Aproximação à criação de memória sobre o passado hispânico na Nova Granada, 1827-1869

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APROXIMAÇÃO À CRIAÇÃO DE MEMÓRIA SOBRE O PASSADO HISPÂNICO NA NOVA GRANADA, 1827-18691 Juan David Figueroa-Cancino Doutorado em História da UnB. Bolsista Pec-Pg da CAPES.

1. Introdução Antes de formular de maneira mais precisa o problema de investigação, faz-se necessário a contextualização histórica do mesmo. O vice-reino de Nova Granada

(que

correspondia

à

área

geográfica

da

atual

Colômbia,

aproximadamente) atingiu sua independência definitiva da Espanha em 1819. Depois dessa data, ingressou em um árduo e lento processo de formação estatal e nacional que incluiu a criação de novas instituições, legislação, funcionários, códigos e referências culturais comuns que servissem para legitimar e dar suporte à nova formação política e social. Em 1821, os “neogranadinos” embarcaram num experimento republicano junto com a antiga capitania geral da Venezuela e da Audiência de Quito. Tratou-se da Colômbia Bolivariana, mais conhecida como Grande-Colômbia. Este experimento durou apenas 10 anos, no final dos quais as três partes constituintes desmembraram-se e retornaram às unidades que, grosso modo, existiam antes da emancipação. Desse processo surgiram os três Estados que permanecem até hoje: Nova Granada (atual Colômbia), Equador e Venezuela. Esta pesquisa limita-se ao âmbito geográfico da Nova Granada. Dois fatores principais –dentre muitos outros– operaram no transcurso de reconfiguração cultural durante a Independência da Nova Granada: 1) o surgimento de uma variedade de patriotismo americano, e 2) a metamorfose da visão sobre o passado de dominação hispânica, que abarcava os períodos da Conquista e da Colônia. Tratou-se da denominada “criação da memória”, assunto da presente tese de doutorado. Entendo por construção da memória um fenômeno complexo que ocorre especialmente na ordem discursiva no registro

oral

e

escrito.

Manifesta-se

na

elaboração

de

narrações,

representações visuais, códigos, metáforas e textos sobre o passado, que são 1

O presente texto é um resumo da versão preliminar do meu anteprojeto de tese na UnB. Agradeço a Cristiane Kozovits pela ajuda com a revisão.

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produzidos intencionalmente por um segmento social, com a finalidade de serem difundidos e apropriados pelos sujeitos de um coletivo mais amplo como parte da sua noção de identidade. Também possui um componente performativo que se expressa em dispositivos como as comemorações, o surgimento de monumentos, os atos cívicos e o ensino público. Segundo Michael Pollak, a memória coletiva está intimamente ligada à constituição do sentimento de identidade em um determinado grupo ou indivíduo, e pode ser um permanente motivo de conflito social e intergrupal.2 Memória que procede a escolhas voluntárias e involuntárias, estratégicas e não planejadas de acordo com os interesses envolvidos, em “um jogo complexo em que o lembrar supõe necessariamente o esquecer”.3 Na Nova Granada, os sujeitos encarregados de criar e difundir os novos referentes ideológicos foram principalmente os criollos habitantes das cidades. Eles dirigiram o rumo da guerra e a gestão republicana. Civis, militares e clérigos do sexo masculino principalmente, que exerceram um papel de liderança nos acontecimentos e, pouco a pouco, emergiram como a nova elite do país.4 Muitos deles desempenharam diferentes funções organizativas ao mesmo tempo, e assumiram a responsabilidade de formar as almas do restante da população, com recursos ideológicos que respaldavam o seu exercício do

