APRESENTAÇÃO: Foucault e a anarqueologia dos saberes

October 10, 2017 | Autor: Nildo Avelino | Categoria: Michel Foucault, Anarchaeology
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Michel Foucault

Do governo dos vivos Curso no Collège de France, 1979-1980 (excertos) 2ª edição Organização: Nildo Avelino

São Paulo / Rio de Janeiro 2011

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Coedição entre Centro de Cultura Social e Robson Achiamé, editor 2ª edição revisada e ampliada © Copyright 2010 É vedada a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização do autor. Título original: Du gouvernement des vivants. Cours au Collège de France, 1979-1980. (Bibliothèque Générale du Collège de France) Tradução, transcrição e notas: Nildo Avelino Título original do Anexo: About the Beginning of the Hermeneutics of the Self. Two Lectures at Dartmouth, 1980. (Political Theory, v. 21, n. 2, maio/1993) Tradução do Anexo: Bruno Andreotti Revisão da tradução: Nildo Avelino Revisão da 2ª edição: Geraldo Escudero Ilustração: Olivia Goulart Foto de capa: Francisco Ripó: Collège de France, Quartier Latin, Paris – março de 2007.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Foucault, Michel, 1926-1984. Do governo dos vivos: Curso no Collège de France, 1979-1980: excertos / Michel Foucault; organização de Nildo Avelino. – São Paulo: Centro de Cultura Social; Rio de Janeiro: Achiamé, 2011. 2ª edição ampliada e revisada. 186 p. Título original: Du gouvernement des vivants. Cours au Collège de France, 1979-1980; About the Beginning of the Hermeneutics of the Self. Two Lectures at Dartmouth, 1980. ISBN: 978-85-60945-80-1 1. Formas de Veridição. 2. Subjetividade. 3. Governo. 4. Poder. 5. Obediência. 03-2557. CDD 194 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia Francesa: Michel Foucault 194 2. Filósofos Franceses 44

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Agradeço afetuosamente a Margareth Rago pelo apoio e indicação do texto do Anexo; a Alfredo Veiga-Neto pela intensa acolhida; aos amigos Robson Achiamé, Nilton César, Edson Lopes, Olivia Goulart, Gabriel Espiga, Bruno Andreotti, Geraldo Escudero e Francisco Ripó pelo entusiasmo. Nildo Avelino

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APRESENTAÇÃO: Foucault e a anarqueologia dos saberes Nildo Avelino*

Introdução

“... as belas aulas se parecem mais a um concerto que a um sermão, é um solo que os outros ‘acompanham’. E Foucault dava aulas admiráveis”. (Gilles Deleuze)

Meu contato inicial com o curso Du Gouvernement des Vivants, proferido por Michel Foucault no Collège de France no ano de 1980, ocorreu em 2005 quando me encontrava na Itália como bolsista financiado pela Capes no âmbito do Programa de Doutorado no País com Estágio no Exterior (PDEE). Na ocasião, realizava levantamento bibliográfico sobre o anarquista italiano Errico Malatesta (1853-1932) para pesquisa de doutoramento em Ciência Política iniciada em 2003 no Programa de Estudos * Professor de Teoria Política (DCS/UFPB), pesquisador-colaborador (Pós-Doc) no grupo Gênero, Experiência e Subjetividade (IFCH/Unicamp) e no Núcleo de Estudos de Teoria da História e História da Historiografia (ICHS/UFRRJ), integrante do Centro de Cultura Social.

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Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Interessado na ref lexão anarquista sobre poder, governo e autoridade, adotei como ponto de partida dois pequenos escritos: A Anarquia, de Errico Malatesta e A Governamentalidade, de Michel Foucault. Essas leituras levaram-me a investigar em que medida seria possível conferir outra legibilidade à reflexão política do anarquismo clássico fora dos clichês de humanismo comumente encontrados na crítica “pós-anarquista”. Dessa inquietação resultou a tese, defendida em 2008 sob orientação do Prof. Edson Passetti e co-orientação do Prof. Daniel Colson, intitulada Anarquismos e Governamentalidade3. Durante meu soggiorno italiano fui à França com o objetivo de pesquisar os cursos inéditos de Michel Foucault. Em junho de 2005 encontrava-me em Paris consultando o catálogo disponível no Imec – Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine. Em seguida, dirigi-me à abadia de Ardenne, situada em Saint-Germain la Blanche Herbe, na cidade de Caen, baixa Normandia. Encontram-se nos arquivos da biblioteca do Imec os fundos Michel Foucault compostos de vários materiais, entre os quais os arquivos sonoros de cursos e entrevistas. Não obstante meu rápido séjour em Caen, ouvir Michel Foucault discorrer no interior de uma velha abadia fundada em 1160, num local antes habitado por um antigo monastério agostiniano, sobre as tecnologias de si do cristianismo primitivo, foi uma experiência marcante. Ali começou meu interesse pela anarqueologia. Deixei o Imec com a sensação de que uma segunda reescuta do curso era necessária. A oportunidade apresentou-se em 2007, quando fui contemplado com bolsa pelo programa CDFB-Colégio Doutoral Franco Brasileiro da Capes, para estágio de pesquisa de um ano na França. Com isso, pude retomar a audição do curso, dessa vez no próprio Collège de France em Paris. O resultado desse segundo estágio é o presente trabalho realizado a partir dos arquivos sonoros da Bibliothèque Générale du Collège de France (52, Rue du Cardinal-Lemoine, 75005 Paris), entre os meses de abril a setembro de 2007. Não posso deixar de registrar aqui os 3. AVELINO, N. (2008), Anarquismos e Governamentalidade. São Paulo, 400f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais – Política), Pontifícia Universidade Católica.

