Arte-Pré-Arte: memórias, metodologias, desdobramentos e implicâncias de uma vivência-formação

September 30, 2017 | Autor: Luciane Goldberg | Categoria: Arts Education
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In: MEIRA, Mirela R.; SILVA, Ursula Rosa da.: CASTELL, Cleusa Peralta (Orgs.). Transprofessoralidades: sobre metodologias do ensino da arte. Pelotas: Editora UFPel, 2013. p. 87 - 101

Arte-Pré-Arte: memórias, metodologias, desdobramentos e implicâncias de uma vivência-formação Luciane Germano Goldberg

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Venho neste espaço-tempo de escrita relatar e compartilhar minhas vivências e experiências no Projeto Arte-Pré-Arte enquanto bolsista de Iniciação Científica – PIBIC/CNPq, assim como as ressonâncias dessas vivências, que se constituíram em metodologias extremamente significativas para minha prática docente constituída ao longo dos anos e atual enquanto professora de arte/educação na Faculdade de Educação na Universidade Federal do Ceará. No decorrer do curso de Educação Artística tive o prazer de conhecer a militância em arte/educação. Grande parte de nós, estudantes dessa época, do curso de Educação Artística na FURG, que nos tornamos hoje educadoras, arte/educadoras, militantes da arte/educação traz a semente dessa luta, continuando a plantação, semeando e colhendo os resultados dessa trajetória que iniciou durante a graduação. Como em uma árvore genealógica, em que os laços são de sangue, aqui a árvore é composta de pessoas conectadas por ideais, ideias, conhecimentos, práticas e metodologias que vêm sendo disseminadas e passadas às novas gerações por meio de processos educativos sensibilizadores que se atualizam e se multiplicam desde então. Este artigo surge também como uma oportunidade de publicar partes de minha monografia de conclusão de curso apresentada em 19992, intitulada “Arte-Pré-Arte: um estudo acerca do descongestionamento da expressão gráfica”, em que apresento a metodologia do projeto, assim como narrar implicâncias futuras desse processo formativo em minha atuação enquanto arte/educadora. Projeto Arte-Pré-Arte: memórias, contextos e teorias Adentrar no projeto Arte-Pré-Arte como bolsista e tê-lo como tema de minha monografia de conclusão de curso, na época, foi ter a oportunidade de compreender o contexto do ensino de arte enquanto uma causa política, uma disputa por um espaço de direito do ensino de arte de qualidade enfraquecido historicamente, renegado no ensino formal e, de certa forma, estigmatizado até os dias de hoje. Não há como atuar nessa esfera sem mergulhar em suas feridas, sem entender os preconceitos construídos historicamente, saber por que verdadeiramente se luta. 1

Graduada em Educação Artística - Artes Plásticas, Mestre em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Doutoranda em Educação Brasileira e Professora do Departamento de Teoria e Prática do Ensino - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará – UFC. E-mail: [email protected] 2

Com a orientação da Profª. Drª. Cleusa Peralta Castell.

In: MEIRA, Mirela R.; SILVA, Ursula Rosa da.: CASTELL, Cleusa Peralta (Orgs.). Transprofessoralidades: sobre metodologias do ensino da arte. Pelotas: Editora UFPel, 2013. p. 87 - 101

