Arte, símbolo e religião: as influências do pensamento pagão na arte renascentista, uma análise da gravura “Melancolia I”, de Dürer

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Arte, símbolo e religião: as influências do pensamento pagão na arte renascentista, uma análise da gravura “Melancolia I”, de Dürer Marcel Henrique Rodrigues1

Este projeto pretende fazer uma pesquisa relacionando estes três elementos: arte, símbolos e religião no contexto do Renascimento europeu. O ponto de partida consiste em analisar uma obra de arte em forma de gravura, conhecida como “Melancolia I”, do artista renascentista alemão Albrecht Dürer, composta por símbolos de cunho místico, como menções a Saturno, por exemplo. A escolha da obra se deu mediante a forte carga simbólica, religiosa e mística que a mesma congrega. Toda essa simbologia é fruto da união entre antigas concepções filosóficas que foram amplamente estudadas durante o período renascentista, bem como da valorização dos símbolos religiosos e das artes. No contexto renascentista europeu, diversas escolas de estudos filosóficos floresceram, como os estudos em torno do Neoplatonismo, assim como as concepções místico-religiosas que foram resgatadas da Antiguidade Clássica. Todas essas concepções, de certo modo, refletiram nas artes da época. Esta pesquisa visa abrir uma discussão entre Ciência da Religião e História da Arte. Palavras chave: Arte – Símbolos – Religiões – Melancolia de Albrecht Dürer

Introdução É interessante notar que o ser humano, desde tempos muito remotos, possui a necessidade da religião, ou seja, da criação de cultos e da construção de símbolos para nortear e dar sentido à sua existência. Portanto, pode-se afirmar que desde os primórdios, os elementos símbolos, religião e arte caminham juntos, considerando que os símbolos, além de seu caráter sacro, possuem também um caráter artístico. Um dos períodos em que o simbólico ganhou grande abrangência, seja nas artes ou na própria religião, foi no período renascentista, que abrangeu grande parte da cultura do Ocidente. Sabe-se que a religião e as artes foram fortemente influenciadas pela redescoberta da Antiguidade Clássica. A própria sociedade reviveu o pensamento filosófico e místico da cultura anterior ao Cristianismo. É nesse contexto em que esta pesquisa pretende se desenvolver. Compreender os aspectos pelos quais a cultura pagã influenciou a cultura cristã renascentista, sobretudo nas artes. Esse é um meio de relacionar a vivência dos antigos símbolos e filosofias pagãs em plena Europa do Renascimento. Para delimitarmos nossa pesquisa, escolhemos a gravura “Melancolia I”, do pintor Albrecht Dürer que, de certa forma, 1

Graduado em Psicologia. Mestrando em Ciência da Religião pela UFJF, bolsista Capes. Contato: [email protected]. Trabalho publicado nos anais do CONACIR. Ano 1. V.1 2015 p. 138144. Juiz de Fora/MG.

contempla diversos símbolos místicos que permearam o pensamento ocidental renascentista. Por milhares de anos, a religião, com seus símbolos, esteve intrinsecamente ligada às artes. Pode-se dizer que religião, símbolos e artes caminham lado a lado. As artes, por sua vez, têm a capacidade de transmitir esses símbolos religiosos de forma artística e pedagógica. A justificativa deste trabalho consiste na necessidade de maiores estudos entre a religiosidade e artes dentro da Ciência da Religião, como afirma Brito (2013, p. 441). No caso desta investigação, analisaremos um período específico: o Renascimento europeu, tendo a obra “Melancolia I”, de Albrecht Dürer, como obra analisada. A escolha por essa gravura ocorreu pela percepção dos diversos símbolos místicos e religiosos presentes na mesma. Esses símbolos, presentes nessa obra, como em outras obras do Renascimento, podem ser uma comprovação para analisar a mudança do contexto religioso, social e artístico que ocorreu durante o Renascimento europeu, que resgatou antigas tradições religiosas, filosóficas e místicas da Antiguidade. Mediante os estudos dos símbolos da gravura de Dürer, propomos um estudo analítico do esoterismo pagão, que tanto fluiu no Renascimento e, que de certa forma, continua a influenciar sociedades místicas e esotéricas dos dias atuais. Frente ao pouco material científico produzido nessa área é que essa investigação se apresenta como um bom referencial para estudos nas mencionadas áreas: religião, simbologia e arte. Outro ponto que justifica esta pesquisa está no fato de que existem poucos trabalhos científicos, em português, relativos às obras de Dürer. O estado atual da arte contempla boas obras sobre o assunto em língua espanhola. A figura abaixo representa a mencionada obra, “Melancolia I” de Dürer (1514).

