Arte Moderna em Tempos de Guerra (Madeira, 1916). Uma periferia insular questiona o centro

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Anuário N.º 4 •2012

Arte moderna em tempos de guerra (Madeira, 1916) Uma periferia insular questiona o centro* Ana Salgueiro Rodrigues

Bay and Town of Funchal, Madeira, The Illustrated London News, Nov 15, 1879,

Anuário 2012 *

O presente trabalho constitui versão desenvolvida de um trabalho oral, intitulado “The strange case of the ‘five wandering artists’. Madeira 1916: a peripheral modernity strikes back against Modernity”, apresentado na II Lisbon Summer School for the Study of Culture – Peripheral Modernities, promovida pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (FCH-UCP) e que decorreu em Lisboa, entre 9 e 14 de Julho de 2012.

Região Autónoma da Madeira Centro de Estudos de História do Atlântico

Centro de Estudos de História do Atlântico ISSN: 1647-3949, Funchal, Madeira (2012)

pp. 265 - 278

Ana Salgueiro Rodrigues Ana Salgueiro Rodrigues é doutoranda em Estudos de Cultura na FCHCEHA

UCP, com tese intitulada “Ex-île… O exílio nas literaturas das Ilhas Atlânticas (Cabral do Nascimento, João Varela e João de Melo)». Foi bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia – FCT (2008-2011) e é investigadora júnior do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (FCH-UCP), tendo integrado, a partir de Janeiro de 2011, o projecto «O deve e o haver na História da Madeira» promovido pelo CEHA. É mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e licenciada em LLM Estudos Portugueses pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É co-autora do livro Vozes de Cabo Verde e Angola. Quatro percursos literários (CLEPUL, 2010), tendo a sua investigação mais recente sido ocupada particularmente pelo estudo das literaturas e culturas das Ilhas Atlânticas, assim como pelas problemáticas da mobilidade humana e do exílio. Tem participado em encontros académicos nacionais e internacionais e editado em publicações periódicas e/ou colectâneas de ensaios diversos.

RESUMO: Verão de 1916. Primeira Guerra Mundial na Europa. Um período de profunda perturbação económica, social e política em Portugal e, sem excepção, também na Madeira. Isto não invalidava que, apesar de toda essa conturbação (não resolvida pela jovem República e agravada com a recente inclusão de Portugal no grupo de países beligerantes), esta ilha fosse vendida como um Éden pelo discurso do marketing turístico local e transnacional, facto que atribuía à Madeira um estatuto de espaço periférico/marginal. Deste modo, consciente e/ou inconscientemente, dentro e fora da ilha, contribuía-se para a sustentação da imagem da Madeira como espaço não-moderno, uma representação dominante nos discursos culturais e políticos das metrópoles europeias da época. Neste contexto, um grupo de cinco escritores madeirenses (muito próximos do círculo, conservador e monárquico, do Integralismo Lusitano) regressava ao Funchal, depois de terminado o ano académico e de, em Lisboa e Coimbra, ter testemunhado o debate estético e cultural protagonizado quer pelo grupo modernista do Orpheu, quer pelo grupo neo-romântico e integralista de António Sardinha. Sob nomes ficcionais, estes jovens escritores publicaram, então, o folhetim intitulado “Novela romântica e burlesca de cinco artistas vagabundos. Contada por 5 autores absurdos e todos verdadeiros”. Esta narrativa fragmentária, autobiográfica (e auto-reflexiva), marcada por um registo irónico e provocatório, narra a aventura transnacional de seis protagonistas (os cinco artistas vagabundos e Collecta de Nylves, uma mulher-intelectual moderna), centrando a sua atenção na representação/problematização quer da experiência caótica das metrópoles ocidentais, quer das novas formas de vida modernas, transgressivas e líquidas. Convocando a perspectiva teórica de Susan Friedman acerca da circulação cultural/estética/textual, argumentaremos que, neste folhetim publicado no espaço insular periférico, a transferência geo-cultural e ideológica da estética modernista europeia e dos valores modernos dominantes no Velho Continente exige uma leitura crítica. O carácter paródico e transgressivo do discurso dos cinco artistas vagabundos (publicado em vários números do Diário da Madeira) sublinha, desde logo, a modernidade da sua ficção. Contudo, paralelamente, a retórica deste seu discurso irónico questiona a posição hegemónica dominante nas Modernidades metropolitanas. Esta novela propõe, em alternativa (e não sem paradoxos), uma outra modernidade, localizada no sistema cultural madeirense (mas sempre em diálogo com outros sistemas culturais) e ideologicamente conservadora. Palavras-chave: Modernidades periféricas; I Modernismo Português; Madeira; desdobramento autoral; questionação cultural. Abstract: Summer, 1916. The First World War in Europe. A period of economic, social and political turbulence across Portugal and including Madeira,