Mesclando a vivência de bolsista no projeto Arte-Pré-Arte, aspirante à pesquisadora na Iniciação Científica com a de estudante, encontrei uma causa que até hoje me acompanha: o incômodo era justamente a afirmação que muitas pessoas faziam: “eu não sei desenhar” e a causa que me movimentava era descobrir o que levava essas pessoas a pararem de desenhar e, consequentemente, a deixarem de acreditar e exercitar seu potencial criador e, a partir daí, tentar atuar no resgate de sua capacidade criadora. O “Eu não sei desenhar” fez crescer dentro de mim uma grande curiosidade acerca dos motivos e consequências dessa afirmação – o que havia acontecido antes e depois de instaurada essa convicção? Quando e porque alguém deixaria de desenhar – de quem é a responsabilidade? Porque há tantas pessoas com essa lacuna em seu desenvolvimento gráfico? Essa afirmação resulta de um trauma? Esse tipo de situação gera lacunas para o desenvolvimento humano? Há referência a isso na literatura específica? Podemos reverter esse processo de congestionamento/bloqueio? Que metodologias poderiam ser utilizadas para isso? Essas inquietações encontraram resposta no Projeto Arte-Pré-Arte e se aprofundaram teoricamente na elaboração de minha monografia de conclusão de curso. Ao pesquisar descobri que havia algo denominado como ‘Desenvolvimento Gráfico Infantil’, estudos e pesquisas voltadas especificamente para o desenvolvimento do grafismo desde os primeiros rabiscos até, aproximadamente os 15 anos de idade: Desde o início dos estudos do desenho infantil, e para a maioria dos pesquisadores subsequentes, como Luquet (1969), Lowenfeld e Brittain (1970) Lowenfeld (1977), Kellogg (1985), Peralta-Castell (2012), Mèredieu (2004), Moreira (2009) e Iavelberg (2008), o grafismo infantil inicia com os primeiros rabiscos e vai evoluindo por meio de fases ligadas aos estágios de desenvolvimento. Cada autor varia nas denominações com semelhanças entre os estágios buscando avançar no entendimento dessa linguagem para o desenvolvimento infantil. Tais classificações variam entre aspectos sociais, psicológicos, culturais, cognitivos e pedagógicos – conhecimentos que devem ser considerados de extrema importância para os pais e/ou educadores em geral que lidam com a criança e sua arte (GOLDBERG, 2012). E sim, havia o que se chamava, na literatura específica, de ‘bloqueio do desenvolvimento gráfico infantil’. Por meio da pesquisa foi possível verificar que a predominância da escrita, a busca da ‘perfeição’ na representação por meio do desenho e a imposição de modelos prontos - os estereótipos - representariam fatores responsáveis pelo congestionamento do processo de desenvolvimento gráfico da criança. Além desses fatores, dever-se-ia considerar também a intervenção dos adultos, sejam eles os pais ou professores (as).

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Derdyk (1989), afirma que “geralmente, o adulto impõe sua própria imagem de infância ao interpretar o desenho infantil. Esta projeção revela a desatualização de seu próprio conteúdo” (p.50). A necessidade de “nomear” está muito presente na atitude do adulto, que olha para um desenho e logo pergunta: O que é isso? O que representa? Existe por parte do adulto, uma exigência implícita em saber o que é aquilo que ele não sabe, o que significam estas garatujas, estes gestos inexplicáveis. Essa atitude, se exagerada, pode inibir o processo de desenvolvimento gráfico da criança (DERDYK, 1989, p.97).

Na escola, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, especialmente durante o processo de alfabetização, toda e qualquer representação por meio do desenho parece sugerir uma fidelidade ao naturalismo3 (devido a padrões e conceitos enraizados na cultura oriundos do neoclassicismo das Academias de Belas Artes), o que se torna inviável e muito difícil para as crianças, que se sentem incapazes de desenhar e passam a copiar: Mas ela também tem consciência da imperfeição de suas cópias, as quais não conseguem, aliás, equilibrar o seu sentimento de impotência. Ela desanima, e passa a fazer decalques. Decepciona-se mais e mais; sente vergonha, e abandona: é o famoso eu não sei desenhar (PORCHER, 1973, p.128).

Sendo assim, dada a problemática do congestionamento da expressão gráfica desde cedo, devido a inúmeras causas, desde o histórico do ensino de arte no nosso país até a falta de conhecimento específico a respeito do grafismo, especialmente na educação infantil e nas séries iniciais, o projeto Arte-Pré-Arte desenvolveu uma metodologia e mostrou que este processo pode ser revertido, que aquelas pessoas que tiveram sua expressão artística congestionada em algum momento de seu desenvolvimento podem resgatar sua capacidade criadora a partir de atividades que vivenciam as etapas do grafismo na perspectiva do adulto e oxigenam a relação entre o ‘criador’ e sua ‘obra’, tornando a arte um processo fluido e livre de padrões e cobranças.

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O realismo visual, foco de interesse para a representação infantil de cunho naturalista – ver, observar e representar – faz parte da etapa do Realismo (LOWENFELD, 1977), que ocorre numa faixa etária a partir de mais ou menos 9 anos de idade.