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O estudo da memória histórica, a memória coletiva e o uso público da história vem se consolidando como um verdadeiro campo interdisciplinar de pesquisa, no qual se cruzam a história, a antropologia, a sociologia, a psicologia social e a crítica literária, dentre outras disciplinas. Uma interessante aproximação ao conceito de memória social se encontra em Michael Pollak, “Memória e identidade social” in Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. Pollak se refere a uma “memória especificamente política” e introduz o conceito de “trabalho de enquadramento da memória”. Para ele, essa é uma labor realizada parcialmente pelos historiadores, ao tentar “enquadrar” permanentemente a memória do grupo dentro de um projeto político e social. O autor comenta: “Em relação à herança do século XIX, que considera a história como sendo em essência uma história nacional, podemos perguntar se a função do historiador não terá consistido, até certo ponto, nesse trabalho de enquadramento visando à formação de uma história nacional”. (p. 206). Fernando Catroga também desenvolve reflexões interessantes sobre os conceitos de memória coletiva, memória social e memória histórica, assim como as interligações entre historiografia e rememoração no pequeno livro Memória, história e historiografia, Coimbra, Quarteto, 2001. 3 Manoel Luiz Salgado Guimarães, “A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar”, in Sandra Jatahy Pasavento, História cultural: experiências de pesquisa, Porto Alegre: UFRGS, 2003, p. 10. 4 Víctor Manuel Uribe Urán estudou a composição social da elite neogranadina em Vidas honorables: abogados, familia y política en Colombia 1780-1850. Medellín, EAFIT, 2008. Este trabalho abriu um importante filão de pesquisa relativo à atuação das redes burocráticofamiliares no processo de configuração estatal e destacou a preponderância dos advogados sobre os militares. Assim, segundo este autor, a figura do político civil deve ser resgatada e projetada sobre os tradicionais “caudilhos” no contexto republicano da América espanhola.

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poder.5 Alguns desses indivíduos alternaram as funções públicas com a elaboração de jornais e livros –para o nosso caso, livros de história– e fizeram da cultura letrada um mecanismo privilegiado de distinção e prestígio.6 Não é demais assinalar que na Nova Granada, tanto como em outras repúblicas hispano-americanas, quase sempre os integrantes da elite política foram igualmente pessoas com grande capital cultural e econômico. Na pesquisa projetada, pretendo estudar a elaboração da memória histórica sobre o passado hispânico neogranadino entre os anos 1827 e 1869, por parte de um segmento da elite nacional. Também vou tentar esclarecer aspectos sobre a cultura histórica do mencionado grupo, ou seja: os exemplos e modelos que seguiam no que diz respeito à escrita historiográfica, a sua instrução empírica ou formal em História, as suas leituras de livros de história, a sua atividade colecionista de impressos antigos e manuscritos, etc. Se no âmbito europeu a cultura histórica oitocentista surgiu a partir da experiência revolucionária de 1789, marcando a separação definitiva entre o passado e o presente no olhar de muitos coetâneos, e se orientou cada vez mais decididamente em direção ao futuro como horizonte de expectativa, convém perguntar se algo similar aconteceu na Nova Granada logo depois da emancipação.7 As datas limites escolhidas para a pesquisa marcam o surgimento de dois discursos historiográficos bem definidos, que tiveram grande repercussão na vida cultural do país: o primeiro é a Independência, como o momento fundamental da origem nacional, que aparece nas páginas da Historia de la revolución de la república de Colombia de José Manuel Restrepo (París, 1827), obra monumental equiparável por sua natureza à História geral do Brasil de 5

Por exemplo, a crença na utilidade da educação técnica como recurso para disciplinar à população, ou a convicção da necessidade de uma democracia limitada típica do liberalismo moderado. Sobre a primeira cf. Frank Safford, The ideal of the practical. Colombian struggle to form a technical elite. Austin e Londres, University of Texas Press, 1976. Sobre a segunda cf. Gilberto Loaiza, Manuel Ancízar y su tiempo, Medellín, EAFIT/Banco de la República, 2004. 6 Gilberto Loaiza, “Los intelectuales y la historia política en Colombia”. In: Ayala, César (ed.), La historia política hoy: Sus métodos y las ciencias sociales. Bogotá, Universidad Nacional, 2004, pp. 78-83. 7 No que diz respeito à cultura histórica oitocentista cf. Manoel Luiz Salgado Guimarães, “A cultura histórica oitocentista...”; Reinhart Koselleck,“História, histórias e estruturas de tempo formais” in Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro, Contraponto, 2006, p. 119-132. Outros conceitos marcantes, ainda que mais complexos, são consciência histórica e didática da história. Ver Oldimar Cardoso, “Para uma definição da didática da história”, in Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 28, n. 55, 2008, p. 153-170.

