Aquilino Ribeiro no centenário do \"Jardim das Tormentas\"

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Nascido na freguesia de Carregal de Tabosa, em Sernancelhe, a 13 de Setembro de 1885, de seu nome completo Aquilino Gomes Ribeiro, filho natural do padre Joaquim Francisco Ribeiro e de Mariana do Rosário Gomes, aquele que foi um dos mais importantes, venerados e prolixos escritores portugueses do século XX viria a falecer em Lisboa, corria o ano de 1963. Cumprem-se, por isso, cinquenta anos do desaparecimento de Aquilino Ribeiro, falecido precisamente quando um pouco por todo o país o grande escritor se desdobrava em conferências e assistia a várias justas homenagens em que se recordavam esses outros cinquenta anos da sua estreia literária, em 1913, com a publicação em Paris dessa colectânea de contos intitulada Jardim das Tormentas, quase totalmente escrita na biblioteca de Sainte Geneviève, perto da Sorbonne. Adição, assim, fácil de realizar esta que soma aos cinquenta anos da morte de Aquilino Ribeiro os cem anos decorridos desde a saída em esmerados prelos parisinos daquele que viria a ser o primeiro dos generosos 61 livros que a sua continuada actividade literária nos legou para imperdível delícia de leitores, muitos no seu tempo, cada vez mais escassos neste presente que esquece com ignorante facilidade os grandes nomes e as obras maiores da literatura em língua portuguesa.

lusofonias nº 20 | 25 de Novembro de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS: • Uma escrita em Acção para uma Obra singular • O Jardim das Tormentas cem anos depois • Extracto de Jardim das Tormentas (1913)

Aquilino Ribeiro

Dia 02 de Dezembro: Albert Camus no Brasil

APOIO:

centenário do Jardim das Tormentas no

AQUILINO RIBEIRO:

no centenário do Jardim das Tormentas Ivo Carneiro de Sousa

N

ascido na freguesia de Carregal de Tabosa, em Sernancelhe, a 13 de Setembro de 1885, de seu nome completo Aquilino Gomes Ribeiro, filho natural do padre Joaquim Francisco Ribeiro e de Mariana do Rosário Gomes, aquele que foi um dos mais importantes, venerados e prolixos escritores portugueses do século XX viria a falecer em Lisboa, corria o ano de 1963. Cumprem-se, por isso, cinquenta anos do desaparecimento de Aquilino Ribeiro, falecido precisamente quando um pouco por todo o país o grande escritor se desdobrava em conferências e assistia a várias justas homenagens em que se recordavam esses outros cinquenta anos da sua estreia literária, em 1913, com a publicação em Paris dessa colectânea de contos intitulada Jardim das Tormentas, quase totalmente escrita na biblioteca de Sainte Geneviève, perto da Sorbonne. Adição, assim, fácil de realizar esta que soma aos cinquenta anos da morte de Aquilino Ribeiro os cem anos decorridos desde a saída em esmerados prelos parisinos daquele que viria a ser o primeiro dos generosos 61 livros que a sua continuada actividade literária nos legou para imperdível delícia de leitores, muitos no seu tempo, cada vez mais escassos neste presente que esquece com ignorante facilidade os grandes nomes e as obras maiores da literatura em língua portuguesa. Aquilino Ribeiro cumpriu entre 1897 e 1899 a instrução primária no Colégio de Nossa Senhora da Lapa, em Sernancelhe, antiga construção jesuíta, matriculando-se em 1900 em escola de Lamego, depois seguindo e instalando-se em Viseu como estudante de Filosofia, condição para a sua posterior entrada no Seminário de Beja, concretizando obediente a orientação materna de se preparar para vir a ser sacerdote. Três curtos anos mais tarde, em 1904, é expulso do Seminário, depois de perceber a sua completa falta de vocação e interesse pela vida clerical católica. Regressado, em 1904, por isso, a Soutosa, a aldeia onde viveu desde os dez anos, mas irrequieto e cada vez mais próximo dos ideários anti-monárquicos fixa-se em Lisboa passando a colaborar com A Vanguarda, um activo e contundente jornal republicano, traduzindo também Il Santo, uma obra editada originalmente em Milão, em 1905, da autoria do romancista italiano Antonio Fogazzaro (1842-1911), apostado nos seus livros em conciliar darwinismo e cristianismo. Anterior ainda à publicação da sua primeira obra, Aquilino Ribeiro acumulava já esta abundante colaboração em vários jornais e revistas, abraçando mesmo aos 22 anos, em 1907, em colaboração com José Ferreira da Silva essa muita camiliana arte do folhetim ao publicar “A Filha do Jardineiro”, série de textos de militante propaganda republicana e de crítica acerada às principais figuras do decadente e muito contestado regime monárquico com D. Carlos à cabeça. Neste mesmo ano de 1907, Aquilino Ribeiro é iniciado na Maçonaria, integrando-se na Loja Montanha do Grande Oriente Lusitano, mas aca-

baria por ser preso em Novembro, acusado de ser um perigoso anarquista na sequência da deflagração de várias caixas de engenhos explosivos no seu quarto de Lisboa, vitimando dois dos seus carbonários correligionários. Evade-se rápido do cárcere, logo a 12 de Janeiro de 1908, passando à clandestinidade para seguir para Paris, matriculando-se numa licenciatura em Filosofia na Sorbonne, estudando com mestres clássicos tão importantes como George Dumas (1866-1946), pioneiro da moderna psicologia, Pierre André Lalande (1867-1963), vulto fundamental do racionalismo filosófico, Levy Bruhl (1857-1939), aureolado com o seu estudo referencial sobre A mentalidade Primitiva, e o pai fundador da sociologia francesa que foi Êmile Durkheim (1858-1917), constelação cintilante de influências que se descobrem na demorada obra aquiliniana. Do exílio parisiense, Aquilino envia quadros de pintores portugueses e escreve várias crónicas para A Ilustração Portuguesa em que se interessa pelo impressionismo e apela à renovação cultural e artística de Portugal. A revolução republicana vitoriosa do 5 de Outubro motiva o seu breve regresso a Lisboa, mas logo retornando aos seus estudos universitários em Paris por onde conhece a sua primeira esposa, Grete Tiederman, com quem reside em 1912 alguns meses na Alemanha. Com ela casa em 1913, preparando em Paris a publicação do seu primeiro livro, dedicado à sua jovem mulher num alemão que falava e escrevia com desem-

