Artes ambientais e sociedade: paisagem como projeto no Ocidente

June 12, 2017 | Autor: L. Duarte | Categoria: Brazil, Paisagem, Natureza
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Manifestações artísticas e ciências sociais:

Reflexões sobre arte e cultura material

Manifestações artísticas e ciências sociais:

Reflexões sobre arte e cultura material Patrícia Reinheimer e Sabrina Parracho Sant’Anna (organização)

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons – Atribuição – Uso Não Comercial – Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercialCompartirIgual 3.0 Unported. A versão impressa deste livro é gratuita e não pode ser comercializada. Baixe a versão em PDF no endereço: http://r1.ufrrj.br/wp/ppgcs/publicacoes/ 2013 Conselho editorial: Nilton Silva dos Santos (PPGA-UFF), Lígia Maria de Souza Dabul (PPGAS-UFF), Kadma Marques Rodrigues (UECE) e Caleb Faria Alves (IFCH-UFRGS) Produção editorial: Livraria e Edições Folha Seca 37, rua do Ouvidor, 37 Centro – 20010-150 – Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2507-7175 [email protected] Revisão: Frederico Hartje e Fernanda Mello Apoio técnico: Ana Paula Reis Projeto gráfico e composição: Leo Boechat Capa: Patrícia Reinheimer sobre gravura de Olly Reinheimer, s.d. M278

Manifestações artísticas e ciências sociais: reflexões sobre arte e cultura material / organização de Patrícia Reinheimer e Sabrina Parracho Sant’Anna. – Rio de Janeiro: Folha Seca, 2013. 264p. : il.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-87199-21-8

1. Cultura. 2. Cultura: Sociedade. I. Reinheimer, Patrícia. II. Sant'Anna, Sabrina Parracho. III. Título. CDD 306

Sumário

Introdução 7 Alessandra Rinaldi, Ana Paula Alves Ribeiro, Carly Machado e Patrícia Reinheimer

Arte, sociedade e valores Nathalie Heinich: o fenômeno artístico como uma sociológica 15 Patrícia Reinheimer (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Da visibilidade: excelência e singularidade em regime midiático 23 Nathalie Heinich (CNRS, CRAL-EHESS)

Luiz Fernando Dias Duarte: das redes do suor às “artes ambientais” 39 Naara Luna e Patrícia Reinheimer (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Artes ambientais e sociedade: paisagem como projeto no Ocidente 47 Luiz Fernando Dias Duarte (PPGAS-MN-UFRJ)

Algumas perspectivas sobre artes Algumas perspectivas sobre artes: institucionalização e identidade disciplinar 63 Sabrina Parracho Sant’Anna (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Os dois lados do concretismo 73 Glaucia Villas Bôas (UFRJ)

Gastronomia e sociedade de consumo. Tradições culturais brasileiras e estilos de vida na globalização cultural 89 Maria Lucia Bueno (UFJF)

Objetos e processos: de testemunho objetivo de uma realidade interior a agentes de transformação subjetiva 111 Patrícia Reinheimer (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

De artefato à obra de arte: a inserção de objetos indígenas no sistema internacional das artes 137 Ilana Goldstein (FGV-SP-SENAC)

Arte e cultura material Objetos, pessoas e valores: arte e cultura material 163 Carly Machado (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Cultura popular em trânsito: circulação e estetização de práticas performativas e objetos rituais entre folias de reis 173 Daniel Bitter (UFF)

A produção de si na fabricação de objetos materiais 193 Carla Dias (EBA-UFRJ)

Gerando formas: conceituações kaiowa sobre a relação entre substâncias, forças e ações no universo 211 Fábio Mura (UFPB)

Reflexões sobre a imagem sagrada a partir do “Cristo de Borja” 235 Renata de Castro Menezes (PPGAS-MN-UFRJ)

Introdução Alessandra Rinaldi, Ana Paula Alves Ribeiro, Carly Machado e Patrícia Reinheimer

Na sociedade contemporânea, o interesse pelos processos de criação, circulação e consumo de produções artísticas e da cultura material vem se fazendo perceber de forma progressiva entre antropólogos e sociólogos. São muito variadas as perspectivas a partir das quais se pode apreender e estudar a cultura material e as manifestações artísticas. Nota-se uma ampliação tanto das interpretações que passaram a olhar para a cultura material e as artes como questões centrais de qualquer análise sociológica ou antropológica quanto daquelas que refletem sobre os bens artísticos e a cultura material como fenômenos de especial relevância para a compreensão dos grupos que os produzem, admiram, trocam e/ou consomem. Resultado do seminário Manifestações Artísticas e Ciências Sociais: reflexões sobre arte e cultura material organizado na UFRRJ pelo Núcleo de Pesquisa CULTIS e patrocinado pela Capes, os artigos reproduzidos neste volume por vezes tangenciam, outras aprofundam algumas das dimensões que constituem este amplo campo de reflexão: o papel da arte e da cultura material, das coleções e dos museus, na construção de identidades, na relação com os valores religiosos, nas políticas públicas, no estabelecimento de representações acerca do produtor artístico, na delimitação e autonomização do campo artístico, entre outros temas que vêm consolidando arte e cultura material como objetos “bons para pensar”. O seminário foi aberto com as palestras de Nathalie Heinich e Luiz Fernando Dias Duarte, autores com trajetórias distintas* que se debruçaram com ênfases diferenciadas sobre o tema do fenômeno artístico. *Apresentadas neste volume por Naara Luna e Patrícia Reinheimer. 7

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Enquanto Nathalie Heinich construiu sua trajetória intelectual tomando este como campo privilegiado de investigação, Luiz Fernando Dias Duarte apresenta a criação artística como tema recente de interesse sistemático. Os trabalhos desses autores nos apresentam o fenômeno da criação artística a partir de um amplo escopo no qual é possível investigar processos de produção e reprodução de valores, sensibilidades e práticas, assim como a circulação de pessoas, objetos e valores. Vemos ainda, a partir do cotejamento dos dois trabalhos aqui apresentados por esses autores, como a categoria “visibilidade” pode ser tomada tanto como uma perspectiva de constituição de uma interioridade, um “olhar sentimental”, que produz relações particulares dos agentes com o mundo, quanto como um dispositivo de transformação da reputação por meio das novas tecnologias e mídias. O seminário contou ainda com duas mesas compostas por pesquisadores que se interessam pela relação entre arte e ciências sociais no Brasil: 1) Algumas perspectivas sobre artes: institucionalização e identidade disciplinar e 2) Objetos, pessoas e valores: arte e cultura material. A partir de uma apresentação destas mesas e das questões nelas suscitadas, pretendemos aqui colocar, à guisa de introdução a este livro, um panorama dos debates que ele se propõem a suscitar e com os quais pretende contribuir.

Cultis: da diversidade de projetos aos objetivos em comum Algumas experiências acadêmicas surgem e tomam forma a partir de convergências temáticas explícitas, do tipo que provocam a célebre frase muito ouvida no meio: “precisamos fazer algo juntos!”. Outras não. O Núcleo de Pesquisa Cultis é um caso deste segundo tipo. Sua formação se deu a partir de diferenças explícitas e convergências insinuadas. Seu amadurecimento pauta-se na construção de relações acadêmicas, conceituais, temáticas e pessoais, que vêm confirmando a riqueza do desafio a que se propuseram estas pesquisadoras. Fazer parte do Cultis significa provocar no outro um olhar sobre seu campo de estudos, e ser provocado, na mão inversa, por outros tantos objetos de pesquisa e formas de trabalhar para, no final do processo, render-se ao desafio de fazer-se novo e o mes-

Introdução: apresentação CULTIS

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mo continuamente. O seminário Manifestações Artísticas e Ciências Sociais, o terceiro da série de seminários organizados pelo Cultis,** foi mais um desses momentos. As pesquisadoras que constituem o Núcleo de Pesquisa em Cultura, Identidade e Subjetividade – CULTIS-UFRRJ investigam a produção de sujeitos a partir dos conceitos de cultura, identidade e subjetividade, por meio de práticas e representações sociais com respeito a criação artística, direito, religião, família/parentesco, corpo, tecnologias. O núcleo se estrutura em três linhas: 1) o enfoque da criação artística – valores, práticas, instituições e os campos por ela constituídos; 2) a produção de sujeitos nas famílias e instituições; 3) direito e religião como sistemas constituintes de subjetividades, identidades e práticas sociais. Articulando essas diferentes dimensões, o CULTIS conta com a participação das seguintes pesquisadoras: Alessandra de Andrade Rinaldi, Carly Barboza Machado, Naara Luna, Patrícia Reinheimer, Sabrina Marques Parracho Sant’Anna e com a colaboração de Ana Paula Alves Ribeiro, todas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). As componentes do CULTIS fazem parte do curso de Graduação em Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS), sediados na UFRRJ, e suas pesquisas propõem o estudo sobre saberes e práticas cotidianas, bem como sobre mentalidades e moralidades emergentes no mundo contemporâneo. Nessas pesquisas são contempladas as diversas formas por meio das quais os sujeitos sociais se constituem e se relacionam em âmbito social, assim como as distintas práticas e representações pelas quais os indivíduos atribuem sentido ao mundo. Sua produção abrange ainda a análise das dinâmicas entre indivíduo e instituições e os efeitos intencionais e não intencionais que determinados vínculos, desinstitucionalizações e reinvenções produzem na esfera individual com ressonância na vida social. São vislumbradas também as variadas formas de produção, transmissão, recepção e difusão da cultura; as análises sobre a ordenação do espaço, práticas sociais e representações do mundo, além de ** Em junho de 2011 o Cultis organizou o seminário “Famílias: formações contemporâneas” e em maio de 2012: “Constituição de sujeitos e moralidades”.

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estudos sobre a institucionalização de ritos e sobre a produção da cultura material. Tudo isso a partir de variados universos empíricos. Dos projetos realizados em conjunto, ressalta-se o projeto financiado pela Faperj de extensão e pesquisa Sem nome do pai. Por meio desta iniciativa analisamos junto aos jovens e adolescentes entre 15 e 18 anos, moradores de Seropédica, que não possuam o registro paterno, a forma como vivenciam tal situação. Além disso, procura-se desenvolver competências de utilização da linguagem audiovisual em jovens para que, por meio delas, esses possam formular os sentidos da filiação e da parentalidade. Há investimento na promoção de mobilização e participação social através da produção cultural audiovisual como caminho para o fortalecimento das vozes dos atores envolvidos na questão do sub-registro paterno. Por meio de oficinas de capacitação em técnicas e linguagens audiovisuais, o projeto visa criar um diálogo entre a cidade de Seropédica e a UFRRJ. Almeja-se, assim, a articulação das práticas e os saberes universitários com as demandas da população. Como produto final, pretende-se que os participantes das oficinas de audiovisual produzam um documentário sobre suas experiências de filiação e parentalidade. A ausência do registro paterno no Brasil é atualmente tratada pelo Estado como uma das principais condições sociais associadas ao risco e à delinquência de jovens, tendo mobilizado uma intervenção estatal incisiva visando reverter esse quadro de sub-registro. No entanto, mais do que um vazio problemático, a ausência do registro paterno configura um modo de vida, uma “presença social” cujas razões e consequências devem ser politicamente discutidas a partir da experiência concreta daqueles que a vivem. As oficinas de vídeo do núcleo de pesquisa CULTIS se propõem desenvolver competências de utilização da linguagem audiovisual a partir da produção fotográfica e de vídeos de curta duração utilizando a linguagem das mídias digitais de fácil acesso, tais como celulares e point and shoot câmeras. Essas oficinas tiveram suas formas de apreensão intensificadas através das redes sociais, multiplicando seu impacto e desdobrando-se numa mostra organizada pelos próprios participantes da oficina. Essa experiência fez a posição de “realizadores” se deslocar entre os diversos agentes envolvidos, inserindo no escopo geral da proposta e no documentário em vista novas temáticas não previstas inicialmente, como a universidade, a cidade e a relação dessas com seus moradores.

Introdução: apresentação CULTIS

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A produção desse documentário etnográfico supõe a união dos distintos interesses das pesquisadoras envolvidas no projeto num sistema de representação no qual se pode tratar as temáticas específicas da família e da parentalidade expressando, por meio de imagens e sons, as experiências dos participantes das oficinas de vídeos. Ainda em andamento, o documentário pronto será, como esse livro e o seminário do qual foi resultado, Manifestações Artísticas e Ciências Sociais: reflexões sobre arte e cultura material, a concretização de um projeto comum formulado a partir dos interesses diversos das pesquisadoras. Vemos assim que a diversidade de projetos e interesses não é excludente de objetivos comuns. Por meio deste seminário, as “cultianas” propuseram levar aos estudantes de graduação e pós-graduação das áreas de humanidades alguns debates contemporâneos acerca da arte e da cultura material. O objetivo foi colocar em contato pesquisadores e pesquisas as mais diversas, estimulando o interesse sobre essa área de debates e, ao mesmo tempo, solidificando um campo de trabalho deste novo, porém produtivo, núcleo de pesquisa. Esperamos que os trabalhos aqui apresentados e discutidos coloquem em evidência a indissociabilidade das manifestações artísticas e da cultura material e suas interações com outros fenômenos sociais, assim como sua riqueza como objeto de investigação para as ciências sociais.

Arte, sociedade e valores

Nathalie Heinich: o fenômeno artístico como uma sociológica Patrícia Reinheimer (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Nathalie Heinich nasceu em Marselha, em 1955. Atualmente é diretora de pesquisa no Centro de Artes e Línguas (CRAL) do Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS). Em sua trajetória, especializou-se em sociologia das profissões artísticas e práticas culturais (artista, estatuto do autor, identidade pública dos museus, percepção estética), desenvolveu reflexões sobre a crise de identidade (provas de deportação, adesão à reputação, construção ficcional, modelos identitários), a epistemologia das ciências sociais (Elias, Bourdieu, Sociologia da Arte) e sociologia dos valores. É cofundadora da revista de Sociologia da Arte e vice-presidente do Comitê de investigação em Sociologia da Arte, da Associação Internacional de sociólogos de língua francesa (AISLF). Em seu doutorado, pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, defendido em 1981, a autora dedicou-se a uma pesquisa sobre a história social do conceito de artista, na qual procura mostrar o caráter socialmente construído da noção de arte e artista no século XVII, na Europa. Publicada em 1993, essa pesquisa resultou no livro Du peintre à l’artiste. Artisans et académiciens à l’âge classique,1 no qual procurou desnaturalizar o imaginário social que sustenta a moderna concepção de artista. Parte de um projeto coordenado por Pierre Bourdieu para mostrar a constituição do campo da pintura de meados do século XVII ao final do século XVIII, esse trabalho de Heinich reforçou a tese de que o imaginário social em torno da arte e do artista, que tem menos de 200 anos, é constituído por uma série de imagens e suposições que relacionam o suposto talento inato do “gênio criativo” a um estilo de vida boêmio, no qual 15

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a pobreza material é a garantia invertida de um legado espiritual. Heinich não aderiu, entretanto, a uma militância sociológica de denúncia do imaginário em favor de uma realidade social. Ao contrário, argumentou que esse imaginário social produz efeitos reais.2 Para entender a passagem do “artesanato” às “belas-artes” e do “pintor” ao “artista”, a autora procurou identificar os efeitos sobre a prática e a percepção dessa prática: como mudou a hierarquia dos pintores e sua relação com talento, dinheiro, clientes, seu nome e sua autoimagem? Como evoluiu o olhar para a pintura e como foram, pouco a pouco, cunhados os termos “belas-artes” e “artista”? Os artistas são observados como membros de uma categoria que determina seu estatuto, ao mesmo tempo, contribuindo em parte para definir e transformar essa categoria. Para a autora, a arte é um fenômeno sui generis por permitir observar em seu espaço social uma série de valores antinômicos, como o individual oposto ao coletivo, o sujeito ao social, a interioridade à exterioridade, o inato ao adquirido, o dom natural e as aprendizagens culturais. A presença dessas antinomias dentro do próprio mundo artístico é para Heinich o desafio que faz da arte, mais do que outros objetos, um campo propício para a revisão de certas posturas sociológicas. Observar os valores artísticos seria tomar o fenômeno artístico como uma ideologia do social, uma “socioideologia” .3 Assim, no livro A glória de Van Gogh (1991), Heinich rompe com a ideia de mostrar o processo de constituição da história do artista, para utilizar a trajetória do pintor a fim de investigar a transformação do que a autora denomina paradigma clássico em moderno. Apresentando o deslocamento do interesse no objeto artístico para a pessoa do criador por meio da noção de singularidade, na qual originalidade, unicidade, personalidade, individualidade, transgressão das convenções começaram a ser consideradas qualidades, e não equívoco, a autora apresentou as condições de possibilidade para o surgimento desses valores no final do século XIX. Por intermédio de Van Gogh, a autora observou um período de rompimento dos critérios do gosto: “Uma demarcação fundamental entre o ‘bom’ e o ‘mau’ que não se operava mais sobre uma escala unilateral opondo a boa pintura (esclarecida pela academia) à má pintura (enganada pela mistificação), mas sobre uma dupla escala superposta, ao critério

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tradicional dos valores comuns reproduzidos pela aprendizagem acadêmica e o critério moderno dos valores raros que se inventam na ruptura reiterada com os cânones, na criação individualizada de novas formas de fazer 4.” Esse rompimento com determinada forma de apreciação estética teria marcado a passagem de um sistema de valores que privilegia uma excelência “relativa”, medida pela comparação com os pares e os representantes da tradição, para um sistema que privilegia uma excelência “absoluta”, que só admite a comparação com outro pelo negativo. Para compreender a ruptura com a forma de apreciação estética que marca a passagem do tradicional ao moderno, a autora usa um sistema de referências baseado na tensão entre uma natureza “doméstica” da tradição acadêmica – com o privilégio relacionado à proximidade, à antiguidade, à manutenção da ligação existente na comunidade – que se superpõe aos critérios de avaliação pictórica da natureza “inspirada” da inovação moderna – com o privilégio dado à distância em relação à rotina, à novidade, à invenção individual de competências inéditas. Assim, ela apresenta duas maneiras antinômicas de construir a grandeza em matéria de criação, que se apóiam na técnica de um lado e na originalidade de outro, como formas opostas de construção do valor artístico. A autora chama de “efeito Van Gogh” as propriedades transferidas para outros artistas, antes e depois dele. A própria ideia do sofrimento do qual surge a obra de arte vem em grande medida desse mito. Excesso, personalidade, subjetividade, originalidade, loucura, mistério, marginalidade: signos da raridade privilegiados pela crítica que insiste no fato de Van Gogh escapar ao ordinário. Esse seria o novo paradigma manifesto numa série de deslocamentos do valor artístico: da obra à pessoa, da normalidade à anormalidade, da conformidade à raridade, do sucesso à incompreensão e do presente (espacializado) à posteridade (temporalizada). Essas são, para a autora, as características de um regime da singularidade, do qual o mundo da arte passa a funcionar, principalmente a partir do século XX. Após os códigos da representação clássica, depois da própria figuração, a partir da Segunda Guerra Mundial são as fronteiras da arte que foram sistematicamente colocadas à prova. Enquanto a distinção entre o clássico e o moderno foi importante para o século XIX, a distinção entre o moderno e o contemporâneo foi importante para o século XX. E é isso

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que Nathalie Heinich trabalhou nos livros Le Triple jeu de l’art contemporain (1993) e Pour en finir avec la querelle de l’art contemporain (2000). Uma série de valores e antivalores que incluem o respeito e o desrespeito, a adesão e a crítica constituem os critérios de participação no jogo da arte contemporânea: repetição e inovação, referência aos mestres e demarcação em relação ao passado, unicidade da obra e multiplicação em série, personalidade e recusa da expressão, criação e imitação, inspiração e constrangimento, bom gosto e vulgaridade, materialidade e imaterialidade dos objetos, perenidade e o caráter efêmero da obra, diferenciação entre obra de arte e objetos do mundo ordinário ou redução das fronteiras entre uns e outros, convenção do quadro de cavalete ou recusa dos suportes convencionais, interioridade e empréstimo, sinceridade e cinismo, inocência e oportunismo, esteticismo e trivialidade, emoção e neutralização dos afetos, integridade mental e alienação, seriedade e derrisão, figuração e abstração, respeito e desconstrução dos cânones da representação – tornando o jogo da arte contemporânea um terreno de escolhas para observar a articulação entre fronteiras cognitivas para além de suas fronteiras tradicionais e o registro de valores, mais ou menos autônomos e heterônomos. A arte contemporânea forma assim um mundo altamente especializado que remete a uma tradição específica acessível apenas a um número pequeno de especialistas, bem longe dos especialistas éticos e estéticos do grande público e das exigências de universalidade que estruturam o senso comum da arte. É em certa medida com base nessa especialização e nas prerrogativas atribuídas aos produtores artísticos no século XX que a autora desenvolve uma investigação sobre a noção de elite. O debate acerca dessa noção se inaugura com o livro L’élite artiste (2005). Ali ela trata de questões como hierarquia e igualdade, elite e democracia. Sua intenção é fazer sociologia a partir da arte, e não meramente tomar a arte como objeto sociológico. Assim, a autora classifica esse trabalho como sociologia dos valores e ciência política, isto é, toma o fenômeno artístico como um campo de investigação de forma a contribuir, conceitual ou metodologicamente, para essas disciplinas. Heinich relaciona o tema da luta pela “liberdade” do artista ao período revolucionário francês. As regras legislativas requeriam que as obras fossem

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registradas antes de serem comercializadas. Esse sistema foi objeto de uma disputa em torno da ideia de uma liberdade que não podia ser compreendida como privilégio, no momento em que estes estavam sendo abolidos. A solução encontrada foi afastá-la do sinônimo “liberalidade” – por oposição aos constrangimentos corporativos –, reconhecendo a particularidade da atividade artística, isto é, sua autonomia: não mais liberal, mas libertária – a liberdade como especificidade da arte, isto é, a não subordinação da arte a critérios heterônomos. Para aplicar a noção de elite aos criadores artísticos, Heinich faz uma revisão da trajetória histórica dessa categoria sociológica: após a Revolução Francesa e a abolição dos privilégios, a distribuição de condições em função do pertencimento a categorias de nascimento começou a se desfazer. Em seu lugar, surgiu uma tendência à individualização das posições que possibilitou a superposição da promoção individual pela competência e o trabalho à herança do nome e dos bens pelo nascimento. Desde então, a noção de excelência foi se complexificando por questionar a natureza da elite e sua justificação. A normatividade na qual a noção de elite é mergulhada deriva das ambivalências ali inscritas: entre valorização da excelência e princípio de igualdade, entre admiração e crítica, entre identificação e inveja. A normatividade pode ser percebida no nível semântico com as conotações marcadamente negativas, como no adjetivo “elitista” ou na expressão “classe dominante”. A adoção do termo elite na análise empreendida pela autora pode ser tomada como mais uma forma de se afastar dos pressupostos de uma sociologia da suspeição para investigar os valores que sustentam o fenômeno observado. Para superar as dificuldades que a noção de elite coloca ao cientista social, por estar referida ao pertencimento diferenciado, sendo ao mesmo tempo irredutível ao exercício do poder por parte de uma classe social, Heinich usa o conceito de “configuração” 5 que designa um espaço de relações entre indivíduos ocupando posições eminentes. “Esses indivíduos, fortemente selecionados em suas categorias ou pertencendo eles mesmos a categorias seletas, estão em relação, efetiva ou potencial (podendo se frequentar), possuindo recursos eventualmente muito diferentes: banqueiros, ministros, altos funcionários, homens de letras, artistas, podem se perceber e ser percebidos como elite, apesar da heterogeneidade de suas ocupações.

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A ênfase dessa concepção é então colocada na dimensão relacional 6.” “Elite” deixa de ser uma categoria substancial para se tornar uma saliência no interior de diferentes categorias sociais. Dessa perspectiva, existe uma pluralidade de elites, podendo cada uma ser função de sua influência, riqueza material ou prestígio. O texto da autora aqui apresentado é o resumo de seu novo livro, De la visibilité: excellence et singularité en régime médiatique, que retoma a investigação acerca dessa noção para observar como a difusão em grande escala das imagens mudou a concepção de celebridade constituindo uma nova elite no mundo contemporâneo: aquela fundada na produção tecnológica de uma ubiquidade que modifica em profundidade múltiplas dimensões da vida social. Esse elitismo “midiático” do final do século XX seria uma nova forma de singularidade, dissociada da excelência que fundamentava aquela outra elite, a dos artistas.12

Notas 1 2 3 4 5 6 7

Heinich, 1993. Paris, Minuit, coll. Paradoxe. Rockhill, 2010. Heinich, 1998.

Heinich, 1991, p. 24. Elias, 1980.

Heinich, 2005, p. 258. Heinich, 2005.

Referências bibliográficas BOLTANSKI, Luc; THEVENOT, Laurent. De la justification. Les economies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.

ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 1980. GOFFMAN, Ervin. Frame Analysis: An Essay on the Organization of Experience. Londres: Harper and Row, 1974.

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HEINICH, Nathalie. De la visibilité, Excellence et singularité en régime médiatique. Paris: Gallimard, 2012.

__________. L’élite artiste. Excellence et singularité en régime démocratique. Paris: Gallimard, 2005

__________. La sociologie de l’art. Paris: Édition la Découverte, [2001] 2004. __________. Le triple jeu de l’art contemporain. Sociologie des arts plastiques. Paris: Éditions de Minuit, 1996.

__________. La faute, l’erreur, l’échec: les formes du ratage artistique In: Sociologie de l’art, n. 7. Paris, 1994.

__________. Du peintre à l’artiste. Artisans et académiciens à l’âge classique. Paris: Éditions de Minuit, 1993.

__________. Ce que l’art fait à la sociologie. Paris: Éditions de Minuit, 1998. __________. La gloire de Van Gogh. Essai d’anthropologie de l’admiration. Paris: Éditions de Minuit, 1991.

ROCKHILL, Gabriel. Machete Interview with Nathalie Heinich For a

Comprehensive Sociology of Artistic Imaginaries In Machete, vol. 2, n. 12,

vol. 2., n. 13, Philadelfia, USA, 2010. http://machetegroup.files.wordpress. com/2011/10/heinich-interview-machete.pdf

SIMMEL, Georg. 1971. Freedom and the individual In: On individuality and social forms. Donald N. Levine (ed.) Chicago University Press, 1971.

Da visibilidade: excelência e singularidade em regime midiático (em versão condensada) Nathalie Heinich (CNRS, CRAL-EHESS) Tradução de Roberta Ceva

Por muito tempo, na história da humanidade, a celebridade não passou – ou só excepcionalmente – pela visibilidade, pela difusão do rosto e do nome no espaço público – mas pela reputação, a difusão do nome e dos relatos associados ao grande homem. Antes da intervenção dos modernos meios de reprodução da imagem, há um século e meio, a visibilidade do grande homem limitava-se a seu nome e à sua biografia, às suas representações esculpidas, pintadas ou gravadas, e, eventualmente, à sua presença, para aqueles que tinham a oportunidade de cruzar seu caminho. A invenção e, em seguida, a expansão em grande escala do retrato fotográfico transformou profundamente as modalidades tradicionais da celebridade, que passou a assumir a forma de uma reprodução relativamente precisa dos traços do rosto, em número indefinido. A partir de meados do século XIX, multidões incontáveis puderam reconhecer um indivíduo sobre o papel, associando um rosto a um nome conhecido. Desse modo, formaram-se paralelamente comunidades de admiração potencialmente imensas e objetos de admiração ainda mais singularizados e valorizados quanto mais amplamente reconhecidos. É graças a essa nova visibilização da celebridade que, no início do século XX, o “culto das estrelas” será criado. A invenção da fotografia, em seguida do cinema, da televisão e, por fim, da internet, inaugurou uma nova era na história da nossa relação com o mundo, estendendo desmesuradamente, no espaço e no tempo, as possibilidades de presentificação dos seres pela mediação de imagens 23

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altamente fiéis à original. Essa fabricação técnica da ubiquidade em larga escala tornou-se de tal modo familiar para nós que já não percebemos seu caráter propriamente desconcertante – que teria chocado nossos ancestrais – nem as incontáveis consequências sobre nossa relação com o mundo e com os outros, a extraordinária assunção do valor da celebridade, que modificou em profundidade a vida social em suas dimensões tanto hierárquicas quanto profissionais, econômicas, jurídicas, psicológicas, políticas ou morais. A extensão do domínio da celebridade, graças às técnicas de visibilização, não se inscreve numa continuidade linear em relação às formas tradicionais da reputação; ela se faz acompanhar, ao contrário, por uma dupla ruptura, hierárquica e axiológica, na relação mantida com o segredo e com a publicidade. A reputação no tempo, que garantia a posteridade dos grandes homens muito após a sua vida terrestre, foi substituída em algumas gerações pela visibilidade no espaço, que garante a mediatização das estrelas muito além do local de sua presença física. De maneira correlata, essa virada conjunta do tempo ao espaço e do antigo ao novo se faz acompanhar por uma inversão hierárquica entre o baixo e o alto, o vulgar e o nobre, em relação ao valor atribuído à representação pública. Longe de representar, como antigamente, uma decadência da dignidade, a exposição pública de sua própria imagem tornou-se, portanto – e mesmo para categorias que lhe eram tradicionalmente refratárias –, um modo de engrandecimento.

O capital de visibilidade Novo fenômeno, nova terminologia. Para pensar efetivamente a especificidade das formas modernas da celebridade é preciso levar a sério sua dimensão de “visibilidade”, no sentido mais literal do termo – presente, aliás, na etimologia do próprio termo “vedete” *: É o único que nos convém a partir do momento em que não mais lidamos com o mundo intemporal da * (N.T.) O termo francês vedette é utilizado pelo autor no texto original. Optou-se aqui por traduzi-lo como “estrela”.

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celebridade, no qual os nomes contavam antes de tudo, mas com este novo mundo no qual os rostos importam pelo menos tanto ou até mais que os nomes – ainda que estes últimos permaneçam indispensáveis. Se é importante insistir, por meio da noção de “visibilidade”, na reprodutibilidade das imagens, é que estas últimas, porque reproduzidas, suscitam uma expectativa de colocação em presença diante do “aqui e agora do original”, para retomar a definição de “autenticidade” segundo Benjamin. A dimensão mediatizada da reprodução técnica cria uma distância fundamental entre o referente e o signo, o modelo e a imagem, o real e a representação – de onde nasce o desejo de ser colocado na presença do original, uma vez que não se conhece senão a cópia. Essa expectativa engendra um investimento emocional considerável, o mesmo que, no tempo em que a autenticidade ainda não tinha se tornado “o substituto do valor cultural”, se aplicava às aparições e, na ausência delas, às relíquias – estes substitutos da presença do santo. Chamfort definia a celebridade como “a vantagem de ser conhecido por aqueles que não te conhecem”. Eis o que nos leva a duas noções tão fundamentais quanto indissociáveis: por um lado, o conhecimento ou, antes, o “reconhecimento” pelo qual se associa um nome a um rosto e, por outro, a dissimetria ou, dito de outro modo, a desigualdade numérica entre “aqueles que reconhecem” e os “reconhecidos”. Com a visibilidade, a imagem multiplicada confere grandiosidade e clama ao reconhecimento-identificação, o qual possibilita, por sua vez, quando a situação o permite, o reconhecimento-confirmação e o reconhecimento-deferência, ou mesmo o reconhecimento gratidão, quando o ídolo em pessoa concede o dom de sua presença. O próprio das estrelas em regime mediático é a ligação estreita entre todos os sentidos da palavra “reconhecimento”: cognitivo, interacional, hierárquico, emocional. Basta ser “reconhecido” para ser triplamente “reconhecido”; a identificação torna-se assim confirmação, deferência e gratidão. O segundo grande critério da visibilidade, após a difusão em larga escala da imagem do sujeito, é a dissimetria: dissimetria entre aquele que é visto e aqueles que veem, entre aquele que é identificado e aqueles que identificam, entre aquele que é reconhecido e aqueles que reconhecem; aquele cuja presença, para além das imagens, é tida como uma graça por

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aqueles que, em troca, o gratificam com sua admiração. À multiplicação das imagens – primeiro critério – faz eco a multiplicidade dos sujeitos capazes de identificar essas imagens de uma única pessoa – segundo critério. A dissimetria na identificação assinala e opera uma separação grandiosa: uma grandiosidade que, mais do que se dever a propriedades pessoais, deve-se antes de tudo ao número de pessoas capazes de associar um nome a um rosto, de tal modo que a separação entre a multiplicidade dos sujeitos que “reconhecem” e a unicidade do objeto “reconhecido” estende o laço que os une à dimensão de uma admiração coletiva. Em resumo, a desigualdade no interconhecimento é uma das formas mais simples e mais fundamentais de desigualdade – demasiado simples talvez para ter sido observada? Por que, afinal, é tão importante levar a sério esta questão, aparentemente trivial e evidente, da dissimetria? Porque ela cria um diferencial de recursos entre as pessoas conhecidas e desconhecidas, diferencial esse que pode ser assimilado a um verdadeiro capital. Este último confere a seu detentor prestígio, poder, relações e dinheiro; mas não é redutível a nenhuma das outras formas de capital, nem ao “capital social”, já que este último mede a extensão e a qualidade dos “conhecimentos” ou das relações, não o grau de reciprocidade. Como prova de que estamos lidando com um verdadeiro “capital”, no sentido literal do termo, o capital de visibilidade possui todas as características de um capital no sentido clássico (econômico) do termo: constitui, de fato, um recurso mensurável, acumulável, transmissível, que amealha interesses e é convertível. O capital de visibilidade operou uma importante transformação na hierarquia, ao criar uma nova categoria social. Surgida ao longo do século XX, ela ainda não foi percebida como tal. A visibilidade é transmitida como uma herança, negociada como um dote e utilizada como um apadrinhamento. Trata-se não somente da proteção das fronteiras entre a categoria das pessoas célebres e aquela das pessoas comuns, mas também da conservação de um privilégio. Essa estreita associação entre a existência de uma verdadeira categoria social e sua posição privilegiada nos leva a acrescentar aos três primeiros critérios que definem o fenômeno da visibilidade – a reprodução técnica da imagem, a dissimetria e a categoria social – o critério hierárquico, que transforma essa categoria numa nova elite. Por vários aspectos, a visibilidade aparece atualmente como uma forma de aristocracia, mas não identificada como tal a despeito da onipresença

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de seus membros no espaço público. Trata-se, paradoxalmente, da aristocracia escondida das personalidades em evidência. Ao associar uma posição eminente a uma ruptura com as formas clássicas de dominação (poder, nascimento, patrimônios), essa nova elite permite, se não resolver, ao menos atenuar a tensão entre a exigência de igualdade própria às sociedades democráticas e, por outro, a aspiração a um ordenamento das grandezas que permita operar uma partilha consensual entre pequenos e grandes, oferecendo, aos primeiros, modelos a serem imitados ou ao menos admirados. Do mesmo modo como no século XIX a nova elite artista, por sua assimilação à marginalidade, permitia conjugar a rejeição democrática dos valores aristocráticos com a aspiração elitista a uma excelência reconhecida, no século XX a nova elite da visibilidade vincula a singularidade à popularidade, de encontro às formas tradicionais de excelência tanto quanto ao valor do mérito. Reprodutibilidade técnica em larga escala das imagens, dissimetria entre objetos e sujeitos do olhar, criando enormes diferenças no capital da visibilidade e instaurando, entre seus detentores, uma categoria social específica, situada no topo de uma hierarquia cuja estrutura foi profundamente renovada pela irupção dessa nova elite – eis os quatro critérios que definem a visibilidade na época mediática. Os autores que se interessaram por esta questão perceberam um ou outro destes critérios, mas nunca os quatro ao mesmo tempo; ora, é essa articulação que, sozinha, permite mensurar em toda a sua amplitude um fenômeno tão espetacular e profundamente inovador quanto pouco observado e compreendido em todas as suas dimensões – já que oculto pelo duplo véu da familiaridade e do desprezo de classe.

Culto ou cultura da celebridade? O culto das celebridades não seria uma nova forma de religião ou, antes, um “substituto da religião”, segundo uma fórmula já bastante batida, e, portanto, um “culto”, e não somente uma cultura? Para conferir todo o sentido sociológico à noção de “religião”, é preciso, em primeiro lugar, considerar que a religião não é uma matriz original, mas uma configuração

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contextual – a configuração cristã não é senão a forma mais familiar às sociedades ocidentais –, e, em segundo lugar, que ela é uma noção nativa, e não uma ferramenta do pensamento erudito. Desse modo, torna-se finalmente possível falar não mais somente em cultura da celebridade, mas em culto das celebridades, desobrigando-se do uso das aspas, já que não se trata mais de uma metáfora, mas literalmente de uma conduta, cuja redução ao “religioso” impediria compreender suas especificidades. Podemos assim afirmar a existência de similitudes e diferenças, mais ou menos centrais ou marginais, entre o fenômeno familiar – mas ainda maldefinido – das condutas qualificadas como religiosas e este fenômeno moderno – tão familiar quanto pouco definido – que é a cultura das celebridades. Observa-se de imediato que a ascensão da visibilidade em regime mediático não é somente a consequência de uma série de inovações técnicas na reprodutibilidade da imagem, provindo igualmente da propensão a construir comunidades de admiração por condutas cultuais e culturais aplicadas a personalidades carismáticas, cuja imagem é abundantemente figurada – condutas associadas, em outras configurações, ao que nomeamos na cultura ocidental como “religião”. Na transformação da economia emocional de qualquer um de nós, produzida pelos modernos meios de reprodutibilidade técnica do rosto e da voz, verifica-se certa continuidade com formas anteriores, e bem conhecidas, de cultos. E, provavelmente, só o desprezo dos eruditos em relação à cultura popular pôde nos dissimular essa evidência, ainda que esteja bem diante de nossos olhos.

A distribuição do capital de visibilidade Em que medida a visibilidade é motivada por capacidades próprias à pessoa em questão, ou se deve ao acaso, ou é fabricada por instrumentos próprios à visibilidade, tornando esta última, se assim se pode dizer, autorrealizadora? No primeiro caso, a visibilidade é plenamente justificada, já que não é senão um valor agregado a um valor que a precede e motiva (por exemplo, o talento); no segundo caso, ela não se justifica, sendo imputável somente ao acaso (por exemplo, um acidente), ninguém poden ser responsabilizado por

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isso; no terceiro caso, ela não é justificada por nenhum ato exterior e anterior à visibilização, e não tem outra causa senão ela própria (por exemplo, os apresentadores de televisão), a estrela é conhecida essencialmente “por sua notoriedade”, segundo a famosa fórmula de Daniel Boorstin. A visibilidade é portanto um valor que se pode chamar de “endógeno” ou de “autoendógeno”: são os meios técnicos de visibilização que, simultaneamente, fabricam e mantêm o capital de visibilidade, por meio de um movimento circular ou, mais exatamente, espiral. Entre valor agregado a outro valor e valor endógeno, autoproduzido, a visibilidade das diferentes categorias de celebridades se desloca de um polo a outro, sobre um eixo evidentemente hierarquizado que vai do mais ao menos “justificado”, segundo as normas da moral ordinária – ou, em outros termos, do mais ao menos legítimo, ao mesmo tempo que do recurso mais antigo ao mais atual. Desse modo, a televisão e as novas mídias produzem “celebridades instântaneas” que só se beneficiam de uma visibilidade endógena, na ausência de apoio em valores mais sólidos. Verifica-se antes de tudo a visibilidade como valor agregado ao nascimento, com os soberanos e membros das famílias reais; a visibilidade como valor agregado à performance, com os políticos e os esportistas; a visibilidade como valor agregado ao talento, com os sábios e criadores; a visibilidade como misto de valor agregado ao talento e de valor endógeno, com os cantores e atores, bem como as modelos; a visibilidade como misto de valor agregado ao carisma e de valor endógeno, com as personalidades da televisão, profissionais ou amadores; e, por fim, a visibilidade como valor acidental, com o herói ou anti-herói das manchetes. Há uma hierarquia não dita entre celebridades, cujo princípio é a duração. Pode-se até esquematizar um quadro com dupla entrada para a “hierarquia da visibilidade”, cruzando, de um lado, o eixo espacial – do local ao internacional, passando pelo regional e pelo nacional – e, do outro, o eixo temporal – de “um dia” a “sempre”, passando por “uma semana”, “um ano”, “uma geração” –, já que o inconveniente da glória, para o novo mundo dos “people”, reside, antes de tudo, em seu caráter efêmero, que faz com que o interessado experimente espetaculares variações de grandeza das quais corre o risco de ter dificuldades em se refazer. É importante

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notar a concomitância da modernização técnica, da multiplicação dos públicos, da democratização dos pretendentes à visibilidade, da desmoralização de suas qualidades, bem como do encurtamento dos laços espaciais e temporais entre as personalidades e seus admiradores – o conjunto desses fenômenos caracteriza a “peoplelização” das celebridades. Essas mutações espetaculares na distribuição do capital de visibilidade – que, por sua vez, constitui uma mutação igualmente espetacular da noção de elite – vinculam-se, num nível mais geral, a uma mutação histórica da excelência, de suas definições e atribuições.

Economia e direito da visibilidade A assunção da visibilidade levou à criação ou à extensão de toda uma série de ofícios: fotógrafos e paparazis, maquiadores, agentes, personal trainers, guarda-costas ou mesmo sósias. Ela também suscitou uma verdadeira indústria, feita de turismo e de produtos derivados, centrados nas celebridades, como na imprensa, as edições especializadas. Ela permitiu o desenvolvimento de uma economia específica: uma economia “em regime de singularidade”, na qual o estrelato engendra enormes lucros por meio do consumo intensivo da imagem das estrelas, da prática das promoções publicitárias, das remunerações exorbitantes pagas às estrelas de cinema, da música ou do esporte, dos preços fabulosos alcançados por suas relíquias em leilões, ou ainda das indenizações regularmente atribuídas pelos tribunais por atentado à vida privada. Essa prática, amplamente desenvolvida há mais de uma geração, também nos fornece indícios sobre o impacto da visibilidade no direito – o direito ao nome, o direito à imagem e o direito à vida privada foram profundamente remodelados, em nível internacional, pelas ações levadas a cabo pelas celebridades visando à defesa de seus interesses. Assim, do mesmo modo como a visibilidade modificou a hierarquia social, engendrou novos ofícios, deu lugar a uma economia específica, também contribuiu para criar ou ao menos transformar as regras de direito que a concernem.

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Psicofisiologia da visibilidade O vínculo com as celebridades tem a especificidade de se dar na não familiaridade, na não reciprocidade e na admiração. No entanto, ele partilha com o vínculo a pessoas comuns, por um lado, o vínculo pela identificação com a pessoa admirada e, por outro, o vínculo por desejo de possessão dessa pessoa. Na vida cotidiana, não se considera anormal fazer de uma pessoa um objeto de identificação, não mais do que fazer dela um objeto de amor ou de desejo, seja ele sexual ou presencial. Consideremos, portanto, que, no mundo regido pela visibilidade, não é de estranhar que os fãs admirem uma estrela e com ela se identifiquem, nem que experimentem sentimentos amorosos em relação a ela. A única coisa que deve nos fazer refletir é o caráter extremo das emoções experimentadas. Ao se aproximar de seu ídolo – o que se dá somente por meio de seus vestígios –, o admirador ou a admiradora não se contenta em se conformar aos standards da relação amorosa, ainda que sob a forma particular de um vínculo necessariamente assimétrico, não recíproco e, essencialmente, fantasmático. Ele ou ela foge também, ao fazê-lo, do anonimato do grande público, destacando-se da multidão dos outros fãs, esforçando-se para instaurar uma relação única. Tal dualidade entre objeto e sujeito de admiração permanece, no entanto, imaginária: o sujeito tem noção de que não é o único a amar – mas ainda assim ele pode se iludir, narrando a si mesmo a história romântica de uma proximidade, de uma intimidade ou de uma relação exclusiva com o objeto de sua admiração. Longe de estar só diante da estrela, ele é rodeado por uma multidão de outros fãs com os quais pode se identificar, ao partilhar um mesmo sentimento pelo objeto comum. A relação não é dual, mas múltipla – e multiplicada quase ao infinito. Ela envolve outros admiradores, ou mesmo coletivos de admiradores, quer já instituídos, como os fãs clubes, quer constituídos pontualmente para determinada ocasião, como os públicos reunidos por ocasião de uma cerimônia funerária, um evento, uma representação. Quanto ao encontro com uma estrela, seus efeitos podem ir de um extremo a outro na escala dos graus de admiração: reforço ou confirmação de sua grandeza, normalização por sua redução ao ordinário, desilusão ao

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serem frustradas as expectativas, ou mesmo “dissonância cognitiva”, quando o aspecto ou o comportamento da estrela entra em violenta contradição com sua imagem pública. Mas qualquer que seja a origem do acontecimento, este último tem toda a chance de exercer um notável “efeito disruptivo” sobre a vida daquele que o vivencia, dotado assim de uma experiência emocional específica, a qual terá grande interesse em partilhar com terceiros. Decididamente, nunca se está totalmente sozinho com uma celebridade, mesmo – e sobretudo – por ocasião de um encontro face a face. Mas a colocação em presença em si mesma não criaria qualquer emoção se não houvesse, precedendo-a, a imagem, ou as imagens, cuja carga emocional tão poderosa se deve ao fato de sempre haver – ainda que remotamente – a eventualidade da presença ou sua realidade passada. Ao mesmo tempo que a fascinação tem sua fonte no vai e vem entre singularidade do admirado e multiplicidade de admiradores, ela ganha consistência no vai e vem entre presença e ausência, proximidade e distância. Trata-se do “efeito referencial”. Inacessível em pessoa, ao mesmo tempo que indefinidamente disponível em suas imagens: esse é, portanto, por princípio, o detentor de um capital de visibilidade. Enfim, do lado dos detentores de um forte capital de visibilidade, esta última é, ao mesmo tempo, um trunfo e um handicap – pode oferecer tanto as formas mais extremas de gratificação quanto de abandono, mesmo para uma única pessoa. Admirado, observado, o homem célebre é, ao mesmo tempo, como notava Paul Valéry, “um homem vigiado” que “se sente como tal”. Instrumento ímpar de sedução erótica, a celebridade é também fator de vício e de decadência moral, em seguida, social; a ambiguidade é o apanágio da ubiquidade.

Axiologia da visibilidade A dimensão moral não é o domínio da vida social menos afetado pela visibilidade. Mas a visibilidade é tão ambivalente no plano axiológico quanto no plano psicoafetivo; ela ocupa um lugar particular na escala da “publicidade” ou da legitimidade de valores; e, ao colocar de modo crucial a questão do mérito numa sociedade democrática, obriga a relativizar este

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último, ao realocá-lo em meio a um leque mais amplo de justificativas da “grandeza”, no sentido de um estado do ser ao qual foi atribuído um valor positivo. Eis o que faz da visibilidade o princípio de uma grandeza “singular” num duplo sentido: repousando por princípio na excepcionalidade, ela também ocupa um lugar atípico na gramática das justificativas da grandeza e, mais geralmente, no sistema de valores. O sucesso da famosa frase de Daniel Boorstin, repetida por toda parte, sobre a circularidade da celebridade – um homem célebre sendo “uma pessoa conhecida por sua notoriedade” –, é um sintoma de sua consonância com uma exigência axiológica profundamente enraizada em nossas sociedades. É precisamente essa exigência que é colocada em evidência – enfatizada tanto quanto ridicularizada – na célebre frase de Warhol sobre “os quinze minutos de fama”, prometida a qualquer um, já que, se qualquer um pode se tornar famoso, mesmo que por pouco tempo, não seria um quase nada a motivar esse acesso a uma grandeza que, logo em seguida, deixa de sê-lo? Mas a coisa é evidentemente um pouco mais complexa do que sugere essa pirueta de artista, da qual ninguém dúvida, aliás, que não tenha outro valor senão o da bricandeira. Seria preciso uma profunda revolução axiológica para que uma grandeza acordada a qualquer um continue a sê-lo, e para que deixemos de buscar explicações em qualquer diferencial de estatuto entre os seres e, sobretudo, justificativas fundadas sobre valores. A crítica da celebridade ainda tem muitos dias pela frente. Por pouco que se assimile esta questão àquela, mais geral, da exposição aos olhares, é de fato toda a dependência em relação à opinião de outrem que se encontra estigmatizada por uma parte da tradição filosófica. Nessa perspectiva, a visibilidade, não atribuída a um mérito e marcada pela superficialidade das relações inautênticas, aparece como o contrário de um valor: um “antivalor”. No entanto, a perspectiva inversa também existe: diferentes argumentos há para fazer a apologia da exposição ao olhar de outrem, colocando em evidência a visibilidade como uma necessidade humana fundamental. Simetricamente, é a invisibilidade que aparece nessa perspectiva como um antivalor, uma infração à ética, já que lhe seria prejudicial. Em resumo, a visibilidade é axiologicamente ambivalente: ela oscila entre direito moral e privilégio indevido, e não somente para os pensadores, mas também para as pessoas comuns. Os discursos inflamados contra

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a “peoplelização” são numerosos, mas não impedem que milhões de leitores comprem, a cada semana, as revistas que dela fizeram seu ganha pão. Os próprios fãs oscilam entre admiração e inveja, devoção e ressentimento, desolação e júbilo quando da queda de seu ídolo. A querela do iconoclasmo opunha aqueles que aceitam ou mesmo veneram a imagem do ídolo – pois seria uma mediação positiva que daria acesso ao divino – e aqueles que recusam ou mesmo destroem tal imagem, na medida em que seria uma mediação negativa, ocultando a presença do divino. Por trás da contradição entre uma visibilidade aceita ou mesmo desejada e uma visibilidade rejeitada ou mesmo deprezada perfila-se uma mesma lógica, centrada sobre o papel ambíguo atribuído à mediação, quer se veja o que se aproxima, quer, ao contrário, o que separa do objeto de admiração de amor ou de observação. A ambivalência da mediação surge assim como homóloga da própria ambivalência da visibilidade, ao mesmo tempo denegrida por sua falta de autenticidade (o “espetáculo”) e louvada por sua capacidade em revelar, em tornar público o segredo, em dizer tudo (Loft story). Em resumo, não é a visibilidade enquanto tal que é inautêntica, e portanto, má, mas antes, sua mediação pela mediatização. A visibilidade possui a particularidade de ser uma qualidade ao mesmo tempo eminentemente pública – já que não existe senão pela exposição de um ser no espaço público mediatizado – e um valor – já que o é – essencialmente privado. O vínculo às estrelas tende a ser mais experimentado e praticado do que reivindicado. Desse ponto de vista, a visibilidade é muito próxima da beleza, a qual também constitui um valor que tende muito mais ao polo “privado” do que ao “público”. Encontramos, por seu lugar homólogo na escala entre valores públicos e privados, a proximidade entre visibilidade e beleza. Aliás, a visibilidade é também um valor que se acorda com a feminilidade não somente por permitir às mulheres o acesso a posições eminentes, mas também devido porque esse tipo de admiração pelas estrelas, que se desdobra no modo positivo do amor e do reconhecimento, é tradicionalmente mais familiar à cultura popular e, em particular, às mulheres. Há, na herança religiosa da cultura ocidental, uma dualidade marcada entre dois princípios que permitem construir uma axiologia da justa retribuição: o mérito, que privilegia a tradição axiológica e política

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própria ao regime democrático, e a graça, que privilegia certa tradição religiosa. Se o primeiro é, simultaneamente, negado pelas atuais formas de prestígio mediático e sempre reafirmado por suas condenações, não restaria a segunda para dar consistência moral à grandeza das pessoas célebres? Porque a graça, a verdadeira graça reconhecida pelas pessoas simples – aqueles que não se preocupam nem com racionalizações nem com justificativas e que preferem a admiração à crítica –, não existe senão para emanar de uma instância superior que não deriva da ação humana, seja ela divina, para os crentes; astrológica, para os crédulos; ou aletória, para aqueles que preferem invocar o acaso ou a sorte. A seus olhos, a excelência não tem por que ser merecida ou discutida; ela deve ser celebrada, venerada, adorada, ou de qualquer modo reconhecida, num movimento coletivo de admiração que une uma comunidade diante da singularidade de um ser fora do comum. Que a grandeza possa ser dada a alguns e não a outros, isso não choca nem ofende o sentido de justiça de seus membros, mas satisfaz a sua necessidade de admirar, todos juntos, sem reserva, com fervor e volúpia. E falar “deles” não significa dividir a sociedade em duas categorias – os letrados e os simples, os racionais e os irracionais –, mas designar duas polaridades que nos habitam a todos nós e nas quais temos consciência de investir, mesmo se uma ou outra for mais familiar a alguns entre nós que a outros. A graça é portanto o modo de acesso à grandeza das pessoas célebres aos olhos daqueles que, antes de mais nada, têm prazer em reconhecer, em todos os sentidos do termo (identificar e confirmar), mais do que em justificar. Isso quer dizer que a crítica dos letrados encontra um alvo sonhado: o “mundo do renome” para retomar a terminologia de Boltanski e Thévenot é, na cultura ocidental atual, particularmente vulnerável à crítica. A visibilidade, com os fenômenos extremos que gera, não pode senão exarcebar essa desconfiança em relação ao que não cessa de ser estigmatizado como vulgaridade, publicidade, inautenticidade, mercantilização, alienação e irracionalidade. A filosofia, o direito, a moral, a política e a preocupação com as distâncias hierárquicas conjugam-se, portanto, para opor, a um consumo da celebridade que não cessa de se desenvolver, as barreiras de uma condenação por parte do mundo letrado de práticas percebidas como essencialmente populares, iconófilas e idólatras. Assim, vemos novamente em cena – a

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propósito de uma forma de relação com os ídolos modernizada pelos meios técnicos de fabricação de ícones – a tensão milenar que habitava, desde a baixa Antiguidade, o culto dos santos. O que mudou na relação com os “grandes singulares”, entre os primeiros tempos do Cristianismo e nossa entrada na era mediática, é que, como explicava Peter Brown, “essas figuras protetoras são agora seres humanos”.

Um fato social total A visibilidade é tipicamente o que Marcel Mauss chamava de “fato social total”, a propósito do dom. Ela toca todos os domínios da vida coletiva e, portanto, só pode ser plenamente apreendida se levarmos em conta essa globalidade. Eis por que foi preciso percorrer passo a passo a história das técnicas, as representações mentais, a hierarquia, as religiões, a política, o esporte, o jornalismo, a arte, as profissões, a economia, o direito, a psicologia, a moral etc. Eis por que também tivemos de nos apoiar sobre toda uma gama de disciplinas universitárias que se interessaram pelo fenômeno: filosofia, história, comunicação, direito, economia, psicologia, antropologia, politologia, sociologia – e, no interior desta última, especializações tão diferentes quanto a sociologia das profissões, a sociologia da arte, a sociologia das mídias, a sociologia das religiões, a sociologia dos valores, a sociopsicologia, o interacionismo e mesmo a sociologia geral. Eis por que enfim não pudemos nos limitar à nossa era geográfica inicial – à França –, mas tivemos de atravessar e reatravessar as fronteiras e o Oceano Atlântico para ver como se desdobra esse fenômeno entre o antigo e o novo continente. Tivemos de nos deslocar mentalmente de um meio social a outro; utilizar os recursos do mundo letrado para compreender o mundo popular, mas também utilizar essa compreensão para nos distanciarmos da visão própria ao mundo letrado, com seus preconceitos e ângulos mortos. A cultura da visibilidade, ainda que impregne profundamente os meios populares, não poupa os meios mais favorecidos e, em particular, aqueles que detêm os meios para pensá-la – os universitários –, mesmo que seus valores os incitem a denegri-la. O leitor terá compreendido, portanto, que

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o “momento axiológico” (o desejo de defender seus valores) não deve entravar o “momento epistêmico” (o desejo de compreender, descrever, explicar); um não é excludente ao outro, à condição de não os praticar ao mesmo tempo, no mesmo contexto. Se o fenômeno da visibilidade na era mediática é tão novo quanto as técnicas que o tornaram possível, a economia hierárquica, emocional e axiológica na qual ele se inscreve – ao mesmo tempo que a renovo – é muito antiga. Para terminar, é na longa duração, portanto, que é preciso considerá-lo substituto de práticas profundamente enraizadas em nossa cultura, graças, particularmente, às formas religiosas que assumiram durante muito tempo. No Antigo Regime, reinava o elitismo aristocrático, fundado sobre uma excelência sem singularidade – já que devida ao pertencimento familiar –, mas com uma “particularidade” que remetia, justamente, à “partícula” aristocrática: a de uma excelência coletiva sustentada por um relato familiar e resumida num nome. Após a Revolução Francesa, instalou-se um elitismo burguês, no qual a excelência rimava com mérito, a conformidade às convenções e o respeito do standard do dinheiro. Muito rapidamente, a partir de meados do século XIX, ao elitismo burguês acrecentou-se o elitismo artístico, no qual, pela primeira vez, a excelência pôde repousar sobre a singularidade – aquela do talento e da originalidade, mas também da marginalidade social. Por fim, o elitismo mediático surgido no século XX colocou em primeiro plano a singularidade, mas uma singularidade ainda mais dissociada da excelência, uma vez que repousa unicamente sobre a visibilidade. Da excelência sem singularidade à singularidade sem excelência – assim oscilam as concepções da grandiosidade e, com elas, a economia das relações entre as comunidades e as singularidades em torno das quais elas se ligam, entre a multidão e o ser fora do comum, engrandecido por suas façanhas, seus sofrimentos, sua inteligência, ou pelo amor coletivo que inspira.