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meus agradecimentos a Marie-Renée Cazabon e sua equipe pelo acesso aos arquivos e pela amável cordialidade. *** Um trabalho de transcrição e tradução realizado sem recurso ao manuscrito original com o XXXXXX de inúmeras incorreções interpretativas na medida em que estão ausentes os procedimentos de “autenticação” próprios das publicações realizadas dos cursos de Michel Foucault. Entretanto, aquilo que busco é um efeito e uma utilização particulares: meu objetivo é tentar perceber a maneira pela qual Michel Foucault retoma o anarquismo, a partir dos anos 1980, na sua postura analítica; para isso, o curso Do Governo dos Vivos apresenta possibilidades ainda pouco exploradas. O norte-americano Todd May foi o primeiro a empreender esforços para delinear no plano conceitual relações entre o anarquismo e o pensamento de autores “pós-estruturalistas”, atribuindo a esses últimos um tipo de “neo-” ou “pós-” anarquismo 4. Ao fazer isso, May consolidou o termo inventado por Hakim Bey 5 alguns anos antes; entretanto, o pós-anarquismo postulado por May possui uma característica muito precisa: consiste em recusar o que ele chamou de “a priori do anarquismo clássico” ou a concepção anarquista do poder que, segundo ele, é irremediavelmente humanista. O problema é que uma vez descartada a concepção anarquista clássica do poder, nada ou pouca coisa resta do anarquismo. Assim, ao abandonar o a priori 4. MAY, T. (1994), The Political Philosophy of Poststructuralist Anarchism. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press. Entretanto, é necessário observar que no Brasil, já em meados dos anos 1980, o trabalho pioneiro de Margareth Rago afirmava nas práticas anarquistas “uma outra concepção do poder, que recusa percebê-lo apenas no campo da política institucional”, pontuando na análise foucaultiana “uma perspectiva metodológica que permite repensar a atuação dos anarquistas a partir de outros parâmetros” (RAGO, M. (1985), Do Cabaré ao Lar. A Utopia da Cidade Disciplinar, 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 14). Em seguida aos trabalhos de Rago, vieram somar-se os estudos de Edson Passetti (“Foucault Libertário”, Revista Margem, São Paulo, nº 5, 1996, p. 135-47). 5. BEY, H. (1987), Post-Anarchism Anarchy. Disponível em: http://www.left-bank. org/bey/postanar.htm. Consultado em abril 2010.

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do anarquismo clássico, o pós-anarquismo encontrou o contexto necessário para uma ruidosa irrupção que assumiu os contornos de uma grande novidade. Existe também outro aspecto do debate. Em um escrito que denota o mais profundo desconhecimento da analítica do poder de Michel Foucault, Murray Bookchin6 associou o lifestyle anarchist (estilo de vida anarquista, ou seja lá o que for isso!) com a “insurreição pessoal” foucaultiana (contrária à Revolução Social bookchiniana) e com a “crítica ambígua e cósmica do poder” de Foucault (incompatível com o “empoderamento individual” pelas assembleias populares defendido por Bookchin). O texto de Bookchin parece-me intencionalmente confuso para uma discussão séria; porém, ele denota uma disposição fortemente presente entre os meios anarquistas de hoje. Procurando compreender essa disposição, Daniel Colson7 questionou recentemente porque um autor tão próximo do pensamento libertário como Foucault, graças ao qual a questão do poder tornou-se finalmente uma questão central; enfim, “porque esse autor é objeto se não de uma rejeição visceral, ao menos de uma completa indiferença entre a maior parte dos anarquistas?”. Em vez de procurar uma resposta no suposto pessimismo de Foucault, como fez Colson, parece-me que a rejeição e indiferença entre os anarquistas podem ser vistas como reação aos abalos estremecedores provocados por Foucault numa certa leitura humanista do anarquismo clássico. A rejeição do pensamento foucaultiano estaria no fato de que, durante muito tempo, a maior parte dos anarquistas esteve acomodada confortavelmente num sólido terreno por meio do qual o anarquismo foi explicado com categorias pertencentes quase sempre ao pensamento hegeliano e marxista. A noção ontológica de luta de classe, por exemplo, ausente na reflexão do anarquismo clássico, tornou-se palavra mágica para a maioria dos anarquistas desde o advento do anarcossindicalismo até nossos dias. 6. BOOKCHIN, M. (1996), Social Anarchism or Lifestyle Anarchism: An Unbridgeable Chasm. Oakland: AK Presses. 7. COLSON, D. (2008), “L’anarchisme, Foucault et les ‘postmodernes’ ”. Réfractions, nº 20, maio, p. 91.

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Parece que durante várias décadas o olhar sobre o anarquismo permaneceu dialetizado. Se é verdade que as categorias e os princípios, como enfatizou Proudhon, têm força de impulsão, então não é preciso ler Hegel ou Marx para agir e pensar como hegeliano ou marxista: é suficiente estar familiarizado com algumas das suas categorias de pensamento para que se produzam efeitos práticos e teóricos. Então, talvez fosse preciso transferir o humanismo do anarquismo clássico para algumas modalidades de leitura dos contemporâneos: procurar o a priori humanista mencionado por Todd May não no anarquismo clássico, mas no olhar humanista e dialético de certas leituras contemporâneas. Se isso tiver algum sentido, a tarefa é muito mais árdua do que se imaginou. Seria fácil, com efeito, se a armadilha do humanismo tivesse lançado em cativeiro apenas a reflexão conceitual do anarquismo clássico: bastaria desfazer-se dele e ter-se-ia um neoanarquismo imune de capturas. Entretanto, se o problema está em nossa contemporaneidade e no tipo de leitura que há muito ela estabeleceu com o anarquismo, o desafio, bem mais difícil, é o de passar pela crítica nosso próprio pensamento para em seguida reexaminar os argumentos do anarquismo com a mesma eloquência e ironia da primeira descoberta. É um trabalho crítico de releitura do qual nem o neoanarquismo nem o Anarquismo Social souberam realizar. Uma releitura que não se faça em termos de retorno ao passado, mas como diagnóstico do presente é o que se chamaria de trabalho crítico. Aqui, como sugeriu Colson8, trata-se de tomar o pensamento de Foucault como revelador químico que não somente confere sentido ao pensamento anarquista propriamente dito, mas faz também com que o próprio pensamento foucaultiano adquira sentido particular no interior desse pensamento que ele elucida e renova. Governamentalidade e anarqueologia A partir de 1980 Michel Foucault introduz uma nova problematização nos seus estudos sobre as relações de poder pelo qual ele renovou consideravelmente seu “método” de análise: trata-se 8. COLSON, D. (2001), Petit Lexique Philosophique de l’Anarchisme. De Proudhon à Deleuze. Paris: Librairie Générale Française, p. 10.