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particularly after the October 5th, 1910 proclamation of a republic. Nevertheless, Madeira was sold as an “Eden” by (local) tourist marketing discourse, which somehow reinforced and sustained the peripheral/marginalized (non– modern?) status assigned to the Madeiran geo-political, social and cultural space by European metropolitan discourses. Within this context, a group of five young Madeiran writers (very close to the conservative and monarchist circle – ‘Integralismo Lusitano’) returned to Funchal from the metropolis, where they had attended university and encountered the aesthetic and cultural debate ongoing in the Portuguese capital and involving both the modernist Orpheus group and the neo-romanticist ‘Integralismo Lusitano’. Under fictional names, they published a fragmentary narrative, entitled Novela romântica e burlesca de cinco artistas vagabundos. Contada por 5 autores absurdos e todos verdadeiros. This autobiographical (self-reflexive), ironic and provocative fiction, focusing on both the chaotic experience of a Western metropolis and the transgressive and liquid modern way of life, tells of the transnational adventures of six characters: the five wandering artists-authors and Coleta de Nylves, a modern intellectual-woman. Stressing the perspective of Susan Friedman on cultural/aesthetic/textual circulation, we argue that, in this case-study, the (peripheral) geo-cultural and ideological translocation of both the European modernistic aesthetic and the dominant modern cultural values must be read critically. The parodic and transgressive discourse of the five wandering artists (published in various issues by an important local newspaper) highlights the modernity of their fiction. But, by the same token, the rhetoric of this ironic discourse questions a hegemonic Modernity, and proposing an alternative (and even paradoxical) modernism, located in the Madeiran cultural system and ideologically conservative. Key-words: Peripheral modernities; I Portuguese Modernism; Madeira Island; authorial unfold; cultural questioning.

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“Europa, velha Europa! Eil-a, a civilisação moderna: electricidade e asfalto, movimento, locomotivas, platina, esterilisação e marconigrafia! E sobretudo, […] a mulher século XX! A mulher-rádio, a mulher-submarino, a mulher-zeppellin. A frequentadora dos cafés, a bailarina esguia e litúrgica, a colaboradora em revistas futuristas […]. Vestuários, gostos, requintes, escolas literárias e artísticas, mecanismo e geografia – tudo estremece e pende para um centro comum, novo, único em toda a História do Universo” (sic). Cabral do Nascimento, “Crónicas de Olissipo”, 1916 A new map of modernism is emerging, one in which [...] [Western metropolitan centers] remain important, but not exclusive sites of cultural productions. Spatializing modernism requires a newly configured history as well. Susan Stanford Friedman,“World Modernisms, World Literature, and Comparativity”, 2012.

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m 1919, num texto conservado inédito até há poucos anos, Fernando Pessoa comentava a primeira edição de “Ultimatum”, um dos manifestos modernistas do seu heterónimo Álvaro de Campos. Este texto fora publicado pela primeira vez no número único de Portugal Futurista, uma revista que, anunciando-se como órgão da vanguarda futurista em Portugal, vinha a lume em Lisboa, no final de 1917, embora logo tivesse sido retirada de circulação pela censura (Almeida, 2008: 671). Os principais motivos da apreensão deste periódico encontravam-se, justamente, nesse texto de Álvaro de Campos, que, estando o país em guerra, ousou ser «anti» tudo, Aliados e alemães, lançando insultos contundentes contra o moderno mundo burguês que, de um lado e do outro das trincheiras, os enaltecia acriticamente (Pessoa, 1996: 409). No texto de 1919, Pessoa refere-se a “Ultimatum” como a obra mais inteligente de literatura jamais saída da Grande Guerra (Pessoa, 1996: 409). Isto, não apenas pela originalidade e frescura da sua modernidade, mas sobretudo pelo magnífico aspecto satírico e irreverente que, no poema de Álvaro de Campos, se abatia sobre um asfixiante mundo de agora (Pessoa, 1996: 409). Fernando Pessoa denunciava, assim, a insatisfação perante a incapacidade construtiva da nossa época (Pessoa, 1996: 409), perante a falência de tudo por causa de todos! Falência de todos por causa de tudo! (Campos, 1981:30). E deste modo, em Álvaro de Campos, a escrita modernista assumia uma irónica manifestação crítica contra a própria modernidade, confirmando antecipadamente a tese de Adorno, quanto à arte modernista dever também ser entendida como manifestação

de um posicionamento (auto)crítico relativamente à própria modernidade. Aliás, a este respeito é de salientar que vários autores identificam no Álvaro de Campos de “Ultimatum” uma escrita iluminada pela poética futurista (Martins, 2008:301), mas com desvios significativos relativamente a Marinetti. Um facto que permite ler nesse seu texto, como sublinha Leyla Perrone-Moisés (2008:302-304), a (re)elaboração de um Futurismo Saudosista, que questiona a própria poética e valores do Futurismo canónico europeu, domesticando-os de acordo com as idiossincrasias ideológico-culturais do autor e do sistema cultural português. Ora, o trabalho que aqui apresentamos procurará demonstrar, em primeiro lugar, que, por essa mesma altura, também na periférica ilha atlântica da Madeira, um grupo de jovens artistas desenvolve um projeto literário modernista com idêntico propósito, pesem embora algumas particularidades específicas. Aqui, quer a revisitação de diversas tendências modernas finisseculares (dandismo, simbolismo, impressionismo, decadentismo, nihilismo, etc.), quer o diálogo que esse projeto literário estabelece com as vanguardas estéticas europeias da década de 1910 são legíveis como processos que promovem uma irónica e provocatória crítica contra os valores culturais que, sobretudo desde o Iluminismo, se haviam afirmado como modernos, nos centros culturais e políticos da velha Europa da civilização e dos boulevards (Koman, 1916b)1. 1