baraço. No ano seguinte, em 1914, após o nascimento do seu primeiro filho eclode pavorosa a I Guerra Mundial, decidindo Aquilino voltar com a sua jovem família para um muito mais sossegado Portugal que, mesmo assim, enviaria milhares dos seus jovens para morrerem nas batalhas do grande conflito por terras da França e da Bélgica. Apesar de não ter concluído a sua afrancesada licenciatura em Filosofia, abandonada no princípio do quarto ano, Aquilino Ribeiro é nomeado professor no lisboeta referencial Liceu Camões, ensinando ao longo de três anos. Em 1918, publica o seu segundo título, A Via Sinuosa, passando no ano seguinte a trabalhar como segundo bibliotecário na renovada Biblioteca Nacional de Portugal, colaborando com os intelectuais que, conhecidos precisamente por Grupo da Biblioteca, se reuniam em torno dos nomes maiores de Raul Proença e Jaime Cortesão. Uma oportunidade que alarga o gosto bibliófilo de Aquilino pelos livros raros e antigos que, coleccionados na sua importante biblioteca pessoal, várias vezes investigou em cuidados estudos publicados nos Anais das Bibliotecas e Arquivos. Em 1919, edita Terras do Demo, obra em que se vai maturando a sua peculiar arte da escrita, integrando desde 1921 o grupo de fundadores da mais do que fundamental revista que foi a Nova Seara. Em 1920, Aquilino publica nova colecção de novelas, Filhas de Babilónia, datando de 1922 essa obra já maior que é O Malhadinhas, texto na altura integrado ainda no volume A Estrada de Santiago, mas depois muitas vezes reeditado autonomamente como um dos seus livros de referência. Neste mesmo ano, o nosso escritor publica a primeira das suas várias traduções de grande obras e autores do passado, saindo dos prelos uma Recreação Periódica, texto originalmente escrito em francês pelo Cavaleiro de Oliveira (1702-1783), de seu verdadeiro nome Francisco Xavier de Oliveira. Dois anos mais tarde, em 1924, Aquilino edita a primeira de várias obras dirigidas ao público infantil, o seu muito feliz Romance da Raposa, frequentemente transformado em teatro e desenhos animados. Segue-se em 1926 um dos seus mais originais romances, Andam Faunos pelos Bosques, um sentido elogio da humanidade do amor e da paixão da liberdade. Agitado, crítico, humanista, democrata e profundamente republicano, o nosso escritor foi-se envolvendo nas várias revoltas contra o golpe militar do 28 de Maio de 1926 que foi preparando a Ditadura do Estado Novo. Em 1927, participa na revolta falhada do 7 de Fevereiro, obrigando ao seu regresso a novo exílio em Paris, mas regressa clandestinamente a Portugal onde recebe a notícia do falecimento da sua primeira esposa. Não desiste: envolve-se em 1929 na abortada rebelião do regimento de Pinhel para ser preso em cárceres de Viseu, dos quais se evade depressa para retornar a Paris onde conhece e se casa com Jerónima Dantas Machado, filha do antigo presidente e vulto brilhante do republi-