Luiz Fernando Dias Duarte: das Redes do Suor às “artes ambientais” 1 Naara Luna e Patrícia Reinheimer (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Luiz Fernando Dias Duarte é graduado em Direito pela UERJ, mestre e doutor em antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional (PPGAS-UFRJ), onde é professor titular. O autor se destaca entre os antropólogos brasileiros por sua atuação na área de Antropologia das Sociedades Complexas com enfoque na construção social da pessoa,2 refletindo sobre os temas: pessoa, identidade, doença, família, religião, natureza e modernidade. O tema da individualização atravessa toda a sua obra. É possível perceber em seu trabalho uma longa linha de estudos dos saberes sobre o sujeito, em particular na linha da psicologização, compreendidos no quadro da Antropologia da Saúde e da Doença. Mais recentemente, em sua abordagem da cultura ocidental moderna, ele tem articulado o problema investigativo da pessoa com os objetos família e religião, além de analisar os elementos instituintes da cosmologia ocidental moderna, com ênfase no tema da natureza. Duarte desenvolveu trabalho de campo com pescadores que resultou na dissertação de mestrado As Redes do Suor: a reprodução social dos trabalhadores da produção de pescado em Jurujuba. No doutorado, com a tese Da vida nervosa, pessoa e modernidade entre as classes trabalhadoras urbanas, desenvolveu seu trabalho sobre a dimensão do “nervoso” como um nódulo ideológico estratégico para a compreensão das formas culturais específicas em que se constituem as classes populares em relação à classe dominante, com posição diferencial face ao modelo da Pessoa individualizada moderna. Essa análise inspirada em Dumont3 marcou o percurso de seu trabalho. 39

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O investimento inicial na pesquisa entre as classes trabalhadoras voltou-se inicialmente para a construção de sua identidade, mas se abriu para o atendimento em saúde psicológica desses grupos. No quadro dos saberes sobre o que a cultura ocidental moderna designa como saúde, doença e medicina4 – o que inclui “doença mental” e as terapêuticas psicológicas e biopsicológicas – se insere sua produção nos anos seguintes. Um dos exemplos de seu interesse na percepção das classes populares sobre a medicina é o artigo “A medicina e o médico na boca do povo”.5 O investimento no estudo dos “nervos” iniciado no doutorado o direcionou à pesquisa das relações entre saberes psicológicos/psicanalíticos e as ciências sociais: os saberes psicológicos se tornaram para o autor importante material para a análise da construção social da pessoa. A conformação da pessoa na cultura ocidental moderna está relacio-

nada a uma configuração de valores que tem sido chamada de individualismo: a laicização e universalização do conhecimento, a construção de instituições políticas pautadas pelo ideário da igualdade e da liberdade e a própria singularização e interiorização dos sujeitos. […]

Esses valores estavam envolvidos no processo de institucionalização da psicologia, da psiquiatria e da psicanálise.6

No esforço de análise da produção de teorias voltadas para a compreensão da vida “interior” dos sujeitos humanos,7 o autor desenvolveu “uma história social das perturbações no Ocidente e uma interpretação da localização cultural da psicanálise (em suas dimensões práticas; clínicas, pelo menos)”.8 Vários artigos seus, do meado da década de 1980 até publicações recentes, são dedicados a esses temas. Além dos saberes psicológicos, retomando questões que haviam sido levantadas em publicações anteriores (Três ensaios sobre a construção da pessoa, de 1983), outros eixos foram agregados: a moral, na incorporação do debate feito por Luc Boltanski em La Soufrance à distance; o eixo da religião na concepção cristã de pessoa; o individualismo; e noções de indivíduo e pessoa na saúde e na doença. Essa tendência se ampliou na nova linha de estudos sobre família e religião, que começou a ser publicada a partir de 2005 com diversos livros, capítulos e artigos.9 Ali o autor articulou a

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relação entre pessoa, família e religiosidade, acrescentando o debate sobre moralidade e sexualidade. Sua grande contribuição nesses estudos foi seu trabalho analítico com o conceito de ethos, além da relação tensa de todos esses valores com a modernidade. Segundo essa hipótese, os traços cosmológicos de subjetivismo e naturalismo sustentariam “um ethos privado mais generalizado nos meios populares, preliminar às eventuais adesões religiosas. Dessa forma, não são hoje propriamente os preceitos religiosos que influenciam as dinâmicas ideológicas gerais; suas diferentes alternativas confessionais apenas conformam um mercado de possibilidades diacríticas com base em marcos cosmológicos que os ultrapassam”.10 Em seu investimento no campo da religião, destaca-se a organização do número sobre comunidade na revista Religião & Sociedade,11 com objetivo de analisar as modalidades de utilização da noção de comunidade e seus entrelaçamentos políticos, religiosos, filosóficos e sociais. Uma das principais teses de A vida nervosa é a descrição da configuração dos nervos como parte do complexo físico-moral anterior ao paradigma biomédico de construção do corpo e da pessoa. Além dos saberes psicológicos como material de investigação, o trabalho de Duarte propõe a análise de aspectos que remetem à dimensão física, incorporada da pessoa, como dor e a perturbação dos nervos. Esses aspectos serão desenvolvidos em sua reflexão sobre natureza e modernidade. Duarte também aborda os temas do patrimônio cultural e natural, questões associadas pelo próprio autor autor, sendo o primeiro deste uma investigação sobre cemitério de escravos em bairro operário,12 em artigos sobre museus e patrimônio,13 e em sua atividade de relator num processo de registro de patrimônio imaterial pelo Iphan sobre o ofício de paneleiras de Goiabeiras.14 Duarte considera o estatuto do natural nas representações de pessoa fundamental para compreender os nervos, a psicologização, a família, a religião na área do ethos privado e para compreender temas morais controversos como aborto, contracepção, reprodução artificial, eutanásia, homossexualidade.15 O tema da natureza é abordado na discussão sobre a cosmologia nativa do Ocidente, a explorar a “hipótese de uma ‘tensão instituinte’ entre o iluminismo e o romantismo na formação do pensamento ocidental moderno”.16

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A proposta de arcabouço interpretativo para essa questão se apresenta no artigo programático “A pulsão romântica e as Ciências Humanas no Ocidente”.17 Outro registro da natureza, complementar ao da ciência, refere-se à área da sensibilidade, razões e emoções, que o levaram a concentrar “investimentos no processo histórico de construção dos ambientes ‘naturais’ da modernidade (jardins, parques, reservas etc.)”.18 Assim, ele analisou a natureza como símbolo da particularidade das nações, em contraposição à abordagem universalista da ciência. A abordagem da natureza está presente nos artigos sobre paisagismo em Burle Marx 19 e aparece novamente no artigo publicado no presente livro com referência a artes ambientais e a paisagem. Nesse último, “Artes ambientais e sociedade: a paisagem como projeto no Ocidente”, o autor desenvolveu a ideia de dispositivo da sensibilidade como um “olhar sentimental de visibilização interior sobre os mundos projetados – capaz de acolher e reverberar a dinâmica das emoções que se considera desencadeadas no íntimo de cada sujeito”. Com base nessa ideia, a dimensão da sensibilidade humana é tomada como uma mediação entre os mundos externo e interno que pode ser apreendida de um tipo específico de arte, que o autor denomina “artes ambientais”. Duarte argumenta que a modernidade ocidental depende de uma organização do mundo ambiente marcada pela ideia de paisagem, tanto no sentido de representação sensorial de horizontes de significação discretos observados à distância, quanto experimentados de modo sentimental. Isso ensejou a proliferação de “artes ambientais”, das quais se destacam a jardinagem e o paisagismo do Renascimento ao Romantismo. No Ocidente, desenvolveu-se uma modalidade de relação com o ambiente em que o distanciamento entre observador e campo de observação se tornou uma estratégia básica de construção de sentido no mundo, estando o fenômeno da perspectivação intimamente ligado ao novo estatuto de verdade do testemunho dos sentidos corporais no contato com a empiria produtora das sensações. A disposição em olhar o mundo à distância seria acompanhada de uma enorme ênfase na sensorialidade: a sensibilidade nervosa periférica e a sensibilidade afetiva íntima. O processo de estetização do mundo seria então inseparável da observação em “regime de paisagem” e é assim que a paisagem se impõe aos poucos como recurso expressivo no plano das ciências descritivas e interpretativas e no plano da estética da vida e do cotidiano.

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O autor mostra como a história da arte caminhou no mesmo passo que a botânica e a literatura, ao ensejar racionalizações e crescentes exegeses da verdade interior, mas também no cruzamento entre a produção industrial e a arte. Duarte considera a generalização do “olhar turista” inseparável desses movimentos, ao amplificar o olhar distanciado. Nesse sentido, a pintura de paisagem seria seguida pela fotografia como consolidação do olhar focalizado à procura do enquadramento da “paisagem” ou do “retrato”. Em sua interpretação, teria sido assim que o jardim fechado, hegemônico no Renascimento, cedeu lugar ao mundo como jardim. Para o autor, o mesmo desejo de intensificação interior combinado com a maximização da expressão espacial veio a se apresentar nas artes contemporâneas. Nestas, são prestigiosas as configurações chamadas de instalações: uma fusão de artes ambientais e artes representacionais, associadas a pressões popularizantes intrínsecas às formas mais recentes das vanguardas modernas. Tema que vem perpassando suas análises em sala de aula, a dimensão da criação artística até pouco tempo atrás ainda não tinha sido objeto de uma reflexão sistemática que resultasse em publicações. O investimento mais aprofundado sobre o tema se iniciou em 2009, quando elaborou uma palestra que transformou no primeiro artigo sobre Burle Marx. O artigo aqui publicado é um desdobramento desse tema, no qual o autor explora a relação entre “natureza” e “sentidos” na cultura ocidental moderna, investindo sobre a possibilidade de perceber a organização das sensibilidades com base nas expressões simbólicas e artísticas ao longo da história no Ocidente. Esses desenvolvimentos indicam o possível início de uma nova linha de investigação para o autor, na qual as manifestações artísticas se apresentam como material empírico para a formulação de reflexões acerca da sensibilidade, da interioridade, da natureza e da modernidade. Ao mesmo tempo, vemos como as categorias “paisagem” (“natureza”, jardins, “artes ambientais”) e “retrato” (“construção social da pessoa”, identidade) são, além de designações que compõem o quadro de alternativas da relação entre imagem e suporte na impressão de imagens digitais, duas formas de representação do pensamento ocidental moderno e duas possibilidades de enquadramento dos temas que compõem o quadro de interesses do autor.

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Notas 1

O esboço dessa trajetória de produção científica foi construído principalmente pelo exame de duas fontes: o currículo Lattes do pesquisador – com prioridade para publicações de artigos em periódicos, livros e capítulos – e o memorial requerido para o concurso de professor titular de Antropologia Social na UFRJ, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional, gentilmente cedido pelo próprio autor.

2

O autor define construção social da pessoa: “Essa locução nunca designou um segmento estabilizado da disciplina antropológica, embora evoque claramente a força seminal do artigo de Marcel Mauss sobre a ‘noção de pessoa’, os desenvolvimentos da antropologia social inglesa sobre a distinção entre ‘pessoa’ e ‘indivíduo’, e alguns desenvolvimentos da escola de ‘cultura e personalidade’ e do interacionismo simbólico (a propósito do self).” (Duarte, 2012, memorial, p. 7).

3 4 5 6 7 8 9

Dumont, 1997.

Duarte; Leal, 1998. Duarte, 2000.

Duarte; Russo; Venâncio, 2005, p. 7. Duarte; Russo; Venâncio, 2005, p. 8. Duarte, 2012, memorial, p. 28.

Cf. Duarte; Heilborn; Peixoto; Barros, 2005; Duarte; Heilborn; Peixoto; Barros, 2006.

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Duarte, 2012, memorial, p. 22.

Religião & Sociedade, v. 30, n. 2, 2010. Duarte, 1983a.

Duarte; Aranha Filho, 2003. Duarte, 2006.

Duarte, 2012, memorial, p. 24. Duarte, 2012, memorial, p. 26. Duarte, 2004.

Duarte, 2012, memorial, p. 25.

Duarte, 2011b. Uma primeira versão resumida dessa mesma reflexão acerca das “artes ambientais” foi publicada, em português, em Ciências Humanas e Sociais em Revista (Duarte, 2009) e, em sua versão integral em inglês, em Vibrant (Duarte, 2011b).

Referências bibliográficas DUARTE, Luiz Fernando Dias. Artes ambientais e sociedade: a paisagem como projeto no Ocidente. 2013. No presente volume.

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__________. Memorial apresentado como parte dos requisitos para o Concurso Público de Provas e Títulos para provimento de uma vaga de Professor-Titular de Antropologia Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Departamento de Antropologia, Museu Nacional), conforme o disposto no edital UFRJ n. 74, de 29 de maio de 2012, publicado no Diário Oficial da União n. 107, em 4 de junho de 2012. __________. Uma Natureza Nacional: entre a universalização científica e a particularização simbólica das nações. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012 (Entregue para publicação). __________. Damascus in Dahlem: art and nature in Burle Marx tropical landscape design. Vibrant (Florianópolis), v. 8, p. 1, 2011b. __________; BIRMAN, Patrícia. Introdução, Religião & Sociedade, v. 30, n. 2, 2010. __________. Roberto Burle Marx e sua conversão alemã à estética paisagista tropical. Ciências Humanas e Sociais em Revista, v. 31, p. 1, 2009. __________. Parecer no Processo de Registro de Patrimônio Imaterial Ofício das Paneleiras de Goiabeiras. In: IPHAN. (Org.). Ofício das Paneleiras de Goiabeiras. Brasília: Iphan/MinC, 2006. __________; HEILBORN, M. L.; BARROS, M. M. L.; PEIXOTO, C. (Orgs.). Família e religião. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006. __________; RUSSO, Jane; VENÂNCIO, Ana Teresa A. Apresentação. In: DUARTE, Luiz Fernando Dias; RUSSO, Jane; VENÂNCIO, Ana Teresa A. (orgs.). Psicologização no Brasil: atores e autores. Rio de Janeiro: Contracapa, 2005. pp. 7-14. __________; HEILBORN, M. L.; BARROS, M. M. L.; PEIXOTO, C. (Orgs.). Sexualidade, família e ethos religioso. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. __________. A pulsão romântica e as ciências humanas no Ocidente. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 55, pp. 5-18, jun. 2004. __________; ARANHA FILHO, J. M.. Um museu de história natural na encruzilhada: a fundamentação conceitual para uma nova exposição no Museu Nacional. In: BITTENCOURT, José Neves; BENCHETRIT, Sarah Fassa; TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. (Org.). História representada: o dilema dos museus. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2003, v. ?, pp. 197-218.

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__________. A medicina e o médico na boca do povo. Anthropológicas, Recife, v. 9, pp. 45-65, 2000. __________. As redes do suor. A reprodução social dos trabalhadores da pesca em Jurujuba. Rio de Janeiro: UFF, 1999. __________; LEAL, O. F.. Investigação antropológica sobre Doença, Sofrimento e Perturbação: uma Introdução. In: DUARTE, L. F. D.; LEAL, O. F. (orgs.). Doença, sofrimento e perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. pp. 9-27. __________. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Brasília: CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, 1986. __________. De Bairros Operários sobre Cemitérios de Escravos. Um estudo de cosntrução social da identidade. Comunicações do PPGAS/MN, Rio de Janeiro, v. 7, pp. 1-15, 1983a. __________. Três Ensaios sobre Pessoa e Modernidade. Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro, v. 41, 1983b. DUMONT, Louis. Homo hierarchicus. O sistema de castas e suas implicações. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1997. MAUSS, Marcel.Uma Categoria do Espírito Humano: A Noção de Pessoa, a Noção do ‘Eu’. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU; Edusp, 1974. v. 1, pp. 207-39. SIMMEL, Georg. On individuality and social forms: selected writings. Chicago: The University of Chicago Press, 1971.

Artes ambientais e sociedade: paisagem como projeto no Ocidente1 Luiz Fernando Dias Duarte (PPGAS-MN-UFRJ)

“Se tens o teu jardim ao lado da tua biblioteca, o que mais podes querer da vida” (Cícero)

“Peu à peu, en effet, se produit une double distanciation: et par

rapport à l’intériorité des émotions, et par rapport au monde extérieur. Ainsi, de plus en plus, les hommes “regardent la ‘nature’ comme ‘paysage’, comme ‘monde des objets’, comme ‘objet de la connaissance’” (Heinich; citando Elias)2

A intensa preocupação contemporânea com a preservação do “meio ambiente” suscita um dos mais fundamentais movimentos sociais em curso, uma vez que se dirige à sobrevivência da espécie humana como um todo sobre a face deste planeta, o único em que sua vida pode se desenvolver – pelo menos por enquanto. Não apenas isso: visa também à sobrevivência do fabuloso tesouro das formas de vida que hoje povoam a Terra, companheiras de nossa própria e tão improvável e frágil evolução. Os argumentos para esse empreendimento são, em primeiro lugar, práticos: a sobrevivência narcisista dessa espécie que ameaça a si mesma; a sobrevivência do cenário vital que a viu emergir e que guarda, por assim dizer, algo de sua “humanidade”. Contudo, o ambiente não é apenas um “meio” neutro e pragmático; é um “mundo ambiente”, cheio de conotações simbólicas, de sentidos vitais, frequentemente experimentados sob a forma do que chamamos banalmente de “paisagens”. 47

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Embora toda a experiência humana (na verdade, de todo ser vivo!) só faça sentido imersa no contexto em que se institui, e este seja participante ativo da forma e sentido geral de sua vida, nem todas as culturas organizam a percepção desse mundo envolvente como uma “paisagem”.3 O que chamo aqui de “artes ambientais” – uma locução inabitual que pode englobar a arquitetura, o urbanismo, o paisagismo, a jardinística, a decoração de interiores, a mobiliária, a cenografia, as artes gráficas, o design, a moda, a joalheria, a cosmética, a culinária – corresponde justamente ao conjunto de atividades de cunho estético que se desenvolvem em nossa cultura informadas pela estratégia conceitual e sensorial da colocação em “paisagem”. Diferentemente de suas irmãs mais reconhecidas – as grandes artes: plásticas, musicais e literárias –, caracterizam-se estas outras pela entranhada dimensão prática, vivencial; ao alcance da mão, por assim dizer. Seus produtos não se beneficiam completamente – a não ser na arquitetura e em alguns outros pequenos segmentos e condições – da sacralidade romântica dos objetos singulares de devoção. O fato de conterem “valor de uso” – enquanto “artes aplicadas”, “artes decorativas”, Angewandte Künste – ameaça-as com uma aura de impermanência e uma suspeita de banalidade – em eventual conflito com as intenções estetizantes de origem. O desenvolvimento dessas artes acompanha de maneira muito imediata os movimentos mais amplos de mudança social e reordenação de valores, envolvidos na história da racionalização do mundo público e da sentimentalização do mundo privado em curso no Ocidente desde o século XVII. Seus desenvolvimentos são solidários, por outra parte, da instituição da grande arte ocidental moderna, igualmente comprometida com os caminhos maiores da civilização, mas detentora de racionalizações formais muito mais elaboradas. Basta evocar os fios complexos que vieram amarrando nestes últimos séculos a transformação da pintura de gênero – nos temas históricos, na paisagem e no retrato – às transformações da heroicidade política, das formas do paisagismo e da concepção da pessoa individualizada. Norbert Elias descreveu bem, em seu estudo clássico sobre a “sociedade de corte” europeia do século XVII,4 o processo pelo qual se desenvolveu na cultura ocidental uma modalidade de relação com o ambiente em

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que o distanciamento entre observador e campo de observação se tornou uma estratégia básica de construção do sentido do mundo. Esse campo de observação podia ser o mundo exterior, sob a forma das paisagens visuais naturais, da vista das alamedas de um jardim barroco ou da perspectiva embutida nas recém-inventadas pinturas “de paisagem”. Mas podia ser também o mundo interior, os “horizontes interiores” a que se refere Elias, por meio da prática dos exames da consciência ética e da exploração dos tesouros da sensibilidade5. O processo de distanciamento, de colocação do mundo em perspectiva, fazia parte da grande transformação dos valores característica da modernidade, de suspensão da crença numa razão divina e da consequente inquietação sobre o estatuto da razão humana. Luc Boltanski também contribuiu certeiramente para a compreensão do fenômeno da perspectivação, no registro da produção de um olhar distanciado em relação aos próprios humanos, na instituição da piedade moderna, oposta à compaixão cristã tradicional. Em seu clássico trabalho sobre “o sofrimento à distância” 6 revelou-nos a solidariedade entre a distância que passa a se interpor necessariamente entre o sofredor e os que se dão conta de seu sofrimento, por um lado, e a constituição de um espaço público “generalizado”, ou universalizado, característico da ordem política moderna, por outro7. Revela-nos ao mesmo tempo a ação de outros mecanismos sociais de elaboração das novas relações societárias pelo distanciamento, como a plateia dos teatros, o público dos cafés e a instituição dos jornais modernos, “observadores” do mundo por meio de seus reporters/ repórteres. Tratava-se em todos esses casos da adoção de “uma observação sem perspectiva particular” .8 Esses desenvolvimentos tinham uma íntima relação com o novo estatuto de verdade do testemunho dos sentidos corporais no contato com a empiria produtora das sensações. Uma enorme ênfase na sensorialidade acompanhava assim a disposição em olhar o mundo à distância: entre a sensibilidade nervosa periférica e a sensibilidade afetiva íntima distendiam-se os novos olhos, ouvidos e línguas da sociabilidade moderna. Não podemos dissociar desse processo a generalização do olhar científico sobre o universo, pela via de telescópios ou microscópios certamente, mas sobretudo da dúvida sobre a evidência do senso comum, em busca da verdade oculta sob a aparência banal das coisas.9 Embora Boltanski

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houvesse desprezado explicitamente essa dimensão em sua análise, foi ele mesmo quem aproximou a teoria das paixões de Adam Smith da revolução newtoniana – com seu pano de fundo galileano. Também ocorre em sua análise a correlação desse processo com a “estetização” do mundo, inseparável da observação em regime de paisagem. O estranhamento intrínseco à tradição artística ocidental moderna, que acabaria por redundar na “estética do mal”, não é senão uma colocação à distância da experiência sensível imediata, doravante exposta a traduções, interpretações, reduções, essenciais à boa e plena incorporação da qualidade ‘“cultivada” dos processos vitais. A disposição para adoção de uma perspectiva universalizada não é contraditória com a interiorização concomitante dos sujeitos. O processo civilizatório, com sua disciplinarização e seu autocontrole, implica um investimento na vida interior como instância crucial da vida pública. Esse “cuidado de si” é a garantia de uma medida comum que amarre os cidadãos na nova commonwealth e que faculte aos cultivados um juízo estético compartilhado e generalizado – ao mesmo tempo uma “opinião pública” e uma taste culture. Essa intersecção foi postulada pelos predecessores e contemporâneos da Naturphilosophie também no tocante ao mundo físico ambiente. Já Goethe, na Doutrina das cores, buscava articular o conhecimento do mundo com a sensibilidade humana – em oposição ao “materialismo” da física newtoniana. O processo atingiu seu ápice com as publicações de Alexandre Von Humboldt sobre sua viagem às Américas. O tema das “vistas” apareceu no título mesmo de sua primeira obra, as Vues des Cordillères, e seria retomado nas Ansichten der Natur (vistas, visões, pontos de vista, da Natureza). Para Humboldt, a geografia a construir deveria conter uma percepção integrada do mundo ambiente, do ponto de vista de sua estrutura física, das condições de manifestação da vida e da sua percepção sensorial, humana. Essa perspectiva se completaria com a publicação do monumental Cosmos [1845-62], em que uma versão particularmente serena do monismo naturphilosophisch seria uma das inspirações para a constituição das “ciências humanas” na passagem do século XIX para o XX.10 Essa percepção integrada, holista, bem ao gosto da filosofia romântica, entranhou-se no fio de ideias que redundaria na fenomenologia,

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particularmente pelas mãos de Wilhelm Wundt e de Wilhelm Dilthey. Um discípulo deste último, Edmund Husserl, cunharia uma série de expressões associáveis ao que estou chamando aqui de “mundos ambientes”, entre as quais avulta a de Umwelt (mais linearmente, o mundo circundante),11 retomada posteriormente pelo etólogo Jakob Von Uexküll e, sucessivamente, pelo antropólogo Tim Ingold. A categoria expressa no alemão corrente a moderna ideia de um “meio ambiente”, com as implicações decorrentes da constituição de uma ciência da ecologia e das lutas pela preservação ambiental. Se a paisagem se impõe progressivamente como recurso expressivo no plano das ciências descritivas e interpretativas, outro não é seu destino no plano da estética da vida e do cotidiano, desde meados do século XVIII. Solidariamente à afirmação de uma paisagem interior, de um mundo ambiente íntimo, onde razão e emoção se unem à imaginação para propiciar o alto valor da “criação”, desenvolve-se um intenso projeto de transformação e refinamento das condições ambientais mais imediatamente próximas da vida cotidiana humana. Como modelo reduzido da oposição entre mundo público e mundo privado, desdobram-se os investimentos sobre os cenários externo e interno das próprias residências das classes cultivadas. No exterior, assiste-se à grande transformação representada pela invenção dos jardins à inglesa (landscape gardens), como parte do enorme investimento que mereceu a construção de jardins na Europa, já a partir do século XVII.12 Embora já o Renascimento, concomitantemente com o gosto pela perspectiva linear, tivesse investido fortemente naquilo que hoje chamamos justamente de “paisagismo”, ou seja, de tratamento do mundo ambiente como uma paisagem, o apogeu desse gosto se deu com a estética barroca, seja no formato inicial italiano, seja no formato tardio francês – comumente chamado de “clássico”, como no exemplo notório do palácio de Versalhes. O jardim de Versalhes, esse lugar por excelência da lógica de corte, fora organizado como uma gigantesca máquina do olhar sensível, com alternâncias de ritmo e de intensidade que as fontes monumentais sublinhavam mais dramaticamente ainda do que o tratamento das plantas e da estatuária. Seu modelo, generalizado na Europa, logo cederia lugar a

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outra lógica da visibilização e do distanciamento: a dos jardins paisagistas, íntima engrenagem do gosto romântico. Esse modelo de jardim, trazido para o Brasil pelo botânico francês Auguste Glaziou13 em meados do século XIX e ainda hoje visível nos sítios cariocas da Quinta da Boa Vista, do Parque da Tijuca e do Campo de Santana, combinava a ênfase no distanciamento das “vistas” com recursos de intimização, em suas grutas, colinas, lagos e bosques discretos. Efetivamente, o jardim paisagista buscava combinar a amplidão dos horizontes públicos (ainda que restrita a alguns happy few) com o recolhimento bucólico propício às rêveries du promeneur solitaire. A intimidade com o mundo vegetal, animada pelos intensos desenvolvimentos da botânica e da floricultura entre os séculos XVII e XVIII,14 permitia uma notável expansão dos recursos de expressão das emoções. As novelas românticas se distendem em espaços naturais ao mesmo tempo vastos e intimistas, caminhadas às montanhas ou às matas, perspectivas sobre o Reno, o Tâmisa ou o Neva, reflexões sobre a homologia entre os estados d’alma e as transformações sazonais dos bosques e dos canteiros. Sublinha-se a relação desses investimentos com o horizonte do protestantismo intimista, sentimental, dos pietistas (como Goethe) aos latitudinários (como Pope). Essa intimização podia ser mais cultivada na elaboração dos interiores domésticos, palacianos e burgueses. Mais uma vez na pioneira Inglaterra, a decoração suntuária, de aparato, começou a ceder espaço ou a se nuançar com as exigências do “conforto”, da produção de um ambiente elaborado ao mesmo tempo para expressar a distinção social e a disposição para um lazer cultivado e intimista.15 O clima do boudoir se estende às zonas semipúblicas das residências, às bibliotecas e aos escritórios, em íntima e escalonada articulação com os exteriores ajardinados: canteiros floridos próximos, gramados de mediação, bosquetes verdes à distância. A utilização de plantas na decoração interior, seja sob a forma das flores cortadas, seja sob a dos vasos plantados, se amplia enormemente, constituindo desde então um mercado florescente ininterrupto.16 Pelo final do século XVIII passou-se a transferir para o interior dos palácios os vasos com árvores grandes que antes circulavam apenas entre as estufas e as alamedas, ao sabor das estações. Logo em seguida, generalizou-se o afastamento dos móveis das paredes, compondo agrupamentos funcionais e estéticos intercalados com plantas

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– abrigadas nos recém-inventados cache-pots e “jardineiras”, por exemplo17. Iniciava-se aí a trajetória da paisagem doméstica ocidental contemporânea, a que se dedica regularmente uma enorme produção imaginária, profissional e amadora, impressa e encenada.18 A decoração de interiores e a jardinística amarram considerações funcionais com uma atividade que podemos chamar de intelectual, no sentido de explorar sistematicamente os quadros conceituais e as implicações históricas dos investimentos nas paisagens envolventes do humano, o que é o próprio processo de estetização – com seus corolários de distinção. A história da arte caminha paripassu com a botânica e com a literatura – ensejando crescentes racionalizações, crescentes exegeses da verdade interior, mas também o cruzamento entre a produção industrial e a arte. A partir da Exposição Universal de 1851, em Londres, em que o imenso Palácio de Cristal abrigava máquinas, obras de arte, jardins e testemunhos das culturas exóticas, enseja-se um intenso investimento nas “artes decorativas”, nos arts & crafts, que obrigarão o ferro a assumir todas as formas clássicas e florais outrora reproduzidas no mármore e no bronze.19 Em todo esse processo, os jardins (e a vegetação) desempenharam um papel crucial, como a grande dobradiça entre os ambientes externos, públicos, e os ambientes internos. Não é conveniente, no entanto, separá-los totalmente dos demais fenômenos do processo de colocação em paisagem. É inseparável dos investimentos jardinísticos, o que colocou sob novo olhar as vistas da natureza. Pode-se sublinhar, como exemplo, a coetaneidade do registro de um dos primeiros “parques naturais” preservados (Yellowstone, EUA, 1872) com a grandiosa realização do Central Park, de Nova York – ambos sob a inspiração do mesmo paisagista, Frederick Olmsted. A ideia já estava bem impressa no imaginário romântico, pictural e literário, mas encontrava em meados do século XIX sua chancela institucional, pública, oficial.20 Também é inseparável desses desenvolvimentos a generalização e a progressiva massificação do “olhar turista”, dos que fazem os tours necessários à visualização das paisagens do mundo, numa amplificação do olhar distanciado analisado por Boltanski: um verdadeiro plaisir à distance. O flâneur de G. Simmel, suscetível de se transformar no tipo blasé, está na base dessa disposição, treinada nas paisagens urbanas, dos passeios públicos, dos

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bulevares, das galerias de arte, dos camarotes da ópera – e logo transposta para essa visitação universal dos portadores dos almanaques Baedecker.21 A pintura de paisagens, o aquarelismo de viagem e a litografia de reproduções artísticas logo seriam seguidas pela fotografia, com uma irreversível consolidação do olhar focalizado na câmera escura à procura do enquadramento da “paisagem” ou do “retrato”.22 Homólogas considerações poderiam ser feitas em relação às grandes artes, sobretudo a música e a literatura, ao longo desse período. As duas caminharam juntas num trajeto de espacialização, de produção de paisagens sonoras e discursivas sempre mais “ambientes”, até cederem, no ritmo das exigências de mudança intrínsecas ao ideal de vanguarda, ao privilégio da “maneira”, da “forma”, característico dos desenvolvimentos do século XX. Já em Mozart, sobretudo nos concertos, a produção de paisagens sonoras se avivara, prenunciando o expressivismo crescente da “música de programa”, com suas associações explícitas a perspectivas naturais ou a estados d’alma. Uma articulação direta foi cultivada no modelo dos Lieder germânicos e certamente também na da ópera – envolvendo nesse caso as artes cênicas. As dimensões técnicas desse longo processo podem tender a parecer mais determinantes do que as culturais, cosmológicas. Devemos considerar, porém, que emergem de disposições preexistentes, a que imprimem evidentemente rumos e intensidades novas e imprevistas. A industrialização, as tecnologias de produção e conservação de imagens, os recursos de transporte ao longo do globo, o próprio crescimento do conhecimento técnico sobre as relações entre a natureza e a ação antrópica são hoje inseparáveis da colocação do mundo em paisagem. Não fica suficientemente claro para a percepção contemporânea como foram cruciais as transformações das sensibilidades e das sensorialidades ocidentais modernas na definição do lugar humano sobre a terra. Pode-se sublinhar as transformações do olhar, da visão, das vistas e panoramas, certamente – já que essa ênfase é nativa, fundamental para todo o processo. Mas há alterações mais “ambientes”, por assim dizer, em que os outros sentidos desempenham seu papel. Os sons, os odores, os sabores, as percepções táteis e cenestésicas compuseram, tanto quanto o olhar, o quadro da hegemonia do jardim, como modelo da relação homem/mundo.23 Pode-se falar, grosso modo, de uma longa transição dos dois conceitos clássicos dos jardins: o hortus

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conclusus e o locus amoenus. O jardim fechado, murado, ainda hegemônico no Renascimento e no primeiro barroco, cedeu progressivamente lugar ao mundo como jardim – ao universo, quiçá, se pensarmos nas celebradas imagens da Terra tomadas do espaço sideral e das extasiantes construções imaginárias da ficção científica.24 Por outro lado, o ideal de amenidade e conforto espraiou-se como corolário de toda paisagem desejada, das mais íntimas – as do pensamento e das emoções – às mais estendidas e abrangentes, passando pelos jardins, pelas cidades, pelos “monumentos naturais” e pelas “unidades de conservação”. Esse estado de satisfação, de plenitude do conatus de cada ente, antropocêntrico e culturocêntrico, pode deslizar inclusive para outras subjetividades, como a dos animais25 ou dos ecosistemas em si mesmos, como emanações localizadas da “vida” ou de Gaia. Um mesmo desejo de intensificação interior combinada com o da maximização da expressão espacial se apresentou vívidamente nas artes contemporâneas. Às antigas artes cênicas juntou-se a pintura – longamente rainha da compactação e focalização visual, concretizada nessas paisagens em modelo reduzido que são os “quadros”, autonomizados das paredes a partir do Renascimento. São particularmente prestigiosas na arte atual as configurações chamadas de “instalações”: uma fusão das artes ambientais com as artes representacionais, que projetam a criação para dimensões excepcionalmente vastas26 e recriam, com novos materiais, ambições totalizantes já presentes no imaginário romântico original. Também a música popular, ou pelo menos suas manifestações mais tingidas pela estetização erudita, buscam hoje criar ambientações vivenciais aproximáveis da experiência da grande ópera tradicional.27 Esses deslizamentos são exemplares da constituição do regime de “mundos ambientes” e de “paisagens envolventes” que nos caracteriza fundamentalmente. O distanciamento não deve ser mais apenas o de um olhar soberano, de visibilização externa, mas o de um olhar sentimental, de visibilização interior sobre os mundos projetados – capaz de acolher e reverberar a dinâmica das emoções que se considera desencadeadas no íntimo de cada sujeito. Chamei esse mecanismo social, em outro texto, de um ‘dispositivo de sensibilidade’, parafraseando Foucault, em busca desse patamar mais abrangente no interior do qual se passou a cultivar a própria então nascente “sexualidade”.28

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Pode-se objetar que já não damos tanta atenção aos jardins quanto os ingleses do século XVIII e que a questão do meio ambiente não tem nada de sentimental. Mas a verdade é que, mesmo em nossas mais pragmáticas lutas por um mundo ambiente sustentável e protegido, pulsa a sensibilidade afetiva da percepção de uma paisagem envolvente. A defesa da mata atlântica ou da Grande Barreira de Corais não é apenas um gesto de autopreservação economicista; não só ela se opõe fundamentalmente a fortes interesses comerciais imediatistas, como contém um cultivado afeto por essas preciosas paisagens de um mundo natural em que vemos espelhados nossos valores mais íntimos de singularidade, diversidade, beleza, liberdade e autonomia. Uma paisagem moral!

Notas 1

O tema, além de me interessar de perto, serviu de homenagem a minha companheira de mesa no “Seminário Manifestações Artísticas e Ciências Sociais: reflexões sobre arte e cultura material – UFRRJ”, a socióloga Nathalie Heinich, uma das mais importantes especialistas da arte contemporânea, discípula de Luc Boltanski e grande divulgadora do pensamento de Norbert Elias – com quem compartilhei em Paris, anos atrás, a observação admirada e a reflexão sensível sobre os jardins e as paisagens de sua terra.

2 3

Heinich, 2001, p. 20; citando Elias, 2001, pp. 273-4.

Ver, sobre a paisagem na cultura ocidental, e.g., Simmel, 1988 [1912]; Cosgrove, 1984; Cauquelin, 1989; Conan, 1991; Descola, 1996; Laird, 1993; Hirsch & O’Hanlon, 1995, e McCall, 1997.

4 5 6 7

Elias, 2001.

Cf. Elias, 1990.

Boltanski, 1993.

“O espaço público supõe a constituição de um observador desprendido, desengajado, sem compromissos prévios e, sobretudo, sem vínculos locais, capaz de pairar sobre as singularidades da sociedade, da mesma maneira com que o geógrafo, o cartógrafo ou o pintor inspirados pelo ideal cartográfico pairam sobre as singularidades da paisagem”, Boltanski, 1993. p. 51 (tradução do autor).

8 9

Boltanski, 1993, p. 44. Cf. Shapin, 2003.

10

“Nature herself is sublimely eloquent. The stars as they sparkle in firmament fill us with delight and ecstasy, and yet they all move in orbit marked out with mathematical precision.” (Humboldt, 1814). Ver sobre Humboldt e paisagem, Recht, 2006 e Ricotta, 2003.

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Seguindo um uso mais explícito da expressão por Heidegger em seu O ser e o tempo. “In the Ideas II, Husserl introduces the Umwelt as the realm populated by all kinds of things that present themselves to us in our everyday experience not just in terms of their perceptible properties, but also in terms of their values and uses to us. It is the world as it shows itself not in the naturalistic attitude (for instance, that of modern natural science) but in what he calls the ‘personalistic’ attitude in which we actually conduct our daily lives.” (Nenon, 2012).

12 13

Cf. Buttlar, 1993.

Discípulo de Jean-Charles Alphand, o paisagista associado ao Barão Haussmann na renovação urbana de Paris e de Bordéus.

14

Lembremo-nos de que o mesmo Rousseau produziu um manual de botânica amadora, a partir de suas herborizações na terra genebrina.

15 16

Cf. DeJean, 2012.

Blacker, 2000. O primeiro serviço de venda, aluguel e manutenção de plantas em vasos foi instalado em Londres em 1816; o primeiro florista comercial foi Jules Lachaume, instalado em Paris, na Chaussée d’Antin, em 1840.

17

Não há como explorar aqui a concomitante transposição também de alguns animais domésticos, como cães, gatos e passarinhos em gaiolas, para o interior das casas, compondo desde então uma dimensão fundamental da ambiência das residências modernas.

18

A profissionalização impõe hoje uma distinção entre a “decoração de interiores” e o “design de interiores” (interiorismo, em espanhol), associado à arquitetura e às variantes mais altas da formalização estetizante. No Brasil contemporâneo, repetem-se com grande sucesso em todas as capitais, copiando uma tendência internacional, exposições integradas, de caráter espetacular (as “Casas Cor”, por exemplo), em que os interesses publicitários e as paixões estéticas se dão o braço.

19

Os famosos produtos para jardins em ferro fundido do Val-d’Osne se espalharam pelo mundo, com suas crateras, seus chafarizes e suas ‘fontaines Wallace’ – de que o Rio de Janeiro tem uma importante coleção, em parte pela influência de Glaziou (cf. Robert-Dehault et al., 2000).

20 Outro exemplo é o da criação da Floresta de Fontainebleau, em 1861, como “reserva artística”. Para tanto havia sido fundamental a publicação, por Claude Denecourt, em 1839, de um guia público de visitação e passeio pelas trilhas que ele próprio lá implantava progressivamente (cf. Schama, 1995 e Pitte, 1989). No Brasil, a ocorrência mais típica é a da Floresta da Tijuca carioca, recuperada a partir de 1861 e transformada em paisagem e passeio público pela ação do Barão d’Escragnolle, tornando-se inclusive o cenário do romance de José de Alencar Sonhos de ouro e de muita produção pictórica oitocentista, como a das telas de Nicholas-Antoine Taunay. Nessa mesma época, em 1854, Thoreau publicou Walden, or Life in the Woods, o relato de uma íntima relação com a natureza e a paisagem natural produzida como um experimento vital, em uma propriedade de R. W. Emerson. 21

Toda uma teoria do “passeio”, da promenade, da viagem, do deslocamento entre espaços ou tempos vivenciais é contemporânea da afirmação da perspectiva paisagística. Esteve presente em pioneiros como J.-J. Rousseau ou D. Diderot (2005 [1747]), mas sobretudo em Karl G. Schele, com sua famosa Arte de passear (2001 [1802]). O tema emergiu constantemente na literatura, desde a Sentimental Journey de Sterne [1768] até a Recherche de

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Proust [1913-22], passando pela Voyage autour de ma Chambre de X. de Maistre [1872] e pelas Viagens na minha Terra, de Almeida Garrett [1846]. Para as viagens românticas germânicas, usou-se o termo Wanderlust (gosto pela viagem), aplicável tipicamente aos irmãos Humboldt, e que seria o núcleo vivencial do modelo do “trabalho de campo” dos antropólogos. Tim Ingold retomou o fio em sua obra sobre as “linhas” e os “traços” na experiência humana, concedendo-lhe uma dimensão fenomenológica do mais alto alcance (2007). 22

É interessante que essas duas designações continuem compondo o quadro de alternativas de relação entre imagem e suporte na impressão por computadores.

23

A palavra inglesa para paisagem, landscape, se presta a grandes manobras vocabulares, expressivas dessa extensão continuada do termo, como odourscape ou soundscape. O antropólogo Arjun Appadurai cunhou um conjunto de locuções desse teor (ethnoscapes; mediascapes; technoscapes; financescapes e ideoscapes), buscando atrair para a compreensão dessas dimensões da vida contemporânea, globalizada, a dimensão holística do termo original.

24

O Blade Runner, de Ridley Scott [1982], continua sendo provavelmente a obra-prima de uma estética paisagística futurista no cinema, mas não se pode deixar de pensar numa space opera tão prestigiosa como a da série de Guerra nas Estrelas (George Lucas, 1977) ou na fascinante caverna dos ovos de monstros, desenhada pelo artista plástico H. R. Giger, no início de Alien, também dirigido por R. Scott [1979].

25 26

Cf. Ingold, 2000.

Esse processo obedece também a pressões antielitistas ou popularizantes intrínsecas às formas mais recentes da ideologia da vanguarda moderna, envolvendo uma generalizada “fuga do cavalete”. Suponho que as espetaculares intervenções de Christo & Jeanne Claude possam ser consideradas o acme dessa manifestação (a que embrulhou o Pont-Neuf data de 1985).

27

A construção do mundo como paisagem contém uma permanente tensão entre a observação distanciada e a participação sensorial densa, que é afinal considerada o “verdadeiro” testemunho da experiência vivencial íntima. A temática de uma arte de “imersão” pulsou sob toda a invenção artística romântica, atingindo sua plenitude mais óbvia na ópera wagneriana enquanto Gesamtkunstwerk. Como não a reconhecer sempre em ação, em experiências tão diversas quanto os festivais de rock, os desfiles das escolas de samba cariocas ou as reiteradas expectativas em torno de um cinema 3-D, plurisensorial?

28

Cf. Duarte, 1999.

Referências bibliográficas Blacker, Mary Rose. Flora Domestica. A History of Flower Arranging 15001930. Londres: The National Trust, 2000. Boltanski, Luc. La Souffrance à Distance. Morale humanitaire, médias et politique. Paris: Editions Métailié, 1993.

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Buttlar, Adrian Von. Jardines del Clasicismo y el Romanticismo. El Jardin Pai-

sajista. Madri: Editorial Nerea, 1993.

Cauquelin, Anne. L’invention du paysage. Paris: Plon, 1989. Conan, Michel. Généalogie du paysage. Le Débat 65 (mai-jui), 1991. Cosgrove, Denis. Social Formation and Symbolic Landscape. Londres: Croom

Helm, 1984.

DeJean, Joan. O Século do Conforto: quando os parisienses descobriram o casual e

criaram o lar moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

Descola, Philippe. Landscape and cosmos. In: In the society of nature: a native

ecology in Amazonia. Descola, Phillipe. Cambridge: Cambridge University

Press, 1996.

Diderot, Denis. O passeio do cético ou as alamedas. São Paulo: Martins Fontes,

2005 [1747].

Duarte, Luiz F. D.. O Império dos Sentidos: sensibilidade, sensualidade e

sexualidade na cultura ocidental moderna. In: Sexualidade: o olhar das Ciências

Sociais. Heilborn, Maria Luiza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, pp. 21-30.

Elias, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da

aristocracia de corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2001.

__________. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990.

Heinich, Natalie. A sociologia de Norbert Elias. Lisboa: Temas & Debates,

2001.

Hirsch, Eric; O’Hanlon, Michael. The Anthropology of Landscapes: Perspec-

tives on Places and Spaces. Oxford: Clarendon Press, 1995.

Humboldt, Alexander Von. Personal Narrative of Travels of the Equinocial

Regions of the New Continent during Years 1799-1804. Londres, 1814, Vol. 1, pp. 34-35

Ingold, Tim. Lines. A brief history. Londres e Nova York: Routledge, 2007.

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__________. The perception of the environment: essays on livehood, dwelling and skill. Londres: Routledge, 2000. Laird, Mark. Jardins à la Française. L’Art et la Nature. Paris: Chêne, 1993. MacCall, John. The Anthropology of Landscape: Perspectives on Place and

Space (review). American Ethnologist 24 (3), 1997, pp. 676-7.

Nenon, Thomas J.. Umwelt in Husserl and Heidegger. Proceedings of the 43rd Annual Meeting of the Husserl Circle, http://www.husserlcircle.org/HC%20 Preceedings%20Boston%202012.pdf, 2012. Pitte, Jean-Robert. Histoire du Paysage Français. Paris: Tallandier, 1989. Recht, Roland. Jardin avec paysage. In: Recht, Roland. La lettre de Humboldt: du jardin paysager au daguerréotype. Paris: Christian Bourgeois Éd., 2006. Ricotta, Lúcia. Natureza, ciência e estética em Alexander von Humboldt. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. Robert-Dehault, Elisabeth et al.. Fontes D’Art. Chafarizes e estátuas franceses do Rio de Janeiro. Tours, Les Editions de l’Amateur ASPM-FBM, 2000. Schama, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Schelle, Karl Gottlob. A arte de passear. São Paulo: Martins Fontes, 2001 [1802]. Shapin, Steven. A social history of truth: civility and science in seventeenthcentury England. Chicago: University of Chicago Press, 2003. Simmel, Georg. Philosophie du paysage. In: La tragédie de la culture. Simmel, George. Paris, 1988 [1912], pp. 231-255.

Algumas perspectivas sobre artes

Algumas perspectivas sobre artes: institucionalização e identidade disciplinar Sabrina Parracho Sant’Anna (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

O objetivo de organizar a mesa Algumas perspectivas sobre artes no âmbito de um seminário internacional num Programa de Pós-Graduação emergente foi fundamentalmente ouvir e debater trabalhos recentes de pesquisa que pudessem contribuir tanto para a consolidação da linha de pesquisa Dinâmicas sociais, práticas culturais, representações e subjetividade no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro quanto para a manutenção dos vínculos de uma rede nacional de pesquisadores que vêm de mais a mais ganhando espaço nas agências de fomento e nos fóruns nacionais de debate das Ciências Sociais. Ao convidar os pesquisadores para compor esta mesa, levamos em consideração a diversidade dos temas a serem abordados, no intento de contribuir para a divulgação da mais recente produção em Sociologia e Antropologia da Arte e de fomentar o intercâmbio de questões e ideias numa área em processo de crescente institucionalização. A organização desta mesa deu-nos, assim, a oportunidade de conhecer em primeira mão pesquisas em fase de desenvolvimento que apresentam diferentes objetos e diferentes metodologias de pesquisa. Em sua comunicação, Glaucia Villas Bôas apresenta pesquisa sobre a instauração de um segundo modernismo brasileiro em meados da década de 1950 e discute a formação de uma arte concretista no Rio de Janeiro com base na sociabilidade e na contingência do encontro de atores sociais. Tentando reconstruir os nexos que tornaram possível a emergência de uma nova forma artística no país, a autora constrói uma narrativa para o movimento, baseada em suas relações sociais concretas, evitando as saídas fáceis das explicações que fazem uso de genealogias das influências forâneas ou recorrem a processos que estão para além da vida cotidiana a pairar sobre os fatos e se impor sobre eles. 63

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A pesquisa de Maria Lucia Bueno aqui apresentada se debruça sobre a alta gastronomia como elemento constitutivo dos estilos de vida. Após analisar o universo dos chefs nas últimas décadas do século XX, Bueno chama a atenção para as mudanças que se processaram no Brasil nesse setor da produção cultural, relacionando as descontinuidades nas práticas culturais à construção de identidades em contextos de globalização. Em certo sentido, também Maria Lucia Bueno procura entender como as práticas sociais se estruturam na vida cotidiana para conformar processos sociais nem sempre previsíveis. Patrícia Reinheimer, por sua vez, apresenta reflexão sobre tema que vem sendo, há algum tempo, objeto de sua análise: a construção da loucura como categoria classificatória capaz de definir agentes e práticas legítimas dentro do mundo da arte. Neste trabalho em particular, a autora apresenta análise comparativa sobre duas exposições ao longo do tempo. De um lado, a exposição organizada do trabalho de Nise da Silveira e Almir Mavignier na segunda metade da década de 1940; de outro, a 1ª Mostra de Arte Insensata do Rio de Janeiro, organizada em 2012 no Centro Cultural Municipal Laurinda Santos Lobos. A comparação, analiticamente reveladora, descortina as descontinuidades na atribuição de estigmas e positivação de identidades. Finalmente, Ilana Goldstein apresenta os resultados de sua tese de doutoramento sobre a inserção da pintura aborígine australiana no sistema internacional das artes. Chamando a atenção para os processos de circulação e recepção, a autora discute o modo como se tornou possível que obras anteriormente classificadas como primitivas pudessem ocupar lugar de destaque em coleções nacionais e galerias de arte. Trata-se de entender como “objetos carregados de significados míticos e fabricados com base em técnicas e códigos indígenas tradicionais fossem progressivamente alçados à categoria de arte”. O trabalho de Ilana Goldstein traz à tona questões fundamentais para entender a construção da artisticidade, do mercado e das instituições no mundo da arte. Fechando o circuito destes trabalhos, o inusitado objeto proposto por Goldstein dá ainda especial contribuição para que se possa perceber que, ao abordarem a Arte, as Ciências Sociais brasileiras parecem acionar uma infinita gama de diferentes interesses de pesquisa. O convite às pesquisadoras

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que compõem o panorama ora apresentado em muito corresponde ao atual momento de consolidação da investigação sobre as artes com base no instrumental teórico-metodológico das Ciências Sociais. Ao olhar o desenho que se conformou com o convite a Glaucia Villas Bôas, Maria Lucia Bueno, Patrícia Reinheimer e Ilana Goldstein para participar deste evento, podem se notar duas das principais tendências que se têm verificado nos trabalhos em Sociologia e Antropologia da Arte em âmbito nacional: de um lado, a diversidade temática e metodológica dos trabalhos; de outro, as abordagens inovadoras que podem contribuir para o conhecimento sobre arte no Brasil.

O estado da arte Ao olhar os trabalhos aqui reunidos, vale situá-los em relação ao atual momento da Sociologia e da Antropologia da Arte no país. Para que seja possível compor uma mesa tão diversa e com trabalhos de tão alto nível, é preciso atentar para o processo de institucionalização da arte como objeto para as Ciências Sociais no Brasil. Se em outros países a formação de grupos de pesquisa em torno da Sociologia e da Antropologia da Arte vem de longa data,1 no Brasil a consolidação de grupos, núcleos e linhas de pesquisa dedicados ao objeto é relativamente nova, porém profícua e crescente. Ao olhar superficialmente o processo de institucionalização da Sociologia e da Antropologia da arte no país, chamam a atenção as descontinuidades e os saltos por que passa a área ao longo do tempo. Se, desde a década de 1940, Roger Bastide já introduzira as primeiras reflexões sobre o campo, muito pouco se publicou sobre o tema mesmo depois da fortuna crítica da coletânia de Gilberto Velho de meados dos anos 1960, Arte e sociedade – ensaios de Sociologia da Arte. Ao recompor a trajetória da Sociologia da Arte no país, a história do campo retoma o livro de José Carlos Durand como a primeira pesquisa de mais fôlego realizada no Brasil sobre essa problemática.2 Publicado em 1989, Arte, privilégio e distinção marca a recepção da Sociologia da Arte francesa no Brasil e se torna referência para as esparsas pesquisas que começavam a emergir na área.

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É apenas na década de 1990 e princípios de 2000 que a publicação de livros de Sociologia e Antropologia da Arte vai amiúde tomando corpo e produzindo obras dignas de nota.3 No entanto, é apenas a partir de meados dos anos 2000 que a área começa efetivamente a se institucionalizar, ocupando espaços nos fóruns de debates das ciências sociais no Brasil e consolidando uma identidade própria e um conjunto de temáticas compartilhadas. Os grupos de trabalho no Congresso Brasileiro de Sociologia e na Reunião Brasileira de Antropologia vêm sendo fundamentais nesse sentido. Fundado por Lígia Dabul e Rogério Medeiros, o Grupo de Trabalho de Sociologia da Arte na Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) vem, desde 2007, contribuindo para a consolidação da pesquisa sociológica em Arte no Brasil. Nas três edições em que esteve inscrito como parte da programação do Congresso Brasileiro de Sociologia, o grupo foi capaz de agregar sociólogos com relevante produção acadêmica. Em sua primeira edição em 2007, o Grupo de Trabalho (GT) contou com trinta comunicações. Na edição seguinte, em 2009, foram proferidas 35 comunicações nas sessões ordinárias e mais oito comunicações nos Laboratórios de Pesquisa. O volume de palestrantes, 7% maior nas seções ordinárias, correspondia ao esforço de inclusão de trabalhos num contexto de ampliação de demanda. Debatedores foram também convidados a discutir os trabalhos, colaborando para o fortalecimento das redes de pesquisadores e reforçando sua articulação nacional. Mais recentemente, em 2011, a organização do XV Congresso Brasileiro de Sociologia (CBS) informou às atuais coordenadoras4 que o GT de Sociologia da Arte havia sido um dos grupos com maior demanda, e o número de comunicações chegou a 36 nas sessões ordinárias. Já no primeiro encontro do grupo, os resultados se puderam fazer sentir e tiveram como parte de seus desdobramentos a apresentação da mesa redonda Sociologia das Artes Plásticas: focos e enfoques de abordagens comparativas, na edição seguinte do congresso, em 2009. Nessa mesma edição, múltiplos esforços começaram a ser empreendidos para consolidar uma agenda de discussões de pesquisa. Em 2010, Lígia Dabul organizou, na Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, dossiê reunindo as comunicações proferidas nas sessões do último encontro. Em 2012, Maria Lucia Bueno organizou o livro A Sociologia das Artes Visuais

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no Brasil, lançado pela editora SENAC. Por sua vez, o Seminário de Sociologia da Cultura e da Imagem, organizado por Glaucia Villas Bôas na UFRJ, desde 2004, tem sido pioneiro em procurar convidar pesquisadores na área para manter contato no encontro que tem periodicidade anual. Finalmente, também o seminário Manifestações Artísticas e Ciências Sociais: reflexões sobre arte e cultura material, ora organizado pelo Núcleo de Pesquisa em Cultura, Identidades e Subjetividades (CULTIS), marca a consolidação da participação de pesquisadores da UFRRJ nesse debate. Em múltiplos espaços, a rede de pesquisadores ganha corpo e visibilidade. É preciso lembrar o esforço de internacionalização do grupo, em particular o encaminhamento de um dossiê, em torno da sociologia da arte no Brasil, à revista Sociologie de L’art, reunindo participantes do grupo; as participações junto ao Research Committee of Art Sociology nas seções da International Sociological Association; a publicação de um livro organizado por Glaucia Villas Bôas e Alain Quemin em cooperação bilateral com financiamento Saint Hilaire/CAPES (no prelo); e a presença de pesquisadores brasileiros no grupo de pesquisa OPuS, coordenado por Bruno Péquignot. Do ponto de vista da Antropologia da Arte, o crescimento da área é também expressivo. Desde 2006, o GT Arte e Antropologia, criado por Lígia Dabul e Caleb Faria Alves, na Reunião Brasileira de Antropologia, tem tido papel fundamental na agremiação de pesquisadores para debates de suas pesquisas e formação de redes em âmbito nacional. O Grupo de Trabalho da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) conta também com número crescente de participantes. Em 2006, o grupo foi inaugurado com 16 comunicações. Em 2008, embora o GT não tenha sido editado, duas mesas redondas5 se debruçaram sobre temas correlatos. Em 2009, foram 19 trabalhos e um painel, e, em 2012, o número saltou para um total de 25 trabalhos e seis painéis. Em todos os espaços institucionais a participação da Sociologia e da Antropologia da Arte vem crescendo frente a temas considerados clássicos nas Ciências Sociais. Em 2012, na reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), as comunicações sobre o tema, antes esparsamente apresentadas nos GTs de abordagens correlatas, foram reunidas no Fórum O mundo das artes, práticas sociais e

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dimensão simbólica: pesquisas recentes, coordenado por Glaucia Villas Bôas e Ana Paula Simioni. A Arte vem crescendo como objeto de estudo em todos os fóruns das Ciências Sociais. Ao olhar com mais atenção os trabalhos que vêm sendo apresentados nesses espaços de discussão de pesquisa, algumas tendências predominantes podem ser delineadas. Numa análise mais detida das comunicações apresentadas nas sessões dos Congressos Brasileiros de Sociologia,6 Pérola Mathias e Bruno Bispo chegaram à seguinte conclusão: Observamos ainda, para iniciar nosso trabalho quantitativo, a curiosa e fluida divisão entre a pesquisa que se considera “cultural” e a que se considera “artística”, assim pudemos também perceber e analisar o discurso e a heterogeneidade do pensamento apresentado pelos pesquisadores sobre a abordagem e a concepção da “sociologia da arte”.7

Os trabalhos ora apresentados parecem em muito expressar as características diagnosticadas por Mathias e Bispo em sua análise dos congressos da SBS. Encontrar relação entre algumas das questões abordadas tem sido a tarefa das discussões dos fóruns aqui elencados (SBS, ABA, ANPOCS). A criação do novo e da ruptura no pensamento social, o consumo como estilo de vida, a estigmatização e formação de identidades e a construção de legitimidade em espaços institucionais são algumas das questões que norteiam há algum tempo as Ciências Sociais. Que essas questões sejam, no entanto, colocadas a objetos tão díspares quanto um movimento artístico de meados do século XX, a arte aborígine australiana, as classificações da loucura na arte no Rio de Janeiro e a alta gastronomia nacional é o que define a fluidez de fronteiras ressaltada no artigo de Mathias e Bispo. No entanto, a fluidez que poderia ser atribuída a alguma dificuldade de definição do campo tem sido, ao contrário, ao mesmo tempo definidora da identidade das pesquisas em Sociologia e Antropologia da Arte, de sua capacidade explicativa do mundo contemporâneo, e de sua possibilidade de encontrar ressonância no mundo da vida. Como procurarei argumentar a seguir, o turvamento das fronteiras da arte como objeto vem caracterizando o campo e conferindo também a possibilidade de sua fortuna crítica junto a leitores de disciplinas correlatas.