Desenvolvimento teórico Muitos estudiosos têm se debruçado sobre os estudos da relação entre simbologia, religião e arte. No contexto da Antropologia, encontramos diversos autores renomados que dedicaram suas carreiras ao estudo da religião e da simbologia. Campbell (2010, p.22), que através de seus intensos estudos sobre mitologia e as consequentes descobertas sobre as dimensões históricas e simbólicas da religiosidade humana, chegou à conclusão de que a arte, a religião (mitos) e os símbolos estão intimamente relacionados. Essa conclusão é oriunda de centenas de estudos sobre mitologia e sua relação com a arte. Campbell (2010, p. 65) cita as pinturas rupestres como exemplo da ligação tríplice entre arte, símbolo e religião. O objetivo desta investigação é analisar a importância dos símbolos religiosos e sua vinculação com as artes, no caso, com a arte do Renascimento. No entanto, faz-se necessário uma explanação sobre a necessidade do homem de criar e cultuar símbolos. Jung (2008, p. 111), que muito estudou sobre simbologia religiosa, aponta que os símbolos estão presentes nas mais diversas culturas e mitologias do mundo, pois os mesmos fornecem significados para a vida humana e conseguem trazer para a realidade aquilo que é abstrato, complexo de ser verbalizado. A questão da abstração, que tem seu cunho psicológico evocada em um símbolo é muito bem explanada por Campbell: “O símbolo desperta intimações”, escreve Bachofen, “discursos podem apenas explicar. O símbolo toca todas as cordas do espírito humano ao mesmo tempo; o discurso é compelido a assumir um único pensamento de cada vez. O símbolo finca suas raízes nas mais secretas profundezas da alma;

a linguagem esvoaça sobre a superfície da compreensão como uma brisa suave. O alvo do símbolo é o interior; o da linguagem, o exterior”. E em ressonância com o sentido interior de seu símbolo comandante, sustentava Bachofen, a civilização de cada estágio ascendente produziu a mitologia e os feitos criativos de seu destino exclusivo - como fez a Europa gótica em resposta ao símbolo do Redentor Crucificado, Israel à Promessa, Atenas ao seu céu apolônico e os Lícios à terra feminina. (CAMPBELL, 2002, p. 114).