A 2 de agosto de 1916, no Funchal, o Diário da Madeira anunciava um “Novo folhetim”. O novo folhetim viria a ser publicado nas páginas desse jornal local entre 4 de agosto de 1916 e 12 de setembro de 1916: 16 capítulos distribuídos de forma irregular por quatro secções (3 volumes e 1 livro), a que acresce um último folhetim

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O modernismo deste projecto fragmentário e colectivo (trata-se de uma suposta novela, da autoria de cinco autores absurdos, publicada em folhetins num dos principais jornais do Funchal da altura, o Diário da Madeira) não reside, apenas, na extravagância e irreverência de atitude que, anos mais tarde, Alfredo de Freitas Branco – um dos escritores que, em 1916, participou no projeto – reconheceria nesses escritos muito revolucionário que haviam feito sensação, no verão madeirense de 1916 (Porto da Cruz, 1953: 8). Contra os valores burgueses e românticos dominantes no sistema sócio-cultural da ilha, essa atitude irreverente já se encontrava implícita quer no título iconoclasta do folhetim, quer na insólita autodenominação dos seus autores: “Novela romântica e burlesca de cinco artistas vagabundos. Contada por 5 autores absurdos e todos verdadeiros”. Notamos aqui que, se vagabundo aponta para o caráter andarilho e à deriva que, de facto, marca o percurso biográfico dos cinco artistas que assinam a novela, esse adjetivo não deixa também de sublinhar o perfil marginal desses autores que se excluem e/ou são excluídos do meio sócio-cultural em que se inscrevem, ao publicarem o seu folhetim no Diário da Madeira. A receção perturbadora do folhetim, no verão madeirense de 1916, compreende-se, se tivermos em consideração que, nesse pacato diário insular, os jovens criadores dessa narrativa (com idades compreendidas entre os 18 e os 19 anos) deram forma a um perfil autoral inusitado e abordaram temáticas que, tendo em conta o contexto político, social, religioso e económico da ilha e de Portugal, eram, de facto, novíssimos e algo irreverentes. Assinando com nomes estranhos, estes cinco artistas de nacionalidades diversas, mas todos amantes do “doce falar portuguez” (Ismael de Bó, um poeta luso-judeu; Enrick Porcha, um contista húngaro; Rogério Lehusen, um músico experimentalista de nacionalidade ambígua; Diogo Eiró, um escritor saxão; e Imário Kóman, um artista visual polaco), narram, nos seus folhetins, fragmentos autobiográficos de um percurso transnacional por eles realizado, na companhia de uma sofisticada mulher moderna (Bó, 1916a. autónomo, que funciona como epílogo, por dar a conhecer o suicído de um dos artistas e, com este incidente, a morte da própria novela (Enrick Porchá, 1916c). A respeito da estrutura bibliográfica deste folhetim, ver nota bibliográfica da nossa autoria também publicada no presente nº do Anuário do CEHA (Rodrigues, no prelo).

sic): Collecta de Nylves, a “femme artiste” atenta a tudo o que de novo ocorria no mundo (Lehusen, 1916b); a intelectual com uma vida amorosa e social pouco convencional, mas que, crítica e sedutoramente, liderava o grupo (Bó, 1916a). Se Collecta é construída como uma emancipada mulher moderna, enquadrável na vanguarda da primeira fase dos movimentos feministas ocidentais que nessa época se consolidava (surgindo, também por isso, como figura excêntrica no contexto burguês das sociedades portuguesa e madeirense da época), a mesma excentricidade se encontrava nos cinco artistas que rubricavam o folhetim. Na verdade, a estranheza dos seus nomes assinalava o caráter ficcional (ou pelo menos semi-ficcional) dessas figuras autorais. Este é, de resto, um aspeto relevante na novela, por a ele estar associado um jogo irónico de dissimulação provocatória, que exige do leitor uma atitude crítica e informada, orientada para um processo de leitura hipertextual, pois só cumprindo estas exigências do protocolo de leitura será possível a decifração dos sentidos implícitos no texto. Trata-se, de facto, de um exigente jogo irónico que se estrutura, sobretudo, a partir da adoção de dois mecanismos: (1) o registo autobiográfico da narrativa, dando a ver percursos de vida atribuídos aos artistas que assinam o folhetim, mas que, em boa verdade, nunca foram vividos, em absoluto, pelos cinco jovens responsáveis pela escrita da novela; e (2) a publicação, no Diário da Madeira, de outros textos de crítica ao folhetim ou referentes às vidas pessoais dos seus autores, textos esses que, até certo ponto, contribuíam para sustentar a ilusão (já suscitada pela ironia do título) de estarem os leitores perante autores “absurdos”, mas “verdadeiros”2. A existência destes textos de crítica à novela umas vezes assinados pelos próprios escritores que haviam dado voz a esses artistas ficcionais (Nascimento, 1916), outras vezes subscritos por nomes 2

