.
À medida que os terrenos se valorizam, ela vai subindo os aluguéis; visitamos uma família, que tem seu barraco na Fonte da Saudade há uns 10 anos, sempre pagando aluguel. No início, cobravam-lhe 10$000, e depois de certo tempo a viúva subiu para 15$000, e hoje pagam 45$000 pelo mesmo espaço de terra.
Não é possível que esta criatura não sinta certo constrangimento em aumentar sua fortuna à custa do dinheiro destes milhares de pobres, que vivem com tanta dificuldade. E, assim, dúzias de outros indivíduos sem escrúpulos, se enriquecem graças ao dinheiro dos miseráveis, tão penosamente ganho, contribuindo para que a cidade não se livre desta praga, que é uma favela."

A causa principal da formação das favelas: a miséria
"A causa principal da formação das favelas é, como se pode compreender facilmente, a miséria [grifo da autora], em todos os seus aspectos. É a miséria
do homem doente, que não consegue produzir o necessário;
do malandro, que não se esforça para ganhar o suficiente;
do incapaz, que não sabe manter-se;
do pai de família numerosa, cujo salário não equivale aos gastos;
das famílias desamparadas por abandono ou morte do chefe;
enfim, de todos aqueles que, incapazes de lutar como os outros, ali se refugiam para se deixarem viver com um mínimo de gastos possível.

Outros fatores que contribuem para a formação das favelas:
"1º) A VALORIZAÇÃO DOS TERRENOS - acarretando a demolição de casas de pequena renda, para construção no local, de prédios de apartamentos. O operário, não encontrando mais uma casa cujo aluguel lhe seja acessível, baixa então até a favela.
É o caso da Rua Faro, no Jardim Botânico, onde demoliram grande quantidade de casas baratas, expulsando seus moradores para os cortiços e favelas do bairro.
2º) OBRAS - as construções importantes, que necessitam grande mão-de-obra, deslocam muitos operários, que, morando em locais longínquos, são forçados a mudar-se para as imediações do trabalho, e, não encontrando casas modestas onde se possam instalar, constroem seus barracos nos terrenos vagos que existam pela redondeza. Terminada a obra, a maioria deles se muda, mas já outros descobriram o local e se instalam. Foi assim que se originaram as favelas do 'Cantagalo', resultantes das obras do corte, e do Largo da Memória, resultante das obras do canal.
3º) AS FÁBRICAS - empregando grande número de operários, que também necessitam morar no local de trabalho. Os bairros que têm muitas fábricas são os que têm maior número de favelas. Assim, vemos na Gávea, na Rua Marquês de São Vicente: as duas grandes fábricas de tecidos e duas importantes lavanderias determinam a formação de várias favelas onde se abrigam seus empregados. O mesmo se verifica na Tijuca."

O choque ao ver o Largo da Memória:
"O Jardim Botânico é um dos bairros residenciais mais agradáveis que possuimos; o trajeto de bonde faz-se ora por uma parte nova, onde se constroem, cada dia, luxuosas habitações, ora por uma parte antiga, onde se acham as mais belas casas do velho Rio colonial.
Súbito, numa curva, inesperadamente, sem a menor transição que prepare o espírito, surge o Largo da Memória, em toda a sua miséria.
É com uma dolorosa surpresa que o transeunte novato descobre esta chaga horrível encravada no meio de zona tão próspera. O espetáculo que se lhe depara não é o que ele pensava encontrar tão perto de um centro de mundanismo, como o 'Jockey Club', ou de esporte, como o grande estádio do Flamengo. Ele vê diante de si um curioso amontoado de sórdidos casebres, uns colados nos outros, ou com pequenas vielas a separá-los, construidos de velhos pedaços de madeira, cheios de remendos, minúsculos e cobertos de materiais os mais diversos.
É o Largo da Memória."

Descrição parcial do Largo da Memória:
"Sua frente estende-se por uma distância correspondente a 400 metros. Em largura, continua cobrindo uma pequena colina até espalhar-se na parte de trás, pelas imediações do canal.
Não há serviço de esgotos, nem água encanada, por isso toda a sujeira destas 400 casas escorre pelo morro abaixo, qual massa preta, sempre em movimento, espessa e mal cheirosa. Os cachorros e gatos, que são numerosíssimos, revolvem toda essa imundície, na procura de restos com que possam matar a fome. No meio das ruelas, as crianças, sempre sujas e o mais das vezes em fraldas de camisa, brincam em pequenos grupos, fazendo panelinhas de lama, ou jogando bola de gude. As mães, sempre na porta do barraco, conversam com as vizinhas. Algumas, dentro de casa, lavam ou passam a roupa. Mas o interior é tão devassado que elas nada perdem do que se passa cá fora, nem os que passam perdem do que há lá dentro.
A falta d'água obriga-as a uma constante peregrinação até a Garí (sede da limpeza pública local), carregadas de latas e jarros; na parte da manhã, sobretudo, o movimento é tão intenso, que, para conseguir encher as vasilhas, elas formam longas filas, diante do portão da limpeza pública, o que contribui para peorar ainda o aspecto da zona."

Estatísticas sobre o Largo da Memória:
Barracos - Famílias - Habitantes
358 461 1590

Menores* - Adultos
832 758
* dos quais, 149 matriculados em escolas

Comentários da autora:
"1- O número de famílias ultrapassa de 100 o número de barracos, numa média de 9 famílias para 7 barracos, mais [de] dois casos de promiscuidade em dez [20% de promiscuidade]
2- Uma quarta parte das famílias são desamparadas; a maioria pela falta do chefe, e uma outra parte pela instabilidade e insuficiência do emprego do chefe.
p.51 3- É muito pequena a diferença entre o número de adultos e de menores, logo ou a mortalidade infantil dizima enormemente, ou é grande a quantidade de casais sem filhos, ou de indivíduos solteiros.
4- Entre os menores, a proporção dos que frequentam a escola é assustadoramente baixa: menos de 20%. Ora, considerando-se que a favela está localizada em uma zona central, tendo a uns 400 metros de distância duas ótimas escolas públicas: Júlio de Castilhos e Manoel Cícero, e que estas famílias são constantemente visitadas por moças do Patronato da Gávea, empenhadas numa obra de reeducação, é realmente desanimador.
5- Quanto aos adultos, mais da metade são operários, uma quarta parte de domésticos e uma minoria de comerciantes."

Sexo:
Masculino 787/ Feminino 832/ Total= 1619

Cor:
Branca 360
Preta 561
Amarela 6
Parda 480
Não declarada 212

Estado civil
Casado 392
Solteiro 942
Viúvo 102
Desquitado 1
Solteiro (amasiado) 117
Viúvo (amasiado) 1
Não declarado 49

Segundo as condições de trabalho:
Trabalhando 614
Desempregados 54
Que não trabalham
(crianças) 619
Desempregados
(por doença) 13
Não declarado 329
Total 1619

Origem dos moradores do Largo da Memória:

do total de 1619, havia 47 estrangeiros, sendo: 27 portugueses, 10 espanhóis, 3 russos, 3 suíços, 2 finlandeses, 1 mexicano e 1 italiano.
Entre os brasileiros, por estado de origem:
Amazonas 02
Pará 01
Maranhão 01
Piauí 01
Ceará 05
R.Grande do Norte 02
Paraíba 03
Pernambuco 18
Alagoas 11
Sergipe 09
Bahia 12

Espírito Santo 71
Rio de Janeiro 663
Distrito Federal 443
Minas Gerais 243
São Paulo 21

