ARTIGO 1: Política, Retórica e Imaginação Social em Tucídides - Ensaio sobre o controle do imaginário por meio das figuras retóricas no Diálogo de Melos - Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006.

July 5, 2017 | Autor: Daniel Barbo | Categoria: Historia Cultural, Retorica, Tucídides, Imaginação social
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Ciência&Conhecimento

Belo Horizonte

v. 2 n. 7 p. 1-251

maio/2006

MISSÃO "Contribuir para o desenvolvimento do País e para a construção da cidadania, formando profissionais capacitados e atualizados, promovendo a ciência e a cultura e participando ativamente do processo de melhoria de vida da população".

VALORES Respeito Comprometimento Transparência Responsabilidade social

CIÊNCIA & CONHECIMENTO Publicação semestral da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte e do Faculdade de Educação Tecnológica Estácio de Sá de Belo Horizonte. Ano 2, n. 6, novembro de 2005 Conselho Editorial Antônio Jorge Fernandes Carlos Alberto Teixeira de Oliveira Carlos Henrique Diniz Cláudio Gontijo José Otávio Aguiar Luciana de Oliveira Luciano Oliveira Martim Júnior Luiz Carlos Sizenando Silva Maria Lúcia Ferreira Mauro Santos Ferreira Paulo Eduardo Rocha Brant Paulo Vitor de Lara Resende Rúbio Andrade

Diretor Geral Carlos Alberto Teixeira de Oliveira Diretor Acadêmico Rúbio de Andrade Diretor Administrativo-Financeiro Estevão Rocha Fiúza Coordenadores de Curso Adriano Mendonça Joaquim; Rita de Cássia Prates Guimarães; Carlos Henrique Vasconcellos Diniz; André Everton de Freitas; Isabel Montandon Soares; José Alfredo Baracho Júnior; Letícia Alves Lins; Luiz Carlos Sizenando Silva; Margarida Maria Drummond Câmara; Carlos Alberto Santos; Matilde Meire Miranda Cadete; Paulo Emílio Silva Vaz; Paulo Antônio Peixoto Queiroga; Rita de Cássia Ribeiro.

Consultores neste número Carlos Magno Ribeiro, Daniel Sellos Durante, Fátima Aurélia Barbosa Baracho Macaroun, Hila Bernadete Silva Rodrigues, José Alfredo Baracho Júnior, José Antônio do Amaral, José Pereira da Silva Júnior, Lauro Wanderley Meller, Luciana de Oliveira, Maria Lúcia Ferreira, Paulo Emílio Silva Vaz, Rita de Cássia Prates Guimarães, Rita de Cássia Ribeiro, Roberta Oliveira de Carvalho, Rodrigo Fonseca e Rodrigues e Rosana de Figueiredo Ângelo Alves. Normalização e Ficha Catalográfica Cláudia Tenaglia Mariani Souza Paula Souza da Silva Revisão de Português José Pereira da Silva Júnior

Secretária Geral Paula Nolêto

Programação Visual Marcelo Ezequiel Alves Patricia Goursand Macedo

Bibliotecária Cláudia Tenaglia Mariani Souza Gerente Acadêmica Simone Maris Serra Duarte Coordenação Geral Centro de Pesquisa e Extensão Paulo Vitor de Lara Resende

Criação da Capa Agência Experimental de Publicidade e Propaganda Obra da Capa “Fome Zero” - criação do artista plástico Albino Amaral dos Santos, 1º lugar - Júri Técnico da UniversidArte -Arte por Toda Parte - 5ª Edição, projeto cultural de extensão da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte (Foto: Davi Martins)

Tiragem 1.000 exemplares CIÊNCIA&CONHECIMENTO / Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte / MG, v. 2, n.7, maio 2006 — Belo Horizonte: Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, 2006. ISSN 1806-194X Semestral 1. Cultura. 2. Produção acadêmica 3. Iniciação científica. 4. Ensino Superior — Periódico

SUMÁRIO Apresentação Carlos Alberto Teixeira de Oliveira ............................................................................................7 Editorial.............................................................................................................................................9 ARTIGOS Espaços Heterogêneos: um olhar sobre Guimarães Rosa e a era JK Roniere Menezes ....................................................................................................................11 Lineamentos Teóricos do Conceito de Prova no Processo Penal Bruno César Gonçalves da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 Política, Retórica e Imaginação Social em Tucídides - Ensaio sobre o controle do imaginário por meio das figuras retóricas no Diálogo de Melos Daniel Barbosa dos Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 Provas ilicitamente obtidas e o Juízo de Adequabilidade à luz do caso concreto Luciana das Graças dos Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 O Turismo Mundial, Evolução e Estratégias: o caso de Portugal António Jorge Fernandes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 Um Universo Musical bem Bachiano: Diversidade Cultural e Diálogos Musicais nas Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos (1930-1945) Loque Arcanjo Jr. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 O Homem e o Meio Natural nas Minas Gerais durante o Período Colonial Leandro Pena Catão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 A Imagem do Profissional de RH no Interior da Empresa Ivan Moreira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 As Raízes do Futebol na Capital Mineira Marilita Aparecida Arantes Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 Sistematização da Constituição do Estado de Minas Gerais: pesquisa realizada com apoio do Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão - CEPE da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte Fátima Aurélia Baracho Macaroun, Denise de Carvalho Falcão, Leonardo Goulart Pimenta e alunos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193 Prevalência de Verminoses Gastrintestinais em crianças do Município de Catuji - MG Zenon Rodríguez Batista e Bráulio R.G. M. Couto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 Diagnóstico da Oferta de Serviços de Lazer nos Hotéis da região Central de Belo Horizonte - MG Hilton Fabiano Boaventura Serejo, Daniel Braga Hübner e José Otávio Aguiar . . . . . . . . . 227 REGRAS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA CIÊNCIA&CONHECIMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249

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APRESENTAÇÃO Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, no cumprimento de sua missão de promover a ciência e a cultura, e contribuir ativamente para o processo de melhoria sócioeconômica da população, está colocando à disposição dos meios acadêmicos, intelectuais e científicos e dos estudiosos das Ciências Sociais, através do Centro de Pesquisa e Extensão, o 7º número da Revista Ciência & Conhecimento, mais rico e abrangente que as edições anteriores, não apenas nas informações e análises de temas sociais variados, como também no seu conteúdo técnico-científico, pedagógico, cultural e dogmático.

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Acostumados com a leitura da Revista Ciência e Conhecimento, pela variedade dos temas analisados com profundidade científica e colocados à discussão pelos seus autores, os caros leitores, cujo nível intelectual é um privilégio de poucos, vão verificar que esta nova edição traz valiosas contribuições ao desenvolvimento dos estudos e pesquisas na área das ciências sociais aplicadas. Um documento de consulta e análise permanente, com uma peculiaridade: todos os trabalhos são inéditos, envolvendo diversas áreas do conhecimento técnico-científico, de comprovada relevância e qualidade, que passaram por criteriosa avaliação do Conselho Consultivo, antes de serem enviados ao Conselho Editorial da Revista. Outra característica desta edição reside na variedade dos temas abordados, tais como a análise dos caminhos percorridos por Guimarães Rosa e Juscelino Kubitschek, o conceito de prova no processo penal, a retórica de Tucídides, a obtenção de provas por meios ilícitos, a evolução do turismo mundial, o diálogo musical nas bachianas de Vila Lobos, o meio natural do homem na Minas Colonial, a imagem do profissional de RH na empresa, raízes do futebol em Minas, pesquisa sobre a sistematização da Constituição do Estado de Minas Gerais, estudo de incidência de verminoses no interior e, finalmente, o diagnóstico da oferta de serviços e lazer nos hotéis de BH. Escusado seria ressaltar o aspecto fundamental da orientação editorial da Revista, qual seja a total e completa liberdade que o autor ou autores das colaborações sempre têm para manifestar livremente seu pensamento, analisar os temas colocados à discussão e apresentar conclusões. Em nome da direção da Faculdade, apresentamos aos autores os nossos aplausos por mais esta contribuição ao desenvolvimento dos estudos e pesquisas nesta área específica de grande importância para a evolução do conhecimento humano.

Carlos Alberto Teixeira de Oliveira Diretor Geral

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EDITORIAL m importante aspecto da produção do conhecimento na universidade consiste no intercâmbio entre as diversas instituições de ensino superior como forma de divulgar os seus valores e as suas metas educacionais. Por isso, apresentamos com orgulho o presente número de Ciência&Conhecimento, que conta com a participação de vários autores da comunidade acadêmica externa à Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, além dos nossos colaboradores internos, professores, alunos e pesquisadores comprometidos com a construção de um saber com notória competência acadêmica.

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Reafirmar certos compromissos como o da excelência universitária, num momento crítico como o vivido atualmente pelo ensino superior privado no Brasil, é tarefa indispensável para nós. Por um lado, assistimos a quadros de inadimplência, concorrência acirrada e, por outro, a enlevados debates sobre a ética na universidade privada, levados a termo por entidades representativas do setor, especialmente pela Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior (ABMES). O que se depreende é que muitos são os desafios que se desenham no horizonte. Mas também que, mais do que nunca, o papel das universidades privadas se faz capital para os rumos do desenvolvimento de nosso país. Depois de atravessar diversos tipos de cenário desde a sua criação, a Revista Ciência&Conhecimento segue a sua publicação regular, demonstrando que a sua missão de divulgação técnico-científica não pode parar frente a problemas conjunturais nem tão pouco ser influenciada por contingências que estão fora do âmbito da produção de conhecimento. Reafirmamos, pois, o nosso compromisso com a construção e a divulgação responsáveis do saber técnico-científico.

Conselho Editorial Antônio Jorge Fernandes - Universidade de Aveiro - Portugal Carlos Alberto T. de Oliveira -Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte Carlos Henrique Diniz - Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte Cláudio Gontijo - Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte José Otávio Aguiar - Universidade Federal de Campina Grande-PB Luciana de Oliveira - Faculdade Estácio de Sá Belo de Horizonte Luciano Oliveira Martim Júnior - Mestre em Materiais Odontológicos pela UFMG Luiz Carlos Sizenando Silva - Faculdade Estácio de Sá Belo de Horizonte Maria Lúcia Ferreira - Faculdade Estácio de Sá Belo de Horizonte Mauro Santos Ferreira - Secretário Municipal de Administração e Recursos Humanos Paulo Eduardo Rocha Brant - Diretor da área de Operações do BDMG Paulo Vítor de Lara Resende - Faculdade Estácio de Sá Belo de Horizonte Rúbio Andrade -Faculdade Estácio de Sá Belo de Horizonte

Espaços Heterogêneos: um olhar sobre Guimarães Rosa e a era JK

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Roniere Menezes*

Resumo: Este trabalho busca estabelecer um paralelo entre o discurso da literatura rosiana e o discurso do período desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek. Procuraremos mostrar como a obra de Guimarães Rosa pode, por vias oblíquas, invertidas, ampliar nosso conhecimento histórico do Brasil contemporâneo. Em 1956, JK toma posse como presidente do país e Guimarães Rosa lança obras que revolucionarão a literatura e a cultura brasileira. As novelas de Corpo de Baile iluminam espaços diferenciais do país em relação ao hegemônico e triunfal projeto tecnológico empreendido pelo governo federal. Na perspectiva de ampliar as propostas de uma modernidade estética e política, os textos mostram uma heterogeneidade espacial ausente no discurso estatal. Há nos livros uma tentativa de "salvar", de dar uma sobrevida àquilo que poderia se perder no processo de modernização brasileiro. As catalogações, as séries, os inventários rosianos sendo colocados em diálogo com o contexto histórico de sua publicação, momento em que a produção em série ganha mais fôlego no Brasil e na América Latina, mostram-nos, ao mesmo tempo, uma linha poética inovadora e um posicionamento ecológico e cultural que antecedem um novo modo de intervenção política na sociedade. Palavras-chave: JK, Guimarães Rosa, espaço, política, literatura, cultura, modernidade tardia, fauna, flora, sertanejo, sertão, série, inventário, invenção. Abstract: This work seeks to establish a parallel between Guimarães Rosa literature speech and the speech of the development of Juscelino Kubitscheck time. We will try to show how Rosa' s handwriting can in another way, reversed, to enlarge our historical knowledge about Brazil contemporary. In 1956 JK takes office as president of the country and Guimarães Rosa issues works which will revolutionize the brazilian literature and culture. The novels Corpo de baile lit differential spaces of the country in relation with the hegemonical and triumphal technologic project that was done by the Federal Government. * Professor da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte

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In order to broaden the purpose for a modern esthetics and politics the texts show up a space dissimilarity that is absent on the state speech there is on the books a trying to save, giving an overline for everything that could lose in the modern brazilian process. The catalogues, the series, and the stock-taking by Guimarães Rosa's literature are being placed in dialogues with the historical context of his publication. This is the moment when a serie production wins a kind of breath in Brazil and Latin America. At the same time they show us an innovating and poetical line, an ecological and cultural position in advance to a new way of political intervention in society. Keywords: JK, Guimarães Rosa, space, politics, literature, culture, late modernity, fauna, flora, inlander, serie, stock-taking, invention. “Queria libertar o homem (...) devolver-lhe a vida em sua forma original”. Guimarães Rosa

Em 2006, comemoram-se os cinqüenta anos do início do governo JK e da publicação de dois livros de Guimarães Rosa: o romance Grande sertão: veredas e as novelas de Corpo de Baile. Posteriormente, elas foram divididas em três volumes: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá no Pinhém, e Noites do Sertão. Em 1956, Juscelino Kubitschek lançou o seu ambicioso Programa de Metas e Guimarães Rosa, as obras que lhe dariam o lugar de maior nome da literatura brasileira em prosa do século XX, principalmente pelo livro Grande sertão. Em uma breve analogia entre os trajetos e projetos de vida desse dois médicos mineiros, é bom lembrar que Juscelino Kubitschek e João Guimarães Rosa estudaram na mesma escola de medicina, trabalharam como médicos na Força Pública de Minas, durante a Revolução Constitucionalista de 1932 e fizeram projetos ligados ao desbravamento do sertão para a construção de obras monumentais de arquitetura política e literária. Afonso Arinos, na saudação feita ao escritor quando de sua posse na Academia Brasileira de Letras, solenidade a que o expresidente comparece, diz que entre os dois havia “a

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condensação entre o velho e o novo, a construção de cidades, do ponto de vista literal e imaginário, assim como a exploração dos grandes espaços inexplorados do sertão literário e do território central do país” (SOUZA, 2002). Situada entre o suicídio de Vargas, agosto de 1954, e a renúncia de Jânio Quadros, agosto de 1961, a era JK é uma época extremamente marcante e rica, é um tempo de invenção que chega ao país nos campos da política, das artes, da arquitetura, da cultura, do esporte, etc. Esse também é o momento em que a vontade hegemônica, racionalizante e estratégica da modernidade começa a adentrar-se de fato em território nacional. Nessa época, temporalidades e espacialidades distintas sofrem uma espécie de tensão inaugural; o imaginário é reelaborado e “outras estórias” passam a ser escritas. Os chamados “anos dourados” podem ser vistos, portanto, como representantes singulares da chegada da modernidade tardia ao Brasil. O moderno tardio está vinculado, no Brasil e na América Latina, a um campo de sentido em que a industrialização, a abertura comercial, os meios de comunicação de massa, entre outros fatores, irão contribuir para a formação de novas construções identitárias e um novo imaginário social. Em sociedades como a brasileira, a idéia de modernidade surge antes do processo de modernização e tentativas de modernização chegam a ocorrer sem que haja incorporação dos valores, princípios e escolhas da idéia de modernidade (STARLING, 1999, p.21). No governo Kubitscheck, a modernidade aparecia como figura que devia controlar a modernização (GORELIK, 1999, p. 67-68). Desde a

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construção da Pampulha, e mais fortemente a de Brasília, está muito claro que o objetivo do político era o de fazer uma associação entre a noção de moderno e o modelo de desenvolvimento. Mas essa idéia abstrata precisava ser “encarnada” sob signos concretos, numa espécie de “populismo democrático”, para que o todo da população percebesse o fluxo desenvolvimentista e modernizante que tomava conta do país. Era importante que, assim, se alterassem costumes, valores, critérios, instituições tradicionais da sociedade brasileira. As artes e principalmente a arquitetura cumprem papel fundamental nesse projeto. A literatura, com o seu potencial de dizer novidades sobre acontecimentos distantes, nos permite ler pelo avesso o empreendimento tecnicizante, político e modernizador que começava a se configurar no período. Em seu projeto político, JK firma seu nome com a construção da Pampulha, no período em que fora prefeito de Belo Horizonte. Pampulha é o laboratório para Brasília: “Foi a primeira tentativa de Juscelino para dar forma ao seu projeto político – fazer brotar no Brasil, e no cenário latino americano, uma sociedade industrial urbanizada, enraizada na utopia de uma cidade modernista” (STARLING, 2002, p. 33). A mudança da capital federal para Brasília apresenta, com Niemeyer e Lúcio Costa, uma arquitetura e um planejamento urbano moderno e arrojados, inspirados em Le Corbusier mas já com uma “dicção” totalmente nacional. Porém há uma relação, às vezes tensa, entre imagens da arte e a crença em um projeto otimista de país, em um “espírito novo” (VELLOSO, 2002, p. 172).

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Nos “anos JK” há a consolidação de um público consumidor urbano e o fortalecimento dos meios de comunicação de massa e da publicidade, que iriam modificar profundamente o imaginário social do país. É nesse período que se desenvolve a indústria automobilística no Brasil e aparece um design arrojado nas artes plásticas, nos edifícios e nos automóveis. No esporte, temos a conquista da Copa do Mundo, na Suécia. Na literatura, surge o Concretismo e se consolidam as obras de João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Há também manifestações e propostas estético-ideológicas que começam a surgir e se desenvolvem nos anos seguintes: o Cinema Novo, a Bossa Nova, o Teatro Oficina, o Teatro do Oprimido, os CPC’s, etc. Passam a existir, de uma maneira interdisciplinar, novas formas de expressão artística que procuram a integração entre cultura, modernidade e desenvolvimento. No contexto internacional vivíamos os anos posteriores à Segunda Grande Guerra, os Estados Unidos tornam-se grande potência e têm uma entrada mais forte no Brasil. Na era JK, o nacionalismo apresenta-se de forma distinta daquele da era Getúlio. Entre outros fatores, enfatiza-se a abertura do país ao capital estrangeiro, o que acabou por constituir alvo de críticas por parte da esquerda. É também no período JK que se torna premente o abandono do campo e a busca pela utopia urbana, daí o inchaço dos grandes centros. As metrópoles, sintetizadas em Brasília, eram anunciadas como símbolos maiores da epopéia modernizadora nacional pela democracia liberal burguesa, representando o futuro, a potência, a conquista da ilusão; enquanto o campo associava-se à barbárie, ao atraso, ao passadismo.