A acompanharem a publicação dos folhetins da Novela romântica e burlesca, foram saindo, no Diário da Madeira, outros textos de crítica e comentário ao folhetim, sobretudo assinados por nomes femininos (Dorothêa de Nave, Urraca de Monçam e X.Y.C.A D.O E.M.I). Esta polémica literária e cultural, que se desenrolou desde o início de Agosto até finais de Novembro, estender-se-á a outros temas como: a ironia, o jogo satírico nela implicado e as dificuldades de leitura que ela impõe; os valores das sociedades modernas; as tendências contemporâneas no sistema literário português; o futurismo; as mulheres no sistema literário nacional.

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que indiciam ser igualmente atribuíveis a outras figuras autorais fictícias (João Cayado, 1916; Dorothêa de Nave, 1916e; X.Y.C.A D.O. E.M.I, 1916) – contribui para a encenação de um sistema de autores, centrados na reflexão sobre a literatura e a arte modernas, mas também sobre os valores do contexto sócio-cultural delas coevo. Ora, se tivermos em consideração que este sistema de autores se estrutura a partir da criação de figuras autorais fictícias, dotadas de assinaturas próprias, biografias autónomas e de registos discursivos diferenciados em relação aos dos seus criadores, facilmente compreendemos que, em 1916, o sistema heteronímico de Pessoa não caminhava sozinho no espaço cultural português. Também no Funchal, a novíssima geração3 que criara os cinco artistas vagabundos experimentava, com nuances próprias, a criação de um sistema dialogante de autores ficcionais, afim do drama em gente elaborado por Fernando Pessoa, e cuja poética começava, então, a ser divulgada por este autor nos principais círculos culturais modernistas de Portugal continental. O diálogo crítico com os modernismos nacionais e internacionais, mas também com outros artistas modernos que remontam ao século XIX e que serão explicitamente convocados para a novela (Wagner, Offenbach, Ravel; Machado de Assis, Nietzsche, Huysmans, Oscar Wilde; a actriz cinematográfica Lídia Borelli, etc.), não surpreende, se notarmos que Cabral do Nascimento (Ismael de Bó), Alfredo de Freitas Branco (Enrick Porchá), Luís Vieira de Castro (Diogo de Eiró) e Ernesto Gonçalves (Imário Koman)4, no Verão de 1916, regressavam ao Funchal vindos 3

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Novíssima geração é a expressão utilizada pelos próprios autores, quando se referem ao seu grupo. Em agosto de 1918, João Cabral do Nascimento divulgava no Diário da Madeira o projeto de uma “Antologia de poetas da Ilha da Madeira”, onde pretendia compilar poetas antigos e modernos da ilha, propondo-se desenvolver aí um breve estudo sobre alguns desses autores (Cabral, 1918a). Como reconhecia, tratava-se do primeiro [trabalho] dêste género que se publica ácêrca da literatura madeirense, porém, deste projeto inconcluso, apenas ficaram cinco breves artigos publicados no Diário da Madeira (Cabral, 1918a, 1918b, 1918c, 1918d, 1918e). Um desses artigos intitula-se precisamente “Literatura Madeirense IV. A novíssima geração”, ocupando-se de alguns dos autores que criaram os cinco artistas vagabundos (Cabral, 1918d). A este respeito ver também Porto da Cruz, 1953. Esta é a identificação civil dos criadores de quatro dos cinco artistas vagabundos. O criador da quinta destas figuras autorais (Rogério Lehusen) é Álvaro Manso de Sousa. A respeito da identificação dos criadores dos cinco artistas vagabundos, confrontar nossa argumentação em Rodrigues, no prelo.