Sem especificação 33
Não declarada 79

Segundo a idade:
Menos de 1 ano 061
1 a 2 055
2 a 5 128
5 a 10 226
10 a 15 213
15 a 20 139
20 a 25 170
25 a 30 131
30 a 35 130
35 a 40 100
40 a 45 081
45 a 50 056
50 a 55 050
55 a 60 022
60 a 65 017
65 a 70 005
70 a 75 006
+ de 75 004
Não declarada 025

Segundo os salários mensais:
- de 100$000 095
100 a 200$000 154
200 a 300$000 197
300 a 400$000 073
400 a 500$000 061
500 a 600$000 005
600 a 700$000 003
+ de 700$000 004
Não declarado 022
Total 614

Segundo as profissões:
Alfaiate 02
Ama seca 01
Barbeiro 03
Biscateiro 20
Bombeiro 05
Caixeiro 08
Carpinteiro 08
Carregador 02
Cobrador 02
Comerciário 28
Condutor 01
Costureira 13
Empregada Dom. 182
Encerador 02
Enfermeiro 01
Ferreiro 01
Foguista 01
F.P.M. 18
F.P.F. 01
F.particular 02
Lavadeira 40
Mecânico 12
Militar 07
Motorista 07
Operário 152
Pedreiro 28
Padeiro 04
Peixeiro 01
Pintor 09
Porteiro 02
Sapateiro 04
Servente (operário) 47
Tintureiro 04
Trocador 02
Vigia 05
Aposentado 04
Mal Definidos 73
Sem Profissão 05
Escolares 134
Outras Profissões 33
Não declarada 270
Crianças 472

Negro-malandro:
"Malandro ? Convenhamos que sim, mas quem pode dizer tudo que impeliu este ser para a vadiagem, e que tão sumariamente desprezamos? Esta atitude representa o produto de tantas gerações enfraquecidas pelo trabalho mal retribuido, pela indiferença dos ricos, mal alimentados, minados por febres e infecções facilmente contraídas e raramente sanadas.
Filho de uma raça castigada, o nosso negro, malandro de hoje, traz sobre os ombros uma herança mórbida por demais pesada para que a sacuda sem auxílio, vivendo no mesmo ambiente de miséria e privações; não é sua culpa, se antes dele os seus padeceram na senzala, e curaram as suas moléstias com rezas e 'mandingas'.
O mais das vezes, era concebido no meio de padecimentos e aflições, aguardado com indiferença e fadiga, nascido e criado longe de qualquer conforto e higiene.
É de espantar, portanto, que prefira sentar-se na soleira da porta, cantando, ou cismando, em vez de ter energia para vencer a inércia que o prende, a indolência que o domina, e resolutamente pôr-se a trabalhar ?
p.63 Para que ele o consiga, é preciso, antes de mais nada, curá-lo, educá-lo, e, sobretudo, dar-lhe uma casa onde o espere com um mínimo de conforto indispensável ao desenvolvimento normal da vida.
Ora, não se encontra este mínimo de conforto naqueles sórdidos casebres do Largo da Memória.
Como poderá o pobre vencer a apatia, se a noite foi maldormida, num quarto exíguo, sem a menor comodidade, e onde até o ar lhe é pernicioso, pois está saturado da respiração de seis pessoas, que nele se comprimem ainda guardando o cheiro de fumaça e comida ordinária, pois aí também foi feita a cozinha?
Ficará mais forte, se em seu barraco o sol não penetra e na sua porta se acumula o lixo e a imundície, sem esgoto que a recolha; se estraga a vista na luz de querosene e não tem água para lavar-se?"

TEXTO No. 20: OS MORROS E O "PAI DOS POBRES"
Natureza e data do texto:
Passagens do livro do jornalista Henrique Dias Cruz, Os morros cariocas no novo regime - notas de reportagem. Publicado em 1941, em pleno Estado Novo e durante a construção dos Parques Proletários, é um livrinho encomiasta – provavelmente feito sob encomenda, de louvor ao regime, com o mapa do Brasil em verde e amarelo na capa. Sem indicação de local ou editora (livro encontrado na Biblioteca Nacional)

LOUVOR INICIAL AO ESTADO NOVO
"Digamos ao hóspede da cidade:
Vê esta avenida, estes arranha-céus ? É trabalho de um, dois anos. Esta praça, este jardim, antes cercados de casebres, se fizeram em meses. Levêmo-lo aos centros industriais. Mostremos-lhe as colméias de trabalho incessante. Digamos-lhe que esses homens têm o espírito tranquilo, confiante, porque nele só medram idéias sãs. Levê-mo-lo aos diferentes bairros, essas cidades da cidade e informêmo-lo que foram construídos em poucos anos. Que todo esse casario alegre, à margem das linhas férreas, zona antes pestilenta, charcos e matas incultas, surgiu graças ao proletariado que fez a morada própria, amparado por leis de previdência modernas. Tudo conseguido dentro da ordem, com trabalho fecundo. O poder da vontade alimentada, que não é milagre, mas afirmação. Que o turista veja, sinta o valor dessa juventude, dessa mocidade garbosa, saudável, disciplinada, marchando pela cidade. Já é o grande começo de uma pátria nova e forte. Que esse turista saiba que nesta década se operou a maior revolução trabalhista. Revolução sem estertores, sem punhos cerrados, sem o espumar possesso da demagogia e do partidarismo estreito. Cuidou-se da cidade, do seu progresso geral sem se esquecer do homem, da família, do seu conforto, do seu futuro.
(...)
Como velho repórter que somos,
(...)
A nossa peregrinação foi aos morros. Da cidade já se tem escrito e falado muito. Escolhemos deliberadamente os morros para as nossas reportagens porque neles é que estão as populações nas quais mais se refletiram os benefícios das leis sociais.
E ao lado da história dessas colinas, o seu progresso, o que o Estado Novo lhes deu ! "
(...)
Os xingamentos, pensamentos e expressões antes dirigidos à Favela:

que viviam "fora da sociedade, excluído da comunhão humana, como ainda há quem pense"
"'cidades de lata'"
iii. "Assistimos à sua transformação. Já não mete medo. Perdeu a razão de ser o título que lhe davam - 'reduto de criminosos' "
iv. "'negra mancha'"
v. "'deprimente para os nossos foros de civilização' versus a resposta do homem do morro 'granfinismo de olho torto'

Obs: Cruz enfatiza: são trabalhadores, não são criminosos; há "cuidados de relativa higiene" em alguns casebres, "um pouco de civilização"

O remédio para a favela, que o Estado Novo teria ministrado:
"A Favela, repitamos, em bem da mais pura verdade, já está relacionada com a cidade, já participa da comunhão social. E o remédio foi tão simples: ao invés de polícia, assistência moral*; ao invés de cadeia, escola, hospital, trabalho. E hoje, as populações pobres dos morros cariocas já sentem um pouco de felicidade na vida. Olhou para elas o Governo atual, repartiu com elas os benefícios das leis sociais."

* Na mesma página: "Nesse caso, por dever social, e, ainda, reencaminhamento moral, aplicar leis solicitadas pelo próprio interesse público era o que competia ao Estado."

O prestígio de Getúlio Vargas e sua mulher entre os habitantes do morro
"O nome do Presidente Getúlio Vargas, quer do homem, da mulher ou da criança do morro tem uma delicada estima, uma permanente e emotiva lembrança que se funda na certeza da bondade, sem artificialidade, do 'seu Presidente', e só comparável à de sua digna esposa, que para toda essa gente é personagem tutelar."