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da anarqueologia dos saberes que consiste no deslocamento analítico do eixo Poder-Saber para o eixo do “governo dos homens pela Verdade sob a forma da Subjetividade”. Com a anarqueologia Foucault confere um grau de complexidade extraordinário às suas pesquisas, resultando, anos mais tarde, na formulação do tema da estética da existência. Como já escrevi em outra ocasião9, a anarqueologia prolonga e resitua as análises da governamentalidade iniciadas em 1978 com o objetivo de marcar a distinção entre política e guerra, e também para tornar operatório o problema da luta no domínio político definido em termos de relações agonísticas. A obra-chave para apreender o tema da anarqueologia é o curso inédito Du Gouvernement des Vivants, proferido por Foucault no Collège de France no ano de 1980. Segundo Dreyfus e Rabinow, entre as noções com relação as quais Foucault organizou sua obra durante a década de 1970 estava a noção de hipótese repressiva, caracterizada pela afirmação segundo a qual “a verdade é intrinsecamente oposta ao poder, desempenhando todavia um papel libertador”10. Segundo Foucault, a hipótese repressiva descreve um poder portador unicamente da potência do não, apto somente a estabelecer limites e a existir no negativo, e cuja eficácia implica o paradoxo de um poder que nada pode “a não ser levar aquele que sujeita a não fazer senão o que lhe permite.”11. A descrição do poder nesses termos tem a consequência de que, sendo simplesmente interdição, prescrição da lei, rejeição etc., não lhe resta outra saída que exercer-se mascarando-se, ocultando seu cinismo para tornar-se tolerável, cobrindo de sombras suas principais formas. “Seu sucesso está na proporção daquilo que consegue ocultar dentre seus mecanismos”. É nesse sentido que o poder, descrito nos termos da hipótese repressiva, aparece como antitético à 9. AVELINO, N. (2008), “Governamentalidade e Anarqueologia”. Revista Travessias, Rio de Janeiro, nº 9, p. 187-207. 10. DREYFUS, H.; RABINOW, P. (1995), Michel Foucault. Uma Trajetória Filosófica. Para Além do Estruturalismo e da Hermenêutica. Tradução de Vera P. Carrero. Rio de Janeiro: Forense, p. 141. 11. FOUCAULT, M. (1993), História da Sexualidade, v. 1: A vontade de saber. 11ª ed., trad. de Maria T. da C. Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, p. 83.

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verdade: obrigado a esconder sua verdadeira face e a escamotear sua nudez repressiva, seus mecanismos aparecem ligados essencialmente com a cegueira, o desconhecido, o segredo, o não dito. Essa imagem do tirano mascarado foi o principal alimento das análises fundamentadas na noção de Ideologia realizadas a partir dos anos 1960. Contra essas análises derivadas da descrição do poder como repressão, Foucault empreendeu sua investigação em torno do eixo Poder-Saber. Que o exercício do poder implique o mecanismo do segredo, isso é certo. Não se trata de afirmar que a mecânica do poder seja sempre e em toda parte plenamente visível; que sua verdade se mostre evidente e manifesta; que seu exercício reflita nas consciências toda a transparência e o brilho do que é exaustivamente conhecido. Não se trata disso, mas dos efeitos de simplificação provocados pela análise da ideologia na medida em que nela encontra-se invariavelmente e de maneira central a noção de falso e de não científico em oposição ao verdadeiro e ao científico. A ideologia, como problema no plano do conhecimento, tem sido descrita ora como falsa consciência que vela e mascara os efeitos do poder12 , ora como o que produz sua aceitação em termos de legitimidade13. A análise que Chrétien-Goni fez da instituição do segredo na política mostra o quanto é inadequada uma explicação nesses termos. Ao tomar a prática do segredo no Absolutismo Monárquico como uma prática de comunicação, Chrétien-Goni mostrou como ela portava duas lógicas: uma defensiva consistindo em ocultar os mecanismos da dominação, em fechar no gabinete do Príncipe os meandros do exercício da soberania, em defender contra o conhecimento dos súditos as verdadeiras razões do seu poder. Mas a instituição do segredo era constituída igualmente por uma lógica ofensiva com poder de propagação na qual o segredo representa, sobretudo, a força performativa do poder soberano. Desse ângulo, “ser soberano é organizar o segredo, instituí-lo, divulgá-lo, retê-lo, no limite é hierarquizar o mundo em função do lugar de cada um vis-à-vis 12. MARX, K. (2006), A Ideologia Alemã: teses sobre Feuerbach. Tradução de Silvio D. Chagas. São Paulo: Centauro. 13. WEBER, M. (1999), Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva, vol. 2. Tradução de Regis Barbosa e Karen E. Barbosa. Brasília: UnB.