do continente, onde estudavam nas Universidades de Lisboa e Coimbra, cidades onde, efectivamente, tinham participado nos debates estéticos e poéticos aí em curso. De destacar é, nesse ano lectivo de 1915/16, a frequência assídua do grupo do Integralismo Lusitano (conservador, neo-romântico e nacionalista) por parte de Alfredo de Freitas Branco e de Luiz Vieira de Castro. De igual modo, é de notar a aproximação detetável entre Cabral do Nascimento e o grupo de Orpheu, revista que assinala, em 1915, a adesão de jovens artistas portugueses aos modernismos europeus. Testemunha esta última aproximação (pessoal, estética e poética), o facto de Fernando Pessoa ser o autor da recensão ao primeiro livro de Cabral do Nascimento (As três princesas mortas num palácio em ruínas), publicada na revista Exílio, em abril de 1916. O recente livro de Cabral do Nascimento, então gerador de alguma polémica em Lisboa5, é elogiado por Pessoa, quer pelo registo novo que introduzia no sistema literário português (articulando o nacionalismo com um certo cosmopolitismo), quer pelas afinidades que, na escrita desse livro, Pessoa encontrava com o seu sensacionismo (Pessoa, 1982). Cabral do Nascimento recusará sempre o rótulo de poeta sensacionista ou futurista, como, aliás, será ironicamente argumentado na própria novela dos cinco artistas vagabundos, pela voz de uma das personagens criada por Ismael de Bó/Cabral do Nascimento (1916b). Porém, a recensão de Pessoa ao seu primeiro livro é sintomática do diálogo (por vezes bem tenso) que, desde esses primeiros anos, se estabeleceu entre Cabral do Nascimento e os modernistas de Orpheu, especialmente Pessoa6. De resto, logo em novem5

Do “susto” sócio-cultural causado pela inesperada escrita de C. Nascimento dá conta o crítico literário M.G., numa entrevista publicada no Diário Nacional no final de 1916 e depois republicada no Diário da Madeira, a 20 de janeiro de 1917 (M.G., 1917a: 1). No início deste mês, o jornal madeirense republicava uma outra entrevista conduzida pelo mesmo crítico, mas dirigida a Alfredo de Freitas Branco. Aqui, M. G. apresentava Freitas Branco como um “escriptor monárchico” e integralista (M. G., 1917: 1).

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Correspondência entre ambos e diversos textos de C. Nascimento publicados na imprensa periódica do Funchal dão conta desse diálogo. De notar que, a 18 de dezembro de 1921, C. Nascimento presidirá à mesa do Comício dos Novos, como representante da academia de Coimbra. Este polémico encontro, reuniu nomes associados a Orpheu, Exílio e Portugal Futurista, teve lugar no cinema Chiado-Terrasse e pretendeu debater o sistema cultural português, nomeadamente a situação das artes e a necessidade de modernização da Sociedade Nacional de Belas-Artes. Agradecemos a Cândida Cadavez e a António Quadros Ferro o acesso a informações respeitantes a este encontro de 1921.

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bro de 1916, Cabral do Nascimento, numa das suas “Crónicas de Olissipo”, dava conta deste diálogo, ao informar criticamente os leitores do Diário da Madeira sobre as novidades editoriais promovidas por esse grupo modernista: De quando em vez a mediocridade nacional barafusta e dá marradas. É quando se publica uma revista interessante. É um facto, em Portugal, a existência de uma corrente literária mais ou menos avançada. Reflectindo o movimento intelectual dos paízes estrangeiros. Hoje a rotina está desacreditada. Inda assim, quando surge uma afirmação colectiva de talento, a megera berra. Ninguém a escuta. Primeiro foi Orpheu. Depois Exílio, o efémero. Agora é Centauro […]. As revista não faltam […] o que falta é gente que saiba lêr(sic) (Nascimento, 1916b:1). Assim, no verão de 1916, a viagem de regresso destes intelectuais à sua ilha fê-los levar consigo as reflexões e problemáticas que, no seio das tertúlias metropolitanas, lhes haviam sido suscitadas. Pela via ficcional dos seus folhetins (com tudo o que isto implicava de novo e irónico nos sistemas culturais insular e português), encenam no Diário da Madeira um processo de criação literária, de desdobramento autoral e de questionação estético-ideológica que, de facto, acompanhou a vanguarda modernista portuguesa, nomeadamente as propostas divulgadas pela revista Orpheu e pelos autores a ela associados. A par da referência a Marinetti, também os nomes do suicida Mário de Sá-Carneiro e de Fernando Pessoa são evocados no folhetim (Bó, 1916b). A estas referências dever-se-á acrescentar a implícita citação de Almada Negreiros, na coincidente crítica iconoclasta contra Júlio Dantas (satiricamente renomeado Júlio Tranças no folhetim), o eminente autor neo-romântico português na década de 1910, também alvo de sátira corrosiva no Manifesto Anti-Dantas de Almada Negreiros (1993)7. Não se tratou, porém, de um passivo movimento de transferência acrítica para a periferia de fenómenos culturais que os intelectuais madeirenses haviam encontrado na metrópole. Através da sua “Novela romântica e burlesca”, os novíssimos da ilha vão 7

No folhetim, Júlio Tranças surge descrito como um burguez que usa ceroulas de malha, e que cheira mal da boca, cujos versos falam apenas de estúpidas discussões entre moscas anciosas de cheirar, num registo de sentimentalice piegas e vulga” e de nacionalismo tacanho (Eiró, 1916b). O diálogo com Almada Negreiros parece-nos evidente.