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As novelas de Corpo de baile iluminam espaços diferenciais do país em relação ao hegemônico e triunfal projeto tecnológico empreendido pelo governo federal, não no sentido de se opor à modernidade e à modernização, mas na intenção de ampliar as imagens culturais e históricas do país e mostrar, através dos mapas do espaço sertanejo, uma heterogeneidade espacial ausente no discurso estatal. É sobre esses sertões gerais que iremos tratar aqui. As listas de Guimarães Rosa não devem ser vistas apenas como uma tentativa melancólica, até mesmo própria da literatura, de arquivar e colecionar nomes e coisas de um espaço que irremediavelmente se transformava, em oposição à modernidade tardia que estava surgindo. Não temos a pretensão, nesse ensaio, de propor um embate aprofundado entre o discurso literário e o político, mas de voltar nosso olhar para algumas reflexões que os textos rosianos nos propiciam quando lidos em relação ao seu contexto de recepção. Em Corpo de Baile, as listas, as séries, as catalogações evidenciam a tentativa de traduzir um mundo natural na temporalidade moderna, deixar vir à tona, ao mesmo tempo, as belezas naturais e a difícil vida do sertanejo. Podemos relacionar o trabalho intelectual de Guimarães Rosa com o de Noé, no Velho Testamento, e com o do tradutor, na perspectiva benjaminiana. Considerado como o primeiro colecionador da História, Noé “converteu o ato de recolher e agrupar todas as criaturas da terra em um antídoto conta a destrutividade do tempo e da morte” (MACIEL, 2004, p. 17). Rosa mergulha em um outro tempo, sai de sua “ordem burocrática” de diplomata para brincar/jogar com outra ordem temporal, colhê-la no seu gesto de escrita, através das palavras e do fio de seus enredos.

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Tinha a intenção de “salvar”, levar adiante uma cultura que poderia se perder com o desenvolvimento do processo de modernização. Walter Benjamim, em A tarefa do tradutor, nos diz que a tradução dá ao original uma sobrevida histórica, transportando-o para uma outra língua e uma outra cultura (BENJAMIM, 1992). Mas é importante marcar que os vastos espaços da nação não se deixam capturar, ser representados de forma fixa pelos viajantes, cientistas, literatos, cineastas, etc. Há sempre um sentido que vaza, que se torna incapturável, que se esconde nas brumas do real, nos redemoinhos do sertão. Talvez, por isso mesmo, há a insistência na descrição minuciosa, dicionarizada desse espaço escorregadio. Essas paisagens, além das fronteiras de um imaginário nacional voltado para o progresso, funcionam também, por essa dificuldade de catalogar fielmente o espaço, como metonímia de um ideário desenvolvimentista que dificilmente ganha notoriedade sem uma construção discursiva que esconde diferenças e cria ficções - e que pode tornarse, no âmbito político-econômico, desgarrado do solo real do país. As novelas de Corpo de baile funcionam como uma arca que singra pelos vales e veredas das Minas sem mar. A palavra busca o poder de presentificar e “salvar” a vida natural ali existente. Diante do “dilúvio”, da ameaça que o progresso poderia trazer à natureza e à tradição cultural, era preciso selecionar as espécies existentes, colhê-las “com a rede que não tem fios da linguagem”, de acordo com a personagem Grivo, da novela “Cara de Bronze”, de Guimarães Rosa, e “salvá-las”, replantá-las na memória deste novo tempo. Em Rosa, as séries, as enumerações, servem também como contraponto à produção em série. O que o autor quer quantificar, medir, descrever são os bichos que estão sendo mortos, a beleza da natureza e mesmo os

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sertanejos, sua situação social. O objetivo final é a preservação, a revitalização e a valorização das margens da modernidade que precisariam ser mais bem avaliadas no projeto de um novo país. Não é uma fuga para o passado, mas um diálogo entre as potencialidades presentes no espaço sertanejo – naquilo que elas podem contribuir para a modernidade que surge e para uma melhor construção, mais diversa e inclusiva, do discurso modernizante. Os cartógrafos em Rosa são personagens marginais: loucos, negros, vaqueiros, cantadores e contadores de história, crianças, mulheres, jagunços - todos pobres. Estão do lado de fora do “plano piloto” do governo federal, mas têm voz privilegiada nas obras do autor. Descartados pelo projeto político-social das modernidades tardias, ganham lugar central nas histórias narradas. Suas experiências, únicas e não seriais, é que movem a roda da narrativa rosiana. Em “Cara de Bronze”, as palavras que Grivo apreende vão mudando de nome, mas mesmo assim há uma insistência em colhê-las, em apanhá-las com a rede de seda da memória, da linguagem. É importante também chamar a atenção para os nomes estranhos, engraçados, às vezes irônicos, que revelam a astúcia e a malícia do sertanejo e também do autor. O cineasta Peter Greenaway, referindo-se a Arthur Bispo do Rosário, nos diz que a forma dos trabalhos deste artista parece “zombar um pouco com a mania dos intelectuais de catalogar tudo, de transformar o mundo em verbetes de enciclopédia” (MACIEL, 2004, p. 21). Acreditamos também que Guimarães Rosa, ao adentrar o campo do inventário, ao mesmo tempo elogia e questiona a pretensa certeza científica do trabalho de biólogos e de antropólogos. Pelo viés da literatura, ele mostra, na catalogação, o que escapa, o

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que está além das listagens, o que é incomensurável, incapturável, mostra o encantamento, a poesia das coisas. É curiosa a proximidade de alguns nomes da lista com órgãos e referências sexuais – geralmente em tom humorístico - e também a descrição do Buriti, que quebra a ordem serial que o autor vinha seguindo, já que depois de utilizar “O BURITI – palmeira grossa”, escreve: “O BURITI, sempre...”. A obsessão pela planta, algo da ordem de uma experiência individual do autor, interfere e mostra o lugar da subjetividade nas frestas da ordem que se quer transmitir. – E que árvores, afora muitas, o Grivo pôde ver? Com que pessôas de árvores êle topou? A ana-sorte. O joão-curto. (...) O angelim-macho. O angelimamargo. O joão-leite. (...) O pau-de-negro. O catinga-de-porco. (...) A chupa-ferro. O ajunta-chuva. A fêmea-de-todos. A alta-sáia. O pau-que-pensa. O sossegador. (...) O pau-mijado. (...) O BURITI – palmeira grossa. O BURITI, sempre... (...) Sensitiva-mansa. (...) Amor-do-campo-sujo. (...) Só? E os outros, que vêm logo depois? ... O juiz-de-paz. O santa-helena. (...) O barbadim. O barbadão. O cabeça-chata. (...) O bunda-de-mãe-isabel. (...) O negro-nú. (...) papai nicolau (...) páu-de-chupar, páu-pingado, (...), erva-do-diabo (...). - Dito completo? - Falta muito. Falta quase tudo. (ROSA, 1965, p. 108 a 114)

Com esta última frase, podemos notar a fadiga do inventariador, o limite a que chega e a frustração que aparece em sua tentativa de dar conta de catalogar a vegetação do sertão. Podemos associar esta noção da ausência de controle em Grivo com a perspectiva borgeana da taxonomia. Para Maria Esther Maciel, o escritor argentino Jorge Luís Borges repete, com a personagem Funes, O mesmo gesto irônico de evidenciar a insensatez e a ineficácia de toda tentativa de arquivamento ou classificação exaustiva do conhecimento e das coisas do mundo, visto que todo

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recenseamento tende, em seus limites, a revelar o caráter do que é naturalmente incontrolável e ilimitado. (MACIEL, 2004, p. 14)

Mas a luta contra a falta, contra a incompletude é que impele Grivo ao cumprimento de sua tarefa. Logo após a descrição detalhada dos vegetais, pergunta-se à personagem: “E os bichos, os bichinhos, os pássaros? (...) Seriemas gritando e correndo, ou silenciosas. Emas correndo às tontas. Seriema voando. Os anús, prêtos e brancos. A alma-de-gato. A maria-com-a-vovó, marceneira. A codorninha-buraqueira. Os joãos-de-barro, os joães-de-barro. (...) O sofrê, veredas dos Gerais avante. O benteví, por tôda a parte. Os urubús, avaros. (...) As nuvens podem jazer estranhas perspectivas. (ROSA, 1965, p. 108 a 114)

Todo trabalho taxionômico, mesmo os que almejam a imparcialidade do discurso científico, será sempre uma prática subjetiva, ligada a algo provisório. Em uma nova viagem de Grivo, em um novo passeio de Soropita, em uma nova repetição do conto do Velho Camilo, os “objetos” e a descrição já terão se alterado: “As nuvens podem jazer estranhas perspectivas”. No início de “Dão-lalalão”, a personagem Soropita está andando a cavalo, cortando o sertão, como a conduzir-nos à força da natureza, da sabedoria popular, da cultura oral. Demonstra profundo conhecimento das plantas, bichos, terras, águas e cheiros. Sabedoria que não se aprende no colégio, vem da experiência, da vivência, da interlocução. Soropita via o campo, a concha do céu, o gado nos pastos – os canaviais, o milho maduro – o nhenhar alto de um gavião – os longos resmungos da juriti jururu – a mata preta de um capão vermelho – os papagaios que passam no mole e batido vôo silencioso – um morro azul depois de morros verdes – o papelão pardo dos

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marimbondos pendurado dum galho, no cerrado – as borboletas que são indecisos pedacinhos brancos piscando-se – o rouxinol de poente ou oriente – o deslim de um riacho. (ROSA, 1984, p. 13)

Nas descrições que se pretendem objetivas, vazam as imagens poéticas, as associações metafóricas. Na citação, Soropita, através de Rosa, mostra-nos que a memória e a experiência, ao contrário do mundo grafocêntrico, do mundo intermediado pela linguagem, traz as coisas como parte de sua existência. A personagem está intimamente integrada ao mundo que descreve, faz parte dele, assim como esse mundo está nele. De acordo com Michel Foucault: Se fosse dado à experiência, no seu movimento ininterrupto, percorrer exatamente, passo por passo, o contínuo dos indivíduos, das variedades, das espécies, dos gêneros, das classes, não haveria necessidade de constituir uma ciência; as designações descritivas se generalizariam de pleno direito e a linguagem das coisas, por um movimento espontâneo, se constituiria em discurso científico. (FOUCAULT, 1995, p. 162)

Em se tratando de experiência, não podemos deixar de ressaltar as personagens Zequiel e Miguilim. Chefe Ezequiel traz em seu contra-discurso frases estranhas, feitas com a desrazão poética de quem se deixa entranhar pelos sentidos da natureza. Assim como o buriti, era um guardião atento dos mistérios e dos segredos das noites do sertão, contrário à lucidez tecnicizante das cidades. A defesa da natureza, a postura ecológica crítica tem lugar privilegiado em sua narrativa poética, onde a personagem busca catalogar a destruição de seu mundo: As pessoas mais velhas são inimigas dos meninos. Soltam e estumam cachorros, para irem matar os bichinhos assustados – o tatu que se agarra no chão dando guinchos suplicantes, os macacos que fazem artes, o coelho que mesmo até quando dorme todotempo sonha que está sendo perseguido (...). Os tamanduás se abraçavam, em sangues, para morrer. (ROSA, 1984, p. 124 e 125)

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Miguilim, menino sensível, disperso, míope, mostranos que a percepção plena traz uma sensação de deslumbramento associada à tentativa de preservar, na retina, de forma ordenada, instantes mágicos, como ocorre ao ver pela primeira vez o povoado através dos óculos de um doutor: Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutum era bonito! Agora ele sabia. (ROSA, 1984, p. 142)

Em relação à novela “Uma estória de amor”, Joana Xaviel e o Velho Camilo, contadores de histórias e cantadores, são personagens que vivem à margem do grande projeto empreendido por Manuelzão – a povoação de um lugarejo que tinha por centro a sua casa de fazenda e onde haverá uma festa para a inauguração de uma capela com sua primeira missa. Há aí, em perspectiva irônica, uma referência ao ponto inaugural da civilização brasileira, com a “primeira missa”. Os atos de fundação da capela e da comunidade da Samarra também levam-nos à imagem da construção de Brasília. Mas assim como os candangos, que, depois de construírem a cidade e desfilarem por ela em sua inauguração, foram levados para as cidades satélites, para um espaço além das linhas decisórias do poder, na inauguração da Samarra o velho Manuelzão também se espanta com os estranhos e desvalorizados objetos que a população traz para presentear a santa e também para o leilão. É a partir desse “museu alternativo”, desses cacos, “estúrdias alfaias”, representativos daqueles também pedaços de vida excluídos do processo de

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mercantilização, que Manuelzão entra em contato com a cultura local: Todos traziam, sorrateiros, o que devia ser de Deus. Ovos de gavião (...) Pedras não conhecidas (...) Um boné de oficial (...) Um patacão, pesada moeda de prata antiga. Uma grande concha, gemedora, tirada com as raízes, vinda parar ali, tão longe do mar como de uma saudade. (...) As lascas de pedra-de-amolar, uma buzina amarela de caçador (...), tudo que da folha do buriti se fabricava. E até um grosso livro de contas, todas as páginas preenchidas, a tinta descorável (...).E mais até uma mortalha de homem, de ganga roxa, que nunca servira, porque a tinham costurado com despropositada urgência, mas o corpo do defunto, afogado no rio, não se achara. (ROSA, 1984, p. 147-148)

É interessante observarmos que, na descrição dos cacos que eram ofertados, aparecem nós hipertextuais que levam a lista ao infinito: “tudo que da folha do buriti se fabricava” e um grosso livro de contas - que eleva também a potência dos itens que podem estar dentro deste objeto, “com todas as páginas preenchidas”. Borgeanamente, Guimarães Rosa insere um livro de contas na listagem. Além disso, Rosa narra, de forma resumida, em uma linha, dentro da série, a história de um corpo afogado no rio. Ao final de “Uma estória de amor: festa de Manuelzão”, podemos ver, no “Romanço do Boi Bonito”, contado pelo Velho Camilo, o abecê, em que aparecem os nomes de vários vaqueiros que tentaram capturar o boi, mas foram derrotados na luta contra o animal, “dois mil e tantos que vinham, quase todos machucados”: Antônios; Ascenço; Aroeira (...) O Bó; Birinício; Bastião, do BrejoPreto (...) Cérjo de Souza Vinagres. (...) Jordão de Tal, (...); mais de cinquenta josés! (...) Mendonço será que estava? (...) Olavo; Ogão; Olereno; e Orozimbo, separado – por ser de marca maior.(...); pedros (quarenta-e-cinco); (...) Vicente Galamarte. Xisto, velho

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topador. (Ypsilône – não tinha.) Zorô, Zé Sozinho, Zusa. (...) setenta joãos e joães! E os que não vi e não sei. (ROSA, 1984, p. 245)

Aqui, alguns designativos tentam ora ser precisos – mesmo que ironicamente – ora explicitar a imprecisão: Jordão – “de Tal”, Mendonça – “será que estava?”, Ypsilône – que deve aparecer na lista pela ordem alfabética como significante mas era carente de significado, joãos e joães – qual seria a diferença? Mas, para concluir, a frase fatal: “E os que não vi e não sei”: a lista acaba por explicitar, de forma metalingüística, aquilo a que ela se propõe, mas ao mesmo tempo não consegue. É bom pensar aqui que, assim como a fauna e a flora, cada nome apontava para um sertanejo que também estava sendo excluído do processo de modernização do país. Aparecem os deserdados, os despossuídos, todos habitando as margens da casa grande. Entre eles há histórias fantásticas, esperanças, tragédias, amores e uma vasta memória de todos os nomes das plantas e bichos. A conversa simples e sábia, a memória coletiva, o hábito, a partilha do pouco que se tem mantêm o vínculo entre estes quase-cidadãos. Mas é importante dizer que é justamente a escrita que consegue, ao menos no campo da literatura e do discurso, “salvar” esse vasto mundo do sertão. Há, nos catálogos de Rosa, ao mesmo tempo, um tom lírico, um traço irônico e um humor sutil. Há uma tensão entre o gesto do tradutor que quer salvar a memória das coisas e o do sertanejo desconfiado, crítico dos sistemas que pretendem organizar e classificar o mundo e o conhecimento. Como vimos, é forte característica de Guimarães Rosa o uso de palavras em descontinuidade com a lista. Estas

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palavras parecem cortar o fluxo racional das séries e sugerem a desconfiança do escritor frente à reprodução técnica. Ao contrário de um mundo moderno, racionalizante, simbolizado na época em Brasília, mundo em que a tecnologia, os meios de comunicação e a sociedade de consumo fundam seu lugar, Rosa traz-nos um olhar oblíquo, enviesado. Ao fazer seus inventários de forma poética, inventando novas paisagens na tentativa de catalogar a existente, Guimarães Rosa revela que são nossas incompletudes e incongruências que instigam o desejo de ordenar, catalogar, enumerar, arquivar. Assim como o escritor Jorge Luís Borges, Rosa acaba por nos mostrar, através de seus catálogos e listas, não a classificação racional do mundo, mas sim o aspecto sempre arbitrário presente em todos os sistemas taxonômicos. As longas listas talvez funcionem como uma tentativa sempre frustrada de paralisar o tempo fugaz e é bom pensar que o projeto do governo de “50 anos em 5” é justamente uma corrida contra o tempo visando ao desenvolvimento econômico. Sabemos que Brasília foi construída para contribuir com a integração nacional, a povoação e a circulação humana pelo interior do país, para dar fluxo à produção nacional. Na construção da cidade, homens de diversas partes do país pegaram a estrada rumo ao Planalto Central, deixando o espaço rural em busca de um novo espaço onde recomeçar suas vidas. Para dialogar com as listas rosianas, trazemos para a discussão um outro escritor diplomata que também escreveu suas atas poéticas, fez seus inventários sobre a era JK. Vinicius de Moraes, no poema sinfônico “Brasília, sinfonia da alvorada”, composto em parceria

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com Tom Jobim e que deveria ser executado na festa de inauguração da nova capital, faz uma contraposição entre o peso bruto do concreto e os homens sonhadores e lutadores que transformam, pelas suas mãos sem estudo e calejadas pelo trabalho no campo, o concreto em obra de arte. Vinicius cita frases de Niemeyer na letra em que a cidade é descrita, por exemplo, no trecho em que fala de um lugar “em que a arquitetura se destacasse branca, como que flutuando na imensa escuridão do planalto” (MORAES, 2004, p.1203). Aproveita-se novamente de Niemeyer para falar de uma cidade que trabalhe com alegria durante o dia e em que os homens “compreendam o valor das coisas puras”. O poeta mostra-nos a lista do material empregado na construção e, logo em seguida, faz o censo da quantidade de homens que ali empregaram suas forças e descreve a rotina do trabalho: Foi necessário muito mais que engenho, tenacidade e invenção. Foi necessário 1 milhão de metros cúbicos de concreto, e foram necessárias 100 mil toneladas de ferro redondo, e foram necessários milhares e milhares de sacos de cimento, e 500 mil metros cúbicos de areia, e 2 mil quilômetros de fios. E 1 milhão de metros cúbicos de brita foi necessário, e quatrocentos quilômetros de laminados, e toneladas e toneladas de madeira foram necessárias. E 60 mil operários! Foram necessários 60 mil trabalhadores vindos de todos os cantos da imensa pátria, sobretudo do Norte! 60 mil candangos foram necessários para desbastar, cavar, estaquear, cortar, serrar, pregar, soldar, empurrar, cimentar, aplainar, polir, erguer as brancas empenas... (MORAES, 2004, P. 1204)

O trabalho que se exigia desses homens vindos das mais diversas regiões e aglutinados no Planalto Central do país funciona como uma grande metáfora da integração nacional que agenciaria homens de diferentes raças, de diferentes sotaques e culturas, diferentes crenças na construção da nação imaginada.