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disso que pode tornar-se um imenso sistema generalizado do segredo”14. Assim, ao invés de trancar no gabinete do Príncipe os arcanos de seu poder, a lógica ofensiva do segredo faz circular no próprio fundo opaco de seus mecanismos uma transparência destinada a propagar tanto quanto possível a força performativa dos saberes e racionalidades do poder soberano. Não se trata, portanto, do banimento da verdade para um mundo de sombras de onde a soberania exerceria seu poder obscuro; trata-se do jogo complexo entre verdadeiras dissimulações e falsas dissimulações, conteúdos de comunicação amalgamados em jogos de luzes e sombras. Um poder unicamente enclausurado no gabinete do Príncipe seria incapaz de ser poder; seu exercício exige a abertura para o espaço dos súditos. É nessa articulação clausura-abertura que ocorre uma intensa teatralização do político: ali o exercício resplandecente do poder não passa sem o brilho da verdade. Para evitar a inadequação das análises do poder em termos de ideologia, Foucault conduziu sua investigação em termos de Poder-Saber. Muito ao contrário de ocupar uma posição antitética em relação ao poder, a verdade é um de seus principais elementos de catalisação: ela conduz e reproduz relações de poder. Se é assim, diz Foucault na sua aula inaugural no Collège de France em 1970, dois aspectos se destacam: de um lado, o discurso, “longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, [é] um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes”15. E deste modo, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. No ano seguinte, ao escrever o resumo do curso “Teorias e Instituições Penais” pronunciado no Collège de France nos anos 1971-1972, Foucault afirmou sua hipótese de trabalho segundo a qual 14. CHRÉTIEN-GONI, J.-P. (1992), “Institutio Arcanae. Théorie de l’institution du secret et fondement de la politique”. In: LAZZERI, C.; REYBIÉ, D. (org.) Le Pouvoir de la Raison d’État. Paris: PUF, p. 152. 15. FOUCAULT, M. (1999), A Ordem do Discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 5ª ed., tradução de Laura F. de A. Sampaio. São Paulo: Loyola, p. 9-10.

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“as relações de poder (com as lutas que as atravessam ou as instituições que as mantêm) não jogam com relação ao saber somente um papel de facilitação ou de obstáculo; elas não se contentam de favorecê-lo ou de estimulá-lo, de falseá-lo ou limitá-lo; poder e saber não são ligados um ao outro somente pelo jogo dos interesses e das ideologias; o problema não é apenas em determinar como o poder subordina o saber e o faz servir suas finalidades ou como imprime-lhe e impõe conteúdos e limitações ideológicas. Nenhum saber forma-se sem um sistema de comunicação, de registro, de acumulação, de deslocamento que são em si mesmo uma forma de poder ligada, em sua existência e funcionamento, a outras formas de poder. Nenhum poder, por sua vez, exerce-se sem a extração, a apropriação, a distribuição ou a retenção de um saber. Nesse nível, não existe o conhecimento de um lado e a sociedade de outro, ou a ciência e o Estado, mas formas fundamentais do ‘poder-saber’ ”16 .

Portanto, a partir de 1972 Foucault desloca cada vez mais o foco da sua análise que passa da “arqueologia do saber” à “dinastia do saber”: após ter analisado as formações discursivas e os tipos de discurso em Arqueologia do Saber e As Palavras e as Coisas, seu projeto é agora estudar como esses discursos puderam formar-se historicamente e sobre quais realidades históricas eles se articularam, ou seja, em quais condições históricas, econômicas e políticas eles emergiram. A questão do poder ganha cada vez mais relevo. “Parece-me que fazer a história de certos discursos, portadores de saberes, não é possível sem ter em conta as relações de poder que existem na sociedade em que esse discurso funciona. (...) As Palavras e as Coisas, situa-se no nível puramente descritivo que deixa inteiramente de lado toda análise das relações de poder que sustentam e tornam possível a aparição de um tipo de discurso”17. Entretanto, o tema do poder parece ter conduzido a análise de Foucault a um impasse a partir da segunda metade dos anos 1970. Foucault, como observou Mitchell Dean18 , ao se desfazer 16. FOUCAULT, M. (2001a), Dits et Écrits, v. I: 1954-1975. Paris: Gallimard, p. 1257. 17. FOUCAULT, M. (2001b), Dits et Écrits, v. II: 1976-1988. Paris: Gallimard, p. 1277. 18. DEAN, M. (1999), Governmentality: power and rule in modern society. Londres: Sage Publ, p. 25.

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das teorias sociológicas que davam ao Estado a imagem de uma realidade unificada, suplantou os problemas do fundamento da soberania e de sua obediência por uma análise das múltiplas operações dos mecanismos do poder e da dominação. Para isso, adotou primeiramente a linguagem da guerra como maneira de reconceitualização das relações de poder. Mas resultou daí o inconveniente de estabelecer uma dicotomia entre soberania, entendida como forma jurídica de um poder “pré-moderno” próprio das monarquias absolutistas, e o que seria um poder “moderno” de tipo disciplinar e normalizador. Essa dicotomia aparente, provocada pela linguagem da guerra, teria induzido formas de denúncias extremistas do poder visto conforme o modelo repressivo pela esquerda. Foi um inconveniente que levou a análise de Foucault para um novo contexto, o do governo, pelo qual ele procurou rediscutir os problemas do poder fora dos discursos da soberania e da guerra a partir dos cursos de 1978-1979. Nessa ocasião, afirmou Pasquale Pasquino, colaborador de Foucault no Collège de France, emergiu “a questão do governo – um termo que Foucault utiliza gradualmente em substituição ao que ele considerou como uma palavra muito ambígua, ‘poder’ ”19. A análise da governamentalidade encontra aqui sua procedência. Projeto anarqueológico Acompanhar os desdobramentos na analítica do poder de Michel Foucault torna compreensível a importância que a anarqueologia ocupa na sua elaboração da estética da existência. Como apreender esse percurso analítico que, passando pela análise do governo ou da governamentalidade, levou do tema Poder-Saber para a estética da existência? Inútil seria buscar uma coerência teórica de conjunto que o próprio Foucault rejeitou ao reivindicar uma escrita sem rosto no prefácio da sua Arqueologia dos Saberes. Em todo caso, é perfeitamente plausível esboçar um plano de inteligibilidade buscando articular esses diferentes níveis analí19. PASQUINO, P. (1993), “Political theory of war and peace: Foucault and the history of modern political theory”. Economy and Society, Londres, v. 22, nº 1, fevereiro, p. 79.