bem mais longe, não se limitando a dar a conhecer ao meio sócio-cultural madeirense os desvios mais ou menos histriónicos do grupo modernista lisboeta, como, segundo Manuela Parreira da Silva, terá ocorrido, nesse mesmo período, em outros espaços da província (Silva, 2008: 568). Informados quer por uma efetiva leitura dos autores em voga, quer pelas notícias e críticas que sobre aqueles e outros fenómenos culturais circulavam nas publicações periódicas nacionais e estrangeiras (a que tinham acesso no continente, mas também na ilha8), estes intelectuais insulares assumem-se como agentes críticos e re-criativos. Para tal terá igualmente contribuído a sua experiência de participação nos eventos culturais em que as questões da modernidade e dos modernismos eram problematizadas em Lisboa e Coimbra. Parte considerável dessa informação será convocada para o folhetim, onde é narrada a aventura cosmopolita que conduz os seus protagonistas desde uma cidade nevoenta da Boémia (Bó, 1916a) até ao mosteiro de Mafra (Porchá, 1916c), passando por algumas das principais metrópoles da Europa, do Médio Oriente, da Índia e da América Latina e percorrendo espaços que, desde 1914, se encontravam associados à Grande Guerra: Constantinopla e as margens do Bósforo; Calcutá; Paris; Londres; São Paulo; Rio de Janeiro. Marcado pelo dandismo desencantado e entediado dos seis protagonistas, o relato desse percurso vai construindo a imagem de um mundo que se desdobra em duas dimensões paralelas e sobrepostas, mas incompatíveis e aparentemente não dialogantes. Um desfasamento tão notório e perturbador quanto aquele que era suscitado, nas páginas do Diário da Madeira, pela justaposição de uma “Novela romântica e burlesca” (aparentemente resultante de um simples jogo artístico, promovido por um grupo de artistas vagabundos e exilados da vida comum) às trágicas notícias da Grande Guerra ou relativas às dificuldades por que passava o país real.

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Convém lembrar que, desde o final do século XVIII, a Madeira passou a ser um relevante destino turístico de longa duração para uma certa elite europeia. Para além disso, as comunidades britânica e alemã na ilha eram significativas no início do século XX. Aliás, Cabral do Nascimento tem ascendência luso-britânica, factor que não terá sido irrelevante no acesso e interesse que teve relativamente aos sistemas culturais anglófonos. A respeito deste último aspecto ver nossa argumentação em Rodrigues, 2009.

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moral, ética e cívica.

Imagem 1. “Diário da Madeira – sábado, 5 de agosto de 1916”

Por um lado, encontramos a representação do mundo da arte moderna - elegante, culto e hermético -, que, com desdém e indiferença estética, se isola do outro mundo comezinho e burguês, vivendo apenas para os seus caprichos boémios, para o requinte do seu prazer estético e para a transgressão de todo o tipo de fronteiras: nacionais, culturais, ético-morais, ou até de género9. Este é o mundo a que pertencem os cinco artistas vagabundos e Collecta de Nylves, e em que, de acordo com a economia da narrativa, a estética, a busca do novo e a reação ao impulso do agora substituem os valores da responsabilidade 9

Note-se a ambivalência da orientação sexual de Ismael de Bó, o artista de unhas pintadas que se suicida, ao ter avistado, “em corpo todo”, “a bizarra figura” do seu “tormento”, cuja identificação sexual ele evasivamente diz: “Não sei.” (Cayado, 1916). Veja-se também o episódio do incêndio do palácio de Tuticorin, a exótica cidade indiana onde os seis companheiros, depois de aí terem experienciado intensamente “o segredo de Dionisos e o milagre de Athenas”, vivendo um mês de requinte, “na mais intelectual das intimidades” (Eiró, 1916a), assistem à “detonação” do palácio que os acolhera, não por consequência de um bombardeamento de guerra, mas por um demoníaco capricho de Diogo Eiró (Eiró, 1916a), o qual é suscitado pela evocação do passado histórico e das obras de arte que o representaram.