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Vinícius fala da relação entre o trabalho em série e a música matemática que tenta representar no poema, esse investimento total e quantificado. Mas após as citações acima, lista-se algo imponderável, pois não mais quantificável absolutamente. Há um jogo de significantes a demonstrar a quebra da lógica que vinha seguindo o letrista: “Ah, as empenas brancas!/ Como penas brancas.../ Ah, as grandes estruturas!/ Tão leves, tão puras” (MORAES, 2004, p. 1204). As estruturas teriam sido colocadas mansamente por “mãos de anjo na terra vermelho-pungente do planalto” em meio à “música inflexível, música lancinante” do trabalho que visa ao progresso. Na parte V do poema, chegando ao final da peça, o coral canta em três vozes: “Brasília/ Brasília/ Brasília/ Brasília/ Brasília/ Brasília/ BRASIL!” (MORAES, 2004, p. 1205). É o apogeu da sinfonia. A marcação rápida e forte lembra a cidade que fora construída noite e dia, ininterruptamente e que, agora, aparece através dos substantivos que buscam ser a metonímia do desejo maior de o Brasil ser uma nação democrática, que tenha importância política e econômica e esteja presente no mapa das nações desenvolvidas do ocidente. Parece-nos que há, no texto, uma tentativa de provocar um distanciamento em relação à proposta da modernidade de promover o trabalho serial. Vinícius, assim como acontece em Rosa, utiliza-se dos instrumentais do “inimigo”, isto é, da repetição exaustiva do sistema – daquilo que sujeita o homem, que não lhe deixa tempo para a diversão, a contemplação, a fruição da vida – para criticar esse próprio sistema. As empenas/ penas brancas são asas criadas pelo poeta para fugir desse mundo ao mesmo tempo de esperança mas de perigo de sujeição. As estruturas apresentam-se como leves e puras. E aqui

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Niemeyer é novamente lembrado, com o seu interesse em construir, a partir do concreto armado, estruturas leves, arredondadas, que parecem flutuar no largo espaço do plano piloto. Nos últimos 50 anos, as cidades brasileiras tiveram uma explosão demográfica, impulsionada pelos investimentos públicos maciços nas indústrias, o que incentivou a urbanização acelerada e intensa. Muito pouco se investiu no campo. Embora ainda permanecesse como fator essencial da economia nacional, a agricultura perdeu, na década de 50, a importância econômica que possuía. Em 1956 a indústria já a havia ultrapassado, passando a ser o componente mais importante do produto nacional líquido (PNL). Tendência que se acentua durante o governo JK. Grande parte dos trabalhadores que deixaram as áreas rurais não conquistaram melhores condições de vida nas cidades, onde vivem em áreas também com muito pouco investimento público. Em 1960, a população urbana do Brasil representava 45% dos brasileiros, enquanto a rural representava 55%. Já no censo de 2000, a população urbana chegava a 81% do total. As imagens arquitetônicas, midiáticas, as inserções publicitárias no rádio, a saga da modernidade, do emprego contribuíram em muito para a saída do campo rumo à cidade. O impulso modernizador empreendido pelo Estado, na segunda metade dos anos 50, arejou o país, incentivou o surgimento de uma arte nova, indústrias foram criadas, o sistema de energia e de transporte passaram por transformações, houve mudanças estruturais na administração pública e o Brasil obteve altas taxas de crescimento econômico. Muitos

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brasileiros passaram a acreditar mais na força do país, até então visto como um “gigante adormecido”, tornando-se eles mesmos mais otimistas e confiantes em seus projetos pessoais. Mas muito ainda precisava ser feito. Neste texto, procuramos trazer um pouco dos “recados dos morros” - entre vários recados vindos de vários morros urbanos e sertanejos – que, às vezes de forma cifrada, demonstram querer ser mais ouvidos na elaboração e execução de projetos políticos. As listagens com nome de vaqueiros, bichos e plantas de Guimarães Rosa associam-se à lista dos candangos de Vinícius de Moraes. Funcionam, em Rosa, assim como vimos no poeta, como um abaixo-assinado onde todos referendam uma proposta artístico-literária que, em meados dos anos 50, além de suas inovações em matéria poética, visava fortemente resgatar e traduzir – levar adiante a resistência ecológica, a força da cultura popular e da capacidade produtiva e criativa do brasileiro frente a um mundo que se modernizava. As obras rosianas publicadas em 1956 mostram homens com uma forte experiência com a natureza, experiência que indubitavelmente estava sendo alterada, criando novas subjetividades. Os textos rosianos não visam à contraposição ao desenvolvimentismo, ao progresso, congelando o discurso em um tempo e um espaço ligados à tradição, à origem, à natureza virgem, à oralidade, etc. Nesse sentido, em várias passagens dos livros de Corpo de baile, podemos ver Rosa, pela voz das personagens, criticar certas crendices populares, a tradição conservadora, o patriarcalismo, a devastação da natureza feita pelo homem do campo, etc. A obra

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rosiana, pela própria linguagem, relacionada ao que de mais avançado se produziu na arte e na cultura mundial do século XX, não é jamais contra a modernidade, mas apenas visa ampliar o seu alcance naquilo que ela pode contribuir para libertar o homem. Os livros do escritor mineiro podem ser lidos, portanto, como uma crítica a um modo de se direcionar os esforços políticos para o progresso a qualquer custo sem levar em conta os desníveis sociais e culturais do país, além de sugerir, em forma de mapas literários desenhados por um diplomata em expedição cartográfica ao sertão brasileiro, maior cuidado com a natureza para que o país vivesse melhor também no futuro. Talvez pelo motivo de a ecologia ainda não ser um dos mais sérios problemas mundiais e a natureza tropical ser bastante rica no país, podia-se pensar que vastas florestas ainda podiam ser fartamente desmatadas, sem mesmo planejamento de sustentabilidade, abrindo assim os caminhos para a modernização. Nesse sentido, os contos que abrem e fecham o livro Primeiras Estórias, publicado em 1962, falam sobre um menino que foi com um tio ao lugar onde os homens iriam construir uma grande cidade – Brasília –, ali ele vê uma bela ave ser morta e também tratores destruindo centenárias árvores, tudo isso sem qualquer “peso na consciência”. Rosa não é jamais um autor preso ao passado, ao contrário, ele quer o futuro, mas um futuro em que as múltiplas formas de vida possam ser consideradas e valorizadas. Segundo Claudio Bojunga, Grande sertão: veredas e Morte e vida severina, do outro diplomata João Cabral de Melo Neto, livro também de 1956, “encerram a confluência do nativismo com a modernidade”. Acrescentaríamos aí as novelas de Corpo de baile. Os autores relacionam-se ao que de melhor se fazia na época em termos de pesquisa, renovação e consciência artesanal aliadas ao discurso artístico-literário. Para Bojunga, Guimarães Rosa, em “seu ataque à norma lingüística, desfechado

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no limiar do período jusceliniano, deu nova e moderna dimensão à memória brasileira, abolindo a expressão exótica do passado em nome de semântica tão original como a arquitetura de Oscar” (BOJUNGA, 2001, p. 468). Acreditamos que as assinaturas dispostas em listas dão mais vida ao conjunto da obra rosiana. São esses nomes de homens, bichos e plantas, essas garatujas, esses rabiscos que desejam, pela força de seu conjunto, ter mais voz, maior reconhecimento, serem “salvos”, pois em sua “sabedoria” intuitiva e radical são imprescindíveis não apenas à ordem técnica do progresso, mas também à desordem criativa da vida. REFERÊNCIAS BENJAMIM, Walter. A tarefa do tradutor. BARCK, Karlheinz (trad.). Rio de Janeiro: UERJ, 1992. BENJAMIM, Walter. Desempacotando minha biblioteca. Rua de mão única – obras escolhidas II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987. BENJAMIM, Walter. Sobre o conceito da História. Rua de mão única - obras escolhidas, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1989. BOJUNGA, Cláudio. JK, o artista do impossível. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. BORGES, Jorge Luís. Obras completas (4 volumes). Rio de Janeiro: Globo, 1999. DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. Cotia, SP: Ateliê Editorial; São Paulo: Editora SENAC, 2003. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus. São Paulo: Martins Fontes, 1995. GORELIK, Adrián. “O moderno em debate: cidade, modernidade, modernização”. In: MELO MIRANDA, Wander (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. MORAES, Vinícius de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. ROSA, João Guimarães. Noites do sertão. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1984.

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Lineamentos Teóricos do Conceito de Prova no Processo Penal

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Lineamentos Teóricos do Conceito de Prova no Processo Penal Bruno César Gonçalves da Silva*

Resumo: O presente artigo apresenta os lineamentos teóricos do conceito de prova no processo penal, abordando as categorias que integram o referido instituto, quais sejam: elemento, meio e instrumento de prova. Palavras-chave: Prova, elemento de prova, meio de prova, instrumento de prova, processo penal. Abstract: The present article presents the theoretical lines of the concept of evidence in the criminal proceeding, approaching the categories that integrate the cited institute, which are: element, instrument and way of evidence. Keywords: evidence, element of evidence, way of evidence, instrument of evidence, criminal proceeding.

1. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA Necessário se faz apresentar alguns lineamentos acerca da Teoria da Prova, pois, conforme advertência de Ruiz Vadillo, “los problemas respecto a la teoria general de la prueba son muchos y no fáciles de solucionar” 1 (RUIZ VADILLO, 1993, p. 106). Em virtude desses problemas, encontra-se certo casuísmo no trato da matéria por parte da doutrina, que, ao discorrer sobre o tema, não busca analisar o instituto da prova em bases teóricas, restringindo-se a análises estritamente dogmáticas, abdicando-se de abordar as categorias que o integram e constituem, cujo conhecimento é imprescindível para ulterior abordagem de sua disciplina.

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*Especialista em Direito Penal - Professor da Faculdade Estácio de Sá. "os problemas teoria geral da muitos e não solucionar". nossa)

1

relativos à prova são fáceis de (Tradução

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Trazendo à colação a lição de Mittermaier (1997, p. 55), registre-se que este considera a prova como a resultante da soma dos motivos geradores da certeza. Manzini (1996), redator principal e quase único do Código de Processo Penal italiano de 19302, que se constituiu como referencial legislativo para a elaboração do Código de Processo Penal brasileiro ainda em vigor, é autor que em virtude disso influenciou, em muito, a doutrina processual penal brasileira em vários aspectos. Ao conceituar prova, afirma este autor que: Neste sentido, cf.: ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO (1996, t. I, p. IX). 2

3 "A prova é a atividade processual imediatamente dirigida ao objetivo de obter a certeza judicial, segundo o critério da verdade real acerca da imputação ou de outra afirmação ou negação que interesse a uma providência do juiz. A lei processual penal utiliza-se por demais do termo prova, não só no sentido expressado, mas às vezes também para indicar os meios de comprovação ou os conseguidos com o emprego desses meios." (Tradução nossa)

4 "Chamamos 'instrução' a tudo o que se refira à prova; e atendo-nos à etimologia, esta última palavra evoca um exame ou uma seleção; os processos são máquinas retrospectivas; com efeito, formuladas várias hipóteses históricas pelos contendores, é mister verificá-las. As provas são os materiais sobre os quais se leva a cabo essa tarefa: expressões orais corpora delicti, documentos, impressões digitais, etc." (Tradução e grifo nossos)

La prueba es la actividad procesal inmediatamente dirigida al objeto de obtener la certeza judicial, según el critério de la verdad real acerca de la imputación o de outra afirmación o negación que interesse a una providencia del juez. La ley procesal penal usa por lo demás del término de prueba, no solo en el sentido expresado, sino a veces también para indicar los médios de comprobación o los conseguidos con el empleo de esos médios.3 (MANZINI, 1996, v. III, p. 197-198.)

Cordero (2000, v. II), por sua vez, afirma que: Llamamos ‘instrucción’ todo lo que se refiere a la prueba; y ateniéndonos a la etimologia, esta última palabra evoca un examen o una selección; los procesos son máquinas retrospectivas; en efecto, formuladas varias hipótesis históricas por los contendores, es menester verificarlas. Las pruebas son los materiales sobre los cuales se lleva a cabo esa tarea: expresiones orales corpora delicti, documentos, huellas dactilares, etc.4 (CORDERO, 2000, v. II, p. 3.) (Grifos nossos.)

Sentís Melendo (1976, p. 94), procurando estabelecer “o que é a prova”, afirma “que prova é verificação”, e que essa verificação recairia sobre as alegações e afirmações produzidas em relação aos fatos5.

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Na doutrina brasileira Marques (1997, v. II) considera que: A demonstração dos fatos em que assenta a acusação e daquilo que o réu alega em sua defesa é o que constitui a prova. (...) A prova é, assim, elemento instrumental para que as partes influam na convicção do juiz e o meio de que este se serve para a averiguar sobre os fatos em que as partes fundamentam suas alegações. (MARQUES, 1997, v. II, p. 253)

Há também vários outros doutrinadores brasileiros que buscaram, a seu modo, conceituar o instituto da prova, mas o que parece ser traço comum entre os autores até aqui citados é que estes acabam por não realizar uma análise teórico-analítica do instituto em questão6. Manzini, por exemplo, chega a ponto de afirmar que “la distinción entre fuentes, medios y elementos de prueba no tiene importância científica esencial, y prácticamente no tiene ninguna” 7 (MANZINI, 1996, v. III, p. 208) As variações e insuficiências dos conceitos expostos provavelmente se devem à enorme complexidade que o tema comporta, vez que por este instituto pretendese: “representar e demonstrar os elementos da realidade objetiva pelos meios intelectivos autorizados em lei” (LEAL, 2004, p. 178), fixando-os nos autos do processo e tendo-os como base para todo e qualquer provimento jurisdicional.

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No particular aspecto do objeto da prova, parece acertada a posição de Sentís Melendo (1976, p. 94.) No mesmo sentido é também o entendimento de Grinover; Dinamarco; Araújo Cintra (2003, p. 350).

5

Neste sentido cf. Tourinho Filho (2003, p. 476): "Que se entende por prova? Provar é, antes de mais nada, estabelecer a existência da verdade; e as provas são os meios pelos quais se procura estabelecêla. Entendem-se, também, por prova, de ordinário, os elementos produzidos pelas partes ou pelo próprio Juiz visando a estabelecer, dentro do processo, a existência de certos fatos. É o instrumento de verificação do thema probandum". Cf. também: Mirabete (2004 p. 256): "Essa demonstração que deve gerar no juiz a convicção de que necessita para seu pronunciamento é o que constitui prova."; e, finalmente, cf. Grinover; Dinamarco; Araújo Cintra (2003, p. 347): "a prova constitui, pois, o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos controvertidos no processo".

6

"a distinção entre fontes, meios e elementos de prova não tem importância científica essencial, e praticamente não tem nenhuma." (Tradução nossa).

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2. ESTRUTURA ANALÍTICA DA PROVA O instituto jurídico da prova, segundo Leal (2004, p. 181-182), é constituído da articulação entre as categorias do elemento de prova, meio de prova e do instrumento de prova, que são os aspectos de sua configuração teórica. Caso não se verifique, no momento de produção da prova, a incidência dessas categorias, não se pode afirmar a configuração, ao menos no sentido jurídicoprocessual, pois esta resulta do concurso das referidas categorias e tal deve ocorrer segundo a disciplina inferida das normas processuais. A categoria do elemento de prova refere-se aos dados da realidade objetiva, existentes na dimensão do espaço, concernente ao ato, fato, coisa ou pessoa, tal como um cadáver ou um elemento qualquer existente na faticidade (LEAL, 2004, p. 178). Um elemento de prova, por si só, não é prova nem possui aptidão para contribuir na formação da cognitio; pois, apenas após a obtenção deste elemento por meio de prova lícita e legal e de sua fixação nos autos do processo pelo instrumento de prova, é que se tem prova em sentido jurídico-processual, sendo que somente esta é idônea à formação da cognitio. O meio de prova é a categoria que disciplina a obtenção dos elementos de prova. É através dessa categoria que se realiza a captação/apreensão dos dados da realidade objetiva para sua introdução no processo.