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Francisco Adolfo de Varnhagen; e o segundo discurso toma a Colônia como a base da mesma, o que é bem representado na Historia eclesiástica y civil de la Nueva Granada de José Manuel Groot (1869). No que diz respeito ao marco temporal, julga-se prudente limitar a pesquisa ao entorno geográfico de Bogotá, capital da Nova Granada, onde teve lugar o maior volume de produção escrita do período. Isto supõe levar em conta as trajetórias públicas dos letrados que moravam em Bogotá, os jornais oficiais e privados que publicavam as suas adesões partidárias e ideológicas, bem como a indústria editorial que se desenvolveu naquela urbe. A georreferência não nos impede de considerar manifestações culturais que ocorriam em outras regiões da república e mesmo fora dela. É útil ressaltar que várias das obras escritas que serão analisadas nesta pesquisa foram publicadas em Paris, um dos principais centros da cultura hispano-americana do século XIX. Além disso, os escritores neogranadinos das camadas dirigentes eram viajantes habituais à Europa e aos Estados Unidos, e pertenciam a redes supranacionais de sociabilidade culta, circulação de ideias e textos cujo rastreamento exige uma abordagem complexa. Aliás, esses traços biográficos também parecem ter sido comuns no Brasil e demais países da América Latina.8 Algumas das interrogações que procuro responder na presente pesquisa são as seguintes: quais sujeitos foram encomendados para serem os guardas, censores ou verdugos da memória pública e quais foram os seus interesses? Quais deles foram canonizados pela tradição? Que papel exerceram o gênero e a raça nesses autores?9 Que papel tiveram os discursos sobre o passado 8

Uma aproximação biográfica a dois historiadores brasileiros, José Inácio de Abreu e Lima e Caetano Lopes de Moura, é realizada por Lúcia Maria Bastos Pereira, “A história para uso da mocidade brasileira”, in José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 43-70. Igual que no caso brasileiro, várias obras históricas da Nova Granada visavam a preparação patriótica e cívica da juventude. 9 Jörn Rüsen coloca uma série de tópicos à maneira de questionário como proposta para um programa de pesquisa relativo aos tipos de prática cultural de rememorar historicamente o passado. Vários daqueles tópicos me parecem sugestivos para minha própria investigação. Por exemplo: “Qual é a relação da historiografia com os rituais, cerimónias, festividades, feriados públicos, performances religiosas, tais como romarias e outras manifestações da memória coletiva? Qual é a sua relação para com a cultura popular?”. Rüsen também chama a atenção para o papel do gênero na história social da historiografia, sendo que é importante distinguir entre as vozes masculinas e femininas na representação do passado e o lugar da religião no contexto cultural da historiografia. Ver daquele autor, “Historiografia comparativa intercultural”, in Jurandir Minerba (Org.), A história escrita. Teoria e história da historiografia, São Paulo: Editora Contexto, 2006, 115-135. No que diz respeito á Nova Granada, me questiono: houve historiadores(as) mulheres, mestiços ou negros? De fato, qual era o critério para chamar a

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hispânico fabricados pelos membros da elite na busca do reconhecimento diplomático da Nova Granada como república independente? Que função tiveram na formação dos partidos políticos e as relações exteriores do país? Quais foram os conteúdos explícitos e implícitos predominantes dos discursos sobre o passado colonial? Quais aspectos tentaram fazer esquecer e quais fazer lembrar ou exaltar? Que tipos de biografias da nação foram redigidos?10 Como foi concebida a história, como uma ciência ou como uma maestra da vida segundo o modelo clássico? Quais foram as principais controvérsias ou “batalhas pela memória” sobre o passado hispânico? Quais, dentre elas, alcançaram uma posição hegemônica e procuraram sarar ou infligir feridas?11 Como foi o processo de criação de uma memória documental –vale dizer, a formação de coleções documentais- sobre a época hispânica e de instituições de memória como academias e escolas na Nova Granada? Qual foi a relevância outorgada às crônicas coloniais, aos livros de história e outros tipos de manifestações historiográficas no contexto da cultura letrada do país?12 Qual foi a sua significação, por exemplo, em comparação com o notável peso da literatura, a gramática e a geografia? Qual foi a efetividade dos dispositivos memorísticos fora do limitado círculo da elite, e por quê? Finalmente, prevejo dedicar um capítulo da tese para desenvolver uma análise comparativa com o caso brasileiro, sendo que os dois países apresentam vários elementos comuns, embora tivessem temporalidades diferentes e especificidades próprias. Para tal, pretendo me apoiar na historiografia brasileira relativa à constituição da disciplina no século XIX. Assim, tanto no Império brasileiro quanto na Nova Granada, a historiografia foi elaborada principalmente por varões brancos dos setores dirigentes, com a clara intenção alguém de “historiador”? Para uma versão mais ampla da proposta teórica de Rüsen sobre a teoria histórica na sua primeira etapa ver Jörn Rüsen. Reconstrução do Passado. Brasília: EdUnB, 2010. 10 A expressão biografia da nação é usada por Salgado Guimarães no seu artigo já citado “A cultura histórica oitocentista...”. 11 Manoel Luiz Salgado Guimarães, “Escrever a história, domesticar o passado”, in Antonio Herculano Lopes et al (org.), História e linguagens: texto, imagem, oralidades, representações, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2006, p. 45-57. 12 Tomo emprestada a expressão “manifestações historiográficas” de Maria de Lourdes Mônaco. A expressão abrange um amplo leque de textos que vão além das obras propriamente reconhecidas como históricas (por exemplo, a história de um povo ou nação). Elas incluem também textos de natureza jornalística, memorialística, biográfica e didática, que podem ser suscetíveis de uma análise historiográfica. Ver o artigo “O diálogo convergente: políticos e historiadores no início da República”, in Marcos Cezar Freitas (Org.), Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Editora Contexto, 2010, p. 120.