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O método Arte-Pré-Arte: descongestionamento da expressão gráfica e resgate da capacidade criadora O projeto Arte-Pré-Arte é resultado de pesquisas e projetos realizados a partir das questões relacionadas à arte/educação e ao resgate da capacidade criadora. A metodologia desenvolvida é fruto de anos de experimentos e foi testada com grupos diversos. A metodologia do projeto está embasada em três módulos, representados pelos eixos temáticos: pensamentos Cinestésico, Imaginativo e Simbólico (PERALTA, 2004; PERALTA-CASTELL, 2012), sequencialmente, assim como nas etapas da evolução do grafismo infantil. O indivíduo adulto revive a essência das etapas do desenvolvimento gráfico infantil por meio de atividades específicas para o descongestionamento da expressão artística. O termo Arte-Pré-Arte, nas palavras de Peralta, representa um universo: “um espaço intermediário entre a produção de arte como um objetivo em si e a produção artística incipiente que emerge de um trabalho terapêutico, portanto interdisciplinar, de recuperação do potencial de expressão plástica inerente a todos” (GOLDBERG, 1999). O termo ‘Pré’ afirma que o objetivo não é formar artistas e sim realizar atividades ou experimentos que permitam àquelas pessoas que tiveram seu processo de desenvolvimento gráfico interrompido, expressarse por meio de linguagens artísticas, especialmente por meio da pintura. A artisticidade dos trabalhos não é o objetivo maior, porém, frente aos resultados já obtidos, pode-se observar a eficácia desta metodologia, a qual ajuda o integrante no resgate de sua expressão perdida no tempo, ao mesmo tempo em que o produto final é tratado com qualidade técnica e esmero, na medida das possibilidades. Eixos de desdobramento do método: Pensamentos Cinestésico, Imaginativo e Simbólico O Pensamento Cinestésico é representado pela primeira fase do Grafismo Infantil, a fase das ‘garatujas’ (LOWENFELD, 1970), etapa em que não há controle motor, o uso da cor é aleatório, não há preocupação com a figuração e o prazer é unicamente sensorial, baseado no movimento. Segundo Read (1958), a cinestesia surge do prazer que a criança tem nos seus movimentos de braços e no traço visível dos movimentos deixados no papel, representa uma atividade espontânea dos músculos, a expressão de um ritmo corporal inato, que se torna gradualmente controlada, repetitiva e conscientemente rítmica. A passagem do Pensamento Cinestésico para o Imaginativo se dá quando a criança faz o círculo: neste ponto é interrompida a atividade rítmica, porque a criança, como se supõe, reconhece subitamente no círculo o contorno de um objeto - o rosto humano. A atividade cinestésica é suposta terminar e começar a atividade representacional (READ, 1958, p.156).

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As atividades iniciam pelo exercício do Pensamento Cinestésico, no qual os adultos garatujam (Figura 1). A atividade das garatujas apresenta diferentes etapas, todas acompanhadas de estímulo musical, de preferência instrumental. A passagem do Pensamento Cinestésico para o Imaginativo é feita quando os participantes são levados a projetar formas representativas em suas próprias garatujas (Figura 2).

Figura 1

Figura 2

Com relação ao exercício do Pensamento Imaginativo, algumas atividades realizadas no Projeto Arte-Pré-Arte têm origem no Projeto Utopias Concretizáveis Interculturais4, como a Oficina dos fluidos (Figuras 3 e 4), desenvolvida com a finalidade de trabalhar o imaginário, a não figuração ou figuração espontânea, experimentos que podem ser usados com variados fins, sempre como fontes desencadeadoras de descobertas. Nestes experimentos, a ideia de ser dominado ao invés de dominar os materiais é trabalhada constantemente. Como num jogo, numa brincadeira, as formas vão se revelando e o participante não tem domínio sobre elas. São utilizados corantes reagentes, como a violeta genciana e o azul de metileno e o nanquim, os quais interagem com a água, assumindo e criando formas fascinantes. A partir da experiência com estes materiais, o indivíduo percebe um mundo novo, repleto de imagens não figurativas onde pode trabalhar espontaneamente. A expressão livre ou espontânea é a exteriorização sem constrangimento das atividades mentais de pensamento, sentimento, sensação e intuição (READ, 1958, p.139).

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Desenvolvido pela Prof Dr . Cleusa Peralta Castell e colaboradores desde 1987, como fruto de uma cooperação internacional entre a Fundação Universidade Federal do Rio Grande – DLA/FURG, Brasil e o Instituto de Pedagogia das Ciências Naturais – IPN, Universidade de Kiel, Alemanha, representada pelo Prof. Dr.Wilhelm Walgenbach .