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II

Segunda-feira, 25 de Novembro de 2013 • LUSOFONIAS

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Depois de um muito raro ano ausente de no- em O Romance de Camilo. canismo português que foi Bernardino MachaO ano do seu activo apoio a Humberto Deldo. Em 1930, acompanha o nascimento do seu vidades literárias, Aquilino Ribeiro oferece em segundo filho, Aquilino Ribeiro Machado, muito 1945 mais um romance com Lápides Partidas e gado, em 1958, comparece marcado pela edimais tarde Presidente da Câmara de Lisboa, en- um interessante livro de história e etnografia do ção difícil de outro dos seus mais importantes tre 1977 e 1979. Fixa-se em 1931 na Galiza, mas Natal com O Livro do Menino Deus. Um fino pen- romances, Quando os Lobos Uivam. Livro logo regressa clandestinamente a Portugal no ano se- dor etnográfico que se volta a manifestar quali- considerado perigoso e injurioso pelo regime saguinte, depois recebendo uma amnistia e sendo ficado em livro de 1946, simplesmente intitula- lazarista, levando à instauração de um processo crime contra o escritor. Para além da defesa galardoado em 1933 pela Academia das Ciên- do Aldeia (terra, gente e bichos). Em 1947, Aquilino Ribeiro prossegue a sua fre- formal feita pelo advogado Heliodoro Caldeira, cias de Lisboa com o prémio Ricardo Malheiros pelas novelas reunidas em As Três Mulheres de nética escrita com mais três livros: um romance Aquilino Ribeiro recebe a solidariedade de cerca Sansão, prelúdio da sua eleição, em 1935, para sublime, O Arcanjo Negro, uma compilação de de 300 intelectuais portugueses que se juntam sócio correspondente da velha e muita selecta novelas, Caminhos Errados, e um bem consegui- num abaixo-assinado pedindo o arquivamento do sociedade académica. O que não limitou a sua do livro de história, Constantino de Bragança, processo. Em França, François Mauriac organiza actividade política, aderindo ao MUD na altura VII Vizo-Rei da Índia. 1948 guarda mais dois mui- também uma petição em defesa do grande essua fundação, em 1945, apoiando em seguida a to aquilinianos romances: Cinco Réis de Gente e critor português, assinada, entre muitos outros, candidatura falhada à presidência de Norton de Uma Luz ao Longe. Em 1949, começa o sucesso por Louis Aragon e André Maurois, difundida nos Matos, em 1948-1949, tornando-se em 1958 um da circulação em livro independente de O Ma- principais jornais e revistas franceses. O procesdos mais activos apoiantes da campanha com lhadinhas, acompanhado da publicação de um so crime acabaria convenientemente arquivado. Por isso, Aquilino publica logo, em 1959, esse que Humberto Delgado, o General sem Medo, conjunto esplêndido de estudos de história culagitou e mobilizou o país, abalando a instalada tural e crítica literária em Camões, Camilo, Eça muito contundente romance legendário sobre ditadura salazarista que o haveria cobardemen- e Alguns Mais. Um gosto histórico e crítico a que Dom Frei Bertolameu. As três desgraças teolote de assassinar em terras espanholas de fron- Aquilino se consagra mais ainda em 1950 com o gais, editando ainda dois livros com traduções das grandes obras de Cervantes, o inevitável D. teira, em conhecida cilada de 1965. Dois anos ensaio Luís de Camões, Fabuloso, Verdadeiro. Quixote de la Mancha e as Novelas antes da memorável campanha de Exemplares. Delgado, em 1956, Aquilino Ribeiro O fascínio pelo quixotesco continua foi o grande promotor da fundação ainda em 1960 com o ensaio No Cada Sociedade Portuguesa de Escrivalo de Pau com Sancho Pança, mais tores, tornando-se seu presidente. novo título de ensaios etnográficos A partir de 1930, Aquilino Ribeiem De Meca a Freixo de Espada à ro publica praticamente todos os Cinta. O ano seguinte é para ganhar anos, desenvolvendo actividade alento para os seus dois último anos literária tão torrencial como sinde terrena vida: em 1962, publica gular. Assim, naquele ano edita um novo volume de Arcas Encoiradas e, dos seus melhores romances, muino ano da sua morte, 1963, edita a to esquecido, O Homem que Matou peça de teatro Tombo no Inferno. O o Diabo. Manto de Nossa Senhora, e uma coSegue-se, em 1931, novo romanlecção de novelas, Casa do Escorpião. ce, Batalha sem Fim e, em 1932, Neste ano final, quando se multias premiadas novelas sobre As Três plicavam as muitas homenagens peMulheres de Sansão. O romance los seus cinquenta anos de continuaMaria Benigna edita-se em 1933, da carreira literária, Aquilino Ribeiro enquanto em 1934 Aquilino publifalece em Lisboa, a 27 de Maio, de ca o seu diário É a Guerra, mais imediato seguindo para toda a ima colecção de contos que intitulou prensa portuguesa ordens da cenSonhos de uma Noite de Natal. Em sura proibindo a difusão de notícias 1935, mantém a edição de dois tícomemorativas da vida e produção tulos, juntando aos seus cadernos literária daquele que tinha sido um de viagem, Alemanha Ensanguendos maiores escritores de língua portada, um dos seus mais conseguituguesa. dos livros de contos, Quando ao A sua obra, porém, continuou. Em Gavião Cai a Pena. 1967, publicava-se O Livro de MariaEm 1936, publica quatro livros: ninha, lengalengas e toadilhas em uma tradução e selecção imporGrupo da SEARA NOVA: Da esquerda para a direita; de pé: Teixeira de Vasconcelos, prosa rimada, texto originalmente tante de mais textos do CavaleiRaul Proença e Câmara Reys; sentados: Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão escrito em 1962 para comemorar o ro de Oliveira, O Galante Século nascimento da sua primeira neta, XVIII; a vida e obra de Anastácio 1951 é ano novamente de etnografia e estu- Mariana, como se adivinhava. da Cunha, o Lente Penitenciado; mais uma séData já de 1974, esse livro chave que é Um rie de contos infantis, Arca de Noé, I, II e III; dos culturais com Geografia Sentimental, obra ainda o romance Aventura Maravilhosa de D. carregada de pormenorizados conhecimentos Escritor Confessa-se com elegante e precioso Sebastião. Em 1937, esta impressiva produção folclóricos, mais esse livro que o próprio Aquili- prefácio de José Gomes Ferreira. Mais recenteliterária mais do que continuada prossegue com no classificava de viajantes, aventureiros e tro- mente, em 1988, Jorge Reis compilou com enoro lançamento de novo romance, S. Banaboião ca-tintas, Portugueses das Sete Partidas. Mais me competência Páginas do Exílio. Cartas e cróAnacoreta e Mártir, livro maior em que Aquilino três títulos chegam às livrarias em 1952: a vida nicas de Paris, recordando o intermitente exílio Ribeiro volta a revisitar essa contradição que foi e obra de Leal da Câmara, mais uma tradução de Aquilino pela agitada capital francesa entre procurando pensar em muitos dos seus textos de Xenofonte, desta vez a célebre Kirou Paideia 1908 e 1914, tempo de muitos textos, cartas, entre Deus e Eros, entre a humanidade do amor que o nosso autor apresentou como O Príncipe opiniões, frequência de escritores e artistas, e a conservadora moral religiosa do seu tempo. Perfeito, e ainda a sua mais conseguida série mais essa admiração enorme pela obra de AnaEm 1938, edita-se a sua tradução da Anábase, de estudos históricos com Príncipes de Portugal. tole France, provavelmente a sua mais assumida e íntima influência literária. de Xenofonte, a que preferiu chamar A Retirada Suas grandezas e misérias. Em 1953, o nosso cada vez mais trabalhador É também póstumo o agraciamento de Aquidos Dez Mil. Em 1939, volta a publicar dois títulos, o ro- escritor reúne os seus textos de opinião e refle- lino Ribeiro pela sua República Portuguesa com mance Mónica e uma colectânea de estudos va- xão em Arcas Encoiradas. Regressa em 1954 à a Ordem da Liberdade e, ainda mais significatiriados Por Obra e Graça. O ano seguinte, 1940, etnografia, desta vez de serranos e caçadores, vamente, a decisão em 2007 da Assembleia da continua a dobrar as suas edições, somando-se em O Homem da Nave, livro acompanhado de República de aprovar a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional. Mais vale à sua curiosa monografia de Oeiras a muita qua- mais um romance, Humildade Gloriosa. Em 1955, compila crónicas e polémicas em tarde do que nunca, conquanto se volte a malificada tradução da obra latina do grande humanista quinhentista André de Gouveia (1497- Abóboras no Telhado, descansando compreensi- nifestar esse gesto irritantemente normativo do vamente em 1956. É que no ano seguinte, em português agradecimento sempre tardio, muito 1548), Em Prol de Aristóteles. Em 1941, Aquilino volta às novelas, editando 1957, publica Aquilino Ribeiro aquela que conti- eloquente, conveniente, politicamente correcto, O Servo de Deus e a Casa Roubada. Em 1942, nua ser uma das suas obras maiores, o romance mas imperdoável, quando se trata de reconhecer regressa à história e às suas memórias infanto- A Casa Grande de Romarigães, sucesso que não muitos daqueles que, atacados e perseguidos em -juvenis com Os Avós dos Nossos Avós. Volta ao o impediu de dar à luz uma das mais qualificadas vida, procuraram pela escrita e acção exemplainvestigações de sempre sobre a obra camiliana res erguer o sonho de um Portugal culto e livre. romance em 1943 com Volfrâmio.

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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 25 de Novembro de 2013

