Arqueologia, hospitalidade, revelação: relendo o \'Estúdio de Alberto Giacometti\', de Jean Genet

June 15, 2017 | Autor: G. Silveira Ribeiro | Categoria: Jacques Derrida, Jean Genet, Artes plásticas, Alberto Giacometti, Artes Visuais
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Hospitalidade, arqueologia, revelação relendo O estúdio de Alberto Giacometti, de Jean Genet

Gustavo Silveira Ribeiro Universidade Federal da Bahia

1. “Sim, ao estrangeiro”: sim, abertura total à alteridade, afirmação: é o gesto que permite criar, ressignificar o mundo. Representação e hospitalidade, representação como hospitalidade: Nostálgicos, porém, sonhamos um universo onde o homem em vez de agir tão furiosamente sobre a aparência visível, se aplique no destruí-la, não apenas negando a acção, mas despojando-se o bastante para pôr a nu o ponto secreto, dentro de si, a partir do qual seja possível aventura humana outra. (GENET, 1999, p.17)

Só se pode exigir a hospitalidade como gesto absoluto, mesmo que isso implique o risco da morte. Abrir as portas de casa ao estrangeiro, sem perguntas e sem restrições. Atolimite, compromisso ético que também implica um gesto estético. Em outros termos, envolvendo as deslocações e desvios necessários, essa questão pode reaparecer no risco que certos artistas (Giacometti, Artaud, Kafka) correm de cair no silêncio, dada a radicalidade das suas formulações. A aceitação total do outro, do mundo, dos mistérios da matéria – daquilo, enfim, que não se pode assujeitar, pode implicar no impasse: da linguagem escultórica, da lógica, da identidade. Pertença, filiação, sim a todas as tradições, especialmente às ausentes. Os mortos, a noite, a dissolução do mundo e suas aparências – gestos de acolhimento do outro que permanece outro, sem transformar-se e/ou ser incorporado e subsumir-se em sua diferença: “... – toda a obra de arte que pretenda atingir os mais altos desígnios deve, com

paciência e uma infinita aplicação desde o início, recuar milênios e juntar-se, se possível, à imemorial noite povoada pelos mortos que irão reconhecer-se nessa obra.” (GENET, 1999, p. 21) Acolher, retirar-se, deixar a matéria impor-se, ou melhor, como sugere Octavio Paz em O arco e a lira, libertá-la, finalmente: “... mas sim o bronze ganhou. Pela primeira vez na vida o bronze acaba de triunfar. As suas mulheres são uma vitória do bronze. Sobre o próprio bonze, creio.” (GENET, 1999, p. 22). Deixar-se penetrar pelo mundo, ser atravessado por ele. Hospitalidade mas também, possivelmente, impoder, passividade criadora, abertura do sujeito às nervuras imperceptíveis do real, que não é mais sujeitado, mas passa a assujeitar o artista. Se deixar penetrar, abrir mão da atividade modificadora para que sua submissão à coisa seja a própria base da criação, uma espécie de religião da e para a matéria:

2. O terror e o fascínio das coisas divinas, dos seres de beleza severa, habitam as estátuas de Alberto Giacometti. Parte desse estranho encanto, para Genet, está na sua dupla inscrição temporal: elas pertenciam ao presente e à época do artista, à arte moderna, enfim, do mesmo modo que também se situavam milênios antes, no momento impensável do “fim dos tempos, do princípio de tudo” (GENET, 1999, p. 19). Contemporânea das coisas antigas, uma força arcaica entre as formas e os objetos da era do capitalismo industrial, as peças e imagens de Giacometti possuem uma curiosa dimensão arqueológica. Pertencem à época que as criou (ou desenterrou), no entanto remetendo sempre a outras épocas e outros sentidos, dos quais é possível ter acesso, pela imaginação especulativa, apenas parcialmente. Resistindo à violência interpretativa do olhar que quer circunscrevelas, elas restam indelevelmente não-apropriáveis, em oscilação contínua:

Se os meus olhos tentam aprisiona-las, aproximar-se, elas – sem fúria, nem cólera nem ira, apenas pela distância entre nós, que eu ainda não notara, de tal modo reduzida e escassa, a ponto de as julgar ali mesmo – afastam-se a perder de vista: desdobra-se subitamente a distância. Para onde vão? Embora a sua imagem continue visível, onde estão elas? (GENET, 1999, p. 19)

Mas também, e de modo contraditório, o movimento pode se dar com sentido inverso, fazendo do alheamento permanente uma inesperada e momentânea proximidade, imantada de surpresa e reconhecimento: Penso que essa beleza – a das esculturas de Giacometti – se cumpre no ininterrupto e incessante vaivém da distância mais longínqua para a mais próxima familiaridade: vaivém imparável, leva-nos a dizer que elas estão em movimento. (GENET, 1999, p. 36)

Afirmada insistentemente por Genet, a dupla natureza das imagens do artista parece confirmar, em antecipação, aquilo que Giorgio Agamben vai afirmar muitos anos depois num contexto não de todo dessemelhante, apesar de voltado preferencialmente para o campo literário: “a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico” (AGAMBEN, 2009, p. 70). O profundo estranhamento que caracterizaria essa obra – a opacidade de seus traços e cores, o extremo rigor de suas de suas tristíssimas figuras, a redução que faz do humano a formas delgadas e irregulares –, as marcas mais evidentes de sua modernidade podem ser lidas também como uma via de acesso ao desconhecido, àquilo que semelha as formas antigas sem manter com elas qualquer relação direta de pertencimento estilístico. Diferentemente do que fizeram outros artistas da vanguarda europeia das primeiras décadas do século XX (Picasso, Breton, Bataille, entre outros), Giacometti não parece ter ido à arte primitiva, ao artesanato e aos impulsos criativos de povos não-ocidentais pesquisar novos elementos composicionais. O diálogo que mantém, conforme a leitura proposta por Genet, remete a um outro tempo, a um passado remoto que nunca existiu, historicamente falando, mas que no entanto é concreto e está carregado

de presente, de “tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver e, restando não-vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem jamais poder alcançala” (AGAMBEN, 2009, p. 70). Aceito mal o que em arte se designa por inovador. Deverá uma obra ser entendida pelas gerações futuras? Porquê? Que quererá isso dizer? Que elas poderão utilizá-la? Em quê? Não vejo bem. Já vejo melhor – ainda que muito obscuramente – toda a obra de arte que pretenda atingir os mais altos desígnios deve, com paciência e uma infinita aplicação desde o início, recuar milênios e juntar-se, se possível, à imemorial noite povoada pelos mortos [...] (GENET, 1999, p. 19-21).

3. Duas características da obra de Giacometti destacadas, com insistência e interesse, por Genet – a solidão (do ser, das coisas) e a revelação (do rosto, da singularidade, da beleza) – parecem sintetizar os objetivos fundamentais do trabalho do artista: de um lado, seus desenhos, pinturas e, principalmente, suas esculturas, devolveriam à matéria e aos homens nela figurados o insulamento essencial que os constitui, e do qual a História e a civilização o afastam. Solidão, “nossa mais certa glória” (GENET, 1999, p. 27), não é para Genet e para Giacometti uma falta essencial ou um mal; é a partir do isolamento que o ser pode emergir, que o sentido pode ser conhecido em sua totalidade; é na solidão que o que há de novo e insubstituível nos homens e nas formas pode tornar-se finalmente visível. As peças de Giacometti, suas mulheres austeras e delicadas, por exemplo, plenas de uma beleza estranha e sem vida, sugerem todas a imagem de indivíduos fechados em si mesmos, livres de leis e molduras, expressão de um mundo único e, paradoxalmente, comum. “Secreta soberania”, a solidão, é preciso lembrar, não é “profunda incomunicabilidade mas conhecimento mais ou menos obscuro de uma singularidade intocável” (GENET, 1999, p. 35), presente em cada ser e em cada coisa, conforme Giacometti cedo percebeu e transformou em arte:

O olhar de Giacometti vira isso há muito, e no-lo restitui. Digo o que sinto: julgo que o manifesto parentesco das suas figuras está nesse ponto precioso onde o ser humano reaverá quanto tem de mais irredutível: a solidão de ser seguramente igual a tantos outros. (GENET, 1999, p. 31)

Por outro lado, essa mesma solidão buscada vai servir, muitas vezes, como propedêutica para o desvelamento do mundo. O método: o artista inicialmente separa as coisas, as imagens, do convívio comum, circunscrevendo-as em outra temporalidade, mais complexa, de modo a deixa-las falar mais diretamente: Essa capacidade de isolar objetos e aí fazer confluir as suas específicas e únicas significações, só é possível com a abolição histórica do observador. Requer excepcional esforço esquecer a história, sem nos tornamos numa espécie de eterno presente, mas antes vertiginosa e ininterrupta corrida do passado para o futuro, oscilação de extremo a extremo, sem repouso. (GENET, 1999, p. 41)

E também isto, que se dirige mais ao trabalho de restituição da pedra à pedra que igualmente caracteriza a sua obra: Registro como certa amizade irradia dos objetos e eles nos dirigem um pensamento amigável... Será exagero. De Vermeer talvez pudéssemos dizer isso: não por ser ele “mais humano” – valor abusivamente gasto pelo homem – nos emociona ou apazigua o objeto pintado por Giacometti, nem pelo melhor, mais suave e sensível da presença humana o ter moldado, mas sim por ser “o objeto em toda a sua ingênua frescura de objeto. Ele, e nada mais. Ele, numa solidão total. [...] A pretexto de nobilitar – ou aviltar, conforme a moda – Giacometti recusa depositar sobre o objeto a mais leve tinta – delicada, cruel ou tensa – humana. (GENET, 1999, p. 68)

A construção do sentido, proposição de qualquer artista (mesmo dos que recusam a comunicação: o silêncio e signo hermético também falam), é para Giacometti um gesto de desvelamento: suas esculturas e quadros não inventam, antes deixam vir a tona o significado das próprias coisas. É antes de um tipo específico de hermenêutica que aqui se

trata. A arte – ficção, invenção, mimese produtiva, antes de tudo – revela o que o afeto pressente e o pensamento intui, sem se deixar enredar pelas aparências humanas, isto é, pelo mundo de signos e sentidos prévios e codificados da cultura que, como um véu, se interpõe entre o olhar e matéria, tornando-a opaca e atribuindo-lhe um sentido que a precederá sempre. Aquilo que Genet insiste em chamar de refutação da história assim pode ser compreendido: recusar o código é isolar, criar as condições para a revelação (do ser e do sentido). O rosto, centro daquilo que foi, ao mesmo tempo, a maior obsessão e a mais sutil porção das peças escultóricas de Giacometti – as cabeças – servem como exemplo privilegiado e ponto de condensação do argumento esboçado. A reflexão proposta por Genet atinge nesse ponto, por sua vez, uma formulação clara e precisa: aqui ela irá confundir, pela sobreposição, o seu olhar e o olhar do artista, o seu texto crítico (em si mesmo, uma peça brilhante) e objeto de sua curiosidade e apaixonamento: Nenhum rosto vivo facilmente se revela, e contudo basta um pequeno esforço para descobrir-lhe o significado. Penso – arrisco eu – penso que o importante é isolá-lo. Só quando o melhor o destaca de tudo ao redor, só quando o meu olhar (a minha atenção) impede esse rosto de se confundir com o resto do mundo evadindo-se numa infinitude de significações cada vez mais vagas, exteriores a si, ou quando pelo contrário, obtenho a necessária solidão pela qual o meu olhar o recorta do mundo, então somente o significado desse rosto – pessoa, ser fenômeno – afluirá, condensando-se. Quero eu dizer, conhecimento de um rosto, a pretender-se estético, tem que refutar a história. (GENET, 1999, p. 27)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. DERRIDA, J. Da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003. GENET, J. O estúdio de Alberto Giacometti. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. PAZ, O. O arco e a lira. São Paulo: CosacNaify, 2013.              

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