In: MEIRA, Mirela R.; SILVA, Ursula Rosa da.: CASTELL, Cleusa Peralta (Orgs.). Transprofessoralidades: sobre metodologias do ensino da arte. Pelotas: Editora UFPel, 2013. p. 87 - 101 Figura 3

Figura 4

Pensamento simbólico: o círculo e as mandalas Pode-se dizer de certa forma, que o pensamento simbólico também surge, no desenho infantil, quando a criança fecha a forma, ou seja, realiza o círculo, visto que esta é a forma mais primitiva e fundamental, a qual constituirá a base formal para muitas das representações que virão ao longo do desenvolvimento gráfico. A mesma configuração básica, partindo do círculo, pode representar diversas figuras como o ser humano, um gato, o sol, uma flor, entre outros. À medida que a criança cresce, suas representações tornam-se mais complexas e, por volta dos cinco ou seis anos, adquire ou desenvolve um conjunto de símbolos os quais serão repetidos exaustivamente. É extremamente constrangedor ao adulto que diz não saber desenhar, ter de fazê-lo, gerando certa frustração. Desta forma, as atividades realizadas no projeto em questão partem da não figuração, do exercício da imaginação e da construção espontânea de imagens, para chegar, gradativamente à expressão de símbolos, sempre com um objetivo a ser alcançado: a expressão por meio de linguagens artísticas. Segundo Païn e Jarreau, (1994), ainda que tudo seja arranjado para facilitar desde o início a expressão pictórica, pode acontecer que alguns participantes se sintam surpresos ou inibidos pela consigna de tema livre. O tudo é possível torna-se difícil de suportar, portanto a liberdade é uma condição que se conquista passo a passo. A segunda grande etapa do trabalho é caracterizada pelo pensamento Simbólico. O indivíduo se apresenta mais preparado para dominar o material e para trabalhar a linguagem artística por meio de símbolos. Foram escolhidos como temas principais os quatro elementos (água, ar, terra e fogo), a fim de evocar imagens simbólicas. Preservaramse os pincéis japoneses e o grande formato em rolos de tecido, usando várias cores de tinta acrílica. Houve a presença de um elemento muito importante, a Mandala. As mandalas, assim como o círculo, são formas primordiais na representação infantil. O círculo e a mandala, simbolicamente, encarnam um caráter transcendental muito forte. A mandala representou o exercício do pensamento simbólico. Elas apresentam um papel importante para a criança. Segundo Read (1958):

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[...] o significado real destes desenhos mentais é o de nos revelarem os processos de integração no interior da mente da criança e abaixo do nível da consciência. O inconsciente é visto procurando uma ordem arquetípica, uma ordem não individual, mas uma analogia da estrutura física do próprio aparato sensorial. Basicamente, é uma cristalização das formas abstratas e das cores simbólicas, uma ordem introduzida no caos plástico (p.228).

Os quatro elementos - água, terra, fogo e ar – foram trabalhados de várias formas: por meio da pintura ou mesmo pela construção de imagens utilizando os próprios elementos. Desenhar com o sebo das velas sobre a água; construir imagens com a fumaça da vela sob o papel; e, pintar com tinta, terra e água são algumas atividades realizadas (Figuras 5 e 6).

Figura 5

Figura 6

O trabalho final desta grande etapa foi bastante refinado, e pretendia utilizar a representação da figura humana, tão difícil para aqueles que afirmam não saber desenhar. Foi utilizado um rolo de tecido em tamanho maior que todos até então utilizados. Este rolo era suspenso e, com o auxílio de uma luz, projetava-se a silhueta das pessoas, as quais eram capturadas com um pincel (Figuras 7 e 8).

Figura 7

Figura 8

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Contribuição da Pintura Zen Baseados em características da pintura Zen foram desenvolvidas atividades especiais, como a que prevê a realização do círculo perfeito e o treino da pincelada, inspirada na representação do bambu, tema importante na pintura japonesa. No Zen-budismo, o círculo apresenta forte significação, muitos autores ressaltam este fato: O gesto circular comparece em várias sociedades e culturas: das mais primitivas às mais contemporâneas. Ousadamente constatamos que, além de ser uma conquista individual, o gesto circular é um gesto arquetípico, que pertence ao coletivo. O gesto circular é inerente ao homem (DERDYK, 1989, p. 89). O círculo como símbolo do espírito absoluto, como plenitude, como vazio do universo que tudo envolve e como multiplicidade e oposição em sua duração, com essência búdica, transcendente, fora do espaço e tempo. (BRINKER, 1985). A realização do círculo perfeito, além de encerrar forte relação do adulto com etapas importantes no desenho infantil, traz um caráter simbólico e rico, restaurando a ligação do indivíduo com o universo, representando uma expressão da maturidade, uma extensão da arte de viver, cultivando o caráter e buscando a essência das coisas. O círculo é a primeira forma reconhecida no desenho infantil e traz um marco na representação, pois a partir dele a criança relaciona e representa formas reais, ligadas ao mundo externo. Estará descobrindo, simbolicamente, a si e ao outro e encarnando uma ligação com o universo e com o cosmos. O círculo também evidencia a passagem do Pensamento Cinestésico para o Imaginativo, pois à medida que fecha a forma e a relacioná-las com a realidade. O exercício da pincelada utilizando o pincel japonês procura exercitar o domínio do material assim como experenciar as diferentes modalidades possíveis com um único pincel. Figura 9