III

Uma

escrita em

Acção

A

muito prolixa obra de Aquilino Ribeiro não é fácil de avaliar, ainda menos de estudar com rigor. Muitos dos seus textos para variada imprensa, epistolografia, conferências e estudos encontram-se ainda por compilar, aguardando tarde investigação que se preze. É certo, contudo, que muitas das suas obras mobilizam os seus principais lugares da memória, do rural tempo infantil à breve vida de seminarista, do exílio à militância política mais do que sediciosa, do seu prazer de viajante aos espaços familiares, do omnipresente retrato de um país cinzento e vigiado ao seu continuado finíssimo gosto pelos tipos cómicos e folclóricos mais característicos de um certo Portugal agrário, supersticioso, pouco mais do que analfabeto, oscilando entre beatice imbecil e malandrice esperta, dialéctica para satíricos equívocos e inteligentes jogos de logros, prazeres, profunda humanidade. Descobrem-se, assim, memórias infantis e juvenis a cerzir as intrigas da Via Sinuosa e de Cinco Réis de Gentes, enquanto Uma Luz ao Longe revisita por Sernancelhe esse Colégio da Lapa em que, por granítico casarão jesuítico, decorreu a sua instrução primária. O seu primeiro exílio parisino recorda-se em muitos lugares da sua generosa produção romanesca e novelística, influencia contos impressivos e vaza-se em diário com É a Guerra, texto que também é mordazmente político ao criticar feroz João Chagas, à época ministro plenipotenciário de Portugal na França. A sua extraordinária militância política, entre carbonária, agitação republicana e resistência ao 28 de Maio influenciou fundo as páginas de O Arcanjo Negro, concluído ainda por 1940, mas publicado sete anos mais tarde devido à perseguição da censura. Memórias agitadas que chegam também a O Homem que Matou o Diabo, recordando as acusações que lhe foram dirigidas – mas que sempre repudiou – de ter colaborado no regicídio do 1 de Fevereiro de 1908 ao ponto de Baptista Bastos em texto célebre se interrogar se Aquilino não seria mesmo a terceira espingarda do fatídico evento que ceifou as vidas de D. Carlos e do seu primogénito, o príncipe herdeiro D. Luís Filipe de Bragança. A sua obra, porém, dificilmente se pode ler apenas como locus de memória e memórias, mesmo quando se transforma em história, etnografia e folclore. É muito mais, única e quase irredutível a qualquer estilo, escola ou movimento literários. O que se reconhece bem cedo tanto nas peregrinas novelas do Jardim das Tormentas como, muito mais singularmente, nesse genial romance dos anos vinte que é Andam Faunos pelos Bosques, sátira do mais fino gosto ao conservadorismo católico e elogio do amor livre em que muitos viram o anarquismo que Aquilino abraçou, em ideias e acção, na sua juventude. No entanto, este livro singular revela também o profundo conhecimento aquiliniano de temas clássicos e a sua muita especializada frequência dos textos bíblicos, maiormente dos livros do antigo testamento, tantas vezes convocados para apontamentos fundamentais de uma escrita que, parecendo frequentemente rústica e popular, se mostra extremamente erudita e quase academicamente fundamentada. O que invalida essa sorte de recorrente

IV

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para uma

Obra

singular

labéu com que se foi caracterizando a prosa de Aquilino como regionalista, quase beirã, não se percebendo que o fundo folclórico dos seus textos representa a paisagem de um país que fomos perdendo, mas não deixando de categorizar essa Casa Portuguesa com que o salazarismo elogiava uma ruralidade entendida como modéstia, falta de ambição, ignorância, condições de submissão e paternalismo. O nosso escritor esclarecia mesmo com inteligência este seu programa literário no prefácio de Terras do Demo, explicando ser o seu romance “o estudo do mundo pitoresco e primário da pedra da lameira. Não o examinei à lente, não o avantajei, nem alinhei. […] Julguei que havia mérito, tanto, pelo menos, como em ocupar estas páginas com um janota do Chiado, em trazer a público uma grei não mareada de vícios brilhantes e virtudes postiças do século”. Escritor mais do que original, Aquilino Ribeiro não se consegue reduzir a rótulos, influências e escolas. O neo-romantismo vitalista e naturalista com que alguns quiseram sumariar toda a sua obra é pequeno para conter uma escrita também etnográfica, também sábia, também crítica, também reflexiva, por vezes profundamente ontológica tanto como questionadora de racionalismos fáceis e interrogadora de cosmovisões escatológicas, percorrendo e descrevendo realidades sociais sem ser apenas realista, exornando ecologias sem se render ao romance da natureza, investigando o popular sem ser populista para nos deixar uma enorme constelação de tipos sociais em que se reconhece o parolo, o simples camponês, a pequena-burguesia, a fidalguia decadente, o clero dividido entre rigorismo e libertinagem, o idealista, o asceta, o sibarita, mais as muitas personagens femininas em que se vislumbra a mulher fatal, a beata ou a virgem mais do que disponível. Em escolas é impossível aprisionar Aquilino Ribeiro, para além dessa geral escola da vida que estudou, investigou e reflectiu como ninguém. Fernando Pessoa elogia-o em carta de 1923 enviada ao poeta espanhol Adriano del Valle, recomendando-lhe a leitura de Jardim das Tormentas e Filhas da Babilónia, obras que considerava escritas por um grande prosador. Mas Aquilino estava nos antípodas deste futurismo que não lhe motivou o mínimo interesse intelectual e literário. O presencismo criticou-o, especialmente José Régio, mas o nosso escritor não nutriu qualquer simpatia pelas suas sugestões. O (mal) chamado neo-realismo ainda tentou cativá-lo para as suas aguerridas fileiras de uma escrita sobre a exploração e as lutas sociais, mas Aquilino debuxava como ninguém a miséria social sem se render a uma prosa na fronteira do panfletário. Preferiu escrever bem, com originalidade, alargando a plasticidade da língua portuguesa, combinando requintadamente a palavra rústica e a expressão erudita, a descrição e o diálogo, a arte de contar e a profundidade do raciocinar, criando uma literatura em acção que, entre movimento, ritmo e folclore enforma uma original antropologia literária que é absolutamente única e, sobretudo, muito bem escrita. “Mais não pude” foi o epitáfio que Aquilino Ribeiro nos deixou.

A

sua primeira obra, a colecção de a que chamou Jardim das Torment blicada em Paris, em 1913, apresentad uma belíssima capa prefigurando a arte tornou-se livro praticamente desconh Todavia, grande parte dos temários, in escrita singular e tipos cómicos marc sua oceânica produção literária desc -se em potência nestas curtas novela cadas à sua primeira germânica esposa contos do atormentado jardim passa a da relação homem-mulher, os apelos d do e o erotismo, o instinto sexual, o p o moralismo, os valores naturais, a ção do telúrico, o peso conservador d ja, mais uma imperdível constelação d em que se desvenda o arcebispo, o sac fidalgos e pobres camponeses, rústico banos, coquettes e santos, até mesm e Eva. O primeiro conto de abertura do das Tormentas é tão provocadora e fel te polémico como extraordinariament escrito e pensado: “A Catedral de Cór O eterno conflito entre Eros e Deus, e moralidade, resolve-se agitado qu arcebispo da história, D. Basílio, esqu a ortodoxa misoginia católica que tan gava, se abraça libidinoso e pecador imagem de Santa Inês para suscitar o rizado testemunho do seu solícito sac Rafael: “no altar, D. Basílio Luna y Man o Arcebispo, gemia contra o corpo p amoroso de Santa Inês. Podia lá ser!? esfregou os olhos… Pois então, e qu

lusofo

contos tas, puda com e déco, hecido. ntrigas, cando a cobremas dedia. Pelos a tensão da libipecado, exaltada Igrede tipos cristão, os e urmo Adão