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A construção de uma identidade para a Sociologia e a Antropologia da Arte A ideia de uma fluidez de fronteiras entre o que se poderia chamar de uma Sociologia da Cultura e uma Sociologia da Arte, ou outros ramos da Sociologia e da Antropologia, parece chamar a atenção quando objetos tão díspares e metodologias tão dessemelhantes são acionados. No entanto, se a identidade da Sociologia da Arte poderia ser definida com pesquisas sobre uma atividade bastante precisamente delimitada no tempo e no espaço, “objeto criado pelos homens da Renascença europeia”,8 fato é que desde os anos 1960 as nítidas fronteiras que separavam arte e não arte parecem vir sendo colocadas em questão: Hoje problemática, a arte costumava ser, em tempos anteriores, facilmente reconhecível. Ela incluía pintura, escultura, música, poesia e

outras obras literárias cujos conteúdos estavam baseados numa lógica

teórica, historicamente fundamentada e associada a prestigiosas instituições e grupos de status social.9

Como argumenta Vera Zolberg, as últimas décadas têm assistido ao turvamento das fronteiras entre alta e baixa cultura, arte erudita e popular, e os diversos gêneros que antes definiam o que era a arte socialmente aceita. Se a arte se define como aquilo que é socialmente classificado como tal, de mais a mais a crítica ao papel das instituições tem sido crescentemente responsável por uma ampliação do espectro daquilo que pode ser entendido como objeto de apreciação estética. Quando as autoridades instituídas são questionadas pelas vanguardas históricas, quando a história da arte deixa de ser narrada como uma sucessão necessária de formas artísticas em evolução, as definições eurocêntricas do bom gosto e do bom senso são colocadas em xeque e grupos tradicionalmente excluídos das instituições de arte podem reivindicar o direito à artisticidade, tornando-se também objeto de estudo sociológico e antropológico, por excelência. Se, como chamam aqui a atenção Goldstein e Reinheimer, as instituições de arte abriram crescente espaço para os grupos de artistas que Zolberg definiria como outsiders, também a Sociologia e a Antropologia da Arte

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ampliaram seu horizonte de interesse e se debruçaram sobre a artisticidade10 de objetos tradicionalmente tidos como não arte. Desse modo, também a moda e a gastronomia, que aparecem no importante artigo de Maria Lucia Bueno, podem ser tomadas como objeto de análise da área. As consequências sobre a definição de um métier próprio para a Sociologia e a Antropologia da Arte não param na ampliação do espectro de objetos que podem ser abarcados pelas disciplinas, mas, sobretudo, esbarram na possibilidade de pensar o objeto da apreciação estética com base numa metodologia que é especificamente pertinente às Ciências Sociais. Na medida em que o mundo da arte deixa de definir o objeto de apreciação baseado numa essência que lhe é própria e passa a entender que, como a fonte de Duchamp, a artisticidade do objeto se define do ponto de vista de seus mecanismos de recepção e produção social, a obra pode se tornar por excelência objeto das Ciências Sociais. Quando a obra de arte perde não apenas sua aura, mas também sua sacralidade, solapando museus e instituições, faz sentido que ela se torne mais que objeto da estética, objeto de análises que se perguntam sobre o lugar das relações sociais na produção de bens de cultura e da arte. Se o métier do sociólogo consiste em analisar racionalmente os fenômenos que observa, apreender o sentido das ações sociais ou os processos que as encompassam, faz sentido que Glaucia Villas Bôas retome o estudo do surgimento de uma nova forma artística nos anos 1950 do ponto de vista da sociabilidade que lhe dá origem, em detrimento das análises puramente formais que são tradicionalmente objeto da estética e da crítica de arte. A possibilidade de pensar a arte em escopo ampliado, procurando entender as especificidades de sua produção, recepção e circulação como fenômeno social, é o que vem dando a pertinência e o crescimento da arte como objeto legítimo das Ciências Sociais. Não por acaso também a Sociologia e a Antropologia da Arte vêm tendo espaço ampliado nas interpretações sobre a arte. A recente publicação de livros de referência, como os de Nathalie Heinich, Sociologia da Arte (2008), de Vera Zolberg, Para uma Sociologia da Arte (2006), e de Raymonde Moulin, O Mercado de Arte (2007), atesta que, ao menos no mercado editorial, há crescente público para o tema. Ao organizar a mesa Algumas perspectivas sobre artes, levamos em consideração não apenas o crescente interesse da Sociologia por explicações que levem em consideração a cultura

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e a produção cultural, como tem salientado Arturo Morató,11 mas sobretudo a percepção de que a arte tem de mais a mais ampliado seu escopo e demandado análises que façam uso do instrumental sociológico para seu entendimento. A publicação dos presentes textos se dirige tanto aos especialistas na área quanto aos diferentes campos que se debruçam sobre temas correlatos, borrando também do ponto de vista analítico as margens das fronteiras disciplinares.

Notas 1 2 3 4

Ver, p. ex., Péquignot, 2009. Bueno, 2012, p. 12.

Ver, p. ex., Miceli, 1996; Bueno, 1999; Dabul, 2001; e Simioni, 2002.

A edição do Grupo de Trabalho de Sociologia da Arte foi coordenada em 2011 por Maria Lucia Bueno e Sabrina Parracho Sant’Anna.

5

Antropologia & Estética II: A Arte como Conhecimento Antropológico e Arte e Patrimônio Cultural Indígenas.

6

O trabalho de Mathias e Bispo consistiu no levantamento de todos os trabalhos apresentados nos dois últimos congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia nas suas seguintes categorias: o grupo “Sociólogos do futuro”, que agrega a apresentação de pôsteres de pesquisadores da graduação e mestrado; os “Grupos de Trabalho”, que contam com a apresentação oral de mestres, doutores e pós-doutores, com variações dos critérios entre um congresso e outro; e, por fim, as “Mesas Redondas”, cuja proposta é ter o tema discutido por convidados.

7 8 9

Mathias; Bispo, 2012.

Péquignot, 2009, p. 11. Zolberg, 2010.

10 11

Cf. Crane, in Bueno, 2011. Morató, 2009.

Referências bibliográficas BASTIDE, Roger. Problemas da sociologia da arte. Tempo social. São Paulo, 2006. BUENO, Maria Lucia. Sociologia das Artes Visuais no Brasil. São Paulo: Senac, 2012. __________. Artes Plásticas no século XX. Modernidade e globalização. Campinas: UNICAMP/FAPESP, 1999.

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Os dois lados do concretismo Glaucia Villas Bôas (UFRJ)

“…vi que havia uma preocupação de espaço mais do que uma

simples localização de objetos no espaço. Por exemplo: vi que

uma praia muito longa era rigorosamente colocada sobre um

triângulo em movimento, em certa altura outro triângulo em contramovimento, de repente uma sinuosa cortando tudo, mas

eu ainda não fazia com essa intenção. Com o decorrer do tempo vi que construía mais do que documentava”.

(Aluísio Carvão)1

Textos programáticos como o Manifesto ruptura (1952), o Manifesto neoconcreto (1959), A teoria do não objeto (1959), seguidos de imagens do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (1956-1961) e talvez de uma imagem de Formas (1951) de Ivan Serpa, um dos Bichos (1960-64) de Lygia Clark ou um Metaesquema (1958/1959) de Helio Oiticica com referências aos críticos Mario Pedrosa e Ferreira Gullar são “ingredientes” que há mais de sessenta anos configuram a memória do concretismo como um movimento histórico social. Está por se fazer a crítica construtiva das fontes impressas e iconográficas que recorrentemente servem de base aos catálogos de exposições, aos textos de blogs e pesquisas acadêmicas sobre a arte concreta no Brasil, e procurar novas fontes e interpretações que alarguem os horizontes do conhecimento da virada da arte concreta no Brasil, contribuindo para a revisão que vem sendo feita nos últimos anos. O texto “os dois lados do concretismo” quer contribuir para incentivar a pesquisa sobre o movimento, agrupando, ainda que inicial e precariamente, alguns dados históricos sobre o surgimento da arte concreta no Rio de Janeiro e em São Paulo, com o intuito de perguntar pelas 73

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diferenças que geraram tantas tensões e pelejas e acabaram por dividir os artistas concretos e adeptos ao concretismo, dissolvendo o movimento. Em 1955, Ferreira Gullar integrou a equipe do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, tornando-se seu editor de artes visuais. Aos 25 anos, o poeta e crítico de arte escreve no SDJB os primeiros textos sobre a poesia concreta e, em 1959, publica o Manifesto neoconcreto e a Teoria do não objeto. Nos dois últimos escritos, Gullar distingue o aparecimento de uma nova vertente concretista entre os artistas cariocas, definindo-a em oposição ao concretismo racional, científico e matemático. Enquanto o manifesto estabelecia os parâmetros de distinção do neoconcretismo, a Teoria do não objeto se ocupava do desdobramento do plano bidimensional no espaço como um desenvolvimento histórico da arte.2 As pelejas de Ferreira Gullar e Waldemar Cordeiro, crítico de arte e artista concreto, separando as vertentes carioca e paulista do concretismo, ganharam centralidade no debate sobre as artes visuais. A mobilização de teorias para fundamentar as tendências do concretismo, a exemplo das ideias de Merleau Ponty por Ferreira Gullar e de Konrad Fiedler por Waldemar Cordeiro, não impediu que a adesão ao concretismo ou ao neoconcretismo fosse atribuída à naturalidade dos artistas. A naturalidade3 ou local de moradia dificilmente imprimiriam as qualidades de maior ou menor rigor às formas geométricas ou de maior ou menor afeição à objetividade ou subjetividade. Contudo, as reflexões de Mario Pedrosa, em texto de 1957, “Paulistas e cariocas” ,4 relativas à maior ou menor afinidade de coletividades sociais com a teoria, qualificou os paulistas de teóricos e os cariocas de empíricos. Tais reflexões contribuíram para firmar na história da arte uma disputa entre cariocas e paulistas sobre as diferenças de suas obras. A polêmica cariocas versus paulistas não acrescentou subsídios à análise das diferenças do desenvolvimento da produção plástica dos artistas concretos; ao contrário, obstaculizou um exame mais acurado das duas orientações do concretismo brasileiro. Em dezembro de 1956 foi organizada a I Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo, exibida no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1957, no Museu de Arte Moderna instalado no Ministério da Educação e da Cultura. A exibição fora planejada em São Paulo com o objetivo de ampliar a discussão sobre o concretismo na

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poesia, nas artes plásticas e no design em nível nacional. À participação ativa dos paulistas nas revistas Arquitetura e Decoração, Módulo, Vértice e Noigandres, acrescentou-se a participação de Ferreira Gullar e dos irmãos Campos no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, de grande penetração nos meios artísticos e intelectuais, tanto pelas suas matérias quanto pelo seu projeto gráfico de autoria de Reynaldo Jardim, diagramador e poeta concreto. A exposição exibiu textos de poesia, escultura, pintura, desenho e gravura. Crescia o movimento neoconcreto na poesia com Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, Reynaldo Jardim, Theon Spanudis e Ferreira Gullar. O Manifesto Plano-Piloto para a Poesia Concreta foi lançado nesta exposição.5 Os textos poéticos foram expostos junto às obras bidimensionais nas paredes, alinhados pela base com o objetivo de evitar a hierarquização entre eles. No que respeita à produção plástica, entretanto, ao serem postas lado a lado as diversas obras, sobressaíram-se as diferenças da produção dos dois grupos, gerando polêmicas.Essas polêmicas tinham como eixo o racionalismo impregnado na produção dos artistas radicados em São Paulo versus o expressionismo dos artistas integrantes do Grupo Frente, além de seu subjetivismo e sensualismo, contrastante com o formalismo e a objetividade dos paulistas.6 As discussões sobre a I Exposição Nacional de Arte Concreta levaram ao Manifesto neoconcreto, lançado em março de 1959, e assinado por Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis. Liderado por Ferreira Gullar, o manifesto tinha como objetivo a distinção entre o concretismo do Rio de Janeiro e o de São Paulo. Mario Pedrosa encontrava-se no Japão, onde organizara uma exposição de arte brasileira e ocupava-se com a programação do I Encontro Extraordinário de Críticos de Arte sobre a cidade de Brasília, a ser realizado no Brasil. Ferreira Gullar escreve-lhe uma carta7 prestando conta do manifesto e argumentando em favor da definição das diferenças existentes entre os dois grupos. Advertia não ser mais possível identificar ciência com a arte, mas valorizar a expressão visual, plástica, imaginativa e existencial das formas. A repercussão do manifesto levou à cisão do movimento. Exposições e textos críticos sobre o concretismo e o neoconcretismo foram realizadas de 1959 até início de 1960,8 quando os grupos e seus líderes começam a se dispersar.

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Se as cidades, onde os grupos surgiram, propiciaram cenários diferentes para suas práticas artísticas, o desenrolar dos acontecimentos evidencia que os concretistas numa ou noutra metrópole usaram estratégias distintas para enfrentar as resistências às suas proposições estéticas e alcançar o reconhecimento que almejavam, o que provavelmente lhes deu a chance de construir uma identidade própria.

1 No Rio de Janeiro, o Ateliê do Engenho de Dentro, como parte do Setor de Terapia Ocupacional do Hospital Nacional Psiquiátrico Pedro II, dirigido pela psiquiatra Nise da Silveira, protagonizou um feito importante na história do concretismo na cidade.9 Sua montagem deve-se ao artista Almir Mavignier. Ele orientava os pacientes a pintar e desenhar. Logo angariou a simpatia e o interesse de Abraham Palatnik, Ivan Serpa e Mario Pedrosa, com os quais conviveu durante cinco anos, de 1946 a 1951, acompanhando e discutindo com outros artistas e críticos a qualidade das obras dos artistas/internos do Ateliê, a exemplo de Lygia Pape e Leon Dégand, diretor do Museu de Arte Moderna paulista. As primeiras exposições da produção dos pacientes esquizofrênicos, realizadas em 1947 e 1949, no Ministério da Educação e Saúde e no MAM de São Paulo,10 renderam uma polêmica de dois anos na imprensa carioca e paulista. Nela não aparece a palavra concretismo ou construtivismo, mas o termo modernismo dividia os críticos, que debatiam, calorosamente, os limites entre a normalidade e a anormalidade, arte e razão, academicismo e experimentação. Discordavam quanto às questões de autoria e do estatuto do artista. Que obras poderiam ser nomeadas obras de arte? Argumentavam com veemência que entre os doentes não havia nenhuma atribuição de sentido, muito menos a intenção de compor uma obra de arte. Os trabalhos dos internos do Engenho de Dentro não poderiam ser classificados no campo das artes porque àqueles pintores faltava discernimento, razão e vontade. Os críticos não tinham posições idênticas quanto aos limites entre normalidade e anormalidade. Para alguns, a razão não era mais suficiente para fundamentar o juízo artístico, desde que a psicanálise, a

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crítica bergsoniana e o surrealismo se difundiram nos meios intelectuais no século XX. O crítico paulista Sergio Milliet posicionou-se, distinguindo os elementos estéticos de sociológicos, históricos e psicológicos das obras expostas. Apostando nessa distinção, mostrou que, entre os nove artistas do Ateliê, que expuseram suas obras no MAM de São Paulo, quatro apresentavam obras de grande valor artístico, enquanto os restantes demonstravam apenas expressividade em suas obras. A loucura não era para o crítico condição sine qua non para a confecção de trabalhos com valor artístico, com o que concordava Nise da Silveira, autora do texto do catálogo da exposição: “Haverá doentes artistas e não artistas, assim como entre os indivíduos que se mantêm dentro das imprecisas fronteiras da normalidade só alguns possuem a força de criar formas dotadas do poder de suscitar emoções naqueles que as contemplam11.” Ao lado de Adelina, Fernando Diniz, Carlos Petuis, Arthur Amora, Kleber, Raphael e Isaac Liberato, Emydio de Barros foi um daqueles pintores internos que causavam espanto e emoção. Pintor de memória, segundo Mavignier, pintava tela sobre tela sem interrupção. Era preciso sempre dar-lhe mais telas. Mais de uma década depois das primeiras exposições, Mario Pedrosa escrevia sobre sua pintura, ressaltando a composição e o desenho além da distribuição das cores por massas e linhas cromáticas: “Raros entre os raros, no Brasil, ele compõe pela cor, como mandava Cézanne, e daí seu ‘impressionismo’ ter estupenda solidez estrutural. Seu Jarro de flores é, sem favor, uma obra prima da pintura brasileira,” advertia o crítico.12 No debate sobre arte e loucura, destacou-se a crítica de Mario Pedrosa. Ele assumiu uma posição distinta de seus colegas Quirino Campofiorito, Rubem Navarra e Sergio Miliet ao defender o caráter artístico dos desenhos e da pintura dos internos. Afirmava que a quebra dos cânones renascentistas com o advento da pintura moderna havia gerado uma incompreensão quanto à concepção de arte. Advertia que a criação artística estava relacionada à imaginação, à intuição, à sensibilidade, desvinculando-se cada vez mais dos cânones convencionais. As experimentações eram fundamentais para que um indivíduo aprendesse com suas emoções e “pusesse no mundo” formas que transmitissem modos de sentir e imaginar. Tais formas tinham força intelectual porque organizavam a intuição, mas

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não podiam ser consideradas expressão de um projeto intelectual consciente. A diferença da análise crítica de Pedrosa à dos outros críticos se dá em sua convicção na ruptura de um padrão estético. Suas reflexões sobre a Psicologia da Forma lhe garantiam instrumentos conceituais para as querelas sobre as exposições do ateliê do Engenho de Dentro, mas principalmente para alcançar o reconhecimento de seu projeto construtivista de renovação da linguagem artística, que o crítico acalentava desde sua chegada do exílio nos Estados Unidos.13 Quando, em 1951, o acervo do Ateliê de Pintura transferiu-se para o Museu de Imagens do Inconsciente, criado e dirigido por Nise da Silveira, para fins de estudo e pesquisa das imagens do inconsciente, os três jovens artistas tinham se convertido ao concretismo. Em 1951, Ivan Serpa recebeu o Prêmio de Aquisição de Jovem Pintor com o quadro Formas, na I Bienal de São Paulo, e abriu seu Ateliê Livre de Pintura, na sede provisória do MAM, que funcionava nos pilotis do Edifício do Ministério da Educação e Saúde. Abraham Palatnik expôs sua primeira obra cinética na mesma Bienal sob estímulos de Mario Pedrosa, e Mavignier ganhou uma bolsa na França e depois na Alemanha, onde foi aceito na primeira turma da Escola de Ulm, sob a direção de Max Bill. As mudanças ocorridas no Ateliê do Engenho de Dentro levaram ao fim os encontros regulares entre os artistas e o crítico Mario Pedrosa, porém a convivência muito próxima entre eles, ao longo de cinco anos, deixou um saldo positivo para o reconhecimento da arte concreta no Brasil. O quadro Formas (1951), de Ivan Serpa, tornou-se um ícone do concretismo, contribuindo para divulgar a nova orientação estética. Ao comentar a obra, Fabiana Barcinski enfatiza a expectativa de movimento criada pelo quadro, apesar de suas formas estáticas, e o contraste entre o seu caráter artesanal e a orientação concretista de um afazer universal: “A construção apresentada nessa tela alcança um grau de equilíbrio que prende a atenção de quem o vê por criar uma expectativa de movimento, como uma dança, que nunca se realiza de fato, das formas circulares que dominam o espaco pictórico14.” Entre outros legados, a experência sui generis do Ateliê do Engenho de Dentro revelou a Abraham Palatnik uma nova possibilidade da criação artística. Ele juntou tecnologia e cinética ao criar seus aparelhos cinecromáticos, inventando um mecanismo complexo que obedecia

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ao principio do caleidoscópio e facultava ao expectador a visão do movimento de diferentes formas coloridas, compondo-se e decompondo-se com delicadeza e leveza ímpares. A rede de jovens que havia se unido a Mario Pedrosa encontra no Ateliê Livre de Pintura de Ivan Serpa um novo espaço de sociabilidade, o que o torna um dos principais elos da cadeia de acontecimentos que contribuem para a imposição e a consagração da arte concreta no Rio de Janeiro. Na realidade, a experiência e o convívio ocorridos no Ateliê do Engenho de Dentro e a polêmica sobre arte e loucura, protagonizada pelos críticos cariocas e paulistas, estavam intimamente associados à abertura do curso de Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna e, consequentemente, à formação do Grupo Frente. As realizações revelavam efeitos do projeto político e inovador das artes plásticas acalentado por Mario Pedrosa.15 O curso de Ivan Serpa, com apoio de Niomar Sodré, diretora do MAM, e Carmem Portinho, engenheira que dirigia as obras da nova sede do museu,16 significou mais do que uma simples alternativa aos ateliês de ensino da arte, tornando-se um lócus especial em que o pintor, utilizando uma metodologia nada convencional, insistia na pesquisa da forma. Serpa pedia aos alunos que desenhassem ou pintassem algo que estivesse na sua imaginação, recomendando um conjunto de exercícios por meio dos quais os alunos desenvolviam exaustivamente suas criações, fazendo com que apresentassem por si suas necessidades de busca da forma, da cor, do equilíbrio, da harmonia.17 Transmitia o que aprendera com Pedrosa no Ateliê do Engenho de Dentro sem, entretanto, nomear as diretrizes de seus ensinamentos e experiências de construtivistas. Considerado um mestre severo, o aluno fazia diversos exercícios com base na ideia inicial até encontrar um resultado satisfatório. A crítica de Mario Pedrosa, Ferreira Gullar e Jayme Maurício deu grande visibilidade às aulas de Serpa, impulsionando o projeto de renovação das artes no Rio de Janeiro na direção da abstração geométrica e do concretismo. A atividade intensa de Ivan Serpa,18 no início da década de 1950, culminou com a criação do Grupo Frente, que expõe na Galeria IBEU, em 1954, no MAM/RJ, e, posteriormente, em 1956, em Resende e Volta Redonda. A primeira exposição, apresentada pelo crítico Ferreira Gullar, exibiu obras de Aluísio Carvão, Carlos Val, Décio Vieira, Ivan Serpa, João

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José da Silva Costa, Lygia Clark, Lygia Pape e Vicent Ibberson; a segunda teve apresentação de Mario Pedrosa. O grupo era assim apadrinhado por dois dos críticos de maior destaque na imprensa carioca à época. Aos fundadores do grupo se uniram Abraham Palatnik, César Oiticica, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Rubem Ludolf, Elisa Martins da Silveira e Emil Baruch. A historiografia,19 fundada nas pelejas críticas dos integrantes do concretismo, sublinha na constituição do Grupo Frente a inexistência de determinação clara em direção ao concretismo, ressaltando que nele havia tendências diversas, inclusive o primitivismo, característica que em muito o distinguia do Grupo Ruptura, radicado em São Paulo e seguidor dos preceitos da arte concreta sob a orientação de Waldemar Cordeiro. Os argumentos não eram muito convincentes: dizia-se que Ivan Serpa era contrário aos ismos e Mario Pedrosa evocava a liberdade de criação, consequentemente, o grupo não tinha projeto renovador. Contudo essas ideias passaram com força para a fortuna crítica do Ateliê de Ivan Serpa e do Grupo Frente, repetindo-se em verbetes de enciclopédias, textos e catálogos de exposições, retrospectivas, quando não em pesquisas acadêmicas. Na realidade, os artistas que estudaram com Ivan Serpa e aprenderam os ensinamentos libertários de Mario Pedrosa, por meio de uma convivência muito próxima com ambos,20 foram forjando uma identidade com base nos valores estéticos que lhes eram incutidos, nas exposições coletivas, no favorecimento dos críticos e incentivo à experimentação. Um trecho da entrevista concedida por Aluisio Carvão é esclarecedor do modo como os artistas foram constituindo sua identidade: […] senti que o entendimento de linguagem e de procura de algo, a

existência de uma afinidade, foi em torno do movimento que a gente

tinha com Ivan Serpa, com Palatnik e depois Pedrosa, Gullar. Começamos a conversar, a fazer reuniões para ter um pensamento, manter o mesmo vocabulário, entende? 21

No Rio de Janeiro, o surgimento do concretismo se deve aparentemente ao entrecruzamento de indivíduos com interesses afins cujas iniciativas e ações encadeiam-se numa sequência que se inicia com a criação do Ateliê do Engenho de Dentro, desloca-se para as aulas de Ivan Serpa

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no Ateliê Livre de Pintura do Museu de Arte Moderna e culmina com a formação do Grupo Frente. A crítica de arte sob a liderança de Mario Pedrosa garantia os primeiros passos do construtivismo e, ao incentivar os jovens e insistir no caráter libertário da experimentação, os reconhecia e legitimava.

2 O entrecruzamento de fatos, indivíduos e instituições foi diferente em São Paulo. Não havia na capital paulista uma instituição tão antiga, consolidada e poderosa quanto a Escola Nacional de Belas-Artes, verdadeiro baluarte a que se opuseram os modernos figurativos e concretos. Ao campo artístico paulista, entretanto, pertenciam tanto os integrantes mais ativos da Semana de 1922 quanto os idealizadores da Bienal de São Paulo, que cunharam, cada grupo a seu modo, projetos voltados para o futuro moderno. A vanguarda concreta paulista enfrentou fortes resistências dos partidários do modernismo figurativo, que expressavam suas convicções sem temor, como o fez Di Cavalcanti: O realismo é sempre rico quando não se limita a um exercício hábil de reprodução da realidade – é o realismo dos atenienses, dos venezia-

nos da renascença, de Coubert, de Corot, Daumier, Renoir, Degas, e mesmo Picasso, na sua fase anterior ao cubismo. Pode haver hoje um

realismo que não menospreze as pesquisas técnicas modernistas? Sim.

O que acho, porém, vital é fugir do abstracionismo. A obra de arte dos abstracionistas, tipo Kandinsky, Klee, Mondrian, Arp, Calder é uma

especialização estéril. […] Os apologistas dessa arte, como o senhor Léon Degand, ora entre nós, possuem uma verve terrível que consiste em acumular definições para definir o indefinível.22

As adversidades e as disputas não impediram, entretanto, que o campo artístico se renovasse. Em “Balanço da vida oficial das artes plásticas em 1950”, publicado em 1951, na Folha da Manhã, Waldemar Cordeiro assinala as mudanças ocorridas nas instituições da cidade, mencionando as

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atividades da Galeria Domus, as exposições e os cursos promovidos pelo Museu de Arte Moderna, entre os quais figuravam os cursos práticos de gravura, livre desenho com modelo vivo e o clube infantil de arte. Cordeiro faz um “prognóstico auspicioso” para as artes plásticas, sem, no entanto, deixar de chamar a atenção para os altíssimos gastos de instituições na compra de obras ou na própria manutenção, em detrimento do apoio aos artistas com condições socioeconômicas precárias, advertindo sobre a necessidade de maior apoio à classe artística da qual dependia a produção da arte: “Ressalta-se particularmente o esforço dos artistas modernos paulistas que, apesar das dificuldades econômicas com que lutam, forneceram quase todo o material das exposições realizadas.”23 Os reclamos de Waldemar Cordeiro fazem relembrar a hipótese de Aracy Amaral sobre as diferentes tendências artísticas entre o grupo carioca e paulista. Para a crítica e historiadora da arte, os artistas paulistas, vinham de classes médias pouco abastadas, e sua origem social os levou cedo a buscar uma formação profissionalizante, em escolas ou nos cursos oferecidos no Museu de Arte Moderna de São Paulo: Luiz Sacilotto era desenhista técnico; Cordeiro, publicitário, ilustrador e paisagista; Fiaminghi, cromista, gráfico e publicitário; Barsotti, artista gráfico; Maurício Nogueira Lima, arquiteto e cartazista; Willys de Castro, artista gráfico; Fejer, químico industrial; Wollner, artista gráfico; Geraldo de Barros, fotógrafo, desenhista gráfico e cartazista; Antonio Maluf, cartazista e vitrinista; e Leopoldo Haar, paginador, cartazista, vitrinista e diagramador.24 A pertença a classes menos abastadas e a formação profissionalizante do grupo paulista teriam propiciado, segundo Aracy Amaral, escolhas voltadas para a produção de objetos mais industriais que artesanais. De início, o Grupo Ruptura fora influenciado por Mondrian e pelos neoplasticistas, valorizando a invenção das formas e os trabalhos seriais e modulados. Mas a presença da delegação suíça na primeira Bienal e as concepções de Max Bill provocaram uma mudança notável no trabalho do grupo. Foi de tal índole o impacto da delegação suíça da I Bienal que quase

instantaneamente todos deixam a tela pintada a óleo e, seguindo as observações dos suíços […] passam a pintar sobre “Eucatex”, recor-

rendo logo ao esmalte para a mais rigorosa pintura das superfícies,

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aos poucos abandonando o pincel pela pistola, evitando, portanto, não apenas o material de remanescência artesanal como a sua manipulação por um processo mais diretamente relacionado com a indústria.25

A hipótese de Amaral abre o leque de possibilidades sociológicas que permite compreender as escolhas feitas pelos artistas concretos paulistas, muito embora a origem social e a formação profissional não justifiquem na sua inteireza as preferências e as escolas do Grupo Ruptura. Acrescente-se à formação social do Grupo Ruptura o teor do projeto renovador de Waldemar Cordeiro, com metas e regras muito bem-definidas, enquanto no Rio o projeto de Mario Pedrosa não se inicia com a proposição de regras, mas com o debate sobre arte e loucura; a crítica à obra de Calder 26 e a tese “Da natureza afetiva da forma na obra de arte”, escrita em 1949. A discussão dos princípios do construtivismo foi paulatinamente convencendo os artistas à experimentação sem a rigidez de um nome ou de um rótulo. Em São Paulo ocorreram iniciativas relacionando arte e loucura. O tema interessou artistas como Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Flávio de Carvalho e Alice Brill. A Colônia Psiquiátrica do Juqueri, localizada na região metropolitana, tinha sido objeto de atenção do médico Osório César,27 estudioso da estética primitivista e autor de A expressão artística dos alienados, de 1929, e A arte nos loucos e vanguardistas, de 1934. Nos anos 1950, com a abertura de um ateliê, Maria Leontina Franco da Costa acompanhou o trabalho plástico de diversos pacientes.28 Contudo, a discussão sobre arte e loucura nem de longe teve a dimensão que alcançou no Rio, no que concerne ao surgimento do concretismo. Em São Paulo, a liderança do movimento estava nas mãos do artista plástico Waldemar Cordeiro, nascido em Roma e portador de dupla nacionalidade, que chegou ao Brasil, em 1946, aos 20 anos de idade, para trabalhar como jornalista fazendo reportagens e ilustrações. Iniciara sua formação em Roma na Accademia di Belle Arti di Roma, onde aprendeu gravura e pintura. Logo depois de sua chegada, além das atividades no jornal Folha da Manhã, Cordeiro conheceu Geraldo de Barros, Luiz Sacilotto e Lothar Charoux, com os quais compartilhou seus projetos de mudança no campo da arte. Em 1949, têm início as primeiras atividades de artistas junto a Cordeiro, com a realização de pesquisas com linhas horizontais e verticais, além da

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criação do Art Club de São Paulo, dedicado ao experimentalismo. Cordeiro opta pela nacionalidade brasileira, ao voltar de breve viagem à Itália, e, logo depois, tem exibida sua obra Movimento na I Bienal de São Paulo. No quadro, Cordeiro põe em jogo a precedência de uma forma sobre a outra e de uma cor sobre outra, ao dispor faixas de diferentes tamanhos e cores, numa sequência em busca de equilíbrio. Em 1952, promove a exposição e lança o Manifesto Ruptura no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O manifesto não foi bem recebido pelo crítico Sergio Milliet, acadêmico da Universidade de São Paulo e ligado à criação do Museu de Arte Moderna e da Bienal. Milliet desqualifica o manifesto pela falta de explicação clara dos princípios norteadores do programa de renovação das artes plásticas. A resposta de Cordeiro não tarda. Fazendo uso de texto crítico de Milliet sobre Cícero Dias, Cordeiro conclui que a crítica de Milliet serviria apenas para os “joguinhos políticos do mundanismo artístico”.29 Cordeiro vive a efervescência das disputas vanguardistas, defendendo a arte concreta e polemizando com os críticos Sergio Milliet e Ferreira Gullar. Integra-se definitivamente aos circuitos da arte concreta, juntando-se aos poetas paulistas, Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, e aos concretistas argentinos, a exemplo de Tomás Maldonado. Se fosse possível traçar com maior rigor os perfis de Mario Pedrosa e Waldemar Cordeiro para compará-los, possivelmente se haveria de ver as diferenças sensíveis entre os dois líderes do movimento concretista, no que respeita a sua origem, idade, formação, profissão e círculos sociais, que, se não determinaram, certamente contribuíram para marcar os debates voltados para a ruptura com os modernistas, adeptos da figuração, e, sobretudo, orientar as celeumas entre os concretistas. Em São Paulo, a articulação do concretismo esteve às mãos de um artista plástico e crítico de arte. Portador de dupla atividade no campo artístico, Cordeiro, um polemista inquieto, levou a cabo seus projetos em meio a adversidades e conflitos. Notabilizou-se pela composição de obras como Estudo (1952) e da série Ideia visível (1956 e 1957), ainda que a crítica lhe tenha sido pouco favorável. Os materiais e as técnicas de caráter industriais – o esmalte, a pistola, o compensado – utilizados por Cordeiro o colocaram no rol dos racionalistas que desejam a supressão da subjetividade e da intuição. Para

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Rodrigo Naves, por exemplo, o uso do plexiglass, em Ideia visível, exposta na I Exposição de Arte Concreta, em 1956, já é um indicador seguro de suas intenções [de Cordeiro]. A trans-

parência do suporte, acentuada por um anteparo preto colocado por trás, ajuda realmente a tornar visível a ideia do artista, que de certo modo se resume a recusar a simples reiteração concêntrica dos diver-

sos círculos, construindo figuras que,em sua excentricidade,produzem a impressão de que aquele desequilíbrio conduzirá a uma dinâmica dos círculos desencadeada pela falta de balanceamento entre eles.30

Contudo, o reconhecimento e a legitimação do concretismo na cidade de São Paulo seria impensável sem o crítico e o artista. Foi enfrentando resistências e obstáculos que ele levou a cabo seu intento de promover a estética concretista nas interseções com o Museu de Arte Moderna e a Bienal de São Paulo, fosse sob os efeitos das ideias de Max Bill, fosse com as críticas duras de Sergio Milliet, numa cidade cuja identidade se fazia em meio a rápido processo de industrialização e atividades múltiplas de seus imigrantes. Aceito nos locais de exposição mas rechaçado entre os críticos pelo seu racionalismo industrialista, o projeto liderado por Cordeiro e as obras do grupo concreto paulista merecem estudos mais acurados, que possam distinguir as ideias polêmicas do crítico de arte de sua ressonância na obra conjunta dos concretistas paulistas.31 São diversos os pontos de vista por meio dos quais se podem apreciar as diferenças dos concretos e buscar compreender por que o desenvolvimento de sua produção plástica desdobrou-se em distintas orientações.32 Ainda que todos os artistas tenham limitações, talvez seja possível aproximar a formação menos rigorosa do grupo carioca a uma prática mais aberta às contingências, enquanto a constituição mais coesa, presidida por preceitos, tenha levando os paulistas a orientar-se de modo racional e planejado, o que inclui necessariamente a previsibilidade. O que parece inadmissível, entretanto, é considerar cariocas, de um lado, e paulistas, de outro, como seres possuidores de uma “essência” determinante de sua produção plástica. Em plena era de revisão dessa importante fase da arte brasileira e internacional,33 é pouco rentável do ponto de vista cognitivo

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Reflexões sobre arte e cultura material

adotar uma concepção essencialista para a interpretação das tendências do movimento concretista brasileiro, cuja maior conquista foi realizar-se, rompendo com uma das mais fortes tradições intelectuais e artísticas do país voltada para a construção figurativa da identidade nacional, e promovendo experiências plásticas que resultaram em novo acervo brasileiro. De outro modo, aprofundar a pesquisa sobre o surgimento do concretismo, investigando as ações e os discursos dos que participaram no movimento pode contribuir para alargar o escopo do conhecimento sobre as mudanças no campo artístico brasileiro, afastando-se das repetições infecundas que modelam sua memória.

Notas 1

Carvão, Aluísio. In: Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.). Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos 50. Rio de Janeiro: Funarte, 1987, p. 141.

2

A respeito da Teoria do Não objeto, ver de Martins, Sergio Bruno, Phenomenogical Openness: Historicist Closure: Revisiting the Theory of the Non-Object, Third Text, vol. 26, Issue 1, 2012, pp. 79-90.

3

Entre os concretistas, Almir Mavignier, Ivan Serpa, Lygia Pape, César e Hélio Oiticica eram cariocas. No Rio de Janeiro moravam: Aluísio Carvão, paraense; Lygia Clark e Amílcar de Castro, mineiros; Rubem Rudolf, alagoano; Eric Baruch, holandês; além de Abraham Palatnik, vindo de Israel, e Franz Weissman, da Áustria. Luiz Sacilotto e Geraldo de Barros eram paulistas e moravam em São Paulo, juntamente com Willis de Castro, mineiro; Samson Flexor, romeno; Kazmer Fejer, húngaro; Leopold Harr, polonês; e Waldemar Cordeiro, italiano que optou pela nacionalidade brasileira.

4

Projeto Construtivo na Arte: 1950-1962. Coordenadora Aracy Amaral. Rio de Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977, pp. 136-137.

5

Os três poetas paulistas fundaram, em 1952, um grupo intitulado Noigandres no qual disseminaram suas novas ideias e experimentos por meio de uma revista lançada com o mesmo nome. A revista Noigandres n. 4 traz importante contribuição para o movimento da Poesia Concreta, inclusive com a publicação do “Plano-Piloto para a Poesia Concreta”, manifesto que apresenta as principais diretrizes e propostas do movimento.

6

Ver Belluzo, Ana Maria de Moraes (org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Unesp, 1990, p. 118; e Cordeiro, Waldemar. “Teoria e prática do concretismo carioca”. In: Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.), 1987, pp. 225-227.

7

Ver carta depositada no arquivo do Centro de documentação do movimento operário Mario Pedrosa da Universidade Estadual de São Paulo e também entrevista de Gullar sobre a carta em Formas do afeto. Um filme sobre Mario Pedrosa (35 min), direção Nina Galanternick, produção e pesquisa, Glaucia Villas Bôas, 2010, Nusc/UFRJ, Faperj.

Os dois lados do concretismo

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8

Em 1959, I Exposição de Arte Neoconcreta no MAM; Exposição de Arte Concreta, em Salvador; Balé Neoconcreto de Lygia Pape e Reynaldo Jardim. Em 1960, Exposição Internacional de Arte Concreta em Zurique, organizada por Max Bill, e, em 1961, Exposição Neoconcreta em São Paulo. 9

Villas Bôas, Glaucia. A estética da conversão: o Ateliê do Engenho de Dentro e a Arte Concreta carioca: 1946-1951, Tempo social, vol. 20. n. 2, novembro, 2008.

10

Sobre as obras dos internos, ver catálogo da exposição Images of the Unconscious from Brazil, Confluência de Culturas, Câmara Brasileira do Livro, São Paulo, 46ª Feira de Livro de Frankfurt, 1996. Ver também Raphael e Emydio: dois modernos no Engenho de Dentro, Instituto Moreira Sales, 2012.

11

Silveira apud Gullar, 1996. Gullar, Ferreira. Nise da Silveira: uma psiquiatra rebelde. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade, Relume Dumará, 1996.

12

Pedrosa, Mario. Mestres da Arte Virgem, In: Arantes, Otíla (org.). Forma e percepção estética – Textos Esolhidos II. São Paulo: Edusp, 1996, pp. 85-88.

13

Ver Mari, Marcelo. “Estética e Política em Mario Pedrosa”. Tese de doutorado apresentada no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, 2006; e Ribeiro, Marcelo, “Arte, socialismo e exílio: Formação e atuação de Mario Pedrosa de 1930 a 1950”. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.

14

Barcinski, Fabiana; Siqueira, Vera Beatriz; Ferreira, Hélio Márcio Dias (orgs.). Ivan Serpa. Rio de Janeiro: S. Roesler/Instituto Cultural Axis, 2003, p. 15.

15

Erber, Pedro. Políticas da abstração: pintura crítica no Brasil e Japão, anos 1950. In: Villas Bôas, Glaucia (org). Vida da crítica: percursos de Mario Pedrosa, Poiesis, Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Arte, UFF, n. 14, vol. 1, 2009 pp. 44-57; e Mari, Marcelo. Estética e Política em Mario Pedrosa. Tese apresentada no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, 2006.

16

Niomar Muniz Sodré trabalhou no MAM de 1951 e 1966, tendo assumido sua direção em 1952; Carmem Portinho foi diretora executiva de 1951 a 1966.

17 Ferreira, Hélio Márcio Dias. “Ivan Serpa, Artista-Educador”. In: Ivan Serpa. Rio de Janeiro: S. Roesler/Instituto Cultural Axis, 2003, p. 205. 18

Barcinski, Fabiana; Siqueira, Vera Beatriz; Ferreira, Hélio Márcio Dias (orgs.). Ivan Serpa. Rio de Janeiro: S. Roesler/Instituto Cultural Axis, 2003.

19

Ver, como exemplo, Couto, Maria de Fátima Morethy. Por uma vanguarda nacional. A crítica brasileira em busca de uma identidade artística (1940-1960). Campinas: Unicamp, 2004; e Sant’Anna, Sabrina Marques Parracho. Construindo a memória do futuro. Uma análise da fundação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 2011.

20

A origem social do grupo era heterogênea, assim como sua procedência. Lygia Clark, por exemplo, vinha de família abastada, Mavignier era filho de classes médias, quase todos eles porém tiveram algo em comum, como o aprendizado da arte com Ivan Serpa ou com artistas estrangeiros que se radicaram no Rio de Janeiro durante a II Guerra Mundial. Não foram alunos da Escola Nacional de Belas-Artes ou a abandonaram, como fez Franz Weissmann, em 1940, quando era aluno do curso de arquitetura. Não frequentaram os ateliês conhecidos, na cidade, como o de Portinari. Poucos viajaram para o exterior no

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Reflexões sobre arte e cultura material

início da carreira, como o fez Lygia Clark. Almir Mavignier e Ivan Serpa, Fayga Ostrover, Renina Katz, estudaram com Axel Leskoschek e Arpad Szenes, artistas estrangeiros que se radicaram no Rio durante a Segunda Guerra Mundial. 21 22 23

Aluisio Carvão, apud Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.). 1987, p. 141. Di Cavalcanti, Revista Fluminense, n. 3, 1948 apud Bandeira, João. 2002, p. 17.

Cordeiro, Waldemar. “Balanço da vida oficial das artes plásticas em 1950””. In: Bandeira, João (org.). Arte concreta paulista: documentos. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p.16.

24

A hipótese de Aracy Amaral foi publicada em Amaral, Aracy (org.). Projeto Construtivo Brasileiro na Arte (1950-1962). Rio de Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977, pp. 312-317. De acordo com Amaral, no Rio de Janeiro, os concretistas eram artistas plásticos, à exceção de poucos. Na realidade, a formação dos artistas cariocas era diferenciada, tendo alguns começado diretamente com o aprendizado da pintura, enquanto outros haviam estudado arquitetura ou direito antes de voltar-se para a prática artística. Contudo, quase todos trabalharam em desenhos têxteis, propaganda, cartazes, ilustrações e capas de capas, diagramação, móveis etc.

25 26 27 28

Ibid.

Sobre a crítica à obra de Calder ver Arantes, Otília. 2000, n. 4, pp. 47-90. Osório César foi casado com Tarsila do Amaral de 1931 a 1935.

Carvalho, Rosa C. M; Reily, Lucia. “Arte e Psiquiatria: um diálogo com artistas plásticos no Hospital Psiquiátrico de Juqueri”. In: ArtCultura, Uberlândia, v. 12, n. 21, jul–dez, 2010, pp. 165–180.

29 30

Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.). 1987, pp. .220-223.

Naves, Rodrigo, A complexidade de Volpi. Nota sobre o diálogo do artista com concretistas e neoconcretista em Novos Estudos. CEBRAP, 81, julho, 2008, pp. 148-149.

31

Quanto a essa questão, ver análise da obra Concreção (1957) de Luiz Sacilotto, em Moura, Flávio Rosa de. Obra em construção: a recepção do neoconcretismo e a invenção da arte contemporânea no Brasil, Tese de doutorado, USP, 2011.

32

Reinheimer, Patrícia. A singularidade como regime de grandeza: nação e indivíduo como valores nos discursos artísticos brasileiros. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, no Museu Nacional, UFRJ, 2008.

33

Ver catálogo da exposição sobre a Arte Neo-concreta promovida pela a Akademie der Künste, em Berlin, 2010.

Gastronomia e sociedade de consumo. Tradições culturais brasileiras e estilos de vida na globalização cultural Maria Lúcia Bueno (UFJF)

Consumo e estilos de vida Os estilos de vida,1 no mundo moderno e contemporâneo, tornaram-se uma das principais instâncias de construção de identidades, que afloram e ganham visibilidade no interior de um mosaico de práticas culturais. As maneiras de beber, comer, vestir, morar, associadas às escolhas literárias e artísticas, remetem a níveis de reconhecimento mais profundos – a classe social, a ocupação, mas também às opções éticas, políticas, estéticas e morais.2 Esse processo resultou numa verdadeira revolução no interior de domínios associados ao consumo e os estilos de vida, como a moda e a gastronomia. A valorização crescente desses setores na modernidade, o aumento do público consumidor, a desterritorialização e a diversificação das formas de apropriação provocaram uma ruptura com os modos de gestão herdados do passado. Estabeleceu-se um clima generalizado de desorientação com relação às práticas e os hábitos, que evoluem cada vez mais desconectados da tradição, transmutados pelo fluxo do consumo e da circulação. Em resposta desenvolveu-se um novo arcabouço institucional compatível com as modificações em curso, com o intuito de criar formas de regulamentação que acomodassem parte das hierarquias e procedimentos do passado.3 Podemos mencionar como exemplos os museus modernos, as imprensas especializadas – arte, moda, decoração, literatura etc. – e as diferentes modalidades de guias – de turismo, gastronomia etc. Os espaços de consumo também sofreram alterações, deixando de ter uma função puramente comercial, para adquirirem cada vez mais conotações e papéis que até então eram específicos dos espaços públicos.4 89

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Reflexões sobre arte e cultura material

A expansão e a sofisticação das práticas de consumo transformaram alguns redutos associados à tradição e ao mundo dos objetos em esfera cultural, lugar de construção de identidades. As transformações no âmbito do consumo evoluem sintonizadas com transformações análogas no contexto da produção, num movimento que vem esgarçando os limites entre as práticas culturais e as práticas estéticas, promovendo uma aproximação entre elas. Nesse cenário, artífices como o estilista e o chef despontam como novas modalidades de produtores simbólicos que lidam com a estética e a cultura. Os universos da moda e da gastronomia estão associados ao desenvolvimento do mercado de luxo e sintonizados com a dinâmica do circuito globalizado, despontando como espaços econômicos e culturais relevantes no Brasil a partir dos anos 1980. Os estilistas e os chefs são os personagens mais proeminentes desses contextos, em que a organização do trabalho assume configurações extremamente individualizadas. Em nosso estudo procuramos traçar, com base nesses agentes e das suas conexões, um primeiro esboço da evolução histórica e da organização cultural e material dos redutos da moda e da gastronomia. A moda e a gastronomia se converteram em espaços de construção de estilos de vida, o que resultou numa elevação cultural dos seus principais profissionais, transformando o caráter do trabalho que desempenham, que evolui de prática artesanal a prática intelectual. Moda e gastronomia são também formas de cultura material que produzem e transmitem significados culturais. Diana Crane observa que no contexto globalizado a cultura material adquire relevância como veículo de mudança cultural por sua capacidade de incorporar valores simbólicos e mudar ou reforçar esses valores para os consumidores, quando estes adquirem e utilizam produtos materiais. Nessa perspectiva, a cultura material pode ser considerada um tipo de texto que expressa símbolos e contribui com discursos e repertórios culturais.5

Uma hipótese que permeia nossa reflexão é que a moda e a gastronomia no universo contemporâneo, extrapolando o âmbito restrito do comércio de luxo, expandem-se para um público mais amplo com sua dimensão estética e cultural. A amplificação da visibilidade desses setores pela mídia, pela multiplicação de publicações especializadas – livros,

Gastronomia e sociedade de consumo

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jornais, revistas, guias e manuais – e pelos programas de televisão consolidam uma cultura de moda e uma cultura gastronômica como esfera de debates, de constituição de diferentes correntes e tendências teóricas, na qual o estilista e o chef se configuram, cada vez mais, como agentes culturais. Nessa perspectiva, talvez a moda e a gastronomia possam ser pensadas como uma modalidade de indústria cultural, na qual o consumo simbólico suplanta a apropriação individual.

Globalização cultural e cultura brasileira Compreendemos como globalização cultural um fenômeno que se fortalece na virada dos anos 1970 para 1980, associado ao desenvolvimento de um sistema de comunicação-mundo,6 responsável pela construção de uma nova base material da qual a vida – social, econômica, cultural e política –, em diferentes regiões do planeta, passa a evoluir num movimento de conexão crescente. Na consolidação dessa nova configuração social, as indústrias culturais desempenham um papel fundamental. A globalização só existe enraizada nas práticas cotidianas. Os homens encontram-se ligados pelo destino, pelas experiências sociais e políticas, por uma cultura material e um repertório simbólico comum. Renato Ortiz observa que trata-se de um processo social que atravessa de forma diferenciada as realidades nacionais e locais. Seu vetor se define por sua transversalidade. Trata-se de uma tendência. […] como uma tendência é sempre algo genérico e é preciso aprendê-la indiretamente, torna-se necessário buscar expressões modais que a explicitem.

Assim, para o sociólogo brasileiro, elementos como gastronomia, cultura popular, consumo, turismo, moda, despontam como objetos heurísticos que revelam um arranjo social transcendente às exigências e expectativas de uma cultura nacional. Pensá-los em um contexto particular é considerá-los como parte de uma matriz mais ampla, mundial.7

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Reflexões sobre arte e cultura material

Refletir sobre a moda e a gastronomia com base nessa matriz é considerá-las objetos privilegiados para compreendermos a organização da cultura e da sociedade na dinâmica globalizada, na qual operam como forças motoras importantes no âmbito social, econômico e cultural, e que por isso nos ajudam a pensar a relação modernidade e cultura brasileira nos séculos XX e XXI. Como já foi apontado por vários autores, o que designamos como cultura brasileira é sempre o resultado de uma construção, articulada pela visão de alguns segmentos sociais, envolvendo elementos retirados da memória coletiva e elementos retirados de experiências correntes em diferentes períodos históricos. No contexto dos séculos XX e XXI, essa construção se alimenta fortemente de expressões modais como indústria cultural, cultura popular, turismo, moda etc. São referências constitutivas do modo de vida contemporâneo que vão produzir novas aproximações com a memória coletiva. Dentro dessa perspectiva, os fenômenos da moda e da gastronomia emergem não apenas como objetos privilegiados, mas como elementos formadores dessa dinâmica, operando como polos de uma rede, que, em conexão com outras expressões modais, tornam-se responsáveis pelas constantes transformações que atravessam tanto o panorama cultural brasileiro, quanto o internacional. A expansão do consumo na sociedade contemporânea de modo geral, e no Brasil em particular, teve um impacto transformador na organização e na dinâmica da moda e da culinária, que passaram de setores associados aos ofícios e ao artesanato a esferas de produção cultural legitimadas. Esse movimento levou a uma mudança na nomenclatura dos profissionais mais prestigiados desses domínios (de costureiro a estilista, de cozinheiro a chef),8 que está associada a uma mudança de status (de artesãos a produtores intelectuais), indicando transformações correlatas no trabalho e no modo de produção. A sociedade de massa, a industrialização, a exigência de padrões pelo mercado, e de normatizações pela indústria, transformaram as áreas da moda e da gastronomia em universos, além de valorizados, altamente complexos. Os mundos da moda e da culinária, no final do século XX e início do XXI, passaram por um processo semelhante ao do mundo da arte no renascimento, quando se aprofundou a divisão do trabalho e se estabeleceu

Gastronomia e sociedade de consumo

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uma distinção entre o artesão e o artista, entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. O status da profissão de artista – e também de arquiteto – surgiu nesse momento, quando ele passou a ser reconhecido como autor intelectual da obra e gestor de sua execução nos grandes ateliês do Renascimento. O passo seguinte foi a criação das academias de arte9. O estilista e o chef se distinguem do costureiro e do cozinheiro porque não participam diretamente da confecção do produto. Eles são os autores intelectuais e os gestores do desenvolvimento desse produto na cadeia industrial, no interior das cozinhas e ateliês ou à frente de laboratórios de pesquisa. No contexto contemporâneo, em que as escolhas profissionais aparecem cada vez mais associadas aos estilos de vida, a valorização do trabalho no âmbito da moda e da gastronomia transformou os setores numa opção atraente para os jovens, uma área inovadora e ao mesmo tempo glamorosa, que passou a atrair um contingente de aspirantes de classe média e média alta. Simultaneamente, assistimos a uma mudança no modo de operação no interior desses universos. Até o final dos anos 1950 e início dos 1960, a moda internacional e a culinária internacional tinham Paris como centro de referência. Imitavam e reproduziam Paris. Desde então, deixaram de se pautar por modelos importados para se conduzirem fundados em uma lógica própria, que combina tendências globalizadas com tradições culturais locais. Nesta reflexão vamos restringir nossa análise ao mundo da gastronomia, salientando alguns aspectos dessas transformações no Brasil e no contexto globalizado.