O ritmo e a qualidade da pincelada caracterizam a maestria, o domínio do pincel e a essência das coisas. O indivíduo exercita o viver cotidiano de forma clara, objetiva e sábia. Ao final destas atividades, o participante recebeu um rolo de papel canson para a realização de um trabalho de tema livre onde aplicou os conhecimentos apreendidos com relação ao material e à técnica utilizados na pintura Zen (Figura 9). Este trabalho corresponde ao produto final das atividades inspiradas na pintura japonesa. É ressaltada a importância da composição, do vazio, que gera um equilíbrio no trabalho. Não é necessário que surjam imagens figurativas, o importante é o exercício e a percepção do espaço.

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Desdobramentos e implicâncias: aplicação da metodologia em diferentes contextos Neste item compartilharei algumas iniciativas educativas derivadas do método desenvolvido no Projeto Arte-Pré-Arte a que chamo de desdobramentos e implicâncias, um espaço de diálogo, intervenção e aplicação de metodologias. A primeira intervenção/aplicação se deu durante a graduação, no Estágio Supervisionado no Ensino Médio em que, juntamente com a colega Rita Patta Rache elaboramos um curso de extensão de 20h/aula denominado ‘Resgate da Capacidade Criadora’ para estudantes do antigo curso de Magistério em uma escola particular tradicional do município do Rio Grande – RS. O curso contemplou aulas teóricas e práticas, trabalhando conteúdos essenciais como definições do que é desenho e desenhar; panorama geral das fases do grafismo infantil; a importância da interdisciplinaridade e da presença do arte-educador na Educação Infantil e nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental; o estereótipo no desenho infantil e a interrupção do desenvolvimento gráfico infantil. A parte teórica objetivou trazer subsídios e conhecimentos para as participantes em sua futura profissão. Constatou-se que a maioria teve seu processo de grafismo interrompido apoiando-se na representação de estereótipos. A parte prática consistiu em atividades de expressão corporal, sensibilização e oficinas para a aplicação das atividades do projeto ArtePré-Arte (Oficinas do Grafismo, Oficina dos Fluidos, Oficina Pintura Zen) baseando-se no desenvolvimento dos pensamentos Cinestésico, Imaginativo e Simbólico. As participantes puderam reviver a essência das etapas do grafismo infantil, podendo relacioná-las com sua prática em sala de aula e com os conhecimentos teóricos adquiridos ao longo dos encontros. Abaixo imagens das atividades e de alguns resultados das oficinas aplicadas (Figuras, 10, 11 e 12). Figura 11

Figura 12

Figura 10

Escolhemos estudantes do curso de Magistério pelo fato de que serão futuras educadoras que atuarão na Educação Infantil e nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental, fases em que ocorre, com mais frequência, a interrupção do desenvolvimento gráfico infantil, derivada da falta de

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conhecimento sobre o assunto e da precária formação artística que tais estudantes têm em sua trajetória pedagógica, como alunas e professoras. Grande parte da metodologia desenvolvida pelo Projeto Arte-PréArte compõe, ao longo dos anos de minha prática educativa, metodologias aplicadas em disciplinas de Arte/Educação na graduação e na PósGraduação, especialmente as Oficinas do Grafismo que revivem as etapas do Grafismo Infantil. Atualmente, tais oficinas compõem o Plano de Ensino da disciplina de Arte e Educação, disciplina obrigatória no curso de Pedagogia Diurno e Noturno da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará onde atuo como professora efetiva. Nesta disciplina, além de vivenciarem as Oficinas do Grafismo as (os) estudantes elaboram um Portfólio do Desenho Infantil5 em que recolhem desenhos infantis de todas as etapas do grafismo e compõem um álbum ilustrado de cada fase a partir da classificação de Lowenfeld (1970) e dos pensamentos Cinestésico, Imaginativo e Simbólico de Peralta (1998) para fins de conhecimento das fases e consultas futuras no exercício da docência na Educação Infantil e nas Séries Iniciais, contextos educativos em que esse conhecimento a respeito do Grafismo Infantil é primordial. A cada semestre concluído percebo as mudanças na visão de mundo desses futuros educadores por meio de depoimentos compartilhados na Universidade. Além de relembrarem as vivências artísticas em suas vidas, reconhecendo as precariedades, traumas e fragilidades de um ensino de arte praticamente inexistente ou equivocado, ganham a oportunidade de intervir por meio da docência revertendo e promovendo novas práticas, intervenções mais subsidiadas e consistentes em defesa do respeito a cada fase de representação da criança e de uma prática pedagógica libertadora. Finalizo este artigo com o último trecho da conclusão de minha monografia de apresentada em 1999: Certo dia, em estágio de 1o grau, ouvi uma professora, formada em magistério responsável pelo ensino de arte na escola falar: As minhas aulas de arte são baseadas em contos. Depois de contá-los às crianças, proponho uma atividade prática. Outro dia, contei um conto sobre uma borboleta e depois eles iriam fazê-la. É claro que eu levei modelos prontos de borboleta, pois sabe como é... crianças não sabem fazer borboletas!