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No processo penal brasileiro destacam-se como meios de prova, regulados pelo Código de Processo Penal (CPP): o Interrogatório8, disciplinado nos art. 185 ao 196, dispositivos que foram recentemente alterados pela Lei n.º 10.792/03; a Acareação, prevista nos arts. 229 e 230; o Depoimento do Ofendido, disposto no art. 201, e o das Testemunhas, disposto nos arts. 202 ao 225; a Perícia9, constante dos arts. 158 ao 184; o Reconhecimento de Pessoas e Coisas, regulado nos arts. 226, 227 e 228; e a Busca e Apreensão reguladas nos arts. 240 ao 250 do CPP. Na legislação especial, Lei n.º 9.034/95, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, encontram-se alguns meios de prova ali definidos e regulamentados, tais como: a utilização de ações controladas, que consiste em retardar-se a intervenção policial, mantendo-se acompanhamento e controle da ação praticada pelo que se supõe ser organização criminosa para concretização da medida legal, no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações (art. 2º, II); o acesso aos dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais, mediante autorização do juiz (art. 2º, III); a captação e interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, bem como seu registro e análise, mediante autorização judicial (art. 2º, IV); e, finalmente, a problemática utilização de agentes infiltrados (art. 2º, V)10. Na Lei n.º 9.296/96, encontra-se a regulamentação do inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando a interceptação de comunicações telefônicas como meio de prova para instruir a investigação criminal ou a instrução processual.

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8 O Interrogatório também encontra disciplina específica na legislação especial, como, por exemplo, ocorre na Lei n.º 10.409/02, que alterou o procedimento para os crimes tipificados na Lei n.º 6.368/76 (Lei de Tóxicos) e na Lei n.º 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais), que trata do procedimento para as infrações penais de menor potencial ofensivo. Sobre este ponto cf.: Haddad (2000).

A Perícia também apresenta, em alguns casos, disciplina especificamente prevista na legislação especial, distinta da estritamente estabelecida no Código de Processo Penal, como ocorre na Lei n.º 10.409/02, acima citada, e também na Lei n.º 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), por exemplo.

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Incisos IV e V acrescentados pela Lei nº 10.217, de 11 de abril de 2001.

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Na Lei Complementar nº 105/01, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras, encontra-se a previsão, como meio de prova, da quebra de sigilo prevista em seu art. 1º, § 4º. E, ainda, na Lei n.º 10.409/02 que revogou parcialmente a antiga Lei n.º 6.368/76, denominada Lei de Tóxicos, encontra-se a previsão dos seguintes meios de prova: agentes infiltrados (art. 33, I); ação retardada da autoridade policial (art. 33, II); acesso aos dados, documentos e informações fiscais, bancárias, patrimoniais e financeiras (art. 34, I); colocação sob vigilância das contas bancárias (art. 34, II); acesso aos sistemas informatizados das instituições financeiras (art. 34, III); e a interceptação e gravação das comunicações telefônicas (art. 34, IV). Diferenciar o meio de prova das demais categorias, que integram o instituto da prova é imprescindível para que seja possível desconstituir-se a noção equívoca compartilhada pela doutrina11 ao utilizar o termo “prova ilícita”, pois não se tem, a rigor, “prova ilícita”, mas sim prova obtida por meio ilícito12. (Grifos nossos)

A este propósito cf.: Fregadolli (1998, p. 177); Mendonça (2004, p. 31); e, Fernandes (2002, p. 85), entre outros.

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Cf.: BRASIL. Constituição Federal. "Art. 5º, inciso LVI: são inadmis-síveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos". A prova não é ilícita, é sim inadmissível em face da ilicitude do meio empregado.

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A restrição constitucional à obtenção do elemento de prova faz-se necessária em uma ordem democrática, vez que “a busca obsessiva da certeza há de se conter, em Direito, nos limites dos meios de obtenção da prova legalmente permitidos. A existência do elemento de prova, ainda que de certeza inegável, não autoriza, por si mesma, a coleta da prova contra-legem” (LEAL, 2004, p. 182). No dizer de Dias (2004, v. I, p. 197), “a legalidade dos meios de prova, bem como as regras gerais de produção da prova (...) são condições de validade processual da prova e, por isso mesmo, critérios da própria verdade material” (Grifo do autor).

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Após a obtenção do elemento de prova por meio lícito e legalmente permitido, tem-se ainda que o fixar nos autos de processo. Para tanto se faz necessária a utilização da categoria do instrumento de prova, que se destina a materializar de modo gráfico-formal os elementos obtidos. A esse propósito Leal (2004) assim exemplifica: Pelo instituto da perícia judicial que, como meio de prova autorizado em lei, há de se fazer, através de perito, pela coleta intelectiva de elementos de prova existentes na realidade objetiva, sendo que o laudo é o instrumento (documento) expositivo do trabalho realizado. (LEAL, 2004, p. 178) (Grifos do autor)

Outro exemplo poderia ser o da realização do Interrogatório Judicial, que constitui um meio de prova, no qual é possível obter-se a Confissão, considerada um elemento de prova, restando esta registrada e fixada nos autos do processo pela formalização do Termo de Interrogatório, que é o instrumento de prova. Ou ainda, a realização de Audiência de Instrução, que é o meio de prova para obtenção do Testemunho, sendo esse o elemento de prova que resta fixado nos autos do processo pela lavratura do termo de Depoimento de Testemunha. A prova em sentido jurídico-processual deve ser compreendida como a resultante da extração na faticidade dos elementos de prova pelos meios legalmente previstos, formalizados nos instrumentos que os fixam aos autos do procedimento, servindo de base para a formação da cognitio. “Provar em direito é representar e demonstrar, instrumentando, os elementos de prova pelos meios de prova.” (LEAL, 2001, p. 182) (Grifo do autor)

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3. CONCLUSÃO Após essa sintética exposição a respeito da teoria da prova, o presente estudo nos permite extrair algumas conclusões, como as descritas a seguir: a) Prova, em sentido jurídico processual, é categoria abstrata, resultante da atividade intelectiva de inferência no instrumento de prova do elemento de prova fixado no mesmo, após sua obtenção por meio lícito, visando orientar a formação da cognitio. b) Meio de prova é, entre as categorias integrantes do instituto jurídico da prova, aquela sob a qual deve recair a análise da licitude/ilicitude da obtenção dos elementos de prova, justamente por ser a categoria que disciplina a captação/apreensão dos referidos elementos. REFERÊNCIAS ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO, Niceto. Vicenzo Manzini – Nota bibliográfica. In: MANZINI, Vicenzo. Tratado de derecho procesal penal. Trad. Santiago Sentís Melendo e Mariano Ayerra Redín. Buenos Aires: El Foro, 1996, v. I. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). In: Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2004. CORDERO, Franco. Procedimento penal. Trad. Jorge Guerrero. Santa Fé de Bogotá: Temis, 2000, v. II. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra, 2004, v. I. FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. FREGADOLLI, Luciana. O direito à intimidade e a prova ilícita. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Teoria geral do processo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O interrogatório no processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo – Primeiros estudos. 5. ed., rev. e ampl. São Paulo: Thomson-IOB, 2004.

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Política, Retórica e Imaginação Social em Tucídides

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Política, Retórica e Imaginação Social em Tucídides Ensaio sobre o controle do imaginário por meio das figuras retóricas no Diálogo de Melos Daniel Barbosa dos Santos *

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar as repercussões das figuras retóricas em um pequeno trecho da História da Guerra do Peloponeso de Tucídides: o Diálogo de Melos. Mostraremos as relações entre o conteúdo retórico desse diálogo e a política externa do império ateniense, verificando o controle efetivo do imaginário social decorrente desta política. Palavras-chave: política, retórica, imaginação social. Abstract: This article intends to analyse the repercussions of the rhetorical figures on a tiny passage of the History of the Peloponesian War by Thucydides: the Dialogue of Melos. We shall show the relations between the rhetorical contents of this dialogue and the athenian empire´s external politics, verifying the effective control of the social imaginary resulting from that politics. Keywords: politics, rhetoric, social imaginary.

Da excepcional mutação intelectual que fez surgir as instituições da pólis grega – a elaboração de uma nova imagem da sociedade humana –, evidenciaremos o significado fundamental que passou a representar o logos ( ), a palavra escrita ou falada, na racionalização e dessacralização das relações políticas. No mundo micênico e nos reinos do oriente próximo, a escrita era a especialidade e o privilégio dos escribas, espécie de funcionários da administração real que

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Mestre e doutorando em História (UFMG). Professor substituto da disciplina História Antiga da Universidade Federal de Minas Gerais.

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contabilizavam a economia e controlavam a vida social do estado. Essa escrita visava constituir os arquivos mais ou menos secretos dos palácios reais. Nos quadros das instituições da pólis, essa função da escrita altera-se radicalmente: aí, não é mais o privilégio de uma casta, nem o segredo de uma classe de escribas trabalhando para o soberano, mas torna-se um elemento de ta koina, as coisas públicas, um instrumento de publicidade. Doravante, tudo o que interessa à comunidade tende a cair no domínio público por meio da escrita. Daí que as regras do jogo político vão pressupor, inevitavelmente, o livre debate, a discussão pública, a argumentação contraditória – os cidadãos regulamentarão os negócios da cidade ao termo de um debate público em que cada um pode intervir livremente para desenvolver seus argumentos. Nesses debates públicos, o logos não exprime simplesmente os discursos pronunciados, mas também, e espetacularmente, a faculdade de argumentar que define o homem como ser dotado de razão, como “animal político” (VERNANT, 1973, p. 160-162). A palavra torna-se o instrumento político por excelência, com extraordinária preeminência sobre todos os outros instrumentos do poder criados pela pólis. A esse poder da palavra, os gregos associarão uma força divina própria – a força da persuasão (peiqw) E esse novo poder da palavra não reside mais no caráter ritual, mas na nova dimensão instaurada pela racionalidade, supõe um público ao qual ela se dirige como a um juiz que decide em última instância, de mãos erguidas, entre os dois partidos que lhe são apresentados; é essa escolha puramente humana que mede a força de persuasão respectiva dos dois discursos, assegurando a vitória de um dos oradores sobre seu adversário. (VERNANT, 1986, p. 34-35)

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A função política do logos adquire toda a sua eficácia quando a retórica e a sofística empreendem a análise das formas do discurso como instrumento de vitória nas lutas da Assembléia e dos tribunais (VERNANT, 1986, p. 35). Como professores profissionais de retórica, os sofistas facilmente encontravam uma audiência pronta na turbulenta democracia ateniense e ajudavam àqueles que apresentavam mais persuasivamente seus próprios argumentos a tirar vantagens do agnosticismo moral predominante. O programa dos sofistas, em grande medida, contava com técnicas para dispor argumentos contrários a respeito de questões públicas, com a suposta implicação de que ambos os lados poderiam ser sustentados com igual segurança (JONSEN; TOULMIN, 1988, p. 58-74). O que se pretende mostrar nesse artigo são as “inversões de atitudes provocadas pelo poder do verbo e pela sua capacidade de influenciar as decisões e práticas coletivas” (BACZKO, 1985, p. 300), proporcionadas pelo discurso retórico dos atenienses durante o seu imperialismo no século V a.C., conforme a História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides. Segundo Baczko, “com o advento da democracia, a assembléia deixa de ser um lugar onde se exercem os ritos e onde são reproduzidos os mitos, para se tornar lugar de deliberação e confronto de rivais que visam tanto ao poder efetivo como ao controlo dos símbolos” (BACZKO, 1985, p. 300). Mas o que é a imaginação social? Na perspectiva de Baczko, esta não se confunde com o ilusório, não é uma simples faculdade produtora de ilusões, sonhos e

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símbolos. A imaginação social é, grosso modo, uma criadora, uma potencializadora (ou neutralizadora) de ações sociais. As ações sociais são efetivamente guiadas pelo sistema de representações que cada sociedade produz. Elas modelam comportamentos, mobilizam energias e legitimam violências. A imaginação social é um fenômeno ao qual competem funções reais múltiplas e complexas na vida coletiva e, em especial, no exercício do poder. Para o poder, o domínio do imaginário e do simbólico é um importante lugar estratégico. Portanto, o imaginário social intervém em qualquer exercício de poder, principalmente do poder político. Exercer um poder simbólico significa criar ou intensificar uma dominação efetiva pela apropriação dos símbolos e garantir a obediência pela conjugação das relações de sentido e poderio.2 Diz-nos esse historiador do imaginário social que “ao produzir um sistema de representações que simultaneamente traduz e legitima a sua ordem, qualquer sociedade instala também ‘guardiães’ do sistema que dispõem de uma certa técnica de manejo das representações e símbolos” (BACZKO, 1985, p. 299). Pode-se dizer que a retórica, como técnica de argumentação e persuasão, é um instrumento de controle do simbólico, fazendo parte de um savoir-faire – a elaboração e aprendizagem de práticas e técnicas de manejamento de imaginários sociais. A retórica, por seu poder de persuasão, é um dos instrumentos de controle do simbolismo coletivo surgidos entre os gregos. O próprio Aristóteles, em sua obra Retórica, “passa sistematicamente em revista as técnicas de argumentação e persuasão, realçando a 2

Ver: BACZKO, op. cit.

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influência exercida pelo discurso sobre as ‘almas’ e, nomeadamente, sobre a imaginação e os juízos de valor” (BACZKO, 1985, p. 300-301). Tucídides, que nasceu por volta de 460 a.C. e morreu por volta de 400 a.C., pertencia à aristocracia ateniense e deve ter sido educado de maneira condizente com sua condição social, sendo influenciado por várias figuras em destaque daquele período de Atenas: Péricles, o filósofo Anaxágoras, o político e orador Antifon, os poetas trágicos Sófocles e Eurípides, o historiador Heródoto, entre outros. Mas na construção de sua obra, que inovou substancialmente o método histórico, procuraremos pôr em evidência as influências dos sofistas Górgias e Protágoras, bem como do pitagorismo (CURY, 1986, p. 13-17). Na obra de Tucídides, é freqüente o uso de antíteses, assonâncias e outros recursos estilísticos muito ao gosto dos sofistas do século V a.C., sobretudo de Górgias. Nesta análise, tentaremos delinear as repercussões das principais figuras retóricas de estilo criadas e propagadas por aqueles sofistas, em uma passagem da obra de Tucídides: o diálogo de Melos. Este episódio, um diálogo que sentencia à morte e à escravidão os habitantes da ilha de Melos, possuindo uma grande força persuasiva, constitui um dos principais atrativos da História de Tucídides e um grande momento de controle e manipulação do simbolismo coletivo. No décimo sexto ano da guerra do Peloponeso, os atenienses realizaram uma expedição contra a ilha de Melos. Os mélios eram colonos lacedemônios e se recusavam a obedecer aos atenienses, ao contrário dos demais ilhéus. A intenção dos atenienses era compeli-

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los a aderir ao Império, na condição de súditos, pagando os devidos tributos. Sendo assim, os atenienses passaram a devastar as suas terras, o que fez com que os mélios saíssem abertamente para a guerra. Diante disso, os atenienses acamparam no território mélio, com um dispositivo militar de dois mil e setecentos hoplitas, trezentos arqueiros a pé e vinte montados. Mas os comandantes atenienses Cleômedes, filho de Licômedes, e Tísias, filho de Tisímacos, antes de causar outros estragos às terras mélias, mandaram emissários aos mélios, levando propostas para um entendimento. Os mélios não levaram os emissários atenienses à presença do povo, mas os mandaram transmitir às autoridades locais e a outras poucas pessoas a mensagem que traziam3.

TUCÍDIDES, Livro v, c. 84, p. 281. Para maior facilidade da referência documental nesse artigo, será utilizada daqui em diante a forma abreviada HGP (História da Guerra do Peloponeso) em sobrescrito, seguida pela indicação do livro, capítulo e número da página referente a essa edição.

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Analisemos os discursos proferidos pelos atenienses. A idéia da psicagogia remonta ao pitagorismo. Funda-se na sedução irracional que a palavra, sabiamente usada, exerce sobre a alma do ouvinte. Sua essência reside na força de uma persuasão psicológica, irracional. Mais tarde, preocupando-se com o estudo da eficácia do logos, a força psicológica da palavra, Górgias reaborda a figura retórica da persuasão, a qual faz crer que as coisas são diferentes do que realmente são, conforme as intenções do autor. No que diz respeito à retórica, Górgias insiste na tarefa de “subjugar” [douloun] os outros por meio da apresentação alterada da realidade. É notório e abundante o uso do recurso da persuasão psicológica pelos emissários atenienses no diálogo com os mélios. Já de início, os atenienses dizem: Já que nossas propostas não serão feitas diante do povo, para evitar que a maioria se deixe levar pelo efeito de um discurso seguido, ouvindo rapidamente argumentos sedutores sem poder replicar (percebemos que nos colocais diante de poucas pessoas com esta intenção). (HGP, L. v, c. 85, p. 282)

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Logo a seguir, replicam os atenienses: “ou se tendes outro propósito além de deliberar sobre a salvação de vossa cidade à luz dos fatos evidentes diante de vossos olhos, pararemos; se, ao contrário, este último é o vosso objetivo, falaremos” (HGP, L. v, c. 87, p. 282). Mais à frente, os atenienses aprimoram o poder persuasivo da palavra ao dizer na negativa o que querem deixar bem claro para os mélios quando dizem que: de nossa parte, então, não usaremos frases bonitas, dizendo que exercemos o direito de dominar porque derrotamos os persas, ou que estamos vindo contra vós porque fomos ofendidos, apresentando num longo discurso argumentos nada convincentes; não julgamos conveniente, tampouco, que afirmeis que não vos juntastes a nós na guerra por serdes colonos dos lacedemônios, ou que desejeis convencer-nos de que não nos ofendestes de forma alguma. (HGP, L. v, c. 89, p. 282)

Nesta passagem, os atenienses também usam o conceito protagórico de orthoépeia [orqoepeia], que, de um lado, é a propriedade de encontrar palavras convenientes à expressão, e, de outro, é a própria potência do raciocínio, pela qual sabemos que Protágoras competia com Péricles na procura do discurso mais correto. O ideal da retórica protagórica é expresso na célebre fórmula “tornar mais potente o discurso menos válido” (PLEBE, 1978, p. 9-10). Ainda nessa passagem, podemos vislumbrar o uso do conceito de conveniente [prepon], que se assemelha ao de orthoépeia. Górgias, ao retomar o conceito de oportunidade retórica [kairoV], ajustada ao tipo de ouvinte e aos fins do orador, agrega a esse conceito o de conveniente, no sentido da coerência das palavras com o conteúdo.