A gastronomia e os chefs: uma perspectiva histórica Assim como aconteceu com a moda, a origem e a base do sistema gastronômico foi a sociedade de corte francesa.10 Expressão de civilidade, a gastronomia distingue-se das rotinas alimentares comuns, afirmando-se como uma prática erudita uma estetização da cozinha e das maneiras à mesa, uma virada hedonista dos fins biológicos da alimentação.11

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Reflexões sobre arte e cultura material

Diferentemente das cozinhas populares, de tradição oral, objetos de inúmeros desvios e versões, as cozinhas cultas foram rigorosamente codificadas em obras escritas, contendo registros minuciosos das receitas. Para o sociólogo francês Jean-Pierre Poulain, a partir do século XVII houve uma difusão internacional da cozinha francesa, que foi se tornando mais complexa, configurando-se como uma disciplina e como um sistema. Esse movimento foi seguido de uma mudança na organização das publicações especializadas, “passa-se do livro ‘compêndio’, simples lista de pratos, para uma ferramenta que permite fazer funcionar um código e quase já uma verdadeira linguagem12.” Opera simultaneamente como um livro de vocabulário e um manual de gramática. Expõe um código complexo que distingue os produtos de base, as téc-

nicas de cozimento, as técnicas de combinações, os acompanhamentos

de legumes, os molhos; outros tantos elementos que se combinam entre si segundo regras de uma extrema precisão, para dar nascimento

a novos pratos: ou seja, pratos não descritos no livro mas contidos no código. […] o cozinheiro não cria um prato, mas fala uma língua.13

Após a Revolução Francesa, no decorrer do século XIX, com o aparecimento de instituições gastronômicas como os restaurantes e os cafés – que mais tarde se multiplicaram pelas grandes metrópoles em diferentes regiões do planeta –, o setor se sofisticou e se consolidou como um sistema. Nesse contexto de ampliação do mercado, quando os chefs se autonomizaram das cozinhas de corte, apareceram os críticos de gastronomia e os primeiros guias gastronômicos. Nas cidades europeias do século XIX, reproduzindo a dinâmica dominante na sociedade de corte, os modelos estéticos e literários, assim como os estilos de vida em moda, gastronomia, lazer, entre outros, evoluíram em oposição às tradições regionais, em torno de padrões internacionais. Esse panorama começou a se modificar no início do século XX com o desenvolvimento do turismo automobilístico e o aparecimento dos guias especializados que passaram a destacar as cozinhas regionais. Foi o inicio de uma grande mudança na cultura gastronômica, marcada pela valorização da diversidade e da qualidade dos ingredientes, pela crítica à massificação

Gastronomia e sociedade de consumo

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da alimentação, pelo diálogo entre as cozinhas cultas e populares, onde as culturas locais, com a noção de terroir,14 foram adquirindo centralidade. Esse movimento de mudança se consolidou nos anos 1970 com o movimento conhecido como nouvelle cuisine, a partir do qual a profissão de chef adquiriu sua configuração atual. O surgimento da nouvelle cuisine é um exemplo perfeito do que Anthony Giddens designa de reflexividade institucional 15. A nova corrente não foi impulsionada por um chef, mas por dois críticos, Henri Gault e Christian Millau, responsáveis por uma publicação gastronômica até então alternativa, Le Nouveau guide Gault et Millau, que lançaram em 1973 um desafio pela renovação e modernização da culinária, propondo alguns novos mandamentos que atacavam os pilares da tradição gastronômica francesa e da italiana. Começaram desvinculando a alta gastronomia do mundo do luxo, a qual estava associada, minimizando a importância dos cenários requintados e dos produtos caros para ressaltar o talento do chef. Em março de 1973, sob o título de À l’ouest du nouveau, anunciavam uma transformação na geografia gourmande de Paris, chamando a atenção para uma nova geração de chefs que despontava na periferia parisiense,16 praticando uma cozinha inventiva, com cardápios reduzidos e um novo estilo, baseado na simplicidade. Alguns meses depois, em outubro, publicavam outro artigo formulando o que passaram a designar como os dez mandamentos da nouvelle cuisine. Entre eles constavam a defesa de uma gastronomia mais leve; a valorização dos produtos frescos disponíveis no mercado; a utilização de novas técnicas e tecnologias; a abolição de anacronismos como os temperos pesados e os cozimentos excessivos, resíduos de épocas em que as cozinhas não dispunham de sistemas de refrigeração.17 A adesão entusiasmada de um grupo de chefs18 gerou uma verdadeira revolução, promovendo uma nova maneira de pensar e fazer cozinha: não mais como uma tradição a ser reproduzida, mas como um projeto, ligado a um conceito de gastronomia concebido por estilos de vida, tecnologias, estudo das novas possibilidades das tradições e dos ingredientes19. A proposta se difundiu rapidamente para os Estados Unidos e para o Oriente. O entusiasmo pelo exotismo, pela experimentação e pela invenção estreitou as colaborações, intensificou o processo de trocas, promovendo o fortalecimento de uma nova rotina, as hibridações. Nesse quesito, um destaque é a forte influência da cozinha japonesa sobre a ocidental, de

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Reflexões sobre arte e cultura material

modo geral, alterando as técnicas de cozimento, a maneira de lidar com os produtos e a estética dos pratos.20 A nouvelle cuisine, que foi a primeira de uma série de correntes que passaram a constituir o campo de debates em torno do qual se organiza a gastronomia contemporânea, assinalou também o início do processo de globalização nesse universo21.

Gastronomia e sociedade de consumo no Brasil O desenvolvimento de uma cultura de moda e uma cultura gastronômica, a partir da emergência de núcleos de produtores locais nos principais centros brasileiros, ocorreu em duas etapas, relacionadas a dois momentos distintos de expansão da sociedade de consumo no país: a década de 1970 e os anos 1990 e 2000. A consolidação da sociedade urbana e industrial promoveu uma valorização econômica e social de práticas culturais associadas ao estilo de vida e aos hábitos de consumo das elites modernizadas – um contingente de profissionais urbanos, homens e mulheres, que trabalham, ganham razoavelmente bem, têm estilos de vida sofisticados e circulam no mundo globalizado.22 Logo, um segmento que se ampliou a partir dos anos 1970 e 1980. Desde o final da Segunda Guerra Mundial vinha se expandindo uma rede de restaurantes em São Paulo e no Rio de Janeiro, com uma cozinha com sabores variados, ligada aos diferentes núcleos de imigrantes. Entre os espaços de maior prestígio predominavam a culinária italiana, na capital paulista, e a internacional, uma versão padronizada de alguns estereótipos da cozinha francesa, em ambas as cidades. Mas o “hábito de comer fora” se fortaleceu e se difundiu nos centros urbanos brasileiros em geral em meados dos anos 1960 e início dos anos 1970. A partir de então, como revelam os dados abaixo, temos uma expansão do mercado consumidor, seguida de uma amplificação sensível do número de restaurantes no país23. Evolução da porcentagem da população que realiza refeições fora de casa nos centros urbanos brasileiros (Fonte: Food Service) 1970 – 11%

1990 – 20%

2006 – 32%

Gastronomia e sociedade de consumo

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Aumento do número de restaurantes no Brasil de 1980 a 2003 1980 – 320.000

2003 – 904.000

O Sindicato dos Bares, Restaurantes e Similares em São Paulo registrou em 2009, apenas em São Paulo, um total de 15 mil bares e 12,5 mil restaurantes, classificados a partir de 55 diferentes especialidades de comida. Entre os quais: 500 churrascarias, 256 restaurantes japoneses, 1.200 pizzarias.24 Porém, nos primeiros tempos, esse crescimento da gastronomia no país não levou a uma expansão correlata das tradições culinárias brasileiras. O público consumidor nos anos 1960 e 1970, ainda empenhado em projetar uma imagem de civilidade moderna e cosmopolita, tendia a valorizar a adoção de modelos importados, que associavam ao estilo urbano, menosprezando maneiras e hábitos ligados às tradições locais, vistas como parte do mundo rural que desejavam superar. Se muitas das práticas alimentares regionais foram preservadas no âmbito privado, principalmente nas residências populares, o mesmo não ocorreu com a rede de estabelecimentos comerciais das grandes cidades, onde – com exceção de uma ou outra casa criada para atender à curiosidade dos turistas – foram ignoradas. Sem valor comercial, diversas frutas, ervas, raízes, legumes deixaram de ser cultivados, desaparecendo do mercado. Um olhar sobre o panorama gastronômico da cidade de São Paulo é ilustrativo das transformações que estamos apontando. A tabela, na página seguinte, uma variação da elaborada por Isabella Masano25, mostra a evolução do universo da gastronomia na cidade de São Paulo a partir da seleção de estabelecimentos realizada pelo Guia Quatro Rodas entre 1966 e 2011. O quadro evidencia a alta reputação da cozinha italiana e internacional nos anos 1960 e 1970, assim como a ausência de prestígio da cozinha brasileira, que era depreciada tanto em número quanto em qualidade, classificada genericamente, sem levar em consideração as profundas diferenças regionais existentes. A preocupação em apresentar nossa cozinha a partir das tradições e das diferentes regiões só aparece no guia nos anos 2000. Desde então, a tradição culinária brasileira pode ser identificada em três diferentes modalidades, em função da maneira de trabalhar com as tradições:

1. Regional, conforme tradição e região. No guia aparece organizada em função das diferentes tradições regionais.

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Reflexões sobre arte e cultura material

2. Contemporânea, que realiza uma gastronomia moderna e globalizada, mas que se desenvolve com práticas e ingredientes locais. 3. Variada, que trabalha com a hibridização das tradições brasileiras com outras vertentes étnicas, entre as quais a cozinha oriental, que vem aparecendo como uma das parcerias mais fortes. Seleção de restaurantes de São Paulo Especialidades

1966

1971

1986

1990

2001

2006

2011

4

8

12

6

19

36

47

Tradições regionais

15

17

18

Contemporânea

2

11

13

Variada

2

8

16

Brasileira (total)

Churrascos

17

Frutos do mar

35

37

20

20

27

26

2

11

10

7

5

3

28

36

25

37

Variada Internacional

35

40

27

Italiana

33

51

100

60

75

77

74

25

24

23

16

24

4

3

2

1

1

4

9

3

5

5

7

2

8

6

10

6

4

Francesa Francesa e suíça

9

18

Suíça Protuguesa

5

Espanhola Alemã

9

14

13

7

5

4

4

Japonesa

5

5

20

17

25

26

25

Árabe

4

3

10

5

12

9

11

Chinesa

3

8

19

11

8

6

5

1

1

2

3

4

3

4

4

3

2

4

7

11

Asiática Judaica

2

Latino-americana Outras Total

3

10

22

20

131

200

300

225

13 257

267

285

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A valorização e um interesse mais sistemático pela culinária brasileira despontaram apenas a partir dos anos 1990. A comida, que até então se destacava como parte dos eventos familiares, se transformou em tema de debates científicos e intelectuais, assunto de rodas sociais, de programas de televisão, de revistas, de livros, ocupando um lugar na mídia e se convertendo em segmento importante da indústria cultural. Nesse curso, o personagem do chef foi ganhando visibilidade. Nos anos 2000 temos um surto de pequenos restaurantes com chefs estrelados,26 entre os quais a gastronomia brasileira começa adquirir centralidade. Esse movimento coincidiu com o boom da gastronomia no país e está associado ao aparecimento do chef brasileiro. Pela pesquisa realizada até o momento, essa expansão e mudança na dinâmica da cultura gastronômica, que ainda se encontra em curso, é decorrência de uma série de fatores relacionados à globalização.

Gastronomia brasileira e globalização Com a globalização do turismo, no final dos anos 1970 e início dos 1980, redes hoteleiras internacionais se instalaram no país, como as francesas Sofitel e Méridien, que levaram seus hotéis de luxo para a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Com um olho no turismo sofisticado e outro no consumidor interno, os hotéis importaram chefs estrelados para criar espaços dedicados à alta gastronomia, como o Le Pré Catelan, no Sofitel, com menu assinado por Gaston Lenôtre, e o Saint-Honoré, no Méridien, sob a orientação de Paul Bocuse. Para gerir os estabelecimentos, foram contratados profissionais franceses formados dentro dos preceitos da nouvelle cuisine. No Pré Catelan ficou Claude Troisgros, filho de Pierre Troisgros, um dos pioneiros da nova corrente, e no Saint-Honoré, Laurent Suaudeau, que trabalhava para Paul Bocuse. Muito jovens, casaram-se com brasileiras e mais tarde se fixaram no país à frente de seus próprios restaurantes. Ambos ajudaram a formar um campo de gastronomia no Brasil, criando associações e escolas, e impulsionando uma nova maneira de pensar a culinária. Trabalhavam afinados com o pensamento contemporâneo, mas recorrendo a componentes e práticas da cozinha tradicional brasileira, mobilizando um movimento de pesquisa e valorização das tradições regionais. A

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esse respeito, é ilustrativo o depoimento de Suaudeau sobre o início do seu trabalho no Rio de Janeiro: Depois de conquistar a equipe, fui descobrindo os produtos brasileiros

e vi que, com eles, teria condições de desenvolver uma boa culinária, aplicando os conceitos e a metodologia que eu trazia da França. Meu segundo chef, Paulo Carvalho, era brasileiro, e, com ele, conheci muitos

ingredientes locais. O mais difícil foi fazer com que a clientela assi-

milasse a nova proposta. Naquele momento predominava no Rio uma

cozinha extremamente internacional, baseada em clichês gastronômicos da culinária francesa. As pessoas achavam que eu era doido por

colocar nos pratos aipim e maracujá, ou por usar o tucupi no lugar do vinagre. Eram produtos encontrados na cozinha doméstica, em casa de gente pobre.27

A atuação dos chefs franceses atraiu outros profissionais estrangeiros para o país, que ajudaram a fortalecer as propostas de incorporação das tradições culinárias brasileiras iniciadas pelos primeiros. Um exemplo é o francês Olivier Anquier, responsável por um dos primeiros programas gastronômicos na televisão brasileira a enfocar os hábitos e as práticas alimentares em diferentes regiões do país. Por influência e demanda dos chefs estrangeiros, desenvolveu-se uma série de novos procedimentos, como o cultivo de ervas frescas e de outros produtos agrícolas, que não existiam até então nos mercados locais e que também foram sendo incorporados nas rotinas alimentares dos habitantes de São Paulo e do Rio. No início dos anos 1990, dois planos econômicos governamentais vão influenciar os rumos da gastronomia entre nós.28 Primeiramente, o Plano Cruzado, que derrubou as barreiras alfandegárias, possibilitando a entrada de ingredientes que não havia no país. A seguir, o Plano Real, que equiparou a moeda brasileira ao dólar, tornando os produtos importados mais acessíveis. A competição com o produto estrangeiro, instaurada com a abertura das exportações, obrigou a indústria alimentícia nacional a melhorar a qualidade e a variedade da produção. Todas essas mudanças trouxeram também uma nova qualidade para as correntes gastronômicas

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já estabelecidas no país, como as culinárias italiana, japonesa e libanesa em São Paulo, que lidavam com uma série de restrições.29 O aumento do poder aquisitivo da classe média brasileira e a popularização das viagens internacionais foram responsáveis por um novo perfil de consumidor – mais culto, informado e aberto para experiências inovadoras –, que respaldou o desenvolvimento de uma cultura gastronômica contemporânea no país alimentada por tradições locais. Em meados dos anos 1990, impulsionados por todas essas mudanças, despontou o primeiro núcleo de chefs brasileiros, que, independentes da tradição local, operavam com base nas correntes gastronômicas contemporâneas, mas empenhados em desenvolver uma interpretação pessoal, mediante a utilização de elementos das cozinhas regionais, que estavam praticamente esquecidos. Temos uma revitalização de produtos como a mandioca, o tucupi, o caqui, que ressurgem no interior de práticas culinárias distintas das receitas regionais às quais até então estavam atrelados. Os novos chefs brasileiros praticam uma culinária contemporânea e globalizada, recorrendo aos perfumes e sabores locais, como um elemento de diferenciação, mas procurando construir um estilo próprio. Sobre esse esforço é revelador o comentário de Alex Atala, um dos pioneiros dessa geração: A cozinha francesa dos grandes chefs, nos últimos anos, se assemelha a um filme de Hollywood: bem-feito, mas sem emoção. Há um ritual no comer que é muito formal, e só. A mesa é a grande emoção da gastronomia. É preciso cozinhar com alma, provocar, surpreender todos os sentidos sempre. Desestruturar, olhar o conceito, desmembrar, buscar na raiz e trazer a mesma receita com uma nova proposta no momento oportuno. Não somos franceses e não queremos ser franceses.30

A incorporação de ingredientes nativos, baratos e de fácil acesso no mercado viabilizou economicamente a gastronomia para um público mais amplo, que tem acompanhado essas transformações pelos programas ministrados pelos chefs na televisão, contribuindo para sua difusão no país. Trata-se da primeira geração de chefs, vinda da classe média e média alta, que não despontou das cozinhas dos restaurantes. Para todos eles a gastronomia surgiu como uma nova opção, numa fase de crise e transição da vida profissional. Muitos deles viveram essa transição na Europa e nos

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Reflexões sobre arte e cultura material

Estados Unidos, onde se iniciaram nos anos 1990, realizando estágios em espaços inovadores. Bonitos, jovens e bem-sucedidos, transformaram-se em referência para toda uma nova geração a partir do ano 2000. Os chefs, a partir da nouvelle cuisine, lembram um pouco os cineastas do cinema novo e da nouvelle vague, que nos anos 1950 e 1960 começaram a pensar o cinema como uma linguagem. Beneficiados pelo avanço das tecnologias cinematográficas, que se tornavam mais acessíveis em termos econômicos e de manipulação, eles não surgiram do meio técnico, mas do meio intelectual – das universidades e das publicações –, o que conferiu um novo status a esses realizadores ligados à vertente culta do cinema.31 Na gastronomia – o que ocorre também na moda –, o aparato técnico substitui a virtuose do chef, que fica cada vez mais restrito à concepção intelectual e à gestão de sua realização. Por fim, temos a emergência dos cursos superiores que se expandem a partir do ano 2000, assim como dos laboratórios de pesquisa dentro das universidades e do trabalho de órgãos como o SEBRAE, que iniciam políticas de revitalização de culturas agrícolas regionais. O primeiro curso de gastronomia em nível superior apareceu em São Paulo, em 1999. Pelos dados do INEP, em 2008 havia 78 cursos superiores de gastronomia em funcionamento no país, que em 2012 passaram a 124. Na seleção do vestibular de 2010 da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o novo bacharelado em gastronomia foi o curso com maior número de candidatos por vaga, superando o curso de medicina.

Gastronomia e indústria cultural Nos anos 2000, registramos uma expansão sensível da gastronomia na indústria cultural brasileira de modo geral. Nos veículos mais sofisticados, os jovens chefs locais dividem espaço com os estrangeiros. Nos de maior penetração, dominam os chefs brasileiros, estrelados ou não, ao lado dos franceses radicados no país, como Claude Troigros e Olivier Anquier, que viraram celebridades. Além das publicações especializadas (livros e revistas), apontamos a partir de 2005 o aparecimento dos cadernos semanais de gastronomia em grandes jornais, como o O Estado de S. Paulo e a Folha de S.Paulo. Paralelamente, assistimos a uma extinção gradativa dos cadernos femininos e de

Gastronomia e sociedade de consumo

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páginas culinária. A gastronomia vai substituindo a culinária, e os chefs vão tomando o lugar dos cozinheiros em todas as esferas da indústria cultural, assinalando uma transformação na maneira de pensar o tema. Essa mudança do comportamento com relação à gastronomia transparece também nos lançamentos imobiliários. Nos edifícios residenciais construídos nos últimos anos, as cozinhas dos apartamentos transformadas em espaço gourmet ganharam prestígio e adquiriram uma nova centralidade no universo doméstico da classe média. Por fim, destacamos a inclusão da gastronomia na pauta dos eventos artísticos e culturais. Em maio de 2012, na última edição da 8ª Virada Cultural de São Paulo – festival de rua patrocinado pela prefeitura, com 24 horas de duração –, foi criado um espaço gastronômico, “Os chefs na rua”, no qual o público poderia degustar especialidade de chefs brasileiros. A equipe de Alex Atala – chef do D.O.M, que acabara de ser indicado como o quarto melhor restaurante do mundo pela revista britânica Restaurant Magazine – ofereceu 600 porções da galinhada, que é servida em seu outro restaurante, o Dalva & Dito. Quando a distribuição começou, havia 5 mil candidatos à galinhada do Atala amontoados sobre o viaduto onde o espaço gastronômico estava instalado. O resultado foi uma grande conturbação, registrada pelos principais canais de televisão e veiculada no horário nobre. Por motivos de segurança o chef foi impedido de se aproximar do público, o que gerou novo tumulto, uma vez que muitas pessoas não estavam interessadas na galinhada e só entraram na fila para ver Atala de perto. Frente ao sucesso inesperado da alta gastronomia na rua, a prefeito da cidade aventou a hipótese de incluir uma “Virada Gastronômica” na programação cultural do próximo ano.

Digressão final Como observamos anteriormente, esta reflexão é parte de uma pesquisa sócio-histórica que se encontra em curso e que tem como um dos pontos de partida o debate em torno do consumo e dos estilos de vida, iniciado por autores como Thorstein Veblen, em A teoria da classe ociosa, e Pierre Bourdieu, em A distinção, que por caminhos diversos abordaram o problema tendo como foco principal a distinção social.

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A presente investigação busca em reflexões de sociólogos – como Néstor García Canclini, Diane Crane, Mike Featherstone, Anthony (Giddens) e Renato Ortiz – subsídios para entender como, a partir dos anos 1960, e da dinâmica globalizada que se instaura posteriormente, a problemática da cultura e do consumo desloca-se da perspectiva da distinção social para a dos confrontos culturais, deflagrados pela convivência de uma pluralidade de tradições e estilos de vida, numa dinâmica pautada pela crescente interconexão entre influências globalizadas de um lado e disposições locais e pessoais de outro.32 Na sociedade contemporânea, o mercado de bens de luxo não é mais o foco do mundo da moda e da gastronomia como no início do século XX; transformou-se num segmento. O moderno estilo de vida, como identificado por Georg Simmel – associado ao individualismo e a estetização do cotidiano, tendo o consumo como um dos vetores na construção das identidades –, é uma das principais matrizes das práticas culturais modernas. Na sociedade contemporânea expande-se uma nova dimensão das praticas de consumo, o moderno hedonismo, que, de acordo com o inglês Colin Campbell, é uma das bases do consumo na modernidade. O moderno hedonismo, associado ao prazer, não é percebido como uma experiência física, dos sentidos, mas como uma emoção, uma experiência transformadora, da esfera da imaginação. O consumo, para o autor, emerge como uma espécie de devaneio, operando no hiato entre os perfeitos prazeres do sonho e as imperfeitas alegrias da vida.33

Práticas culturais, como a moda e a gastronomia, sob essa óptica ganham uma nova dimensão, percebidas como experiências transformadoras – em sociedades ou grupos que vivem além das questões utilitárias, para os quais a sobrevivência básica é um problema superado. Com base nesse recorte, a moda é vista para além da distinção social (mas não da distinção/imitação), como uma maneira de autoprodução estética. Gilda Mello e Souza34 foi um dos primeiros autores a apontar esse aspecto da moda em seu estudo sobre as mulheres do século XIX, no qual é apresentada como uma dimensão criativa da vida, uma das poucas possíveis para toda uma geração que viveu confinada no ambiente doméstico.

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A culinária, sob essa perspectiva, não é mais percebida como uma dietética ou como uma experiência física degustativa,35 mas como um estilo de vida, uma emoção.36 É exemplar o comentário de Ferran Adria, o célebre chef de cozinha catalão, discorrendo a respeito da grande revolução gastronômica desses vinte anos: Não vou citar um método nem um produto. Foi fato que comer virou uma experiência multisensorial, com o prazer se incorporando a nova dimensão emocional.

A moda e a gastronomia não se desenvolvem mais em decorrência de um foco centralizado, exterior, de uma tradição hegemônica internacional – como foi a cultura francesa até meados do século XX –, mas baseados no padrão globalizado, arraigado na vida cotidiana e na experiência individual das pessoas, que evolui entre uma pluralidade de tradições. Nesse contexto, as práticas culturais e os estilos de vida ficam sujeitos às intempéries e as transformações arbitrárias, numa dinâmica social cada vez mais pautada pela reflexividade. A análise desses universos nos permite compreender, entre outros, como a emergência dessas produções culturais são indissociáveis tanto do modo de produção que as viabiliza quanto do complexo de convenções correntes que permitem que elas sejam compreendidas pelo público.

Notas 1

O conceito de estilo de vida foi forjado pela primeira vez pelo sociólogo alemão Georg Simmel (Simmel, 1999), ao refletir sobre a emergência de uma nova sensibilidade, com base no ritmo intenso e acelerado da vida urbana nas metrópoles da virada do século XIX para o XX. Leitor assíduo de Baudelaire, Simmel compreendeu essa nova sensibilidade como expressão do moderno estilo de vida, decorrência do impacto da economia monetária sobre a realidade subjetiva dos sujeitos. Ver Simmel, Georg. Le style de vie, em Philosophie de l’argent. Paris: PUF, 1999. Ver também Waizbort, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.

2

Na segunda metade do século XX, outros autores recorrerão ao conceito de estilo de vida, associado ao consumo, para analisar a cultura e o processo de constituição de identidades no mundo contemporâneo. Mencionamos particularmente: Bourdieu, Pierre. La distinction. Critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979; e Giddens, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. Pensando a partir do final do século XX, o estilo

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de vida para Giddens “pode ser definido como um conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo adota não só porque essas práticas satisfazem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de auto-identidade” (Giddens, 1997, p. 75). 3 4 5 6 7 8

Bueno, 2001.

Habermas, 1984.

Crane, 2011, p. 25. Mattelart, 1994.

Ortiz, 2000, p. 12.

A nomenclatura e a grafia que nomeia o novo profissional da gastronomia contemporânea obedece à designação globalizada de chef.

9

Heinich, 1993.

10 11 12 13 14

Elias, 1990; De Jean, 2010; Poulain, 2004; Vitaux, 2007. Poulain, 2004, p. 223. Poulain, 2004, p. 226. Ibid.

A noção de terroir, conforme Rambourg (2010, p. 271), remete à relação de determinado produto com a terra e a cultura agrícola da qual ele deriva. O melhor exemplo é o vinho. 15

O problema da reflexividade está no centro da análise da dinâmica da vida social na alta modernidade para Anthony Giddens. A reflexividade se manifesta em diversos aspectos: 1. No entrelaçamento das instituições modernas com a vida individual, na interação entre influências globalizantes de um lado e disposições pessoais de outro; 2. Nos processos de reorganização do tempo e do espaço, associados a mecanismos de desencaixe – mecanismos que descolam as relações sociais de seus lugares específicos, recombinando-as através de grandes distâncias no tempo e no espaço.Ver Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p.10.

16

Entre os chefs apontados nessa matéria por Gault e Millau estavam Michel Guérard e Claude Verger.

17 18

Rambourg, 2010.

Entre eles constavam chefs da nova geração, como Bocuse, Troisgros, Haeberlin, Peyrot, Denis, Guérard, Manière, Minot, Chapel, ao lado de outros estabelecidos, como Girard, Senderens, Oliver, Minchelli, Barrier, Vergé, Delaveyne, descontentes com o quadro convencional e ultrapassado da cozinha dominante na França. Ver Rambourg, Patrick. Histoire de la cuisine et de la gastronomie francaises. 2010, p. 297. 19 20 21

Vitaux, 2007; Suaudeau, 2004; Rambourg, 2010. Rambourg, 2010.

Conforme Jean-Pierre Poulain em Sociologia da alimentação (2004), nos anos 1980 os novos chefs franceses percorrem o mundo, convidados a promover a cozinha francesa, sendo que os mais eminentes foram contratados como consultores de redes de hotelaria internacionais ou de grupos industriais agroalimentares: Verger e Blanc em Bangkoc; Rebuchon, Gagnaire, Loiseau, Bras no Japão; Guérard nos Estados Unidos; Bocuse um pouco em toda parte, revezado atualmente por Ducasse (p. 39). Esses encontros, que possibilitaram o

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desenvolvimento de cozinhas eruditas de inspiração local, que resultaram na disseminação das “novas cozinhas” quebequense, japonesa, california, brasileira etc., por outro lado, contaminaram a própria evolução da cozinha francesa que passou a incorporar influências de diferentes tradições culinárias estrangeiras (p. 40). 22

Em L’élite artiste. Excellence et singularité en régime démocratique (2012), N. Heinich observa que a configuração social das elites se modificou nos últimos cem anos, evoluindo da “classe ociosa”, descrita por Thorstein Veblen na virada do século XIX para o XX, para a concepção contemporânea “bem mais centrada sobre as posições adquiridas por meio da atividade profissional” (p. 260).

23 24 25

Collaço, 2009. Ibid., p. 160.

Masano, 2011. A tabela apresenta uma releitura da elaborada por Masano, apresentando um novo enfoque sobre a cozinha brasileira com base na análise dos estabelecimentos que operam a partir dessa tradição apresentados no guia.

26 27

Collaço, 2009, p. 160.

Ver Suaudeau, Laurent. Cartas a um jovem chefe. Caminhos no mundo da cozinha. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 54.

28 29 30 31 32

Kontic, 2008; Masano, 2011. Masano, 2011.

Atala, em Dória, 2009. Bernadet, 1994.

Para tratar produção de cultura nesse contexto recorreremos também ao referencial teórico desenvolvido por Frederic Jameson, para tratar do pós-modernismo, e por Néstor Carcía Canclini, para abordar o problema do hibridismo cultural.

33 34 35 36

Campbell, 2001.

Melo e Souza, 1987.

Flandrin e Montanari, 1998. Campbell, 2001.

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Objetos e processos: de testemunho objetivo de uma realidade interior a agentes de transformação subjetiva Patrícia Reinheimer (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Introdução Em dezembro de 1946, foi aberta a primeira mostra de pinturas dos internos do Centro Psiquiátrico Nacional (CNP), no próprio CNP, constituída de 245 obras.1 Devido ao sucesso de público, a mostra foi transferida, em fevereiro de 1947, para o salão do primeiro andar do prédio do Ministério da Educação. Uma nota no jornal O Globo divulgava a exposição, no CNP, situado no Engenho de Dentro, e anunciava sua ida para o Centro do Rio de Janeiro: O grande público há de estacar surpreso, diante das telas e dos de-

senhos que a compõem, e, mais que ele, os pintores impressionistas

ou modernistas. Os seus colegas esquizofrênicos e débeis mentais os deixarão boquiabertos…2

Em outubro de 1949, outra mostra intitulada 9 artistas de Engenho de Dentro foi inaugurada, dessa vez no Museu de Arte Moderna de São Paulo, com 179 trabalhos expostos, entre desenhos, pinturas e esculturas.3 Essa mostra deslanchou uma querela entre críticos de arte cariocas que resultou em 28 notas nos jornais locais falando sobre a exposição,4 mas não abalou o meio psiquiátrico. Os artigos discorriam sobre a qualidade artística das obras, tecendo comparações com os artistas modernos. Essas comparações, por vezes, serviam para desqualificar as expressões artísticas modernas, outras para 111

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Reflexões sobre arte e cultura material

sustentar a dificuldade em definir fronteiras entre “normalidade” e “anormalidade”. Como ressalta Paula Barros Dias, “os desenhos e pinturas dos doentes mentais também atestavam que a faculdade artística sobrevivia à perda da razão e das habilidades sociais” ,5 ou seja, a produção artística servia em parte para comprovar a existência de traços de humanidade por trás da “loucura”. O advento dessas exposições foi resultado do trabalho iniciado pela psiquiatra Nise da Silveira e pelo artista plástico Almir Mavigner na Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional, em 1946. Nise da Silveira inaugurava no Rio de Janeiro o uso do fazer artístico como complemento ao tratamento de pacientes psiquiátricos. As práticas terapêuticas da época estavam quase restritas à orientação biológica, como lobotomia, eletroconvulsoterapia, entre outras. A terapêutica ocupacional era uma prática conhecida, mas que ainda despertava pouco interesse nos psiquiatras brasileiros.6 Desde o final da década de 1920, Osório César já vinha se interessando pelo uso das expressões artísticas na psiquiatria, no hospital do Juqueri, em São Paulo, sob influência da Psicanálise. No Rio de Janeiro, Nise da Silveira desenvolveu seu trabalho principalmente apoiada nas elaborações de C. G. Jung. No entanto, foi menos a diferença entre as linhas teóricas que sustentavam ambos os trabalhos o que lhes proporcionou visibilidades tão diversas quanto as distintas redes de relações e os contextos sócio-históricos nos quais ambos os psiquiatras se inseriam. Nise da Silveira partilhava com a psiquiatria da época o ideal de cura das doenças mentais, e o fazer artístico era uma forma de alcançar tal finalidade. Segundo a psiquiatra, as imagens não teriam o significado atribuído por Freud de um meio para chegar ao inconsciente; elas teriam “valor próprio, não só para pesquisas referentes ao obscuro mundo interno do esquizofrênico, mas também no tratamento da esquizofrenia”.7 Ela acreditava que as imagens representavam o universo interior do paciente, e objetivar esse universo era um primeiro passo para a organização da mente dissociada: Se o indivíduo que está mergulhado no caos de sua mente dissociada

consegue dar forma às emoções, representar em imagens as experiências

internas que o transtornam, se objetiva a perturbadora visão que tem

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agora do mundo, estará desde logo despotencializando essas vivências, pelo menos em parte, de suas fortes cargas energéticas, e tentando reorganizar sua psique dissociada.8

Enquanto Nise da Silveira encontrava um sentido profilático na produção artística, Mário Pedrosa criava um novo espaço hermenêutico no qual incluir aquela produção até então não classificada no universo artístico. “Arte virgem” foi a categoria na qual esses atores sociais, duplamente singularizados pelo fato de serem ao mesmo tempo loucos e artistas, podiam se encaixar. A inserção de um artista na história se opera, segundo Nathalie Heinich,9 em dois momentos: retira-se o artista do silêncio obliterante para, em seguida, reconhecer seu valor pelo duplo movimento de particularização que o distingue de outros artistas e de generalização que atribui a ele uma obra, isto é, um conjunto de quadros ou artefatos com características universais. O conjunto da obra é o que sustenta a ideia de sensibilidade e criatividade, por oposição à possível coincidência da produção de um único objeto apreciável. O espaço hermenêutico que se abria com a construção do lugar dos loucos-artistas dentro do sistema de interpretações até então vigente entre os críticos de arte no eixo Rio-São Paulo tornava a produção de pacientes psiquiátricos um tema relevante tanto para a estética e a história da arte no Brasil quanto para a psicologia e a psiquiatria. A nova categoria delimitava um gênero de duplo pertencimento e interesse ao universo da criação artística e dos saberes psi. Na psiquiatria e na psicanálise, as teorias de Freud e Jung foram acionadas para justificar, de formas distintas, o uso das expressões artísticas na identificação e/ou cura dos transtornos psiquiátricos. É a partir de Jung que Nise da Silveira argumentava que “a pintura dos esquizofrênicos é muito rica em símbolos e imagens que condensam profundas significações e constituem uma linguagem arcaica de raízes universais”.10 Ainda segundo a psiquiatra, “o indivíduo cujo campo do consciente foi invadido por conteúdos emergentes das camadas mais profundas da psique estará perplexo, aterrorizado ou fascinado por coisas diferentes de tudo quanto pertencia a seu mundo cotidiano. A palavra fracassa. Mas a necessidade de expressão, necessidade imperiosa inerente à psique, leva o indivíduo

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a configurar suas visões, o drama de que se tornou personagem, seja em formas toscas ou belas, não importa”.11 As produções artísticas são assim tomadas como expressões de sentimentos, necessidades, vivências. Termos como sentimento, emoção, impressão, imaginação, sensibilidade, tornavam-se fundamentais para afirmar a validade dessas produções como uma resposta individual, singularizada, contra a autoridade da razão e da regra.

O affaire arte e loucura em meados do século XX As fronteiras entre razão e desrazão apareciam deslocadas também no debate entre os críticos de arte. Segundo Antonio Bento, por exemplo, após o desenvolvimento da noção freudiana de inconsciente, não fazia sentido acreditar no mito do homem governado pela razão. Era natural, diante disso, que na arte moderna dominassem também as forças do irracional. E foi isso exatamente o que aconteceu. Daí, o interesse que os críticos e os artistas mais conscientes dos problemas estéticos emprestam aos desenhos das crianças e dos alienados.12



Pedrosa justificava: A finalidade de uma cientista da sensibilidade e do valor moral e profissional da drª Nise da Silveira não é de fazer exibição de extravagâncias de doidos e malucos, nem de exaltar o valor artístico dessas obras (embora muitas delas tenham de fato um autêntico interesse artístico); mas de educar também o público. […] Já é tempo que todos compreendam que os limites entre o normal e o ligeiramente anormal, entre o equilibrado e o pouco equilibrado é muito facilmente transposto. A psiquiatria moderna já nos ensinou que na esquizofrenia e na mania depressiva há muitos traços que encontramos freqüentemente nos tipos normais.13

Com esse affaire14, os críticos criavam as condições de possibilidade para a valorização no Brasil da axiologia referente ao produtor e o produto artístico modernos, isto é, a ênfase na singularidade e na autenticidade por

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meio principalmente da experimentação formal. No Brasil essa axiologia se deu pela separação na apreciação estética das dimensões internas ao fenômeno artístico, ou seja, aquelas compreendidas como propriamente estéticas daquelas éticas e morais. Uma das contribuições de Nise da Silveira para esse processo em relação ao universo estético foi a reprodução da anedota referente ao interesse, em 1949, de Francisco Matarazzo Sobrinho, mecenas que fundou o Museu de Arte Moderna de São Paulo, em comprar uma obra de Emigdyo de Barros, presente na exposição montada naquele museu. Almir Mavigner teria insistido com Nise da Silveira em oferecer o quadro ao mecenas, ao que a psiquiatra teria contestado que “nem por ouro nem por prata”. Seu argumento fundava-se na ideia de que o quadro valia mais como objeto científico do que por seu valor de troca ou distinção,15 ainda que não explicitamente formulado dessa maneira. O valor econômico imediato passava a significar menos que o valor que o quadro teria na posteridade, testemunho da realidade interior de seu autor.16 A dimensão moral, por sua vez, estava naquele momento relacionada principalmente ao posicionamento ideológico do artista e à temática expressa no objeto. Nacionalismo e realismo eram as medidas até então vigentes de aferição do valor de um produtor e sua produção artística. Estimulados em grande medida pelos governos ditatoriais e pelo sistema comunista, as temáticas nacionalistas e o estilo realista de representação pictórica eram rejeitados pelos críticos que defendiam os valores da modernidade, objetivados naquele período pela forma de representação abstrata. Mário Pedrosa voltara em 1945 de um exílio de oito anos em Paris e Washington. Sua saída do Brasil teve relação com sua participação no Partido Comunista e o estabelecimento do Estado Novo. No entanto, durante o exílio, seu descontentamento com ambas as facções do comunismo o levou a assumir uma postura política reservada quanto aos ideais partidários. Construiu assim uma trajetória atípica que o predispunha a perceber uma demanda social à procura de apoio num momento em que ser de esquerda ou de direita estava relacionado a estilos e temas específicos de expressão artística. Durante o exílio, Pedrosa tivera contato com intelectuais do movimento surrealista e trabalhara como jornalista para o Boletim da União

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Pan-americana. Em 1942, Pedrosa já esboçava uma nova forma de pensar a expressão artística que encontrava eco no trabalho que Nise da Silveira e Almir Mavigner desenvolveriam alguns anos depois com os internos do hospital do Engenho de Dentro. No artigo de 1942, Pedrosa defendia a separação entre arte e literatura tanto como forma de excluir uma categoria profissional das redes de cooperações que constituem o fenômeno artístico (a dos escritores) quanto como maneira de estabelecer uma linguagem e procedimento analítico específicos para o objeto artístico, mediante exclusão das temáticas literárias. Em 1947, sua contribuição na construção de um campo relativamente autônomo17 para as artes plásticas estava relacionada à separação entre razão e sensibilidade e à ideia de realidades internas e externas. Assim, na conferência que pronunciou no encerramento da exposição no CNP, exaltou o fato de a dimensão propriamente estética poder ser identificada a partir do momento em que a noção de inconsciente foi formulada pela psicanálise e o “racionalismo mecânico recebeu seu golpe mortal. O mundo das artes, pela primeira vez, então, […] começ[ou] a ter condições para abordar o problema preliminar mas fundamental das suas origens psíquicas”. O inconsciente seria “o mecanismo subjetivo dessa atividade [artística] antes da obra realizada” .18 Por trás dessas elaborações que levavam à separação entre as dimensões moral, econômica e estética, no momento mesmo em que se constituíam as condições institucionais de possibilidade do estabelecimento de uma autonomia relativa para o universo artístico,19 encontrava-se a ideia de universalidade do gênero humano confirmado nos sentidos impressos nas expressões artísticas, ou num inconsciente universal. Como afirmou Mário Pedrosa, “a unidade congênita da raça humana recebeu nova confirmação”.20 Os objetos artísticos produzidos pelos internos eram assim os testemunhos não apenas de seus transtornos, mas também de sua humanidade e de uma característica inata que habilitava todo e qualquer ser humano à produção artística. Norbert Elias21 argumenta que a ideia de que fazemos parte de uma mesma humanidade é que permitiu o surgimento de noções como piedade, ou seja, o fato de compartilharmos todos uma ligação teria transformado o desdém que imperou até o século XVIII em compaixão pelo sofrimento

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alheio. A produção artística dos internos pensada com base em sua relação com o sentido de suas psicoses é a objetivação dos transtornos psiquiátricos, transformando-os em sofrimento moral. Ao mesmo tempo, os quadros pintados sem o aprendizado das técnicas de representação e valorizados por importantes atores do mundo artístico carioca apresentava o fenômeno artístico sob uma perspectiva inusitada.

Universalismo versus particularismo Nesse processo, a produção artística passava a ser resultado não mais de formas de representação e estilos aprendidos em Academias de Belas-Artes, portanto novos parâmetros deveriam ser construídos para avaliação do fenômeno reformulado. No entanto, todos os produtores daqueles objetos de apreciação ou desdém, que estavam servindo para uma reconfiguração profunda do fenômeno artístico no Brasil, apareceram nesse affaire, quando muito, apenas como nomes – em geral, sem seus sobrenomes. Em 1947, a exposição no CNP contava com a produção de diversos adultos e crianças. Foram selecionados trabalhos de nove adultos para compor a exposição no MAM, em 1949. Os nomes desses nove não são coincidentes em todos os lugares onde se fala dessa exposição. Em 2002, no cinquentenário do Museu de Imagens do Inconsciente, esses nove produtores se transformaram em cinco: Geraldo Aragão, Artur Amora, Abelardo Correa, Emygdio de Barros e Carlos Pertius. Nessas exposições posteriores àquelas primeiras, a ênfase passou a recair mais sobre a dimensão psiquiátrica e psicanalítica das obras. Os catálogos traziam textos que versavam sobre a trajetória dos artistas ou depoimentos deles sobre assuntos considerados correlatos às obras e ao processo terapêutico com arte. Nesses catálogos, ao contrário, não existia uma dimensão estética como veio a ser instituída a partir das primeiras exposições do CNP, ou seja, a ênfase numa linguagem que falasse da manufatura e não do conteúdo da obra e da trajetória do artista. A agência desses atores ficava assim reduzida quase exclusivamente à mediação da psiquiatria e dos críticos que defendiam sua “humanidade” e as qualidades estéticas de sua produção artística.

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Inaugurado em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente (MII), fundado pela psiquiatra Nise da Silveira no complexo arquitetônico do CNP, tornou-se o espaço destinado a acomodar as obras dos pacientes daquele serviço de saúde mental. Atualmente, o MII possui uma reserva técnica que acomoda a produção dos ateliês terapêuticos do Instituto Municipal de Atendimento em Saúde Nise da Silveira (IMAS Nise da Silveira), antigo CNP, e oferece cursos de pintura e modelagem, além de atendimento clínico.22 Em outubro de 2012, algumas obras acondicionadas na reserva técnica do MII, produção recente de pacientes do IMAS Nise da Silveira, foram selecionadas para participar de uma mostra de arte denominada 1ª Mostra de Arte Insensata do Rio de Janeiro. O evento aconteceu no Centro Cultural Municipal Laurinda Santos Lobos, em Santa Teresa, e foi uma parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Ministério da Saúde e a rede de atenção psicossocial de Belo Horizonte, que vem realizando essa mostra a cada dois anos, desde 2008. Além das obras do MII, diversos outros serviços de saúde mental do Rio de Janeiro participaram da mostra de diversas formas: venderam artesanato produzido em seus ateliês, comidas e bebidas feitas em suas oficinas de culinária, apresentaram grupos de música, dança, teatro e expuseram trabalhos artísticos. O evento, que deveria ter durado quatro dias, teve a exposição de arte estendida por dez dias. Parte da programação consistia em duas rodas de conversas sobre “arte, estética e saúde mental” e “inclusão social pelo trabalho”. Participaram dessas rodas terapeutas ocupacionais, estudiosos, psiquiatras, psicólogos, gestores, artistas e usuários dos serviços. Na roda de conversa sobre “arte, estética e saúde mental” foi possível ouvir um professor de música da UFRJ falar sobre Heidegger, a origem da linguagem e o conceito de arte, e um médico e artista plástico falar sobre a arte como espetáculo e o objeto artístico como dotado de um vazio de significado que possibilita aos expectadores na arte contemporânea suas próprias interpretações. Depois dessas falas, tomaram a palavra alguns usuários: uma falou do tempo que levou para que seu trabalho fosse reconhecido como arte; o outro, da dificuldade em publicar suas poesias; o terceiro, que chamarei Vicente, resumiu as falas anteriores:

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Nas primeiras falas sobre arte, ouvimos que existe um outro conceito

que tem em todos os ofícios. Existe a arte, por exemplo, se você pertence ao meio militar você vai usar a arte da guerra, se é cozinheiro

vai usar a arte de cozinhar […].23 E, como foi dito aqui, a arte de

pintar foi uma das primeiras que o homem pensou, e junto com isso

vieram a arte da escrita, vieram os hieróglifos. E veio a guerra e os conflitos. E isso fez o homem inventar muitas coisas […].24 O con-

flito sempre fez parte do ser humano. E o ritual. A figura do Pajé e

do xamã foi feita para orientar. Isso mostra que o ser humano em si é integrado na arte espiritual, mas também na sobrevivência. E estar fazer com nossas artes e o nosso diálogo é nosso meio de superar nossos conflitos.

E então chegou ao ponto de sua intervenção: E não é só no meio psiquiátrico que queremos ir para a frente.

Além do sentido dessa intervenção, ao qual voltarei posteriormente, as situações históricas,25 isto é, os modelos ou esquemas de distribuição de poder entre os diversos atores sociais participantes desses affaires nos quais se relacionam “arte” e “loucura”, são distintas. No contexto atual, os atores sociais podem ser compreendidos a partir da noção de agentes políticos, cuja posição social e visão de mundo que a participação nos debates lhes propiciou têm garantido que parte de suas reivindicações gere a regulamentação de direitos. Desde a criação do SUS, em 1988, os usuários de todos os serviços de saúde vêm sendo sistematicamente chamados a participar nas reuniões dos centros comunitários, assim como nas conferências municipais, estaduais e federais de saúde. Na saúde mental, essa participação começou a se efetivar principalmente a partir de 1992, quando se organizou a II Conferência Nacional de Saúde Mental – usuários e familiares de usuários dos serviços de saúde mental já tinham participação garantida nas conferências preparatórias.

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Novas categorias para novos agentes políticos É nesse sentido que novas categorias têm sido forjadas para designar esses atores. Ainda que não seja justo deixar de reconhecer o papel inovador que Nise da Silveira teve ao introduzir reflexões sobre uma complexidade que não cabia no confinamento de hospitais psiquiátricos, daí a fundação de um serviço alternativo como a Casa das Palmeiras, o papel que a produção e os produtos artísticos tiveram no sistema de saúde mental em meados do século XX foi distinto daquele que se pode observar atualmente. Seguindo a proposta de Monteiro, Arruti e Pompa,26 podemos argumentar que hoje esses atores são agentes num “teatro do reconhecimento” que as políticas da diferença potencializam por meio da possibilidade de encenação quase ritual 27 das identidades. No dia 27 de setembro de 2012, o jornal O Dia trouxe na coluna Ciência e Saúde uma nota divulgando o evento “Arte insensata”. A nota dizia: Promover um novo olhar sobre a loucura a partir dos produtos estéticos e artísticos criados por usuários de saúde mental. Essa é a proposta da I Mostra de Arte Insensata da cidade do Rio de Janeiro, realizada

pela Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (SMSDC). […] A mostra é uma proposta de diálogo com a sociedade sobre o lugar

da arte e sua intercessão, desmistificando a loucura, agregando valores culturais, propiciando a reflexão e trazendo um novo olhar, distanciado da exclusão, da não-razão e da patologia.28

Alguns blogues da saúde mental e de cultura do Rio de Janeiro também noticiaram a mostra, com mais ou menos o mesmo texto acima apresentado. A substituição dos termos usados na década de 1940 para designar os produtores artísticos em questão subentende uma nova forma de construção da categoria social à qual estão vinculados aqueles agentes. Em vez de alienados, débeis mentais, doentes, malucos, internados, aos quais se pretendia atribuir humanidade, mas que não participavam ativamente dos debates em torno de suas produções, atualmente se fala da produção artística de usuários/artistas dos serviços (de saúde mental) e de cidadãos

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Pintura sobre tela exposta no evento Arte Insensata, 2012.

que são parte das atividades dos eventos. A categoria usuário tem especial interesse para a análise aqui empreendida, pois denota uma forma de delimitação de coletividade sem distingui-la pela relação com a normalidade, a razão ou a doença, mas pelo fato de fazer ou não uso de determinado tipo de serviço29. Em sentido abrangente, o termo diferencia qualquer pessoa ou organização para a qual um serviço ou produto foi concebido. Assim, encontramos, por exemplo, em qualquer site – desde páginas do governo a sites de pornografia –, o termo usuário referindo-se ao indivíduo que utiliza o serviço oferecido. A única aplicação na qual o termo adquire um valor é em sua acepção jurídica para diferenciar aqueles que usam drogas ilícitas daqueles que as comercializam. Em seu sentido social, o termo permite a inserção desses agentes numa humanidade pautada pela diferença. Não mais um ser humano normal ou anormal, mas determinado segmento da humanidade que se distingue de outros pelo uso de certos serviços de saúde que demandam condições específicas de participação da vida social.

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Em 2001, pouco após o 11 de Setembro, a UNESCO adotou na sua 31ª conferência geral a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Em 2003, o Ministério da Cultura passou a ter como uma de suas secretarias a de Identidade e Diversidade Cultural, e o Brasil ratificou a declaração pela diversidade em 2005. Em 2006, a UNESCO foi uma das apoiadoras do Congresso Brasileiro de Saúde Mental, que aconteceu em Florianópolis (CSSM, 2006). Em janeiro de 2006 aconteceu também o I Encontro de Arte e Saúde Mental, organizado por uma entidade denominada Espaço Terapêutico Antonin Artaud, no Centro Cultural da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). No segundo Encontro de Arte e Saúde Mental, em 2008, Paulo Amarante, coordenador do GT de saúde mental da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e do Laboratório em Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, da FioCruz, e um dos militantes da Reforma Psiquiátrica, apresentou a conferência “Diversidade, cultura e direitos humanos: bases para a Reforma Psiquiátrica”.30 Nessa comunicação o autor argumentou sobre a necessidade de discutir a Reforma Psiquiátrica, não mais estritamente com base na construção de um novo tipo de instituição não hospitalar, mas de elaborar um conjunto de estratégias mais amplas de cunho epistemológico, jurídico-político e técnico-assistencial. A encenação dessa diferença é potencializada ao conectar as linhas de ação da Reforma Psiquiátrica com esferas sociais mais amplas, como o direito e a “cultura”. A rede31 que se forma em torno da ideia de Reforma Psiquiatra constitui-se de agentes com capitais sociais e culturais extremamente diferenciados, orientados por saberes, práticas e poderes distintos. É possível listar importantes personagens desse affaire no qual os sistemas de valores e conflitos são encenados: alguns dos primeiros militantes do que seria denominada Reforma Psiquiátrica são servidores públicos, como professores universitários, em alguns casos, com cargos públicos e a possibilidade de influenciar na esfera da construção de políticas públicas de saúde, educação e cultura para a saúde mental. Diversas pessoas atuam em instituições de produção cultural e na área do direito. Essa rede é constituída de técnicos,32 usuários e familiares desses usuários, e pessoas que se interessam, de alguma forma, em participar das atividades desenvolvidas nesse campo.

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Como parte das estratégias de encenação da diferença está a publicização de projetos de arte e cultura. Foi nessa linha de atuação prática que o projeto Loucos pela diversidade, em pareceria com o Ministério da Saúde e o Ministério da Cultura, foi elaborado. Tratou-se de um edital, lançado em 2009, para premiar 55 iniciativas divididas em quatro categorias: 1) instituições públicas ou 2) privadas sem fins lucrativos, 3) grupos artísticos que tivessem vínculo com instituições e/ou serviços de saúde mental e 4) pessoas em sofrimento psíquico que tivessem vínculo com instituições e/ou serviços de saúde mental. O objetivo do projeto foi apresentado como forma de tomar a noção de diversidade para constituir individualidades a partir da coletividade. A publicização dos projetos de “arte” e “cultura” na saúde mental é uma forma de criar situações nas quais as distintas versões a respeito do tema podem aparecer. As controvérsias fundadas na diversidade de valores sobre os quais os atores se afrontam e a atenção pública que elas engendram geram a busca por novas soluções. O tema central da fala de Vicente na roda de conversa sobre “arte, estética e saúde mental” dizia respeito a uma dessas controvérsias: “Não é só no meio psiquiátrico que queremos ir para a frente.” Esse usuário se apresenta como artista plástico. Sua reivindicação refere-se ao reconhecimento de seu trabalho não só no âmbito da psiquiatria, mas também no universo artístico mais amplo. Hans Belting33 argumenta que a partir de 1945 a história da arte oficial começou a ser revista para incluir as produções de grupos minoritários, começando pela produção feminina. Não é coincidência que as disputas por reinventar a história da arte, buscando o que se pode descobrir que não está escrito na história da arte universal,34 tenha como marco histórico o período pós-Segunda Guerra. Alguns autores35 argumentam que é nesse período que a ruptura começa a se institucionalizar como um valor entre práticas, normas e saberes do universo artístico europeu, brasileiro e norte-americano. A diferença é o que move a reivindicação de Vicente em ser socialmente inscrito não somente na esfera artística, mas em diversas outras para além do universo da psiquiatria. As reivindicações pelo reconhecimento dos “usuários dos serviços de saúde mental” como parte de uma categoria de atores reconhecida por

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sua diferença passam pela delimitação da “loucura” como uma das dimensões da vida dos sujeitos, mas não a única. O ingresso no universo dos transtornos físico-morais36 psiquiátricos torna as pessoas suscetíveis de momentos de maior ou menor habilidade para a vida social convivendo com momentos de crise ou inabilidade para a vida social. A reivindicação de Vicente diz respeito ao papel da sociedade em lidar com essas pessoas em seus momentos de habilidade maior ou menor, enquanto o papel dos serviços de saúde mental ficaria restrito ao trato com a manutenção dessas competências – com tratamentos profiláticos – e os momentos de crise ou inabilidade social. É principalmente durante os períodos de inabilidade para o convívio social que se estabelecem as fronteiras entre razão e desrazão, entre normalidade e loucura. É quando as interdições são promulgadas e aos usuários dos serviços de saúde mental se torna proibido uma série de situações que são de acesso corrente a “qualquer um”: participação em oficinas, passeios e, em última instância, o convívio social.

A mediação dos técnicos Aos técnicos dos serviços de saúde mental atribui-se a tarefa de mediar entre esses dois modos de convívio que podem ocorrer simultaneamente num mesmo usuário. Essa atividade de agenciamento material e simbólico que os mediadores fazem tem por objetivo a construção de agentes políticos capazes de se autorrepresentar. A identidade coletiva, ao modo de uma identidade étnica atribuída aos usuários dos serviços de saúde mental, tem sido produzida em diversas situações que podem ser percebidas como rituais de produção de uma cultura da loucura e, consequentemente, de construção de uma memória social para essa categoria. Uma das estratégias usadas nesse processo tem sido a comicidade dos nomes dos projetos no interior do sistema de saúde mental. Assim, Tá pirando, pirado, pirou!, Harmonia Enlouquece, Sistema Nervoso Alterado, Bibitãtan, Loucura Suburbana, quando pronunciados, sempre levam ao riso. Riso que exorciza a angústia e neutraliza o medo, mas que, no caso dos projetos em saúde mental, aparece também como reação de autoderrisão,

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marcando a singularidade de um grupo dificilmente totalizável de outras maneiras além das diversas formas de sofrimento de cada um de seus componentes individuais. Nessa nova perspectiva de convívio com a diferença, o outro deixa de ser um termo dado e autoevidente para se tornar um sistema de posições,37 no qual as situações nas quais esse outro se encontra é que tornam possível descrevê-lo. A própria concepção de saúde deixa de ser pensada na atualidade como ausência de doença. Assim, não se trata mais de duas entidades culturais distintas que estão em relação uma com a outra – louco/não louco, razão/desrazão, normal/anormal, sadio/patológico. Trata-se de uma nova forma, historicamente situada, de formular a diferença como posição no interior de um sistema discursivo. É no plano das interações na vida prática que essa diferença se constrói, seja na delimitação das fronteiras próprias ao convívio social que os técnicos dos serviços fazem constantemente, nas participações dos usuários em diversos eventos públicos, nos nomes que os definem a partir do riso e do escárnio e também dos silêncios e ausências que os retiram de cena nos momentos de crise. São conjuntos de códigos negociados em situações concretas nos quais os técnicos aparecem como portadores de especial capacidade de representar os interesses dos usuários, mas não os únicos. A reivindicação de Vicente é apenas um exemplo entre vários que podem ser citados de pessoas que, na participação em diversos eventos e inserção em esferas distintas da vida cotidiana, se apropriam dos valores expressos pelos militantes defensores da continuidade das discussões acerca das mudanças na prática, nos saberes e instituições psiquiátricas, em relação às suas necessidades, interesses e direitos. As manifestações artísticas – música, artesanato, arte, carnaval (a “arte do efêmero”, nos termos de Santos38) – produzem uma memória social da loucura cuja origem é quase invariavelmente remontada ao tempo do encarceramento. A exposição Arte insensata teve uma sala dedicada aos instrumentos usados no tratamento da loucura: viam-se objetos e desenhos usados para o aprendizado e a prática da lobotomia, uma cadeira usada para a eletroconvulsoterapia, antigos recipientes de vidro onde ficavam armazenados fármacos usados nos tratamentos, entre outros objetos. O impacto dessa sala era minimizado pela disposição de fitas coloridas e

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pinturas recentes que retiravam do ambiente o pesado teor de tortura que em geral circunda esse tipo de apresentação. No entanto, a reivindicação de um lugar na história estava marcada pela origem violenta da relação da modernidade com a loucura. Mais uma vez recorremos a Belting39 para mencionar seu argumento sobre a relação atual entre o interesse cada vez maior pela produção artística e cultural de determinado grupo social quanto maior for sua impressão de ter sido violado durante o período colonial. Na saúde mental, a reelaboração das memórias sobre a loucura passa pela constante atualização da memória do sofrimento durante o período do encarceramento40 e dos tratamentos de intervenção biomédica. A construção de identidades com base no sofrimento também pode ser observada em relação à memória social judaica. Bernardo Sorj fala de uma mitologia judaica “que se sustenta na valorização do passado, do sofrimento coletivo e na flexibilidade e angústia existencial”.41 Para Sorj, a opressão vivida no passado e sustentada via lembrança das perseguições e do antissemitismo sofrido na história implica a angústia que torna o presente insatisfatório e estimula a vontade de mudar. Assim como entre os judeus em países como a Argentina, por exemplo, cuja ameaça por meio da xenofobia e do antissemitismo gerou uma comunidade ativa e reflexiva, o recurso à memória do encarceramento nas instituições totais parece funcionar com uma forma de manter o temor da opressão como uma realidade latente, uma possibilidade concreta que necessita ser constantemente rejeitada. O fantasma da exclusão exorcizado por dispositivos que incluem discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas renovados de tempos em tempos é assim objetivado nesse mobiliário antigo que inclui desenhos e fotos de práticas psiquiátricas “clássicas”. Essa forma de “encenação” contribui para materializar a identidade desse grupo social, tornando convincente a necessidade da construção de novos valores que permitam transformar o presente numa plataforma para um futuro de oportunidades e sonhos de autorrealização. Mais do que uma memória da loucura, essa exposição e as outras que têm sido apresentadas com trabalhos dos usuários e dos agentes de mediação no interior da Reforma Psiquiátrica vão constituindo um

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arquivo organizado a partir de uma lógica preestabelecida sobre a história dos discursos e práticas. As manifestações artísticas são talvez o principal dispositivo de reivindicação de um novo lugar social para os “malucos”.42 Sua eficácia é prática ao ampliar o debate para a opinião pública, fazendo com que aspectos normativos do problema sejam revistos e novos direitos sejam regulamentados,43 mas é também simbólica e paradoxal ao contribuir para a naturalização de uma categoria social que luta para se desvencilhar das representações estigmatizadas atreladas à ideia de “loucura”. A ideia de sofrimento tem importante papel na construção desses agentes como sujeitos de direito.