Paralelamente a este mundo artístico, emerge um outro, bem mais grotesco e humanamente angustiante. Referimo-nos ao mundo que, na “Novela romântica e burlesca”, surge como o resultado dos valores (quantas vezes paradoxais) que uma certa modernidade europeia havia proposto como inquestionáveis e hegemónicos: os valores da racionalidade científica, do progresso tecnológico, da oportunidade capitalista; mas também os valores utópicos da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Este é o mundo burguês do “patusco” “brasileiro”, o milionário José Purificação Marques Júnior; o mundo da arte neo-romântica produzida por todos os Júlios Tranças que se deixavam encantar pelo nacionalismo patrioteiro e pela sentimentalice piegas e vulgar (Eiró, 1916b); o mundo de Fourwood, o milionário yankee […] de Chicago, rei da pimenta moída que surpreendia tudo e todos, ao fazer-se deslocar nos seus novíssimos submarinos ou nos seus modernos aviões Blériot (Lehusen, 1916a), mas que acabará por se suicidar, ao descobrir-se incapaz de ser amado por Collecta. E este é ainda o mundo dos civilizados boulevards londrinos que, inesperadamente, vêem a sua ordem destruída pelas bombas da guerra, pela morte de 3.000 mulheres” e pelos ferimentos de “900 crianças (Bó, 1916b), mas cuja destruição e sofrimento nele vividos deixaram de ser efetivamente vistos e humanamente sentidos pela arte. Esta, como acontece com os cinco artistas vagabundos, mantem-se à distância desse caos trágico, tomando-o superficialmente como um mero pretexto para os seus jogos estéticos, para as suas ironias profanadoras, para os seus experimentalismos discursivos. Portanto, uma das questões levantadas pelos cinco artistas vagabundos é a crise de valores e a ideia de colapso civilizacional a que Álvaro de Campo também se referia no seu “Ultimatum“ e que, em 1916, se fazia sentir na Europa, em Portugal, mas também na Madeira. A esta questão, junta-se, depois, uma outra não menos problemática e polémica, e que, na época, ganhava particular relevância, como mais tarde sublinharam autores como Ortega y Gasset ou Theodor Adorno: a problemática da desumanização da arte e dos limites da sua autonomia ou implicação na vida social e política. A ridicularização do mundo burguês, por via

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da sátira que os cinco artistas dirigem contra as figuras que, na novela, se inscrevem neste mundo, é demonstrativa da não identificação de Cabral do Nascimento e seus companheiros com os valores dessa realidade sócio-cultural. Contudo, o suicídio final de Enrick Porchá e o consequente fim da novela indiciam idêntico distanciamento relativamente à arte moderna, a qual, na verdade, surge simbolizada nas figuras dos cinco artistas vagabundos (um artista visual, um poeta, um contista, um músico e um outro escritor). Deste modo, a “Novela romântica e burlesca” encena um momento de questionação sobre qual o papel da arte nas sociedades modernas. A morte de Porchá e o silenciamento dos cinco artistas deixam adivinhar que, para estes criadores madeirenses, os modernismos e as vanguardas emergentes na Europa não eram resposta satisfatória para os problemas que essas sociedades atravessavam. Depois desta experiência de criação coletiva, sobretudo já no pós-guerra e no tempo crítico da década de 1920, Cabral do Nascimento, Alfredo de Freitas Branco, Luís Vieira de Castro, Ernesto Gonçalves e Álvaro Manso de Sousa seguirão caminhos próprios e alguns deles bem diferenciados, quer a nível estético e poético, quer a nível ideológico-político10. Contudo, em 1916, estes jovens artistas interrogavam-se, ainda, sobre o mundo em que viviam, sobre a arte que queriam criar e sobre os valores que, orientando o seu trabalho artístico, pretendiam introduzir e/ou legitimar no mundo moderno. Verificamos assim que, na Madeira e sobretudo para a Madeira11, os criadores da “Novela romântica e burlesca” procuravam participar no debate cultural que sabiam estar a ser desenvolvido a nível nacional e a nível internacional. As propostas complexas que, então, apresentaram não eram simples réplicas acríticas do que liam e ouviam fora da ilha, mas antes o resultado de um diálogo problematizador estabelecido entre os seus próprios valores e os dos outros. Re10 Para isto basta ver a diferença entre Cabral do Nascimento e Alfredo de Freitas Branco. Este último tornar-se-á um nacionalista apoiante do regime salazarista e nos anos 1940/50 chegará mesmo a viver em Berlim, desenvolvendo paralelamente acções de propaganda em defesa do regime nazi. Nascimento, nunca esquecendo a sua herança judaica, será um crítico do Portugal fechado que o regime salazarista propunha para o país, envolvendo-se em projectos que, sistematicamente, punham em causa uma cartografia do mundo fechada por fronteiras estanques. 11 A este respeito, não se deve ignorar que a novela aqui em análise foi publicada em folhetim na imprensa periódica madeirense.