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ticos. Michel Senellart20, mencionando o abandono do discurso da guerra como operador analítico do poder, afirmou que na obra de Foucault, ao romper “com o discurso da ‘batalha’ utilizado desde o começo dos anos 1970, o conceito de ‘governo’ marca o primeiro movimento, acentuado desde 1980, da analítica do poder à ética do sujeito”. Desse modo, é da noção de governamentalidade que é preciso partir. Definida no curso de 1978 como uma análise genealógica do poder para descrever os caracteres específicos da tecnologia do poder do Estado21, no curso do ano seguinte Foucault aprimora conceitualmente a análise da governamentalidade. Em O Nascimento da Biopolítica afirma que seu objeto de estudo não foi a prática governamental real, ou seja, o modo efetivamente como os governos governam. O objetivo foi estudar a maneira refletida de governar ou o conjunto de reflexões sobre a melhor maneira de governar; enfim, o objetivo da governamentalidade é o de estudar a “instância reflexiva” das práticas de governo e sobre as práticas de governo. Foucault tomou por objeto de estudo os modos de conceitualização das práticas de governo com a finalidade de apreender a maneira pela qual essa conceitualização estabeleceu os objetos, as regras gerais e os objetivos de conjunto que são próprios ao seu domínio. Trata-se, em suma, de um estudo da racionalização da prática governamental no exercício da soberania política. No final do curso, precisamente na última aula, Foucault diz: “O exercício do poder, essa prática muito singular da qual os homens não podem escapar, ou que escapam apenas por momentos, instantes, por processos singulares e atos individuais ou coletivos; que coloca ao jurista, ao historiador, toda uma série de problemas; esse exercício do poder como é possível regrá-lo e determiná-lo naquele que governa?”22 . Segundo Foucault, as sociedades ocidentais conheceram duas grandes formas de regrar 20. SENNELART, M. (2004), “Situation des cours”. In: FOUCAULT, M. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France, (1977-1978). Paris: Gallimanrd/ Seuil, p. 382. 21. FOUCAULT, M. (2004a), Sécurité, Territoire, Population. Cours au Collège de France, 1977-1978. Paris: Gallimard/Seuil. 22. FOUCAULT, M. (2004b), Naissance de la Biopolitique. Cours au Collège de France, 1978-1979. Paris: Gallimard/Seuil, p. 314-5.

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o exercício do poder naquele que governa. Uma delas consistiu, durante a Idade Média, em indexar o exercício do poder à sabedoria e à verdade do texto religioso, à verdade da revelação e da ordem do mundo. Em seguida, com o Estado moderno, o exercício do poder foi indexado não mais à sabedoria religiosa, mas à sabedoria do Príncipe. Todavia, essa indexação conheceu na história duas formas distintas de racionalidades: num primeiro momento ela se deu sob a forma da Razão de Estado como racionalidade do soberano na qual o poder de soberania ocupa um papel central. Mas, num segundo momento, essa racionalidade deixou de assumir a forma unitária da Razão de Estado e adotou a forma do pacto e do contrato social, agora relacionados a uma série de novos problemas não mais ligados ao Príncipe, mas ao mercado, à população e à economia. Essa passagem da indexação do exercício do poder que leva da racionalidade do Príncipe para a racionalidade do contrato social foi considerada por Foucault um ponto de clivagem e de transformação absolutamente importante na economia do poder. O que significa, afinal, indexar o exercício do poder à racionalidade do contrato social? Significa, simplesmente, indexá-lo sobre a racionalidade daqueles que são governados, e que são governados de modo particular: como sujeitos econômicos, como sujeitos de interesse, como indivíduos que, para satisfazer seus interesses utilizam de maneira mais ou menos livre as regras e os objetos disponibilizados pelo mercado. Em outras palavras, o ponto de clivagem é importante porque ele inaugura nossa modernidade, determinando o modo como nós somos governados hoje. Com efeito, quando se apreende a questão da legitimidade do poder na história do pensamento político desde o século XVII, percebe-se facilmente como, das teorias contratualistas ao liberalismo clássico e contemporâneo, a resposta a essa questão tornou axiomático que o consentimento dos governados deve ser a fonte originária e o único fundamento do poder político legítimo. Em um plano conceitual, a noção de legitimidade expressa a capacidade efetiva que possuiu um regime político de conquistar e manter um apoio social majoritário, transformando 28

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a simples concordância em adesão ativa e assegurando a obediência sem necessidade de recorrer ao uso arbitrário da força. Desse modo, a racionalidade política do contrato, configurada pelo liberalismo dos séculos XVIII e XIX, e pelo neoliberalismo de nossos dias, consiste em indexar o exercício do poder na racionalidade daqueles sobre os quais o próprio poder é exercido. Foi assim que, após a Razão de Estado, a racionalidade política do contrato introduziu a exigência, tornada indispensável para o exercício do poder, desse elemento que precedentemente tinha pouca importância: o Sujeito. O exercício do poder será doravante uma atividade cuja indexação não é independente de uma subjetividade, de um Eu, de um Si. Daí a afirmação de Foucault segundo a qual “a reflexão sobre a noção de governamentalidade não pode deixar de passar, teórica e praticamente, pelo elemento de um sujeito que se definiria pela relação de si consigo”23. Assim, é da tríade Poder, Governo e si mesmo que se ocupa a anarqueologia introduzida por Michel Foucault no curso Do Governo dos Vivos. Esse encadeamento faz a governamentalidade aparecer sob uma nova configuração, a do “encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si”24. Entretanto, a maneira como ocorre esse encontro, quais são os objetos próprios do seu domínio e no que ele constitui, são aspectos obscuros para os quais existem poucos elementos na obra publicada de Foucault permitindo elucidá-los. Quais interseções estabelecer, e como estabelecê-las, entre as técnicas de dominação e as técnicas de si, é uma questão que o curso de 1980 permite responder de uma maneira mais precisa. Uma visão rápida sobre a gênese do curso ajuda compreeder de que maneira. Segundo Daniel Defert 25, a partir de janeiro de 1979, a história da confissão conduziu Foucault “a estudar os primeiros textos dos Padres da Igreja, [João] Cassiano, [Santo] Agostinho, Tertuliano. Nasce progressivamente uma nova matéria para o 23. FOUCAULT, M. (2002), La Hermenéutica del Sujeto. Curso en el Collège de France, 1981-1982. México: Fondo de Cultura Económica, p. 247. 24. FOUCAULT, M., op. cit., 2001b, p. 1604. 25. DEFERT, D. (2001), “Chronologie”. In: FOUCAULT, M. Dits et Écrits, v. I: 1954-1975. Paris: Gallimard, p. 77.