A origem da Favela:
"A favela tem a sua toponímia ligada à chamada 'guerra de Canudos'. Terminara a luta na Baía. Regressavam as tropas que haviam dado combate e extinguiram o fanatismo de Antônio Conselheiro. Muitos soldados solteiros vieram acompanhados de 'cabrochas'. Elas queriam ver a Corte...
Esses soldados tiveram que arranjar moradas. Foram para o antigo morro de São Diogo e, aí, armaram o seu lar. As 'cabrochas' eram naturais de uma serra chamada Favela, no município de Monte Santo, naquele Estado. Falavam muito, sempre da sua Baía, do seu morro. E ficou a Favela nas terras cariocas. Os barracos foram aparecendo, um a um. Primeiro, na aba do Providência, morro em que já morava uma numerosa população; depois, foi subindo, virou para o outro lado, para o Livramento.
Nascera a Favela. 1897."

O surgimento e a transformação do 'malandro' (em sambista)
"Dando baixa, os soldados, pela falta de trabalho, que constituía crise séria na época, continuaram na colina. Surgiu, então, o 'malandro', pejorativo profundamente injusto para homens que queriam trabalhar e não tinham onde, como ainda mais injusto o prêmio para brasileiros que acabavam de dar o sangue pela pátria.
O qualificativo 'malandro' corrompeu-se com o tempo. Agora designa o indivíduo esperto, que não se deixa iludir, e, também, não se lamenta, salvo quando a cabrocha abandona o 'barraco'...
Não é mais pois, o malandro, homem da desordem, que agride, que mata. A navalha e o revólver foram substituídos pelo pandeiro, pelo violão, pelo cavaquinho. É tangendo esses instrumentos que ele 'desacata'. Aquele tipo clássico, de calças largas e inteiriças, de salto carrapeta, chapéu de banda, desapareceu, civilizou-se. No lugar do lenço, a gravata. Não senta mais à beira do barranco para compor sambas. Vem para a Avenida. Vem fazê-los à mesa do Nice. Usa roupas de bom alfaiate.
A transformação foi completa. E explicável. Facilmente explicável. Valorizou-se a música popular. Habilidades foram aproveitadas. O povo canta. Os salões repetem. Dão sua arte, seu talento à poesia, à música popular, nomes de realce. O povo, que é sempre justo, aprecia, sente no interessante 'argot' das trovas musicadas, nos queixumes e nas alegrias dos cancioneiros 'do morro' toda a policromia da própria vida que passa na simplicidade da verdade, que dia a dia nos depara."

A vingança do homem da favela: a música
"O homem das favelas, agora, vinga-se, zomba batendo chapéu de palha e tangendo o 'pinho', orando à luz da lua, cuja luz entra pelos buracos do zinco, iluminando todo o 'barraco'...
A bondade dos que governam influe, reflete-se direta e profundamente na consciência popular."

"SAMBA - A GÊNESE DESSA CANÇÃO POPULAR" (que para o autor não nasceu na favela)

"Mulata da Baía... saias de renda... requebros...
Daí, talvez, o atribuir-se ao morro a origem do samba, nestas terras. A gente do morro só se preocupou com esse ritmo depois da 'gente da cidade' haver composto alguns sambas.
(...) Em linguagem africana é queixume como adoração. E do rito Jurubana, da Macumba, que, na Baía, tem grande divulgação. Foi do grande estado nortista, que o recebera do Congo, ainda na sua primitiva barbaria. A terra do Sr. do Bonfim soube, porém, condimentá-la para mandá-lo de presente aos cariocas...
O ambiente do morro renovou, revificou, mesmo, essa canção popular. Também na terra do angu deixara os 'terreiros' das 'macumbas' e fora para as folganças do povo. Tornou-se um amálgama de coisas de 'candomblê' e carnaval. Chiste, mofina, sátira.
Qual samba que não tem esses 'condimentos' ?
Ilustrando ainda mais a origem, os afrólogos explicam que a 'chula' integra o samba. Aquela dansa, movimentada, quente, buliçosa, que os palhaços dansavam com as pernas em arco, era um dos números de maior sucesso nos circos de cavalinhos. O 'clown' que melhor dançasse a chula era o preferido da platéia. Benjamin de Oliveira, o mais velho dos palhaços vivos - 70 anos de idade e mais de 50 de picadeiro - foi exímio dansarino de 'chula'.
Era natural, ritmo popularíssimo, melodia fácil - o carnaval é disso um exemplo - o samba, em que se falava tanto de 'malandro' e 'malandragem', que o homem do morro, por fatalidade atávica, dele fizesse música caracteristicamente sua.
Chiquinha Gonzaga, Sinhô, Eduardo Souto, os velhos, Ari Barroso, Freire Jr., os novos, como outros autores da melodia tão popular nunca moraram na Favela. Nem uma só vez - quem sabe ? - subiram os caminhos tortuosos e escorregadios que vão dar na 'Pedra Lisa' ou no 'Grotão' ...
Foi Sinhô quem compôs o primeiro samba no Rio. Entre todos, esse compositor era o melhor. Era o que mais flagrantemente sabia aproveitar os motivos populares. Eduardo Souto é mais músico que trovador, na verdadeira compreensão do termo. Chiquinha Gonzaga só mandava, na maioria, para o povo suas músicas admiráveis através do teatro. Mas Sinhô fazia tudo na rua, entre o povo. Numa mesa de botequim, numa noite de boêmia, compôs 'Malandragem', dos seus maiores sucessos. Sucesso tão grande que serviu de tema para outros inúmeros sambistas sem igual inspiração.
O primeiro samba, em que se falou da Favela, nasceu de um processo em que o saudoso compositor traduziu toda a angústia dessa gente. Realmente, o prefeito Carlos Sampaio pretendeu dar a esse morro o mesmo destino que dera ao do Castelo.
Pois sim! ... O poeta, então, cantou:

Minha cabrocha
A Favela
Vai abaixo
Isso é obra do despeito
Da flor sumítica
E amarela.

Essa 'flor sumítica e amarela' era o 'homem da cidade'...
Maus políticos, os que iludiam a consciência do povo, esses tinham, no samba, o verdadeiro 'tribunal popular'. Fosse qual fosse. Muitas marchinhas carnavalescas e não carnavalescas valeram mais, muito mais do que vários discursos de esbofados oradores, quer os pronunciasse na antiga Cadeia Velha, quer no velho palácio do Conde dos Arcos.
O povo sabe bem o que quer..."
"Samba lembra 'bamba', que se atribue, igualmente, à Favela. É da mesma origem africana. Em livros de assuntos afro-brasileiros encontramos páginas inteiras sobre o 'bamba'. É nacional do Congo. Significa homem muito forte, destemido, agressivo mesmo. Lenda deveras interessante. E ao valente de verdade se aplica bem essa denominação. É um gigante e, cada passo que dá, anda uma légua..."