Da singularidade qualificante pela renovação à singularização que desqualifica pelo desvio Segundo Foucault,44 no século XVIII viu-se construir um parentesco entre a loucura e a devassidão, definindo-se uma geometria moral para o fenômeno. Foi no final desse século que a observância das condutas morais foi substituída pela prática psiquiátrica e a loucura ganhou estatuto de doença mental. No século XIX, Freud tentou separar a loucura do evolucionismo, voltando à concepção simultaneamente social e moral. Assim, com o advento da psicanálise, cujo estatuto epistemológico pode ser concebido como ciência ou arte, realidade ou invenção, no qual o analista descobre ou cria realidades, as dimensões morais ou orgânicas do fenômeno da loucura ganharam adeptos com ênfases distintas. Se a literatura encontrou cedo sua relação com a loucura em Cervantes e Shakespeare, na pintura o interesse se apresentou principalmente a partir do final do século XIX. Nesse período, foram publicados alguns estudos considerados pioneiros sobre a interseção entre arte e os saberes psi:45 Tardieu, em 1872; Simon, em 1876 e 1888; Lombroso, em 1889; Mohr, em 1906; Rejà, em 1907, entre outros.46 Foi somente no início do século XX que a qualidade artística de trabalhos produzidos por internos passou a ser considerada digna de apreciação. Na segunda década do século XX, a arte ganhou novo estatuto quando

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passou a ser vista também como dispositivo terapêutico. Em 1922, Hans Prinzhorn publicou o livro Expressões da loucura, sobre a coleção da clínica psiquiátrica universitária de Heidelberg. Esse trabalho chamou a atenção para o valor estético dessas obras, atraindo o interesse de artistas como Paul Klee e André Breton, entre outros. A própria psicanálise se viu difundida nos Estados Unidos e na Europa em grande medida por artistas e intelectuais, sobretudo pelo movimento surrealista, nas décadas de 1920 e 1930.47 A relação da arte com a psicanálise, na Europa e nos EUA desse momento, dizia respeito também à vontade de ruptura dos artistas com os cânones até então vigentes no campo artístico para o qual a loucura constituiu importante eixo de reflexão. Foi com a arte moderna – que Nathalie Heinich situa entre 1870 e 1940 – que começou o processo de desconstrução dos princípios definidores da obra de arte. Transgressão dos cânones acadêmicos da representação pelo impressionismo; transgressão dos códigos de figuração das cores pelo fauvismo; depois da figuração dos volumes pelo cubismo; transgressão das normas da objetividade da figuração pelo expressionismo; transgressão dos valores humanistas pelo futurismo, dos critérios do sério pelo dadaísmo, ou do provável pelo surrealismo; transgressão do imperativo da figuração pelos diferentes abstracionismos, desde o suprematismo ou o construtivismo até o expressionismo abstrato; geração após geração, a arte moderna coloca em crise, transgredindo, os princípios canônicos da arte. E provoca, fazendo escândalos.48

A necessidade de inovar para se destacar implicou a explosão de pesquisas plásticas. Essa pluralização foi consequência do abandono da definição profissional da excelência em detrimento de uma definição centrada na ideia de vocação, inspiração e inatismo do talento. A originalidade tornou-se parceira da transgressão dos cânones, da aceitação e valorização da anormalidade, de forma que o fora da normalidade se tornou a norma. O deslocamento da normalidade à anormalidade, da conformidade à raridade, da regra da originalidade, do sucesso à incompreensão, do reconhecimento no presente à glória póstuma foi o movimento feito desde o final do século XIX, sendo Van Gogh o caso paradigmático.

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Porém, Van Gogh é também um exemplo da inversão dos valores atribuídos à loucura em relação à arte, transformando a loucura numa categoria que particulariza o artista, um indivíduo singular.49 Entretanto, o regime de singularidade supõe o risco permanente da desqualificação pela falta de singularidade (ao se seguir os padrões) ou de desqualificação pelo excesso de singularidade (manifesta no delírio). Portanto, a loucura, mesmo na arte moderna, pode também ser tomada como forma de desqualificação da produção, sugerindo que o artista não tem bom senso, não tanto como forma de duvidar de sua saúde mental, como para se rir dele. Ou seja, trata-se menos da irracionalidade do que da desqualificação da competência do produtor. A associação entre arte e doença mental serviu como descrédito da singularidade desviante, fazendo emergir no começo do século XX uma série de monografias de artistas redigidas por psiquiatras e médicos. Após os códigos da representação clássica, depois da própria figuração, a partir da Segunda Guerra Mundial as fronteiras da própria arte foram sistematicamente colocadas à prova. Na década de 1940, Jean Dubuffet cunhou a expressão Arte bruta como forma de valorizar a produção plástica dos doentes mentais. Singularizado em excesso pela demência do autor, a arte bruta só pode

ser integrada no mundo da arte a partir do momento que a proximi-

dade com o inconsciente foi valorizado como singularidade positiva, consoante à inocência das crianças, o gênio dos grandes artistas ou

do profetismo dos iluminados: por onde o singular se junta à universalidade, apagando toda mediação pela socialização, a observação de regras ou a submissão aos constrangimentos do mundo.50

Assim, impõe-se uma extensão suplementar do mundo da arte, graças à transgressão de uma nova fronteira. Pensar em termos de fronteira incita adotar uma perspectiva que marca um dentro de um fora, uma arte e uma não arte, ou seja, uma descontinuidade ontológica na natureza do objeto. Essa ontologização das fronteiras está associada a uma definição da arte contemporânea que não é meramente cronológica. Portanto, é uma forma de associar o termo contemporâneo na arte a um gênero, e não a um período temporal.

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A transgressão das fronteiras é a exacerbação da singularidade erigida em sistema de valor. A arte contemporânea coloca assim em questão suas condições de consagração, ou seja, a autenticidade. Toda singularidade deve, para ser considerada, parecer autêntica. Como o jogo da arte contemporânea consiste na transgressão dos artistas, na reação do público e na integração por parte das instituições, as fronteiras a serem rompidas estão sempre sendo recolocadas. Assim, na arte contemporânea, o que se compra é em parte, não uma obra de arte, mas a démarche, resumida no nome do artista que é obrigado a dialogar com todas as fronteiras que já foram rompidas, estabelecendo novas fronteiras a serem posteriormente desbravadas. Como um dos critérios para a classificação de uma obra como arte é o conhecimento do campo e suas fronteiras e a intenção de aí se colocar, para que a produção dos usuários dos serviços de saúde mental seja classificada como arte, é necessário que essa intenção seja explicitamente colocada a partir de outras fronteiras que não a do pertencimento a esse grupo de agentes, uma vez que a fronteira entre razão e desrazão, loucura e normalidade já foi transgredida. Uma obra será rejeitada se for descoberto que o candidato construiu sua obra/persona a partir de estratégias de aceitabilidade ou imitação. Por outro lado, uma obra percebida como singular e autêntica – manifestando por exemplo uma obsessão – será rejeitada como desconectada de uma cultura de arte contemporânea se não houver um mínimo de conhecimento e esforço do artista para se inscrever no paradigma artístico contemporâneo e para formular um discurso teórico.51 Assim, a relação entre arte e loucura que serviu em meados do século XX como suporte para a revisão da axiologia do fenômeno artístico no Brasil pode servir hoje para criar espaços de reivindicação política para os usuários dos serviços de saúde mental, mas já não possui o mérito transgressor necessário para que a produção desses usuários seja classificada como produto do “gênero” arte contemporânea, já que lançar mão desse recurso seria repetir um movimento já realizado anteriormente, e não de forma autêntica pelo recurso das reinterpretações pela imitação irônica ou crítica.

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Notas 1

A enorme produtividade desses internos fez com que se instituísse no CNP um museu para abrigar os trabalhos. Inaugurou-se então, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente, no mesmo complexo arquitetônico onde se localizava o CNP.

2 3 4

O Globo, s/data, apud Dias, 2003, p. 125.

Dias, 2003.

Doze de autoria de Mário Pedrosa, nove de Quirino Campofiorito e as outras sete de outros autores, tais como Jorge de Lima, Osório Borba, Flávio de Aquino, Antonio Bento e Yvonne Jean (Dias, 2004).

5 6 7 8 9

Dias, 2004, p. 9. Dias, 2004.

Silveira, s/data. Ibid.

Heinich, 1991.

10 11 12 13 14

Silveira, s/data. Ibid.

Bento, 1949.

Pedrosa, 1947.

Claverie, 1994. Utilizo a noção de affaire nas duas situações históricas que descrevo aqui pensando na dimensão de formação de opinião e publicização de um assunto que até então era considerado privado de uma categoria profissional, os psiquiatras. Em ambas as situações históricas, a opinião pública foi acionada como forma de publicizar o conflito de valores acerca das práticas, normas e saberes sobre a loucura.

15 16

Bourdieu, 1996.

Para a psiquiatra, o quadro era essencial para compreender o processo psicótico de Emygdio de Barros.

17 18 19

Bourdieu, 1996.

Pedrosa, 1947. Énfase no original.

Foram inaugurados diversos museus de arte moderna no Brasil; foi instituída uma Associação Brasileira de Críticos de Arte relacionada a outra internacional e vinculada à UNESCO; um primeiro grupo de intelectuais completou uma formação universitária desvinculada da principal e quase exclusiva instância legitimadora do fenômeno artístico, a Escola Nacional de Belas Artes, e começava a entrar no mercado editorial como críticos especializados em dimensões específicas da esfera social (literatura, música, artes plásticas, moda etc.). Isso contribuía para a multiplicação das instâncias de aferição da produção artística e a construção de um conjunto de posições e um mercado artístico com regras próprias de funcionamento.

20

Pedrosa, 1947. A noção de unidade da espécie humana era hegemônica também como forma de oposição aos nacionalismos que levaram à Segunda Grande Guerra. Foi o

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indivíduo, como fundamento dessa unidade, o eixo em torno do qual se constituíram os novos valores da arte moderna e contemporânea. 21 22 23 24

Elias, 1993.

http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/index.html Diversas outras formas de “arte” foram mencionadas aqui.

Para exaltar a relação entre criação e guerra, ele fala da fusão do átomo e a criação da bomba nuclear.

25 26 27

Oliveira, 1988.

Monteiro; Arruti; Pompa, 2011.

As aberturas dos eventos da saúde mental são em geral constituídas de mesas compostas por personagens eminentes – políticos, gestores, psiquiatras – que fazem seus pronunciamentos iniciais sobre o processo de construção dos novos serviços, conceitos e práticas. Esses pronunciamentos constroem as bases de legitimidade para as falas posteriores de usuários que, quase invariavelmente, participam dessas mesas. Esses usuários em geral se distinguem por sua produção artística – plástica, literária ou musical – e tomam a palavra – frequentemente com dificuldades de articulação maior ou menor – para falar de suas experiências pessoais antes e depois da chamada Reforma Psiquiátrica. Essas falas são em geral comentadas entre os participantes após a mesa de abertura, explicitando sentidos de difícil acesso aos não iniciados desse campo de saberes e atuação.

28 29

O Dia, 2012.

Um estudo sobre a trajetória social da categoria usuário nos mostrará que é um termo que teve seu uso recentemente ampliado. Ainda não tivemos a oportunidade de confirmar com uma investigação, mas inferimos que dicionários anteriores à década de 1990 provavelmente não têm esse termo. Imaginamos que a popularização da Internet no final dessa década tenha contribuído para que o termo adquirisse a atual conotação de quem possui o direito sobre ou usufrui de algo.

30 31 32

Amarante, 2008. Foucault, 2003.

“Técnico” é o termo genérico que inclui as diversas categorias profissionais que atuam na área de saúde mental: terapeutas ocupacionais, psiquiatras, psicólogos, servidores sociais, farmacêuticos etc.

33 34

Belting, 2006.

Para esse autor a ideia de uma “história da arte universal” é parte da simbologia de uma unidade mundial forjada a partir de valores europeus, que deixa de fora uma série de temporalidades e práticas.

35 36

Heinich, 2005, 1993; Reinheimer, 2008.

Duarte, 2003. A noção de “perturbações físico-morais” está relacionada à ideia de distúrbios ou acontecimentos que envolvam ou afetem além da corporalidade das pessoas, sua vida moral, seus sentimentos e sua auto-representação. Além das doenças chamadas de “mentais” outros fenômenos têm sido incluídos nessa categoria como a soropositividade

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e a Aids por “colocarem em jogo dimensões vivenciais muito críticas, em função de sua associação com a sexualidade, com a moralidade e com a responsabilidade individual sobre a Aids no Brasil” (Duarte, 2003). Duarte chama atenção para alguns fenômenos referentes à “reprodução” e “contracepção” como passiveis de implicar moralmente as pessoas por eles afetados e, nesse sentido, poderem ser incluídos no horizonte analítico das perturbações físico-morais (alguns exemplos de estudos sobre essas outras formas do fenômeno são mencionados pelo autor Leal, Erotildes Maria. O agente do cuidado na reforma psiquiátrica brasileira: modelos de conhecimento. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do IPUB/UFRJ, 1999; Luna, Naara. Bebê de proveta, barriga de aluguel, embriões de laboratório: as representações sociais das novas tecnologias reprodutivas. Dissertação de mestrado em antropologia social, Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1999; Víctora, Ceres. As imagens do corpo: representações do aparelho reprodutor feminino e reapropriações do modelo médico. In: Leal, O. (Org.). Corpo e significado: ensaios de antropologia social. Porto Alegre: UFRGS, 1995.). 37 38 39 40 41 42

Hall, 1996.

Santos, 2009.

Belting, 2006.

Foucault, 2004.

Sorj, 2013, p. 10.

Uso somente aqui essa categoria, única que presenciei ser manipulada por alguns usuários dos serviços de saúde mental para se localizarem no interior desse sistema. O termo não é um consenso, mas parece ser o início da inversão de uma categoria antes associada a valores pejorativos que passa a ser apropriada de forma risível entre eles. O termo tem uma conotação positiva, mas não em relação à saúde mental. Compõe o jargão de grupos sociais que se identificam com determinados comportamentos que se opõem à norma moralmente consagrada e relacionada à postura racional; “Maluco” pode ser usado como auto-atribuição para designar pessoas pertencentes a grupos de jovens, praticantes de esportes específicos e diversas outras fronteiras de pertencimento social que não passam por profissão, identidade étnica ou classe social. O termo então tem, no uso amplo, a conotação do estabelecimento de uma fronteira que une as pessoas em torno de uma identidade que desafia os códigos de comportamento esperados na dimensão profissional, mas também que ultrapassa as distinções sociais que convencionalmente separam pessoas. Adotá-lo como totalização em relação aos usuários dos serviços de saúde mental parece ser uma maneira de tentar incorporar positivamente essa representação de fuga às normas e à racionalidade como forma de construção de subjetividade.

43

Na Lei da Economia Solidária, no Rio de Janeiro, pessoas com transtornos mentais estão incluídas nas cotas obrigatórias das empresas (Lei 8.213).

44 45

Foucault, 2004.

Vasconcellos; Giglio, 2007. Termo cunhado por Jane Russo (2002) para falar do surgimento, institucionalização e oficialização das profissões, crenças, teorias e práticas psiquiátricas, psicanalíticas e psicológicas no Brasil.

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46

Auguste Ambroise Tardieu: Étude médico-légale sur la folie, 1872; Paul-Max  Simon: L’imagination dans la folie: Étude sur les dessins, plans, descriptions, et costumes des alienes. Ann. med.-psychol., 1876 e Les écrits et les dessins d’aliénés, Archives d’anthropologie criminelle, 3, pp. 318-355, 1988; Cesare Lombroso: L’uomo di genio in rapporto alla psichiatria, 1889; Fritz Mohr: Über zeichnungen von Geisteskranken und ihre diagnostische Verwertbarkeit In: Journal für Psychologie und Neurologie, n. 8, 1906; Marcel Réja (pseudônimo do doutor Paul Meunier, 1873-1957). L’Art chez les fous. Le Dessin, la Prose, la Poésie, 1907.

47 48 49 50 51

Russo, 2002.

Heinich, 1993, p. 20. Simmel, 1971.

Heinich, 1993, p. 142. Heinich, 1993, p. 299.

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DUARTE, Luiz Fernando Dias. Indivíduo e pessoa na experiência da saúde e da doença. Ciênc. saúde coletiva, vol. 8, n. 1, Rio de Janeiro, 2003.

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RUSSO, Jane. O mundo PSI no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

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De artefato a obra de arte: a inserção da pintura aborígine australiana no sistema internacional das artes Ilana Seltzer Goldstein*

Introdução: um cenário surpreendente Como brasileiros, não esperaríamos encontrar peças indígenas à venda em galerias comerciais de arte moderna e contemporânea. Mas é isso que ocorre em Sydney, Melbourne, Cairns, Darwin, Alice Springs e Perth, as maiores cidades da Austrália. Tampouco existem acervos ou exposições temporárias de arte indígena nos principais museus de arte de nossas capitais, tais como o MASP e a Pinacoteca do Estado, em São Paulo, ou o Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Porém, é o que se observa na Australian National Gallery, em Camberra, na Art Gallery of New South Wales, em Sydney e na National Gallery of Victoria, em Melbourne. É igualmente difícil imaginar que um colecionador brasileiro pagasse US$ 80 mil por uma pintura indígena. Pois esse é o preço médio de uma tela de Emily Kame Kngwarreye, da etnia Anmatyerre – cuja obra já esteve na Bienal de Veneza e foi adquirida pelo MoMA.1 Tomemos como ilustração – entre tantas outras que seriam possíveis – o caso de Darwin, capital do Northern Territory, que fica no norte da Austrália. No porto da cidade, onde há uma praia turística, uma piscina com ondas, diversas lojas e restaurantes, existe também um jardim de esculturas em que todas as peças são feitas por artistas indígenas (Figura 1). * Mestre em Antropologia Social pela USP e Doutora em Antropologia Social pela UNICAMP. Docente do Centro Universitário SENAC e da Fundação Getúlio Vargas – SP. Autora de O Brasil best-seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional (SENAC, 2003). Consultora em projetos socioculturais junto a organizações públicas, privadas e do terceiro setor. 137

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Figura 1. Escultura feita por um artista indígena não identificado, em estilo característico das ilhas do Estreito de Torres. Jardim do Porto de Darwin. Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.

Figura 2. Trançado de fibra vegetal com franjas elaborado por artistas aborígines de Arnhem Land decorando o saguão do Vibe Hotel, em Darwin. Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.

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Também no Vibe Hotel, um dos locais de hospedagem mais caros e famosos de Darwin, a decoração é composta por peças indígenas (Figura 2). Além disso, no maior museu de Darwin, salas permanentes e exposições itinerantes são dedicadas às artes indígenas da região (Figura 3).

Figura 3. Conception, de Fiona Gavino, 2004. Fibra de pândano trançado. Museum and Art Gallery of the Northern Territory, Darwin. Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.

Ainda na mesma cidade, o Museum and Art Gallery of the Northern Territory concede, desde 1984, um prêmio anual patrocinado pela empresa de telecomunicações Telstra, cujos vencedores recebem US$ 40.000,00 cada um e têm seus trabalhos adquiridos por museus públicos. O Telstra Award divulga o trabalho de artistas indígenas de diversas etnias e regiões da Austrália e, ao mesmo tempo, estimula a apreciação e o entendimento do grande público em relação a essa produção artística. Cerca de 300 trabalhos são submetidos ao júri todo ano. Embora apenas quatro sejam premiados – nas categorias general painting, bark paiting, work on paper e three-dimensional –, 100 artistas integram o catálogo e a exposição associados à premiação. Em 2010, ano em que estive na Austrália, o vencedor do Telstra Award na categoria “pintura geral” foi Jimmy Donegan, cujo trabalho me impactou muito visualmente (Figuras 4a e 4b).

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Figura 4a. Jimmy Donnegan, vencedor do Telstra Award em 2010.

Figura 4b. Papa Tjukurpa Pukara, a tela premiada, feita com tinta acrílica sobre tela. Imagens de divulgação. Fonte: http://blogs.crikey.com.au/northern/2010/08/13/mr-jimmy-donegan-wins-the-2010-telstra-art-award.

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Partindo do material coletado durante minha pesquisa de doutorado2 e tendo como pano de fundo o enorme contraste entre o caso australiano e o brasileiro, no que tange à circulação e à recepção da produção artística indígena, irei me debruçar aqui sobre alguns processos que permitiram que objetos carregados de significados míticos e fabricados com base em técnicas e códigos indígenas tradicionais fossem progressivamente alçados à categoria de arte. Diversos sujeitos interagiram, de forma encadeada, e por vezes conflitante, para que isso ocorresse, entre os quais os próprios artistas, os gerentes das cooperativas, galeristas brancos, curadores, diretores de museus, representantes do poder público e, claro, também antropólogos. O resultado – como permitem notar as imagens que ilustram esse texto – é que floresce, hoje, na Austrália, grande variedade de estilos e formatos nas artes indígenas. Diante de um universo tão complexo e multifacetado, um recorte se faz necessário. Irei apresentar aqui um tipo de produção pictórica bem delimitada: a pintura sobre entrecasca de árvore de Arnhem Land. Antes disso, porém, a primeira parte do texto faz uma breve contextualização histórica da colonização europeia na Austrália, destacando o papel que a arte adquiriu na situação pós-contato.

A Austrália indígena e sua produção artística A colonização da Austrália foi extremamente violenta. Quando a primeira frota chegou, em 1788, os britânicos declararam haver encontrado uma terra nullius, ou seja, pertencente a ninguém. Naquela época, isso permitia às nações colonialistas se apropriarem de regiões supostamente desocupadas para uso “produtivo”. Rapidamente, as terras australianas foram tomadas por fazendas. Alguns nativos se tornaram peões ou serviçais domésticos, outros foram mortos. Uma prática oficial, que perdurou até a segunda metade do século XX, foi o rapto de crianças, sobretudo as mestiças (chamadas, então, de half-casts), para que fossem criadas e “civilizadas” em orfanatos, apartadas para sempre de suas famílias.3 Eram proibidas de falar suas línguas maternas e viviam confinadas em campos cercados (Figura 5).

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Figura 5. Crianças aborígines no campo de Moora River, a 135 km de Perth. Cerca de 500 pessoas viviam ali contra sua vontade, na década de 1930, quando a fotografia foi tirada. Imagem do acervo da Battye Library. Disponível no site: www.noongarculture.org.au.

Isso ajuda e explicar por que são faladas, hoje, apenas vinte das mais de 200 línguas indígenas registradas no momento da chegada dos britânicos, no final do século XVIII. E também por que as taxas de alcoolismo, associadas ao “tédio” e à “perda de sentido” após o contato com os colonizadores, são tão altas.4 Atualmente, um indivíduo indígena vive, em média, 17 anos menos que um australiano branco, e sua renda é cerca de 35% da renda média dos brancos. Vale ressaltar que o termo indigenous, na Austrália, engloba duas macrodivisões. De um lado, os Aborigenes, majoritários, que vivem no continente, têm a pele negra e, apesar das diferenças linguísticas, partilham um substrato mítico comum, chamado de Dreaming ou “tempo dos sonhos”. De outro lado, os Torres Strait Islanders, uma minoria de 5% que mora em pequenas ilhas do Estreito de Torres, no nordeste da Austrália, tem a pele um pouco mais clara e apresenta proximidade cultural com povos da Melanésia. A produção artística é valorizada e pujante tanto entre as etnias aborígines, quanto entre os habitantes do Estreito de Torres. Tradicionalmente, os grupos indígenas da Austrália cultivam diversas formas expressivas, do canto à cestaria, da dança à pintura corporal. Algumas dessas formas

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são bastante antigas, como as pinturas rupestres dos Kakadu, que datam de mais de 20 mil anos e foram declaradas Patrimônio Mundial pela UNESCO (Figura 6).

Figura 6. Pintura rupestre no Kakadu National Park, em Arnhem Land, figurando uma pequena espécie de canguru chamada wallaby. Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.

O processo de legitimação de uma parcela dessa produção ocorreu gradualmente, ao longo do século XX. A socióloga francesa Roberta Shapiro 5 chama de “artificação” a transformação de quaisquer objetos e práticas, antes vistos como não artísticos, em arte. Utilizando os termos de Shapiro, seria possível afirmar que a “artificação” da pintura aborígine australiana fez com que os produtores passassem a ser chamados de artistas; os objetos por eles fabricados se tornassem criações; e os observadores de seu trabalho se dividissem entre apreciadores, críticos e colecionadores. O fato é que, hoje, a arte indígena contemporânea da Austrália está inserida no sistema internacional de artes.6 Um dos primeiros artistas aborígines a obter reconhecimento individual, na Austrália, foi Albert Namatjira, graças a seus retratos de paisagem, que deram origem à Hermannsburg School, até hoje ativa na produção de aquarelas figurativas. Criado em uma missão luterana, Namatjira ofereceu-se, em 1936, para ser guia do pintor branco Rex Batterbee, que

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viajara ao deserto em busca de inspiração. Namatjira pediu que, em troca, o pintor lhe ensinasse a técnica da aquarela. Aprendeu rapidamente e começou a registrar as cores e as paisagens do deserto. Batterbee organizou uma exposição individual para Namatjira em Melbourne, em 1938. Em virtude da visibilidade adquirida por Namatjira, ele foi também o primeiro indígena a receber a cidadania australiana, em 1957. Namatjira ensinou seus filhos e sobrinhos a pintar como ele. Contudo, a recepção da chamada Escola de Hermannsburg no sistema euroamericano das artes foi lenta e controversa. Por algum tempo, ela foi acusada de “inautêntica” e “típica de brancos”. Aos poucos, surgiu o argumento de que a opção pela aquarela figurativa seria uma estratégia para proteger a iconografia tradicional, muito poderosa e, até então, secreta. Ademais, a íntima conexão com a região de Ntaria – nome nativo do local em que ficava a missão de Hermannsburg – posicionaria os aquarelistas aborígines numa linha de continuidade com seus ancestrais, cujas aventuras míticas ocorreram exatamente naquela paisagem e cujos ensinamentos fazem referência às árvores, aos rios e às montanhas do Deserto Central.7

Figura 7. Aquarela sobre papel de Albert Namatjira, sem título e sem data, anunciada para venda pela casa de leilões Southeby’s. Imagem publicada no site: http://www.artrecord.com.

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Um segundo movimento artístico indígena surgido na Austrália é a Acrylic Painting – pintura com tinta acrílica sobre tela –, que nasceu e se consolidou nas décadas de 1970 e 1980, devido a uma confluência de fatores. Nos anos 1970, ocorreram as primeiras concessões de terras indígenas, iniciando-se um movimento de migração de retorno aos territórios ancestrais.8 À medida que os grupos foram voltando às terras que consideravam sagradas, memórias, narrativas míticas e práticas rituais ganharam força, alimentando a produção pictórica. O discurso do governo federal, nesse momento, substituiu o ideal de assimilação dos nativos pelo de autodeterminação, fazendo com que o estímulo ao protagonismo e às atividades produtivas ligadas a conhecimentos tradicionais fossem vistas com bons olhos. Ademais, no âmbito internacional, as exposições Magiciens de la Terre, em Paris, e Primitivism in XXth Century Art, em Nova York, ambas nos anos 1980, ajudaram a alavancar o valor da arte dita “primitiva” .9 Isso encorajou o governo australiano e as organizações indígenas a apostarem no segmento.10 O Aboriginal Arts and Crafts, órgão estatal que funcionou de 1971 a 1991, era uma agência de promoção da arte aborígine, que, juntamente com o Aboriginal Arts Board, fundado em 1973 e hoje integrante do Australia Council for the Arts, empenhou-se em organizar exposições dentro e fora da Austrália, a fim de formar públicos e mercados. Localmente, as duas entidades passaram a apoiar a criação de cooperativas para a comercialização de arte indígena, inspiradas nas lojas que já existiam nas missões religiosas, procurando, contudo, superar seu caráter paternalista e autoritário.11 A primeira cooperativa de artistas indígenas voltada à produção de pinturas com tinta acrílica sobre tela foi fundada em 1972. O arte-educador branco Geoff Bardon, que trabalhava na comunidade de Papunya, no Deserto Central, incentivou seus alunos das etnias Pintupi, Warlbiri, Anmatyierr, Arrente e Luritja a transporem para papéis, latas, muros e, depois, para telas de tecido, desenhos e cores que já aplicavam sobre a areia e o corpo em ocasiões cerimoniais.12 No começo, as pinturas eram pequenas e conseguiam valores baixos no mercado, mas o governo entrava com alguma verba para auxiliar, por meio do recém-criado Aboriginal Arts Board.

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A aceitação pelos brancos não foi imediata. Até 1979, não se encontrava nenhuma pintura acrílica feita em Papunya em museus de arte australianos. Porém, na década de 1980, a pintura acrílica indígena se expandiu. Em 1988, o faturamento anual da cooperativa Papunya Tula Artists Ltd. atingiu US$ 1 milhão; sua produção começou a entrar nos museus públicos e galerias comerciais. As telas ganharam formatos e tamanhos variados, e novas cores passaram a ser utilizadas. No final dos anos 1990, o valor das telas dos membros da Papunya Tula atingiu cifras tão elevadas que ocorreram roubos em museus. Em 2010, quando visitei sua galeria, a cooperativa vendia trabalhos de 120 artistas, em um espaço próprio grande e elegante, no centro de Alice Springs. Ningura Napurrula, de 74 anos, é uma de suas artistas mais famosas (Figura 8).

Figura 8. Wirrulnga, de Ningura Napurrula. 2006. Acrílico sobre linho. Na pintura, estão representadas uma fonte de água e uma mulher grávida que, no “tempo dos sonhos”, teve seu parto nesse local. Imagem de divulgação do site: http://www.deutscherandhackett.com/node/11000022/

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Existem, hoje, na Austrália, cerca de 7 mil artistas visuais indígenas.1 A produção e a venda de objetos artísticos representa a maior fonte de ocupação e renda das populações indígenas no país. Ainda que alguns sejam independentes ou representados individualmente por marchands brancos, a maioria é associada a cooperativas autogeridas, similares à pioneira Papunya Tula. Aproximadamente 100 cooperativas artísticas – chamadas de art centres – estão espalhadas pelo território australiano, com maior concentração no deserto e no norte tropical. Contando com subsídios públicos, organizam exposições e vendas dentro e fora da Austrália, licenciam imagens para que sejam aplicadas em souvenirs turísticos, catalogam a produção local, emitem certificados de autencidade e organizam workshops e viagens para os artistas associados. Normalmente, contratam um ou dois funcionários brancos, formados em história da arte, marketing ou administração, para cuidar de parte dessas tarefas. Essa vasta de rede de apoio, aliada ao prazer que a pintura proporciona e à possibilidade de ganhar dinheiro com ela, levou a pintura acrílica do deserto, iniciada na comunidade de Papunya, a se espalhar e ramificar em uma série de submovimentos e subestilos regionais. Esta é provavelmente a modalidade que mais admiradores tem conquistado dentro e fora da Austrália. Por pura coincidência – e para deleite do público branco –, muitas das telas feitas no deserto australiano lembram o trabalho de pintores modernistas, como Paul Klee, Jakson Pollock, Wasilly Kandinsky e Mark Rothko. Após ter delineado um breve panorama introdutório das artes indígenas na Austrália, irei me deter um pouco mais, no próximo item, em uma vertente específica, surgida antes mesmo da aquarela e da pintura acrílica do deserto: a pintura sobre entrecasca de eucalipto, conhecida como bark painting.

A pintura sobre entrecasca de árvore de Arnhem Land Arnhem Land é uma área tropical com 97.000 km2, no extremo norte da Austrália (assinalada pelo retângulo, no mapa da Figura 9), onde a vida é ritmada pelas estações seca e chuvosa. Ali existe uma reserva indígena

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desde 1931. De 1910 a 1970, grande parte das pessoas vivia em torno das missões metodistas e anglicanas. A partir de 1970, com as primeiras vitórias nas lutas por terras, elas se redistribuíram, retornando às àreas que pertenciam tradicionalmente a seus clãs ou a suas famílias. O grupo étnico mais numeroso de Arnhem Land se autodenomina Yolngu. O contato dos Yolngu com os brancos se deu há mais de cem anos. Nos séculos XVIII e XIX, eles também tiveram intenso contato com mercadores macassar da Indonésia, que, por meio do comércio marítimo, forneciam-lhes pepinos do mar, iguaria muito apreciada.

Figura 9. Mapa com os cinco estados e as principais cidades da Austrália. Dentro do retângulo preto, ao norte, está Arnhem Land, zona em que predomina a bark painting. A forma preta oval indica a região desértica que ocupa um terço do país, onde floresce a pintura acrílica e onde Albert Namatjira produziu suas aquarelas, nos anos 1940. Mapa adaptado a partir do site: http://australiatourism1.blogspot.com.br/

Para além do trançado de fibra, que é sofisticado e abundante em Arnhem Land, a produção artística nessa região utiliza primordialmente a madeira e os pigmentos naturais como matérias-primas. Alguns autores

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afirmam que, muito antes do contato com os brancos, pranchas de eucalipto decoradas vinham sendo utilizadas pelos Yolngu como tetos e paredes de cabanas, durante a época das chuvas. Segundo Howard Morphy, relatos sugerem que havia um segundo uso tradicional para as lâminas de eucalipto pintadas: elas ajudavam a transmitir ensinamentos restritos, por meio de desenhos.14 Não se sabe quando foram feitas as primeiras pinturas sobre entrecasca vegetal, pois o material é perecível. Mas a primeira coleção de pranchas de que se tem notícia foi reunida na costa ocidental de Arnhem Land, em 1838, e hoje pertence à Universidade de Sydney.15 Anderson16 atribui a popularização desse gênero de pintura à atuação de antropólogos. O primeiro deles foi Baldwin Spencer, que esteve algumas vezes no norte da Austrália, entre 1911 e 1921, em missões científicas e como representante do governo.17 Pediu aos grupos com quem interagiu que pintassem sobre entrecascas de árvores as mesmas imagens que se encontravam estampadas nas rochas e cavernas da região. Spencer levou consigo nada menos do que 962 exemplares dessas pinturas encomendadas, que hoje pertencem ao Museu de Melbourne. Algum tempo depois, foi a vez de Ronald Berndt, professor da Western Australia University, trabalhar em Arnhem Land. Sua metodologia de pesquisa compreendia a encomenda de bark paintings aos Yolngu, sobre temas predefinidos.18 Já Charles Mountford, líder de uma expedição financiada pela National Geographic Society à Arnhem Land, entre 1947 e 1948, organizou uma mostra internacional de bark paintings que circulou por toda a Europa.19 A bark painting é realizada sobre uma superfície originalmente curva: para se obter a lâmina de madeira, a parte externa dos troncos de eucalipto é arrancada na estação úmida (de novembro a março), aquecida no fogo por alguns minutos e, então, sua curvatura é atenuada pelo uso de pesos nas quatro extremidades. Os pincéis, por sua vez, são fabricados com pequenos galhos, que podem ser mastigados em uma das extremidades, para se tornarem mais macios, ou então ter penas e fios de cabelo colados em suas pontas. No início dos anos 1960, bark paintings já se faziam presentes nos principais museus australianos; eram inauguradas as primeiras galerias comerciais de arte indígena em Sydney; e tanto a produção de pinturas como o conhecimento dos brancos sobre elas se intensificavam.

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Dentro da Austrália, a primeira exposição de bark paintings em um museu de belas-artes foi idealizada pelo pintor e curador Tony Tuckson, em 1960. Ele ficou muito impressionado com uma exposição que vira em Sydney, mostrando a coleção particular do casal Berndt. Em 1958 e 1959, Tuckson fez viagens para Arnhem Land, de onde trouxe mastros cerimoniais decorados que até hoje têm destaque na entrada da Art Gallery of New South Wales, em Sydney. A exposição organizada por Tuckson viajou por museus de arte na Austrália e em outros países. Inclusive, parte das peças foi enviada à Bienal de São Paulo, em 1961. Ainda que haja variações regionais – fundo liso ou texturizado, presença ou ausência de um personagem central –, em linhas gerais, é fácil reconhecer uma bark painting de Arnhem Land. Em primeiro lugar, utilizam-se apenas quatro cores: o preto extraído do carvão, o branco da lama, o ocre e o vermelho de pedras da região. Em segundo lugar – ao contrário da pintura acrílica do deserto que, aos nossos olhos, parece abstrata –, aqui são figurados animais, homens e lugares que remetem a eventos míticos do “tempo dos sonhos” .20 Em terceiro lugar, é recorrente a técnica das hachuras cruzadas, que consiste na multiplicação de linhas paralelas e de linhas convergentes formando ângulos repetidos (observável no corpo dos peixes, na próxima imagem). Esse uso de finas linhas multiplicadas gera um efeito óptico de brilho, contraste e movimento. Em algumas pinturas, a superfície parece instável, como se fosse saltar para fora, atestando o poder dos ancestrais evocado pelas pinturas.21 Por fim, figura e fundo tendem a se confundir (como ocorre com o crocodilo, na reprodução a seguir), sugerindo a unidade entre os seres vivos, a paisagem e os ancestrais que os criaram e os impregnam até hoje. Todos esses elementos podem ser identificados na Figura 10, uma bark painting de Djambawa-Marawil – líder e ativista de Arnhem Land cuja obra está presente na maioria das coleções australianas. A pintura reproduzida na Figura 10 retrata o crocodilo ancestral Båru, que é relacionado à criação do fogo. A cena se passa numa parte da costa de Arnhem Land chamada Yathikpa, onde fica o ninho de Båru, que é o totem do clã Madarrpa, ao qual pertence o artista. Foi ali que apareceu o fogo, pela primeira vez, como consequência de uma briga de Båru com sua esposa. O local está associado ainda a uma outra passagem mítica: no

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Figura 10. Båru at Yathikpa, de Djambawa Marawilli, c. 2004. Coleção do centro de artes Buku-Larnnggay Mulka, em Yirrkala, Arnhem Land. Foto de divulgação publicada no site: http://www.mulka.org/theartcentre/artwork/4964/B%C3%A5ru%20at%20Yathikpa

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“tempo dos sonhos” (Dreaming), dois pescadores estavam atrás de uma espécie australiana de peixe-boi (dugong), quando erraram as flechadas e atingiram uma pedra sagrada. Nesse momento, o oceano ferveu e a canoa virou. O peixe-boi dessa história está presente em uma das extremidades da pintura. O outro peixe, ao lado dele, deve ser um barramundi, que, como o crocodilo australiano, tem a capacidade de transitar entre a água doce e o mar, e representa a ligação entre os diversos clãs Yolngu. A textura que preenche as ondas e a espuma do mar forma, por vezes, losangos com as extremidades semiabertas. Trata-se do símbolo do clã Madarrpa, que lembra um diamante, e se faz presente na maioria das pinturas feitas por seus membros.22 No vilarejo de Yirrkala, onde estive em 2010, há uma cooperativa gerida pelos Yolngu que vende predominantemente bark paintings. O centro de artes Buku-Larrnggay Mulka, inaugurado em 1973, é um dos mais antigos e bem-sucedidos da Austrália. Com o tempo, o espaço cresceu. Em 1988, foi aberto um museu; em 1996, foi instalada uma oficina de gravuras; em 1998, foi construído um anexo para colocar dois painéis gigantes sobre a criação do universo, rejeitados pela igreja local; em 2007, foi implantado o centro de multimídia, voltado para a documentação e a produção audiovisual yolngu. Diariamente, artistas que moram em um raio de 200 km vão ao centro de artes de Yirrkala vender seus trabalhos. Outros pintam ali mesmo, no terraço, sentados no chão. Só não é permitido usar tinta acrílica sobre tela, por decisão da diretoria, que prefere priorizar matérias-primas orgânicas e regionais. A cooperativa de Yirrkala compra à vista dos artistas. O preço varia de acordo com o tamanho, a originalidade, a demanda do mercado e a sabedoria do artista – ligada à sua idade. A cooperativa intermedeia as vendas das peças para galerias comerciais, museus públicos e coleções particulares. Ao mesmo tempo, colecionadores e turistas não encontram dificuldade em comprar peças pessoalmente em Yirrkala, pois existem um aeroporto e dois hotéis nas proximidades. Ao longo dos anos, os artistas yolngu foram se adaptando às novas demandas. Inicialmente, as pinturas sobre prancha de madeira eram de tamanho reduzido. Com o florescimento do mercado de arte indígena, sofreram adaptações no tamanho – ficando maiores – e no conteúdo – imagens

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Figuras 11a e 11b. Troncos ocos e esculturas de madeira pintados com pigmentos naturais, à venda no centro de artes de Yirrkala. Fotos de Ilana Goldstein, 2010.

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seculares se multiplicaram e signos de divulgação restrita foram omitidos. Até os anos 1960, os fixadores de pigmentos vinham de orquídeas, da clara do ovo de pássaros ou de cera, mas, cada vez mais, torna-se frequente o uso de colas e resinas industrializadas, para garantir maior durabilidade. Ganchos foram acoplados no verso, para que as pranchas possam ser penduradas na parede, à maneira de quadros. Desenvolveu-se, também, uma estrutura metálica para dar suporte às pinturas, evitando que se enrolem com o passar do tempo. Além das pranchas de entrecasca de eucalipto aplainadas, outros suportes para a pintura têm surgido em Arnhem Land, como ilustram as Figuras 11a e 11b (página 153). A cooperativa de artes de Yirrkala, mais do que fomentar e distribuir a produção artística dos Yonlgu do leste de Arnhem Land, funciona como um polo articulador e um local para reuniões. Foi ali que nasceram, por exemplo, duas iniciativas políticas interessantes, combinando arte e política. Na década de 1960, lideranças de todos os clãs produziram, juntas, uma petição exigindo direito à terra, que consistia de um texto datilografado, colado no meio de uma grande e sofisticada bark painting, elaborada a várias mãos. Essa bark petition foi enviada ao governo federal, em Camberra, e, embora não tenha tido impacto imediato, alguns anos depois, o mesmo juiz que recebeu a petição pintada concedeu aos Yolngu o direito à terra. Em 1988, ano da celebração do bicentenário da colonização inglesa na Austrália, 43 artistas da mesma região produziram coletivamente, para a Bienal de Sydney, uma instalação crítica relacionada à efeméride, consistindo de 200 mastros funerários decorados, um para cada ano da colonização.23

Considerações finais Como procurei mostrar nas páginas anteriores, a arte contemporânea dos povos indígenas da Austrália ancora-se em práticas e valores tradicionais, e, ao mesmo tempo, está inserida nas instituições museológicas e no mercado de arte. Isso só é possível em virtude da existência de políticas públicas – premiações, aquisições de peças por museus, subsídios a cooperativas indígenas, publicação de código de ética para o setor, entre outras – que

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fomentam iniciativas locais e que estimulam o mercado e o circuito expositivo a absorvê-las. É inegável que existem efeitos perversos, que explorei alhures,24 como a exploração de artistas indígenas por marchands brancos, a apropriação do repertório visual indígena por empresas de souvenirs, sem autorização e a persistência de problemas sérios entre as populações indígenas, acarretados pelo contato. Não obstante, a produção artística é inegavelmente uma forma importante de geração de renda para as comunidades indígenas da Austrália que, ademais, ajuda a conferir visibilidade a populações historicamente oprimidas e desvalorizadas. O caso australiano permite, também, tecer algumas considerações mais gerais sobre os diálogos nascentes entre a antropologia e a história da arte. No livro O fim da história da arte (2006), Hans Belting faz uma espécie de autocrítica disciplinar, declarando seu interesse por criações de todas as tradições e regiões, e rompendo com hierarquizações etnocêntricas. “A assim chamada história da arte é uma invenção de utilização restrita e para uma ideia restrita de arte”.25 Belting afirma ainda que, no Modernismo, teria existido uma espécie de barreira protegendo a arte euroamericana da “contaminação” pela arte étnica e popular. Hoje, ao contrário, o que ele chama de arte “global” interpela ao mesmo tempo a arte contemporânea (herdeira e transgressora da tradição moderna ocidental) e a arte pós-étnica, indígena, ex-“primitiva”, ou como se queira chamá-la.26 Portanto, mesmo que a ideia de arte tenha surgido associada a um sistema institucional e a um cânone específicos de uma parte do Ocidente, talvez se possa, a partir da antropologia, estender essa noção, procurando contemplar criações e formas expressivas de outras sociedades. O Centro de Pesquisas Transculturais da Universidade Nacional da Austrália, onde estive por três meses, reúne pesquisadores da antropologia, da museologia, da arqueologia e da história da arte que trabalham, justamente, com uma noção ampla e transcultural de arte: Our position is that the anthropology of art is not simply the study of those objects that have been classified as art objects by Western art

history or by the international art market. Nor is art an arbitrary cat-

egory of objects defined by a particular anthropological theory; rather,

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art making is a particular kind of human activity that involves both the creativity of the producer and the capacity of others to respond to and use

art objects. […] Anthropology must be open to classifications of the phenomenal world that do not correspond to Western categories. […] Art describes a range of thoughts and practices that employ creativity in

the production of expressive culture, regardless of whether that production adheres to prescribed forms or embodies individual innovations.27

A proposta, que considero estimulante, e com a qual encerro minha contribuição a este volume, é tratar a arte como uma forma de ação na qual a criatividade e a técnica do produtor são fundamentais e na qual a capacidade de desencadear uma resposta do receptor é igualmente importante. Além disso, a ação artística deve necessariamente gerar formas expressivas que carreguem significados e, ao mesmo tempo, possuam propriedades estéticas – canções, coreografias, pinturas, esculturas, entre outras, coincidentes ou não com a categoria euroamericana “obras de arte”.

Notas 1

Uso aqui o exemplo de Emily Kame, porque suas pinceladas largas e suas cores vibrantes são consensualmente apreciadas pela crítica e pelos colecionadores. Mas, na verdade, os preços das obras variam bastante. Um artista iniciante, considerado talentoso e promissor, consegue entre US$ 2 mil e US$ 5 mil por uma tela. No polo oposto, o maior valor de venda já atingido por uma tela aborígine da Austrália foi US$ 2,4 milhões, pago por uma grande pintura de Clifford Possum Tjapaltjarri, num leilão da casa londrina Sotheby’s, em 2007. Em relação ao destino desse dinheiro, nas vendas do mercado primário, metade chega às mãos dos artistas e é distribuída por suas redes de parentesco. A outra metade, em geral, fica com os intermediários. Já no mercado secundário, o valor de revenda pode ser dezenas de vezes mais alto do que aquele pago inicialmente ao artista. Nesses casos, a Austrália criou, em 2011, um imposto que obriga o revendedor a repassar uma porcentagem do lucro ao autor da obra.

2 3 4 5 6

Goldstein, 2012.

Kleinert; Neale, 2000. Schmidt, 2005.

Shapiro, 2007, p. 137.

A noção de sistema de arte vem sendo delineada nas duas últimas décadas, sobretudo na sociologia da arte francesa. Autores como Alain Quemin (2001), Nathalie Heinich (1998)

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e Raymonde Moulin (1992) consideram sistema de arte como a rede que compreende todos os sujeitos e organizações envolvidos na produção, exibição, avaliação, divulgação, circulação e comercialização das artes. Fazem parte do sistema de arte, por exemplo, artistas individuais, coletivos, galerias, casas de leilões, museus, bienais, críticos, curadores e diretores de instituições. Anne Cauquelin (2005) chama a atenção ainda para o fato de que, no caso específico da arte contemporânea, essa rede de interações ultrapassa as fronteiras regionais e mesmo nacionais. Daí a expressão “sistema internacional de artes”. 7 8

French et al., 2008.

Os protestos de ativistas haviam começado já nos anos 1950 e 1960, mas foi só em 1976 que o Aboriginal Land Rights Act devolveu 50% do estado Northern Territory a comunidades indígenas.

9

O interesse pela chamada “arte primitiva” floresceu inicialmente entre as vanguardas do século XX. A partir de 1920 e 1930, a África, a Oceania e a América passaram a representar, para artistas como Matisse, Picasso e Breton, um reservatório de novas formas e valores (Perry, 1998; Clifford, 1996). A categoria ganhou força entre as duas Guerras Mundiais e teve seu apogeu entre 1957, com a criação do Museu de Arte Primitiva, em Nova York, e meados da década de 1980 (Errington, 1998). Convém, no entanto, problematizar o uso dessa categoria. Em primeiro lugar, além da produção indígena atual, ela tem abarcado – em catálogos, leilões e mesmo museus – fenômenos tão diferentes como pinturas rupestres pré-históricas, telas naïf, entalhes populares e trabalhos de pacientes psiquiátricos. De acordo com Sally Price, “tudo o que essas diversas manifestações chamadas de ‘arte primitiva’ têm em comum é que são encaixadas, pelo Ocidente, em uma espécie de estereótipo simplificador do Outro exótico” (Price apud Goldstein, 2011, s.p.). Em segundo lugar, não se pode negligenciar que a expressão “arte primitiva” é problemática por remeter ao paradigma evolucionista, sugerindo que haveria formas artísticas “inferiores”. Não obstante, fora das Ciências Sociais, não é raro encontrar-se tal categoria sendo utilizada de forma pouco problematizada.

10 11

Altman, 2005.

As lojas das missões haviam se multiplicado a partir dos anos 1930, forçando os nativos a produzirem cestaria, flechas etc. para o público externo. O dinheiro ficava nas mãos dos missionários, ao passo que, nas cooperativas atuais, cerca de metade da receita é repassada aos artistas. Nas lojas das missões, não havia preocupação com o registro das histórias míticas relacionadas aos objetos produzidos, enquanto nas cooperativas contemporâneas o registro em foto, vídeo e textos é uma atividade rotineira. A tomada de decisões, nas lojas das missões, era feita exclusivamente por brancos. Hoje, os conselhos diretores das cooperativas são compostos por representantes indígenas. Outra grande diferença é que os missionários nunca trataram aqueles objetos como obras de arte. Seu público-alvo eram, sobretudo, turistas.

12 13

Johnson, 2006.

McCulloch; Schilds, 2009. Embora esta pesquisa tenha se debruçado sobre as artes visuais, é importante destacar que, na Austrália, existem também bandas de rock que aliam a guitarra elétrica ao djidjiridoo – instrumento de sopro feito de um tronco oco –, como é

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o caso do grupo Yothu Yindie, que já se apresentou, inclusive, no Brasil. Há também companhias de dança renomadas, como o Bangara Dance Theatre e videomakers aborígines com circulação internacional, como Curtis Taylor, que apresentou seus vídeos na Reunião da Associação Brasileira de Antropologia – ABA, em São Paulo, em julho de 2012. 14 15 16 17

Morphy, 2008.

McCulloch, 2009. Anderson, 2006.

Spencer publicou Native Tribes of the Northern Territory of Australia em 1914, descrevendo de regras de matrimônio a ritos de iniciação, passando pela medicina e pelas “artes decorativas”. 18 19 20

Morphy, 2008.

Caruana, 2003.

Interessante notar que uma palavra yolngu designa desenhos, de uma maneira geral: miny’tji. O termo se aplica a qualquer motivo composto por linhas e cores, seja ele produzido por um ser humano ou não. As asas de uma ave colorida, a estampa de um vestido e uma pintura sobre casca de árvore são igualmente chamadas de miny’tji. Em todos os casos, o desenho é considerado um sinal aparente da identidade das coisas e dos seres (Morphy, 2008). Um mesmo miny’tji pode cobrir uma prancha de madeira, o peito de um jovem que será circuncidado, ou um mastro fúnebre.

21 22

Morphy, 2005.

Essa rápida interpretação do conteúdo representado na bark painting reproduzida na Figura 10 é baseada em minhas conversas com Howard Morphy, que há 40 anos trabalha com os Yonlgu, e também em informações obtidas nos arquivos do Australian National Maritime Museum, em Sydney.

23

Os mastros funerários são troncos ocos, comidos por formigas, que abrigam parte dos restos mortais do falecido durante um ano de luto – depois do qual são deixados ao relento para ser reintegrados à natureza. O mastro funerário é decorado com as mesmas pinturas corporais que cobriam a pessoa em vida. Intitulada Aboriginal Memorial, a instalação composta por mastros funerários metafóricos fica hoje numa sala de destaque da National Gallery of Australia, em Camberra.

24 25 26

Goldstein, 2012.

Belting, 2006, pp. 101-104.

Embora Belting (2006) proponha uma arte mais inclusiva, não discute a primazia da certas produções no mercado, nem as assimetrias de poder que ocorrem nesse processo, tampouco a relação entre centro e periferia que vigora no sistema internacional – no qual, inclusive, a arte latino-americana feita por brancos é marginalizada, não apenas a arte “étnica”. Para refletir sobre tudo isso, a interface entre a antropologia, a museologia, a história da arte, a sociologia, a economia e o direito se faz necessária e promete ser frutífera.

27

Morphy; Perkins, 2006, p. 12, grifos da autora.

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Arte e cultura material

Objetos, pessoas e valores: arte e cultura material Carly Machado (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

A mesa “Objetos, pessoas e valores: arte e cultura material” do seminário Manifestações artísticas e ciências sociais realizou com precisão um exercício caro ao Núcleo de Pesquisa CULTIS: a articulação bem-sucedida de questões comuns por meio de diferentes objetos, abordagens e temas de pesquisa. Esta mesa colocou em diálogo etnologia indígena, cultura popular, antropologia da religião, antropologia e sociologia da arte, objetos seculares, imagens religiosas, e, no meandro de tal diversidade, provocou recortes estimulantes, que favoreceram a articulação produtiva entre esses diferentes estudos. Com essa perspectiva do entrecruzamento das temáticas apresentadas, discutiremos cada trabalho específico, investindo no valor desse desafio saudável e academicamente provocante de convergir ideias para melhor entendê-las em separado, e a partir delas criar/imaginar outros campos de pesquisa e abordagens possíveis.

A criação, a destruição e a reinvenção de pessoas, objetos e valores como ação ritual As reflexões sobre o ritual constituem um campo historicamente favorável às questões que articulam pessoas, objetos e valores, e não foi diferente no âmbito dos trabalhos apresentados aqui. Falar em rituais é abrir o debate sobre a produção das fronteiras entre o sagrado e o profano,1 a articulação entre materialidade, sensibilidade, processos e símbolos,2 a relação entre pessoas, coisas e a produção de sentido,3 entre vários outros temas. Mais recentemente, Tambiah4 deu novo vigor aos estudos sobre rituais, contribuindo com vitalidade à perspectiva de uma antropologia da ação social. Sem a intenção de promover uma revisão bibliográfica sobre o tema,5 163

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interessa-nos aqui articular os trabalhos ao campo mais amplo de debates e, sobretudo, evidenciar como pela questão do ritual é possível pensar e articular nossos trabalhos. Fabio Mura, em seu trabalho sobre os Kaiowa, desenvolve uma análise sobre a articulação entre a cosmologia Kaiowa (enquanto uma visão cosmo-histórica, nos termos de Mura) e a elaboração e conceituação de objetos, formas e substâncias. Dedicando-se especificamente à análise do chiru (objetos de madeira geralmente em forma de varas e cruzes) e da ogapysy (construções similares a casas), Mura demonstra com sofisticação analítica como a relação entre as pessoas e esses objetos, pensada a partir da cosmologia Kaiowa, complica de modo particular a relação entre material/imaterial, físico/metafísico, concreto/abstrato. Os dados etnográficos de Mura iluminam-se pela análise dos rituais nos quais se dá a relação entre os Kaiowa e esses objetos – orações, canções, disposição de altares, rituais de iniciação. A análise desses processos evidencia como se produzem percepções, concepções, relações, cosmologias, sempre na perspectiva de superação dos limites impostos por dualismos, especificamente o dualismo ontológico natureza e cultura.6 Daniel Bitter, em sua análise dos objetos cerimoniais da folia de reis – especificamente a bandeira e a máscara – apresenta um escopo rico e diversificado de rituais nos quais tais objetos circulam, mobilizando diferentes bens materiais e simbólicos como bênçãos, graças, visitas, presentes, cantos, trabalhos, entre outros. O contexto ritual das visitas às moradias em Minas Gerais, de um Encontro de Folias de Reis em São Paulo, e de uma exposição de máscaras de palhaço no Rio de Janeiro, compõem um amplo conjunto referencial a partir do qual Bitter desenvolve sua análise sobre o que denomina a biografia ritual da bandeira e da máscara, sua circulação e seu trânsito entre planos cósmicos. Destaca-se nesse trabalho a forma como Bitter discute a relação entre pessoas e objetos nesses contextos rituais, problematizando em suas considerações finais a oposição ritual/estético, e coadunando-se assim com as preocupações de Mura e de toda a mesa de romper analiticamente com dualismos que dominam e predominam na teoria social, especificamente na tensão entre forma e conteúdo, pessoas e objetos e, mais uma vez, natureza e cultura.