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de legitimar, por meio da cultura da lembrança, o projeto ou projetos políticos que eles estavam desenvolvendo. Gerar sentimentos de patriotismo e respeito pelas autoridades; incentivar a veneração por personagens públicos, que se tornaram “heróis” nacionais e passaram a integrar um “panteão” glorificado de vidas exemplares e, enfim, produzir admiração pelo próprio passado, o que tornou-se uma espécie de culto oficial e missão sacerdotal, são esforços relevantes desse processo.13 Porém, no caso brasileiro a criação de instituições encarregadas de construir uma memória nacional -o IHGB- ocorreu mais cedo e agenciou mais o processo do que na Nova Granada e, diferentemente do que ocorreu no resto da Ibero-América, a experiência republicana brasileira começou apenas no final do século XIX.14

2. Justificativa Em primeiro lugar, o meu interesse pelo tema de pesquisa tem uma motivação pessoal: a minha paixão e envolvimento com a leitura, o mundo editorial e as bibliotecas. Durante vários anos trabalhei em uma editora de livros didáticos na Colômbia. A partir dessa experiência pude conhecer, de perto e por dentro, as dinâmicas e desafios presentes na elaboração de textos de história e ciências sociais dirigidos a formar novos cidadãos e cidadãs no marco dos parâmetros curriculares atuais do ensino básico. Pude constatar como, hoje em dia, a maior motivação para a concepção dos livros didáticos em meu país é comercial. As editoras constituem uma esfera bastante autônoma em relação ao Ministério de Educação Nacional. Também acompanhei o processo de criação de um livro através de suas diversas etapas: desenho de um modelo pedagógico, busca e contratação de autores, correção de escritos, etc. No caso colombiano, a pressão por fornecer ao mercado livros “bonitos”, com ilustrações atrativas, é muito forte, assim como as várias filtragens de

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Ver o trabalho de Temístocles Cesar e suas referências bibliográficas, “Lições sobre a escrita da história: as primeiras escolhas do IHGB. A historiografia brasileira entre os antigos e os modernos”, in Lúcia Bastos e Lúcia Guimarães et al (org.), Estudos de historiografia brasileira, Rio de Janeiro: FGV, 2011, p. 93-124. Outro autor que considero uma referência importante para minha pesquisa é Valdei Lopes de Araujo. A experiência do tempo. Conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild (Hucitec), 2007. 14 José Murilho de Carvalho, “A vida política”, in Lilia Moritz Schwarcz (org.), História do Brasil nação: 1808-2010, vol. 2: A construção nacional, Rio de Janeiro: Editoria Objetiva-Fundação Mapfre, 2012, p. 83-129.