Com este simples exemplo justifico e defendo a minha proposta de trabalho. Infelizmente muitos exemplos como este podem estar acontecendo a cada segundo neste país imenso. A cada segundo, uma criança pode estar deixando de lado o seu jeito de desenhar e perceber o mundo, a cada segundo, pode haver uma criança frustrada por não 5

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Realizei esta atividade enquanto aluna da Prof Cleusa Peralta Castell na FURG na disciplina de Arte/Educação. Dada sua importância venho propondo aos estudantes sua realização.

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conseguir desenhar como os pais ou as professoras desejam. Todas as borboletas mais lindas e diferentes que podiam surgir voaram para bem longe e sobrou apenas uma, que foi tão repetida que perdeu sua alma (GOLDBERG, 1999). Toda e qualquer prática pedagógica empenhada por mim se instaura na luta política por um ensino de arte de qualidade, semente que virou árvore, alimentada pelas raízes de projetos como o Arte-Pré-Arte e que se ramifica cada vez mais a cada dia que passa. Obrigada! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRINKER, Helmut. O Zen na arte da pintura. São Paulo: Pensamento, 1993. DERDYK, E. Formas de pensar o desenho: Desenvolvimento do grafismo infantil. São Paulo: Scipione, 1989. GOLDBERG, Luciane Germano. Arte-Pré-Arte: um estudo acerca da retomada da expressão gráfica do adulto. Monografia (Graduação em Educação Artística licenciatura Plena) Universidade Federal do Rio Grande, 1999. ____. Histórias desenhadas: desenho infantil e formação humana. In: OLINDA, E. M. B. de (Org.). Artes do Sentir: trajetórias de vida em formação. Fortaleza: Edições UFC, 2012. IAVELBERG, Rosa. O desenho cultivado da criança: prática e formação de professores. 2. ed. Porto Alegre: Zouk, 2008. JARREAU, Gladys e PAÏN, Sara. Teoria e técnica da arte-terapia: a compreensão do sujeito. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. KELLOGG, R. Analisis de la expresion plastica del preescolar. 3. ed. Espanha: CINCEL: 1985. LOWENFELD, Viktor. A criança e sua arte. São Paulo: Mestre Jou, 1977. LOWENFELD, Viktor. e BRITTAIN, Viktor. Desenvolvimento da capacidade criadora. São Paulo: Mestre Jou, 1970. LUQUET, Georges-Henri. O desenho infantil. Porto: Civilização, 1969. MÈREDIEU, Florence de. O desenho infantil. 14 ed. São Paulo: Cultrix, 2004. MOREIRA, Ana Angélica Albano. O espaço do desenho: a educação do educador. 13. ed. São Paulo: Loyola, 2009. PERALTA-CASTELL, Cleusa Helena Guaita. Pela linha do tempo do desenho infantil: um caminho trans estético para o currículo integrado. Rio Grande, RS : FURG, 2012. PERALTA, Cleusa Helena Guaita. O conceito utopias concretizáveis: elemento gerador de um programa de educação ambiental centrado na Interdisciplinaridade. Rio Grande, 1997. Dissertação [Mestrado em Educação Ambiental] – Fundação Universidade Federal do Rio Grande. PORCHER, Louis. Educação Artística: luxo ou necessidade? Trad. Yan Michalski. São Paulo: Summus, 1982. READ, Herbert. A educação pela arte. São Paulo: Martins Fontes, 1958.

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