Uma análise antropológica prévia sobre a importância dos símbolos religiosos vem a ser importante para estabelecer as bases simbólicas da própria religiosidade e do misticismo que estão arraigadas à cultura. É com esse entender da dimensão simbólica e religiosa do homem, que estabelecemos a ligação entre religião, símbolos e arte. Um estudo aprofundado da temática admite que, de fato, a simbologia e a religião estiveram sempre ligadas. Em todo o decorrer do Cristianismo, por exemplo, as artes estiveram entrelaçadas com a simbólica cristã. Essa afirmação pode ser constatada em qualquer período histórico. Jacq (1980, p. 145) contrasta essa afirmação remetendo às antigas igrejas medievais, que eram ricamente decoradas com símbolos e temas religiosos, criando uma ponte com o mundo das artes. Realizadas essas ponderações, a investigação terá seu foco de estudos no período do Renascimento europeu. Esse enfoque foi determinado pelo fato de que nessa época, antigas concepções filosóficas e místicas vieram a público mediante os estudos filosóficos e místicos de antigos pensadores pré-cristãos. Esses estudos humanísticos influenciaram fortemente as artes religiosas da época. É esse cenário que Burckhardt (2009, p.180) trabalha em suas obras sobre o Renascimento. O autor argumenta sobre as profundas mudanças culturais ocorridas na citada época. Tais mudanças, impulsionada pelo Humanismo que apregoava o retorno dos antigos estudos filosóficos da Antiguidade, já eram sentidas desde o século XIV. O autor relembra como antigas concepções filosóficas, como o Neoplatonismo2, tomaram conta das mentes dos intelectuais e nobres da época, além dos intensos estudos em torno da Cabala, da Alquimia e da Astrologia. Ora, todos esses estudos, além de formarem uma grande enciclopédia das antigas práticas e filosofias da Antiguidade, refletiam seus resultados nas obras de arte da época.

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Como mostra Lurker (2003, p.480) o Neoplatonismo esteve muito em voga dentro dos estudos humanísticos do Renascimento. Tal sistema filosófico tem suas raízes na filosofia platônica e, em termos gerais, considera o Uno, ou Deus, como Aquele que emana todas as coisas. Os neoplatônicos utilizavamse de diversos símbolos dualísticos para demonstrar a superioridade do bem, em relação ao mal. Para eles, o mal nada mais é que a ausência do bem. É válido lembrar que os neoplatônicos impulsionaram os estudos em torno da Astrologia, da Gnose e de outras práticas da Antiguidade antes de Cristo.

Warburg (2013 p. 96), perito no estudo sobre as influências da Antiguidade pagã no período renascentista, evoca a maneira como o pagão e o cristão se encontraram durante o período e como tal revolução no mundo das artes e das ideias era esperada pela sociedade europeia de um modo geral.

A forma como as figuras da Antiguidade ressurgiam diante dos olhos da sociedade italiana em todo seu esplendor colorido da vida em movimento não era ainda a cópia em gesso, mas a procissão festiva, na qual a alegria pagã de viver havia preservado um espaço de sobrevivência folclórica. Baco e Ariadne, servem como símbolos da Antiguidade na forma como o início do Renascimento a compreendia. Era esta a imagem do deus da exuberância terrena. (WARBURG, 2013, p. 96).

É conhecido o valor simbólico de qualquer obra de arte, no entanto, é no período renascentista, quando inúmeras concepções da Antiguidade afloraram juntamente com os ideais cristãos, que tais simbólicas obras ganharam profunda relevância. É em ambiente alemão que surge o pintor Albrecht Dürer, grande pintor do Renascimento, especialista em xilogravuras.

Sem dúvida a imaginação de Dürer e o interesse do público alimentaram-se do descontentamento que, no final da Idade Média, grassara em toda a Alemanha contra as instituições da Igreja, e que iria finalmente eclodir na Reforma de Lutero. Para Dürer e seu público, as visões fantásticas dos eventos apocalípticos tinham adquirido um interesse crucial, pois eram muitos os que esperavam que tais profecias se concretizassem ainda durante suas vidas. (GOMBRICH, 2012, p. 345).

É nesse cenário que o famoso pintor cria uma de suas mais famosas e simbólicas obras, a gravura “Melancolia I”. A mencionada obra, segundo estudiosos, é um emblema das perspectivas místicas e alquímicas da época do início do Renascimento. Barbosa (2012, p. 11) aponta para a figura central da gravura, uma mulher ou um anjo que está possuído pelo signo de Saturno. Isso seria uma menção às antigas crenças astrológicas de que Saturno é portador dos movimentos mais lentos e, portanto, influente sobre as pessoas em seus traços mais lentos, mais introspectivos e melancólicos. De fato, a “melancolia renascentista” influencia muitos artistas do período, e o exemplo destacado, Albrecht Dürer, em Melancolia I (1514), traz o sentimento não mais com conotação médica (doença ou sanidade), porém torna-se metáfora. Na gravura, a melancolia é representada como uma mulher de asas (ou um anjo), potencialmente capaz de grandes vôos intelectuais. Mas a Melancolia não está voando, está sentado, imóvel, na clássica posição dos melancólicos, com o rosto apoiado em uma das mãos. A cabeça lhe pesa,