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linguagem, enfoque e públicos-alvo da editora (por exemplo, escolas da rede pública o escolas privadas). Dessa maneira, desabrochou naturalmente em mim o desejo de explorar como ocorreu a produção e consumo de material historiográfico no século XIX e quais eram os seus objetivos, além dos aspectos mais evidentes. Em segundo lugar, e de um ponto de vista mais acadêmico, há tempo desenvolvi um interesse pela historiografia e a teoria da história. Minha dissertação de graduação teve como foco a teoria narrativa de Paul Ricoeur e o debate em torno à narratividade histórica. Posteriormente, o tema do meu mestrado em História foi uma obra histórica do século XIX na Colômbia.15 Por isso, acredito que a historiografia colombiana ainda carece de um estudo sistemático e analítico da cultura histórica e da criação de memória sobre o passado colonial no período mencionado. Até hoje, somente dispomos de abordagens parciais do dito processo, muitas vezes condicionadas por marcos conceptuais obsoletos ou limitados. Só para citar um caso, os estudos sobre a história pátria do século XIX –uma expressão em si mesmo problemática– até agora estão dando os seus primeiros passos e não incluem obras tão importantes quanto as de Joaquín Acosta, José Antonio de Plaza e José María Samper. Não existem trabalhos acadêmicos no que diz respeito à produção discursiva sobre o passado com fontes distintas das histórias pátrias, por exemplo, a imprensa oficial. Estamos apenas nos aproximando da verdadeira compreensão da cultura histórica daquela centúria.16 Também não contamos com interpretações baseadas no suporte factual, no que se refere ao nascimento de instituições da memória,17 à circulação de livros históricos, ou ao ensino de história pátria ou universal nas escolas e universidades. Evidentemente, tenho consciência dos importantes avanços efetuados no conhecimento de outros aspectos do meio cultural colombiano dos séculos XVIII e XIX que servirão como ponto de partida para questionários sugestivos e

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Juan Figueroa, O Compêndio histórico de Joaquin Acosta e a criação de memória na Nova Granada 1830-1848, Dissertação de Mestrado em História, Bogotá, Universidad Nacional de Colombia, 2007. 16 Em seu estudo seminal sobre a historiografia hispano-americana do século XIX, o historiador colombiano Germán Colmenares não se referiu às obras de Acosta, Plaza nem Samper. Cf. Las convenciones contra la cultura. Bogotá, Tercer Mundo Editores, 1987. 17 Se bem que no que diz respeito aos museus contamos com alguns estudos importantes.

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pertinentes,

e

dos

trabalhos

bastante

elaborados

sobre

alguns

dos

historiadores chaves do século XIX colombiano.18 Em um balanço sobre a historiografia relativa à Colônia elaborada no século XX, o professor Bernardo Tovar afirmou de maneira enfática: “Ao contrário do acontecido na Europa, o século XIX não representou em nosso meio [colombiano] um «século da história». O trabalho histórico apenas constituía, naquele tempo, uma paixão intelectual secundária, considerada por alguns como inútil. Com certeza, a história não era objeto da atenção oficial, nem tinha um espaço significativo no ensino”.19 Na verdade, requerem-se mais pesquisas apoiadas em fontes primárias para determinar a validade da anterior afirmação, e, caso a tivéssemos, seria preciso explicar as razões desse particular processo. Em resumo, esta investigação propõe voltar a pensar em profundidade em fenômenos que não conhecemos suficientemente bem e que têm especial relação com a auto representação dos colombianos como cidadãos “sem memória”, que estariam “condenados” a repetir o passado inevitavelmente.20 Uma das hipóteses de trabalho afirma que, longe de constituir uma tendência homogênea, a chamada história pátria contou com diversas orientações e contradições no seu interior, em poucas ocasiões notadas pelos críticos. Talvez seja possível demonstrar a existência de várias correntes historiográficas dentro dela, ou pelo menos indícios das mesmas.21 Também propõe, como hipótese provisória, uma contradição no seio das elites cultas, que rejeitaram discursivamente a herança espanhola até meados do século XIX, mas mantiveram uma ligação sentimental e identitária com a Espanha como fonte de honra, raça e status social. 18

Veja-se o comentário sobre os textos de Sérgio Mejí. Cf. os trabalho de Gilberto Loaiza, Renán Silva, Ricardo del Molino García, Mauricio Nieto Olarte, Georges Lomné, Lucía Duque, Jaime de Almeida, Marcos González, Efraín Sánchez, Clara Isabel Botero, Carl Henrik Langebaek e Juan Camilo Restrepo, entre outros. 19 “La historiografía colonial” in Bernardo Tovar (ed.), La historia al final del milenio. Bogotá, Universidad Nacional de Colombia, 1994, tomo 1, p. 22. 20 Esta auto-representação é evidente, por exemplo, na tradição literária do país, e poderia ter ligação com problemas como a violência supostamente “endêmica” dos colombianos, que regressa uma e outra vez sobre seus passos como algo impossível de se evitar. 21 Por exemplo, esta diversidade relativa não foi reconhecida nos primeiros estudos sobre a historiografia colombiana do século XX: Bernardo Tovar Zambrano, La colonia en la historiografía colombiana. Bogotá, La Carreta, 1984; Jorge Orlando Melo, “La literatura histórica en la República” in Manual de Literatura histórica colombiana. Bogotá, Procultura-Planeta, 1988, vol. 1.

