Arqueologia da escravidão e museus

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MENEZES, L. ; FUNARI, P. P. A. ; FUNARI, P. P. A. ; CARVALHO, A. V. . Arqueologia da Escravidão e Museus 21/05/2011. Revista Museu, v. 2011, p. 1-4, 2011. Arqueologia da Escravidão e Museus Lúcio Menezes Ferreira (Laboratório Multidisciplinar de Investigação Arqueológica-LÂMINA – UFPel) Pedro Paulo Funari (UNICAMP) Aline Vieira de Carvalho (NEPAM-UNICAMP)

Existem, no mundo, museus de referência sobre a escravidão. Dentre os principais, há o Museu Nacional da Escravatura, em Luanda, e o Museu Internacional da Escravidão, em Liverpool. Na América Latina, encontram-se museus com excelentes coleções de origem escrava e afrodescendente, amealhadas por renomados pesquisadores. Nesse rol, figuram a Casa de África, em Cuba, com exposição permanente de artefatos reunidos pelo sociólogo e antropólogo Fernando Ortiz; e o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, depositário de preciosas coleções africanas obtidas pelo antropólogo Mariano Carneiro da Cunha. Na América Latina, e especialmente no Brasil, são quase inexistentes, contudo, as coleções de cultura material escrava que resultaram de pesquisas em Arqueologia da escravidão. Não é o caso nos Estados Unidos, onde a Arqueologia da escravidão é, pelo menos desde os anos 1990, um campo bem institucionalizado e um dos mais populares da Arqueologia histórica. Nesse artigo, mostraremos como a Arqueologia da escravidão, aliada aos movimentos civis negros, formulou uma crítica radical ao modo como os museus, nos Estados Unidos, expunham o passado escravista. Finalizaremos com uma reflexão sobre as tarefas ulteriores da Arqueologia da escravidão no Brasil. A Arqueologia da escravidão, como disciplina da Arqueologia histórica, emergiu a partir dos anos 1960, associando-se às escavações das ruínas das treze colônias e das plantations. O objetivo das escavações era subsidiar os projetos, então em curso, de restauração dos edifícios das plantations, numa clara política de preservação e de culto dos artefatos dos “pais fundadores” da nação. Contudo, esses primeiros trabalhos arqueológicos identificaram, quase por acaso, cultura material escrava. O trabalho inicial da Arqueologia da escravidão foi, assim, a classificação tipológica dos artefatos encontrados. Um exercício mundano, mas muito necessário frente ao desconhecimento quase completo da cultura material escrava, naquele momento. Supunha-se, até então, que os escravos não haviam confeccionado uma abundante e expressiva cultura material. Duas foram as premissas dessa suposição. A primeira, lançada pela historiografia dos anos 1960, argumentava que a traumática experiência da escravidão destruiu as memórias e o conhecimento das tradições culturais construídas na África por milênios. Os africanos, transpostos de forma violenta para os contextos culturais do Novo Mundo, explorados à exaustão pelo sistema escravista, poucas chances tiveram para sustentar e reconfigurar suas cosmologias. A segunda premissa foi pontuada, também nos anos 1960, pelo arqueólogo Ivor Nöel Hume. Com efeito, Nöel Hume materializou o argumento historiográfico sobre a perda das tradições culturais e cosmologias dos africanos no Novo Mundo. Para ele, as cerâmicas “simples” encontradas nas plantations, conceituadas por ele como colonoware pottery, indicavam um declínio do estilo africano de fabricá-las. Essas cerâmicas comprovavam o processo de aculturação dos escravos aos