Verdadeiramente do morro é a batucada [pernada], que é diferente do samba
"Do morro, legitimamente, é a batucada. O samba é dolente. Arrastado. Preguiçoso. Mas a batucada é ação, agilidade, destemor. Ela foi preocupação máxima dos antigos capoeiras. Um batuque, quase sempre, valia por um duelo de morte. Tinha tôda a rudeza da maldade, da sanguinolência. Essa herança o tempo desvirtuou,
p.20 apagou-lhe a selvageria. Tornou-se mero divertimento, em que o homem do morro mostra não só habilidade coreográfica, como destreza, vigor físico.
Forma-se uma roda. A mulher também entra. (Há algumas que batucam melhor do que os homens...) Os tamborins, pandeiros, recos-recos e a popularíssima cuíca fazem a cadência, acompanham o cantor que tem como que orgulho de si mesmo. Os parceiros, um a um, experimentam os da roda. Fortes joelhadas. O corpo bamboleia. O mais forte, o mais 'bamba' o substitui no meio do círculo. É assim, corre toda a roda. Horas e horas seguidas, sem cessar, a batucada enche o ar com a sua cadência, as suas canções.
Hoje, a batucada é a maior atração do carnaval da Praça Onze. De todos os morros, de todas as favelas descem grupos festivos, fantasiados, cores alegres, mulheres de saias vermelhas, azúes, verdes, muito rodadas, muitos colares, balangandãs...
Todos esses batuqueiros reunem-se no 'salão de festas da Favela', durante quatro dias e outras tantas noites. Ordem absoluta. Prazer imenso. Constituem essas festas, até, número de turismo dos mais admiráveis e admirados.
O Govêrno faz bem. É festa legítima do povo. E só é alegre quem é feliz."

"O salutar efeito das leis. O SALÁRIO MÍNIMO NA ECONOMIA DAS FAMÍLIAS DOS MORROS"

"Se alguém, como nós, conhecendo os morros cariocas, as suas populações, não os tenha visitado nestes últimos dez anos, voltasse agora a visitá-los, teria a maior das surpresas. Os casebres, na maioria, deixaram de ser valhacoutos de criminosos costumeiros. São, hoje, lares, embora modestos, moradas de famílias, muitas com prole numerosa. O 'mulato bamba', a 'cabrocha desabusada' são meros motivos de trovas populares. Não mais emblemam as favelas da cidade. Os próprios 'bambas' se corrigiram, envolvidos que foram pelo novo ambiente, pelos exemplos oriundos da justa assistência dada pelo Estado. Todo homem, toda coisa é perfectível. Dê-se-lhe direção, orientação."

Obs: Na p.12 o autor diz: "Conhecemos há 3 décadas a Favela. Tê-mo-la subido e descido constantemente"

"Uma grande obra urbana O DESMONTE DO SANTO ANTÔNIO / CUMPRINDO UMA SENTENÇA CENTENÁRIA - AMPLIANDO A CIDADE"

"O morro de Santo Antônio tem dado muito trabalho à administração pública e à justiça. Isto é, deu, não dá mais."
(...)
"Em 1852, por não precisar o convento dele, o morro foi vendido pela quantia de 180 contos. Depois houve vários donos.
Graças à nova ordem imposta nas coisas públicas, foi, agora, lavrada sentença do desaparecimento. Lavrada, propriamente, não. Confirmada. Todo o morro pertence à União.
O Santo Antônio já é considerado trambolho há séculos...
A necessidade de arrazá-lo [sic] é séria cogitação em nome da higiene, da comodidade, de 'arejar a cidade', desde os princípios do século XIX. Há frequentes referências nesse sentido. Em 1850, o Rio fora assolado pela febre amarela. (...) Por esse motivo as autoridades, principalmente sanitárias, mais se preocuparam com o problema da ventilação urbana, a higiene coletiva. É velhíssima, pois, a sentença de destruição do monte. Sobeja razão. A cidade já precisava de espaço vital... Realmente, quando se transita pelas movimentadas avenidas, pelas praças amplas, claras, permanentemente lavadas de ar em liberdade, entre os majestosos arranha-céus da Esplanada do Castelo, que ainda se levantam entre muitos outros, é que se sente, que se pode prever o que o Rio será, ao vir ganhar mais o espaço do morro de Santo Antônio.
(...)
A nova área terá limites em Senador Dantas, Carioca, Pedro I, Lavradio, Arcos, Evaristo da Veiga."

"Era uma favela o Santo Antônio,
em pleno coração da cidade. Casebres de lata, ocupados então por gente perigosa, remanescentes dos 'capoeiras'. No Governo Rodrigues Alves. Começa a remodelação da cidade pelo prefeito Passos. Frontin rasga a Avenida, 1800 metros entre casario compacto. Outra, orlando o mar. Em todos os cantos ressoam ecos das ferramentas transformadoras. A cidade torna-se de bonita em estonteantemente bela.
E a favela do Santo Antônio ? Ficaria ? Não era possível. Alí, encostado ao morro, o Lírico. Os 'malandros', naquele 'ginga-ginga', a misturar-se com as cartolas dos grandes elegantes... a Guarda Velha, também ao lado... muito pensar deu ela ao grande prefeito. Muitas vezes Pereira Passos, vestido no seu fraque e de chapéu côco - indumentária absolutamente igual à do seu grande colaborador - mestre Frontin - parou a olhar aquela favela, aquela gente, a subir, a descer, latas à cabeça, pela enlameada ladeira... Que fazer ? Onde pôr tanta gente ? Certa noite, tôda cidade se alumiou pelas chamas, que lambiam, destruíam rapidamente os casebres. Incêndio voraz*. Foi assunto para jornais, dias seguidos.
Houve quem levantasse suspeita sobre a origem do fogo. Teria sido ateado propositalmente. E o interessante é que o saudoso prefeito fazia tanto caso do sórdido aleive, que dizia:
O fogo é o meu melhor auxiliar para reformar a cidade."

* Foi em 1916, ver p.58 deste livro.

Os planos para o morro de Santo Antônio em 1921:
"Em 1921, período da 2ª fase da remodelação da capital, houve projeto de abertura de um túnel. Essa passagem seria do largo da Carioca à praça dos Arcos. Chegou, mesmo, a ser decretado o necessário crédito para essa vultosa obra.
Mas, não foi além. Também, na mesma época, outro [plano], o de vários embelezamentos. Já a favela tinha desaparecido de todo [ironia], por ordem expressa do Presidente Epitácio. Para o rei Alberto não ver..."

[Porto Artur] Durante a Revolta da Vacina*: o canhão do morro da Mortona
"É nesse estado de coisas, nessas horas de inquietação que corre pela cidade a terrificante notícia:
Sobre um dos morros, um grupo de homens havia armado um canhão, assestando-o contra a cidade !
Que morro ?
O da Mortona !
As praças, as ruas, os morros, todo o lugar donde se pudesse olhar a improvisada fortaleza,se cobriu de gente curiosa. Profunda emoção. Aquela gente sacrificaria a cidade ! ...
Mas, que gente seria essa ? E tão bem armada ?
A imaginação popular voou largamente tangida pela fantasia. Muita lenda surgiu.
Até a madrugada os curiosos não arredaram pé dos mirantes.
Estávamos a 14 de novembro. Em todos os cantos da cidade não se falava de outra coisa - o canhão da Mortona. A vida da cidade quase paralisara. Não se pensava noutra coisa. Passa-se a tarde, passa-se a noite. A manhã seguinte.
Urgia cautelas. Nada de precipitações...
(...)
" 'PORTO ARTUR' - A MAIOR 'BLAGUE' CARIOCA
Retomemos o fio do canhão da Mortona. O título de 'Porto Artur' fôra dado por lembrar a resistência desse forte na guerra russo-japonesa.
Soam clarins. Rufam tambores. Na praça da Harmonia toma posição uma companhia do antigo 38 de infantaria. Do outro lado do morro, outra fôrça. Soube-se que o 'comandante' da fortaleza era um desordeiro terrível, o 'Camisa-Preta', capanga de irrequieto político. Tipo facinoroso. Eis que de repente circula uma notícia mais sensacional ainda do que o próprio canhão:
Um popular conseguira galgar o morro sorrateiramente, e descobrira tudo. Qual canhão, qual nada ! Apenas um inofensivo combustor de iluminação colocado sobre um carrinho de mão!...
A mais notável 'blague' carioca."

