Articulação semântica na imagem de Poemandala de Haroldo de Campos (2000)

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ARTICULAÇÃO SEMÂNTICA NA IMAGEM DE POEMANDALA DE HAROLDO DE CAMPOS

Por Ernesto de Souza Pachito

a) A LETRA ENTRELAÇADA

A primeira coisa que salta aos olhos quando se observa Poemandala, publicado por Haroldo de Campos em meados da década de 70 são os interstícios entre cada estrofe, se é que assim se pode chamar esses grupos de versos magistralmente esparsos pela página. Vê-se, então, que o branco do papel se impõe, o olho divaga e é atraído para a mandala central, negra. O octógono negro é fundo para os trigramas do I Ching1, brancos. Tais figuras representam oito situações arquetípicas do cosmo. São a combinação de linhas contínuas (yang) e linhas interrompidas (yin) em três camadas superpostas e representam o pai, a mãe e três filhos de cada sexo de acordo com a ordem de nascimento. Estes trigramas superpostos dois a dois formam 64 hexagramas de um livro-oráculo chinês denominado I Ching – O Livro das Mutações. Os trigramas brancos são vazados sobre o negro do octógono e configuram emergências do fundo branco do papel, assim como o lado branco do símbolo monádico central, o T’ai Chi. Segundo Jung, mandalas são símbolos (não no sentido peirceano) da organização do Self, centro de onde emanam as tendências de auto-organização e individuação do ser humano. O poema de Haroldo de Campos surge, plasticamente falando,

1

WILHELM, Richard, tradução alemã do I Ching, retraduzida para o português.

como uma constelação, uma cristalização simétrica ou quase, do Self subreptício, constelação esta central à página e à organização da psique do próprio poeta e do cosmos, incluindo-se aí o leitor. Lembremos que, para Jung, existe um inconsciente coletivo comum a toda a humanidade, ideia que vai ao encontro do pensamento monista oriental. Assim Haroldo de Campos coloca no papel um símbolo de totalidade ou da Totalidade ( o Uno taoísta, que articula ou entrelaça, num processo gestáltico, fundo-página-branco-luminoso ( logo yang ), com figura-letra-preto-obscuro ( logo yin ). O curioso é que se tem pictoricamente e talvez como um capricho do acaso, uma inversão do esquema ideológico que comumente associa às Letras e ao conhecimento uma imagem luminosa de “ilustração”, Iluminismo, racionalidade. Isto já é, num nível panorâmico e pictórico, do jogo de brancos e negros do conjunto papel e tinta, uma articulação estrutural binária e ideogrâmica. Se são tomadas as Letras como luminosidade racional inverte-se o esquema da mônada chinesa central, o T’ai Chi, que passará a Ter sua parte negra (yin) como correlato à luminosidade da palavra. Isto é oxímoro visual, jogo dialético, talvez casual. Iniciando-se então uma leitura Poemandala, pode-se deparar com as seguintes expressões: “olho central”, “rosácea”, “rosaberta” que são metáforas deste centro do Self, do Cosmos, justapostos e ligados pela “Terceira Visão”, ou “Terceiro Olho”, ponto de ligação do Eu ao Uno, este último estando introjetado na sua integridade

no Self

individual. Realizar o Self é tarefa que o Ego cumpre sem o auxílio da intencionalidade ocidental, ou de uma teleologia consciente. O Taoísmo, uma das fontes do I Ching, é rico, nos seus textos, em exemplos de valorização da não-intencionalidade, denominada wuwei2.

2

LAO TSÉ, TAO TE KING, trad. e notas Richard Wilhelm, p.

Mas o que é a “rosácea” central, “rosaberta”? Aqui há a colagem, a ideogramização de três semas visuais ou “imagemas” ou de três símbolos (no sentido peirceano) mais o “o” introdutório, artigo definido, o que já é o bastante para que contenha o sema “centralidade”: não se trata de qualquer coisa é “o ...” Aqui há um “o” legissigno icônico (a circunferência) colado a um “o” réplica de um legissigno indicial remático.3 Esta quadra é a descrição imagética do Centro, do núcleo do Ser. Mas por que tal “estrofe” não se encontra no centro da página? Uma hipótese encontra-se no fato dela ser verbal, enunciativa, enquanto nenhuma enunciação pode dar conta do misterioso Tao, princípio indescritível do universo, só alcançado pela experiência intraduzível da iluminação mística. Para o centro de sua mandala pessoal o poeta reservaria um outro signo. Vejamos estes versos do Tao Te Ching, escrito por Lao Tsé, principal figura do Taoísmo, no século VI A.C.:

O Insondável (Tao) que se pode sondar Não é o verdadeiro Insondável. O Inconcebível que se pode conceber, Não indica o Inconcebível. No Inominável está a origem do Universo...4

No centro do poema há um um ícone, um diagrama da atividade da Mutação no Universo e não há qualquer enunciação. Trata-se, deduz-se desta isotopia que se delineia, de um golpe desferido pelo poeta àquilo que Derrida chamou de Logocentrismo ocidental. Observe-se que há uma tensão quase oximoresca: aquilo que inicia o poema já é o Centro e está fora do centro da página. Aqui há uma montagem, uma justaposição, uma ideogramização geométrica, posicional. Uma dissonância não imagética mas grafemática;

3 4

PEIRCE, Charles Sanders, SEMIÓTICA, pp. 55-56, par. 258 E 259. LAO-TSÉ. TAO TE CHING, trad. e notas de Huberto Rohden, p.25.

há tensão quase física, só que de repulsão: quando algo é enunciado se é “expelido” do Centro. Assim este Inominável-Insondável centro do Ser é representado, também precariamente, por Haroldo de Campos, no centro de sua página poética através, não da verbalidade mas, de um diagrama, o T’ai Chi tradicional, espécie de Ready-made da tradição mística que Haroldo de Campos “cola” no texto que é criação sua.

b) UMA REVOLUÇÃO ?

No topo da página na estrofe mais alta temos o verso: “palafitas suspendem o jejum”. A palafita, algo suspenso por definição, suspende, ou seja, “palafiteia”, exerce o seu ser. Trata-se de uma intransitividade transitiva, de uma superposição de sentidos. Além de serem o que são (palafitando, suspendendo, ação circular centrada em si mesma, intransitiva), as palafitas suspendem algo, o jejum, expressão que sugere semanticamente o suspender de uma ascese, ou de uma privação. Saltemos então e vamos para a quadra “sangraberta a rosácea o olho o centro” provavelmente o símbolo de comoção. Resultado: “ao sul o azul cônsul ruiu”, donde se conclui : revolução popular. As palafitas, signos de pobreza superando sua condição proletária, ou campesina, suspendem o jejum. Iniciam a luta. A estrofe que diz : “uma unha de estória” pode ser interpretada como uma imagem das garras afiadas da luta. “Quartzo crescente” corporifica a dureza e o gume do cristal se comparado à unha anterior. O lexema “unha” possui o sema “luta” ou “agressividade”, o lexema “quartzo” possui os semas “dureza” e “transparência”, a reunião desses quatro semas no contexto das significações sugeridas pelos lexemas “palafitas”, “jejum”, “cônsul” e “ruiu” nos leva a pensar em conflito. Neste

ponto uma revolução é justaposta, logo comparada, ao conceito de Mutação para os orientais5, ou Devir para a (pós)Metafísica ocidental. Logo abaixo, o terceto “estes mínimos mins” aparece como algo de uma afetividade extraordinária. Os mínimos mins provavelmente, justapostos a jejum, referindose à ascese da meditação que procura minimizar o poder do Ego e do pensamento racional nos ascetas de todas as religiões orientais. “estes mínimos mins” aparecem como que entre parêntesis, um comentário paralelo (por isso com outro alinhamento), espécie de aposto, afixo estrófico, ampliando e explorando o lexema jejum. O poema tem uma leitura diacrônica parcial ( a vertical partindo de “palafitas” até “ruiu”) e uma leitura simultânea diagonal, onde o tempo está suspenso, partindo de “o olho central”. Estas leituras confluem para um certo ponto de fuga lateral representado pelas estrofes : “ao sul o azul cônsul ruiu” e “sus penas apenas penso”.

c)A UNHA DE QUARTZO

Encontram-se, distribuídas pelo poema de Haroldo de Campos, várias manifestações de colagem, conciliação de contrários e dissonância semântico-imagética. Mas o local onde a dissonância se dá de forma surrealista (que talvez constitua uma forma específica de dissonância) é na quadra que “desenha” a “unha de estória o quartzo crescente”. A “unha de quartzo” em meio ao caráter convergente de todas as outras dissonâncias, apresenta, até por motivos óbvios, um alto grau do sema “agressividade” (toda dissonância é no fundo “agressiva”, ou, no fundo de sua realidade física, atritante). O 5