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A pesquisa aspira fazer uma contribuição à compreensão das práticas culturais das elites latino-americanas do século XIX. Nesse sentido, a comparação com o Império brasileiro torna-se um valor agregado. Mais especificamente, ambiciona contribuir nos seguintes subcampos da área: a história da produção historiográfica na América do Sul; a análise da “biblioteca histórica” neogranadina e brasileira; as práticas de leitura e escrita no século XIX; o exame

de

textos

significativos

da

biblioteca

colonial

e

republicana

neogranadina, desde novas ópticas e de forma mais sistemática que até agora; a elucidação dos conteúdos e funções da imprensa naquela época; a constituição de bibliotecas e coleções documentais.

5. Metodologia A metodologia sugerida para esta pesquisa é de natureza qualitativa e indutiva, e se compõe de três grandes eixos: 1) reconstrução de itinerários biográficos; 2) análise de textos/discursos/semióforos; 3) circulação de textos e criação de instituições. a) Reconstrução de itinerários biográficos. Consiste em reconstruir os contextos biográficos dos autores das histórias e outros tipos de textos estudados,

sua

formação

intelectual,

militar,

política

e

seu

meio

socioeconômico; a formação acadêmica formal e informal que receberam; as obras que leram e suas bibliotecas pessoais; os cargos públicos que ocuparam e a sua inclinação política; os jornais que editaram; as ideologias que mais influíram neles. Neste sentido, a consulta de arquivos privados será fundamental. Tudo isso com dois propósitos: por um lado, compreender a influência da trajetória biográfica individual na escrita da história e na criação de memória, levando em conta a funcionalidade política que poderia ter; por outro, estabelecer o ambiente intelectual e a cultura histórica destes sujeitos. Ou seja, trata-se de determinar o lugar social dos personagens, de acordo com o enfoque de Michel de Certeau.22 Em um contexto de frágil embasamento institucional do saber histórico – como no caso da Nova Granada – as redes

22

Para a análise de trajetórias individuais serão muito úteis as considerações de Michel de Certeau sobre o “lugar social” da disciplina histórica e dos historiadores, no seu texto. Michel de Certeau, “L’opération historiographique” in L´écriture de l´histoire. Paris, Gallimard, 1975, especialmente a seção “Un lieu social”, p. 64-79.

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informais, a instrução autodidata, os grupos de discussão entre amigos, puderam ter grande relevância.

b) Análise de textos/discursos/semióforos. As obras catalogadas como históricas e as manifestações historiográficas de outra índole serão objeto de uma análise das formas de argumentação e retórica, classificando e interpretando o uso de tropos e o tipo de tramas elaboradas. Assume-se a premissa de que toda obra historiográfica, literária ou artigo de jornal, é um objeto visível portador de significação. Isto é, um semiósforo, segundo a definição de Krzysztof Pomian.23 Por isso, trata-se, em primeiro lugar, de descobrir suas características materiais e as determinações, também materiais, que o tornaram possível: o editor, o lugar da impressão, os meios de financiamento, o formato, etc. Cada um destes aspectos pode nos revelar um dado valioso sobre a cultura histórica dos homens e mulheres daquela época. Por exemplo, saber quanto dinheiro destinavam para suas bibliotecas históricas? Além do mais, levam-se em conta os aspectos formais e técnicos de cada texto: a ordem dos capítulos, as epígrafes, as notas de rodapé, os elementos gráficos – mapas, figuras –, os anexos e a bibliografia. Em segundo lugar, os textos que vão ser estudados pertencem, na sua maioria, ao gênero de discurso narrativo. As categorias conceptuais para analisar estes textos inspiram-se na teoria de Paul Ricœur sobre a narrativa histórica e a “operação historiográfica”, em dois de seus livros: Tempo e narrativa e A memória, a história, o esquecimento.24 Para Ricœur, interpretar uma narrativa é um ato hermenêutico que não se limita a esclarecer a intenção do autor (a mensagem que ele queria transmitir), nem as estruturas do significado inerentes ao texto, o que quer dizer, sem relação com o referencial externo nem o contexto. 23