* Obs: O autor considera a Revolta da Vacina obra de agitadores e desordeiros; o item chama-se "A Mortona. (...) A maior 'blague' carioca"

A velha malandragem a serviço dos políticos e em nome da falsa 'soberania popular':
"Até o advento do Novo Regime a 'soberania popular' era rótulo de mercadoria falsificada, contrabandeada por grupos diversos, que, por trás da bandeira da 'salvação dos direitos sa-
p.50 grados do povo' - liberdade, justiça, etc. etc. - mascaravam os interesses pessoais. Demonstremos. O valente, o homem destemido, para quem a vida pouco valia, quer fosse a sua, quer a do próximo, era elemento precioso para os políticos. Quem acompanhou, assistiu em tais tempos eleições, sabe bem que a maioria dos políticos tinha a seu serviço uma malta de desordeiros, de gente para 'o que desse e viesse'. Valente que matasse outro valente tornava-se 'persona grata' para certos chefes de partido. Tornava-se seu íntimo. Comia à mesma mesa. Essa ostentação era cartaz com que acenavam a outros políticos contrários ao seu grupo. Permitam o argot [gíria] - para 'respeitarem as caras' ...
À própria polícia - negava-se o direito de manter a ordem. Era reduzida à função de simples espectadora. A 'soberania do povo'...
Desse modo venciam por vezes as eleições, não quem reunia maior número de votos, que saísse das urnas, mas quem contasse com mais tiros, que saísse das armas dos valentes postados às portas dos colégios. O cidadão honesto, o elemento legítimo da sociedade, o homem útil, que, além do mais, tinha amor à vida, à tranquilidade, não participava dessas manifestações cívico-políticas. Os mais pacatos nem de casa saíam...
Isso numa cidade civilizada. Na capital da República..."

Os principais malandros a serviço de políticos estavam na Saúde. Como agiam.
"Na Saúde vicejaram as mais preciosas flores desse jardim. Gente da estirpe de Buldog, Galeguinho, Sapateirinho, Zé Moleque, Gabiroba, Corneta Gira, como em outras bandas, Zé do Senado, Pernambuco, vários baianos, vários Cabeleiras, vários Mulatinhos, muitos outros iguais estiveram sempre a serviço dos políticos de profissão. Não havia dêstes nenhum chefe de paróquia, que, nos dias de eleição, não levasse de reboque uma malta de tal gente. Quiséssemos nós, e encheríamos páginas com episódios sangrentos desses dias, em que o cidadão devia exercer o seu dever cívico. Cabo Malaquias foi capanga-mestre de um político que se celebrizou não só pelos grandes e nunca negados talentos como por conhecer, ele próprio, a arte de dar cabeçadas e passar rasteiras... Desse grupo eram 'Cardosinho' e 'Gaguinho', ambos tipos perfeitos de criminosos. Ainda há muitos anos, residia na Saúde e era aí estabelecido um indivíduo, sôbre o qual a polícia mantinha permanente vigilância, do qual dependeu a vitória eleitoral de determinado político. Quem ficasse com os livros vencia a eleição.
Era assim que a 'soberania popular' se manifestava. A legenda era 'ou voto, ou tiro'. Mas, tudo isso acabou. Era no tempo do 'Camisa Preta'..."

História do surgimento da Mangueira*:
"Até mil novecentos e pouco era matagal completo. A propriedade das terras era de Saião Lobato. Agora é condomínio. Chamava-se, então, Morro do Telégrafo. O nome que tem hoje proveio da estação da Central do Brasil. Em 1908 era prefeito do Distrito Federal o general Serzedelo Correia. Resolveu reformar a Quinta Imperial, hoje da Boa Vista. Cidadão pacato, que tivesse amor à vida, não passava por aquele local, nem mesmo de dia. Nele se homiziava tôda casta de facínoras. Justificou a idéia de extermínio desse reduto perigoso a instalação do Horto Florestal**. Obra de duplo efeito. Serzedelo Corrêa meteu mãos à obra de reconstrução do majestoso parque, que Antônio Lopes, rico negociante português, presenteara a D.João VI para sua real morada. Dentro da imensa vegetação tinha quartel o 9º Regimento de Cavalaria, de que era comandante, o bravo Joaquim Inácio. Em derredor, casas em que moravam soldados e civis. Essas casas tinham de ser demolidas. Tudo se arranjou bem. Numa delas residia o cabo-ferrador Cândido Tomaz da Silva, o 'Cardosinho'. Ao receber ordem de mudar-se, procurou ele seu comandante. O saudoso e severo soldado, de coração magnânimo, resolver dar, não só ao cabo como aos outros soldados que tivessem família, o material das demolições para que levantassem novas moradas, noutras bandas. 'Cardosinho' escolheu o morro da Mangueira. Foi êle, pois, o primeiro morador dessa colina. Logo depois, outros barracões apareceram, cobrindo o chão do antigo morro do Telégrafo. Surgia outra cidade-presépio***. Deram-lhe a alcunha de 'Petrópolis dos Pobres'...
Em 1916, houve o incêndio no Santo Antônio, a que aludimos noutra crônica. Os moradores tiveram permissão para se transferirem para a Mangueira****.
Da Favela, com a derrubada de casebres junto às linhas férreas, ainda novos moradores foram para lá. Hoje é um dos morros mais habitados.
Muitas ameaças houve sôbre a cabeça des-
p.59 sa pobre gente. Ora, uma intimação judicial de desocupação dos casebres em curto prazo; ora um projeto de obra pública, envolvendo desapropriações no morro. Mas, o provérbio de que 'a corda rebenta pelo lado mais fraco' saiu errado. Recentemente, um magistrado, estudando profundamente o caso, deu à gente da Mangueira o direito de morar. Era a última palavra. Houve, nesse dia, grande festa de regosijo no morro."


*Obs: O título do capítulo é: "A MANGUEIRA ESPELHANDO A SUA ALEGRIA NAS CANTIGAS POPULARES - TAMBÉM ESSE MORRO TEM ASSISTÊNCIA DO ESTADO."
** O autor parece dizer que o Horto foi uma desculpa, um pretexto, e que o verdadeiro objetivo era acabar com o "antro".
*** Que expressão fantástica: espírito cristão diante da pobreza sagrada ?
**** Ainda hoje, 1999, uma das localidades de Mangueira chama-se Santo Antônio, se eu não me engano, residência de C.Cachaça.

Mangueira: lugar de destaque no samba*
"No seio do samba a Mangueira tem lugar de destaque. Tem sido motivo para várias canções populares bem interessantes. Por isso mesmo disse um cantor:
Em Mangueira
Na hora da minha despedida
Todo mundo chorou
Outro:
Quem vai a um samba,
Em Mangueira,
Chorando fica a noite inteira

Mas, não se pense, não se julgue que o pessoal é triste. O povo é bem alegre. É tradicional o seu grupo carnavalesco 'Estação Primeira'. A maior parte dos nossos cancioneiros populares gosta desse morro, pondo-o e sua gente na cadência do sammba."

* Seria coincidência esta boa-vontade toda com a Mangueira por parte do Estado Novo e a importância musical de Mangueira ? Um exemplo da transformação de malandros em sambistas (ver texto seguinte) ? Sem falar no fato de que Mangueira não ficava no centro da cidade...