JUNG, Carl Gustav – PREFÁCIO AO I CHING in PSICOLOGIA E RELIGIÃO ORIENTAL – p. 127.

objeto “unha”, a matéria “quartzo”, inclusive, trazem dentro de si, de seu núcleo sêmico o sentido de “atrito”, símbolo óbvio de conflito, de secundidade peirceana. A lua aqui evocada pela palavra “crescente”, vem adicionar à cena um certo ar surrealista. Talvez seja este ar, este pathos, entre febril e melancólico, talvez convalescente, num sentido Nietzscheano6 que a lua carrega enquanto símbolo (não no sentido peirceano), que confira a esta isotopia seu caráter de proximidade ao surrealismo de um Garcia Lorca, por exemplo. A união entre “unha” e “lua” se dá através do sema “circularidade” ou “semicircularidade” que tanto “unha” como “crescente” apresentam, estando “quartzo” atrelado a “crescente” num chiste do poeta. Então temos a imagem-resultante destes vetores: as unhas feitas de quartzo - (o sema “vitrificação”) com sua semicircularidade de lua crescente - vistas contra o pano de fundo do céu com essa lua. O clássico simbolismo da lua nos remetendo a imagens oníricas, às produções do inconsciente, daí o surrealismo e o sabor lorquiano7. Este “quartzo crescente” pode ser também o escritório ou a alcova do poeta que “apenas pensa” ou seja analogicamente cria seu próprio microcosmos, onde há espaço para uma revolução, talvez inadequadamente identificada com o vir-a-ser do Universo. Veja-se a disparidade dos constituintes desta montagem-dissonância: “unha” é díspare de “estória” que é díspare de “quartzo” que por sua vez é díspare de “lua”. Díspares, não termos antitéticos que caminham para uma síntese dialética unificadora. A unha de quartzo pode, inclusive, pertencer a um mandarim fictício (um cônsul) o que cria uma isotopia que lança “lua” como pertencente ao mundo obscuro das intrigas palacianas. Talvez aqui se resolva plenamente a disjunção formada pelo “sema”

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VATTIMO, Gianni, O FIM DA MODERNIDADE – Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, pp. 189-190.

brilho de “unha” e de “quartzo” e a noite enquanto pano de fundo, negro, para o “crescente”. O denominador comum destes contrários pode ser representado pela figura do “mandarim”. Figuras da alta corte chinesa, é sabido, ostentavam longas unhas. Poder-se-ia, inclusive, pensar Poemandala como um conjunto de situações que talvez sejam o correlato de hexagramas específicos do I Ching. Cada uma destas situações poderia ter sido obtida pelo lançamento de moedas (o acaso), cujo resultado se apresentaria ao I Ching. Aparentemente há um tom arquetípico que atravessa toda Poemandala. Seria interessante levantar estes arquétipos ou situações de mundo presentes (hipótese) no poema e no I Ching, mas isto é trabalho para uma abordagem posterior. O que o trabalho de Haroldo de Campos parece indicar e presentificar (num sentido peirceano de índice) são correspondências entre cultura ocidental (iconismo do grupo Noigandres, de Pound, Cummings, luta derridiana por uma desconstrução do conceito etnocêntrico tradicional de escritura) e a cultura oriental, profundamente calcada no silêncio e na idéia de impossibilidade de transmissão linear, talvez sequer oral, de experiências

significativas

“ulteriores”,

profundas.

Resta-nos

a

transmissão

topologicamente dobrada e multívoca daquilo que a função poética do texto nos permite entrever. Esperamos um dia poder checar o funcionamento de tal afirmação para uma outra tríade semelhante: Mallarmé, Hegel, e pensamento oriental especialmente taoísta.

7

LORCA, Frederico García, ROMANCE DA LUA, LUA in ROMANCEIRO GITANO, p. 17

d) BIBLIOGRAFIA

DERRIDA, Jacques, GRAMATOLOGIA GREIMAS, Algirdas J., SEMÂNTICA ESTRUTURAL – Pesquisa de Método JUNG, Carl Gustav, Prefácio ao I Ching in PSICOLOGIA e RELIGIÃO ORIENTAL LAO-TSE, TAO TE CHING, tradução e notas de Huberto Rohden, 18ª ed, São Paulo, Martin Claret, 1997. LAO-TZU, TAO TE KING, O Livro do Sentido e da Vida, texto e comentário de Richard Wilhelm, São Paulo, Pensamento, s.d. LORCA, Frederico García, ROMACEIRO GITANO e outros poemas PEIRCE, Charles S., SEMIÓTICA

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