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É abundante, também, nesse diálogo o recurso à figura retórica da refutação , bem ao gosto de Górgias. Como exemplo, poderíamos citar as várias passagens em que os atenienses refutam os mélios com a intenção de convencê-los de que é melhor para ambas as partes que os mélios sejam antes inimigos dominados do que amigos neutros. A certa altura do diálogo, os mélios retrucam: “Então vós não consentiríeis em deixar-nos tranqüilos e em sermos amigos em vez de inimigos, sem nos aliarmos a qualquer dos lados?” (HGP, L. v, c. 94, p. 283). E os atenienses refutam: “Não, pois vossa hostilidade não nos prejudicaria tanto quanto vossa amizade; com efeito, aos olhos de nossos súditos esta seria uma prova de nossa fraqueza, enquanto o vosso ódio é uma demonstração de nossa força” (HGP, L. v, c. 95, p. 283). Refutação que teria o efeito de persuadir os mélios a se convencerem de que dessa forma evitariam a sua própria destruição, muito pior do que a dominação, bem como manter para os atenienses uma boa reputação aos olhos de seus súditos. Outra figura retórica utilizada pelos emissários atenienses é a antítese . Dizem os atenienses: “Não percebeis, então, que o interesse próprio anda lado a lado com a segurança, enquanto é perigoso cultivar a justiça e a honra? (Em geral os lacedemônios se atrevem o mínimo possível a enfrentar este perigo.)” (HGP, L. v, c. 107, p. 285). Neste ponto do diálogo, os atenienses estão se referindo aos lacedemônios. Para mostrar aos mélios que eles, os mélios, não obterão a ajuda dos lacedemônios, os atenienses contrapõem a atitude provável dos lacedemônios à atitude improvável, isto é,

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os lacedemônios vão preferir a segurança do interesse próprio (não socorrendo os mélios) ao perigo de cultivar a justiça e a honra (socorrendo os mélios). Esta figura também remonta ao pitagorismo e é a raiz fundamental das antilogias de Protágoras: os discursos duplos e a técnica da contradição . O emprego da figura da antítese procura antes despertar as reações psicológicas do ouvinte do que convencê-lo com a concisão do raciocínio, conformando-se, portanto, à idéia de psicagogia de Pitágoras (PLEBE, 1978, p. 4). Provavelmente, o diálogo de Melos deve ser uma construção semi-ficcional, um exercício retórico produzido por Tucídides a serviço de sua história política. No todo, o diálogo apresenta uma forte repercussão das antilogias, tal como os sofistas se compraziam em opor dois ou mais oradores na mesma questão. No caso da Revolta de Mitilene, Tucídides tem a oportunidade de expor a enorme dificuldade de Atenas em tratar os aliados com justiça durante a guerra. E em outros discursos de sua obra, ele evidencia a incompatibilidade entre guerra e justiça (JAEGER, 1986, p. 316). Porém, devemos estar atentos à concepção de justiça que anima e subjaz a habilidade retórica dos emissários atenienses no diálogo travado na ilha de Melos. A idéia de justiça instaurada por este diálogo é semelhante à contida na obra Argumentos Duplos do sofista Górgias. De acordo com este pensador, não há justiça “absoluta”. As atitudes tomadas em relação aos inimigos devem ser basicamente diferentes daquelas tomadas em relação aos amigos. Fraudar, roubar ou

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mentir para os inimigos não é um ato meramente permissível, mas um ato justo. E mesmo pode ser justo enganar um amigo, se isso é feito para o próprio bem dele (JONSEN; TOULMIN, 1988, p. 60). Ainda nessa obra, Górgias mostra como a técnica sofística consolida a crença de que nada verdadeiramente geral pode ser dito no que concerne à ética, de modo que não há nada que resta considerar, à parte as situações e casos particulares. Por isso a justiça é “relativa”. Ela é evidente somente em situações concretas: portanto, a obrigação fundamental deve ser dizer ou abster-se de dizer, fazer ou abster-se de fazer a coisa certa na hora certa (JONSEN; TOULMIN, 1988, p. 60). Assim, os sofistas dão enorme importância à conveniência dos atos. O termo retórico kairos [kairoV], ocasião oportuna, simboliza esta técnica: um orador deve reconhecer nas reações de seus ouvintes o momento certo de introduzir um novo ponto (JONSEN; TOULMIN, 1988, p. 60). Nessa mesma lógica de justiça, se é justo enganar um amigo para o próprio bem dele, os emissários atenienses pensam que é justo dominar – enganando – os mélios para a própria salvação dos mélios, quando dizem o seguinte: Mostraremos claramente que é para o benefício de nosso império, e também para a salvação de vossa cidade, que estamos aqui dirigindo-vos a palavra, pois nosso desejo é manter o domínio sobre vós sem problemas para nós, e ver-vos a salvo para a vantagem de ambos os lados. (HGP, L. v, c. 91, p. 283)

Essa idéia de justiça, tomada até às últimas conseqüências, deve instaurar algo que lembra a hybris

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, a imoderação, o excesso. O potencial de racionalidade contido no logos encontra o perigo da hybris ao se confluir com o tratado retórico gorgiano e a concepção de justiça que ele prega. E vemos o ideal de racionalidade se conspurcar. Noutra altura do diálogo, os atenienses replicam: Dos deuses nós supomos e dos homens sabemos que, por uma imposição de sua própria natureza, sempre que podem eles mandam. Em nosso caso, portanto, não impusemos esta lei nem fomos os primeiros a aplicar os seus preceitos; encontramo-la vigente e ela vigorará para sempre depois de nós; pomo-la em prática, então, convencidos de que vós e os outros, se detentores da mesma força nossa, agiríeis da mesma forma. (HGP, L. v, c. 105, p. 285)

E a hybris acontece: “Os atenienses mataram todos os mélios em idade militar que capturaram, e reduziram as crianças e mulheres à escravidão” (HGP, L. v, c. 116, p. 288). Seguindo o preceito de Aristóteles, que em sua Retórica diz que “o que torna um homem um sofista não é a sua habilidade retórica, mas seu propósito moral” (ARISTÓTELES apud JONSEN; TOULMIN, 1988, p. 73), poderemos dizer que os emissários atenienses, pelo menos no caso do diálogo de Melos, são terríveis sofistas, posto que, além de apresentarem uma contínua habilidade retórica, estão imersos nas concepções de moral e justiça alardeadas pelo sofista Górgias. A respeito do que é justo, os atenienses dizem: “pois deveis saber tanto quanto nós que o justo, nas discussões entre os homens, só prevalece quando os interesses de ambos os lados são compatíveis, e que os fortes exercem o poder e os fracos se submetem” (HGP, L. v, c. 89, p. 282). A concepção de justiça “relativa” gorgiana, repercutida no discurso dos emissários atenienses na ilha de Melos,

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levou à hybris porque ela obedece ao princípio da seleção, isto é, do direito do mais forte, ao colocar uma questão que lembra o totalitarismo: quem tem o direito de sobreviver, quem está condenado a desaparecer, por escolha e ofício humanos. Deve ser justamente esta concepção de justiça que tornou a habilidade retórica dos emissários e o cerco final um instrumento da hybris. Não obstante a recusa dos mélios em obedecer aos atenienses, – o que provocou a eliminação daquele povo pela morte ou redução à escravidão –, não obstante a hybris cometida pelos atenienses, a repercussão das técnicas retóricas na narrativa de Tucídides demonstra a habilidade dos atenienses em fazer um uso eficaz do logos como instrumento para o controle do poder simbólico. O império que os atenienses construíram após a guerra contra os Persas, subjugando uma miríade de póleis, fora fruto não somente da força bruta, mas também de um domínio do campo do imaginário. O diálogo de Melos é a única vez em que Tucídides, em sua obra, para colocar a questão conflituosa entre força e direito, usa a forma dialogada das disputas sofísticas, em que os adversários se opõem, argumento a argumento. E os mélios não são nada inferiores aos atenienses no que concerne ao uso da palavra, à habilidade persuasiva. Mesmo assim, os atenienses cometem hybris, deixando claro a máxima que propalam: “Os fortes exercem o poder e os fracos se submetem”, a qual reflete a justiça gorgiana.

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Provas ilicitamente obtidas e o Juízo de Adequabilidade à luz do caso concreto

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Provas ilicitamente obtidas e o Juízo de Adequabilidade à luz do caso concreto Luciana das Graças dos Santos *

Resumo: No presente artigo buscamos (re) discutir o problema das "provas obtidas ilicitamente", no intuito de levantar um raciocínio crítico acerca das correntes dominantes no trato da matéria, sobretudo no que se refere à teoria da proporcionalidade que vem ganhando espaço nos nossos tribunais. Buscamos ainda, ao final, propor uma nova perspectiva para solucionar a questão da admissibilidade ou não dessas provas no processo penal, como fundamentos de uma decisão condenatória, tendo em conta a noção de adequabilidade da pretensão invocada no caso concreto. Palavras-chave: Direito Processual Penal; provas obtidas por meios ilícitos; direitos fundamentais; teoria da proporcionalidade; Robert Alexy; juízo de adequabilidade. Abstract: This article manages to (re)discuss the problem of " illegally obtained proofs", in the sense of arising a critical path of thought about the different legal streams, mainly around the theory of balancing, that is gaining prestige in Brazilian Courts. The article, in its final part, suggests a new perspective on solving questions about the admissibility of that sort of proofs in criminal procedures, as fundaments of a condemnatory decision, taking in account the suitability of the claim invoked. Keywords: Criminal Procedures. Illegally obtained proofs. Fundamental Rights. Alexy's Balancing Theory. Judgement on suitability.

1 – COLOCAÇÃO DO PROBLEMA Quando o tema é provas obtidas por meios ilícitos, a discussão se torna bastante polêmica. A doutrina está longe de chegar a um consenso; nos tribunais, apesar de algumas teorias virem ganhando força na atualidade, a questão ainda gera controvérsias.

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Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte.

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66 Afastamos aqui a discussão acerca da aceitabilidade da prova obtida ilicitamente quando favorável ao acusado. Quanto a isso a doutrina tem se mostrado bastante convergente no sentido de abrandar a aplicação da vedação para aceitar a sua introdução no processo, em nome do chamado princípio do favor rei. Afinal, ainda que por falta de prova, o Código de Processo Penal manda que o réu seja inocentado. Nesse sentido, o que ainda tem provocado grande discussão é a possibilidade de introdução de provas obtidas por meios ilícitos para fins de fundamentar a condenação do acusado. Esta será nosso objeto de estudos. A respeito da admissibilidade em favor da defesa, bem densificou o jurista Sérgio Demoro Hamilton, em As Provas Ilícitas, a Teoria da Proporcionalidade e a Autofagia do Direito: "No entanto, a prova ilícita, quando pro reo, vem sendo admitida com tranqüilidade não só na doutrina como perante a jurisprudência, em homenagem ao direito de defesa e ao princípio do favor rei. Tal posição mitiga, sem dúvida, o rigor da inadmissão absoluta das provas ilícitas. Em tais casos, no meu entendimento, o sujeito estaria em situação de verdadeiro estado de necessidade, causa excludente da antijuridicidade, vendo-se obrigado ao uso de prova ilícita em defesa da sua liberdade". (Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 11, pág. 253, jan./jun. 2000). A esse respeito, vide também: Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, O processo penal em face da Constituição, 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora

1

Parte da doutrina e da jurisprudência, em nome da defesa dos “valores sociais”, se insurge para sustentar a idéia de que, uma vez cometido o crime, o agente deve ser punido a todo e qualquer custo, sustentandose, assim, que a introdução das provas ilicitamente obtidas para fundamentar a condenação do réu é plenamente aceitável, dada a necessidade de se reprimir as condutas desaprovadas pela sociedade e tipificadas pelo Código Penal1. Argumenta-se, nesse sentido, que o interesse da Justiça em ver punido o infrator, por si só, tem o condão de suprimir da prova a sua ilegalidade, apenas devendo-se sujeitar o responsável pela ilegalidade às penas que a lei por ventura cominar 2 . Essa é a teoria denominada “male captum, bene retentum” (mal colhida, mas bem conservada), defendida por Franco Cordeiro, em Roma, Carnelutti, na Itália, e Rosenberg, na Alemanha3. De outro lado, os mais radicais despontam-se para rechaçar absoluta e radicalmente a sua aceitação no processo penal4, sob o argumento de que “o direito não pode prestigiar comportamento antijurídico, nem consentir que dele tire proveito quem haja desrespeitado o preceito legal, com prejuízo alheio; por conseguinte, o órgão judicial não reconhecerá eficácia à prova ilegalmente obtida” 5. E, numa linha mais flexível, há os que acreditam e defendem que a questão deva ser analisada melhor à luz do caso concreto, já que toda e qualquer resposta pré-concebida para solucionar os problemas da sociedade hodierna, especialmente o das “provas ilícitas”, esbarra no sustentáculo do Estado de Direito da atualidade, o paradigma democrático6 .

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Estas se nos apresentam como as três principais correntes doutrinárias que buscam solucionar o problema da aceitabilidade ou não das provas ilicitamente obtidas quando o órgão julgador pretende, a partir delas, fundamentar o seu convencimento condenatório7. No presente artigo, buscamos reconstruir a discussão, trazendo à baila os argumentos levantados por aquelas correntes dominantes, contrapondo-os ao paradigma de Estado Democrático de Direito, e, ao final, propondo uma nova perspectiva para o tratamento da matéria. Observe-se, de início, que temos como prova ilicitamente obtida aquela cujo meio utilizado para sua apreensão ofende garantias fundamentais asseguradas na Constituição. E note-se que aqui estamos a tratar de garantias fundamentais que sejam passíveis de afetação pela atividade coletora de provas, quais sejam, o sigilo de correspondências, a intimidade e a vida privada do indivíduo, a inviolabilidade do domicílio e outras. Partimos, então, da idéia de que prova obtida ilicitamente não é simplesmente aquela que ofende normas de direito material ou processual, antes aquela que lesa garantia fundamental assegurada na Constituição8. Tendo em vista nossa consideração inaugural, passaremos à análise dessas três correntes a que nos referimos, e que, não obstante tenham se dedicado com afinco ao esclarecimento da matéria, estão longe de solucionar o problema, se é que se pode falar em uma solução efetivamente infalível quando se está a tratar da difícil tarefa da interpretação do direito.

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Forense, 1998, pág. 49; Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini, Interceptação telefônica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, pág. 147; Daniel Sarmento, A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, pág. 180. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Constituição e as provas ilicitamente obtidas, in Temas de Direito Processual, Sexta Série. São Paulo: Editora Saraiva, 1997, pág. 109.

2

GRINOVER, Ada Pellegrini. Provas ilícitas, o processo em sua unidade II, pág. 173, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1984.

3

É o que defendeu o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso Mello, in: Ação Penal nº. 307-3 - Distrito Federal (Voto preliminar sobre ilicitude da prova), veja-se: "A norma inscrita no artigo 5º, LVI, da Lei Fundamental promulgada em 1988, consagrou, entre nós, com fundamento em sólido magistério doutrinário (Ada Pellegrini Grinover, Novas tendências do direito processual, Forense Universitária, 1990, p. 6082; Mauro Cappelletti, Efficacia di prove illegittima-mente ammesse e compor-tamento della parte, Rivista di Diritto Civile, p. 112, 1961; Vicenzo Vigoriti, Prove illecite e costituzione, Rivista de Diritto Processuale, p. 64 e 70, 1968), o postulado de que a prova obtida por meios ilícitos deve ser repudiada e repudiada sempre - pelos juízes e Tribunais, 'por mais relevantes que sejam os fatos por ela apurados, uma

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68 vez que se subsume ela ao conceito de inconstitucionalidade'" (G, op. cit., p. 62). Nas palavras do jurista Alexandre Araújo de Souza, in: A inadmissibilidade, no processo penal, das provas obtidas por meios ilícitos: uma garantia absoluta?, Revista da EMERJ, V. 7, nº 27, 2004.

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BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Constituição e as provas ilicitamente obtidas, in: Temas de Direito Processual, 6ª série. São Paulo: Editora Saraiva, 1997, pág. 109. 6

Não descartamos a importância ou o mérito das demais correntes existentes, contudo consideramos estas três como que merecem nossa reflexão, dado, sobretudo, o fato de que conseguem condensar bem toda a amplitude do problema. Para quem se interesse por buscar outras correntes, indicamos a pesquisa sobre a teoria dos "fruits of the poisonous tree", a qual, apesar de guardar algumas semelhanças com a segunda corrente que aqui apresentamos, possui alguns elementos que merecem ser estudados. Para esta corrente tanto as provas ilegítimas quanto as ilícitas ofendem ao Direito, se considerado como um todo sistemático, por isso não merecem ser acatadas no processo, nem as que delas derivam (teoria dos frutos da árvore envenenada). Teoria de origem norteamericana que vem ganhando espaço no Brasil, inclusive nos tribunais superiores a exemplo do STF - HC 76.641-SP, HC 74.116-SP (e outros). A esse respeito, indicamos a

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E para que nossas proposições não se percam no vazio da abstração, abordaremos a questão sob o enfoque dado pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, quando da apreciação do HC 80.949-9, de 30/10/20019, cotejando-a com outros dados extraídos das fontes jurisprudencial e doutrinária. Pois bem, ao tomarmos o referido acórdão à análise, nos deparamos com três indagações que julgamos merecer um trabalho cuidadoso (tal sua relevância que figuraram como objeto de apreciação do Supremo Tribunal Federal), e, por isso, buscaremos melhor esclarecê-las tendo por base cada uma das três correntes a que nos referimos alhures. São essas as indagações: Em que medida deve ser levada em conta a natureza da infração para se sustentar a aceitação de provas obtidas ilicitamente para fins de fundamentar a condenação do acusado? Qual o tratamento adequado da questão em relação aos acusados por crimes de alta reprovação social, ou seja, quando se tem em vista a prática de uma conduta tida como de extrema gravidade? Tendo em vista este primeiro problema, como fica a questão do princípio da não culpabilidade (ou princípio da inocência)? Que tipo de tratamento deve ser dispensado ao interlocutor insciente, na hipótese de gravações telefônicas (não autorizadas) realizadas por um dos interlocutores?