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segundo volume da História da Sexualidade, “As Confissões da Carne” [Les Aveux de la Chair]: o estudo dos primeiros textos cristãos orienta sua pesquisa genealógica em direção aos textos latinos da Antiguidade tardia.” O curso que no Collège de France será o meio pelo qual Foucault apresentará os resultados desses estudos sobre os Padres da Igreja é Du Gouvernement des Vivants. Desse modo, o curso de 1980 foi inicialmente destinado a constituir o segundo volume da História da Sexualidade. Mas, como se sabe, isso não ocorre. Em 1982 Foucault publica um artigo intitulado “O Combate da Castidade” na revista Communications; o artigo, reproduzido nos Ditos e Escritos, inicia-se citando que o “texto foi extraído do terceiro volume da História da Sexualidade” [grifo meu], e uma nota dos organizadores complementa a informação dizendo que esse terceiro volume é “As Confissões da Carne. Nessa época o Uso dos Prazeres não havia sido cindido em dois volumes” 26 . Quer dizer, As Confissões da Carne passa a figurar não mais como segundo, mas como terceiro volume da série História da Sexualidade, colocado após O Uso dos Prazeres. Sobre essa reorientação da série, Foucault dirá em entrevista que a dificuldade surgiu porque de início ele escreveu um livro sobre sexualidade que, em seguida, foi colocado de lado (o primeiro volume, A Vontade de Saber); depois ele escreveu um livro sobre as técnicas de si cristãs no qual a sexualidade desapareceu (As Confissões da Carne); em seguida, ele se viu obrigado a reescrever pela terceira vez um livro no qual procurou manter um equilíbrio entre um e outro (presume-se que seja O Uso dos Prazeres). Tudo indica que, para equilibrar o tema da sexualidade, O Uso dos Prazeres torna-se o 2º volume da série. Mas foi o volume As Confissões da Carne, “o livro sobre o cristianismo”, que obrigou Foucault a rever o volume O Uso dos Prazeres e cindi-lo em dois para constituir o terceiro volume da série: O Cuidado de Si. Depois de tudo, As Confissões da Carne, pensado inicialmente como 2º volume da série História da Sexualidade, foi realocado para figurar como o 4º volume; além disso, ele foi o volume responsável pela reorientação e reelaboração dos volumes Os 26. FOUCAULT, M., op. cit., 2001b, p. 1114.

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Usos dos Prazeres e O Cuidado de Si. Por quê? Deleuze forneceu uma resposta: é que o tema da estética da existência, delineado pelos dois últimos volumes, possibilitou a Foucault conceber um poder da verdade desvinculado da verdade do poder, ou seja, uma verdade decorrente das formas de resistência. Foucault mostrou como os gregos “dobraram a força, sem que ela deixasse de ser força”, relacionando-a consigo mesma. Os gregos, “longe de ignorarem a interioridade, a individualidade, a subjetividade, inventaram o sujeito, mas como uma derivada, como o produto de uma “subjetivação”. Descobriram a “existência estética”, isto é, o forro, a relação consigo, a regra facultativa do homem livre” 27. (Os gregos foram os primeiros anarqueologistas de nossa cultura!). Mas tudo isso não ocorreu sem antes passar pelas técnicas de si do cristianismo que, ainda segundo Deleuze, devem ter entristecido muito Foucault. Aqui pode estar uma das razões pela qual, conforme Didier Eribon, os editores de Foucault consideraram os manuscritos de As Confissões da Carne como sendo o livro-chave da série. Em todo caso, para fazer a genealogia do tipo de racionalidade governamental que tem como traço principal o de indexar o exercício do poder sobre a subjetividade do governado, Foucault realizou esse longo recuo histórico até as práticas cristãs de confissão. Por qual razão? Parece que uma questão subjacente que atravessa a ref lexão foucaultiana sobre o poder seja o problema da obediência. Se retomarmos o que foi dito sobre a técnica liberal e neoliberal de indexação do exercício do poder na racionalidade do contrato social, ou seja, na racionalidade daqueles sobre os quais o poder será exercido, é óbvio que uma tal indexação somente será eficaz se a racionalidade daqueles sobre os quais o poder é exercido estiver orientada, determinada, direcionada, organizada. Em suma, a indexação do poder só será possível se a racionalidade do governado estiver, de algum modo, ajustada ou disposta para a produção da obediência: a produção de racionalidades suficientemente obedientes aos objetivos do poder é um problema político historicamente importante: “A arte de governar está inteiramente na capacidade de fazer-se 27. DELEUZE, G. (1995), Foucault. Trad. Claudia S. Martins. São Paulo: Brasiliense, p. 108.