Jardim lizmente bem rdova”. , prazer uando o uecendo nto prea uma o horrocristão, nrique, pálido e Rafael ueimou-

onias

O Jardim

das

Tormentas

-lhe a alma aquela insana idolatria. Era um abraço lúbrico, cheio de ardor e estímulos, ao tronco sensual, impregnado da mais forte sensualidade que em seus dias lhe fora dado presenciar. Cogones de Dios, cingindo-a, afagando-a, transparecia nele o desespero de não poder animar com beijos e soluços o frio e incorruptível mármore. E a sua dor, como vendaval, estorcia-se contra a imagem, que o cobria de seu olhar radioso.” Este interesse quase natural em transformar o clero em tipo literário fundamental nas suas contradições muitas descobre-se noutro curioso conto deste Jardim das Tormentas que, intitulado “O Remorso”, convoca um diligente sacerdote que tinha formado família, respeitava a mulher e se preocupava com o futuro do seu filho, Isaac, jovem sem ambições tanto como muito pouco amigo do trabalho: “Este ladrão é a ruína da minha casa. Aqui só há que escolher: ou ferrar-lhe um tiro ou dar parte à justiça. Tem vinte e três anos este piranga, e não lhe dói, não se sente a mais pequena sombra de vergonha de estar a sugar o suor de dois velhos! Ainda por cima, morde a mão que lhe dá sustento. Apre! Vá para as Pedras Negras, pegue num bacamarte e saia à estrada!” É também um outro tipo de sacerdote que cruza “À Hora das Vésperas”, um conto narrando as dificuldades do padre Jesuíno em converter Isidro à hora da sua morte: o sacerdote é aqui um tipo sério e profundamente espiritual, mas a palavra de Deus não convence todos. Noutros contos desta sua obra de estreia,

cem anos depois

como “A Pele do Bombo”, mergulha-se rápido em ambiente rústico e miserável para se seguirem aventuras e desventuras dos Cletos, gente pobre e sofrida que apenas encontra algum calor e carinho no amor. Em contraste, “Inversão Sentimental” é um cuidado conto urbano, passado na primeira pessoa em Paris, perseguindo os amores entre Hilário Barrelas e Hélia, o paradigma da mulher moderna, coquette e citadina: “Hélia mentia com zelo e convicção, e eu aprendi com ela a arte sumamente útil de aparentemente deixar-me lograr pelos tolos e não descrer do que nos dizem os espertos e as mulheres, o que é cómodo. […]. Singular, não se conduzia em virtude de um destino para um fim; a sua missão na terra era semear a voluptuosidade; e o seu mor prazer não era retirar gozo mas ser instrumento de gozo. O papel de Hélia, ainda que instintivo, aparecia-me eminentemente filantrópico, como os fontanários postados nas ruas para matar a sede de quem passa.” Apesar do finíssimo gosto com que Aquilino Ribeiro escreveu estes e outros textos (Voluptuoso Milagre, S. Gonçalo, O Sátiro, O Solar de Montalvo, Tu Não Furtarás, A Revolução) compilados em Jardim das Tormentas, a nossa preferência oferece-se aos leitores através de um dos contos mais breves deste primeiro aquiliniano livro que o nosso escritor preferiu chamar forte “O Triunfar da Vida”. As personagens da história são Adão e Eva, o conto trata mesmo da origem da vida humana para subverter completamente o perigoso

pecado original: os dois (os “nossos pais”, como lhes chama Aquilino...) desobedecem deliberadamente a Deus, são devidamente expulsos do terreal paraíso, mas preferem a sua nova sorte ao descobrirem encantados o prazer e a humanidade do amor. A ler para redescobrir cem anos depois um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos.

EXTRACTO DE JARDIM DAS TORMENTAS (1913)

Conto: “o triunfar da vida” Tinha Deus posto Adão e Eva no jardim das delícias. Não precisavam de trabalhar, correr ou cansar-se, porque tudo lhes estava ao alcance da vontade. Na garganta deles nunca houve sede nem em seus cérebros um desejo insaciado. Viviam para ali na plenitude dum gozo inapreciável, porque nunca sol mais destemperado ou hora amarga lhes dissera que aquilo era a suma beatitude. Os dias rolavam sobre os dias ante seus olhos plácidos, sem levar uma saudade, nem trazer uma esperança. O horto era abundante de graças, porém eles nem sentiam o aborrecimento nem a largueza das graças. Eram felizes porque Deus seu amo lhes dissera e eles acreditavam. Em sua felicidade absorta apenas um conselho do senhor os distraía com seu vago espinho: -Gozai, mas cautela, não toqueis na árvore da ciência. Fazendo-o ficarieis envenenados do bem e do mal. Tu, homem, regarias a terra com o suor de teu corpo; tu, mulher serias votada à condição do ser mais frágil, mais sensível e mais dolorido. Tomais pois tento. -Mas, senhor — retorquiu nosso pai, que era um molosso fiel — ensinai-nos qual é o fruto proíbido, e nós juramos não lhe tocar. -É aquele — respondeu o pai celeste — que mais vos apetecer na hora perfumada das sombras. Sereis tentados a comé-lo pelas serpentes, as abelhas e a conjura dos elementos. -Assim é saboroso o fruto proíbido? — inquiriu Eva curiosa. -Saboroso; mas no caroço se escondem todas as peçonhas do

sofrimento. Mal o provasseis, vosso seio tornar-se-ia no ninho infernal dum mundo misterioso e tumultuário. E eu mandar-vos-ia escorraçar pelos guardas. Gozai, gozai contanto que respeiteis o enigma de minha sapiência. Retirou-se o Padre Eterno para a sua corte celestial no meio da tropa dos arcanjos e dos serafins que fungavam em trombetas e saxofones de prata. Adão e Eva vendo-se a sós no jardim das delícias, em que as fontes trauteavam minuetes, o arial era de oiro e as árvores andores garridos e pasmados, meditaram. -Vá lá saber-se que fruto é — dizia Adão — Se conhecéssemos aldemenos a cor !... Eva relanceando olhos escrutadores aos pomos corados e anchos, proferiu: -Assim defeso e guardado, muito bom deve ser !
 -Oh! deve — concordou o homem num lorpa e largo sorriso.
 Desde então, o espírito deles palpitou por saber qual era o fruto que ocultava a raiz do bem e do mal e a semente da sabedoria. Mas na variedade infinita do Eden todos os pomos eram saborosos e tentadores. De todos lhes diziam os picansos e os abelhões que neles se banqueteavam : -Como sabem bem ! Como sabem bem ! Os divinos habitantes não atinavam com o miraculoso pomo. CONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE >

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 25 de Novembro de 2013

V

< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR

Era este cuidado o suave espinho que faria seu extático regalo. O receio de involuntariamente poderem trair o amo enrugava a face lisa de seu mar de doçuras. E se não eram menos felizes, eram mais sentidos aqueles dias de terna mansidão e noites de sono solto. Mas sua carne e sua alma permaneciam imaculáveis. Às temporadas o Senhor descia a visitar os colonos; e havia grande arraial no jardim das delícias em que, do grilo ao dplodocus, todos os animais tomavam parte. Adão e Eva entoavam um Te-deum festivo a que faziam coro os leões e os elefantes debonários. E, de todas as vezes, se retirava contente, cofiando o linho da barba e rebolando o olhinho vivo na fronte sumptuosa de velho. Duma dessas viagens, enquanto todos três percorriam uma das áleas do parque abobadadas de frutos, Eva rogou: -Mas, senhor, dizei-nos qual é o pomo proíbido? Jehovah atalhou logo, de má catadura, que seriam os reprobos no dia em que o soubessem. Eva, todavia, que estava podre com mimo, começou a colher frutos e a lançá-los aos pés do Criador. E, cortando, cortando sempre as açucaradas peras, as romãs pálidas, as camoesas ingénuas, interrogava: -É este, Senhor?
E a todos Deus respondia, severo e bom: -Não, Eva, não.
 Nossa Mãe, porém, que era sagaz, notou que todas as vezes que os pomos estavam em alto e que para os colher tinha que alçar a perna ou distender o braço, o olhinho de Deus boiava mais luminoso na testa luminosa. Aproximar-se-ia deste modo do fruto interdito? Deus, porém, não o confessava e eles lá iam vivendo no temor de serem maus servos e no remoer da curiosidade desperta à porta do mistério. Estes dois sentimentos mitigavam-lhes a beatitude exaustiva de colonos do jardim das delícias. Os meses rolavam sobre os dias e eles, às vezes, sentiam-nos rolar. Uma tarde, à doce sombra das olaias, pensavam na tentação em que colaborariam os animais, e que semearia em suas almas a seara emaranhada da ciência. Uma nuvem, franjada de tons sepia, passava no céu suando um subtil torpor sobre as rosas e as asas das abelhas. Toda a criação enlanguecia em sonâmbulo gozo. Na oral dum ribeiro, duas gazelas perseguiam-se, soltando gritos. As flores agastadas descaíam sobre a terra, roçando muito timidamente os geránios nas suas cabeleiras de infantes loiros à face rubra das dálias. E, pelas fendas das rochas – que as havia no Eden de ágata e alabastro – os lagartos confundiam suas casacas verde-gaio. Adão e Eva, numa lassitude que lhes envecilhava os membros ágeis, contemplavam de pupila semi-morta o tregeito estranho dos seres. A nuvem ancorara sobre eles, impedindo de voar para o trono de Deus a sortida perfumaria do Eden. Como cobras sonolentas, os aromas rastejavam pelo chão e enroscavam-se em torno dos corpos nus e cândidos de nossos pais. -Estamos envoltos em hera — balbuciou Eva. -Sem as cordas do sol que passam pelas árvores — respondeu Adão. Sob a nuvem imóvel e espessa, o fato vistoso dos lagartos palpitava, e no fundo dos bosque dos suspiros novos de animais feriam o silêncio. -Ah! anda-me o lume na cara! — tornou a gemer Eva. -Não, são os incensos que encontram fechada a porta dos céus – sossegou Adão. A nuvem baixou ainda, poisando como um vaporoso manto sobre a copa das árvores. Uma luz

VI

Segunda-feira, 25 de Novembro de 2013 • LUSOFONIAS

indecisa banhava o jardim das delícias. -Que nuvem tão carregada, abafa-me – lamuriou Eva. -Cala-te; é a escada por onde Deus desce a visitar-nos. As serpentes enroscavam-se em S e os pássaros espenujavam-se nervosa e repetidamente. No peito lanzudo de Adão as narinas de Eva ruflavam. E, com toda a meiguice dum jovem felino, as formas cheias dela roçavam-se pela musculatura seca de nosso pai. Adão mordeu-lhe os bicos dos seios e ela proferiu em voz quebrada : -Que sabor terá o fruto misterioso do bem e do mal? -Quem sabe lá ! Como estivessem muito próximas, as fontes frescas e inocentes de suas bocas juntaram-se. E reconheceram que era melhor do que o mel, que era o inefável. Sob o peso de Eva, mole e suavemente Adão esticou a perna num esticão suave; maliciosa e a rir como a água nos seixos, nossa mãe agarrou-lha nas suas, dizendo: -Olha como os serpentes se abraçam! E Eva à semelhança delas tentou enliçar os seus membros nos membros rijos de Adão. A nuvem misteriosa, curvando as pontas, fechava o parque numa abóbada morna onde as laranjas luziam como lâmpadas. Um suspiro de mil suspiros errava no ar. E Eva, a tentadora e a subtil, disse a Adão: -Faz-me como as serpentes e como a nuvem. E Adão assim fez. Na encontrada dualidade, dor e volúpia daquele abraço, pressentiu Eva que haviam descoberto o perigoso fruto. Mas o sumo bem que se lhe deparara, impedia-a de voltar atrás. O temor de arrostar a cólera divina e o orgulho de devassar o grave enigma mais teimosa tornavam sua ânsia. Mau grado seu, sua febre aguçava-se nos riscos e na certeza de iludir a vontade do Senhor. A nuvem oscilou sobre eles e as tintas cambiaram; de escarlate, o ar coloriu-se do oiro do conseguimento, depois, do fosco da saciedade; e

a nuvem, alcandorada como enorme avejão, desamarrou. Arquejantes, nossos pais compreenderam que haviam tragado o pomo em que se encerrava a peçonha do bem e do mal. Uma paz inquietante paralizava o jardim das delícias. Ficaram transidos, a olhar, à espera. Por cima deles estalou, então, um trovão formidável que os fez agarrar um ao outro tiritantes de medo. As árvores lascavam em sinistro fragor, e as asas das abelhas, alucinadas, corriam no espaço como setas. Um arcanjo, de cenho raivoso e armado até aos dentes, voou direito a eles. E, à espadeirada, enxotou-os para fora do horto aprazível. Eva, suplicante e fraca, ajoelhou : -Perdão, senhor guarda; pecamos por ignorância!
 -Mulher, ente preverso, astuto e subtil, teu coração adivinhou antes da tua carne sentir. Assim o quisestes, assim seja! Ide para o mundo sem fim, sofrer, lutar, correr por entre mil tormentas para a ténue embuscada dum gozo. Vossa alma ousando à sabedoria não alcançou mais que um perdido grão de poeira no campo vasto das angústias. Esse grão de poeira é a ciência de vos iludir. Eva soluçava sempre. Adão, sacudindo a cabeça num rasgo de decisão, traçou-a nos braços : -Que importa, se conhecemos o amor, se deciframos o enigma das delícias! Que importa, se somos iguais a Deus. No mesmo momento todos os animais clamaram : -Também iremos, oh homem, para o mundo sem fim. Amor, tu és o tudo! As cancelas do divino horto fecharam-se com horrendo estampido; a terra e o céu ardiam; as ondas do mar ardiam. Ao frio e ao vento nossos pais tornaram a enlaçar-se como as serpentes; e a criação inteira imitou-os. E ao fim deste amplexo que povoou o mundo, todos cantavam, abelhas, melros e Eva: -Amor, amor, tu és o tudo! A ti nos rendemos na dor e na alegria. Amor, tu és o tudo!