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2 – ADMISSIBILIDADE: O CLAMOR PELA PUNIÇÃO DO CRIME. Quanto à primeira indagação, não é difícil concluir: essa é a típica resposta formulada pela corrente que defende a idéia de que a conduta criminosa deve ser punida a qualquer custo, quanto mais quando se tem em tela um crime de alta reprovabilidade social. A propósito, esse é um argumento bastante utilizado ainda hoje, principalmente, por aqueles mais desavisados sobre o atual contexto de Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, levanta-se o argumento de que os crimes mais gravosos devem ser punidos com maior rigor pelo Estado, e, a partir daí, busca-se justificar a redução das garantias individuais do acusado, tendo por base a equivocada convicção de que, quanto maior o rigor da punição, menor será a prática dos crimes tachados pela sociedade como especialmente repugnantes. De um lado, tem-se que os intentos criminosos dos infratores diminuem automaticamente na medida em que se aumenta a gravidade das penas cominadas (e aplicadas); de outro, tem-se que, em face dessas condutas tidas como excessivamente reprováveis, o Estado deva abrir mão das garantias asseguradas aos cidadãos em prol do bem-estar da sociedade que clama pela punição desses crimes. E ainda, corroborando este último argumento, tem-se uma sociedade “alienada” pela influência sensacionalista de parte da mídia, que insiste em pregar a errônea concepção de que o Direito Penal tem a incumbência de diminuir a criminalidade por meio do rigorismo na cominação e na aplicação das penas10.

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leitura do artigo de Ana Letícia Queiroga de Mattos: Apontamentos crítico à ponderação de valores adotada pelo ST, in: O Supremo Tribunal Federal Revisitado. BH: Ed. Mandamentos, 2003, p. 105 - obra de qualidade inestimável elaborada sob a coordenação do Prof. Álvaro Ricardo Souza Cruz, Procurador da República em Minas Gerais, em mais uma de suas brilhantes atuações como professor da PUC Minas, em que se buscou problematizar a atuação daquela corte no ano de 2002, resultando numa importante contribuição para a construção da identidade constitucional brasileira. É grande a divergência entre os estudiosos da matéria sobre o verdadeiro significado da expressão "provas ilícitas". Alguns autores consideram haver distinção entre provas ilícitas e provas ilegítimas, sendo que ambas compõem o gênero provas ilegais. Contudo, preferimos adotar a expressão "provas obtidas por meios ilícitos" como sendo aquelas cujo meio utilizado para sua obtenção atenta contra garantias constitucionais. Sobre esta diferenciação, o constitucionalista Alexandre de Moraes afirma: "As provas ilícitas não se confundem com as ilegais e as ilegítimas. (...) as provas ilícitas são aquelas obtidas com infringência ao direito material, as provas ilegítimas são as obtidas com desrespeito ao direito processual. Por sua vez, as provas ilegais seriam o gênero do qual as espécies são as provas ilícitas e as ilegítimas.)" In: Direito

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70 Constitucional, 15ª Edição. São Paulo: Ed. Atlas, 2004, p. 126. A nós, se apresenta como mais correto afirmar que é o modo de obtenção da prova que é passível de ilicitude, não a prova em si. Daí a utilização da expressão "provas obtidas por meios ilícitos" e não "provas ilícitas"; os meios de obtenção é que podem ser ilícitos, porque ofendem garantias fundamentais consagradas na Constituição. 9 Trata-se de Habbeas Corpus impetrado por Fernando Augusto Fernandes (e outros) para o fim de obter o relaxamento da prisão temporária decretada em investigação criminal pela Polícia Federal do Rio de Janeiro; impugnar a inserção de provas ilícitas - gravações telefônicas e ambientais sem observância do art. 5º,LXIII, no processo penal do qual se constituía como réu e postular o seu desentranhamento dos autos, sob a alegação de que tais provas foram colhidas com afronta ao seu direito de silêncio. O impetrante alega que as gravações realizadas pela Polícia Federal, quando de uma 'conversa informal', fora realizada sem a sua autorização, por isso, com desrespeito ao seu direito de silêncio.

O Ministro Relator Sepúlveda Pertence optou por não adotar para o caso a teoria da proporcionalidade para solucionar o problema, emitindo seu voto no sentido de deferir "parcialmente o habeas corpus para declarar a ilicitude e determinar o desentranhamento dos autos da fita K-7 e do laudo pericial de 04.04.1999 ". O grande mérito de

A idéia de que o cidadão acusado pela prática de um determinado crime tido como mais gravoso aos olhos da sociedade, ou do Direito mesmo, deva ser tratado de forma distinta não deve superar os limites que a lei estabelece para tal distinção. E aqui nos referimos à própria Constituição. Essa estabelece um certo tratamento diferenciado a ser dispensado aos crimes que a própria vontade constituinte elegeu como mais gravosos, impedindo, assim, a concessão de graça, anistia e fiança quando se tem em vista os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e aqueles considerados como hediondos (art.5º, XLIII), contudo, em nenhum momento deixou ao legislador infraconstitucional a possibilidade de alargar a abrangência de tais restrições. A par com esse raciocínio, seria dizer que a simples prática de um crime que seja (aos olhos da sociedade) um crime mais gravoso, pode ser tomada como justificativa para se aceitar a introdução de provas obtidas ilicitamente nos autos do processo a fim de que o acusado seja, por isso, condenado. O Prof. Barbosa Moreira, definindo essa corrente como uma tese “radical”, comenta: De acordo com a primeira tese, devem prevalecer, em qualquer caso, o interesse da Justiça no descobrimento da verdade, de sorte que a ilicitude da obtenção não subtraia à prova o valor que possua como elemento útil para formar o convencimento do juiz, a prova será admissível, sem prejuízo da sanção a que fique sujeito o infrator.11 (grifamos)

Ora, aceitar tal argumento seria aceitar que o cidadão, no momento em que pratica um crime de natureza gravosa, deixa de ocupar a posição de um cidadão de direitos para ocupar a posição de um indivíduo à margem de qualquer ordem jurídica constitucional. É

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dizer, o cidadão, aquele que goza de garantias constitucionais fundamentais, deixaria de sê-lo no momento em que “optasse” pela prática de um desses crimes tidos como essencialmente graves. Ainda sem tomar partido por qualquer das correntes apresentadas, podemos afirmar que o afastamento da vedação constitucional simplesmente em razão da natureza gravosa do crime funciona como um mecanismo capaz de retirar do cidadão a sua maior garantia quando o assunto é uma eventual condenação. Falamos do princípio da presunção de inocência. Isso porque, na medida em que se toma, como fator justificador da admissão de provas obtidas ilicitamente, o clamor da sociedade pela punição dos crimes mais gravosos, na verdade, o que se está a fazer é um juízo prévio de condenação. Imaginemos o seguinte: “A” é acusado de ter cometido um crime excessivamente gravoso, contudo a única prova que se tem contra ele fora obtida ilicitamente. Nesse caso, tendo-se em conta a idéia de que os crimes mais graves devam ser punidos a qualquer custo, o órgão julgador competente aceita a introdução dessa prova12. Nesse caso, ao aceitar a introdução da prova obtida ilicitamente para fundamentar a sua decisão (condenatória), na verdade, o órgão julgador estaria realizando um juízo a priori. Ora, antes da produção da prova, não há como se falar da culpabilidade do acusado, vez que vige o princípio da presunção de não culpabilidade. Contudo, orientado pelo raciocínio de que o crime merece ser punido a todo custo, o julgador estaria autorizado a ignorar o princípio da inocência para, assim, condenar o acusado precipitadamente e, a partir daí, buscar a introdução da prova apenas para justificar/fundamentar a sua decisão.

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Pertence nessa decisão contrariando uma tendência muito forte em relação à adoção da teoria da ponderação, está em seu ceticismo para com as respostas pré-formuladas, a adoção indiscriminada de teorias estrangeiras, sem se levar em conta as especificidades do contexto jurídico-social brasileiro. Já nos posicionamos anteriormente a respeito dessa questão quando abordamos o papel das reformas textuais no Direito Penal, bem como quando tratamos da inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime nos crimes hediondos - Ver: SANTOS, Luciana das Graças. O Direito e o Poder das Reformas. Boletim do ICP - Instituto de Ciências Penais. Ano IV nº 60. BH. 2005, ps. 10-11.

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Op. cit, p. 109.

12 Há quem sustente, ainda, que o elemento justificador da admissibilidade da provas obtidas ilicitamente seja, na verdade, a necessidade de se garantir a segurança da sociedade em face de um criminoso cujo crime por ele praticado seja tido como excessivamente gravoso e reprovável. Assim se manifestou, a propósito, Lidia Villarim Martins (in Gravação Telefônica: prova ilícita, D i r e i t o N E T. 2 0 0 4 . Disponível em: www.direitonet.com.br/arti gos/x/17/09/1709/): "Não podemos sacrificar a segurança de toda a população para preservar a privacidade de uma só pessoa". Argumento que também refutamos veementemente.

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Em nome de uma concepção arcaica de que o crime gravoso deva ser punido a qualquer custo, o acusado é retirado da condição de cidadão de direitos e colocado na condição de mero objeto da condenação. Uma postura, então, retrógrada que, no mínimo, nos faz retornar à época em que o arbítrio estatal era a única ordem vigente (na Idade Média, por exemplo); postura que não encontra qualquer fundamento aceitável no Estado de Direito em que vivemos. Nesse ponto, na análise do HC 80.949-9, o Ministro Sepúlveda Pertence refere-se às vedações constitucionais aplicáveis aos crimes de maior severidade, frisando que tais restrições são impostas em rol taxativo sem delas poder inferir o intérprete do direito de modo a estendê-las à garantia de vedação da “prova ilícita”. Segundo ele, assim como acabamos de afirmar, “graduar a vedação da admissibilidade e valoração da prova ilícita, segundo a gravidade da imputação, constituiria instituir a sistemática violação de outra garantia constitucional – a presunção de inocência”. Desse modo, não há que se buscar maiores contraargumentos para se combater a idéia de gradação da vedação constitucional simplesmente pautando-se nesse primeiro argumento. A questão se soluciona a partir da idéia de que a condenação a priori não encontra supedâneo no atual Estado de Direito e, acima de tudo, viola o princípio da inocência – princípio basilar do Direito Penal na Modernidade.

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3 – INADMISSIBILIDADE: ABSOLUTIZAÇÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS

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Tratando a questão à luz da segunda corrente, para ilustrar bem a idéia, veja-se o entendimento do Ministro Celso Mello quando da apreciação do RE 251.445/GO: No contexto do regime constitucional brasileiro, no qual prevalece a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, impõe-se repelir, por juridicamente ineficazes, quaisquer elementos de informação, sempre que a obtenção e/ou a produção dos dados probatórios resultarem de transgressão, pelo Poder Público, do ordenamento positivo, notadamente naquelas situações em que a ofensa atingir garantias e prerrogativas asseguradas pela Carta Política (RTJ 163/682 – RTJ 163/709), mesmo que se cuide de hipótese configuradora de ilicitude por derivação (RTJ 155/508), ou, ainda que não se revele imputável aos agentes estatais o gesto de desrespeito ao sistema normativo, vier ele a ser concretizado por ato de mero particular.13 (grifamos)

A esse respeito, basta-nos um simples raciocínio: já se tem por consenso que não há nenhum direito ou garantia fundamental que se possam tomar por absolutos8. Todos os direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição estão também sujeitos a determinados limites, dos quais passaremos a tratar adiante tendo em vista a idéia de adequabilidade da pretensão do indivíduo que a invoca. Pensemos no seguinte caso: um indivíduo, sabendo-se acusado pela prática de um crime cuja prova para sua condenação é uma gravação telefônica feita por uma terceira pessoa (em que confessa a prática do crime) provoca a sua introdução no processo (enviando-a pelo correio, por exemplo) com a finalidade de que tanto ela quanto as demais dela decorrentes sejam consideradas inválidas pela afronta ao seu direito de

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13 RE 251.445/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO (DJU 03/08/2000, in Informativo/STF nº 197, de 2000).

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silêncio, bem como à sua intimidade e privacidade. Nesse caso, há que se avaliar o seguinte: será que o acusado poderá exigir o desentranhamento da gravação telefônica, bem como das demais (dela derivadas), por considerá-las uma afronta ao seu direito de silêncio? A questão, aqui, passa pela noção de adequabilidade da pretensão invocada. Isso porque, ao lançar mão da introdução da prova no processo a fim de se beneficiar com a posterior nulidade do processo, o acusado tornará ilegítima a sua pretensão em invocar a invalidade das “provas ilícitas”. É dizer, a proteção da intimidade ou privacidade do acusado, bem como o seu direito de silêncio, estarão sendo invocados para um fim ilegítimo9; a sua pretensão, nesse caso, é abusiva e deve ceder lugar à introdução da prova no processo, ainda que com lesão às suas garantias constitucionais e ainda que venha a servir de fundamento para a sua condenação. E aqui já aproveitamos para entrar na terceira corrente. Essa merece nossa especial atenção. Isto porque, aquelas duas primeiras, esperamos ter mostrado, passam longe de solucionar o problema, ao passo que esta representa um grande passo na interpretação da questão, não obstante, conforme mostraremos à frente, ainda apresente falhas. Aliás, falhas que nos impulsionaram a buscar uma outra solução, a qual nos propomos a esclarecer ao final. 4 – A ANÁLISE DO CASO CONCRETO E A TEORIA DA PROPORCIONALIDADE Pois bem, a despeito das falhas que apresenta essa terceira corrente, ela vem se mostrando como a mais defendida e aceita pelos tribunais e por grande parte da doutrina especializada, conforme passaremos a expor.

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Sua principal diferença em relação àquelas primeiras é que nessa a principal orientação argumentativa do intérprete é extraída da análise detida ao caso concreto. Ou seja, para essa corrente, a questão deve ser analisada tendo em vista as minúcias de cada caso. Assim, somente as particularidades do caso concreto poderão ditar o melhor caminho a se traçar, tanto para se chegar ao afastamento da proibição, quanto para se concretizar a vedação das “provas ilícitas” no processo, sejam elas atentatórias contra o direito ao silêncio, ou contra qualquer outro direito ou garantia constitucional individual. Sob essa linha de raciocínio, o intérprete deve se orientar pelas dimensões e particularidades do caso concreto; detido às suas minúcias, o intérprete poderá encontrar a solução que melhor possa adequar-se ao caso. Note-se, então, que essa corrente parece se apresentar como a mais adequada ao ideal de Estado Democrático de Direito. Contudo, tal proposta ganha leituras diferenciadas. Uma delas é a que se assenta na chamada teoria da proporcionalidade (ponderação de valores). Trata-se de teoria extraída da doutrina alemã, segundo a qual a solução do problema, necessariamente, deve passar por um juízo de ponderação dos valores envolvidos no caso, onde as garantias fundamentais consagradas na Constituição ganham uma espécie de “peso” que permite ao intérprete, à luz do caso concreto, avaliar e ponderar qual delas possui maior peso e, por conseguinte, qual delas deve prevalecer. A processualista Ada Pellegrini Grinover, in A eficácia dos atos processuais à luz da Constituição Federal (Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 1992, n. 37, p. 46-47), define bem essa linha de pensamento:

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Outra tendência que se coloca em relação às provas ilícitas é aquela que pretende mitigar a regra de inadmissibilidade pelo princípio que se chamou, na Alemanha, da ‘proporcionalidade’ e, nos Estados Unidos da América, da ‘razoabilidade’; ou seja, embora se aceite o princípio geral da inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos, propugna-se a idéia de que em casos extremamente graves, em que estivessem em risco valores essenciais, também constitucionalmente garantidos, os tribunais poderiam admitir e valorar a prova ilícita (grifamos).

Para o jurista Luiz Francisco Torquato Avolio, trata-se de “uma limitação do poder estatal em benefício da garantia de integridade física e moral dos que lhe estão subjugados”16. Essa teoria da proporcionalidade tem sido em larga escala defendida por grandes expoentes da literatura processual penal brasileira, entre eles Eugênio Pacelli17, Fernando Capez18 e Fernando da Costa Tourinho Filho19. Também tem sido utilizada pelos tribunais, sobretudo pelo Supremo Tribunal Federal.

apud Alexandre de Moraes. Op. Cit. p. 127

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17 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal, 5ª Edição. 2ª Tiragem. BH: Del Rey, 2005, p. 289319.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 7ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2001. 18

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 22ª Edição. V.3. Saraiva, 2000.

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Um exemplo retirado do STF é posicionamento adotado na RCL 2.040-DF (caso Glória de los Añgeles Treviño Ruiz e que pode ser tido como um julgamento político) em que se adotou a otimização de princípios como sustentáculo de uma argumentação orientada por valores políticos. O STF, naquela oportunidade, valeu-se da teoria da proporcionalidade para ponderar os valores invocados pela defesa em confronto com os valores da exigência de preservação da honra e imagem dos servidores e da Polícia Federal, decidindo-se, ao final, pela aceitação da prova produzida com lesão às garantias individuais da acusada20.