contextos culturais do Novo Mundo. Nessa linha de raciocínio, isso significa que os escravos teria esquecido como fazer cerâmicas, na medida em que se tornaram mais europeizados graças aos contatos com os “senhores” e suas louças inglesas e porcelanas chinesas. A essas duas premissas contrapuseram-se os trabalhos arqueológicos desenvolvidos a partir de meados dos anos 1970. É verdade que, já nos anos 1940, o antropólogo Melville Herskovitz argumentara que os escravos africanos retiveram muitos de seus padrões culturais e cosmologias nos Estados Unidos. Porém, foram os arqueólogos Charles Fairbanks e Leland Ferguson que – ao escavarem as vivendas escravas das plantations, bem como compulsarem corpora de documentação escrita, iconográfica e etnográfica –, refutaram a ideia de aculturação dos escravos. Procurando processos de reprodução das cosmologias africanas nas plantations, enfatizaram a farta produção de artefatos pelos escravos. Sobre as cerâmicas, por exemplo, argumentaram que a produção de tipo africano denotava uma forma de resistência escrava, expressa, sobretudo, no preparo de comida. Nessa perspectiva, a manufatura dessa cerâmica não européia implicava uma tentativa de estabelecer e manter suas diferenças culturais no interior das plantations. James Deetz, por exemplo, asseverou que a cerâmica de estilo africano foi fabricada somente após os escravos serem transferidos das casas dos senhores para suas próprias habitações, quando surgiram, depois de 1680, as grandes fazendas escravistas. Assim é que, desde o final dos anos 1980, outros arqueólogos, como Charles Orser Jr. e Theresa Singleton, organizaram uma importante linha de pesquisa, rastreando, nas plantations, as formas de organização da paisagem como expressão de relações de poder, relacionando a questão da autonomia escrava e dos mecanismos de controle dos “senhores” com a preservação e processos de transformação dos traços culturais africanos no Novo Mundo. De modo que, nas últimas décadas, a Arqueologia da escravidão institucionalizou-se, ampliando o número e a qualidade de suas pesquisas; discutindo, de forma consistente, os fenômenos da diáspora africana, ou, como diria Frederick Knight, os processos de “africanização das Américas”. Resta-nos esclarecer por que, para além de desdobramentos internos desenvolveu-se a Arqueologia da escravidão nos Estados Unidos. A razão principal foi a articulação firme entre arqueólogos, o movimento civil negro e suas críticas radicais aos museus dos Estados Unidos. Durante o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, os movimentos civis negros envidaram esforços para estabelecer uma organização nacional que unisse os museus de História afroamericana dos Estados Unidos. O que culminou na formação, em 1976, da Associação de Museus Afroamericanos (African American Museums Association). A partir de 1986, a Associação coordenou uma série de ações educativas nos museus de comunidades negras em New York, Boston, Detroit e Chicago. O corolário dessas ações, para além da auto-afirmação cultural das comunidades e do refinamento dos mecanismos de curadoria e gestão do patrimônio material afroamericano, foi a criação, em 1995, do Centro para a História e Cultura Afroamericana (Center for African American History and Culture). Ambas as instituições se opunham às exposições museológicas que subalternizavam, quando não elidiam ou caricaturavam com estereótipos racistas, a participação dos afroamericanos na História dos Estados Unidos. No final dos anos 1990, articulados com esses movimentos civis, dois pioneiros da Arqueologia da escravidão, Theresa Singleton e Mark Bograd, constataram exatamente o mesmo em três importantes museus dos Estados Unidos: Mount Vernon, Monticello e Colonial Williamsburg. Esses museus são populares sítios históricos situados na Virgínia, onde, em termos demográficos, a população escrava, desde o século XVIII até a Guerra de