lusofonias

Economias... Reúne

estudos e análises sobre o desenvolvimento económico dos

ANGOLA | Exploração de petróleo em terra iniciada na província de Cabinda

A

extracção de petróleo e de gás natural em terra na província de Cabinda teve início na última semana num bloco operado pela empresa Pluspetrol Angola, subsidiária do grupo petrolífero argentino Pluspetrol, informou a agência noticiosa Angop. Ruben Alvarado, director-geral de operações da Pluspetrol, disse que o grupo tem grande experiência na extracção de petróleo em terra, operando nesta precisa actividade em diversos pontos do globo, nomeadamente na selva amazónia do Peru. Em Cabinda, concretamente na zona sul da cidade capital, a Pluspetrol Angola detém uma participação de 55% e a licença de operação do bloco Cabinda Sul. A empresa prevê produzir, até final do ano, 7 mil barris por dia nos 10 poços activos, dispondo de uma oleoduto com uma extensão de 27 quilómetros para transporte da produção do campo Castanha/Coco até ao terminal do Malongo onde se encontra o terminal de petróleo para exportação. Ruben Alvarado disse ainda que além do Campo Castanha/Coco, existe também outro projecto que se centrará na produção de gás para fornecimento à central do Malembo. que produz energia eléctrica para a cidade de Cabinda e vila de Landana. O grupo argentino investiu neste projecto 60 mil milhões de kwanzas (458 milhões de dólares), no período compreendido entre 2005 e 2013, para prospecção, desenvolvimento e produção. JTM/Macauhub

MOÇAMBIQUE Exploração de gás em Inhambane

Língua Portuguesa

e a sua cooperação com a

República Popular

da

China

A

primeira fábrica do Grupo Salvador Caetano na Ásia, destinada à produção de autocarros para serviços especiais, arrancou em Dalian, nordeste da China, em parceria com uma empresa chinesa local. “Este projeto é o mais recente exemplo da capacidade da Salvador Caetano Indústria em exportar inovação, competência e ‘know-how’ a uma escala global”, afirmou o presidente da empresa, José Ramos, num comunicado divulgado pelo grupo português a propósito da inauguração da “Brilliance Caetano”. A nova empresa mista representa um investimento de oito milhões de euros, realizado em partes iguais pela Salvador Caetano e a Brilliance Auto (Divisão Special Vehicles), empresa do Grupo Huachen ligada ao sector automóvel e associada à marca BMW. Com uma área de 3,2 hectares, a fábrica da Brilliance Caetano prevê empregar cerca de 250 pessoas nos primeiros anos de atividade e, além de autocarros para aeroportos, poderá produzir outros veículos especiais, como autocarros escolares e autocarros urbanos elétricos. A capacidade instalada inicial será de 150 unidades por ano, mas poderá ser estendida até 300 unidades, “em função da procura do mercado”, disse a empresa. A possibilidade de a Brilliance Caetano exportar para os mercados vizinhos da China está igualmente “em aberto”. Para a Salvador Caetano, que há 23 anos exporta para a China a partir da sua fábrica em Vila Nova de Gaia, a parceria com aquela empresa chinesa “representa uma oportunidade de crescimento significativo da atividade industrial num mercado em forte expansão”. Já em 2014, as exportações para Dalian de mais 120 kits destinados à montagem dos referidos autocarros deverão traduzir-se numa facturação de 10 milhões de euros, prevê o grupo português. Dalian - estratégico porto do nordeste da China e sede de um município com cerca de sete milhões de habitantes fica a mil quilómetros de Pequim, a meio caminho entre a capital chinesa e a península coreana.

TIMOR-LESTE Zona especial

M

lusofonias

de

CHINA | “Joint venture” leva Salvador Caetano a Dalian

não atingiu expectativas oçambique pouco ganhou com a exploração do gás natural em Pande e Temane, província de Inhambane, pelo grupo petroquímico sul-africano Sasol, de acordo com um estudo do Centro de Integridade Pública (CIP), divulgado em Maputo. “Este é o primeiro projecto de exploração de gás natural no país, está em curso há dez anos e, ao longo destes anos, o Estado moçambicano não ganhou quase nada em termos de receitas, embora as previsões indicassem que o país poderia arrecadar dois mil milhões de dólares durante a vida útil do projecto”, ainda de acordo com o CIP, uma organização não-governamental moçambicana. Apesar de Moçambique ser o sexto maior exportador de gás natural em África, assinala a organização, “o país não recebe receita significativa, uma vez que o gás que rende muitas centenas de milhões de dólares por ano além-fronteira, rende menos de 10 milhões de dólares anuais aqui dentro do país.” Com este relatório, o CIP pretende chamar a atenção do governo para o que se poderá passar com futuros projectos de exploração de gás em Moçambique, face às descobertas deste recurso. “O relatório é um meio de advocacia para o perigo de se repetir o mesmo cenário na exploração de gás natural da bacia do Rovuma”, pode ler-se no comunicado, referindo-se às reservas de gás já descobertas no norte do país mas ainda não exploradas. JTM/Macauhub

Países

dependente de legislação

T

imor-Leste ainda precisa de enquadramento legal para avançar com a Zona Especial de Economia Social de Mercado no enclave de Oecussi, disse o ex-governante timorense e co-autor do projecto Mari Alkatiri. A Fundação Lusitânia, instituição sem fins lucrativos, anunciou que vai criar, a partir de 2014, duas Zonas Especiais de Economia Social de Mercado (ZEESM): no Tarrafal, Cabo Verde, e em Oecussi, Timor-Leste, dois locais estratégicos para o combate global e sustentado à pobreza. No que a Timor-Leste respeita, Mari Alkatiri acabou por ser co-autor da “matriz” do programa e em declarações à Lusa, explicou que o projecto em Oecussi ainda está dependente de “enquadramento legal”, daí que não tenha começado em 2013, como previsto no planeamento inicial. “Não há atraso nenhum”, desvalorizou Alkatiri, realçando que é preciso que “todo o quadro legal esteja claro para se poder avançar”. Ora, “no caso de Timor-Leste, falta [esse quadro], porque é uma questão absolutamente nova e têm de se adequar as leis para criar incentivos novos e atrair investimento”, justificou. “As autoridades timorenses estão a trabalhar nesse sentido”, afiançou, reconhecendo que o tempo é escasso. “A verdade é que estamos a menos de um ano de execução de todo esse programa e menos de um ano não é muito tempo para se começar com algo de novo”, admitiu, sendo certo que, em 2014, o Estado de Timor-Leste “irá avançar para criar as infraestruturas básicas para se poder acolher o programa”. As ZEESM não são “um projeto para Oecussi”, mas “para toda a subregião”, sublinhou Alkatiri, notando que os modelos de desenvolvimento adoptados até agora “fracassaram” e, por isso, “há que encontrar uma síntese”. LUSOFONIAS • Segunda-feira, 25 de Novembro de 2013