Ação benéfica do Estado Novo em Mangueira*:
"O que vem acontecendo nos outros morros, ditos 'favelas', também o sente o da Mangueira. Lá têm ido serventuários da Assistência Social** para minorar o lado mau da vida de tanta gente.
Nesse morro, como era de esperar pelo amparo que lhe dá o Estado, verifica-se também um fenômeno digno de mencionar-se: os casos de natureza policial diminuem consideravelmente. É a civilização que sobe o morro...
Ajudados pela justiça, certos de que não serão surpreendidos pelo meirinho, que os vá pôr para fora de seus barracões, muitos proletários levantam moradas definitivas*** nesse morro. Já há escola para os seus filhos e outros cuidados do Estado.
Há pouco mais de dois anos foi construído um novo lance do viaduto de São Francisco Xavier, aonde vai Ter a rua Visconde de Niterói. Essa rua circula a colina. Logo apareceram algumas novas lojas de comércio, tendo sido o logradouro melhorado. É iluminado a eletricidade.
Há razão**** para os habitantes da Mangueira cantarem aqueles versos no ritmo da música tão do seu e do gosto carioca:

Não há, sim, nem pode haver
Como em Mangueira não há;
Nosso samba vem de lá
Nossa alegria também.

Gente feliz, porque canta."

* Nisso o E.N. se parece com o populismo brizolista: elege alguns morros mais famosos para empreender ações mais conspícuas.
** Ver, p.ex., pp.24-28 em que se fala de ações de assistência social e médica nos morros do Querosene, e 'Rocinha'
*** O mesmo aconteceu na década de 80... Vagalume já havia notado esta característica de Mangueira oito anos antes em seu Na roda do samba.
**** Como se o samba e a alegria de Mangueira tivessem surgido com o Estado Novo...

Louvor final* à obra do Estado Novo nas favelas através do exemplo do Largo da Memória**:
"O panorama das 'favelas', dos morros cariocas, mudou completamente nestes dez anos. Garantimos essa afirmação, após a peregrinação que fizemos por esses núcleos.
A eliminação dessas 'chagas sociais', desses 'centros criminosos' se tem de fazer lenta e naturalmente, pelo avanço irreprimível da civilização.
Aí vão as provas reveladas pelos números. Dentre livros de registro, mapas, quadros estatísticos***, tomamos o relatório de uma das menores 'favelas' e na qual, também, os benefícios do Govêrno não se tem feito sentir em menor escala, a do Leblon, do Largo da Memória. É uma exposição interessantíssima pelas revelações justas que o chefe do respectivo Centro Social**** alinha com algarismos.
Na severidade da linguagem oficial dessas informações, há muito que lobrigar da grandiosa obra social do novo Govêrno.
Esplêndidos efeitos das leis feitas com o coração.
Naquele local há 300 barracões. Abrigam-se neles nada menos de 1.200 criaturas *****. Antes de tudo, o aspecto geral foi mudado. Melhoraram e caiaram os barracões. Eliminaram-se certos inconvenientes relativos à higiene coletiva.
Um detalhe interessante: em 1934 tiveram começo as obras do canal. Houve, então, uma tentativa de dispersão da população residente nas imediações******, designando-se vários lugares para isso. O problema quase ficou resolvido. Mas, ao chegar a certo ponto, não foi mais possível prosseguir com medidas tão radicais. O aconselhável era remediar o mal, o que aconteceu. Os próprios operários das obras do canal, em grande número, instalaram-se no local, construindo barracões. Dois anos depois, i.e. em 1936, inaugurado o hospital Miguel Couto, tôda aquela gente se valia, imediatamente, da assistência médica, fazendo-se, ainda, profilaxia de determinadas enfermidades. Não houve uma família que não tivesse, pelo menos, um membro em tratamento no modelar estabelecimento. Muita saúde se restabeleceu. Muita vida se salvou."

* O capítulo intitula-se: "RECAPITULANDO 15 MIL PESSOAS SOCORRIDAS - O EXEMPLO DOS FATOS - AS LEIS FEITAS COM O CORAÇÃO"
** Curiosamente, vai ser incendiada por "Henriquinho" Dodsworth em 1942, no ano seguinte; o E.Novo desistiu de melhorá-la ?
*** Creio que foi a primeira vez que se fez um levantamento deste tipo com alguma favela carioca, 44 anos após seu surgimento...
**** Centro Social ? do Governo ?
***** Sempre a média de 4-5 pessoas por 'barraco', nada de amontoado, ao contrário do que se pensa; ainda hoje, em Acari, a média é exatamente essa;
****** "dispersão da população", i.e.: "remoção"

Informações de cunho econômico sobre a população do Largo da Memória:

"Continua a informação oficial, ilustrada sempre com quadros estatísticos, mapas minuciosos etc:
'A maioria das famílias tem ao dispor de 100$000 mensais ou sejam 3$400 por dia, o que é razoável numa família operária*!
E há, ainda, outras, 107 sobre 255**, em que a média é mais elevada. Os casos de miséria, propriamente dita, não atingem a 10%, casos esses que as autoridades procuram solucionar com o encaminhamento à secção de reemprêgo, a exemplo do que se faz em outras favelas !
A quase totalidade dos barracões pertence aos seus moradores. É que se acabou a exploração ignóbil de improvisados 'proprietários' diante das providências das autoridades. Os demais são alugados por preços que variam entre ... 30$000 e 70$000 mensais***. Os que construíram gastaram entre 400$000 e 600$000. Também há vários casos que custaram mais de um conto de réis.
O montante do custo dos barracos sobe a cem contos de réis.
Essa gente não viverá com muito conforto, mas tem tranquilidade relativa na vida."

* Isto dá, supondo-se uma família de 4 pessoas, todas trabalhando, 400$000 por mês contra 720$000 do salário mínimo;
** São 255 ou 300 famílias ?
*** Até 10% do salário-mínimo, portanto;

Largo da Memória "Aspecto social - profissões"

"O aspecto social-trabalhista oferece detalhes não menos impressionantes.
Apuraram as investigações transformadas em algarismos, que a população - não se esqueçam de que estamos tratando de uma das menores favelas cariocas - se constituiu de modo seguinte
Comerciários, inclusive pequenos comerciantes ...........................41
Operários especializados (carpinteiros, pedreiros) ........................56
Funcionários municipais..............................................................28
Trabalhadores braçais .................................................................17
Militares .................................................... .................................12
Sem colocação .............................................................................36

Vê-se que a quantidade de desempregados é relativamente mínima*.

* Não acho, pois o total dá 190, dos quais 36 "sem colocação", o que dá quase 19% do total dos trabalhadores ! A não ser que ele esteja estabelecendo uma comparação com aquilo que se imaginava: de que todos fossem "parasitas".

Largo da Memória - dados da Assistência Social:

"Nas visitas constantes e cuidadosas dos funcionários da Associação Social aos barracões, foram realizados trabalhos que podem ser traduzidos no seguinte quadro:

Encaminhados aos hospitais para tratamento* ...................................94
Encaminhados às escolas* ..................................................................141
Recolocação ........................................... ...............................................38
Exames de saúde e vacinação ................................................................64
Encaminhamento para o registro civil (inclusive adultos) ............. ..........11
Internação em hospitais ...........................................................................9

* Acho ambos estes números altíssimos para uma população com cerca de 1 200 pessoas.

Conclusão sobre o Estado Novo e as favelas:
"Nas favelas do Distrito Federal, em geral, já foram amparadas mais de 15 mil pessoas. Não é possível exigir-se mais do Estado. O Govêrno não tem regateado assistência à gente das fa-
p.67 velas e as compensações morais e sociais são gigantescas. Profundamente humanas.
As populações desses lugares têm razão de pronunciar o nome do Presidente Getúlio Vargas com respeito e veneração. É o que elas fazem."