20 Cf. Ana Letícia Queiroga de Mattos, Op. Cit. Pags. 109/110.

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Para nós essa forma de solucionar o problema tem seus méritos e o maior deles está em que se busca afastar a cultura das fórmulas apriorísticas ou das respostas pré-concebidas (adotadas nas correntes mais tradicionalistas), para, então, encontrar a solução do problema nas perspectivas do caso concreto. Contudo, a despeito de tal acerto, acreditamos haver uma falha grave em relação ao “método” proposto. De fato, não há que se pensar em outra forma de interpretar a norma proibidora em tela (art. 5º, LVI), senão a partir dos elementos oferecidos pelo caso concreto. No entanto, o método da ponderação de valores acaba por conduzir o intérprete ao mesmo erro da segunda corrente: a pré-condenação. De acordo com esse entendimento, a admissibilidade das “provas ilícitas” no processo dependerá da ponderação dos valores e interesses envolvidos no embate. Ou seja, demandará que o intérprete, orientado por um juízo de ponderação, busque a harmonização dos princípios constitucionais emergentes do caso, de modo que aquele que maior “peso” possuir prevaleça sobre o de menor “peso”. Assim, se no caso concreto apresentam-se como conflitantes dois princípios ou garantias constitucionais, a questão se resolverá, pela teoria da proporcionalidade, comparando-os e pesando-os a fim de que se constate qual deles deve prevalecer sobre o outro exatamente porque maior “peso” possui. Ou seja, segundo esse entendimento, se deve buscar, no caso concreto, a aplicação da “proteção mais adequada possível a um dos direitos em risco”21. A idéia foi concebida originariamente por Robert Alexy quando se propôs a tratar da questão da

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21 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. Ed. Delrey. B.H. 2002, pag. 292.

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aplicabilidade dos princípios, concebendo-os como “mandados de otimização”. Para Alexy, assim como as regras, os princípios são normas jurídicas, contudo, ao contrário destas, eles podem ser aplicados em graus diferentes; conflitam-se entre si somente na ambiência do caso concreto e à vista do qual, e somente dele, podem ser solucionados tais conflitos; são razões prima facie e indicam que algo deve ser realizado na maior medida possível. Trazendo a teoria para a questão que analisamos (acerca das provas obtidas ilicitamente), ao contrário da regra proibidora do art. 5º, LVI (que somente pode ser aplicada ou não numa razão de tudo ou nada), o conflito entre os princípios constitucionais envolvidos no caso concreto somente poderá ter solução no âmbito do próprio caso. A solução resultará da ponderação dos princípios conflitantes prevalecendo aquele que maior “peso” possuir. Ou seja, dentre os princípios em conflito, um deles cederá ao outro a aplicação ao concreto, o que não indica que aquele perderá a sua validade, apenas não será o que prevalecerá na solução final. Assim, se no caso concreto a discussão sobre a admissibilidade ou não das provas obtidas ilicitamente tem como pano de fundo o conflito entre o princípio do interesse público e o da inviolabilidade da correspondência, por exemplo, tal conflito somente se resolverá a partir da ponderação de “peso” entre eles. Ou seja, “pesando-se” os princípios em conflito, decidir-se-á pela admissibilidade ou não dessas provas, na medida em que maior “peso” tenha o primeiro ou o segundo, respectivamente.

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Esse seria, então, o “método” de solucionar os conflitos entre princípios e, de acordo com essa corrente, a melhor forma de solucionar o problema das provas obtidas ilicitamente, no processo penal. 5 – AS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS E O INTERLOCUTOR INSCIENTE No tocante ao interlocutor insciente, na hipótese de interceptações telefônicas realizadas por um dos interlocutores, ou por terceiros com a ciência de um deles, cumpre-nos concordar com o voto de Sepúlveda Pertence no HC 80.949-9. Pertence considera que, se, assim, é a captação por terceiro – intervindo no processo do telefonema em curso -, conteúdo da comunicação que distingue a interceptação vedada, não há porque excluir a proteção constitucional à escuta, apenas porque um dos sujeitos da conversação esteja ciente da sua captação por outrem e, eventualmente, de sua gravação.

E ainda, complementa: “é patente – para o interlocutor insciente na intromissão de terceiro na recepção da mensagem que pretende dirigida apenas ao interlocutor de seu telefonema -, a afronta à garantia constitucional do sigilo de comunicação telefônica”. É também o que sustenta o Ministro Celso Mello, in Ação Penal N. 307-3 - Distrito Federal, senão vejamos: O fato de um dos interlocutores desconhecer a circunstância de que a conversação que mantém com outrem está sendo objeto de gravação atua, a meu juízo, como causa obstativa desse meio de prova. O reconhecimento constitucional do direito à privacidade (CF, art. 5º, X) desautoriza o valor probante do conteúdo de fita magnética que registra, de forma clandestina, o diálogo mantido com alguém que venha a sofrer a persecução penal do Estado.

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Não há dúvidas de que a interceptação telefônica deva ser tratada de forma diferente quando precedida de autorização judicial; contudo, quando realizada por uma das partes sob a insciência da outra, não há que se cogitar da possibilidade de aceitação da prova, a menos que haja investida criminosa desta última sobre aquela primeira (HC 75.338/RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, DJU 25.09.98)22. Assim, somente quando pautada na necessidade imperiosa da vítima de se defender perante investida criminosa do infrator, estaria legitimada a utilização da interceptação telefônica não autorizada. Alexandre de Moraes comenta que poderíamos também apontar a hipótese de utilização de uma gravação realizada pela vítima sem o conhecimento de um dos interlocutores, que comprovasse a prática de um crime de extorsão, pois o próprio agente do ato criminoso, primeiramente, invadiu a esfera de liberdade pública da vítima, ao ameaçá-la e coagi-la23. 22 Nesse sentido foi também o voto do Ministro Moreira Alves in HC 74.678-1/SP: "seria uma aberração considerar como violação do direito à privacidade a gravação pela própria vítima, ou por ela autorizada, de atos criminosos, como diálogo com seqüestradores, estelionatários e todo tipo de achacadores. No caso, os impetrantes esquecem que a conduta do réu apresentou, antes de tudo, uma intromissão ilícita na vida privada do ofendido, esta sim merecedora de tutela. Quem se dispõe a enviar correspondência ou telefonar para outrem, ameaçando-o ou extorquindo-o, não pode pretender abrigar-se em uma obrigação de reserva por parte do destinatário, o que significa o absurdo de qualificar como confidencial a missiva ou a conversa".

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O tratamento não será diverso se a gravação for feita por terceiro. Nesse caso, já entendeu o STF que “a prova obtida mediante a escuta gravada por terceiro de conversa telefônica alheia é considerada ilícita em relação ao interlocutor insciente da intromissão indevida, não importando o conteúdo do diálogo assim captado” (HC 80949/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.12.2001). 6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOSSA PROPOSTA – O JUÍZO DE ADEQUABILIDADE A necessidade de se atentar para as complexidades do problema é uma exigência a ser levada em conta, uma vez que a interpretação do Direito, por mais aberta que seja essa tarefa, se deve concretizar em perfeita coerência com o paradigma democrático do Estado de Direito vigente na atualidade.

Op. Cit. Pag. 131.

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As fórmulas apriorísticas, invariavelmente, conduzem a ilusões terríveis. Cria-se a ilusão de que se está buscando uma solução para o caso, quando, na verdade, o caso se transforma em mero instrumento de concretização da solução já pré-concebida. Funcionam essas fórmulas como uma espécie de mera subsunção ao caso concreto, para o qual já se concebeu previamente qual o tratamento a ser aplicado. Trata-se, conforme já afirmamos, de uma hipótese de préjulgamento, tanto quando não se afasta a introdução da prova ilícita no processo a partir do argumento de que o crime deve ser reprimido a todo custo, quanto em relação ao argumento de que os direitos e garantias fundamentais devam ser protegidos de toda e qualquer lesão ou ameaça de lesão. Em ambos os casos se tem uma hipótese de mera subsunção da solução ao problema; de mera adequação do problema aos contornos da solução (que lhe é anterior). Ao contrário disso, o que se deve buscar é a adequação da solução aos contornos do problema. A noção de adequabilidade que defendemos sugere que se deva verificar (e levar em conta) as perspectivas da situação conflituosa. Se a transgressão ao direito ou garantia fundamental se justifica, por exemplo, por autêntica necessidade da parte que a provocou, essa necessidade se torna suficiente para legitimar o seu comportamento e fundamentar a introdução da prova (ilicitamente obtida) no processo. Do contrário, se o comportamento da parte superou os limites da sua necessidade ou se existia outro meio de provar as suas alegações sem que fossem colocadas em xeque as garantias do acusado, ou ainda, se a transgressão resultou em dano superior ao benefício trazido ao processo, o juízo de adequabilidade, nesse

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caso, conduzirá ao afastamento das provas dos autos do processo, não podendo elas servir de fundamento da condenação do acusado. A idéia de ponderação de princípios (valores) pode parecer bastante sedutora, contudo não prospera diante da constatação de que conduz o julgador ao mesmo juízo prévio de condenação que se propôs desconstruir. Alexy acabou caindo no mesmo erro que procurou combater. A idéia por ele trabalhada almejava estabelecer um critério racional de ponderação de princípios de forma a afastar o subjetivismo, o decisionismo e o autoritarismo do Direito na solução dos conflitos entre eles. Contudo, seu objetivo não foi alcançado. É impossível estabelecer e assegurar a aplicabilidade de um critério efetivamente racional e objetivo para solucionar o conflito entre princípios, dentro da perspectiva de Alexy. Entregar ao julgador a tarefa de definir qual a dimensão de “peso” dos princípios conflitantes no caso concreto e, ainda, incumbi-lo de decidir qual deles possui o maior “peso” lamentavelmente não levará a uma decisão racional e objetiva, ainda que se exija desse julgador que fundamente racionalmente a sua preferência. O “critério” de Alexy, antagonicamente à sua proposta, leva ao subjetivismo e põe em risco as perspectivas internas do caso; não há nada que possa indicar, com um certo grau de segurança, que o julgador não haja decidido o “conflito” orientado por compreensões que são alheias às particularidades do caso. Ao eleger um princípio como de maior “peso”, o julgador pode estar sendo orientado por pré-compreensões pessoais acerca dos fatos e não pelas particularidades que esses fatos apresentam.

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Desse modo, a teoria da proporcionalidade, assim como aquelas primeiras, não merece prosperar, sobretudo quando se tem em conta o paradigma democrático do Estado de Direito. Devemos refletir sobre a sua adoção pelo Supremo Tribunal Federal e pela grande maioria da doutrina especializada brasileira. A ponderação de valores, da forma como foi arquitetada por Alexy, leva à hierarquização dos princípios constitucionais e falar em hierarquização de princípios num contexto de Estado Democrático de Direito é, no mínimo, contraditório. Destarte, num contexto em que o Direito assume uma característica pluralista, a atividade do juiz não mais se restringe à mera literalidade da lei e muito menos deve resultar em uma atividade tendente a hierarquizar o que nem o legislador se prestou a fazê-lo; ao contrário, é exigido do julgador um posicionamento que, a um só tempo, reflita certeza jurídica e aceitabilidade racional, de modo que sejam levados em conta os elementos fáticos do caso concreto e as expectativas dos personagens envolvidos na situação de maneira que estes se reconheçam na decisão que os irá afetar, ainda que esta lhes seja contrária24. Como bem pontuou Galuppo, numa sociedade em que existe um Estado Democrático de Direito “não é possível hierarquizar os princípios constitucionais porque são, todos eles, igualmente valiosos para a autodeterminação de uma sociedade pluralista”25 .

24 OLIVEIRA, Marcelo A. Cattoni de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p.110.

GALLUPO, Marcelo Campos. Os princípios jurídicos no Estado Democrático de Direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 143, p. 191-209, jul./set. 1999.

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No HC 80.949-9, Sepúlveda Pertence levantou essa questão e ressaltou também, com muita ênfase, seu ceticismo em relação à importação de institutos e

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teorias estrangeiras para solucionar problemas de aplicação das normas no contexto do ordenamento jurídico brasileiro. Para ele: “a recepção desavisada de teorias jurídicas estrangeiras é extremamente perigosa, pela diversidade dos dados dogmáticos de que partem em relação ao nosso ordenamento”. E ainda, fazendo referência a Luiz Roberto Barroso, Pertence conclui: até onde vá a definição constitucional da supremacia dos direitos fundamentais, violados pela obtenção da prova ilícita, sobre o interesse da busca da verdade real no processo, não há que apelar para o princípio da proporcionalidade, que, ao contrário, pressupõe a necessidade de ponderação de garantias constitucionais em aparente conflito, precisamente quando, entre elas, a Constituição não haja feito um juízo explícito de prevalência. (HC 80.949-9) (grifos nossos)

Assim, a irrestrita adoção do princípio da proporcionalidade como panacéia para a resolução de conflitos entre direitos fundamentais pode levar, como bem pontuou Alexandre G. M. F. Bahia, a “uma ordem suprapositiva de valores, confundindo direitos, normas morais, política, argumentos de custo/benefício etc”26.

26 In: Ingeborg Maus e o Judiciário como Superego da Sociedade. Revista CEJ, Brasília, n. 30, p. 10-12, set/2005.

A questão da admissibilidade ou não das provas ilicitamente obtidas no processo (penal) deve ser tratada à luz do caso concreto com base na noção de adequabilidade da pretensão invocada. Sendo assim, será o caso concreto a ditar se a pretensão do acusado em invocar a garantia da proibição das provas ilícitas é ou não abusiva, do mesmo modo que será a partir dessa constatação que se poderá dizer da aceitação ou não da sua introdução no processo, a fim de fundamentar a condenação do acusado.

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REFERÊNCIAS BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Ingeborg Maus e o Judiciário como Superego da Sociedade. Revista CEJ, Brasília, n. 30, p. 10-12, set/2005. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Constituição e as provas ilicitamente obtidas, Temas de Direito Processual, Sexta Série. São Paulo: Editora Saraiva, 1997. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 7ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2001. CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição, 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. GALUPPO, Marcelo Campos. Os princípios jurídicos no Estado Democrático de Direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 143, jul./set. 1999. GOMES, Luiz Flávio e Raúl Cervini. Interceptação telefônica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. GRINOVER, Ada Pellegrini. Provas ilícitas, o processo em sua unidade II. Editora Forense, Rio de Janeiro, 1984. GRINOVER, Ada Pellegrini A eficácia dos atos processuais à luz da Constituição Federal. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 1992, n. 37. HAMILTON, Sérgio Demoro. As provas ilícitas, a teoria da proporcionalidade e a autofagia do Direito. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 11, jan./jun. 2000 MARTINS, Lídia Villarim. Gravação Telefônica: prova ilícita, DireitoNET.2004 www.direitonet.com.br/ artigos/x/17/09/1709/ MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional, 15ª Edição. São Paulo: Ed. Atlas, 2004. OLIVEIRA , Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 5ª Edição. 2ª Tiragem. BH: Del Rey, 2005. QUEIROGA DE MATTOS, Ana Letícia: Apontamentos críticos à ponderação de valores adotada pelo ST. In: O Supremo Tribunal Federal Revisitado. BH: Ed. Mandamentos, 2003. SANTOS, Luciana das Graças. Boletim do ICP – Instituto de Ciências Penais. Ano IV – nº 60. BH. 2005. SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, pág. 180. SOUZA, Alexandre Araújo de. A inadmissibilidade, no processo penal, das provas obtidas por meios ilícitos: uma garantia absoluta?. Revista da EMERJ, V. 7, nº 27, 2004. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 22ª Edição. V.3. São Pulo: Saraiva, 2000.

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O Turismo Mundial, Evolução e Estratégias: o caso de Portugal

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O Turismo Mundial, Evolução e Estratégias: o caso de Portugal António Jorge Fernandes 1

Resumo: O turismo é hoje uma das atividades mais importantes da economia mundial. O crescimento que o setor enfrenta, tem coincidido com inúmeros desafios, entre os quais a globalização, a competitividade e a crescente instabilidade do cenário político e social mundial. O turismo encontra-se assim numa fase de forte crescimento em termos mundiais, e várias projecções da Organização Mundial do Turismo (OMT) indicam elevadas taxas de crescimento para os próximos anos. São várias as razões que fomentam esse crescimento espetacular do turismo e que apontam para os próximos anos mais de 1 bilhão e 500 milhões de turistas, gerando receitas na ordem de mais de 1 trilhão de euros em 2020. Também em Portugal o turismo representa para a economia um importante setor, responsável por mais de 8% do PIB e por mais de 6% de empregos diretos na economia portuguesa. Apesar do optimismo que reina no setor, os próximos anos serão absolutamente decisivos para o turismo português. Isso porque se evidencia, de forma sustentada, o crescimento e a concorrência acrescida de mercados turísticos em franca expansão, nomeadamente os países do leste europeu, concorrentes directos de Portugal na captação de turistas, e os destinos asiáticos, com a China à cabeça. Palavras-chave: turismo, evolução, crescimento, globalização, competitividade, economia, internacionalização, lazer e entretenimento. Abstract: The tourism is today one of the activities most important of the worldwide economy. The growth that the sector faces, has coincided with innumerable challenges, between which the globalization, the competitiveness and the increasing instability of the scene worldwide social politician and. The tourism meets thus in a phase of strong growth in worldwide terms, and some projections of the Worldwide Organization of Turism (OMT) indicate high taxes of growth for the next years. The reasons are several that foment this growth spectacular of the tourism and that they point a growth with respect to the next years

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António Jorge Fernandes Doutor em Ciências Econômicas e Empresariais pela Universidade de Barcelona - Espanha. Professor da Universidade de Aveiro-Portugal e Professor Visitante do Departamento de Turismo da UFMA - Universidade Federal do Maranhão-Brasil

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that will more than put into motion 1 billion and 500 million tourist, generating prescriptions in the order of more than 1 trillion of euros in 2020. Also in Portugal the tourism represents for the economy an important sector, responsible for more than 8% of the GIP and for more than 6% of jobs right-handers in the Portuguese economy. Despite the optimism that born in the kingdom in the sector, the next years will be absolutely decisive for the Portuguese tourism. This why it is proven of supported form, the growth and the increased competition of tourist in frank expansion, nominated the countries of the European east, competing markets direct of Portugal in the capitation of tourist and the Asian destinations, with China to the head.