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Por meio de seu estudo sobre as mulheres de Goiabeiras Velha (ES) que fabricam Panelas de Barro de modo tradicional, tal como “suas avós faziam”, Carla Dias se propõe a discutir, de acordo com as palavras precisas da autora em seu artigo neste livro, “o processo pelo qual as pessoas se constroem junto aos objetos que manipulam, como se organizam de dentro para fora e como a invenção de uma determinada tradição serve para elaborar uma identidade materialmente encarnada”. O fazer das panelas por essas mulheres que se denominam paneleiras é discutido por Dias como um processo técnico de manipulação do material que deve ser compreendido, sobretudo, como um processo social, produto de uma dinâmica de interações construída a partir de um sistema de ações. A importância do fazer enquanto sistema significativo de ações nos remete ao diálogo da mesa sobre performance e ritual, de modo que o trabalho das paneleiras passa a ser lido não como um simples ato técnico de produção de um objeto específico, mas como um ritual de produção de si na fabricação de objetos materiais, e de seu valor, na tensão entre o tradicional e o novo, também aqui rejeitando-se uma leitura dicotômica improdutiva, agora entre temporalidades. Renata Menezes propõe uma reflexão sobre a imagem sagrada, na interface entre os estudos sobre arte e aqueles sobre religião, a partir do estimulante episódio do Cristo de Borja. Neste episódio dona Cecília, uma devota octogenária da cidade de Borja, na Espanha, promoveu uma restauração espontânea da imagem de Jesus, pintada no século XIX nas paredes de uma pequena igreja local, resultando dessa restauração uma imagem bem diferente do original. A partir dos desdobramentos e efeitos desse episódio, Menezes sugere uma releitura dos acontecimentos tomando por ponto de partida a antropologia da devoção e a relação entre pessoas e santos. Nos termos da autora, em seu texto neste livro, “a devoção é um registro de classificação que atua como ordenador da própria vida, atribuindo-lhe significado”. Problematizando o ato de dona Cecília e os desdobramentos inesperados da circulação da imagem transformada por ela do Cristo de Borja, Menezes apresenta questões engenhosas acerca da classificação dessa imagem como artística e secular e/ou imagem religiosa e sagrada, bem como a classificação das ações sobre a imagem transformada como restauração, destruição, cuidado ou blasfêmia. Sendo assim, lidas como ações rituais, tanto a devoção de dona Cecília como

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as ações aleatórias e randômicas sobre a imagem do Cristo de Borja na internet, podem ser pensadas como campos de produção de sentidos e valores na relação entre pessoas e imagens ora compreendidas/vividas como sagradas e ora como seculares. Também aqui, mais uma vez, a simples dicotomia sagrado/profano como distinção ontológica não dá conta da complexidade do campo analítico trazido neste conjunto de trabalhos. Evidencia-se assim, na perspectiva dos estudos aqui apresentados, uma etnografia da ação e seus simbolismos, do processo de produção de subjetividades que se dá na relação com a produção, a reprodução, a criação e a destruição de objetos. Do ato de fazer, e de fazer-se ao fazer sentido.

Sagrado e profano; religioso e secular: deliciosos dilemas de classificação Os trabalhos apresentados na mesa “Objetos, pessoas e valores: arte e cultura material” do seminário Manifestações artísticas e ciências sociais trouxeram de forma transversal, nas diferentes apresentações, a questão da relação entre o sagrado e o profano, o religioso e o secular, mesmo sem ser a religião um tema central ao debate. A produção das categorias do sagrado e do profano informa a teoria e a pesquisa social desde seus autores clássicos, como é possível confirmar por meio do célebre trabalho agora centenário7 de Durkheim sobre As formas elementares da vida religiosa e do precioso livro de Mary Douglas Pureza e perigo (1976). Já acerca do debate sobre o religioso e o secular, destaco o trabalho contemporâneo de Talal Asad em sua Genealogia da religião (1993), na qual o autor propõe uma discussão crítica sobre a construção da categoria religião na antropologia que, supostamente universal, seria pautada por concepções datadas do cristianismo e da modernidade ocidental, especificamente no que diz respeito a uma abordagem acerca da relação entre religião e poder. Afirma Asad:8 O meu argumento é que não pode haver uma definição universal de religião, não apenas porque seus elementos constituintes e suas relações são historicamente específicos, mas porque esta definição é ela mesma o produto histórico de processos discursivos.9

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Atrelada à sua revisão da categoria religião, Asad desdobra seu esforço analítico ao propor também uma reflexão acerca da noção de secular, sugerindo que, ao lado de uma antropologia da religião, seja realizada também uma antropologia do secular e do secularismo, de modo a alimentar com pesquisas e dados etnográficos os elementos constitutivos – históricos e discursivos – dessas duas categorias de conceituações intimamente atreladas. Sugiro então que os trabalhos deste volume, mesmo que alguns sem esta intenção direta, possam ser lidos por essa abordagem, contribuindo significativamente para leituras e releituras acerca do que se define como religioso e secular, assim como os desdobramentos previsíveis e imprevisíveis dessas definições. O trabalho de Renata Menezes, dentro do escopo específico de uma antropologia da religião em diálogo com uma antropologia da arte, enfrentou de forma mais direta essas questões pertinentes ao seu próprio objeto em análise: a relação entre as ações de dona Cecília, o Cristo de Borja e seus desdobramentos na esfera pública. Tal como discutido pela autora, as consequências da classificação dessa imagem como religiosa – imagem sagrada – ou secular – uma obra de arte – são diferentes, mobilizam agenciamentos específicos, e se realizam concomitantemente na mesma situação. Ou seja: não é uma relação “ou isso ou aquilo”, ou religioso ou secular, mas na mesma situação desdobram-se simultaneamente as consequências da relação com a imagem do Cristo como obra de arte e como imagem sagrada. A análise da autora sobre essa temática é preciosa e se arrisca com destreza no debate sobre as construções das categorias religioso e secular no âmbito específico de pesquisas sobre arte. Ao acompanhar bandeiras e máscaras da folia de reis no contexto das festividades religiosas e também no âmbito da cultura (encontros e exposições), o trabalho de Bitter recoloca a relação entre o religioso e o secular ao tratar da circulação de objetos do âmbito religioso para o âmbito secular/cultural, bem como o caminho de volta. Bitter traz em sua etnografia situações em que pessoas se relacionam com o objeto religioso como obra de arte, e outras em que, exposto como objeto de arte, o objeto artístico é alvo da devoção. Inspira-nos nesse debate as reflexões de Luiz Fernando Dias Duarte acerca do processo de sacralização10 como caminho analítico interessante ao romper com as dicotomias próprias à discussão entre o

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religioso e o secular. O processo de sacralização, tal como discutido por Duarte, pode realizar-se sem mobilizar necessariamente aspectos chamados de religiosos ou, mais especificamente, mobiliza aspectos do religioso e do secular de modo particular. O trabalho de Bitter é assim rico em elementos analíticos que estimulam a reflexão sobre a relação entre religião e cultura – tema caro ao campo de debates antropológicos. Conforme dito anteriormente, em seu estudo sobre os Kaiowa, Fabio Mura traz continuamente para o debate os limites da contraposição ontológica entre natureza e cultura, e as diferentes categorias dela oriundas, tais como os binarismos material/imaterial, físico/metafísico. Ao recolocarmos o debate proposto por Mura em relação com as questões do religioso e do secular, do sagrado e do profano, o desafio analítico se refaz e se complexifica. A relação humanos e não humanos, tal como discutida e etnografada pelo autor, aponta soluções cosmológicas que vão além de tais dicotomias. A relação entre pessoas e objetos entre os Kaiowa mobiliza orações, cantos, espíritos e rituais enquanto elementos de sua vida social, e em sua análise Fabio Mura não faz uso em nenhum momento da categoria religião ou mesmo a ideia de sagrado para categorizá-las. O olhar atento a esse aspecto do trabalho de Mura, informado pelas preocupações de Asad, pode nos conduzir ao questionamento sobre a pertinência dessas categorias no contexto pesquisado pelo autor, sugerindo-nos em última instância dúvidas acerca de sua suposta e pretensa universalidade. As reflexões engendradas por esses trabalhos, portanto, apontam questões para um rico diálogo que relaciona os estudos sobre os objetos e a arte com o campo de pesquisa sobre as religiões, em busca do enfrentamento dos desafios contemporâneos de menos definir-se e mais discutir-se as passagens e as construções recíprocas entre o religioso e o secular.

Dinâmica, movimento e circulação de pessoas e objetos Por fim, interessa-nos destacar a dinâmica, o movimento e a circulação como aspectos centrais dos trabalhos aqui apresentados. A relação da teoria social com o tempo, o processo e a mudança têm suas particularidades. Permanências e mudanças são enfrentadas ao longo do fazer sociológico

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de formas variadas. Na antropologia, os trabalhos de Firth, Gluckman, Levi Strauss e Sahlins11 são significativos desse esforço em pensar sociedades e culturas a partir da relação entre aquilo que atravessa o tempo e o que nele se forma e se transforma. O trabalho de Carla Dias sobre as paneleiras de Goiabeira Velha (ES) é exemplar ao discutir diretamente a tensão da relação entre passado, presente e futuro, tradição e inovação, permanência e mudança. Ao fazer as panelas, as mulheres pesquisadas por Dias esculpem suas subjetividades em continuidade e em ruptura com suas tradições. “As inovações são permitidas desde que não deixem de fazer as formas tradicionais, aquelas que legitimam sua permanência, sua existência coletiva”, afirma a autora. Assim, o processo e a dinâmica da relação entre tempo e espaço é elemento indispensável às reflexões apontadas por Dias para a compreensão dessas paneleiras e suas panelas, dessas pessoas e sua relação com os objetos, na produção de valores. Além da dinâmica no tempo, também os deslocamentos no espaço tornaram-se um desafio para a antropologia. Classicamente constituída como o estudo de um povo em um lugar, a antropologia vem assumindo a necessidade de repensar essa díade e pautar o debate sobre o conceito de campo,12 lançando-se produtivamente ao desafio de pesquisar pessoas, objetos e fenômenos em movimento no espaço, como sugerido, por exemplo, por Marcus13 através de suas reflexões acerca de uma etnografia multisituada. No trabalho de Bitter, por exemplo, a circulação é elemento-chave. Sua etnografia em diferentes sítios ou campos favorece o acompanhar de objetos e pessoas na Folia de Reis e a invenção e reinvenção dos seus sentidos em movimento. A localização de sua análise em um dos campos resultaria na perda significativa dos elementos que Bitter é capaz de nos demonstrar ao acompanhar a circulação, enfrentando o desafio de etnografar um campo em movimento quando a tradição antropológica oferece mais recursos para uma pesquisa monossituada do que para um pesquisador em trânsito. Além de uma biografia dos objetos – que acompanha a dinâmica temporal dos objetos – Bitter nos apresenta uma cartografia dos objetos – que identifica diferentes sentidos nos objetos ao ocuparem diferentes lugares e posições no espaço, e mais, ao se deslocarem e circularem nele.

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Renata Menezes também explora os sentidos da circulação de uma imagem. Aventurando-se em acompanhar a imagem do Cristo de Borja em suas várias materialidades – inclusive sua versão digital circulante, alterada e continuamente alterável – Menezes aceita o desafio que as questões da ultracirculação, favorecida pelas tecnologias digitais, provocam aos estudos sobre arte e religião. Levando a sério um meme,14 a autora transforma sua versão anedótica em questões centrais e surpreendentes quando exploradas academicamente. Menezes soma-se a Bitter ao relacionar circulação e transformação, desafiando categorias previamente definidas de original e cópia, destruição e reinvenção, escancarando os limites do debate sobre a imagem e seu potencial de permanência e continuidade versus sua disponibilidade à alteração em diferentes meios, lugares e relações.

Notas 1 2 3 4 5 6

Durkheim, [1912] 1996.

Turner, 1982 e 1987. Mauss, 2003.

Tambiah, 1997.

Esta já realizada amplamente na literatura, com destaque para Peirano, 2002.

O esforço analítico acerca das categorias natureza e cultura é presente em diversos campos da antropologia. A etnologia indígena alimenta fortemente este debate em seus estudos clássicos e contemporâneos, tal como o faz Mura em seu texto neste livro. Cabe destacar também, no contexto desta publicação, o trabalho de Luiz Fernando Dias Duarte.

7

Dentre diversos eventos e publicações sobre os cem anos deste livro de Durkheim, destaca-se o dossiê temático publicado na revista Debates do Ner, ano 13, n. 22, jul/dez 2012.

8 9

Asad, Talal. [1993] 2010, p. 264.

No campo da antropologia brasileira, sugiro a leitura dos trabalhos de Giumbelli (2002), Birman (2012) e Montero (2012) que, em diferentes contextos, abordam de maneira igualmente relevante a questão da construção das categorias de religioso e secular no Brasil. 10 11 12 13 14

Duarte, 2006.

Firth, 1974; Gluckman, [1958] 2010; Levi Strauss, 2008; e Sahlins, 1985. Gupta; Ferguson, 1997. Marcus, 1995.

Um meme, termo criado em 1976 por Richard Dawkins no seu best-seller O gene egoísta, é para a memória o análogo do gene na genética, a sua unidade mínima. É considerado

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uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro ou entre locais onde a informação é armazenada (como livros). No que diz respeito à sua funcionalidade, o meme é considerado uma unidade de evolução cultural que pode de alguma forma autopropagar-se. Os memes podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida como unidade autônoma. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Meme. Acesso em: 26/02/2013).

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dução: Bruno Reinhardt e Eduardo Dullo. Cadernos de campo, São Paulo, n. 19,

2010, pp. 1-384. Traduzido de ASAD, Talal. Genealogies of Religion. pp. 27-54. ©1993 The Johns Hopkins University Press. Translated with permission of The Johns Hopkins University Press.

ASAD, Talal. Genealogies of Religion. The Johns Hopkins University Press. Translated with permission of The Johns Hopkins University Press, 1993.

BIRMAN, Patricia. Cruzadas pela paz: práticas religiosas e projetos seculares

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DUARTE, Luiz Fernando Dias. The Home Sanctuary – Personhood, Family and Religiosity. Religião e sociedade, v. 2, 2006.

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GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo: Attar Editorial, 2002.

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Cultura popular em trânsito: circulação e estetização de práticas performativas e objetos rituais entre folias de reis Daniel Bitter (UFF)

Em diversas regiões do Brasil, durante o período de festejos natalinos, grupos de cantores e tocadores realizam um longo circuito de visitas rituais às moradias de familiares, vizinhos e amigos, distribuindo bênçãos em troca de ofertas destinadas à realização de uma grande festa em louvor aos Reis Magos do Oriente. As visitas rituais, denominadas “jornadas”, inspiradas nas peregrinações míticas dos Reis Magos, colocam em circulação uma ampla gama de bens materiais e simbólicos, tais como: bênçãos, graças, visitas, refeições, dinheiro, presentes, favores, cantos religiosos, trabalho, divertimento etc. Esse rito popular mobiliza diversas categorias sociais, divindades e antepassados em intensas e significativas trocas, por meio das quais se criam e se fortalecem laços sociais e cosmológicos duradouros, configurando-se num extenso e complexo sistema de prestações recíprocas.1 Nesse contexto, alguns objetos cerimoniais, como a bandeira e a máscara do palhaço, ocupam um lugar fundamental, realizando mediações entre domínios sociais e cósmicos. Observa-se que, de forma crescente, esses objetos materiais têm se deslocado para contextos de colecionamento e exibição, para além do domínio das relações primárias de parentesco e vizinhança, quando são eventualmente reclassificados como arte, objeto etnográfico, patrimônio etc. Correlativamente, os próprios rituais das folias de reis têm sido performados numa diversidade de situações, ocupando praças públicas, palcos de teatros, escolas etc., num intenso processo de estetização e “objetificação cultural”.2 Nesses diversos cenários, as práticas de foliões de reis ganham novos sentidos e dimensões que as enriquecem. Neste texto abordo esses trânsitos, procurando refletir sobre as continuidades e descontinuidades entre os vários “enquadramentos” 3 em que se 173

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situam as práticas de foliões, colocando em foco as trajetórias da bandeira e da máscara. Procuro acompanhar suas “biografias culturais” 4 e observar as fases de suas “vidas sociais”, inspirado pela sugestão de Arjun Appadurai de que “são as coisas em movimento que elucidam seu contexto humano e social”.5 Argumento que esses objetos, bem como a performance, transitam num contínuo entre os polos ideais do ritual religioso e do estético, e que, em muitos momentos, essas dimensões se sobrepõem. É possível verificar a passagem de sua inalienabilidade à alienabilidade, seu trânsito para dentro e para fora do mercado, coleções particulares ou museus, enfim, suas rotas, eventuais desvios e outros detalhes biográficos, dentro de processos sócio-históricos específicos. Importa aqui acompanhar o modo como essas coisas são classificadas e reclassificadas em categorias culturalmente compartilhadas. Para fins de análise, proponho discutir essas questões partindo de distintas situações por mim observadas em trabalho de campo: um ritual no morro da Candelária, Mangueira, no Rio de Janeiro; o Encontro de Folias de Reis de Ribeirão Preto, São Paulo, realizado em 2011; e uma exposição de máscaras de palhaço realizada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) também em 2011.

O circuito ritual da bandeira e da máscara Começo por apresentar alguns aspectos de uma das fases da vida da bandeira e da máscara no contexto de sua restrita circulação ritual entre foliões e devotos, a partir de pesquisa realizada no Complexo da Mangueira, no Rio de Janeiro, entre 2004 e 2007. A bandeira pode ser sumariamente descrita como um suporte sobre o qual são ostentadas imagens de santos católicos e representações pictóricas de narrativas bíblicas, como os Reis Magos, a Sagrada Família, ou ainda outros santos com os quais se mantém um vínculo especial. Normalmente é dotada de uma proeminente aparência estética dada pela cuidadosa ornamentação feita com o uso de flores, pequenos espelhos, rendas, enfeites natalinos, lâmpadas e fitas de seda coloridas. Considera-se que a bandeira seja detentora de poderes especiais, sendo capaz de trazer bênçãos e graças a quem a recebe. A máscara, por

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sua vez, é usada por um personagem das folias comumente chamado de palhaço. Trata-se de um tipo marcadamente liminar, cômico e ambíguo, e sua máscara, de aparência grotesca, opera significativas transformações simbólicas e sociais, revelando e ocultando identidades pessoais. A máscara mostra-se indissociável de seu proprietário, assumindo significados moralmente negativos em contraste com a bandeira, em razão de sua associação a personagens malévolos, como Herodes. A máscara é também alvo de uma cuidadosa artesania. Conforme observei em inúmeras ocasiões, os circuitos de visitação ritual das folias se iniciam com a reunião dos foliões, compreendendo homens e mulheres de idade variada, na sede da folia, onde se encontra a bandeira. Sua manipulação e seus cuidados são restritos a algumas poucas pessoas. A retirada da bandeira do altar pela bandeireira, comandada pelo mestre, é um acontecimento ímpar, que envolve cantoria, toque instrumental, preces, acendimento de velas etc. A bandeira mantém-se guardada no interior de um altar privado, ornamentado com lâmpadas coloridas, imagens, fitas etc., o que acentua sua sacralidade. Os ritos que inauguram as jornadas marcam a passagem do tempo-espaço cotidiano para o tempo-espaço mito-mágico dos Reis Magos e visam também conferir proteção espiritual aos componentes do grupo, que agora se engajam num empreendimento considerado perigoso.6 É também nesse momento que se realizam ritos especialmente dedicados aos palhaços, uma vez que se crê que estes precisam de mais proteção do que os demais, por serem associados a representações negativas, como Herodes ou seus soldados, perseguidores do menino-Deus, que ocupam um importante lugar nas narrativas míticas. Durante esses rituais, os palhaços retiram suas máscaras, aproximam-se de joelhos do altar e acendem velas colocadas no chão para seus anjos da guarda. Retirada a bandeira do altar pela bandeireira, ela entra em circulação pelas vias públicas da localidade em direção às casas, retornando sempre para o mesmo altar ao fim de cada jornada diária. A folia percorre uma rota de visitações e seus deslocamentos espaciais descortinam uma cartografia social, sinalizando a qualidade das relações que foliões mantêm com a comunidade de devotos. O grupo realiza uma sequência básica de ações durante a visita a uma casa, envolvendo chegada, cantoria, distribuição de bênçãos, refeição,

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brincadeira do palhaço, agradecimento e despedida, configurando-se como um “processo ritual”7 que se desenrola no espaço e no tempo. Durante a visita, desenvolve-se um contínuo encadeamento de trocas cerimoniais de dádivas e contradádivas8 entre moradores, foliões e demais participantes. É dentro desse enquadramento que os familiares costumam fazer doações em dinheiro aos foliões, no momento de sua despedida. O donativo é entregue à bandeireira, que por sua vez fixa as notas na bandeira. Chamo a atenção para a ideia de que a entrada da bandeira e dos foliões, e de sua música no interior da casa, a transforma. A realidade é reenquadrada através da performance ritual. A presença dos Reis Magos e sua ação são, nesse contexto, sentidas e celebradas entre residentes e foliões, como uma realidade concreta, e a bandeira parece ter um papel fundamental na presentificação do santo e na mediação entre domínios cosmológicos. Nesse sentido, pode-se dizer que a bandeira assume efetivamente o estatuto de uma “pessoa”.9 Um aspecto da biografia ritual da bandeira, revelador de concepções sobre sua natureza supramundana, merece ser comentado. Uma narrativa muito disseminada entre foliões explicita que a bandeira e a própria folia tem origem mítica. Maria teria costurado uma bandeira e a ofertado aos Reis Magos, de modo que seguissem viagem sob proteção divina. Os Magos, por sua vez, a teriam dado aos homens, para realizar suas peregrinações. O fato de as bandeiras serem fabricadas pelos homens não entra em contradição com essa ideia. O que as singulariza e as sacraliza é o conhecimento, a que foliões chamam de “fundamento”, por meio do qual as bandeiras são produzidas. Latour10 sugeriu que a mão humana presente na feitura das imagens religiosas não diminui sua sacralidade, mas, ao contrário, a torna mais verdadeira. Em certo sentido, as coisas fabricadas pelos homens, que mantêm vínculos divinos, tendem a ter sua humanidade apagada, esquecida. De qualquer modo, o passado imaginário das origens é sempre presentificado mediante essas formas materiais que se ligam ao “fundamento”. Como finalmente sugere e nos faz recordar Maurice Godelier, os objetos sagrados podem se apresentar como fabricados diretamente pelos deuses e pelos

espíritos, ou pelos homens sob indicação dos deuses ou dos espíritos,

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mas em qualquer caso os poderes neles presentes não foram fabricados

pelos homens. São dons dos deuses ou dos ancestrais, dons de poderes presentes doravante no objeto.11

A trajetória da bandeira entre esses planos cósmicos não é, entretanto, necessariamente de mão única. Seu destino final pode ser o retorno à esfera supramundana, como se verifica no caso de um antigo mestre de folia que, ao declarar encerradas suas atividades rituais, e não tendo a quem transmitir a responsabilidade de seu posto, toma uma tesoura e resolutamente picota a bandeira, distribuindo cerimonialmente seus fragmentos entre os presentes durante a festa de arremate,12 enquanto recita os seguintes versos: “[...] e a bandeira vai para Belém”. São palavras que indicam a intenção de retornar a bandeira ao seu ponto de origem. Além de a bandeira realizar inúmeras e importantes mediações entre esferas e domínios, como passado e presente, vivos e mortos, homens e mulheres, casa e rua, homens e deuses, mito e rito, ela é o ponto focal de uma ampla circulação de outros objetos, como fitas de seda, santinhos, crucifixos, fotografias, dinheiro etc. Esses objetos são oferecidos por devotos

Figura 1. Bandeira. Foto: Daniel Bitter.

Figura 2. Máscara. Foto: Daniel Bitter.

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aos santos ou, inversamente, pelos santos aos devotos. Neste último caso, o mestre protagoniza um ato ritual de retirada de alguns desses objetos da bandeira para dar aos devotos. Bilhetes, pedidos e mensagens são comumente endereçados aos santos, ingressando numa intensa circulação cósmica. Doam-se e recebem-se coisas através da bandeira, e o que se verifica é que há um verdadeiro intercâmbio entre o mundo “visível” e o “invisível”. Há um fluxo permanente de objetos entre esses planos, e, como bem sinaliza K. Pomian, os objetos, “oferecidos em sacrifício, vão do primeiro desses mundos para o segundo. Os outros seguem o percurso inverso, quer directamente, quer introduzindo em imagens pintadas ou esculpidas elementos do mundo ‘invisível’”.13 O autor acrescenta que o que torna esses objetos distantes do circuito das atividades econômicas é a função de garantir a comunicação entre os dois mundos que compõem o universo. Costuma-se também levar a bandeira aos cômodos mais recônditos e íntimos da casa. Esse gesto parece destinar-se a sacralizá-los, purificá-los ou afastar maus espíritos. O mesmo se aplica quando a bandeira é usada para benzer uma pessoa ou um defunto. Em suma, chamo aqui a atenção para o fato de que, nesse contexto, a bandeira é detentora de amplos poderes de agência. A performance do palhaço se desenrola quase sempre na rua, mas pode também se realizar ocasionalmente no interior da residência. Nesse caso, sua entrada na casa é feita gradualmente e requer insistentes pedidos de licença feitos aos residentes que recebem a folia. Muitas vezes, a bandeira é retirada do espaço onde o palhaço realizará sua apresentação. Outras vezes, ela é apenas coberta com um pano, o que indica que a visibilidade desse objeto é uma via privilegiada para a manifestação de seus poderes. Ainda assim, a presença da bandeira e sua proximidade são aspectos que garantem sua eficácia, visto que os palhaços não devem se aproximar demasiadamente desta, a não ser que estejam sem suas máscaras, como também não devem afastar-se muito, pois necessitam de sua proteção. A razão desse perigo potencial e desses interditos pode ser encontrada em exegeses mitológicas. O palhaço declama versos de memória ou de improviso, de acordo com as circunstâncias do momento. Seu caráter é fortemente cômico, tendo muitas vezes o público, mas principalmente o próprio dono da casa, como alvo de suas brincadeiras. Seu jogo está em divertir os espectadores e

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conseguir tirar proveito do dinheiro ofertado pela assistência, que é jogado ao chão.14 Embora a bandeira e a máscara se apresentem de forma contrastiva, inclusive esteticamente, ambas compartilham a característica de estarem fortemente ligadas aos seus usuários, aos seus corpos, inscrevendo-se efetivamente num contexto de intercâmbio de qualidades entre pessoas e coisas. Se, por um lado, a bandeira é alvo de intensos contatos corporais, a máscara, por sua vez, é evitada, pelo risco de contágios negativos. No contexto ritual, a circulação desses objetos é bastante restrita, aproximando-se do que Annette Weiner15 chamou de “possessões inalienáveis”. A transferência da bandeira de um mestre a outro pode se realizar, mas deve envolver certos procedimentos rituais, uma vez que esses objetos são vistos como extensões de seus proprietários ou mesmo como propriedades dos santos. A máscara é pessoal, e, no contexto ritual, sua circulação é também bastante restrita, uma vez que não se costuma transferi-la das mãos de um palhaço a outro, pois considera-se perigoso. Mesmo após a morte de um palhaço, seus pertences rituais são frequentemente considerados despojos impuros,16 que precisam ser eliminados adequadamente. A inalienabilidade dos objetos não é, entretanto, completa ou permanente, mas uma fase de suas “vidas sociais”, conforme venho argumentando. Evidentemente, a condição de inalienabilidade do objeto pode não ser permanente nem se estender a todos os casos, pois é sempre dependente de sua posição dentro de um quadro valorativo específico.17 De acordo com Gonçalves os objetos materiais estão submetidos a um processo permanente de circulação e reclassificação, podendo ser deslocados da condição de mercadorias para a condição de presentes; ou da condição de presentes para a condição de mercadorias; e alguns desses objetos podem ser elevados à condição de “bens inalienáveis”.18

Bandeiras e máscaras podem, inclusive, ser produzidas sob demanda, com o propósito de serem imediatamente mercantilizadas, não apenas como objetos cerimoniais, mas como artefatos valorizados por sua artesania ou pelo conhecimento etnográfico que supostamente encerram. O que acontece quando esses objetos fortemente “singularizados” e dotados de significados mágico-religiosos, transitando muito restritamente

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entre foliões e devotos, e as performances a eles associados sofrem deslocamentos em suas rotas e passam a circular em festivais folclóricos, coleções e exposições, assumindo eventualmente a condição de mercadoria, arte, artefato etc.? O que dizer desses objetos de uso ritual quando são produzidos e imediatamente inseridos em circuitos comerciais, artísticos ou de colecionamento? Por ora, talvez seja possível definir provisoriamente o estatuto desses objetos, seguindo a sugestão de Kopytoff: o que caracteriza a situação de todas essas coisas é sua ambiguidade.19

Os encontros de folias de reis Os festivais folclóricos20 não são propriamente uma novidade, pois se sabe que desde pelo menos o chamado “Movimento Folclórico”, transcorrido entre os anos 1947-1964, estes foram amplamente instituídos como instrumentos de incentivo e proteção das “manifestações folclóricas”.21 Os eventos são realizados em espaços públicos de algumas cidades, contribuindo em certa medida para dar maior visibilidade a práticas sociais e culturais, bem como a modos de vida desconhecidos da maior parte da população. Alguns desses eventos revelam uma vitalidade notável, a exemplo do Encontro Nacional de Folias de Reis de Muqui-ES, realizado há mais de cinquenta anos e que já chegou a reunir, num único evento, cerca de uma centena de grupos. Richard Bauman e Patricia Sawin definiram esse tipo de evento do seguinte modo: The folklife festival is a modern form of cultural production that draws

upon the building blocks and dynamics of such traditional events as festivals and fairs: complex, scheduled, heightened, and participatory events

in which symbolically resonant cultural goods and values are placed on public display. 22

Numerosas folias de reis incorporaram à sua rotina a participação nesses festivais e em outros eventos marcados por uma forte “espetacularização”. Foliões distinguem com clareza essas modalidades de participação usando as categorias nativas visita e apresentação, transitando com

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Figura 3. Folia de Reis se apresentando no palco. Foto: Daniel Bitter.

desenvoltura entre elas. O ponto a assinalar é que a dimensão espetacular das folias de reis nunca deixou de lhes ser inerente, embora se acentue bastante nos novos cenários de exibição e mesmo de competição. O Encontro de folias de Ribeirão Preto é um evento anual que tem contado com amplo apoio da prefeitura da cidade, por intermédio da Secretaria de Cultura. É uma grande festividade pública caracterizada por múltiplas práticas, envolvendo devotos, foliões de reis, políticos, intelectuais, folcloristas, pesquisadores, jornalistas, turistas etc., num entrecruzamento de interesses, sentidos e discursos. Nesse contexto, são acionadas determinadas políticas de representação e exibição que tendem a reclassificar as performances como arte, folclore, cultura brasileira, patrimônio local ou nacional etc., noções essas que permeiam largamente os discursos dos apresentadores do evento. Proponho que eventos dessa natureza se deem na forma de “transações interculturais”,23 envolvendo processos contínuos de negociação por meio dos quais se constroem múltiplas representações identitárias. O encontro tem lugar na praça José Rossi, no bairro de Vila Virgínia. No centro da praça há um grande e elevado palco. O evento se inicia com uma missa, sinalizando a presença da Igreja católica, o que não necessariamente se verifica no contexto do ciclo ritual das folias de reis, quando

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essa relação é, em muitos casos, controversa e conflituosa. Por volta das 10h se iniciam as apresentações das folias presentes, que contabilizaram, na ocasião, quarenta grupos oriundos de cidades próximas. Os grupos recebiam da comissão organizadora um número de inscrição, de acordo com a ordem de chegada. Cada grupo tem dez minutos para sua exibição no palco, incluindo a apresentação dos palhaços. O “limitado” tempo de atuação das folias de reis em contraste com o tempo expandido dos cortejos de visitação ritual merece ser assinalado. Tenho, entretanto, pensado que há nesses eventos muitas formas de subverter esse tempo regulado pelo relógio, e isso parece particularmente visível nas atividades que ocorrem ao redor do palco, que apresentarei mais adiante. Há, evidentemente, uma série de adaptações da performance usual para adequá-la ao novo formato, o que, muitas vezes, é motivo de desentendimento entre as partes envolvidas. Bauman e Sawin24 chamam a atenção para o fato de que essas acomodações, que visam tornar a performance inteligível ao público e atender a múltiplas demandas de representação, podem se dar em meio a processos complexos, problemáticos e conflituosos. Os autores partem da premissa de que a constituição de festivais folclóricos se dá num campo que tem relações com arenas políticas mais amplas, envolvendo relações de poder e estruturas de autoridade. Os autores destacam, entretanto, que é necessário reconhecer a agência dos participantes, uma vez que não são simplesmente objetos museológicos.25 Um locutor anuncia ao público a apresentação dos grupos, e cada um, por sua vez, sobe ao palco. É também função do locutor anunciar a presença de pessoas “ilustres”, o nome dos patrocinadores e apoiadores, bem como tecer comentários sobre os grupos, enaltecendo suas qualidades: origem, tempo de existência, formação instrumental, estilo etc. Ocasionalmente, as representações construídas pelos apresentadores se chocam com aquelas sustentadas pelos próprios participantes. A apresentação dos grupos se desenrola em grande interação com o público, embora certa distância física se mantenha entre eles na maior parte do tempo. O foco está concentrado na performance, nos seus aspectos formais e estéticos. Ouve-se as pessoas tecerem comentários sobre trajes, música, repertório etc. A assistência aplaude, se entusiasma e se emociona com as apresentações. A música amplificada por potentes caixas acústicas adquire um caráter bastante distinto

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daquele que se verifica no contexto solene e intimista de cantoria na casa de um devoto. Ao final da performance de cada grupo, a bandeira é levada ao público pelo bandeireiro para ser beijada, tocada e louvada etc., quando então a distância é reduzida, e os aspectos mágico-religiosos da performance tornam-se mais salientes.26 Essa interação é ainda estimulada pela instituição de uma premiação conferida aos palhaços que conseguem arrecadar a maior quantidade de dinheiro ofertado pela assistência. É uma espécie de concurso no qual o júri é o próprio público, que expressa sua preferência ofertando maior ou menor quantidade de dinheiro. A expectativa do prêmio e a competição em torno do reconhecimento e da notoriedade de certos indivíduos são fatores de significativa importância no quadro dessa interação. Como argumentou Barbara Kirshenblatt-Gimblett,27 em contraste com exibições museológicas convencionais, que tendem a reduzir a complexidade sensorial do evento, festivais folclóricos são multilocalizados, requerendo dos espectadores um tipo de desatenção que a vitrine, por sua vez, impede. Como a autora sugere, o palco, o mestre de cerimônias e o programa do evento estão para o percussionista como a vitrine, a etiqueta e o catálogo estão para o tambor.28 Como propõem Bauman e Sawin: Folk festivals have obvious affinities with museums, which also exist for

the display of culturally valued forms, thought where museums tend towards the display of material objects, folk festivals, in keeping with the

ambience and dynamic of the festival form, are more participatory and oriented toward action and performance.29

Durante o evento, uma prática também muito importante consiste no hasteamento de três bandeiras representativas localizadas ao lado do palco: são elas a de Nossa Senhora Aparecida, a de São Sebastião e a dos Magos do Oriente. Noto que as bandeiras são importantes marcos de sacralização do espaço de apresentação, apontando para o contínuo entre o polo estético e o religioso e a fluidez e ambiguidade dos enquadramentos. Cabe ressaltar também o contraste entre o uso do espaço no contexto local e no festival. No caso dos circuitos de visitação, os foliões se deslocam em direção às

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casas de devotos, espaços privados por excelência. No evento público, ao contrário, são as pessoas que se deslocam para a praça onde já se encontram as folias. Esse contraste parece ser significativo e aponta também para o fato de que são as circunstâncias que investem o espaço de um sentido particular. Se por um lado a bandeira da folia purifica a casa ao adentrá-la, na praça algo semelhante se dá com o hasteamento das bandeiras. Argumentei anteriormente que o limitado tempo de apresentação dos grupos é subvertido, e creio que isso está relacionado às diversas interações estabelecidas entre foliões e assistência ao largo do palco. Alguns grupos se dispersam ao redor da praça e costumam executar suas toadas “poético-musicais” espontaneamente ou a pedido de um devoto que deseja oferecer um donativo ao grupo. Dá-se então uma ação ritual altamente codificada, muito semelhante à que se verifica quando uma folia visita uma casa. O ofertante recebe a bandeira das mãos do bandeireiro, mantendo-a consigo durante a cantoria, primeiramente de joelhos e posteriormente de pé. O mestre declama versos de acordo com a situação, em tom solene, abençoando o ofertante e sua família por intermédio da agência dos Santos

Figura 4. Palhaços posando para a fotografia. Ribeirão Preto (SP). Foto: Daniel Bitter.

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Reis Magos. O bandeireiro recolhe o donativo e, logo em seguida, versos de agradecimento são cantados pelo grupo, sempre com acompanhamento instrumental. É também nesse momento que devotos fixam fotografias e bilhetes com pedidos direcionados aos Magos na bandeira, dentro do quadro interativo das trocas de dons, das promessas e dos sacrifícios. Enquanto os foliões encontram-se em intensa interação com devotos na periferia do palco, envolvidos pela solenidade da música e dos versos, um integrante do grupo oferece ao público CDs, com preços variando entre R$ 10,00 e R$ 15,00. A grande maioria dos grupos dispõe de CDs para comercializar. Soube que uma das folias presentes no evento, o Terno de Reis de Taquaras-SC, vendeu em um ano aproximadamente 10 mil unidades de seus três CDs, gravados em 2006, 2007 e 2009. O grupo já tem um DVD e se prepara para gravar seu quarto disco. Simultaneamente às práticas rituais de foliões e devotos, e ao comércio de CDs, observam-se os palhaços espalharem-se ao redor da praça e executarem também suas performances acrobáticas, exibindo suas requintadas máscaras e indumentárias. Estes costumam posar para os inúmeros fotógrafos e câmeras de plantão, às vezes em troca de moedas. Aqui, certa dimensão da individualidade criativa ganha relevo. Muitos palhaços assumem que são artistas acrobáticos e poetas populares, ou, ainda, artesãos de máscaras. Há um investimento de trabalho considerável nessa prática, e verifica-se uma intensa circulação de conhecimentos a esse respeito entre os palhaços. A preocupação com a identificação da autoria das máscaras e de sua originalidade e criatividade é fator flagrantemente importante nesse quadro. Todos esses aspectos parecem ganhar uma dimensão ainda mais notável quando as máscaras se deslocam para uma exposição numa galeria de arte.

Máscaras e bandeiras como objetos de arte? Em novembro de 2011, inaugurou-se uma bela exposição intitulada Máscaras na Galeria Cândido Portinari, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com curadoria de Ricardo Gomes Lima e Cáscia Frade. Tematizando os palhaços de folias de reis, a mostra continha uma diversidade de máscaras, algumas indumentárias completas, fotografias e

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vídeos. Estavam presentes trabalhos de 12 artistas populares que integram acervos de diversas instituições e coleções particulares, identificados nas etiquetas. Alguns dos artesãos das máscaras talvez não imaginassem que suas artesanias teriam esse destino, como é o caso de Manoel Gama (Mané Gato) de Miracema, um antigo e conhecido palhaço que adquiriu fama e reputação de exímio versador entre foliões de reis do estado do Rio de Janeiro. Manoel Batista (Gato Preto), seu filho, ficou surpreso ao ver uma máscara de seu pai, que não encontrava havia muito tempo, na exposição onde se encontravam muitas de suas próprias máscaras. As novas gerações de palhaços têm cada vez mais incorporado a artesania à rotina das atividades desse personagem, ocupando um lugar importante também no modo como esses “indivíduos” concebem seus selfs. Em um dos cantos da sala foi montado um altar cuidadosamente ornamentado com inúmeras imagens de santos, lâmpadas coloridas, fitas de seda, sobre o qual foi depositada uma bandeira que identifiquei como tendo sido fabricada pelo mestre de folia Augusto Prucolli. No chão, havia um pequeno e sugestivo pote de barro contendo dinheiro. A bandeira pertence atualmente ao Museu de Folclore Edison Carneiro, instituição ligada ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan. A trajetória desse objeto é particularmente interessante para o argumento desenvolvido neste texto. Quando estive no Encontro Nacional de Folias de Reis de Muqui, em 2006, registrei o uso da bandeira por um grupo local. A bandeira esteve sob a guarda da Comissão Espírito-Santense de Folclore e, tempos depois, foi doada ao Museu Edison Carneiro, conforme ficha documental do artefato. Gostaria de chamar a atenção para o fato de que, nesse caso, a bandeira sai de seu contexto festivo, usual, para uma instituição de proteção da cultura popular, ingressa numa coleção etnográfica e é temporariamente reinserida num contexto híbrido de exposição e ritualização. Esclareço. O altar e a bandeira apresentados na exposição não estavam ali apenas para serem exibidos ou para representarem um universo cultural específico. A vasilha de cerâmica com dinheiro repousando no chão parece denunciar isso, incitando o público a ingressar numa relação de troca com o santo, de modo a oferecer seu donativo à bandeira. A inauguração da exposição foi marcada pela presença da Folia Sagrada Família da Mangueira, acompanhada de palhaços de diversos

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outros grupos. A folia adentrou a galeria em direção ao altar, diante do qual executou sua performance poético-musical. Naquele momento, a galeria transfigurou-se na “casa”.30 A intenção dos curadores parecia estar em dissolver, ao menos momentaneamente, as fronteiras entre arte, ritual e representação cultural. Após a louvação da bandeira, os foliões voltaram a se reunir do lado de fora, onde se realizou uma longa performance lúdica com os palhaços. Música, movimentos, dança, versos, comicidade e público se integram num evento sinestésico de grande intensidade. Nessa direção, as palavras de Valeri parecem ressonantes: Com efeito, o que faz passar uma ação da esfera do rito à da arte ou do

jogo, e vice-versa, não são tanto as suas propriedades intrínsecas como

os efeitos variáveis que elas possuem em contextos diversos e sobre espectadores diversos”.31

No interior da galeria, máscaras e outros artefatos sob iluminação direcional são cuidadosamente exibidos contra paredes negras, investindo-os de certo mistério. A ênfase nos aspectos formais é clara e coerente com o título da exposição. Tais arranjos e técnicas de exibição envolvidos na apresentação dos objetos refletem práticas institucionais poderosas que mobilizam sistemas arbitrários de valor e significado, como já sugeriu James Clifford.32 Diversos autores já chamaram a atenção para o fato de que, quando artefatos destinam-se a um museu ou exposição, há, de certo modo, um esforço em apagar os detalhes de sua carreira até aquele ponto. Que tipo de sistema de valor orienta essa exposição? O que se deseja despertar na percepção de um visitante? Interesse pelo conhecimento etnográfico ou histórico, sensibilidade estética ou algum tipo de ressonância mágico-religiosa? Minha sugestão é que os curadores parecem ter o propósito de ampliar os sentidos desses artefatos, ainda que o padrão expositivo adotado privilegie a dimensão estética. Penso que a essa altura é possível formular de forma mais precisa a ideia de que a oposição ritual/estético é uma daquelas conhecidas dicotomias que, em grande medida, dominam a teoria social. Em vez de tornarem mais claros e compreensíveis os contextos sociais e culturais, acabam por

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Figura 5. Bandeira e altar. Foto: Daniel Bitter.

reduzir as diversidades humanas.33 Neste sentido, talvez a noção de “fato social total” proposta por Marcel Mauss seja interessante para caracterizar todos os fenômenos em que os objetos estão inseridos e que, a partir deste fato, ganham sentido. Neles converge uma diversidade de instituições, esferas e domínios inseparáveis: econômicos, estéticos, morais, religiosos, corporais etc. Outro aspecto para o qual procuro dar atenção é a natureza processual da vida social dos objetos, o que me permite, parafraseando Appadurai, escrever que um objeto de arte não é um tipo de coisa, em vez de outro tipo, mas uma fase na vida de algumas coisas.34 Como bem sugeriu Kopytoff: “Uma biografia rica de uma coisa é a história de suas várias singularizações, das classificações e reclassificações num mundo incerto de categorias cuja importância se desloca com qualquer mudança do contexto”.35

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Notas 1 2 3 4 5 6

Mauss, 2003.

Handler, 1985.

Valeri, 1994.

Kopytoff, 2008.

Appadurai, 2008.

As jornadas são fases liminares, vistas em relação às ações cotidianas. Foliões consideram que inúmeros perigos ameaçam a integridade do grupo e comprometem o êxito de sua missão (Pereira, 2011).

7 8 9

Turner, 1974. Mauss, 2003.

Mauss, 2003; Gell, 1998; Bitter, 2010.

10 11 12

Latour, 2007.

Godelier, 2001, p. 206.

A festa de arremate é celebrada ao fim do ciclo de visitações, configurando-se numa ostentosa cerimônia para a qual são convidados todos aqueles que contribuíram com as jornadas.

13 14

Pomian, 1997, p. 66.

O contraste entre os sentidos do dinheiro ofertado à bandeira e ao palhaço é, de fato, muito flagrante. Enquanto o primeiro é incontornavelmente destinado a uma redistribuição, regida por uma economia e uma moral do dom, o segundo pode, muitas vezes, seguir o curso de uma acumulação possessiva e individual.

15 16 17

Weiner, 1992.

Douglas, 1976.

Sabe-se que objetos sagrados, como imagens de santos católicos, coroas, relíquias etc., são muitas vezes cobiçados, vendidos, trocados e mesmo roubados. Contudo, essas atividades existem em função da própria inalienabilidade dos objetos (Pomian, 1997, p. 66). Isso aponta precisamente para as ambiguidades dos objetos e para os múltiplos enquadramentos com base nos quais são classificados e reclassificados.

18 19 20

Gonçalves, 2007, p. 27. Kopytoff, 2008.

Distanciando-me das concepções de senso comum sobre a noção de “folclore”, frequentemente apropriada de forma pejorativa e simplificada, refiro-me aqui a uma categoria de pensamento amplamente mobilizada tanto por intelectuais envolvidos com o chamado campo de “estudos do folclore” e da cultura popular no Brasil quanto por foliões de reis. Chamo aqui a atenção para a notável articulação dos folcloristas em torno do desenvolvimento de políticas públicas para a valorização e a proteção das culturas populares no Brasil, desde pelo menos os anos 1930, com Mário de Andrade. Os festivais folclóricos aqui analisados são desdobramentos do prestigioso Movimento Folclórico (1947-64) e

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do trabalho das comissões de folclore, algumas delas atuantes nos dias de hoje. Ver, a esse respeito, Vilhena (1997) e Cavalcanti (2005), entre outros. 21 22 23 24 25 26

Vilhena, 1997.

Bauman e Sawin, 1991, p. 289. Myers, 1994.

Bauman e Sawin, 1991, p. 290. Ibid.

Noto que as regras de manipulação da bandeira, tais como o impedimento dos foliões de avançar à sua frente, podem ser momentaneamente suspensas nesses contextos.

27 28 29 30

Kirshenblatt-Gimblett, 1998. Ibid., p. 64.

Bauman e Sawin, 1991, p. 289.

Na cosmologia de foliões e devotos, a casa é concebida como o lugar original onde teria ocorrido a visita dos Magos ao menino-Deus. Ao mesmo tempo, é um espaço básico onde se estabelecem e se hierarquizam relações fundamentais entre parentes, vizinhos e amigos. Daí ser a casa um importante foco dos rituais das folias de reis.

31 32 33 34 35

Valeri, 1994, p. 356. Clifford, 1994.

Appadurai, 2008. Ibid., p. 32.

Kopytoff, 2008, p. 121.

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WEINER, Annette. Inalianable Possessions: the Paradox of Keeping While Giving. Berkeley: University of California Press, 1992.

A produção de si na fabricação de objetos materiais Carla Dias (EBA/UFRJ)

Apresentando Cor, dimensão, forma, textura, brilho, profundidade, peso… Objetos são bons para tocar, agir, olhar. Sua materialidade nos provoca os sentidos, o pensamento. O que é o objeto, o que nos faz pensar, o que nos faz ver ou apreender do outro, daquele que o produz, o usa, o transforma? Temos observado o crescente interesse nos estudos que tratam da presença dos objetos materiais na vida social – diferentemente dos estudos de cultura material, que marcaram um momento da antropologia em que esses objetos eram pensados como marcadores de distâncias e proximidades, intermediadores de uma narrativa, de uma trajetória que se pretendia universal.1 O objetivo deste texto é apresentar alguns apontamentos de uma pesquisa que buscou investigar a relação dos objetos materiais em suas dimensões sociais de produção e apropriação, percebendo processos técnicos que envolvem a manipulação da matéria (físico-química) como processos sociais, produtos de uma dinâmica de interações construídas, também, por eles. Meu interesse situa-se nesse lugar de contato, onde é possível pensar no processo pelo qual as pessoas se constroem junto aos objetos que manipulam através da materialidade da forma, da transformação da matéria, da elaboração de sentidos e da vivência e construção da rede de significados compartilhados, onde o mundo se organiza para dentro e para fora. Isso significa pensar também na relação dialógica engendrada com as instituições municipal, estadual e federal e as políticas de construção do “patrimônio cultural”. 193

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Especificidades que envolvem situações particulares revelam aspectos importantes, que fundam a permanência não só do objeto, mas a permanência social dos fazeres. As formas como os grupos vêm incorporando novos significados às suas práticas, à sua organização e, consequentemente, aos objetos que passam a simbolizar seu pertencimento e sua articulação com os demais segmentos da sociedade – e também a possibilidade de acesso a outros bens – são um campo privilegiado para a compreensão da dinâmica social engendrada pelo fazer. A relação com os objetos é pensada como fator de formação ou fabricação,2 isto é, como um processo em que se tenta perceber as pessoas se fazendo com os objetos, com a matéria plástica, com o fazer.

Um caso Em 2002, as mulheres de Goiabeiras, as Paneleiras, tiveram seu fazer registrado na primeira página do Livro dos Saberes, dedicado ao patrimônio cultural de natureza imaterial do Iphan.3 Inaugurou-se, com o registro deste fazer, uma escrita que modificou o modo de olhar as coisas feitas, fabricadas nos escondidos quintais ou terreiros, dos objetos reconhecidos como tradicionais. As Paneleiras são as mulheres que fabricam as panelas de barro pretas do mesmo modo e no mesmo lugar que suas mães e avós faziam.4 Goiabeiras Velha – conjunto de ruas margeadas pelo manguezal, em Vitória (ES) – é o lugar ocupado por elas como território e, portanto, o lugar onde o fazer foi situado. São Paneleiras, e assim se reconhecem e se diferenciam de outras pessoas ou grupos que também trabalham com barro ou também fazem panelas. Invocam a legitimidade do fazer também pela referência ao território que ocupam. As Paneleiras legítimas são as de Goiabeiras Velha. Este lugar, social e político, começou a ser construído no final dos anos 1980, a partir de uma política de governo que propiciou a organização da categoria pela via do trabalho, primeiramente. Ser Paneleira passou a significar ocupar determinado lugar na sociedade, lugar que não existia a priori e que foi construído pelos sujeitos que o ocupam. O fazer ganhou novos modos, novas formas, e novos sentidos foram incorporados e são constantemente modificados.

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Figura 1. Antigo galpão das Paneleiras, 2007. Foto da autora.

Antes… As mulheres contam que antigamente o transporte era feito de canoa pelos canais do manguezal, que chegavam quase na porta de seus quintais. Alcançavam o barreiro, lugar da jazida de argila, matéria-prima da confecção das panelas, e também o mercado da Vila Rubim, localizado no centro da cidade, onde eram vendidas as panelas. Situada na região norte da cidade (no continente, ao norte da ilha), Goiabeiras Velha foi pouco a pouco se modificando no processo de urbanização empreendido, principalmente quando o aeroporto foi construído nas proximidades. O manguezal, apesar dos aterros constantes realizados para abrigar a crescente população, ainda hoje desenha a geografia desse fazer. Fazer panela era uma atividade que as mulheres realizavam nas horas vagas, entre uma e outra tarefa doméstica, nos quintais de suas casas. A ampliação do aeroporto e da BR-101 gerou uma intensificação do fluxo turístico também na região de Goiabeiras Velha. A moqueca capixaba feita na

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panela de barro é um dos principais produtos do mercado turístico. O crescente número de restaurantes que oferecem a iguaria influenciou o modo de produção das panelas em consequência do aumento da demanda. Algumas mulheres de Goiabeiras, herdeiras genealogicamente desse saber, passaram a se ocupar de fazer panela como atividade produtiva. Além de fazer, passaram a comprar a pequena produção de outras para revender, criando pontos de comercialização próprios. Com a construção das vias de acesso ao bairro, os turistas, interessados em conhecer o artesanato local, puderam ter acesso ao lugar de produção para comprar e acompanhar todo o processo. Em 1987 um pequeno grupo, contando com o apoio de uma vereadora na elaboração do estatuto, fundou a Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG), entidade constituída para lutar pelas condições objetivas de permanência e desenvolvimento do ofício. Naquele momento, a preservação do barreiro, e consequente acesso à matéria-prima, era uma questão premente, pois, com o crescimento da malha urbana, o Vale do Mulembá (onde está o barreiro) foi escolhido para a instalação de um aterro sanitário. Melchiadia, primeira presidente da Associação e, entre as mulheres, principal produtora, incluiu como ponto importante para o desenvolvimento da atividade a construção de um espaço coletivo, sede da Associação, o galpão, destinado a abrigar as atividades de produção e venda das Paneleiras. Com o apoio da Secretaria Municipal de Trabalho, as mulheres foram conquistando um espaço político intra e extragrupo. O galpão foi sendo ocupado pouco a pouco e a cada ano o número de Paneleiras trabalhando no espaço foi se ampliando. A luta pelo acesso à matéria-prima, objetivo de todas, contribuiu para a consolidação da Associação, através da configuração de uma identidade socioprofissional de Paneleira. A matéria-prima garante a manutenção do trabalho e, pela via do trabalho, elas se tornam agentes, produtoras de um bem cultural, de natureza material. As panelas, os objetos, a materialidade passam a ser fabricados. Sua existência no mundo das formas é consequência de uma ação sobre a matéria. No processo de construção dessa identidade de grupo foi criado o Dia da Paneleira e, para festejá-lo, um evento anual, a Festa das Paneleiras. O evento, que se realiza todos os anos desde 1992, deu visibilidade às mulheres, ainda pouco valorizadas no contexto cultural regional.5 Durante os anos 1990 as Paneleiras consolidaram a entidade através de enfrentamentos e alianças com a Prefeitura Municipal de Vitória e o

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Governo do Estado pela garantia do acesso à matéria-prima. As mulheres conquistaram um lugar político que as posicionou no campo de disputas institucionais, envolvendo uma nova categoria de agenciamento no contexto regional, a cultura e o patrimônio cultural.6 Com o Decreto nº 3.551, de agosto de 2000, que instituiu o registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, a sub-regional do Iphan no Espírito Santo, em parceria com a Associação das Paneleiras, preparou a candidatura e encaminhou uma solicitação formal ao Ministro da Cultura requisitando o registro do fazer como Patrimônio Nacional.7 Assim, em 2002, o parecer apresentado na reunião do Conselho Consultivo do Iphan foi favorável à inscrição do saber-fazer panela de barro das Paneleiras de Goiabeiras no Livro dos Saberes do Iphan. Figura 2. Carta entregue por Berenícia. No canto superior esquerdo pode se observar a primeira marca, que era usada também como selo de autenticidade.

Temos aí as principais características que se poderiam esperar de saberes práticos tradicionais com qualidades de um patrimônio nacional. Por um lado, os traços básicos da tradição: longo enraizamento nas práticas das populações locais, dependência e interação com os ecossistemas locais, forma de reprodução não letrada ou não erudita, reconhecimento coletivo como tradição.8

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A discussão em torno da ideia de tradição permeia os estudos da cultura material, sobretudo dos fazeres artesanais. Ela fixa sua atenção em um aspecto da cultura, os valores tradicionais, cujo resgate e conservação considera fundamentais frente à aceleração crescente da industrialização e ao desenvolvimento dos meios de comunicação. Assim, o artesanato, produto do artesão, vem acompanhado pelo termo tradicional, em contraponto ao moderno, marcando a existência de tempos distintos. O progresso mecânico impõe o domínio de técnicas e materiais falsificados, substituindo a arte do artesão, que passa a ser ponto de exclusão do movimento moderno no âmbito dos universos artísticos. A permanência é um dos aspectos fundamentais da qualificação do que se costuma designar artesanato tradicional, mas a permanência pode estar fixada em um aspecto pouco perceptível, mesmo no que diz respeito à materialidade no objeto.

Figuras 3a e 3b. Selo de autenticidade criado pela Associação e a Prefeitura de Vitória para diferenciar a autêntica panela (das Paneleiras) das demais. Foto da autora.