TEXTO No. 21: O CENSO DE 1948
Natureza e data do texto:
Em 1948, os moradores de favelas, quarenta anos depois, são objeto do primeiro censo estatístico específico promovido pela Prefeitura do então Distrito Federal. Encontrou-se um número de 105 favelas onde moravam 138.837 pessoas, menos da metade da estimativa anterior de 280 mil moradores de favelas. O número de pessoas do sexo masculino superava ligeiramente o número de mulheres. Crianças e adolescentes representavam, somados, mais de 48% da população total das favelas. Apenas 15,93% da população tinha mais de 40 anos. Mais de 60% dos moradores de favelas eram migrantes, sobretudo do Estado do Rio (28,84%), Minas Gerais (16,44%) e Espírito Santo (5,93%). O analfabetismo alcançava 62% da população residente nas favelas, número que caía para 51,54% se retirados os menores de 7 anos (contra 20% de analfabetos no D.Federal como um todo em 1940). Dentre os que declararam ter uma profissão definida, os trabalhadores da indústria eram maioria (50,57%), a sua maioria trabalhadores da construção civil. A zona norte concentrava 63,84% das favelas, contra 20,9% das localizadas na zona sul (e 13,64% no centro da cidade). Não havia favelas em Jacarepaguá, enquanto Botafogo, Méier e Pernha dispunham do maior número. As maiores favelas da época eram as do Jacarezinho, Mangueira e Praia do Pinto. Apenas 3,92% das casas tinham instalação sanitária e havia água encanada em somente 7,24% das residências; a luz elétrica estava presente em 38,39% das casas.
O texto que precede as tabelas estatísticas, elaborado em 1949, surpreende, ainda mais por se tratar de um documento oficial e público, decerto distribuido às diversas instâncias governamentais e de larga circulação. Para o autor do mesmo, que era o Diretor do Departamento de Geografia e Estatística da Prefeitura do Distrito Federal, os "pretos e pardos", prevaleciam nas favelas por serem "hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às exigências sociais modernas"; e diz mais:


"7. Relativamente à cor prevalecem os pardos, 49.811 ou 35,88%, seguidos dos pretos com 48.695 ou 35,07% e dos brancos com 40.213 ou 28,96%. Os amarelos aparecem com uma porcentagem muito diminuta.
Essas percentagens para os pardos e pretos são fortes comparadas com as do Brasil segundo o censo de 1940, 21,2% para os pardos, 14,7% para os pretos e 63,5% para os brancos, e mais ainda com as porcentagens do Distrito Federal, respectivamente, 17,3%, 11,3% e 71,1%.
Não é de surpreender o fato de os pretos e pardos prevalecerem nas favelas. Hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição, e mal ajustados às exigências sociais modernas, fornecem em quase todos os nossos núcleos urbanos os maiores contingentes para as baixas camadas da população.
(...)
12. (...) As características e a capacidade biológicas [sic] de um povo são transmitidas através de várias gerações e constituem substratum sobre o qual a sua vida é edificada. Na ausência de animais humanos biologicamente sadios, não há riqueza de recursos naturais, nem melhoramento de atividades institucionais que possam assegurar produtividade elevada.
(...)
O preto, por exemplo, via de regra não soube ou não poude [sic] aproveitar a liberdade adquirida e a melhoria econômica que lhe proporcionou o novo ambiente para conquistar bens de consumo capazes de lhe garantirem nível decente de vida. Renasceu-lhe a preguiça atávica, retornou a estagnação que estiola, fundamentalmente distinta do repouso que revigora, ou então - e como ele todos os indivíduos de necessidades primitivas, sem amor próprio e sem respeito à própria dignidade - priva-se do essencial à manutenção de um nível de vida decente mas investe somas relativamente elevadas em indumentária exótica, na gafieira e nos cordões carnavalescos, gastando tudo, enfim, que lhe sobra da satisfação das estritas necessidades de uma vida no limiar da indigência. Por outro lado, o índio prefere desaparecer a ter que suportar o trabalho organizado.
O vigor depende parcialmente das qualidades da raça, mas essas dependem em grande parte do meio físico, principalmente do clima, que é fator importante na determinação das necessidades.
As classes atrasadas são incapazes de suportar trabalho de grande duração. Para os seus representantes, as formas de trabalho tidas como rudimentares pelos indivíduos de raças mais adiantadas são consideradas como superiores."

Fonte: Major Durval de Magalhães Coelho, "Aspectos Gerais do Censo das favelas" , Prefeitura do Distrito Federal, Secretaria Geral do Interior e Segurança, Departamento de Geografia e Estatística, 1949. pp.8,10-12. Parte deste texto foi citada em ZALUAR,Alba & ALVITO,Marcos. Um século de favela.Rio de Janeiro,FGV,1998.p.13.




TEXTO No. 22: LACERDA E A POLÍTICA DE REMOÇÃO DE FAVELAS
Natureza e data do texto:
Trecho da auto-biografia do ex-governador do Estado da Guanabara (entre 1960-65), Carlos Lacerda (Depoimento. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1978, pp.232-4), em que ele fala da política de remoção de favelas.

"Mas o que eu estava contando é que fomos muito criticados por causa do programa de transferência das favelas. Primeiro, as pessoas esquecem que, em muitos casos, não transferimos, procuramos melhorar as condições das favelas no próprio local. Agora, havia favelas que eram propriedade eleitoral do Deputado Amando Fonseca, aquele que foi da guarda pessoal do Getúlio e que hoje também se dá comigo. No Rio, havia políticos que viviam da existência de favelas. Era uma bica que botavam! Uma lata de lixo! E viviam disso, se elegiam com isso!
Tivemos que remover [grifo meu] algumas favelas. Removemos até algumas que existiam em terrenos muito valorizados, onde fazer casinhas populares representava um tamanho desperdício que seria um crime contra o pobre. Porque você estará diminuindo a receita do Estado em impostos se fizer pseudobairros populares na zona mais valorizada da cidade, estará portanto diminuindo a capacidade que o governo tem de fazer coisas, inclusive, em benefício do próprio pobre. Quando fizemos a Vila Aliança, em Bangu, e quando fizemos a Cidade de Deus, em Jacarepaguá, não fizemos lá por acaso. É que tínhamos desapropriado 600 hectares de terra junto à Base Aérea de Santa Cruz para implantar ali a zona industrial do Estado. Eu queria fazer lá a COSIGUA, que afinal só foi feita recentemente, quando o grupo Gerdau, de Porto Alegre, se associou ao grupo Thyssen.