Cf. Krzysztof Pomian, Collectors and curiosities. Paris and Venice, 1500-1800. Gran Bretaña, Polity Press/Basil Blackwell, 1990, p. 30; “Historia cutural, historia de los semiósforos”in Rioux Jean-Pierre & Jean-Pierre Sirinelli (dir.), Por una historia cultural. México, Taurus, 1999, p. 79107. Pomian propõe uma terceira via para se aproximar aos produtos culturais – entre os quais figuram as obras escritas–, como um intento de evitar a dicotomia entre a abordagem “semiótica” e a abordagem “pragmática”. Neste projeto de doutorado interessa percorrer também uma terceira via entre os estudos dos textos como entidades formais – por exemplo, a crítica literária– e os estudos dos textos como entidades exclusivamente materiais – por exemplo, a história da leitura e as bibliotecas–. 24 Paul Ricœur, Tiempo y narración. Tomos I, II y III. México, Siglo XXI, 1998; La memoria, la historia, el olvido. Madrid, Trotta, 2003.

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Em uma escala mais reduzida, na análise das narrativas é fundamental atentar para a linguagem usada na época na qual foram escritas. A chamada história conceitual é uma ferramenta útil nesse sentido, que permite rastrear a variação dos significados de algumas palavras semanticamente carregadas no contexto oitocentista.25 Eis alguns exemplos: pátria, colônia, nação, raça, cidadão, revolução, memória ou constituição.

c) Circulação de textos e criação de instituições Em termos gerais, tal como acontece em outros âmbitos do saber, a história passou por uma disciplinarização no século XIX, nas palavras de Salgado Guimarães. O discurso histórico ganhou autonomia de outros campos culturais ou acadêmicos em formação: a literatura, a geografia, a filosofia, o colecionismo, a moral, o direito, a religião, etc. A história também efetivou uma domesticação do passado e consolidou uma memória disciplinar específica. Desta maneira, ela adquiriu um arcabouço institucional próprio, garantindo para si um espaço nos currículos universitários e nas aulas do ensino escolar. Nos países onde esse processo disciplinar teve lugar mais cedo, apareceu o historiador profissional, acompanhado de outras mudanças como novos empregos, publicações periódicas, a figura dos colegas ou pares acadêmicos e a formação de uma linguagem relativamente estandardizada.26 Essa tendência de normalização da história representou um contrapeso do seu papel memorialístico e ideológico já ilustrado. Porém, na Nova Granada, as mudanças disciplinares da historiografia ocorreram mais lentamente do que em outros países da América Latina –o contraste com o Brasil é bem marcado–, e ainda mais devagar do que na Europa. Um indício é que as aulas de história tiveram dificuldades para se consolidar nos distintos níveis do ensino, apesar de que a legislação oficial entre 1826 e 1836 estabelecia a obrigatoriedade da sua aprendizagem, e que, em 1850, incorporou-se, pela primeira vez, o estudo da história da Nova 25

Essa perspectiva metodológica foi enunciada por Reinhart Koselleck, “História dos conceitos e história social”, in Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro, Contraponto, 2006, p. 97-118. Ver também Tereza Cristina Kirshner, “A reflexão conceitual na prática historiográfica”, in Textos de História: revista do programa de pósgraduação em história da UnB, Brasília, v. 15, n. 1/2, p. 49-61, 2008. 26 Michel de Certeau concebe a história como produto de um “lugar social”, mas não de uma mente individual. Certeau, Michel de. “L’opération historiographique”.

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Granada nos Colégios nacionais.27 Neste projeto, intenta-se inspecionar a difícil dinâmica da introdução da história no saber institucional, desde a criação da república até 1869. Além da precariedade institucional e a instabilidade política do país, quais foram os problemas? Quais foram os sucessos?

27

No plano de estudos de 1826, que tinha aplicação nas escolas de “paróquia” e “cantão”, e na Universidade, incluiu-se uma aula de “princípios de Geografia, Cronologia e História”. Por sua vez, no plano de estudos de 1836, a história era uma matéria obrigatória do primeiro ano dos estudos militares. Cf. Aguilera, Miguel, La enseñanza de la historia en Colombia. México, Instituto Panamericano de Geografía e Historia, 1951, p. 5.

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