Depois… Considerações relativas à produção e ao consumo de um objeto são fundamentais para que se possa compreender as relações que fundam sua permanência no cotidiano de um grupo social. Portanto, acompanhar o processo de fabricação engendrado por meio do valor simbólico adquirido, em diferentes esferas legitimadoras, nos possibilita compreender a construção de sentidos que a materialidade produz.

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O fazer já era conhecido e divulgado pelos folcloristas locais, como Renato José Costa Pacheco, em 1953, que apresentou no II Congresso de Folclore um artigo tratando da “Cerâmica Popular em Vitória”. Neste, o autor sugere que o processo das mulheres de Goiabeiras tem origem africana, pois os tapuias aimorés que habitavam outrora a região desconheciam a cerâmica. Também nega a possibilidade de herança portuguesa, pois “a técnica é muito primitiva, sem esculturas nem prenúncio de arte”. Guilherme Santos Neves, também folclorista, promoveu, “sob os auspícios da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro”, um Curso de Folclore em 1966, incluindo a visita a Goiabeiras em sua programação. No relatório final do curso, ele também comenta a rusticidade da técnica. “(…) um grupo de cursistas, acompanhados do prof. Hermógenes

Lima Fonseca, teve ensejo de conhecer e ver de perto em Goiabeiras, arrabalde de Vitória, os processos de fabricação rústica e primária de utensílios de barro.” 9

A fabricação rústica a que os autores se referem foi o objeto do registro de 2002, que, embora mantenha alguns procedimentos técnicos e corporais, sofreu transformações significativas devido a diversos fatores, como o aumento da demanda, o espaço de produção, a presença de ajudantes em diferentes etapas da produção, entre outros. Assim, a postura corporal e social mudou, como também algumas formas. Nos últimos anos temos observado o aparecimento de um desejo de diferenciação, uma mudança em relação à produção das formas tradicionais como expressão da identidade do grupo. Ao repertório tradicional, constituído por panela, frigideira, caldeirão e assadeira, outras formas passaram a ser fabricadas com distinção. As formas tradicionais compõem um sistema no qual cada forma serve a um alimento “típico”, sendo a moqueca o principal prato desse sistema culinário. A moqueca capixaba é preparada e servida na panela, que, por suas características (dadas pelo material), mantém o cozimento e a temperatura quando à mesa.10 Algumas mudanças nas formas que atualmente são produzidas podem ser atribuídas ao aumento da presença masculina no grupo. O desemprego e a dificuldade de se colocar no mercado de trabalho

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levou muitos homens para o galpão. Todos possuem laços de parentesco com as Paneleiras tradicionais; são filhos, maridos, irmãos ou genros. Antes se ocupando basicamente do apoio a determinadas etapas, como a coleta do barro e a queima das panelas, os homens agora investem na produção e criam novas formas. Além de um significativo aumento na dimensão das formas tradicionais (figura 4a), introduzem elementos zoomorfos no repertório formal (figura 4b).

Figuras 4a e 4b. Irmãos e filhos de Paneleiras que ingressaram no trabalho com as panelas no galpão, em 2007. Foto da autora.

Como já dito, além das mudanças apontadas acima, pudemos observar um movimento de diferenciação entre as mulheres. Às formas tradicionais foram acrescidos ornamentos com diferentes acabamentos. Flores e outros temas modelados com a mesma matéria-prima, a argila, e portanto colados antes da secagem e da queima, de maneira que o acabamento é semelhante em todo o conjunto formado pela panela e sua tampa (figura 5b). Diferentemente desses, foram observados alguns ornamentos confeccionados a partir de formas modeladas em uma massa com características totalmente distintas da argila das panelas, uma massa tipo durepoxi. Elementos zoomorfos como peixes, caranguejos e camarões, pintados com tinta plástica em cores vivas e brilhantes, são colados depois que a panela está pronta e queimada (figura 5a). Um terceiro tipo de acabamento observado foi o realizado também na superfície da tampa já queimada, com tinta plástica, uma pintura em cores brilhantes, como o verde e o vermelho (figura 6a). Cabe dizer que sempre se produziram

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Figuras 5a e 5b. Mudanças no acabamento. Galpão 2006 e 2007. Foto da autora.

peças com características formais distintas das formas tradicionais, aquelas que identificam o grupo das Paneleiras, como cofres, fogareiros, jarros, cinzeiros e miniaturas diversas. Essas outras formas eram e ainda são produzidas, eventualmente, principalmente a partir de encomendas. Essas novas panelas perdem sua função de cozimento, de preparo do alimento. Transformam-se em potes, adornos, objetos decorativos. As inovações formais agora são um modo de se diferenciar e abrir novos mercados. Em processo inverso ao que propunha uma homogeneidade formal, para que os objetos fossem representações da unidade do grupo, no momento ocorre uma busca de distinção, uma competição por recursos. Graburn afirma que “como estranhos podemos não gostar de tais fenômenos ou lamentar a perda da tradição. Mas isto também é tradição”.11

Figuras 6a e 6b. Panelas expostas no galpão, 2007. Foto da autora.

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Assim, inovações são permitidas desde que não se deixe de fazer as formas tradicionais, aquelas que legitimam sua permanência, sua existência coletiva. O consumo cultural atua de maneira a garantir a manutenção dessas mesmas formas tradicionais. Como um atributo desejado, a permanência fortalece a identidade do grupo e se manifesta na expressão material. Ao mesmo tempo, ela é relativa, na medida em que forma e conteúdo, embora pareçam os mesmos, estão estruturados em um sistema diverso. Hoje percebe-se uma multiplicidade de relações entre os objetos tradicionais e seus produtores, que dificilmente se encontram isolados e restritos ao ambiente doméstico. Portanto, é fundamental considerá-los objetos de consumo, pertencentes a um sistema de circulação e passíveis de intervenções externas. O trabalho de Paneleira é sinônimo de posição social, o que abrange a produção de uma esfera política.12 Ocupam lugar de prestígio social conquistado e legitimado pelos títulos que conquistaram por meio de parcerias e alianças políticas. Bourdieu,13 ao tratar da construção do sistema das relações de produção e circulação dos bens simbólicos, considera fundamental identificar o que denomina de propriedades de posição. As propriedades de posição dizem respeito aos atributos que possui certa categoria de agentes, ou certo agente de produção ou difusão cultural como resultado do lugar que ocupa na estrutura desse campo. A partir de tal categoria, torna-se possível compreender o significado e a função que as práticas e as obras adquirem devido à posição de seus produtores no terreno das relações sociais de produção e circulação.

Figuras 7a e 7b. Espaços preparados e arrumados de forma diferenciada no galpão em 2007. Foto da autora.

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E ainda depois… O registro como patrimônio nacional as posicionou num lugar de disputas simbólicas. Por um lado os patrimonialistas, acadêmicos e artistas destacando a permanência das formas e dos modos de sua fabricação, por outro, os turistas e moradores locais demandando mudanças nas formas e facilidades na sua produção, como podemos ver neste trecho retirado de um sítio de turismo. O autor, ao sugerir algumas formas, solicita, ainda, a intervenção do Sebrae. Só acho que uma pequena diversificação nos produtos oferecidos pelas Paneleiras cairia bem. Faltam opções de pequenos souvenirs inspirados nas panelas de barro para o turista levar de lembrança. Algo como os tradicionais ímãs de geladeira ou, mesmo, aqueles kits que se encontram no aeroporto de panelas recheadas de bombons Garoto para dar de presente. Um esforço de capacitação das Paneleiras nesse sentido viria muito a calhar (alô, Sebrae!).14

Graburn15 considera o turismo e as viagens substitutos do colonialismo como principal fonte de contato intercultural. Como sucede com outros objetos de artesanato, as panelas foram apropriadas como parte de uma constelação de símbolos de identidade nacional, o que, para este autor, traduz um processo de apropriação da identidade dos povos minoritários pelos dominantes. O artesanato das panelas de barro é um meio de vida para muitas famílias, pertence à economia informal e se integra ao complexo econômico do Estado por meio do turismo. É a principal atividade profissional da maioria desses núcleos familiares. A panela deu acesso a bens de consumo que antes não existiam em suas vidas cotidianas. Esta é uma das possibilidades ou funções dos artesanatos em contextos sociais de mudança: a preservação das formas e o aumento na produção e venda para o mercado teriam por objetivo a aquisição de bens materiais e a permanência no território. Graburn16 afirma que os objetos expressam a identidade de quem os produz, carregam a mensagem, mesmo estereotipada, de uma forma de existência. Para o autor, por meio dos objetos pode-se dizer: “Nós existimos, nós somos diferentes, nós podemos fazer algo de que nos orgulhamos, nós temos algo que é unicamente nosso.”

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James Clifford17 denomina sistema de arte-cultura o processo pelo qual o Ocidente contextualizou e valorou os objetos dos outros. Para o autor é fundamental compreender a maneira como os grupos sociais que inventaram a antropologia e a arte moderna apropriam-se das coisas exóticas, dos fatos e dos significados. Clifford reafirma o poder dos sistemas dos objetos e ressalta a mutabilidade desse sistema de valoração e classificação. Diferentemente do relatado em 1979 quando se dizia que das cem paneleiras que existiam em 1953, restavam cerca de dez, pois as filhas não queriam aprender para não sujar as unhas,18 temos observado um número crescente de Paneleiras, mulheres e homens, e a presença constante das novas gerações. O galpão partilhado e dividido em territórios familiares se amplia como campo de disputas. O número crescente de Paneleiras provoca um acirramento dos conflitos. Algumas mulheres estão voltando a trabalhar em casa, em pequenos espaços arranjados, para escapar da competição do galpão, mas mantêm o espaço conquistado no galpão como local de comercialização e espaço político, disputado por diferentes esferas públicas pela visibilidade alcançada.19 O registro como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial prevê a Revalidação do Título de Patrimônio Cultural do Brasil a partir de uma avaliação realizada a cada dez anos, a contar da data de registro do bem. Portanto, faz parte do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial a elaboração do Plano de Salvaguarda. O referente ao Ofício das Paneleiras de Goiabeiras foi realizado com intuito de garantir a preservação dos “utensílios de barro que constituem o maior símbolo da cultura popular do Espírito Santo”.20 O Plano de Salvaguarda envolve o apoio a ações e iniciativas das Paneleiras no que diz respeito à forma de organização do grupo, à garantia da matéria-prima, enfim, à manutenção do fazer registrado considerando diversos aspectos do processo.21 As questões apontadas no Plano foram identificadas junto à Associação através de algumas tentativas de discussão e aprofundamento com o grupo.22 A relação com o Iphan e com as demais instâncias políticas governamentais foi marcada por tensões que, de certo modo, contribuíram para que o grupo reforçasse sua autonomia e independência em relação aos mesmos. Isso representou, inclusive, a produção de novas formas, novos objetos, que são produzidos para pronunciar um discurso possível de existência.

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Portanto, perceber o objeto integrado em seu contexto significa perceber a sistemática das condutas e das relações humanas que resultam das relações dos homens com os objetos que constroem e que compartilham em sua experiência histórica. Relações que constroem redes de significação nas quais a função dos objetos é determinada pelo seu pertencimento em um conjunto, em um sistema, não existindo em si. Sistemas de relações produzem significados.23 Esses objetos são essencialmente localizados, seu sentido continua sendo coletivo e o modo de fazer, a arte do fazer, é a expressão de sua permanência, ou não. Portanto, no estudo dos objetos é fundamental que se pense em quem faz; o que implica em pensar em como se faz; ou para quem se faz; ou mesmo para que se faz; onde se faz; quando e por que se faz; e, principalmente, como essas questões se modificam no tempo. Os bens devem ser envolvidos em trocas, que são produtoras das relações sociais. Conhecer o contexto, o ambiente, o espaço, o território ocupado também pelo objeto, possibilita conhecer o contexto sociocultural no qual a fabricação se dá para entender o lugar da experiência estética.

Figura 8. Galpão 2007: espaço de Rejeane, filha de Marinete, sobrinha de Berenícia. Sua imagem foi usada para confecção de material de divulgação e como selo de autenticidade.

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As pessoas, os grupos, operam mudanças nas suas relações, permitindo aos objetos materialmente constituídos, articulados nas várias dimensões que envolvem seu fazer, serem perpassados pela morfologia social desenhada nas formas. Ao reconhecermos a genealogia das formas, suas transformações estéticas e as práticas e narrativas a elas associadas, podemos investigar e registrar seu fluxo: os que estão em retração, quais estão em expansão e aqueles estabelecidos, datando e percebendo como esses elementos da cultura material estão sendo apropriados na construção de uma identidade coletiva. Os objetos materiais carregam uma mensagem: sua fabricação, em certo espaço, produz uma forma de existência. Os objetos participam de relações e, ao estarem relacionados, têm a capacidade de agir sobre o mundo. A vida social é permeada por objetos materiais que circulam produzindo, em muitos contextos, identidades. A panela de barro preta é a representação material de processos sociais empreendidos pelas Paneleiras de Goiabeiras por meio de seu fazer, de seu trabalho: elas produzem assim sua forma de estar no mundo, identificando-se e diferenciando-se de outros grupos. As panelas são representações a um tempo concretas e simbólicas da identidade desse grupo. É por meio dos objetos que produzem e de sua ação sobre a matéria que as mulheres produzem a sua identidade de Paneleiras, produção que se legitima na tradição por elas conquistada.24 Para Canclini25 as coleções especializadas em arte erudita e folclore são um dispositivo para organizar os bens simbólicos ao hierarquizar, classificar e delimitar a ordem e a forma do sistema ao qual estão vinculados. Os patrimônios registrados começam a constituir uma coleção. As Paneleiras, ao inaugurarem o Livro dos Saberes, pouco imaginavam o que representaria essa inscrição, mas conheciam seu poder de representar. O mundo se transformou por meio do trabalho, em que o corpo físico que manipula a matéria é representação do corpo social. Os objetos – as panelas – expressam a identidade de quem os produz, carregam mensagens, falam sobre uma forma de existência. Assim, no processo de fabricação das panelas pode ser visto como as mulheres fabricam seu lugar no mundo.

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Notas 1

Ligia Dabul (2000) chama a atenção para os trabalhos de antropologia da arte que utilizam como eixo os objetos materiais, considerando-os como realidades fixas e acabadas: “Talvez não seja exagero afirmar que boa parte das perguntas seja dirigida aos objetos: o que significam? O que simbolizam? O que representam? Por que e por quem foram produzidos? Em que contexto são utilizados?”.

2 3

Dias, 2006.

Em 4 de agosto de 2000, o Decreto nº 3.551 define um programa voltado especialmente para os Bens Culturais de Natureza Imaterial. O decreto institui o registro e, com ele, o compromisso do Estado em inventariar, documentar, produzir conhecimento e apoiar a dinâmica dessas práticas socioculturais. O registro é, antes de tudo, uma forma de reconhecimento e busca a valorização desses bens, sendo visto mesmo como um instrumento legal. Registram-se Saberes e Celebrações, Rituais e Formas de expressão e os espaços onde essas práticas se desenvolvem (Iphan, 2006, p. 22).

4 5

Dias, 2006.

A Festa das Paneleiras foi uma iniciativa da Secretaria de Ação Social e da Secretaria de Cultura do Município que tinha como objetivo fortalecer a entidade e promover a panela como um bem cultural da cidade. O evento oferece shows musicais com artistas nacionais e capixabas, apresentações de bandas de congo, barracas com comidas típicas e venda de panelas de barro. Além disso, as pessoas podem conhecer a rotina e as etapas de produção dos utensílios. Atualmente a festa ocorre por meio de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Cultura (SEMC) e a Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG).

6

Em 1999 minha dissertação de mestrado foi defendida e inscrita no concurso Silvio Romero de Monografias sobre Cultura Popular, onde recebeu uma Menção Honrosa. A pesquisadora Guacira Waldeck, do CNFCP encaminhou uma cópia desse trabalho para a Superintendência do Iphan do Espírito Santo.

7

Berenícia conta que foi sugerido que ela, como presidente da APG na época (e atual), preparasse um documento para entregar ao ministro da Cultura, Francisco Weffort, quando este fosse visitá-las. Foi preparada uma recepção no galpão para receber o ministro e sua equipe, com a presença de representantes da 21ª Regional do Iphan (ES), quando o documento foi entregue. O ministro prometeu às mulheres se empenhar para que o Ofício das Paneleiras fosse inscrito no Livro dos Saberes. 8

Iphan, 2006. O parecer do processo de registro de Patrimônio Imaterial das Paneleiras de Goiabeiras foi realizado por Luiz Fernando Dias Duarte.

9

Neves, 1966.

10

Cada argila possui composição e características diferentes que possibilitam o emprego de técnicas distintas, tanto de confecção quanto de queima.

11 12

Graburn, 1976.

O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) deferiu, em 26/07/2011, a Indicação Geográfica (IG) para a Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG). O reconhecimento é na categoria Indicação de Procedência (IP). A certificação protege

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os produtos de eventuais falsificações, garantindo sua procedência e aumentando sua competitividade. Ver http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2011/07/paneleiras-de-vitoriarecebem-2-indicacao-geografica-para-artesanato.html. 13 14 15 16 17 18 19

Bourdieu, 1974.

http://www.rotascapixabas.com/2012/09/09/o-novo-galpao-das-paneleiras-de-goiabeiras/. Graburn, 1976. Ibid.

Clifford, 1999.

Pacheco, 1979.

“Para manter viva a tradição da cultura capixaba, as Paneleiras de Goiabeiras receberam um novo galpão em novembro de 2011, construído pela Prefeitura Municipal de Vitória com repasse de verba federal do Ministério do Turismo. O galpão tem 32 cabines, todas com bancada, armário e prateleiras individuais. O espaço é arejado e bem-iluminado naturalmente. No segundo piso, existe uma lanchonete e uma área que permite aos visitantes visualizarem todo o trabalho nas cabines e ainda proporciona uma visão incrível para o mangue.” http://www.vitoria.es.gov.br/turismo.php?pagina=galpaodaspaneleiras.

20 21

Iphan, 2006.

Foram recomendações do Plano de Salvaguarda as seguintes ações: 1. Facilitar o acesso e promover a preservação das fontes de matérias-primas, privilegiando o manguezal, fonte do tanino, e o barreiro, no Vale do Mulembá; 2. Melhorar as condições de infraestrutura e de organização das atividades de produção e comercialização realizadas diretamente pelos ceramistas, na própria localidade de Goiabeiras Velha; 3. Promover o reconhecimento da participação dos artesãos e de seus auxiliares, tanto na economia regional como na construção da identidade cultural brasileira, tendo em vista a busca de seus direitos previdenciários; 4. Melhorar o processo de trabalho, com a participação de um maior número de auxiliares e a crescente especialização de tarefas; 5. Facilitar as condições de acesso à jazida e de permissão para a extração do barro, com as implicações derivadas do cumprimento da legislação ambiental e mineral; 6. Analisar o impacto da instalação e do projeto de ampliação da Estação de Tratamento de Esgoto Sanitário no meio ambiente e a sua associação à imagem da panela de barro; 7. Analisar a previsão do impacto da possível mudança do local de extração do barro, dada a perspectiva do esgotamento da jazida, uma vez que o Vale do Mulembá é a única fonte historicamente conhecida da matéria-prima; 8. Tratar o processo de urbanização de Goiabeiras Velha e a permanência das famílias de paneleiras no bairro; 9. Viabilizar a ampliação do galpão e a manutenção da área de queima; 10. Possibilitar o acesso às políticas públicas de saúde e de aposentadoria, uma vez que as paneleiras precisam se manter em atividade até idade muito avançada; 11. Promover a capacitação e o fortalecimento da organização da categoria e tratar as questões relativas às relações interpessoais, à liderança e à representatividade política, no âmbito da comunidade e da Associação das Paneleiras – considera-se que a convivência entre as paneleiras, antes estabelecida nos territórios da família e da vizinhança, passou a ser também mediada pela hierarquia formalizada no estatuto da Associação; 12. Avaliar o valor cultural agregado pelo Registro e a afirmação da identidade do produto; 13. Avaliar o valor cultural agregado pelo Registro e a formação de preços dos produtos; 14. Considerar a importância da certificação

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de origem do produto visando à sua proteção contra imitações; 15. Tratar os problemas relativos à embalagem e ao transporte das panelas de barro. 22

O Iphan, através de sua regional, tentou interceder nas negociações estabelecidas com o Governo do Estado para a implantação de uma usina de tratamento de esgoto na região do barreiro. O assédio do governo foi intenso e as Paneleiras acabaram se afastando do grupo do Iphan que tentava orientá-las sobre os riscos de ceder o terreno. O Governo do Estado, na época, acenou com benfeitorias e bens de consumo, inclusive com a montagem do Restaurante das Paneleiras.

23 24

Baudrillard, 1993.

A Associação de Paneleiras de Goiabeiras (APG) ganhou reconhecimento internacional. Agora, o grupo possui o certificado 2010 Best Practices – Dubai International Award for Best Practices to Improve the Living Environment (2010 Melhores Práticas – Prêmio Internacional de Dubai para Melhores Práticas para Melhoria das Condições de Vida), distribuído pelo Município de Dubai, dos Emirados Árabes Unidos, e a Organização das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-HABITAT).

25

Canclini, 1997.

Referências bibliográficas APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas. As mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1993. BOURDIEU, Pierre. O mercado dos bens simbólicos; modos de produção e mo-

dos de percepção artística. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

CANCLINI, Néstor G. Culturas híbridas. São Paulo: Unesp, 1997. CLIFFORD, James. Colecionando arte e cultura. In: Revista do Patrimônio, n. 23, 1994, pp. 69-89.

DABUL, Lígia. No curso de pintura: a produção de identidades de artista. Niterói: EdUFF, 2000.

DIAS, Carla C. Panela de barro preta – a tradição das paneleiras de Goiabeiras. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.

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__________. “A tradição nossa é essa, é fazer panela preta”: produção material,

identidade e transformações sociais entre as artesãs de Goiabeiras – Vitoria/ES.

Rio de Janeiro, 223p., Dissertação de mestrado, Escola de Belas Artes, UFRJ, 1999.

GRABURN, Nelson. Introduction: The Arts of the Fourth World. In: Ethnic

and Tourist Arts: Cultural Expressions of the Fourth World. Berkeley: University of California Press, 1976.

IPHAN. Dossiê Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, 2006. MILLER, Daniel. Consumo como cultura material. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 28, jul/dez, 2007, pp. 33-63.

NEVES, Guilherme Santos. Relatório do curso de Folclore, Folclore. Vitória, 1966.

PACHECO, Renato José. Goiabeiras revisitada. Folclore. Vitória, ago., 1979. __________. Cerâmica popular em Vitória. Folclore. Vitória, set.-out., 1953. SILVER, H. Ethnoart. Annual Review of Anthropology, 1979.

Gerando formas: conceituações kaiowa sobre a relação entre substâncias, forças e ações no universo Fábio Mura (UFPB)

Introdução Atualmente entre os Kaiowa há uma grande variação de modos na produção e na organização dos elementos que compõem o universo. Existem, porém, alguns objetos que esses indígenas constroem e usam seguindo padrões bastante rígidos: estes são os chiru (certos bastões e cruzes de uso ritual) e as ogapysy (“casa mãe das origens”). Assim, utilizando esses casos como exemplo, o objetivo deste trabalho é explorar as modalidades indígenas de conceituar a relação entre elementos, forças e ações, gerando formas no cosmo. Para tal propósito, o artigo será organizado da maneira descrita a seguir. Um primeiro item destina-se a apresentar o processo histórico pelo qual vêm passando os Kaiowa, bem como elementos de organização social. Com isso busca-se contextualizar fatos fundamentais para a elaboração cultural de uma visão cósmica que pode ser definida como propriamente cosmo-histórica. A seguir, serão apresentados sinteticamente os princípios e aspectos cosmológicos que redundam justamente dessas elaborações culturais. Num terceiro item nos dedicaremos a descrever e analisar como os Kaiowa conceituam os chiru e as ogapysy, e qual o lugar destes nas relações cosmológicas. Finalmente, na conclusão do trabalho e a partir das descrições e análises do material apresentado empreenderemos algumas reflexões teóricas intentando promover uma superação – não apenas conceitual mas também metodológica – da contraposição ontológica entre natureza e cultura, bem como dos binarismos dela decorrentes (material/imaterial, físico/metafisico, concreto/abstrato etc.). 211

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Algumas informações históricas e de organização social sobre os Kaiowa Os Kaiowa conformam um povo indígena de fala guarani localizado no cone sul do estado de Mato Grosso do Sul e no Paraguai Oriental. Historicamente são descendentes dos Itatim, cuja população foi em parte missionada pelos jesuítas no começo do século XVII.1 Esses indígenas viviam em grandes malocas, cada uma delas assentada nas cabeceiras de rios e córregos, formando uma rede de residências relacionadas entre si a partir de parentesco. Cada casa comunal podia abrigar até uma centena de pessoas, organizadas em famílias extensas e em fogos domésticos, ao redor dos quais as famílias conjugais desenvolviam as atividades culinárias. As atividades técnicas e econômicas, por sua vez, constituíam-se principalmente da agricultura de coivara, subsidiada por coletas de frutos e mel, bem como de caça e pesca, desenvolvidas em um raio de algumas dezenas de quilômetros de distância dos assentamentos.2 Nas casas – e nos pátios onde estas se erguiam – desenvolviam-se também as atividades rituais, como as frequentes danças rituais (jeroky) e as periódicas cerimônias de iniciação masculina (kunumi pepy) e de batismo do milho branco e das plantas novas (avatikyry). A residência era portanto um importante espaço de socialização e de administração das relações cosmológicas. As parentelas eram organizadas principalmente nesses lugares, seguindo-se a divisão social do trabalho segundo sexo e idade, mas também por meio de hierarquias nas competências rituais. Havia, por outro lado, certa autonomia das famílias conjugais para organizar as atividades relacionadas ao fogo doméstico e, inclusive, para a administração das roças, da coleta, da caça e da pesca. Apenas em casos específicos os mutirões (puchirõ) definiam colaborações mais amplas, voltadas à realização de tarefas que requeriam muitos braços – como a derrubada do mato e certas atividades venatórias, assim como nas cerimônias e no exercício da guerra.3 O impacto colonial provocou uma importante mudança na demografia dos guarani em geral, devido às baixas ocorridas nos conflitos com bandeirantes e com grupos indígena inimigos (como os Mbaya-Guaicuru), bem como por efeito das doenças introduzidas pelos europeus.4 As consequências mais significativas desse processo foram as transformações na

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organização das atividades bélicas e no tamanho dos assentamentos locais, com as malocas passando progressivamente a abrigar números menores de famílias conjugais.5 Após a expulsão da ordem inaciana da América Latina, em meados do século XVIII, e a consequente decadência e esvaziamento das antigas reduções, parte dos indígenas foi integrada nas populações rurais paraguaia e brasileira, enquanto outra significativa juntou-se àquela que permanecia relativamente autônoma nas densas matas da região, dando continuidade a uma específica tradição de conhecimento e formas peculiares de organização social e territorial.6 Por aproximadamente um século esses últimos indígenas conseguiram manter certa autonomia de organização territorial. Com o fim da Guerra da Tríplice Aliança ou Guerra do Paraguai (1864-70) redefiniu-se a fronteira entre Brasil e Paraguai e se desenvolveram empreendimentos de extração da erva-mate em grande escala, algo que voltou a impactar significativamente sobre a vida técnica e econômica dos Kaiowa.7 Os indígenas passaram a realizar trabalhos periódicos nos ervais, redefinindo-se a mobilidade pelo território e a própria organização doméstica. As famílias extensas que antes viviam exclusivamente em grande malocas, passaram paulatinamente a distribuir as famílias conjugais que as compunham numa pluralidade de construções de vários portes, tornando-se, assim, unidades domésticas agregadas.8 Este tipo de organização permitia maior capilaridade na ocupação territorial de seus membros, além de maior diversificação das atividades por eles desenvolvidas. Tem-se também uma significativa e progressiva integração de materiais procedentes do contato, principalmente tecidos e instrumentos metálicos. Dessa forma, as técnicas de aquisição tenderam a aumentar de importância, tornando-se preponderantes com relação àquelas de produção dos itens necessários para a vida cotidiana, e tendo como um dos seus efeitos principais a geração de uma multiplicidade de formas e uma grande variação de estilos dos conjuntos de objetos que compõem a bagagem material dos grupos domésticos kaiowa. Até mesmo as malocas – cujos materiais, técnicas e formas de construção antes eram bastante padronizados – passam a ser construídas seguindo diferentes formas e dimensões. Com o passar das décadas, as casas comunais que hospedavam famílias extensas se tornaram menos numerosas, deixando de ser construídas na década de 1970. Por ocasião

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de grandes atividades rituais, que exigem a presença de espaços fechados onde pôr o altar, em alternativa às oygusu, os índios decidiram construir coberturas provisórias, realizadas ad hoc nos pátios (oka) das habitações dos anfitriões dos eventos.9 Por outro lado, os anos de 1970 também representam uma marca importante na história dos Kaiowa, iniciando-se um processo de luta para recuperar a posse das terras que lhes haviam sido subtraídas para a formação de fazendas, processo este que teve início no Paraguai, mas que nas décadas a seguir ganhou vulto, principalmente no lado brasileiro da fronteira.10 A luta representou e representa ainda um momento importante para impulsionar as reflexões indígenas sobre o contato interétnico, particularmente em relação às violências sofridas (físicas e simbólicas), com destaque para a atuação de missões protestantes, que chegaram a queimar instrumentos rituais kaiowa com o intuito de afastá-los de um presumido envolvimento com o demônio.11 No processo de luta no lado brasileiro, os Kaiowa, juntamente com os Guarani-Ñandéva, passaram a se reunir periodicamente em grandes assembleias (aty guasu), subsidiadas por grandes rituais (jeroky guasu) voltados a acompanhar e a intervir no desenvolvimento do cosmo.12 No bojo desse processo, a partir de final dos anos de 1980 as oygusu voltaram a ser construídas, dessa vez denominadas de ogapysy (“casa mãe das origens”), sendo, porém, mudada sua função originária, deixando de ser a residência do grupo doméstico para se tornar uma espécie de templo e de símbolo da identidade étnica desses indígenas.13 Adentramos aqui no aspecto em que nos deteremos logo a seguir. É importante, contudo, destacar antes que é a partir desses fatos históricos que os índios constroem continuadamente uma complexa cosmologia, que distribui competências e concepções de como gerenciar as experiências e as percepções dos indivíduos, dando vida a um entendimento sobre como os elementos circulam pelas diferentes dimensões do universo. São, com efeito, fatos cosmo-históricos, que permitem também aos Kaiowa atribuir valor a determinadas substâncias e formas, definindo variabilidade e fixidez das mesmas no tempo e no espaço. Sabemos, assim, que em sua grande maioria os elementos com que os indígenas se deparam são bastante variáveis em sua distribuição, forma e substância, podendo ser alterados, trocados e substituídos com certa frequência. Há, contudo, alguns poucos desses elementos que

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ganham destaque por sua fixidez. Entre estes levaremos em consideração aqui os chiru (varas e cruzes construindo com uma madeira específica) e as já referidas ogapysy.14 A razão dessa escolha deve-se ao fato de que os motivos da fixidez desses dois elementos remetem a diferentes critérios de percepção de formas e substâncias. Em contraste com esses critérios pretendemos mostrar as distintas modalidades de atuação dos índios em um contexto onde o cotejamento interétnico é extremamente relevante na definição das categorias nativas. Mas antes de entrar na descrição das especificidades de cada um desses objetos é oportuno oferecer algumas informações sobre a cosmologia dos Kaiowa, algo fundamental para compreender variações e fixidez dos elementos no interior do universo.

Aspectos e princípios cosmológicos Segundo os Kaiowa o cosmo é algo dinâmico, organizado a partir de três etapas fundamentais na distribuição e hierarquização dos elementos que o compõem.15 A primeira etapa, denominada de Áry Ypy (Tempo-Espaço das Origens), era caracterizada pela não diferenciação na distribuição das qualidades que distinguiam os seres primordiais: todos eram imortais, possuíam a capacidade de falar e tinham poderes xamanísticos. Assim, embora existissem hierarquias definidas entre as divindades principais, o restante dos seres apresentava-se como essencialmente indiferenciado. O próprio universo nas origens possuía apenas uma dimensão, com os seres podendo se comunicar e se relacionarem uns com os outros por meio de seus sentidos, principalmente a visão e a audição. Nesses termos, os atos de ver (hecha) e ouvir (hendu) representavam importantes ações que norteavam as experiências dos sujeitos, permitindo inclusive o desenvolvimento das formas que aos poucos o cosmo ia adquirindo. A própria terra, nele contida, foi criada por Ñane Ramõi (Nosso Grande Avô) e ampliada progressivamente por seu filho, Ñande Ru (Nosso Grande Pai), por meio de outro importante ato, o andar (guata), que produzia como efeito a formação de trilhas nas matas, definindo assim os espaços experienciais. Ver, ouvir e andar eram atos que no Áry Ypy ocorriam portanto numa única dimensão perceptiva e a partir de uma substantiva simetria relacional

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entre os seres originários, cuja interação recíproca centrava-se no exercício generalizado dos já referidos poderes xamanísticos. Também sentimentos importantes como amor, paixão, ira e vingança eram características difusas de todos os sujeitos, não excluídas as divindades máximas. Por fim, outro fator importante que caracterizava o Tempo-Espaço das Origens era a comunicação existente entre as centenas de yváy (patamares) que compõem o universo e que se projetam de forma espiralada e ascendente da superfície da Terra até o mais elevado firmamento. Dessa forma, todos seres podiam transitar por esses níveis. Importantes fatos, porém, mudaram significativamente o Tempo-Espaço das Origens, tornando-o em Áry Ypyrã 16 (o Tempo-Espaço Atual). Alguns comportamentos manifestados por vários seres (como desobediência, deboche, violência, enganação etc.) produziram a ira das divindades, tendo como efeito principal a transformação do próprio universo. Em primeiro lugar, esses seres foram punidos, sendo mudadas suas condições de vida, tornando-se mortais e adquirindo as formas atuais, como aquelas que nós ocidentais consideraríamos como espécies animais e vegetais. Em segundo lugar, Ñande Ru, juntamente com os principais deuses, retirou-se da superfície da Terra, sigilando o “umbigo” desta com jesuka, a substância que deu vida ao universo, separando assim o cosmo em duas partes: para além de Yvy Rendy (a áurea luminosa da Terra) e para aquém desta. Assim, na primeira parte repartiram-se os yváy onde passaram a residir as divindades e os seres puros, incluindo-se as almas dos Kaiowa. Na segunda parte foram destinados a residir os seres impuros, punidos durante o Áry Ypy. Outra transformação do universo foi a sua divisão em duas dimensões: uma acessível a todos os seres (mortais e imortais) e outra apenas às divindades, aos espíritos e a poucos sujeitos que hoje possuem poderes xamanísticos. Esta última dimensão, portanto, vai além do mundo sensível por meio dos cinco sentidos que caracterizam os seres mortais. Seu acesso, porém, ocorre igualmente por meio dos sentidos, podendo-se em certa medida falar de hipersentidos. Com efeito, os xamãs ouvem, veem e andam pelos diversos patamares do universo, com os mais poderosos podendo alcançar o firmamento, por suas capacidades de ir além das fronteiras dimensionais e espaciais. Finalmente, além da divisão em espaços e dimensões diferentes, os Kaiowa apresentam informações que nos levam a pensar no que pode-

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ríamos definir como duas esferas cosmológicas: uma que diz respeito à atuação dos próprios indígenas e outra específica dos brancos. Essas esferas parecem regular a distribuição de elementos no cosmo. Assim, certos materiais (como vidro, metais e plásticos) foram atribuídos aos brancos durante o Tempo-Espaço das Origens e apenas esses seres podem hoje produzi-los, com os Kaiowa podendo tão somente adquiri-los. Uma terceira e última etapa espaço-temporal é o Ararapyre: o fim do mundo. Essa etapa, na verdade, está já em formação, constituindo um processo, concomitantemente ao Áry Ypyrã. Existem indicadores da decadência do mundo devido a comportamentos e ações manifestadas pelos seres imperfeitos, algo que, dependendo da situação, pode levar as divindades a acelerar ou desacelerar a chegada do fim do mundo. A atuação dos Kaiowa é, nesse caso, decisiva, com os xamãs tentando persuadir os deuses a postergar esse evento nefasto ou, por outro lado, de acelerar sua chegada, no caso em que se pretenda ascender de modo coletivo aos patamares (yváy) de além Yvy Rendy. Essas três etapas na história do universo permitem a construção de um quadro moral que serve como ponto de referência para as ações dos indivíduos e para o julgamento de suas experiências. Serve também para orientar e distribuir hierarquicamente competências para executar atividades e manifestar percepções do mundo. Nesses termos, se o Áry Ypy era caracterizado pelas contínuas variações de comportamentos, substâncias e formas, no Áry Ypyrã apenas os espaços onde vivem os seres imperfeitos continuam manifestando o que os indígenas consideram uma instabilidade desses três fatores. Os xamãs kaiowa afirmam que os patamares onde vivem os deuses e as almas dos próprios indígenas (antes do nascimento ou depois da morte do corpo) são caracterizados pela fixidez e a constância, resultado de um amadurecimento com relação ao Tempo-Espaço das Origens. Nesses patamares, os comportamentos, as substâncias e as formas são perfeitos, ou, melhor, plenos ou maduros (aguyje), como afirmam os indígenas, algo que os torna fonte de admiração e de imitação. São entendidos como belos e benéficos, o que em guarani se expressa com a mesma palavra: porã, cujo antônimo é vai, que significa simultaneamente feio e maléfico. Outro fator importante nesse quadro é a relação entre o corpo e as substâncias-sujeitos que o agenciam. Essas podem ser entendidas como

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procedentes de outra dimensão, diversa daquela sensível, podendo também ser originárias de patamares pertencentes a distintas partes do universo. Nesses termos, por exemplo, o corpo (tetê) de um kaiowa nasce na dimensão sensível e na superfície da Terra, enquanto sua alma espiritual (ayvu) – entendida como sendo a própria pessoa kaiowa, cuja forma é a de uma ave ou uma pluralidade dessas – é originária de um dos yváy de além Yvy Rendy. O próprio corpo – após a mudança da voz, nos homens, e da primeira menstruação, nas mulheres – desenvolve uma alma carnal (ã), a qual, uma vez o indivíduo falecido, se desprende e se torna um espírito perigoso: o ãnguê. Por sua vez, pousado no ombro há o tupichúa, que determina especificamente o temperamento do indivíduo. No corpo podem também se instalar ãnguê de outros falecidos, além de outros espíritos maléficos de aquém Yvy Rendy, denominados de ma’etirõ, bem como outras substâncias colocadas por atos de feitiçaria. Dessa forma, podemos perceber que um corpo, no entendimento dos Kaiowa, pode ser agido e disputado por vários sujeitos dessa ação, entendidos como tendo diversos graus de periculosidade e de impureza, assim como outros bons e puros. Fator também importante de ser levado em conta é que esses agentes do corpo são condicionados ainda por outros sujeitos: seus espíritos donos (járy), cujas ações ocorrem à distância, a partir de seus patamares de origem. Como exemplo desse complexo jogo de ações, substâncias e formas, utilizamos aqui o corpo dos Kaiowa, mas as essas considerações podem ser estendidas àqueles corpos que costumamos chamar de objetos, perceptíveis por meio dos sentidos na dimensão acessível a todos os seres do universo. O cosmo aqui descrito se apresenta aos olhos dos indígenas como constituindo uma grande arena multidimensional, onde os sujeitos humanos e não humanos disputam entre si, estabelecem estratégias, buscam persuadir os outros e procuram vantagens individuais e coletivas. O jogo político e as relações de poder passam a ser significativas nas transformações e na busca de equilíbrios cósmicos, e as diferenças de competências entre os distintos atores revela-se fundamental. Assim, o xamanismo se apresenta como uma técnica que busca interpretar e dar formas a sons e imagens que são produzidas em dimensões não alcançáveis fisicamente e que são percebidas em sonho (kéra) ou por meio das experiências cotidianas dos que não são xamãs de modo não sistemático – como por exemplo,

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o som de um trovão, um tipo de barulho ou grito no mato, a imagem de um relâmpago, o surgimento do arco-íris etc. Essas imagens e sons devem ser interpretadas, sistematizadas e (principalmente por meio de performances) sintetizadas pelo xamã. Por outro lado, há que se observar que na dimensão sensível do universo também existem imagens e sons que devem ser sistematizados, onde o poder xamanístico torna-se menos determinante, existindo maior democracia nessas intenções. Porém, as dimensões do universo não são disjuntas; ao contrário, existe uma correlação importante entre elas, embora cada uma manifeste suas especificidades. As relações mantidas pelos Kaiowa respectivamente com os chiru e com as ogapysy nos permitem colocar em evidência justamente essas peculiaridades, que descreveremos a seguir.

Os chiru e as ogapysy Os chiru são objetos de uma madeira específica (Myroxylon peruiferum), que no mundo sensível geralmente assumem as formas de varas e cruzes, de dimensões variáveis, com as medidas podendo ir de alguns centímetros a pouco mais de um metro de comprimento. Aos nossos olhos as varas podem parecer tacos de jogo de sinuca, e as cruzes podem remeter ao crucifixo, devido ao esteio vertical ser de dimensão maior que aquele horizontal (ver Figura 1). Ambas formas evocam os objetos de poder utilizados nas reduções jesuíticas no período colonial, como as varas insígnias em posse dos membros do cabildo indígena (a estrutura administrativa no interior das missões) e as cruzes ostentadas pelos padres inacianos, manifestando o poder do deus cristão.17 Há que se observar, contudo, que como já argumentado em outro trabalho dedicado especificamente à trajetória dos chiru, […] a conotação simbólica atribuída pelos Kaiowa contemporâneos

a esses objetos não corresponde minimamente àquela introduzida pelos jesuítas no interior das reduções. Por um lado, os índios não

associam a cruz ao sacrifício de Jesus. Na realidade, este símbolo representa o suporte principal da Terra, indicando também os pontos

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Figura 1. Chiru no altar em ogapysy da reserva de Dourados (MS). Abril de 2006. Foto: Alexandra Barbosa da Silva.

cardeais e outros suportes subsidiários, localizados em torno da linha

do horizonte. Já as varas não podem ser consideradas símbolos de mando, uma vez que os Kaiowa as destinam a um uso terapêutico e

propiciatório; suas propriedades derivam de sua substância e não de sua forma.

A relação entre substância e forma é um fator relevante para se com-

preender o processo de integração de objetos simbólicos à vida ritual dos Kaiowa. Com efeito, até mesmo para o período reducional podemos lançar dúvidas sobre uma convergência interpretativa desses ob-

jetos, de modo a se constituir um conjunto de significados em comum entre os índios e os jesuítas. A complexa e rica visão cosmológica que

os indígenas construíram em torno dos chiru, assim como o uso xa-

manístico que é feito desses objetos, coloca em evidência a enorme distância da ideologia desses índios em relação ao cristianismo e à organização política ocidental […]. 18

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Os Kaiowa fazem clara distinção, por exemplo, entre as cruzes de chiru e aquelas feitas de yvyra paje (Myrocarpus frondosus). Embora formalmente pareçam idênticas, esta última é considerada menos poderosa e utilizada principalmente no processo de formação ritualística, antes de os neófitos se tornarem xamãs.19 Manipular os chiru é algo muito delicado e relacionado a capacidades de sujeitos específicos, que devem possuir as orações (ñembo’e) apropriadas para que estes (que para todos os efeitos são considerados sujeitos) não se irritem, algo que pode provocar pragas e mesmo a morte. O conceituado xamã Atanásio Teixeira afirma que no Áry Ypy (o Tempo-Espaço das Origens) Ñande Ru construiu muitos desse chiru, distribuindo parte para os deuses e que, quando subiu para sua morada atual, deixou uma certa quantidade para os Kaiowa, para serem repartidos pelas famílias indígenas. Luís Velário Borvão, outro xamã, fala que Ñande Ru teria rachado uma árvore em mais de 500 pedaços para realizar tal distribuição. Após esse evento originário, ao longo do tempo outros chiru foram construídos pelos xamãs e hoje também, em casos extraordinários, se procede com muita cautela em sua confecção. Para construí-los devem-se esfriar (omboroy) as mãos, as ferramentas e a própria madeira, por meio de orações (ñembo’e) específicas, fazendo assim surgir (ojehu) o poder do chiru sem desequilibrar o universo.20 Existe um dever de conservar e transmitir adequadamente esses sujeitos-objetos ao longo das gerações, e quem os possui deve com eles conversar cotidianamente, assim como impedir que toquem o chão, depositando-os em altares específicos. O diálogo com os chiru ocorre, portanto, por meio de orações (as já referidas ñembo’e) e, no caso de serem manipulados pelos xamãs, por meio já de ñengary (orações de posse exclusivamente desses homens especiais, permitindo-lhes deslocar-se no universo, através de seus diferentes espaços e dimensões). Certa vez, em frente a um altar onde estavam assentados muitos chiru (que haviam sidos recuperados após décadas de descuidos impingidos pela ação missionária), o xamã Luís Borvão começou a cantar, com diversas entonações, explicando que embora esses sujeitos-objetos sejam feitos da mesma substância, possuem na verdade diferentes pessoalidades, consoante a procedência da árvore de onde foi retirada a sua madeira. De fato, dependendo do solo de origem da árvore, esse objeto ad-

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quirirá denominação específica. Teremos, assim, entre outros: chiru itakui (sua origem é um solo de pedras minúsculas), chiru itavera (originário de onde há pedras brilhantes), chiru itahu (provém de pedras escuras) e chiru pirary (sua árvore teve origem nas águas). Cada um desses chiru terá um canto específico e manifestará comportamentos peculiares. Os itakui, por exemplo, são os mais bravos e exigem maior cuidado, enquanto outros necessitam de cantos mais longos – caso dos itahu.21 Luís detalhou também que esses comportamentos estão, por sua vez, relacionados com as especificidades de seus respectivos espíritos donos (járy), descrevendo então para cada um deles as formas, as cores e a luminosidade dos ornamentos que possuem, bem como da musicalidade de suas vozes. Ocupemo-nos agora das ogapysy. Como vimos, essas construções são idênticas às casas comunais utilizadas no passado (ver Figura 2). Do ponto de vista de seus detalhes arquitetônicos, forma e, em muitos casos, materiais, divergem bastante das habitações atuais. Como colocado em evidência em outros trabalhos,22 hoje as unidades domésticas kaiowa estão formadas por famílias extensas de três gerações – raramente quatro –, ocupando um espaço territorial variável, dependendo das condições ecológicas e demográficas de um determinado lugar.23

Figura 2. Ogapysy na reserva de Dourados (MS). Abril de 2006. Foto: Alexandra Barbosa da Silva.

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Nesses espaços de jurisdição exclusiva, as famílias conjugais dessas unidades distribuem-se em pátios, onde se desenvolve o que denominei ciclo construtivo da unidade habitacional 24. Após se formar um casal, ainda sem filhos, constrói-se uma habitação de pequeno porte, geralmente com uma divisão interna, separando o espaço dormitório de outro dedicado às atividades culinárias e ao depósito de ferramentas e objetos domésticos. Com o nascimento dos filhos e tendo-se as condições materiais apropriadas, constrói-se, sempre no mesmo pátio, outra edificação, destinando-a a uso dormitório. Aquela anterior é então redefinida em sua função, com cada espaço interno passando a ser respectivamente destinado a uso como cozinha e como depósito. Seguindo sucessivamente a mesma lógica, constrói-se uma terceira edificação, destinada a uso dormitório, com a segunda tornando-se cozinha e a primeira para uso como depósito. Fecha-se assim um ciclo, uma vez que quando se constrói uma quarta edificação, a primeira já se deteriorou, sendo desmanchada e seus materiais, quando de madeira, destinados a alimentar o fogo doméstico, como lenha, ou como partes de novas construções.25 Nesse processo, que pode durar vários anos, dependendo da disponibilidade e das possibilidades de acesso, os membros da unidade habitacional podem optar por diferentes tipos de materiais e formas de construção. Se se escolhe um teto a três ou quatro águas, obrigatoriamente a cobertura deverá ser feita de sapé ou telhas de madeira ou terracota (raras, por seu custo elevado). Já se for de duas águas, há a possibilidade também de serem utilizadas folhas de palmeiras, assim como as sempre mais frequentes telhas de fibra-cimento.26 Para impermeabilizar ou quando se tem poucos recursos, podem também ser usadas lonas plásticas. As paredes podem ser de fibras vegetais (como casca de palmeira e ou bambu). Nos últimos anos, principalmente aquelas pessoas com mais recursos passaram a encomendar casas de alvenaria, sendo ainda poucos os índios que dominam essas técnicas de construção. É importante notar que cada tipo de construção – e até os detalhes das edificações – não são alternativos uns com relação aos outros, sendo que em um único pátio podemos encontrar todos os materiais listados e as formas descritas. Ainda mais importante, como também já colocado em evidência em outros trabalhos,27 os Kaiowa não atribuem grande importância às

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construções em si; seu valor é muito reduzido relativamente àquele que é atribuído ao lugar onde se vive. De fato, o eixo do ciclo construtivo é o pátio onde ao ar livre se desenvolvem quase todas as atividades domésticas e a vida social do grupo familiar.28 Mas também o pátio pode ser trocado de lugar no interior do espaço do grupo doméstico ou mesmo de localidade se a família extensa decidir se mudar à procura de espaços considerados melhores para desenvolver seu teko (modo de ser e de viver). A procura do “bom viver” (tekovê porã) está, por sua vez, relacionado à busca dos lugares de origem dessas famílias, lugares este que segundo os Kaiowa teriam sido atribuídos pelos deuses às famílias indígenas, para que deles seja feito um bom uso. As contínuas e crescentes demandas fundiárias entre os Kaiowa de Mato Grosso do Sul estão norteadas justamente por essas motivações. Fica assim evidente que para melhorar suas condições de vida em diferentes contextos materiais e sociopolíticos esses indígenas progressivamente abandonaram as grandes construções do passado, não se preocupando muito com as formas e os materiais das novas habitações – pouco valorizadas enquanto objetos. Até mesmo a maioria das atividades rituais foi adaptada a critérios mais flexíveis, construindo-se e desmontando-se coberturas ad hoc com o escopo de abrigar o mba’e marangatu koty pegua (altar do espaço fechado), reproduzindo assim, de modo provisório, as condições oferecidas pelas antigas oygusu. Frente a todas essas variações de formas, materiais e técnicas nas modalidades atuais de construção das unidades habitacionais, como explicar então o fato de que as oygusu voltaram a ser edificadas? Para compreender essa escolha temos que abandonar a ideia comumente aceita de que essa seja uma habitação, simplesmente pelo fato de que os Kaiowa a considerem como “casa mãe das origens” (justamente, em sua tradução, ogapysy).29 Como coloca em evidência Rapoport,30 uma construção arquitetônica deve ser definida não apenas pela sua forma, mas a partir de um “sistema de settings”. Como argumenta o autor …a dwelling itself can be shown to be a particular system of settings within which given sets of activities take place. Thus one cannot, as is

so often done, compare buildings as dwellings merely because – in form and structure – they appear to us as such. In the study of dwellings the

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proper units of comparison are the system of settings, which have first to be discovered before they can be compared. This discovery helps to avoid the

problems that can arise from the discrepancy between our own analytic concepts and those of the peoples whom we study, that is between ‘etic’ and ‘emic’ models.

The cues that communicate the appropriate situation and behaviour, and

the elements defining settings, are not only architectural, or what can be called ‘fixed feature elements’. More important are semi-fixed feature ele-

ments – the furnishings of environments, whether outdoor or indoor: signs, plants, elements of personalization, furniture, bric-à-brac, and so forth.31

Assim, podemos observar que atualmente os indígenas não vivem nas ogapysy, caracterizando-as como uma casa, e tampouco as constroem autonomamente, como ocorre com as habitações. O valor atribuído a estas edificações está relacionado às reivindicações que os indígenas manifestam perante aos brancos. Tais reivindicações centram-se na percepção de que as condições de vida do presente seriam negativas com relação ao passado e que os Kaiowa não teriam a possibilidade de desenvolver atividades rituais importantes como o kunumi pepy – o ritual de iniciação masculina, que demanda espaços fechados para a reclusão dos neófitos. Assim, no final da década de 1980, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) passou a financiar a construção de uma ogapysy na Terra Indígena Panambizinho, único lugar no Brasil onde ainda era celebrado tal ritual, hoje em desuso. Nessa edificação passaram a ser alocados os instrumentos e adornos rituais e o altar interno (onde são também assentados os chiru), tornando-se uma espécie de templo que, fora dos contextos rituais, passa a ser usado para se fazer reuniões, principalmente em presença de autoridades não indígenas – como membros de ONGs, missionários, antropólogos, MPF, representantes governamentais (municipais, estaduais e federais) e mesmo de agências estrangeiras. Por ocasião dos rituais realizados aos olhos desses agentes não indígenas, os índios buscavam padronizar e homogeneizar os próprios adornos e vestimentas, tornando-os mais apetecíveis às exigências estéticas dos olhares externos, em contraste com a realidade das cerimônias mais

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íntimas. Para dar vida a esse peculiar processo de relacionamento interétnico, mediado pela manifestação de certas formas e materiais específicos, os indígenas avançavam pedidos de recursos financeiros que aos poucos se tornaram estruturais. Assim, cada vez que se fala em ogapysy pressupõe-se a apresentação de um projeto por parte dos índios, com listagens de materiais e ferramentas necessárias para tal, bem como de alimentação para quem irá trabalhar na sua construção. A ogapysy tornou-se um símbolo importante no processo de reivindicação fundiária, sendo um dos pedidos mais frequentes quando se formam acampamentos em terras reocupadas. Mas a maior proliferação de ogapysy ocorreu na populosa reserva de Dourados, durante o governo municipal presidido pelo PT. Esse governo estimulou também o turismo na reserva e a produção de artesanato, financiando inclusive oficinas para a confecção de cerâmica, técnica abandonada pelos Kaiowa há mais de um século. As ogapysy de Dourados tornaram-se, assim, também lugares de visitação e de comércio de objetos étnicos. Nessas edificações é possível observar tanto instrumentos e adornos rituais assentados no altar quanto, nas proximidades, arcos e flechas, colares, pulseiras e até mesmo mbaraka (chocalhos), todos enfeitados com plumas coloridas e pintados com cores vivazes, algo que justamente cativa os olhos do potencial comprador karai (branco). Cotejando os chiru e as ogapysy podemos identificar uma série de contrastes e convergências. Os primeiros apresentam-se aos nossos olhos ocidentais como objetos bastante inexpressivos, algo que pode passar despercebido, fora no caso daqueles em forma de cruz, levando-nos, porém, para bem longe do entendimento indígena. As segundas, ao contrário apresentam-se como claramente distintas das habitações kaiowa atuais, imediatamente despertando o nosso imaginário sobre a autenticidade indígena. Do ponto de vista kaiowa, porém, a percepção e a interpretação sobre o percebido são bem diversas. Os chiru não são definidos apenas pela sua forma exterior (ou, em outras palavras, pelo seu corpo), percebida na dimensão sensível a todos os sujeitos do universo. Existe, como vimos, uma pluralidade de seres a eles associados, procedentes de outra dimensão, cada um com suas formas, substâncias e poderes, sendo suas diferenças estabelecidas também pelos lugares onde nascem as árvores de onde surgiram. Nesse sentido, na interpretação xamanística, ao serem muito

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poderosos, os chiru manifestam certas forças do cosmo (no sentido físico da palavra) que tornam sua manipulação perigosa e, portanto delicada. Com efeito, sua forma exterior é imposta pelo jogo dessas forças, exercidas a partir de sujeitos procedentes de outra dimensão,32 que limitam enormemente as possibilidades de operar variações construtivas. Daí o motivo de sua fixidez na forma. Por outro lado, podemos observar que essa fixidez diz respeito unicamente à dimensão sensível a todos, pois, como vimos, o que existe de fato é uma variedade significativa de chiru. Assim, o relevante é o fato de que quando os indígenas se relacionam com estes, os conceituam através de conexões multidimensionais. Tomando em consideração agora as ogapysy, podemos constatar que as razões da fixidez nesse caso encontram-se principalmente nas relações de forças exercidas na dimensão sensível do universo. A forma da edificação e os detalhes construtivos são ostentados aos olhos dos brancos, tornando-se símbolo de luta e marca de etnicidade. Isso é ainda mais remarcado quando em seu interior se desenvolvem atividades voltadas ao relacionamento interétnico. Contudo, há que se observar que o relacionamento interétnico não se configura apenas numa dimensão, adquirindo sentido no cotejamento entre aquelas que definimos como esferas cosmológicas, também nesse caso envolvendo relações multidimensionais.

Reflexões finais Em recentes e instigantes trabalhos,33 Ingold propõe reformular a ideia de coisa, definindo-a como um parlamento de fios. O autor pretende mostrar que fios vitais se entrecruzam, configurando entidades não fechadas para o exterior. Assim, “as coisas vazam, sempre transbordando das superfícies que se formam temporariamente em torno delas”.34 Seu intuito é o de se opor a uma imagem de objeto, asséptico e de contornos bem-definidos. Desse modo, assumindo uma ótica processual, Ingold tenta promover uma abordagem que valorize o movimento e a ação, em detrimento de visões estáticas, que não permitiriam compreender a natureza viva do universo – algo sobre o que ambos estamos plenamente de acordo.