Conseguimos trazer o terminal da Central do Brasil até lá e também a licença para fazer o porto, mas não conseguimos fazer a COSIGUA. Primeiro, porque acabou o nosso governo, segundo, porque, com aquelas lutas todas, evidentemente o Governo Federal ficou contra. Mas a idéia era de que nas proximidades da zona industrial ficassem situados os bairros operários, de maneira que o sujeito tivesse que se deslocar muito pouco para chegar ao trabalho. Essa foi a idéia. Agora, se depois não deram seguimento ao projeto, é outra coisa. Mas, de certo modo, até que deram, pois hoje a zona industrial está lá. Mas não posso responder se não deram o necessário impulso e se a COPEG, uma companhia do Estado criada por nós para estimular o desenvolvimento industrial da área, se tenha transformado em vendedora de letra de câmbio e de letra imobiliária para dar lucro ao Estado. Disso não tenho culpa.
Mas a transferência de favelas foi uma coisa muito curiosa, como, por exemplo, a favela do Morro do Pasmado, onde eu queria fazer o Hotel Hilton e onde hoje o Tamoio está fazendo um mirante. Foi uma coisa indescritível! Surgiu uma lenda de que o pessoal não queria mudar. E alguns não queriam realmente, porque eram operários da construção civil nos arranha-céus de Copacabana e preferiam morar ali pessimamente, mas perto do trabalho. Agora, a mulher e os filhos que ficavam em casa, na lama e na miséria, queriam sair. Os homens queriam a comodidade de morar perto do trabalho. Uma forma de machismo...
Então Sandra [Cavalcanti] pegou aquele mulherio todo, meteu num ônibus do Estado e levou-as para ver as casinhas que estavam sendo feitas na Vila Aliança. Quando voltaram para casa, organizaram uma revolta de mulheres: 'Temos que mudar pra lá'. Foram elas que resolveram mudar. E quando a favela ficou vazia, tocamos fogo nos barracos. E aí me chamaram de Nero. O problema era o seguinte: não havia condições de demolir nada, sem pôr em risco até a higiene e a segurança dos operários que fossem trabalhar na demolição. Aquilo ali era um ninho de ratos, de tétano, e o diabo a quatro.
Havia uma favela, por sinal não sei por que chamada Getúlio Vargas, que era talvez a pior do Rio de Janeiro. Era pequena e ficava exatamente em frente ao Hospital Miguel Couto, na Zona Sul. Foi sendo levantada num terreno baldio, pertencente a não sei quem. Ficava a dois passos do Jockey, exatamente em frente à praça onde está o campo do Flamengo e ao Hospital Miguel Couto. Toda manhã, mas toda manhã - ninguém me contou, eu vi -, aparecia uma criança para se tratar no hospital com a cara roída por rato. Tinha ratazanas desse tamanho, assim! Você, para chegar a um barraco, tinha que passar por dentro de outros dois ou três. A promiscuidade era total: dormia o casal com quatro ou cinco filhos pequenos na mesma cama. Como é, então, que você vai urbanizar no local um negócio desse ?
O caso da Favela do Esqueleto... Não o choro como injustiça, mas realmente tem o seu lado irônico. No governo do Prefeito Pedro Ernesto [interventor, 1931-5], o plano hospitalar feito, entre outros, por um homem que foi muito meu amigo, Alberto Borgerth, médico de meu avô, propunha-se a fazer hospitais como se fossem hospitais de vanguarda, uma coisa meio militar: hospitais de pronto-socorro, hospitais de retaguarda, até os grandes hospitais. Então, o maior de todos seria aquele no Maracanã. Mas a construção ficou parada e lá se montou uma favela. Dentro do esqueleto e em torno da obra. Ali, no começo de Vila Isabel, e perto também da Praça da Bandeira. Fizemos lá um inquérito de higiene e saúde pública; não me lembro e não quero dizer um número falso, mas, se não me falha a memória, era um índice de tuberculose da ordem de 40 a 43%. Então, o que é que se vai fazer ? Deixarem os sujeitos morarem dentro de uma ruína ? Então, transferimos esta gente para a Vila Aliança e doamos o terreno para a Universidade da Guanabara. Isso hoje se chama Campus Negrão de Lima. Não deixa de ter a sua graça. E foi uma áfrica para doar o terreno."



TEXTO No. 23 : A NEOFAVELA (CIDADE DE DEUS)
Natureza e data do texto:
Passagem do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, publicado em 1997 (Companhia das Letras). Neste trecho ele está remontando à formação inicial do conjunto residencial Cidade de Deus a partir de 1966 (desabrigados da enchente daquele ano). Pp.17-19;35-36.

"Aqui agora uma favela, a neofavela de cimento, armada de becos-bocas, sinistros silêncios, com gritos-desesperos no correr das vielas e na indecisão das encruzilhadas.
Os novos moradores levaram lixo, latas, cães, vira-latas, exus e pomba-giras em guias intocáveis, dias para se ir à luta, soco antigo para ser descontado, restos de raiva de tiros, noites para velar cadáveres, resquícios de enchentes, biroscas, feiras de quartas-feiras e as de domingos, vermes velhos em barrigas infantis, revólveres, orixás enroscados em pescoços, frango de despacho, samba de enredo e sincopado, jogo do bicho, fome, traição, mortes, jesus cristos em cordões arrebentados, forró quente para ser dançado, lamparina de azeite para iluminar o santo, fogareiros, pobreza para querer enriquecer, olhos para nunca ver, nunca dizer, nunca, olhos e peito para encarar a vida, despistar a morte, rejuvenescer a raiva, ensangüentar destinos, fazer a guerra e para ser tatuado. Foram atiradeiras, revistas Sétimo Céu, panos de chão ultrapassados, ventres abertos, dentes cariados, catacumbas incrustadas nos cérebros, cemitérios clandestinos, peixeiros, padeiros, missa de sétimo dia, pau para matar a cobra e ser mostrado, a percepção do fato antes do ato, gonorréias malcuradas, as pernas para esperar ônibus, as mãos para o trabalho pesado, lápis para as escolas públicas, coragem para virar a esquina e sorte para o jogo de azar. Levaram também as pipas, lombo para a polícia bater, moedas para jogar porrinha e força para tentar viver. Transportaram também o amor para dignificar a morte e fazer calar as horas mudas.

Por dia, durante uma semana, chegavam de trinta a cinqüenta mudanças, do pessoal que trazia no rosto e nos móveis marcas das enchentes. Estiveram alojados no estádio de futebol Mário Filho e vinham em caminhões estaduais cantando:

Cidade Maravilhosa
Cheia de encantos mil

Em seguida, moradores de várias favelas e da Baixada Fluminense chegavam para habitar o novo bairro, formado por casinhas enfileiradas brancas, rosas e azuis. Do outro lado do braço esquerdo do rio, construíram os Apês, conjunto de prédios de apartamentos de um e dois quartos, alguns com vinte e outros com quarenta apartamentos, mas todos com cinco andares."
(...)
Através de brigas, jogos de futebol, viagens diárias de ônibus, da freqüência aos cultos religiosos e às escolas, uma nova comunidade surgiu efusivamente. Os grupos vindos de cada favela integraram-se em uma nova rede social forçosamente estabelecida. A princípio, alguns grupos remanescentes tentaram o isolamento, porém em pouco tempo a força dos fatos deu novo rumo ao dia-a-dia: nasceram os times de futebol, a escola de samba do conjunto, os blocos carnavalescos... tudo concorria para a integração dos habitantes de Cidade de Deus, o que possibilitou a formação de amizades, rixas e romances entre essas pessoas reunidas pelo destino. Os adolescentes utilizavam-se da fama negativa da favela onde haviam morado para intimidar os outros em caso de briga ou mesmo nos jogos, na pipa voada, na disputa por uma namorada. Quanto maior a periculosidade da favela de origem melhor era para impor respeito, mas logo, logo, sabia-se quem eram os otários, malandros, vagabundos, trabalhadores, bandidos, viciados e considerados. (...)
Nenhuma das favelas teve sua população totalmente transferida para as casas do conjunto. A distribuição aleatória da população entre Cidade de Deus, Vila Kennedy e Santa Aliança, os outros dois conjuntos criados na Zona Oeste para atender os flagelados das enchentes, acabou mutilando famílias e antigos laços de amizade. Muitas delas recusaram a mudança para Cidade de Deus, por acharem o lugar muito distante. Mas os favelados da Ilha das Dragas [na Lagoa R.Freitas] e do Parque Proletário da Gávea vieram em massa povoar Os Apês, onde o entrosamento foi mais facilmente alcançado."


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