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obedecer” 28 . Desse modo, a racionalidade do governado não pode ser produto do acaso, resultado espontâneo de processos que escapam ao exercício do poder; ao contrário, é preciso que a racionalidade do governado seja suficientemente suscitada, provocada e motivada pela e para a obediência. O curso Do Governo dos Vivos descreve precisamente a história genealógica dessa racionalidade direcionada para a produção da obediência, mostrando de maneira contundente e decisiva que não há produção de obediência possível sem tecnologias de si. Foucault mostra que só foi possível ao liberalismo e ao neoliberalismo indexar o exercício do poder na racionalidade dos governados porque existe há séculos, da parte destes sobre os quais se exerce o poder, práticas de relação de si consigo produtoras de estados de obediência. É preciso uma relação de si consigo, são necessárias tecnologias de si para realizar a governamentalização dos indivíduos. É por essa razão que os estudos da governamentalidade serão focados, a partir de 1980, sobretudo na dimensão programática das artes de governar, isto é, sobre os programas e racionalidades para o governo das condutas. Por racionalidades Foucault entendia os conjuntos de prescrições calculadas e razoáveis que organizam instituições, distribuem espaços e regulamentam comportamentos; nesse sentido as racionalidades induzem uma série de efeitos sobre o real. “São fragmentos de realidade que induzem esses efeitos de real tão específicos que são aqueles da separação do verdadeiro e do falso na maneira pela qual os homens se ‘dirigem’, se ‘governam’, se ‘conduzem’ a si mesmos e aos outros”29. Portanto, é o problema da verdade que está em jogo nas racionalidades, e nesse momento a questão central colocada por Foucault, no curso Do Governo dos Vivos, é a de saber “... como se fez para que, na cultura ocidental cristã, o governo dos homens exigiu da parte destes que são dirigidos, além de atos de obediência e submissão, ‘atos de verdade’ que têm a particularidade de que não somente o sujeito é solicitado a dizer a verdade, mas dizer a verdade a propósito dele mesmo, de suas faltas, de seus desejos, do 28. SENELLART, M. (2006), As Artes de Governar. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, p. 37. 29. FOUCAULT, M., op. cit., 2001b, p. 848.

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estado de sua alma etc.? Como formou-se um tipo de governo dos homens no qual não se é solicitado simplesmente a obedecer, mas a manifestar, enunciando-o, aquilo que se é?”30.

Para poder responder a essas questões, Foucault introduziu a noção de anarqueologia entendida como “postura metodológica” e “atitude filosófica” de transgressão diante do poder da verdade. A anarqueologia é uma atitude e uma postura intelectual que inverte a posição tradicional da filosofia em relação à verdade. A posição da filosofia, desde Platão até nossos dias, foi a de aceitar o poder da verdade. Essa posição de conformação da filosofia com o poder da verdade foi consagrada por Espinoza com a sua famosa fórmula do verum index sui, para afirmar que a verdade não obriga, a verdade não constrange, porque a verdade é o índice de si mesma: para Espinoza, o ato de obediência deriva da vontade daquele que comanda não da verdade da coisa31. Nessa tradicional posição filosófica, diz Foucault, a questão colocada pela filosofia é a seguinte: a partir da ligação voluntária que o sujeito estabelece com a verdade, ligação que lhe fornece os fundamentos, os instrumentos e as justificações com as quais o sujeito sustentará um discurso de verdade; a partir dessa ligação voluntária do sujeito com a verdade, a filosofia questiona: o que é que esse sujeito pode dizer sobre, para ou contra o poder que o assujeita? Já a postura anarqueológica consiste na inversão da posição clássica da filosofia. É preciso não mais partir da ligação voluntária com a verdade, mas colocar como problema inicial o questionamento do poder; quer dizer, partir da atitude de questionamento do poder para perguntar: “O que esse gesto sistemático, voluntário, teórico e prático de colocar em questão o poder tem a dizer sobre o sujeito de conhecimento e sobre a ligação com a verdade na qual involuntariamente ele se encontra preso? Dito de outro modo, não se trata mais de dizer: considerando o vínculo que me liga voluntariamente à verdade, o que 30. Idem, p. 944. 31. ESPINOSA, B. (2003), Tratado Teológico-Político. Tradução, introdução e notas de Diego P. Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, p. 246; _____. (2008), Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. 2ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, p. 137.

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é que eu posso dizer do poder? Mas, considerando minha vontade, decisão e esforço de desfazer a ligação que me liga ao poder, o que é [feito] então do sujeito de conhecimento e da verdade?”

Percebe-se como a anarqueologia é uma posição analítica que consiste em um gesto de transgressão ao poder, no entanto que coloca o ato de desobediência como ponto de partida e condição da análise. No começo dos anos 1970, Foucault tomava o sistema das táticas punitivas como analisador das relações de poder afirmando que nesse procedimento “o elemento central a ser considerado é a luta”32. No começo dos anos 1980, ele afirma que “é o movimento para separar-se do poder que deve servir de revelador da transformação do sujeito e das relações que ele mantém com a verdade”. E aqui, o elemento central na análise é o ato de transgressão, de desobediência, diante do anarquismo epistemológico. É a atitude anárquica frente ao poder que deve ser tomada como ponto de partida para uma análise da verdade: como estabelecer relações de conhecimento recusando ao mesmo tempo o poder da verdade? A questão parece fácil, porém envolve um aspecto político bastante complexo. A feminista espanhola Maite Larrauri chamou atenção precisamente para isso. O problema, segundo ela, é que não basta ter clareza dos laços entre saber e poder para tornar-se capaz de se opor à verdade. Esse aspecto, diz ela, constitui a parte nodal do pensamento foucaultiano e a de mais difícil compreensão. “Como lutar contra as verdades das ciências humanas que (...) me subjugam e dominam uma vez que não posso deixar de percebê-las como verdades; ou ainda, como liberar-se de uma verdade sem deixar de perceber que é verdade. (...) A empresa de rejeitar a verdade do poder, empresa extremamente complicada visto que está nas raízes próprias do que somos, Foucault chamou-a de ‘anarqueologia’. ‘Anarqueologia’ é um jogo de palavras para sugerir que a tarefa de recusar o poder da verdade tem algo de anarquismo epistemológico, já que trata-se de mostrar que nenhum poder é necessário e que, portanto, tampouco o poder da verdade o é”33. 32. FOUCAULT, M. (1973), La Société Punitive. Cours au Collège de France, 19721973. Paris: inédito, datilografado, Biblioteca Geral, Collège de France, fl. 16. 33. LARRAURI, M. (1989), “La Anarqueología de Michel Foucault”. Revista de Occidente, Madri, nº 95, p. 124.