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Contudo, o autor inglês parece atribuir ao entrecruzarem-se de forças vitais certa liberdade e espontaneidade, não levando devidamente em conta as relações de poder e seus consequentes efeitos. Ocorre que geralmente tendemos a atribuir o exercício de poder e a intencionalidade humana – e suas consequências –, a uma dimensão ontológica diversa daquela que regulamenta as forças do universo, entendidas como naturais. Desse modo, os esforços recentes que buscam rediscutir a dicotomia Natureza/Cultura revelam-se estratégicos. Autores como o próprio Ingold, Descola e Latour35 resultam centrais neste debate. Por outro lado, a impressão que temos na leitura desses trabalhos é de que não se chega ainda a uma efetiva superação daquilo que podemos definir como um etnocentrismo ontológico. Descola e Pálsson,36 por exemplo, colocam em destaque o fato que os ameríndios não operam a distinção Natureza/Cultura, mas no momento em que buscam compreender suas cosmologias, preferem manter esse dualismo, afirmando que seria para definir “an anaytical device in order to make sense of myths, rituals, systems of classification, food and body symbolism, and many other aspects of social ”.37 Como já argumentado em outro trabalho,38 consideramos de suma relevância superar os limites impostos pelo dualismo ontológico – fruto da tradição ocidental –, através de uma plena extinção da dicotomia Natureza/Cultura, não apenas como posicionamento relativista, mas também em termos heurísticos e analíticos. Procedendo assim podemos reunir em um mesmo horizonte ontológico, o cultural, o social, o químico, o físico etc., buscando entender suas propriedades e como estas intervêm no universo. Uma vez realizado esse passo, pareceu-nos então pertinente recuperar as abordagens que consideram a cultura algo concreto, cujos atributos são a distribuição, transportabilidade de conceitos, ideias, princípios etc. veiculados pelos indivíduos.39 Barth40 especificamente define a cultura como uma correnteza, como um fluxo de informações. A propriedade desse fluxo é tender a ser contínuo e a ir em todas as direções, vazando, transbordando. Nesses termos, poderíamos compará-lo com as propriedades das coisas, conforme entendidas por Ingold. Porém, como diz o autor norueguês,41 ocorre que esse fluxo passa a ser organizado pelas propriedades do social, que tendem a produzir fronteiras e interrupções, fazendo com que os traços culturais sejam distribuídos de forma desigual

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pelos indivíduos, gerando-se, assim, formas e modelos culturais específicos. Serão tradições de conhecimentos peculiares, com suas cosmologias elaboradas e implementadas por indivíduos especializados, que definirão as modalidades de sua propagação.42 As argumentações de Barth unidas à superação da dicotomia Natureza/Cultura, nos permitem entender os traços culturais como elementos, com suas particularidades, mas pertencentes a uma mesma ordem ontológica, que reúne todos os outros que compõem o universo. Conforme posto antes,43 todos esses elementos não deveriam ser entendidos e classificados como aqueles que seriam objetos e outros como sujeitos, algo que recalcaria as dicotomias material/imaterial, físico/metafisico, concreto/abstrato etc. a serem analiticamente superadas. Em alternativa, a definição dos elementos do universo deveria ser dada pela posição que estes ocupam em um jogo de relações e interações, isto é, dependendo da situação, cada um pode ser objeto da ação ou sujeito da ação. Por exemplo, “um ser humano pode ser considerado, dessa forma, como sujeito em certas circunstâncias, e objeto em outras – e o mesmo se pode dizer sobre o vento, a água, os espíritos etc.” 44 Há que se constatar, porém, que as ações movidas por um elemento sobre outro não são necessariamente simétricas, podendo implicar em diferenciais de forças, definindo hierarquias de ação. É nesse caso que as propriedades do social tornam-se determinantes. Nesses termos, poderes simbólicos podem concatenar-se com dispositivos perceptivos e com outros elementos (como visto acima), a partir da ação de elementos que manifestam maior opulência. Assim, o processo resultante desse jogo de ações permite, por exemplo, que o encontro entre humanos e não humanos, percebido por meio de uma elaboração cultural específica, como ato de conhecimento, administre e adapte os dispositivos sensoriais a circunstâncias e contextos específicos, dando vida a formas e composições de formas, em uma, em várias ou por meio de múltiplas dimensões do universo. Essas formas e jogos de formas podem ser extremamente variáveis em suas composições e percepções, como também bastante fixas e constantes, dependendo das particularidades das interações entre os elementos considerados. O caso específico apresentado ao longo deste artigo, relativo aos Kaiowa e seus modos de perceber e de agir no universo, definindo suas

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formas, representa justamente um exemplo significativo, que nos parece valorizar a proposta analítica aqui defendida, e que pode contribuir para uma progressiva superação do referido etnocentrismo ontológico.

Notas 1 2 3 4 5 6 7 8

Meliá, Grünberg & Grünberg, 1976; Susnik, 1979-80; Gadelha, 1980. Susnik, 1979-80; Mura, 2006.

Thomaz de Almeida, 1991; Mura, 2006. Thomaz de Almeida, 1991. Mura, 2006.

Meliá, Grünberg & Grünberg, 1976; Susnik, 1979-80; Mura, 2006.

Thomaz de Almeida, 1991; Brand, 1997.

Mura, 2006. Wilk (1984) define as unidades domésticas não a partir da corresidência, mas pelas lógicas de cooperação entre seus membros. Assim, observa que na maioria dos casos, uma unidade doméstica agrega mais de uma habitação, configurando uma household cluster.

9

Mura, 2000 e 2006.

10 11 12 13 14 15

Brand, 1997; Thomaz de Almeida, 2001; Mura, 2006; Barbosa da Silva, 2007.

Thomaz de Almeida, 2001. Mura, 2006. Ibid.

Mura, 2006 e 2010.

As informações contidas neste item procedem de Melià, Grünberg & Grünberg, 1976; e Mura, 2006; bem como de entrevistas e conversas mantidas pelo autor com xamãs kaiowa.

16

O sufixo rã indica futuro. Portanto, deve-se entender o tempo-espaço atual como o futuro com relação àquele das origens. 17 18 19 20 21 22 23 24

Wilde, 2009.

Mura, 2010, p. 131.

Mura, 2006 e 2010. Mura, 2006. Mura, 2010.

Mura, 2000 e 2006.

Mura, 2006; Barbosa da Silva, 2007. Mura, 2000.

Gerando formas

25 26

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Ibid.

Esta variação deve-se ao fato de que os índios não possuem técnicas e ferramentas apropriadas para cortar as pranchas de fibra-cimento e, assim, fechar os ângulos exigidos por tetos com mais de duas águas.

27 28 29 30 31 32

Mura, 2000 e 2006. Ibid.

Palavra derivada de óga (casa) ypy (origem) sy (mãe). Rapoport, 1994. Ibid., p. 463.

Se nos é permitida uma metáfora, poderíamos dizer que o corpo visível do chiru é como a ponta de um iceberg, em que a superfície do mar representaria a linha de divisão interdimensional.

33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44

Ingold, 2007 e 2012. Ingold, 2012, p. 29.

Ingold, 1995; Descola, 1992; Latour, 1994. Descola & Pálsson, 1996. Ibid., p. 2.

Mura, 2011.

Schwartz, 1978; Barth, 1987, 2000a, 2000b e 2005; Hannerz, 1992. Barth, 2000a. Barth, 2005.

Barth, 2000b. Barth, 2000b. Ibid., p. 109.

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Reflexões sobre a imagem sagrada a partir do “Cristo de Borja” 1 Renata de Castro Menezes*

Deus não é severo mais.

Suas rugas, sua boca vincada

são marcas de expressão

de tanto sorrir pra mim. (Adélia Prado)

Nas últimas décadas, as ciências sociais têm se envolvido em uma série de debates intra e interdisciplinares em torno de objetos de cunho artístico, seja a partir de um interesse renovado pela temática da cultura material, seja pelas discussões em torno das relações entre arte, cultura e sociedade.2 Os objetos, ou as coisas, têm sido valorizados por seu potencial heurístico na interpretação das relações entre o corpo, os sentidos e as materialidades; na reformulação das concepções sobre a relação sujeito/ objeto; por seus processos de transformação (que envolvem formas de produção, modalidades de troca e práticas de uso e consumo); e ainda quanto à análise de políticas e práticas de conservação, exposição e patrimonialização.3 No bojo desses debates, encontram-se questões que mobilizam cientistas sociais, historiadores, historiadores da arte, especialistas em estudos culturais, arquitetos, arqueólogos, museólogos etc., em discussões epistemológicas e metodológicas, como por exemplo, sobre a especificidade da arte diante de outras práticas humanas, sua função social; como ela pode ou não * Doutora em antropologia, professora adjunta IV do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 235

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ser universalmente definida; ou de que forma os critérios estéticos podem ou não ser estabelecidos transculturalmente ou através da história. Essas questões muitas vezes extrapolam o campo acadêmico e envolvem também os próprios artistas, curadores e críticos de arte,4 e se não são propriamente novas – afinal, num certo sentido, elas perpassaram todo o século XX –, ganham outras conotações a partir dos alertas pós-modernos e pós-coloniais. Pois subjaz aos debates atuais a crítica às pretensões universalistas das Humanidades, tal como constituídas desde a Idade Moderna europeia, cujo etnocentrismo tem sido revelado e revisto nos últimos anos.5 Neste artigo, pretendo aproximar-me dessa literatura, ou melhor, de parte dela, propondo uma discussão na interface entre as áreas de arte e religião, a partir das metamorfoses de uma imagem e de suas repercussões. Trata-se do chamado Cristo de Borja, um episódio que se iniciou em agosto de 2012, quando Cecília Giménez, uma senhora octogenária da cidade de Borja, em Saragoça, na Espanha, promoveu uma restauração espontânea de uma imagem de Jesus pintada por Elias García Martínez, no século XIX, numa das paredes do Santuário da Misericórdia, uma pequena igreja local.

Figura 1. O Cristo de Borja antes e depois da “restauração”. Fonte: https://www.facebook.com/ElCristoDeBorja .

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A Figura 1 traz a imagem de Ecce Homo (que representa o Cristo flagelado durante o processo de martírio que culminou em sua crucificação), antes e depois da intervenção de dona Cecília, a qual resultou em algo bastante diferente da original. A ação da senhora foi divulgada em início de agosto pelo Centro de Estudos Borjanos, sendo noticiada no dia 21 do mesmo mês em um jornal de alcance regional, o Heraldo de Aragón e em El País, de Madri, jornal de circulação mais ampla, numa matéria intitulada “La restauración que se convirtió en destrozo”: Lo que comenzó siendo un arreglillo espontáneo de una obra de arte en mal estado […] ha terminado en un auténtico destrozo que ha provocado

el estupor del Ayuntamiento y de sus vecinos. La artífice del estropicio

es, según Juan María de Ojeda, concejal de Cultura del consistorio, una vecina octogenaria que actuó de forma espontánea y “sin pedir permiso a nadie”, aunque “con buena intención”. Cuando se dio cuenta de que “se le había ido de las manos” avisó al responsable del patrimonio cultural del

municipio para confesar los daños que había causado […]. A pesar de ser una obra sin gran importancia, y que tampoco forma parte de ningún

conjunto pictórico ni retablo, el pueblo lamenta el destrozo de la pieza, que sí tenía cierto valor sentimental. “La familia solía venir aquí a pasar

las vacaciones. Durante un verano el artista realizó el retrato y lo legó al pueblo”, explica el concejal.6

Ou seja, a matéria ressalta o estrago causado pela restauração espontânea, que teria destruído a obra de García Martinez, mesmo que com as melhores intenções. Dona Cecília é apresentada como uma ingênua de boa vontade, que teria atuado sem autorização de ninguém. Entretanto, em cerca de 48 horas, a leitura do episódio se alterou. No dia 23 de agosto, o mesmo jornal noticia que “La restauración de un eccehomo se convierte en un sainete mundial”: La intervención por parte de una octogenaria de una obra de escaso valor en

la localidad de Borja agita las redes sociales y se convierte en noticia internacional. El culebrón artístico más surrealista del verano está protagoni-

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zado por un eccehomo de un siglo de antigüedad y escaso valor artístico, que hace unas semanas sufrió una peculiar restauración por parte de una vecina de la localidad zaragozana de Borja. El resultado de la intervención no solo

es catastrófico, borroso e irreconocible, sino que también se ha convertido en objeto de parodia, carne de fotomontaje. Hasta han aparecido falsos perfiles en las redes sociales en las últimas 48 horas. Tamaña está siendo la repercu-

sión de la noticia que ya encabeza las listas de lo más leído y más reenviado en las webs de diarios como Le Monde, el Telegraph o la BBC.7

De um destrozo a um sainete mundial: a passagem meteórica de ruína a farsa deveu-se à recepção do resultado surreal da restauração com humor e curiosidade, potencializados pelas características singulares dos canais midiáticos atuais. A notícia e a imagem se espalharam rapidamente pelas redes sociais e outros meios de comunicação e o Cristo de Borja se transformou num sucesso, um meme, isto é, um item que se autopropaga rapidamente pela internet, sendo copiado e compartilhado várias e várias vezes.8 Sua difusão foi acompanhada de debates e de sátiras sobre os efeitos da restauração, sendo considerada um desastre e uma destruição, por uns, e um ato criativo e revitalizador, por outros. Na sequência de comentários, uma série de imagens foi sendo gerada, a partir do desdobramento do novo rosto então criado por sobre outras obras de arte de prestígio, outros monumentos, outras faces, ou mesmo sobre objetos cotidianos, como bolos de aniversário, camisetas, canecas de cerâmica etc., como será exemplificado mais adiante. Diante do caso, minha primeira reação foi a de hilaridade. Porém, mais tarde consegui perceber que ele permitia uma discussão de limites e continuidades entre objeto religioso e objeto de arte, ou, mais especificamente, entre concepções religiosas e concepções artísticas da imagem em um caso empírico concreto. Assim, a partir de material recolhido na imprensa, na internet e em redes sociais (e já explicitando que não se trata de uma etnografia densa, à la Geertz, em Borja), pretendo esboçar uma interpretação do episódio numa modalidade de ensaio, deixando abertas algumas pistas para futuros aprofundamentos, seja por mim, seja por outros pesquisadores.

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Jogos de percurso a partir da Antropologia da Devoção A preocupação em tematizar encontros e desencontros entre arte e religião justifica-se a partir do percurso de pesquisas que desenvolvi até chegar às discussões sobre imagem, o qual, a meu ver, traz especificidades à discussão que vou propor. Desde os anos 2000, isto é, desde a pesquisa de doutoramento, tenho me preocupado com o culto aos santos e as relações de devoção que lhe caracterizam. Inicialmente como um achado etnográfico – ao desenvolver uma análise sobre as formas de sociabilidade em um santuário católico, o convento de Santo Antônio do Largo da Carioca, no centro do Rio de Janeiro, dei-me conta de que grande parte da energia social despendida no local dizia respeito às relações de pessoas com os santos e santas que, de alguma forma, ali se faziam presentes. Mais tarde, diante da descoberta do potencial analítico do tema, o achado etnográfico transformou-se em foco preferencial de pesquisas sucessivas.9 Não se tratava de um tema propriamente novo nas ciências sociais ou na Antropologia da Religião, embora tenha interessado mais a historiadores e cientistas da religião do que a antropólogos e sociólogos. Mas ao estudar o culto aos santos, encontrei uma forma de interpretação consolidada que, por tomar como ponto de partida a promessa e os ex-votos que a retribuem, tratava as relações entre santos e devotos como relações de troca, materializadas em três etapas: a promessa (o pedido), a concessão do que se quer (a graça ou o milagre, concedida pelo santo, ou por Deus, através da mediação do santo), e o pagamento da promessa (os ex-votos, as festas, as peregrinações). A concepção linear, de fronteiras claramente demarcadas, possibilitava classificar essas trocas como equivalentes à troca mercantil – e isso não apenas em textos das ciências sociais, mas muitas vezes em textos teológicos e pastorais, que justamente por identificarem na relação com os santos essa dimensão “troquista” de toma lá, dá cá, a condenaram como manipulação mágica, resquícios de sacrifícios pagãos e/ou como comercialização ou exploração da fé. Além disso, muitas vezes essas relações foram lidas como exemplos de patronagem, já que envolvem favores assimétricos, em que o santo dá o que o devoto pede, e este depois agradece, mas permaneceriam vinculados pela dependência e obrigação instauradas entre o devoto-cliente e o santo patrono, padroeiro. Por outro

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lado, havia uma tendência a pensar essa relação como diádica, isto é, envolvendo um santo e um devoto, sem atentar para possíveis enredamentos desse par de destaque em outros conjuntos de relações. Ao recuperar as relações com os santos a partir das formulações encontradas em campo, pude perceber que a situação era mais complexa do que o modelo promessa-graça-agradecimento deixava transparecer. Se a troca é um momento dessas relações, o momento em que ela se torna mais visível a um observador externo, ela não a esgota, nem representa a relação sua totalidade. Os pedidos e os agradecimentos seriam, na verdade, menos o objetivo final da relação com os santos, e mais formas de sua manutenção: “a gente está sempre pedindo e agradecendo alguma coisa”.10 Primeiro, a relação entre pedidos, agradecimentos, graças e devoção era menos automática e linear. Nem todos os pedidos são promessas: a promessa se paga, o pedido se agradece. Nem todos os que pedem a um santo se consideram seus devotos: pode-se pedir a ele por sua especialidade, ou por outra razão, sem que a pessoa se torne devota, bastando pagar a promessa para se considerar quites. Por outro lado, os devotos de um santo nem sempre precisam pedir as graças, mas podem recebê-las mesmo assim. Nem tudo o que se pede é concedido, o que também pode ser considerado uma graça, pois “o santo sabe o que é melhor para mim”. E muitas vezes, não há nenhum pedido em jogo. Mas tudo aquilo que é considerado graça – e que pode variar de coisas aparentemente pequenas, como achar uma chave, a coisas espetaculares, como sair do coma sem sequelas – é agradecido, mesmo o que não for pedido. Além disso, a relação não se dá necessariamente apenas entre o santo e o devoto: ela envolve outras pessoas, pois se pode pedir por outros; pode-se pedir a mesma coisa a vários santos; e muitas pessoas e diversos pedidos podem estar mobilizados diante de um mesmo problema. Há, portanto, redes de relações que se articulam em torno do culto aos santos, e não apenas díades. As nuances permitiram-me localizar as especificidades da relação de devoção.11 Há muitas maneiras de se relacionar com os santos, até mesmo simpatias. Mas a devoção assume uma série de características distintivas quanto às demais. Ela implica num vínculo duradouro e permanente de uma pessoa com um santo, que envolve a fidelidade, mas não a exclusividade, pois é possível se combinar devoções. Este vínculo é permanente

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enquanto dura, porque novas devoções podem se incorporar ao panteão de cada um, assumindo o papel de principal em relação às devoções anteriores. A devoção é ainda marcada pela amizade, a fé, a confiança, a gratidão e reconhecimento. Ela não envolve apenas a eficácia do santo, mas um processo de identificação em que um devoto considera determinados aspectos de sua vida como relacionados ao santo – e vice-versa: determinados aspectos da vida do santo como relacionados à sua própria vida… Quanto mais fervorosa se torna uma devoção, já não se sabe onde começa e onde termina a ação do santo na própria vida, que passa a ser lida como uma sucessão de graças. Assim, um devoto fervoroso parece viver num permanente estado de graça, marcado por uma gratidão constante por seu santo protetor. A devoção é, portanto, um registro de classificação que atua como ordenador da própria vida, atribuindo-lhe significado. E ela se expressa materialmente, tanto na linguagem do devoto, na forma de falar ao santo ou sobre o santo, em atos de louvor que se realiza para ele: cantos, orações, ladainhas etc. E assim, chega-se às imagens, ou à interação dos devotos com as imagens, seja pelo interesse metodológico de visualizar a relação de devoção em operação, fazendo-se, construindo-se; seja num sentido mais analítico, de tentar recompor uma gramática corporal, uma linguagem, uma sintaxe da devoção. A recuperação dessa trajetória de pesquisa, mais do que um alerta para a condição da autora de neófita no estudo da arte, visa a trazer um primeiro tema à discussão. Jacques Revel, na introdução do livro Jogos de escala,12 enfatiza que a opção por escalas de análise mais ou menos amplas produz resultados diferentes. Não apenas níveis distintos de restrição, mas bastante diferentes: A escolha de uma escala particular de observação produz efeitos de

conhecimento, e pode ser posta a serviço de estratégias de conhecimentos. Variar a objetiva não significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto, significa modificar sua forma e sua trama.13

Diante dessa proposta de jogos de escala que reconstroem um objeto de estudo, um primeiro tópico para a discussão é a ideia da existência de

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efeitos de conhecimento por jogos de percurso. Isto é, a ideia de que um percurso de pesquisa geralmente produz uma sequência de questões, que, pela incorporação das problemáticas contidas na literatura de um determinado campo de discussões, vai se desenvolvendo num sentido específico. Se esse encadeamento de problemas por um lado facilita a discussão, por outro tende a condicioná-la. Mas ao colocarmos em diálogo pessoas com trajetórias de pesquisa diferentes, em espécies de jogos de percurso, pessoas efetivamente dispostas a se deixar interpelar pelo outro, numa experiência de alteridade acadêmica, seria possível, a meu ver, obter um rendimento próprio, num processo que contribuiria para desmontar doxas, para encontrar novas maneiras de perguntar, para estabelecer ângulos inéditos de abordagem. Uma experiência de estranhamento, tão cara à Antropologia, dessa vez gerada entre os próprios pares. Assim, por conta dos encadeamentos de percurso, haveria uma diferença em chegar à temática da imagem pelas discussões da arte e chegar à imagem pelas discussões da religião e do culto aos santos, e é justamente uma tentativa de tomar essas diferenças como um efeito de conhecimento produtivo que gostaria de explorar neste artigo.14

Apresentando o episódio Voltemos então ao gesto restaurador de dona Cecília, às ambiguidades em sua avaliação e a seus desdobramentos. Como foi dito, não apenas a imagem da igreja de Borja, antes e depois da restauração, circulou, mas novas imagens foram sendo produzidas a partir da aplicação da face do “Jesus restaurado” por sobre várias superfícies: obras de arte clássicas e contemporâneas de renome, ícones da pop-art, objetos do cotidiano etc. As variadas formas em que essa aplicação se deu pareciam apontar para avaliações ora positivas, ora negativas, embora sempre jocosas, do gesto de dona Cecília. Por exemplo, em muitas delas, como demonstrado na Figura 2, na página seguinte, o Cristo de Borja aparece substituindo a face de Cristo em outras pinturas, como se o “Jesus restaurado” então produzido fosse uma nova versão (um mais entre tantas outras…) da face do Salvador. Assim, a imagem de Borja foi aplicada como rosto de Cristo n’A Última Ceia, de Juan Jueves, na Madonna Litta, de Leonardo da Vinci, no Ecce

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Figura 2. O Cristo de Borja na Madonna Litta, de Leonardo da Vinci. Fonte: http://www.naosalvo.com.br/ compilado-do-meme-jesus-restaurado/

Homo, de Albrecht Dürer e até mesmo no monumento ao Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, dentre outros usos. Outras transformações utilizando o Cristo de Borja no mundo das artes iam mais longe, usando-o como substituto não apenas de Cristo, mas de outras faces em obras de arte famosas, como na Monalisa, de Leonardo Da Vinci, n’O Grito, de Edvard Munch, ou no Beijo, de Gustav Klimt. Em alguns casos, o Cristo de Borja não substituiu apenas um dos personagens retratados, mas todos eles, como nas transformações da Criação de Adão, de Michelangelo, ou da Última Ceia, de Leonardo da Vinci. Ou mesmo em naturezas-mortas, como ao ocupar o lugar das flores em Os girassóis, de Vincent Van Gogh (Figura 3). A partir dessas imagens, dona Cecília poderia ser considerada menos como a produtora de uma nova versão da face de Cristo e mais como uma desfiguradora em potencial: qualquer obra que passasse por sua mão restauradora se tornaria semelhante ao Cristo de Borja. Uma variante que circulou bastante pelo Facebook trazia Cecília Giménez junto a pintores contemporâneos de destaque, que teriam revisitado trabalhos famosos mais antigos, lhes dando uma nova interpretação. Assim como Edouard Manet revisitou Rafael Sanzio; Pablo Picasso, Velasquez; David Hockney, Van Gogh e Fernando Botero, da Vinci; a sra. Cecília teria revisitado García Martínez (Figura 4).

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Figura 3. O Cristo de Borja n’Os Girassóis, de Van Gogh. Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/ secao/artigos/a-arte-e-o-legado-de-ceciliade-borja

Figura 4. Sra. Cecília, seus “colegas” pintores e as reinterpretações que promoveram. Fonte: https://www.facebook.com/FasDaDonaCeciliaRestauradoraDoCristoDeBorja

Esse tipo de blague produz um conjunto de homologias em que a pintora de Borja se torna comparável a grandes criadores de Arte Moderna e Contemporânea, e seu trabalho, não mais um erro de restauro, mas uma releitura intencional da obra de García Martínez. Simultaneamente, atribui-se premeditação e intencionalidade à ação da senhora espanhola e evidencia-se o alto grau de socialização em arte do(s) autor(es) da montagem, capaz(es) de estabelecer essas conexões e de construir a série de refe-

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rências. As homologias (a:b::c:d) são interessantes, porque, ao estabelecer relações, mantêm uma sutil possibilidade de decalagem quanto à avaliação dos resultados dos trabalhos: se o de dona Cecília for considerado menor diante do demais, talvez a razão possa estar na própria qualidade da obra original, de García Martínez, também inferior aos clássicos revisitados. Note-se, entretanto, que as obras dos outros pintores não se deram por sobre os quadros originais e, portanto, não os alteraram.15 Quanto ao tratamento das transformações do Cristo de Borja não apenas como formas de humor, mas como intervenções artísticas, em setembro de 2012 duas centenas de pessoas atenderam à convocatória do Colectivo Wallpeople16 e colocaram suas fotomontagens impressas com o Ecce Homo de Borja em exposição, em Barcelona, num muro próximo ao Centro de Cultura Contemporânea. Segundo um dos organizadores, o objetivo do evento era fomentar a arte e a criatividade, e apoiar Cecília Giménez, numa “eccehomenaje”. As criações do universo virtual ganharam aí concretude e foram exibidas como obras de arte.17 “We free art”, diz um cartaz afixado junto às imagens: o gesto restaurador e seus desdobramentos são lidos como uma libertação de cânones artísticos, como ousadia, espontaneidade e democratização da arte, e não como equívoco. As montagens, na exposição e na internet, não envolveram apenas as artes plásticas, mas assumiram conotações mais populares, ou mais ligadas ao universo pop. O Cristo de Borja apareceu sobrepondo-se a faces icônicas, como as de Marylin Monroe, Che Guevara, Mickey Mouse e Jim Morrison. Ecce Homo restaurado foi considerado semelhante a um símio, e passou a ser chamado, principalmente nos EUA, de Ecce Mono, título sob o qual foi associado a outros personagens: o ET do filme de Steven Spielberg; Homer Simpson, o patriarca do seriado de TV Os Simpsons, Chewbacca, o alienígena da série cinematográfica Guerra nas Estrelas, de George Lucas, ou Mr. Bean, o personagem desastrado interpretado na televisão e no cinema pelo ator inglês Rowan Atkinson.18 Note-se que em alguns desses casos já não se trata de trocar a face de obras de arte conhecidas pela do Cristo de Borja, mas de fazer o movimento inverso, de trocar a imagem da parede da Espanha por outros personagens conhecidos, do cinema e da televisão, evidenciando o caráter de “coisa estranha” ou de “trapalhada” do resultado da restauração.

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Figura 5. O Cristo de Borja como fantasia de Halloween. Fonte: https://www.facebook.com/ElCristoDeBorja

E uma das maiores evidências do sucesso do Cristo de Borja nos mais diversos registros, uma espécie de culminância em sua carreira de meme, foi sua transformação em fantasia tridimensional de Halloween nos EUA, quando, segundo a agência de notícias EFE, foi uma das opções de maior repercussão em 2012.19 Os impactos midiáticos e internáuticos do Cristo de Borja, verdadeiro fenômeno de massa, se fizeram sentir na vida cotidiana da cidade e na de dona Cecília. Tanto as críticas à restauração como seu sucesso provocaram o assédio maciço da imprensa à senhora, que, acossada, passou a não sair à rua, teve a casa protegida por dois carros da Guarda Civil e precisou recorrer à ajuda médica para acalmar os nervos. A cidade também foi rapidamente impactada, pois passou a receber milhares de turistas, dispostos a visitar o “Jesus restaurado” de Borja em sua parede, tão dispostos que aceitaram pagar a entrada de um euro, que a Fundação Hospital Sancti Spiritus, proprietária do santuário, passou a cobrar pelo acesso à Igreja.

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Nesse sentido, pode-se considerar que a intervenção de dona Cecília tenha feito renascer a imagem e mesmo a cidade, recolocando-a no mapa turístico, pois esta rapidamente passa a ser definida na Wikipedia como “a cidade do Cristo restaurado de Borja”. Posição que é defendida pelo jornalista Roberto Kaz em crônica de O Globo (a qual escreveu como sendo a própria imagem): Hoje o Santuário da Misericórdia virou ponto de romaria. A cidade de Borja recebe mais turistas por minha causa. As pessoas, quando

me veem, gargalham na minha frente. Não é fácil; sou um deboche público. Ainda assim, sou público. Faço, pois, um apelo. Na semana passada, uma equipe de restauradores me visitou, me avaliou, concluiu

que posso ser restaurado. Mas ninguém se lembrou de perguntar: eu quero ser restaurado? 20.

A crônica de Kaz demonstra sintonia com o episódio pois, de fato, apesar da avaliação de restauradores de que a imagem poderia ser recuperada, a cidade optou por mantê-la em seu estado atual. No mesmo sentido, e em apoio a dona Cecília, mais de vinte mil pessoas assinaram petições na internet para que o trabalho não fosse restaurado. As últimas notícias sobre o episódio, que parece longe de se encerrar, são que, diante da cobrança de ingressos para ver sua restauração, a senhora espanhola passara a demandar participação nos lucros21 e, posteriormente, noticiou-se sua intenção de promover uma exposição de seus próprios trabalhos, visto que “desde menina sempre se interessara por pintura”. Por outro lado, a fundação que é proprietária do santuário registrou a nova face, que agora é utilizada em rótulos de vinho da região e em outros produtos.

A “restauração espontânea” como um iconoclash As avaliações sobre o Cristo de Borja comprendiam diferentes posições sobre a imagem ter sido destruída ou reconstruída. O resultado da intervenção desdobrou-se, imagem sobre imagens, num processo de realimentação frenética de referências marcado pela jocosidade. A ambiguidade na

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avaliação do gesto de D. Cecília permite-nos classificar o caso como um iconoclash, nos termos propostos por Bruno Latour na abertura do catálogo da exposição de mesmo nome: Iconoclasmo é quando sabemos o que está acontecendo no ato de quebrar [uma obra de arte] e quais são as motivações para o que se

apresenta como um claro projeto de destruição; iconoclash, por outro

lado, é quando não se sabe, quando se hesita, quando se é perturbado por uma ação para a qual não há maneira de saber, sem uma investigação maior, se é destrutiva ou construtiva.22

Com o objetivo de problematizar a ânsia de destruição de imagens, mas também a paixão por elas, bem como de compreender a condenação de sua mediação no acesso ao real, a exposição Iconoclash. Beyond the Image Wars in Science, Religion and Art, realizada em 2002, no Center for New Art and Media, em Karlsruhe, Alemanha, reuniu imagens oriundas de três fontes contemporâneas de produção: ciência, religião e arte contemporânea. Imagens que, colocadas em situação de interferência mútua, permitiriam, segundo os curadores, desbloquear determinados entendimentos nas relações ambíguas que os homens e mulheres mantêm com elas (o quê, seguindo argumentos deste artigo, poderíamos qualificar de um jogo de percurso entre imagens, por meio de seu encontro numa exposição). Em seu texto, Latour propõe uma classificação rudimentar dos gestos iconoclásticos,23 da qual podemos nos valer no entendimento de nosso caso. O autor elenca, grosso modo, cinco tipos de pessoas que praticam esses gestos: as pessoas A, que odeiam todo o tipo de imagem, numa forma pura do iconoclasmo clássico;24 as pessoas B, que são contra a imagem congelada, mas não contra as imagens em geral;25 as pessoas C, que não são contra as imagens, exceto as de seus oponentes, as quais atacam;26 as pessoas D, que são aquelas que quebram imagens inadvertidamente; e, por fim, as pessoas E, que ridicularizam os iconoclastas e os iconófilos, pois duvidam dos quebradores de ídolos tanto quanto dos cultuadores de ícones.27 Dos cinco tipos de pessoa elencados por Latour, três seriam identificáveis no episódio do Cristo de Borja. Na classificação proposta, dona Cecília seria uma pessoa tipo D, isto é, aquela que destrói imagens inadvertidamente,

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uma vândala inocente. Diferente dos vândalos normais por não terem a mínima ideia de que estavam destruindo alguma coisa, os vândalos inocentes estavam adorando imagens e protegendo-as da destruição, e mesmo assim são acusados de tê-las profanado e destruído! Eles são, por assim dizer, iconoclastas em retrospecto. O exemplo típico é o dos restauradores, acusados por alguns de “matar com ternura” […]: Ao restaurar as obras de arte, embelezar cidades, reconstruir sítios arqueológicos, eles os destruíram – dizem seus oponentes – a ponto de parecerem os piores iconoclastas, ou ao menos os mais perversos.28

“Matar com ternura… o exemplo típico é o dos restauradores”: Latour nos lembra que a ambiguidade restauração – destruição não estaria apenas no gesto de dona Cecília, mas seria inerente a toda e qualquer restauração, que é sempre, mesmo que um pouco, destruição e reconstrução. A tensão intrínseca destruição/reconstrução constitutiva do gesto restaurador é reconhecida até mesmo pelas diferentes escolas de restauro, que inclusive relacionam-se aos diversos estilos nacionais de estabelecer políticas de preservação de patrimônios.29 Mais do que com ambiguidades, portanto, parece-me que estamos lidando com ambivalências, coisas que são uma e outra ao mesmo tempo, e então se trata menos de definir o que o gesto realmente é, e mais de lidar com ele nessa dupla dimensão. Os demais gestos iconoclásticos associáveis a nosso caso relacionam-se ao desdobramento do Cristo de Borja em novas imagens. A produção de uma cascata de imagens envolveria pessoas tipo B e pessoas tipo E. Pessoas tipo B são aquelas que são contra as imagens congeladas, mas não são contra as imagens, ou seja, pessoas que apontam para a transitoridade das imagens: [Elas] não acreditam ser possível nem necessário se livrar das imagens. O que eles combatem é o congelamento das imagens, ou seja, extrair uma imagem do fluxo, e se tornar fascinado por ela, como se isso fosse suficiente, como se todo movimento tivesse parado. O que eles buscam não é um mundo livre de imagens, purificado de todos os obstáculos, livre de todos os mediadores, mas, ao contrário,

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um mundo cheio de imagens ativas, mediadores em movimento. Eles

não querem que a produção de imagens pare para sempre […] eles querem que ela continue tão rápida e fresca quanto possível.

Eles sabem que “a verdade é imagem, mas não há uma imagem da verdade.” Para eles, a única maneira de se ter acesso à verdade, à obje-

tividade e à santidade é passando rapidamente de uma imagem para a outra, e não sonhando o sonho impossível de se saltar para um original não existente.30



Assim, as pessoas B seriam como: Jesus expulsando os mercadores do Templo; Bach chocando os ouvidos da congregação de Leipzig e expulsando a música obtusa; […] ou o sábio tibetano apagando um toco de cigarro numa cabeça de Buda

para mostrar seu caráter ilusório, [produzindo danos nos ícones como]

uma injunção caridosa para redirecionar a atenção para outras imagens sagradas, mais novas, mais frescas – não para ficar sem imagens.31

E na cascata de imagens, marcada por uma hilaridade geral, nota-se a ação das pessoas tipo E, que: […] adoram manifestar irreverência e falta de respeito, eles querem gozação e zombaria, eles exigem direito absoluto à blasfêmia e o fazem

de um modo feroz, rabelaisiano […], eles mostram a necessidade da insolência, a importância do que os romanos chamavam pasquinadas – tão necessárias para um senso saudável de liberdade civil.32

O recurso ao humor pelos tipo E funciona como um artifício para demarcar seu distanciamento crítico com relação ao peso que determinadas pessoas atribuem às imagens: Existe um direito de não acreditar e outro, ainda mais importante, de não ser acusado de acreditar ingenuamente em algo. Talvez não exista

isso a que chamamos um crédulo. Com exceção do raro destruidor de

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ícones que acredita na crença – e que, estranhamente, acredita em si

próprio como o único não crédulo. Esse agnosticismo saudável, amplo, popular e indestrutível pode ser a fonte de muita confusão porque, aqui também, as reações que os E desencadeiam são indistinguíveis daquelas criadas pelos atos de destruição-regeneração dos As, Bs, Cs e Ds.33

Ou seja, no episódio do Cristo de Borja encontram-se gestos que parecem dar concretude a muitas das questões que perpassam os debates acadêmicos contemporâneos sobre as imagens, na tentativa de entendimento da complexidade das relações em jogo.

Desfigurações não blasfemas e imagens devocionais Mas para entender as repercussões do Cristo de Borja, seria importante considerar também algumas formas de tratamento dadas a episódios semelhantes ou assemelháveis a ele que não foram acionadas. Diferentemente dos casos que Jeanne Favret-Saada tem analisado, de condenação religiosa a obras de arte, o ato de dona Cecília e a cascata de imagens gerada a partir dele não foram tratados como blasfêmias.34 Isso significa, se seguirmos as definições propostas pela autora, que eles não foram socialmente avaliados como atentados à divindade.35 Por que a categoria blasfêmia não foi atribuída ao Cristo de Borja? Certamente a falta de intenção destruidora no gesto de dona Cecília, sua vontade manifesta de fazer um reparo na pintura, apesar do resultado inesperado, pesaram para que ela não fosse tachada de blasfemadora. Mas há outra pista a seguir: vemos que nos comentários e artigos que circularam sobre o caso não havia referências a usos religiosos da imagem. Há obviamente sua naturalização como arte sacra, enquanto uma imagem do Cristo; o tratamento dado à obra como o de um patrimônio, de valor afetivo, mais do que artístico, da cidade de Borja, e o fato dela estar pintada na parede de um santuário. Mas não há referências a práticas religiosas em seu entorno que tenham sido frustradas com a metamorfose. A situação de abandono em que se encontrava – malconservada e pouco visitada, em uma pequena igreja local – nos remete a um certo “desuso”, ou a uma certa

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“des-animação” de Ecce Homo, que justamente a transformação em Ecce Mono veio reavivar. Só que a reanimação não se deu enquanto uma imagem religiosa: não são romeiros ou pagadores de promessas que passam a visitá-la, não são interesses religiosos que motivam os visitantes, mas é o humor e o inusitado da situação que atraem os turistas para serem fotografados a seu lado. Nesse sentido, é sintomático que a imagem, apesar ter atraído o triplo de visitantes em relação a anos anteriores, tenha permanecido coberta nas festas de São Bartolomeu, celebradas em Borja no final de agosto, pois o pároco queria evitar “a zombaria (la mofa) dos curiosos que desejavam ver o resultado da restauração”.36 O silêncio quanto a possíveis funções religiosas do Cristo de Borja nos remete às discussões sobre a secularização da Europa contemporânea. Se as análises de Favret-Saada sobre os casos de blasfêmia partem de uma indagação – o que permitiria o julgamento religioso de produções artísticas –,37 em nosso caso, poderíamos inverter sua pergunta e indagar o que permitiria o tratamento exclusivamente artístico de obras de cunho religioso, desvestidas de suas potências sagradas, ou preservando-as apenas residualmente. Nesse sentido, podemos retomar as formulações de alguns críticos do processo de secularização da imagem por meio de seu enquadramento sob o prisma de obra de arte. O historiador da arte Hans Belting, ao questionar os fundamentos e o processo de constituição de sua própria disciplina, vai produzir uma instigante interpretação desse processo. Segundo o autor, a história da arte teria surgido na Alemanha do século XIX como uma disciplina de cunho científico de pretensões universalistas, mas na verdade teria produzido um conhecimento datado e etnocêntrico.38 Pois suas análises estariam baseadas em parâmetros estabelecidos no horizonte da Europa Renascentista, a época da arte, que teria se iniciado na Florença do século XV, com a invenção do quadro, e teria vigido até as múltiplas manifestações artísticas do século XX, que explodem com os cânones em vigor. Antes disso, até a Idade Média, haveria o tempo das imagens de culto, em que as funções religiosas da imagem definiriam modalidades de uso e critérios estéticos de avaliação.39 Para Belting, a história da arte teria se constituído “secularizando” as teorias da imagem, legitimando o discurso de especialistas em estética por oposição ao de teólogos e construindo

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uma espécie de monopólio das teorias da arte na interpretação das imagens. Porém, o estudo dos usos e formas de interpretação do objeto religioso medieval em seus próprios termos, como demonstra em Semelhança e presença,40 é capaz de provocar tensionamentos nas classificações e definições artísticas, evidenciando suas limitações, como, por exemplo, quanto às noções de representação e de belo, quanto às teorias da percepção etc. Fica evidente para Belting que a história da arte com pretensões universais revela-se incapaz de lidar com estéticas e teorias dos objetos que não partam da lógica ocidental moderna.41 Diante disso, o autor vai defender o fim da história da arte e sua substituição por uma história das imagens, de abrangência mais ampla, com uma maior abertura para capturar teorias e estéticas de outras sociedades ou de outros períodos da história.42 Preocupado, como Belting, em ampliar as possibilidades de análise da imagem, em repensar sua dimensão social e em refletir sobre múltiplos critérios de valor, o medievalista Jean-Claude Schmitt, no entanto, irá se demarcar da periodização dura proposta por esse autor. Para Schmitt, mais do que um processo de substituição de uma função cultual medieval por uma função artística moderna, haveria, quanto à imagem, entrelaçamentos e hierarquizações, coexistências e superposições entre essas funções: Hans Belting tem boas razões para caracterizar, senão a totalidade, ao menos uma grande parte das imagens medievais por sua função “cultual”. Esse traço seguramente as distingue da pintura de cavalete da época moderna, em que as funções estéticas e profanas se de-

senvolveram cada vez mais. Mas é preciso nuançar ainda mais: nem todas as imagens medievais eram objeto de um culto. […] Convém

distinguir também toda uma gama de formas cultuais diferentes […]. Inversamente, as imagens modernas não são alheias a todas as formas

de culto, religioso ou profano; a visita a um museu ou a uma grande

exposição de arte assume por vezes em nosso tempo o aspecto de um

ato ritual ao qual a pressão social confere um caráter de obrigação. […]Não convém, desse modo, opor o culto à arte, mas, por outro lado, ver como um assume o outro e se realiza plenamente graças a ele. […] Em toda época há de fato diversos tipos de imagem tendo todos eles uma pluralidade de funções possíveis.43

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É a partir dessa possibilidade de coexistência de diferentes funções ou lógicas de interpretação das imagens, mesmo que por vezes obscurecidas, que gostaria de tratar o Ecce Homo/Cristo de Borja não apenas como uma obra da arte, mas como uma imagem de culto, apresentando uma leitura alternativa da intervenção dedona Cecília ausente das notícias sobre o caso. Em diálogo com a literatura que ressalta as singularidades da imagem sagrada, com usos e sentidos distintos da imagem artística, proponho que sua ação talvez possa ser melhor entendida se for vista menos como uma tentativa ingênua de restauro de uma senhora que sempre se interessou por pintura (um restauro amador de uma pintora amadora), e mais como uma prática de cuidado de uma devota zelosa. A antropóloga Maria Lúcia Montes, no catálogo de uma exposição que organizou sobre a estatutária de São Cosme e São Damião, fornece-nos uma pista importante para entender a singularidade da imagem religiosa em seus usos: Impossível […] guiar-se por critérios formais e estilísticos canônicos da História da Arte. […] Danificada sua policromia ou mutiladas em

suas partes mais frágeis, essa pequenas esculturas, evidentemente já apropriadas por santeiros populares, mostram sinais de visíveis inter-

ferências em suas camadas acumuladas de tinta. Seria fácil acusar a

descaraterização dessa imaginária erudita ou mesmo ceder à tentação de decapar as peças. […] Então, tornou-se bem claro que era bem dis-

so que se tratava [a exposição]! Eram tais “interferências” que acaba-

vam por revelar o verdadeiro e profundo significado daquelas peças… Tratava-se de mostrar na exposição pequenas obras de arte, mas de

uma arte de devoção, formas de representação de figuras sagradas que

se abriam para insuspeitados veios do imaginário do povo brasileiro. E

as camadas de tinta deixavam então de ser interferência que descaracteriza para evidenciar o gesto devoto de quem, ao dar uma nova demão de pin-

tura a uma peça, por assim dizer, renovasse as vestimentas de uma velha imagem da capela de um engenho antigo ou de um oratório familiar […].44

Ou seja, a autora nos lembra que as concepções em torno dos usos, das formas e da estética da imagem de devoção não são subsumíveis ou

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coincidentes com o seu tratamento enquanto uma obra de arte. Os usos religiosos de uma imagem muitas vezes entram em choque com sua classificação como arte – e com as implicações que acompanham essa categoria e suas subdivisões, como arte sacra e patrimônio; implicações tais como exposição em museus, circulação em mercados de bens simbólicos, afastamento de usos rituais etc. Escalas de valores e lógicas de uso diferentes entram em jogo, e muitas vezes, em choque. Devotos mantêm relações com as imagens que envolvem proximidade, manuseio, deslocamento, exposição às intempéries, em atos como pegá-las, beijá-las, molhá-las, movê-las. De novo, a ambivalência restauração/destruição: do ponto de vista de um devoto, a imagem perfeitamente restaurada pode ser considerada danificada, porque estaria neutralizada em suas potências sagradas, que muitas vezes se manifestam em suas marcas. Por outro lado, o fato de D. Cecília ser uma octogenária pode não ser casual. Se nas matérias de jornal esse dado aparece como indício de uma possível inconsciência na ação da senhora, ele pode estar associado a certas dimensões da vida cotidiana de uma pequena cidade espanhola no século XXI, como um sinal de quais segmentos sociais se preocupam com as imagens das igrejas, ou têm tempo e interesse de se ocupar delas: senhoras de idade provecta, viúvas na terceira idade. Nesse sentido, a intenção de dona Cecília seria menos a de realizar uma restauração da imagem de Ecce Homo, e mais como a de exercitar seus cuidados com o Cristo de sua igreja, uma limpeza daquele jesuizinho abandonado na parede, coitado, tão largado e tão sujinho, desbotado, tornado indigno (e o uso dos diminutivos aqui é intencional, pois tenta provocar uma sensação de proximidade e intimidade que se encontram descritas nas etnografias sobre devoção). Sua irmã, Esperanza Giménez, que em alguns momentos do episódio operou como sua porta-voz diante da imprensa, nos aproxima dessa possibilidade: Lo hizo con toda la buena fe del mundo. Solo quiso darle un poco de color, ya que la iglesia está en muy malas condiciones, hay goteras y salitres y

el Cristo se estaba deteriorando. […] Siempre ha tenido la pasión de la

pintura. Y lo hizo para que la iglesia quedara más bonita, para ayudar.45

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Há uma certa singeleza no gesto da senhora espanhola que a aproxima de outras senhoras e senhores de outros lugares: pessoas que bordam roupas, que confeccionam perucas em cabelo natural, que doam seus cabelos para isso, que vestem as imagens de procissão para suas saídas, que as enfeitam como fitas e flores de seus quintais, que conversam com elas etc. Dona Cecília então seria menos uma restauradora espontânea e mais uma devota zelosa, hipótese que uma etnografia detalhada em Borja poderia nos ajudar a explorar.

Notas 1

Agradeço a Patrícia Reinheimer e às demais colegas do CULTIS/UFRRJ o convite e os estímulos para apresentar este trabalho. E a Daniel Bitter, pela enorme gentileza de me ajudar com a edição das imagens. Este texto é fruto do projeto “Devoção e Formas de sociabilidade nas festas e no cotidiano”, financiado pelo programa Jovens Cientistas do Nosso Estado, da Fundação de Amparo à Pesquisa Carlos Chagas Fo/FAPERJ.

2

Para que os leitores possam eventualmente localizar esses debates, eles têm sido alimentados por livros como os de Strathern, 1990 e 1999; Thomas, 1991; Weiner, 1992; Gell, 1998; Severi, 2007, ou em coletâneas tais como as de Appadurai, 1990; Marcus & Myers, 1995; Miller, 1998 e 2005; Myers, 2001; Westermann, 2005; Tilley, 2006; Henare, Holbraad, & Wastell, 2007; entre outros. Encontram-se ainda em números especiais de periódicos clássicos da área, como o de Sciences Humaines, da primavera de 2002; o n. 165 de L’Homme, de 2003; o n. 2 do v. 54 de Social Analysis; o n. 13 de Gradhiva, de 2011; ou o v. 14, de 2007, de Archeologial Dialogues; além, obviamente, de artigos em vários periódicos de destaque na área. Ou ainda se torna visível no florescimento de periódicos mais especializados na temática, como Res – Anthropology and Aestethics, Journal of Material Culture e Material Religion.

3 4

Para uma síntese dessas distintas abordagens, ver Tilley et al., 2006.

Como, por exemplo, no diálogo que o sociólogo Pierre Bourdieu e o artista plástico Hans Haacke travaram em Livre-troca (Bourdieu & Haacke, 1995).

5 6 7 8

Westermann, 2005, p. vii. El País, 21/08/2012. El País, 23/08/2012.

Segundo a Wikipedia e o Dictionary.com, o termo meme vem de memético (imitativo) e tem sua origem no livro do biólogo britânico Richard Dawkins, o Gene Egoísta, de 1976. Usado para unidades de evolução cultural que podem se autopropagar, meme se refere a uma ideia ou elemento de comportamento social transmitido entre gerações em

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uma cultura, especialmente por imitação. Ou a um item cultural que é transmitido por repetição, em maneira análoga à transmissão biológica de genes. As imagens, os vídeos e as músicas que se propagam rápida e maciçamente pela internet, muitas vezes com alterações cômicas, têm sido chamados de meme (http://dictionary.reference.com/browse/meme; http://en.wikipedia.org/wiki/Meme, capturado em 17/01/2013). Agradeço a minha orientanda, Izabella Bosisio, o apoio na busca dessas definições. 9

O interesse pelo culto aos santos levou à criação do GPAD – Grupo de Pesquisa em Antropologia da Devoção. Para maiores informações, consultar: http://dgp.cnpq.br/ buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0202703R0U4BLX.

10

Joaquim: – “Toda vez que venho aqui, toco no quadro de Santo Antônio, que é um quadro muito antigo, que tem uma grande energia, que é energizado. Passo e toco, agradecendo por ter podido vir mais uma vez.” Renata: – “Mas então você não pede?” Joaquim: – “Peço também. A gente está sempre pedindo, porque estamos sempre carentes. Hoje, por exemplo, pedi pela pessoa que me trouxe até o convento, porque ela está muito mal, teve um derrame e tem quarenta anos… E está sendo cuidada por uma filha de 17 anos que teve que parar de estudar para tomar conta da mãe, então é uma pessoa que precisa muito, então eu pedi por ela”. ( Joaquim, entrevista realizada em 7/6/2001 no Convento de Santo Antônio, Largo da Carioca, centro do Rio de Janeiro). É preciso reconhecer que trabalhos dos anos 1980 dedicados às religiões populares, como os de Carlos Rodrigues Brandão e os de Rubem César Fernandes, apontavam na direção dessa complexidade, embora não tenham ampliado suas reflexões.

11

As formulações sobre devoção aqui apresentadas sumariam os capítulos 9 e 10 de meu livro A dinâmica do sagrado (Menezes, 2004).

12 13 14

Revel, 1996. Ibid., p. 20.

Um tipo de jogo como esse não implica apenas em vantagens. Ele também pode trazer problemas: há o risco da ingenuidade na “descoberta permanente da pólvora”, isto é, de, por desconhecimento das especificidades de um campo de discussões, refazer questões que há muito já foram tratadas, não conhecendo o acúmulo de conhecimento diante de determinado tema ou conceito. Para um jogo de percurso, há um esforço de tradução e socialização que precisa ser feito, sob pena de pensarmos estar tratando das mesmas coisas quando estamos tratando de coisas diferentes, e vice-versa. Mesmo assim, acredito que este livro, bem como o seminário que lhe deu origem, sejam ocasiões propícias para ensaiar jogos de percurso e apostar em seus resultados.

15 16

Agradeço a Marina Menezes Leite ter-me apontado essa nuance.

O coletivo se apresenta assim em sua página na internet: “Wallpeople es un proyecto de arte colaborativo con base en Barcelona que invita a las personas a crear y a formar parte de un momento único en un espacio urbano determinado. Nuestras acciones tienen como objetivo la creación de obras callejeras irrepetibles gracias a las aportaciones de todos los participantes. Una de las razones de ser de Wallpeople es devolver el arte a las calles y reivindicar el espacio público como medio de expresión y de interacción ciudadana. Creemos que la creatividad es libre y no debe quedarse encerrada en los museos” http://wallpeople.org/index.php/homenaje-a-eccehomo/, capturado em 28/01/2013.

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17 18

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El País, 07/09/2012.

A representação como Mr. Bean pode estar associada a um filme deste personagem, Mr. Bean, o filme, de 1997, em que ele, como funcionário de um museu londrino, vai aos Estados Unidos para buscar um quadro para uma exposição e, no processo suja uma obra de arte, ao espirrar sobre ela, e a deforma, ao tentar limpá-la. Depois tenta resolver o estrago com um desenho seu, de caneta esferográfica, por sobre a face do quadro. Essa associação entre “trapalhadas” está presente de forma explícita em muitos comentários sobre o Cristo de Borja em redes sociais, mas foi Ilana Goldenstein, a quem agradeço, que primeiro me indicou a referência.

19 20 21

Blogue Vírgula, 31/10/2012.

Kaz, Roberto. Revista O Globo, 09/09/2012, p. 17.

La decisión [de cobrar ingresso para visitar a imagem] no ha gustado ni a la octogenaria artista ni a su familia, que han decidido tomar acciones legales por entender que Cecilia, que apenas sale a la calle por culpa de la repercusión mundial del eccehomo, debería cobrar derechos de autor por la obra, puesto que la fundación recibe ingresos por un trabajo que ella ha realizado. (El País, 19/09/2012).

22 23 24

Latour, 2008, pp. 112-113. Latour, 2008, p. 128.

Os As são: “aqueles que querem libertar os crédulos – os que eles julgam ser crédulos – do falso vínculo com ídolos de todos os tipos e forma […] [Eles] acreditam que não só é necessário, mas também possível, prescindir inteiramente de intermediários e ter acesso à verdade, à objetividade e à santidade. Eles pensam que sem estes obstáculos ter-se-á finalmente acesso mais suave, mais rápido, mais direto à coisa real.” (Latour, 2008, p. 129). 25

“Os Bs [...] causam devastação nas imagens, rompem costumes e hábitos, escandalizam os devotos […]. Mas a enorme diferença entre os As e os Bs [...] é que estes não acreditam ser possível nem necessário se livrar das imagens. O que eles combatem é o congelamento das imagens, ou seja, extrair uma imagem do fluxo, e se tornar fascinado por ela, como se isso fosse suficiente, como se todo movimento tivesse parado.” (Latour, 2008, p. 130). 26

“Os Cs também querem desacreditar, desencantar, destruir ídolos. [...] [Mas ao contrário dos As e dos Bs, eles não têm nada contra as imagens em geral: eles só se opõem à imagem à qual seus oponentes aderem com mais força. É o bem conhecido mecanismo de provocação: para destruir alguém com rapidez e eficiência máximas, basta atacar o que é mais adorado, o que se tornou o repositório de todos os tesouros simbólicos de um povo.” (Latour, 2008, p. 132).

27

“Eles desconfiam de quaisquer distinções marcadas entre os dois polos; eles exercem sua ironia devastadora contra todos os mediadores; não que queiram livrar-se destes, mas porque estão muito conscientes de sua fragilidade.” (Latour, 2008, p. 135).

28 29

Latour, 2008, p. 134. Grifos da autora.

Gonçalves, 1988. No caso da Espanha, lembro-me de uma visita guiada à restauração do pórtico da catedral de Santiago de Compostela, que fiz em julho de 2009, em que a guia nos explicou como a dimensão policromada das imagens era identificada, e passava a ser mencionada em registros, mas não era reproduzida pois, conforme foi dito, a política

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de restauração espanhola não permitia a repintura, mesmo que para o retorno a cores originais. Pobre dona Cecília! Justo num país com essa concepção de patrimônio foi exercitar seus cuidados! 30 31 32 33 34

Latour, 2008, p. 130. Latour, 2008, p. 131. Latour, 2008, p. 135. Ibid., pp. 135-136.

Favret-Saada, 1994 e 2007. A única referência a blasfêmia que encontrei no material levantado foi feita por María Giménez, irmã de dona Cecília, referindo-se, contrariada, à falta de respeito das variantes cômicas lançadas na internet, mas não à restauração de Borja (El País, 25/08/2012). A Igreja não usou a categoria para se referir ao fato.

35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45

Favret-Saada, 1994, p. 29. El País, 23/08/2012.

Favret-Saada, 1994, p. 27. Belting, 2012, p. 32. Belting, 1988. Ibid.

Belting, 2005.

Belting, 1988 e 2012.

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Figuras extras https://www.facebook.com/photo.php?fbid=282816175161841&set=a.2698304 29793749.54119.269828149793977&type=1&theater [Halloween] https://www.facebook.com/photo.php?fbid=270167173093408&set=a.2698304 29793749.54119.269828149793977&type=1&theater [Cristo Redentor]

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Este livro foi impresso em papel offset 90g, com tipos Adobe Caslon e Trade Gothic, pela psi7, em São Paulo.

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