cusavam, assim, para a Madeira, o estatuto de Éden passivo, de espaço sócio-cultural desatualizado e, por conseguinte, excluído da modernidade. Questionavam esta imagem estigmatizadora da sua ilha que, num tempo de guerra e de agudas crises de vária ordem (económica, social, política), era sustentada quer pelo discurso político e cultural desinformado e marginalizador que preponderava nas elites metropolitanas, para quem as ilhas permaneciam desconhecidas12, quer pela retórica do marketing turístico que, junto das capitais europeias, procurava vender a ilha como espaço natural intocado. Os cinco artistas vagabundos não deixam de ridicularizar um certo provincianismo complexado que, em seu entender, era detetável no Funchal, materializando-se, por exemplo, no uso excessivo e servil das línguas estrangeiras, que, assim, denunciava o caráter hegemónico e descaraterizador do cosmopolitismo turístico que aí alastrava (Bó, 1916b). Contudo, a “Novela romântica e burlesca” sublinha, em especial, que a Madeira de 1916, pese embora a sua periferia geográfica e político-cultural, não podia, nem queria ser excluída da modernidade e das aporias que a constituíam. O estranho caso dos artistas vagabundos coloca-nos, assim, outras questões que têm sido ignorados pelos Estudos Portugueses, no que toca à análise das modernidades lusófonas e, em particular, no respeitante ao estudo sobre o que foi o I Modernismo Português: (1) qual o papel atribuído às periferias na construção da narrativa sobre essas modernidades e sobre o modernismo português da segunda década do século XX? (2) de que modo essas periferias traduziram e recriaram os valores apresentados pelos modernismos europeus, quase sempre mediados por interferência da elite vanguardista lisboeta? (3) em que medida essa eventual tradução contribuiu, a nível local e/ou a nível nacional, para a reestruturação da tessitura sócio-cultural portuguesa? 12 Evocamos aqui o livro de Raul Brandão, As ilhas desconhecidas, escrito em resultado de uma viagem de reconhecimento dos Açores (e Madeira), oferecida, em 1924, a um conjunto de intelectuais metropolitanos, por um grupo de autonomistas açorianos (Brandão, 2011).

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(4) e se, como destacaram Terry Eagleton (1970) e mais recentemente Osvaldo Silvestre (2008), o Alto Modernismo europeu foi protagonizado por gente da província em migração para as grandes capitais da Europa, as quais segregarão por isso uma cultura da internacionalização e da desfamiliarização (Silvestre, 2008: 474), será que esse trânsito se efectuou de forma crítica e criativa apenas no sentido periferia/ centro e nunca no sentido inverso centro/periferia? Estas questões foram já afloradas por alguns investigadores, mas de forma demasiado superficial e lacónica. Por exemplo, Manuela Parreira da Silva dá conta, en passant, do modo pouco informado como supostamente a província recebeu, com risota e dichotes, a notícia das irreverências protagonizadas pelos modernistas do grupo de Orpheu (Silva, 2008: 566). Por outro lado, os trabalhos sobre o Futurismo em Portugal geralmente não ignoram que o “Manifeste du Futurisme” de Marinetti foi publicado pela primeira vez em território português, no jornal Açoriano Oriental da ilha de São Miguel, ou que, enquanto em Lisboa a revista Portugal Futurista era retirada das bancas, em Faro, o jornal O Heraldo começava a publicar “uma secção futurista, onde publicam Pessoa, Sá-Carneiro e Almada, além de vários poetas algarvios” (Martins, 2008: 301). Caso é, então, para perguntar: será que as periferias portuguesas das décadas de 1910 e 1920 se reduziram a um absoluto vazio cultural, totalmente destituídas de agentes capazes de, a partir do diálogo crítico com o modernismo lisboeta da Brasileira ou com as vaguardas internacionais, produzir um discurso próprio e local sobre os valores modernos que essas novidades estéticas, poéticas e ideológicas propunham? Ou será que o silêncio académico que teima em se fazer sobre estas periféricas modalizações da modernidade portuguesa dos anos 1910-1920 não decorrerá, antes, daquilo que Osvaldo Silvestre designou como “imperialismo cultural intra-europeu” (Silvestre, 2008: 474) e que Susan Standford Friedman, em sintonia com este académico português, identificou como uma posição hegemónica do discurso metropolitano europeu sobre as periferias locais? De resto, uma posição epistemológica e cultural que, como esta última autora claramente demonstrou, teima em erasing almost entirely modernist cultural production outside the West [metropolitan cen-

ters] (Friedman, 2012: 500), ignorando, ainda, que as margens, longe de se constituírem como espaços culturalmente vazios e dissociados dos centros, são antes lugares particularmente tensos e criativos no que toca à produção cultural. Isto, justamente, por se constituírem como translation zones (Apter, 2006) que colocam em permanente encontro e negociação diferentes valores e paradigmas, desmantelando, não raras vezes, as hierarquias que os centros estabelecem (Friedman, 2012: 503). O “spacial turn” amplamente impulsionado pelos Estudos Pós-Coloniais fomentou, como sublinha Susan Standford Friedman, a elaboração de um new map of modernism, em que as metrópoles ocidentais remain important, but not exclusive, sites of cultural production (Friedman, 2012: 500). Assim se abriu espaço para que a cartografia das modernidades e dos modernismos incluísse e valorizasse também os fenómenos culturais desenvolvidos nos espaços coloniais. Contudo, no caso lusófono, esse spacial turn parece não ter sido ainda suficiente para dar atenção ao modo como outros espaços marginais que não os coloniais experienciaram a modernidade depois de 1915 e traduziram os valores plurais e até contraditórios do I Modernismo português. Talvez por isso, e só por isso, o caso dos cinco artistas vagabundos criados no Funchal em 1916 tenha ainda hoje de ser lido como um caso estranho no sistema cultural português do primeiro quartel do século XX.

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