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O poder da verdade referido aqui, e contra o qual a anarqueologia se opõe, opera, sobretudo, sob a forma da subjetividade: é no momento em que somos chamados a nos constituir como Sujeito que aceitamos o império dos discursos científicos e não científicos que têm por função revelar aquilo o que verdadeiramente somos. Então, do mesmo modo como o austríaco Paul Feyerabend, no começo dos anos 1970, propôs o anarquismo como um “tratamento médico para a epistemologia e para a filosofia da ciência” e localizou a possibilidade de uma metodologia e “ciência anarquista” no ato de transgressão metodológica34. De maneira semelhante, Foucault propôs, com o nome de anarqueologia dos saberes, a anarquia como atitude crítica perante o poder da verdade. É nesta direção que a anarqueologia possibilita recolocar a atualidade da reflexão anarquista. Que Foucault, um dos filósofos mais importantes do século XX, tenha intitulado o seu método investigativo de an-anarqueológico, significa certamente que já era possível encontrar no anarquismo, e eu diria especialmente no anarquismo de Proudhon, a disposição que considera os discursos que articulam o que pensamos, dizemos e fazemos com a mesma seriedade concedida aos eventos históricos. Assim, se existe uma novidade ruidosa na anarqueologia, deve-se ao fato de que, diferentemente do relativismo epistemológico colocado em funcionamento pelos linguistas anglo-saxões nos anos 1960, quando Paul Feyerabend entra cena declarando-se anarquista epistemológico, do mesmo modo quando Foucault declara-se an-arqueologista do saber, nesse momento o “relativismo” deixa de operar simplesmente no plano da linguagem ou na relação entre as sintaxes, para operar, sobretudo, no campo da política, no exercício do poder político, no governo dos homens, para colocar em suspensão os efeitos do poder da verdade. Nesse momento, o anarquismo epistemológico, introduzido para problematizar o governo da conduta dos indivíduos, dá-se como tarefa a de tornar evidentes as conexões sempre existentes entre poder e verdade, buscando reintroduzir nos jogos de verdade as dessimetrias e seus efeitos sobre as subjetividades. 34. FEYERABEND, P. (1993), Contra o Método. Tradução de Miguel S. Pereira. Lisboa: Relógio d’Água, p. 23.

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Se a teoria de Marx configurou uma espécie de realismo sociológico ao objetivar na realidade social, na práxis, o critério de verdade da análise; dir-se-ia que no anarquismo e na anarqueologia dos saberes existe um tipo de realismo não sociológico, mas epistemológico que confere à verdade a mesma realidade e a mesma concretude que normalmente apenas são atribuídos aos fatos. Entretanto, não se trata de estabelecer um critério de verdade, mas descrever as articulações obscuras entre o poder político e a verdade na configuração disso que precisamente é chamado o real. Por isso a noção “relativismo epistemológico” resulta incompatível com a anarqueologia na medida em que supõe um ecletismo ingênuo destinado a reconhecer a verdade habitando em toda parte. Qualquer coisa como um liberalismo epistemológico ou uma democratização da verdade é tão ou mais perigoso quanto sua restrição. O que está em jogo não é a censura ou aceitação do discurso verdadeiro, mas o poder da verdade e de seus efeitos sobre a subjetividade. Desse modo, o anarqueologista não assume o relativismo, mas sustenta em face da verdade uma postura teórica negativa que consiste em conceber a verdade negando-lhe quaisquer atributos do Ser ou Substância. Em outras palavras, é preciso subtrair da verdade todo predicado de bondade, maldade, beleza etc., para admitir simplesmente sua existência e necessidade ao entendimento e à razão. Encontra-se aqui o velho problema proudhoniano de “como, forçados a admitir a verdade [ou o absoluto], livrarmo-nos da sua fascinação?”35. Para Proudhon, a verdade deve operar unicamente enquanto concepção no plano da lógica, jamais como “soberano diante do qual eu devo prosternar-me e confundir-me”. Nessa condição, a verdade pode ser admitida em metafísica, mas recusada “como objeto de conhecimento imediato, positivo, dado (...); como objeto de culto, sanção da justiça e soberano moral”. Em outras palavras, é plausível “que o pensamento verdadeiro (...) faça parte da constituição do espírito humano; que a verdade seja dada na ciência como condição metafísica do fenômeno; porém, para além dessa convenção tácita, hipotética, que a coloca no começo 35. PROUDHON, P. (1990), De la Justice dans la Révolution et dans l’Église. Études de philosophie pratique, tome troisième. Paris: Fayard, p. 1164.

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de todo conhecimento objetivo, a verdade deve ser eliminada rigorosamente como princípio de ilusão e de charlatanismo”. E com mais forte razão, diz Proudhon, “nas coisas de ordem moral é que devemos, sobretudo, nos defender da tirania da verdade e, sempre respeitando-a em sua dignidade suscetível, devemos descartá-la com energia e principalmente recusar-lhe a autoridade que pretende sobre a razão como se ela mesma fosse uma razão”36 . Compreende-se por que nem o relativismo epistemológico anglo-saxão, nem a acusação frankfurtiana da razão servem para sustentar o gesto transgressivo implicíto na anarqueologia. É porque ele exige antes “a guerra civil das ideias e o antagonismo dos juízos”37 para fazer resultar no pensamento uma força organizadora que atua para o equilíbrio das potências constituintes da razão. Que nesse movimento agnóstico do espírito a verdade usurpe o poder subalternizando as demais potências, a paz será instaurada e garantida pelo governo das potências assujeitadas. É nesse momento que a verdade desempenha no céu da inteligência o mesmo papel que os cometas desempenham no céu astronômico: fixa-se como objeto de adoração. O gesto anarqueológico consiste em resistir ao poder e ao fascínio da verdade nas relações de saber. Ao sustentá-lo, diz Feyerabend, o “anarquista é como um agente clandestino que joga o jogo da Razão em vista de minar a autoridade da Razão (Verdade, Honestidade, Justiça e assim por diante)”38 . A contundência desse gesto, o leitor verá se desenhar nas linhas desse curso extraordinário de Michel Foucault.

36. Idem, pp. 1176, 1179 e 1181. 37. Ibid., p. 1265. 38. FEYERABEND, op. cit., p. 39.

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