VII

Publica

textos de estudo e opinião sobre a diversidade cultural das Lusofonias

Ideias

Nhô Baltas na literatura cabo-verdiana Sônia M. A. Queiroz*

“No Mindelo ainda há velhos que se lembram do tempo em que a actividade portuária animava a cidade inteira. Os ingleses que se instalaram na ilha, transformando-a num importante entreposto de carvão, deixaram para sempre alguns apelidos sonoros (Brigham, Rendal etc.), uma descendência de mulatos de olhos verdes, e a paixão por um desporto que ninguém espera encontrar ali: o criket.” (José Eduardo Agualusa)

B

altasar Lopes, Nhô Baltas como ficou conhecido, foi poeta, ficcionista, filólogo e advogado, nasceu em 1907, na Vila da Ribeira Brava (ilha de S. Nicolau), em Cabo Verde, foi um dos precursores do movimento de emancipação cultural, social e político da sociedade cabo-verdiana. Em 1936, fundou com outros intelectuais cabo-verdianos a Revista literária Claridade, marco da modernidade crioula, dando início a uma nova fase de contemporaneidade estética e linguística, superando o conflito entre o Romantismo de matriz portuguesa, dominante durante o século XIX. Atento às realidades do quotidiano do povo cabo-verdiano, Baltasar Lopes, procurou reflectir a consciência colectiva. Teve diversos contos publicados em várias revistas, publicou também poemas sob o pseudónimo de Osvaldo Alcântara. Onze anos depois (1947), publica seu primeiro romance intitulado Chiquinho, considerado uma obra de profunda densidade poética, um dos mais lidos no universo académico. Descrevendo Cabo Verde dos anos 30, ancorado em uma realidade até então não denunciada, Chiquinho traz à tona o abandono do povo, a luta pela sobrevivência em meio à natureza inóspita, das secas constantes que destruíam as lavouras e com ela o crescimento da fome na população indefesa e desesperada. Todavia as personagens desta história são alimentadas pelo sonho e esperança de sobrevivência em terras longínquas, portanto, a temática da emigração iconizada pelo mar, lançando-os rumo às Américas em busca da quase terra prometida, longe das calamidades que os assolavam. O romance Chiquinho é dividido em três capítulos intitulados: Infância; S. Vicente e As águas, significante pleno da escrita artística de Baltasar Lopes. Não menos intrigante que Chiquinho, o escritor cabo-verdiano publica em 1987, uma colectânea intitulada Os Trabalhos e os Dias reunindo dez contos. Selecionamos para um breve estudo o conto A Caderneta. Actualmente, este foi adaptado para uma peça teatral por João Branco, por sua vez também director, e actuado pelo Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, mais conhecido por Mindelact. A actriz Mirita Veríssimo interpreta a personagem da lavadeira, por se tratar de um monólogo, ela é o fio condutor de denúncia arraigado pela prostituição, concernente à deca-

VIII

Segunda-feira, 25 de Novembro de 2013 • LUSOFONIAS

dência do movimento portuário de São Vicente. Este monólogo, intenso de denúncias coloca em evidências o sofrimento da mulher, o abandono, cujo sofrimento a atira para o caminho da prostituição como meio de sobrevivência, conservando uma consciência dilacerada, dramática, porém dotada de uma inocência pueril ao se confrontar com a realidade. Com estilo de uma narrativa psicológica, Baltasar Lopes em A Caderneta trabalha com a personagem em primeira pessoa; uma lavadeira – prostituta tentando explicar sua situação para um médico. Ela que não possui nome pode representar qualquer mulher cabo-verdiana que vive as mesmas condições. Sem respostas para seus conflitos, tenta persuadir o doutor (também sem nome), de que sua situação como prostituta não procede. Para ser prostituta haveria uma condição: possuir uma caderneta, a qual obrigaria a mulher a se consultar periodicamente com o médico, este por sua vez, daria ciência de sua saúde para prosseguir seu trabalho, todavia, esta caderneta é o símbolo da marginalização para a mulher cabo-verdiana. Este monólogo trata-se de uma artimanha do escritor, para levar-nos a reflectir sobre as problemáticas vivenciadas pelos ilhéus. Vejamos nesta citação: -“O senhor doutor vai com pressa? Mas o senhor doutor vai atender à minha razão: Não é verdade? -Senhor doutor, o senhor não me deixe desamparada! Eu lhe conto. Aquela gente ai no portão da Companhia? Não faz diferença. Sabe, senhor doutor, eu já não tenho idade para comprometer ninguém. Palavra! Por esta luz divina! Nem idade, nem força, nem gagê...”(Lopes, 1987, p. 15) Primeiro, a personagem não possui nome, o que sugere ser qualquer mulher vivendo as dificuldades da sofrida Cabo Verde. Segundo, não aparece outra voz na narrativa, portanto, monólogo, sugerido como mecanismo de defesa para a personagem, não há espaço para maiores questionamentos sobre o acto imoral: a prostituição, motivo de vergonha. Neste caso, o conceito de imoralidade viria da classe burguesa, como o médico e os trabalhadores da Companhia. O médico, personagem que supostamente dialoga com a lavadeira, por não possuir voz na narração, pode ser interpretado como pertencente à pirâmide social, suge-

rida por sua mudez, era aquele que retém o poder, sua posição privilegiada negando-lhe desta forma a palavra, metáfora de Cabo Verde, que não vira as costas para seus ilhéus, porém nada pode fazer para tira-lhes do abismo. A lavadeira sobrevive a um momento de crise económica do país, com o fechamento do Porto Grande, faltaram-lhe subsídios. Seu único filho Lela, vítima da emigração, deixa São Vicente para se aventurar na Inglaterra, a princípio mandava-lhe dinheiro, com o tempo isso não mais aconteceu, logo, sem roupas dos marinheiros para lavar e engomar, não havendo outra possibilidade de trabalho, o que lhe sobra é a prostituição. A prostituição é um tema interessante considerando a construção da realidade social em que se está inserida, e os valores inerentes desta construção, neste caso, concordamos com o pensamento de Hippolyte Taine, ao dizer que o comportamento é justificado pelo meio e pelo momento, por outro lado, há de se pensar no que nos diz a ética teleológica: sendo uma ética imoral, baseia-se nos fins que justificam os meios, logo, a prostituição é motivo de vergonha. “Quando os indivíduos não se ajustam aos padrões normativos, prescritos pela Institucional, quando apresentam qualquer desvio radical desta ordem, passam a ser designados como inadaptados, criminosos, delinquentes, loucos ou outras denominações afins.” (Bacelar, p.10) A prostituição participa da nossa própria realidade, contudo por ser uma problemática social, representa ainda motivo de vergonha, justamente por apresentar a condição degradante do ser humano, ao se submeter a tais situações vexatórias, e “vergonha” (valores morais), não chegam a se tornarem mais poderosos do que a sobrevivência. Baltasar com maestria, denuncia essa transgressão através de um pequeno conto, não nos damos conta do enorme manifesto e apoio que o escritor oferece às correntes feministas colocando em foco a condição da mulher marginalizada por uma sociedade machista e preconceituosa. *Investigadora brasileira, Mestre em Estudos Comparados de Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa – Universidade de São Paulo

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