cheia de mórbidas fantasias. Às voltas com seus demônios internos, a Melancolia permanece imóvel, como se lhe faltasse ânimo para movimentarse. (BARBOSA, 2012, p.11).

Alcides (2001, pp.136-137) lembra que a obra pode ser traduzida em diversas ópticas, no entanto, o que não pode ser descartado é que todas as interpretações, de certa forma, devem estar relacionadas com o esotérico e o místico. Trata-se de uma obra simbólica, misteriosa, fruto da mente não só de seu autor, mas do pensamento de centenas de intelectuais europeus frente às perspectivas renascentistas que então surgiam. O mesmo autor menciona que a melancolia, como disposição psicológica humana, não era bem vista como também não era bem entendida durante a Idade Média. Os próprios místicos, que acreditavam que os melancólicos estavam sob influência de Saturno, um dos mais nefastos deuses, tinham os sujeitos melancólicos como sujeitos invejosos e nocivos ao convívio social. No entanto, essa concepção passa a mudar com o advento do Renascimento e com os diversos estudos voltados para a cultura da Antiguidade pré-cristã, sobretudo influenciados pelos grupos neoplatônicos. O Renascimento, com suas diversas escolas filosóficas, que muito exploraram questões relacionadas entre arte, símbolos e religião converteu a tese mal vista sobre os melancólicos, passando a acreditar que a melancolia, em si, é característica dos grandes sábios, sendo a mesma necessária para adquirir um conhecimento mais aprofundado da vida, ou mesmo, um conhecimento místico e esotérico. Conclusão Por fim, podemos alegar que a obra “Melancolia I”, de Dürer é um dos diversos expoentes do espírito do homem do Renascimento. Essa gravura contém, em boa parte, o misticismo que animou os espíritos dos homens daquela época a explorarem novos campos, para além daqueles que estavam delimitados pelos dogmas Católicos da Idade Média. Podemos afirmar que a obra seja um reflexo do espírito do homem renascentista, o qual estudou profundamente a temática dos símbolos religiosos e das artes, que sempre esteve ligada à religiosidade do homem.

Referências ALCIDES, Sérgio. Sob o Signo da Iconologia: Uma Exploração do Livro Saturno e a Melancolia, de R. Klibansky, E. Panofsky e F. Saxl. Revista Topoi. V. 2, N.2. Setembro de 2001. Disponível em: http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi03/topoi3a5.pdf. Acesso em: 20/08/2015. BARBOSA, Paulo. A Melancolia, o Anjo e os Herdeiros de Saturno. Revista Confluências Culturais. V.1, N.1. Março de 2012. Disponível em: http://periodicos.univille.br/index.php/RCC/article/view/325/225 Acesso em: 20/08/2015. BRITO, Ênio. Introdução à Parte IV. In: PASSOS, J; USARSKI, F. (Orgs). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2013. p. 439-441. BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras. 2009. CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: Mitologia Primitiva. São Paulo: Palas Athena, 2010. ______. Mitologia na Vida Contemporânea. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002. GOMBRICH, Ernst. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012. JACQ, Christian. A Mensagem dos Construtores de Catedrais. Lisboa: Instituto Piaget, 1980. JUNG, Carl. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. LURKER, M. Dicionário de Simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. WARBURG, Aby. A Renovação da Antiguidade Pagã: Contribuições CientíficoCulturais para a História do Renascimento Europeu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

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