Secessão (1860-1865), era esmagadora maioria. Mount Vernon foi uma extensa propriedade rural pertencente a George Washington; Monticello foi uma plantation de Thomas Jefferson; Williamsburg, por sua vez, foi locus central do processo revolucionário americano do século XVIII. Singleton e Bograd mostram que as três instituições são devotadas à glorificação da memória dos “Pais da Nação”, especialmente de Washington e Jefferson. Os escravos, nas exposições, são sempre subalternizados. As exposições sacramentam ainda, em particular em Williamsburg, que as condições de vida dos escravos não eram tão ruins: cenários apresentam escravos trabalhando com bonomia, utilizando rodas de fiar e cercados de conforto, dispondo de mobiliário, porcelana chinesa e cobertores. Singleton e Bograd sublinham que não é por ignorância arqueológica que a escravidão é representada de forma tão distorcida nesses museus. As escavações em Mount Vernon, Monticello e Williamsburg iniciaram-se, grosso modo, já nos anos 1930. Novas escavações realizaram-se nos anos 1950 e 1980. Em particular estas últimas, feitas já sob o viés da Arqueologia da escravidão, revelaram cultura material escrava, como artefatos cerâmicos, vestígios de dieta alimentar e a organização do espaço destinado ao trabalho e habitação dos escravos. A documentação escrita demonstra, ainda, que só o casarão onde vivia George Washington exigia o trabalho de noventa escravos. Os autores concluem que a escravidão é interpretada de forma negligente nesses museus porque não se quer anuviar a memória dos heróis nacionais, maculando-a com as nódoas do sistema escravista. Pode-se dizer, assim, que a institucionalização da Arqueologia da escravidão, nos Estados Unidos, é atributo da aliança com o movimento civil negro e seu papel ativo na crítica às representações museológicas sobre a escravidão. No Brasil, em contrapartida, há tudo a se fazer para institucionalizar a Arqueologia da escravidão. Além da Arqueologia do Casarão, há que se fazer, também, a Arqueologia da Senzala. A primeira tarefa é organizar mais linhas de pesquisa em Arqueologia da escravidão nas universidades públicas do Brasil, nesse momento em que há diversos cursos de graduação em Arqueologia no Brasil. A maioria desses novos cursos enfatiza a formação em Arqueologia pré-histórica, o que não está mal, mas é necessário pensar que, não obstante o crescimento da Arqueologia histórica no Brasil - verificado a partir de meados dos anos 1980 - há poucos arqueólogos trabalhando em Arqueologia da escravidão. Para nos limitarmos aos atuais professores das universidades públicas, além dos autores desse artigo, apenas Luis Cláudio Symanski (UFPR) e Scott Allen (UFPE), em suas respectivas instituições, mantém linhas de investigação regulares em Arqueologia da escravidão. Mencione-se, ainda, o trabalho de Marta Heloisa Leuba Salum, que vem estudando, nos últimos anos, diversos artefatos africanos presentes no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. A segunda tarefa é articular as presentes e futuras linhas de pesquisa em Arqueologia da escravidão à pletora de movimentos negros, espraiados nos mais diversos contextos regionais e locais. O panorama dos movimentos civis negros, no Brasil, é complexo e multifacetado, com plataformas políticas variadas. Os arqueólogos que trabalham e vierem a trabalhar em Arqueologia da escravidão devem e deverão ouvir as demandas dos movimentos negros locais, incorporando-as, em contínuo processo de negociação, aos projetos de pesquisa. Quando possível, dever-se-á, assim, promover trabalhos em Arqueologia comunitária, tornando os membros dos movimentos negros, e outros grupos interessados, em agentes ativos das pesquisas arqueológicas. Por fim, essa participação das comunidades e movimentos negros deverá articular-se a uma bem definida política de preservação e extroversão dos vestígios da escravidão e dos afrodescendentes

nos museus. As linhas de pesquisa em Arqueologia da escravidão, atuais e futuras, devem e deverão atuar em consonância com os museus locais e com os cursos de graduação e pósgraduação em Museologia e Conservação e Restauro das universidades públicas brasileiras. Afinal de contas, a Arqueologia e os museus não existem no vácuo social. O objetivo dessas disciplinas não é alhear-se dos debates e conflitos políticos, mas tornarem-se agentes efetivos das mudanças sociais. Como “memorialistas profissionais”, a Arqueologia da escravidão e a museologia devem ver o passado da escravidão como artefato herdado, isto é, não como resíduo arcaico, mas como fenômeno ainda influente nas estruturas e meandros da sociedade brasileira.

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