Keywords: tourism, evolution, growth, globalization, competitiveness, economy, internationalization, leisure and entertainment

O Turismo tem vindo a assumir, ao longo dos últimos anos, um peso crescente e decisivo nas atividades econômicas a nível mundial. Não apenas no impacto que tem sobre o PIB de numerosos países, mas nas oportunidades de emprego que gera e nos importantes efeitos multiplicadores que lhe são reconhecidos. Esse setor encontra-se numa fase de forte crescimento em termos mundiais, e várias projeções da Organização Mundial do Turismo (OMT) indicam elevadas taxas de crescimento para os próximos anos. Várias são as razões para esse incremento do setor a nível mundial, entre as quais o aumento do poder de compra das famílias (fruto de um maior rendimento disponível), o desenvolvimento dos meios e tecnologias de comunicação, os níveis educacionais mais elevados da população mundial, as crescentes relações de negócios e interacção social à escala planetária (globalização), o aumento da esperança média de vida (que impulsionou o rápido crescimento

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do turismo sénior), a evolução dos meios de transporte, o aumento da dimensão das empresas através da sua integração vertical e concentração horizontal, a entrada de novos países emergentes no mercado, a contínua internacionalização da oferta e da procura, as formas de relacionamento com os clientes e a constante evolução da tecnologia (sobretudo com o incremento dos meios audiovisuais por parte dos meios de comunicação de massas, da Internet e de sofisticados meios de gestão) e um aumento lento mas gradual das horas destinadas ao lazer. A esse crescimento podemos ainda associar o forte crescimento das indústrias de entretenimento (parques, desportos de lazer, jogos electrónicos, cinema, media), o surgimento de várias empresas e empreendimentos não tradicionais no mercado, a acentuada evolução dos sistemas de distribuição, vendas e reservas e a concentração da oferta, através de fusões e aquisições. Mas valerá a pena insistir que esse crescimento se verá ainda mais acentuado no futuro se se confirmarem algumas tendências que afloram de maneira contundente: a. O envelhecimento da população e o crescimento médio do rendimento, que propiciará um maior volume de recursos disponíveis no futuro, para incrementar o desejo de viajar. b. Uma maior procura que se tornou já evidente, por mercados novos, como a América do Sul e a Ásia/Pacífico. O crescimento da procura por destinos asiáticos cresceu nos últimos cinco anos mais de 35 % e as previsões apontam a China como principal destino turístico no ano 2020, com mais de 130 milhões de turistas, num incremento anual que se situará nos 7,8 %.

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Se a estes valores acrescentarmos os mais de 56 milhões de turistas que chegarão no mesmo período a Hong Kong, cujo crescimento médio anual se situará nos 7,1%, e ainda os turistas que demandarão Macau e Taiwan, teremos um formidável mercado receptor. c. O impacto que a Internet virá a ter de forma crescente, ao longo da cadeia de valor do sector turístico. d. O forte crescimento do turismo de “saúde”, não apenas como forma de combater o stress crescente das sociedades modernas, cujo expoente máximo até há pouco era o turismo termal, mas agora intimamente associado à procura turística direccionada a países que se especializaram em determinadas ofertas nas áreas de saúde, com excepcional qualidade de atendimento médico e a preços extremamente competitivos, o que tem levado a um fluxo cada vez mais significativo do chamado turismo de saúde em direcção a estes países receptores. e. As evidências apontam também para um crescimento acentuado das estadas, não apenas para o turismo de lazer, mas também para o turismo de negócios. f. Existe um forte estímulo relativamente a férias que proporcionam aquilo que os turistas designam como “experiência única”. Tal fato tem feito crescer o turismo para destinos longínquos muito mais do que para destinos próximos dos locais receptores e tem feito surgir no mercado destinos emergentes cada vez mais atrativos. g. O turismo de fim de semana encontra-se também em franco crescimento, acelerando as perspectivas de crescimento do turismo regional e do turismo interno.

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h. O crescimento do turismo estará ainda associado a um fenómeno recente que assenta suas bases no impressionante crescimento das chamadas indústrias do entretenimento, associadas a actividades como cinema, jogos electrónicos, parques temáticos, desportos de lazer e aventura, e nos chamados Centros Urbanos de Entretenimento em franco crescimento, sobretudo na Europa e Estados Unidos. Este fenómeno fez crescer o turismo urbano de forma acelerada, e, associado ao fenómeno dos Resorts e do Timeshare, criou uma forma de turismo em franco crescimento. i. Finalmente é necessário associar os notáveis avanços da tecnologia e da inovação aos novos conceitos de gestão integrados, flexíveis e cada vez mais orientados ao consumidor, que de uma forma notável aprimoraram os processos de qualidade da oferta. O TURISMO A NÍVEL MUNDIAL A evolução que se registrou no movimento de turistas a nível mundial nos últimos cinqüenta anos foi extraordinariamente significativa. Nesse meio século, assistiu-se a uma espantosa expansão do número de chegadas de turistas internacionais, que evoluíram de 25,3 milhões em 1950, para 762,5 milhões em 2004, o que corresponde a um crescimento médio anual de mais de 7% ao longo desse período. A acrescentar a esse cenário as expectativas de crescimento do turismo para as próximas décadas, prevêm-se taxas superiores a 4,1% ao ano, podendo colocar o turismo, em termos de volume de negócios no mundo, acima inclusive dos sectores mais poderosos da economia contemporânea, as indústrias do petróleo e da produção automobilística. Só nos últimos dez anos, o acréscimo global do turismo mundial situou-se nos 45%, um valor de

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crescimento em muito superior a qualquer outro sector da economia mundial. As previsões de chegadas de turistas internacionais a nível mundial apontam, para 2020, um número extraordinário de 1,561 bilhão de turistas, o que significará um aumento percentual total de mais de 100% nos próximos quinze anos (quadro 1).

Na verdade vimos assistindo, ao longo dos últimos anos, a um progressivo alargamento dos destinos turísticos importantes no contexto mundial, como conseqüência de um esforço considerável de uma série de países e regiões que apostaram fortemente na atração de turistas, ao se aperceberem que o turismo representa um setor de fundamental importância económica. Esta importância acentua-se pelo fato de que o turismo gera a criação de emprego, sobretudo em regiões menos desenvolvidas, tem um forte impacto na balança de pagamentos pela entrada de divisas no país,

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contribui de maneira determinante para a riqueza do país, ao ser um fator de cada vez mais peso no PIB, leva à criação de uma série de infra-estruturas pelo poder público e também privado e gera uma elevada contribuição de impostos para os cofres do Estado. Assim, enquanto em 1950 cerca de quinze países recebiam a quase totalidade das chegadas de turistas internacionais, essas chegadas dispersaram-se por mais de oitenta países e regiões, que recebem, segundo a OMT, mais de um milhão de visitantes por ano. Destes oitenta países, seis estão em África (África do Sul, Zimbábue, Quênia, Argélia, Marrocos e Tunísia), sete no Médio Oriente (Bahrein, Egito, Jordânia, Líbano, Arábia Saudita, Síria e Emirados Árabes), quinze nas Américas (Uruguai, Peru, Chile, Brasil, Argentina, Guatemala, Costa Rica, Porto Rico, Jamaica, República Dominicana, Cuba, Bahamas, EUA, México e Canadá), dezesseis na Ásia/Pacífico (China, Hong-Kong, Japão, Coréia do Sul, Macau, Taiwan, Camboja, Indonésia, Malásia, Filipinas, Tailândia, Singapura, Austrália, Nova Zelândia, Índia e Irão) e trinta e seis na Europa (Dinamarca, Finlândia, Irlanda, Noruega, Suécia, Reino Unido, Áustria, Bélgica, França, Alemanha, Holanda, Suíça, Azerbaijão, Bulgária, República Tcheca, Estônia, Hungria, Kazaquistão, Letônia, Lituânia, Polônia, Romênia, Federação Russa, Eslováquia, Ucrânia, Andorra, Croácia, Chipre, Israel, Itália, Malta, Portugal, Eslovênia, Espanha, Grécia e Turquia). A Europa aparecer com especial preponderância nesse cenário mundial deve-se ao fato de ser o maior destino emissor e receptor do turismo mundial e de ter

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elevados índices de turismo intra-regional. Na verdade, em 2004, a Europa recebeu 54,5% do turismo internacional e, como destino emissor, foi responsável por cerca de 56,5% do total mundial de turistas. O turismo entre países europeus intensificou-se após a queda do muro de Berlim e o fim da guerra fria e com o término do conflito nos Balcãs, que devolveu ao turismo mundial uma das mais belas e potenciais regiões do mundo. As previsões da OMT apontam, porém, para um crescimento mais lento da procura internacional de turismo na Europa, cuja quota total deverá cair para 46% do total em 2020. Estas previsões para 2020 apontam ainda para expectativas que colocam os dez principais destinos turísticos mundiais com uma quota de 45,7% do total (quadro 2) e os dez principais países emissores de turistas responsáveis por quase 52% da emissão total de turistas a nível mundial (quadro 3).

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São as receitas do turismo um dos indicadores mais impressionantes da economia mundial. Em 2004, essas receitas ultrapassaram os 500 bilhões de euros (quadro 4).

Na pressuposição de que as receitas crescerão na mesma ordem do número de turistas, o que é uma previsão pessimista, pois o crescimento da economia mundial deve propiciar uma melhoria da renda das famílias a nível mundial, poderia o setor do turismo

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gerar receitas da ordem de 1 trilhão de euros em 2020! Na verdade nos últimos quinze anos a receita total gerada pelo turismo cresceu de 211,6 bilhões de euros para 500,6, um crescimento percentual de 136%, o que significa que as receitas poderiam chegar ao 1,18 trilhão de euros no ano de 2020, se se mantiver o atual ritmo de crescimento do turismo. Finalizando, um dos maiores desafios que se colocam ao turismo nos próximos tempos tem a ver não com os fatores limitativos do próprio turismo em si, mas sim com o principal problema global que a humanidade enfrenta nos dias atuais: as guerras e a intolerância do ser humano com aspectos sociais, culturais, étnicos e religiosos. Alguns destinos turísticos de excelência correm o risco de se tornarem autênticos cemitérios turísticos, a manterem-se as condições de conflitos reais e latentes com que as sociedades contemporâneas se defrontam. Isto poderá provocar um fenómeno que em tudo será semelhante às condições económicas que prevalecem em diferentes regiões do mundo, excluindo dos benefícios do turismo vários países e povos do globo, com elevadas potencialidades de exploração no setor. 1. O TURISMO EM PORTUGAL A atividade turística representa, em Portugal, algo em torno de 8 % do PIB nacional e emprega diretamente 6% da população economicamente ativa (aproximadamente 300.000 pessoas). Os últimos dados estatísticos disponíveis (Instituto Nacional de Estatística) apontam para valores próximos aos 10% da população ativa, quando englobamos na análise não apenas os empregos diretos, mas também os indiretos.

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As tendências de evolução e modernização das sociedades e o crescimento global da economia mundial beneficiaram, de forma decisiva, o crescimento do setor turístico. Portugal recebeu, em 2004, 11 milhões e 600 mil turistas e cerca de 27 milhões de visitantes, uma dimensão que se aproxima de um valor três vezes superior à população portuguesa (quadros 5 e 6).

Fonte: Direção Geral do Turismo

Nos últimos dez anos, assistiu-se ainda a um fenómeno crescente de aumento considerável do número de portugueses que fazem férias no País. Enquanto em 1996 não ultrapassavam os 3,8 milhões, em apenas oito anos, esse número pulou para aproximadamente 8 milhões, apenas 2 milhões a menos que a população total do país.

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Quadro 6

Fonte: Direção Geral do Turismo

Portugal está assim a nível mundial na 19ª posição entre os países receptores de turistas, e em 21º no que concerne às receitas, que atingiram os 6,3 bilhões de euros em 2004. Os últimos dez anos desmistificaram a idéia de que o turismo em Portugal se tinha massificado e perdido qualidade, com os gastos médios por turista em decréscimo. Na verdade, verifica-se que, desde 1990, os gastos médios por turista têm aumentado como pode ser observado no quadro 7.

Fonte: Direção Geral do Turismo

Embora os gastos médios dos turistas tenham aumentado, verifica-se, no entanto, que a permanência média dos turistas se reduziu ligeiramente, o que denota que, apesar da diminuição das permanências médias, os turistas gastam mais, num período menor de permanência no País (quadro 8).

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Fonte: Direção Geral do Turismo

2. DIAGNÓSTICO DAS CARACTERÍSTICAS DO TURISMO EM PORTUGAL Uma análise Swot do sector do Turismo Português, feita a finais dos anos 90, pela Deloitte Consulting (Oliveira, Fernando F., 2000), mostrava dados extremamente relevantes que praticamente não se alteraram nestes últimos cinco anos. Entre os pontos fortes estavam: bom clima, praias limpas e bonitas, paisagens atractivas, património histórico e cultural, reconhecido como destino internacional seguro, reconhecido como importante destino internacional seguro (sobretudo o Algarve) e uma boa relação preço/qualidade. Entre os pontos fracos ressaltavam-se: infra-estruturas insuficientes em várias regiões-chave do país; grande dependência de quatro grandes mercados emissores (Espanha, Inglaterra, Alemanha e França); poucos esforços de manutenção e melhoria da oferta nacional; pequena utilização de novas tecnologias; alojamento fortemente dependente de um pequeno número de operadores turísticos europeus; vários operadores independentes, de reduzida dimensão e não organizados; proliferação de alojamento extra-oficial; inexistência de um evento, monumento, especificidade cultural ou marca - âncora, para a imagem do País; insuficientes vôos regulares para o Porto e o Algarve; sistema de classificação da oferta turística não baseada na qualidade; iniciativas de promoção limitadas; falta de recursos humanos qualificados - sobretudo na

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época alta - e reduzido profissionalismo; forte sazonalidade; maior nível de desenvolvimento nos grandes centros e falta de actividades de entretenimento cultural, sobretudo na época baixa. O estudo apontava ainda as ameaças ao turismo português, que citava como sendo: a contínua percepção do País enquanto mero destino de sol e praia; a sobrepromoção do Algarve reduzindo a atenção sobre outras regiões que oferecem uma boa relação preço/qualidade; poucos projectos novos adaptados às tendências mundiais da procura; crescente concorrência ao nível global e regional; insuficiente acompanhamento daquilo que se passa a nível mundial em termos de gestão e qualidade hoteleira, sobretudo no que respeita a competências financeiras e tecnológicas. Entre as oportunidades que se apresentavam ao cenário do turismo português estavam: atracção de segmentos de procura de forte crescimento geográficos, socioeconômicos e demográficos-, maior cooperação entre as entidades privadas e públicas, a conclusão da barragem do Alqueva, no Alentejo, que será o maior lago artificial da Europa e poderá oferecer boas oportunidades de desenvolvimento, o uso de novos instrumentos financeiros para apoiar o investimento, desenvolvimento de uma nova oferta de produtos turísticos de vanguarda, atracção de operadores internacionais que possam contribuir para melhorar a qualidade da oferta, introdução de políticas/iniciativas com vista a aumentar a repetição de visitas e a diversificação de produtos turísticos e a introdução de tecnologias de ponta. A esta radiografia do turismo português, podem ainda ser acrescentadas algumas evidências actuais do sector:

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forte expansão do turismo interno, forte fragmentação das estruturas empresariais, uma excessiva concentração da oferta no litoral, sobretudo no Algarve, região de Lisboa e Ilha da Madeira, uma forte dependência do produto sol e praia, um vigoroso aumento da concorrência com outros países e regiões que apresentam características similares, e uma baixa produtividade acentuada por uma altíssima rotatividade da mão de obra. Os próximos anos serão absolutamente decisivos para o turismo português. Isso porque se evidencia de forma sustentada o crescimento e a concorrência acrescida de mercados turísticos em franca expansão, nomeadamente os países do leste europeu, concorrentes directos de Portugal na captação de turistas, e os destinos asiáticos, com a China à cabeça. 4. CONCLUSÕES Levando em consideração as principais deficiências com que se debate o turismo em Portugal, as principais preocupações do sector são a diminuição da sazonalidade da procura, a efectiva diversificação dos mercados emissores (Espanha, França, Alemanha e Reino Unido representavam em 2004 aproximadamente 80% da procura turística), a tentativa de transformar o turismo de massas num turismo com níveis melhores de qualidade, capaz de gerar um volume maior de receitas por turista e medidas capazes de impulsionar um desenvolvimento mais harmonioso do país, na tentativa de alargar a oferta turística a mais regiões do país. A criação de uma cultura de mercado, capaz de focar a atenção no binómio acompanhamento/antecipação das necessidades e expectativas dos clientes, apoiada

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em políticas que fomentem a qualidade, a formação, a inovação e uma melhor capacitação empresarial, é o principal objectivo de uma nova estratégia para o turismo em Portugal. Os novos desafios que se colocarão ao setor do turismo a nível mundial, virão de significativas alterações do perfil da procura e da oferta, sobretudo da globalização do fenómeno turístico, que será o principal fator a incrementá-lo nos próximos anos. Também as novas tecnologias da informação e a internet contribuirão de forma decisiva, para tornar disponível ao conhecimento dos turistas um maior leque de opções na hora de decidirem os destinos a procurar. Isso motivará a necessidade premente de se aumentar a qualidade e a diversidade da oferta turística, uma vez que a competitividade que se verifica em outros setores da economia mundial será estendida também ao turismo. Ainda que a procura pela opção sol e mar possa vir a continuar a ser privilegiada, muitas outras vertentes do turismo têm vindo a apresentar um crescimento elevado, sobretudo as que se relacionam com as questões de natureza ambiental, cultural e patrimonial. Algumas condições essenciais ao sucesso dos destinos turísticos estarão ainda associados a questões relacionadas com a comodidade da viagem, as acessibilidades, a flexibilidade da informação disponível, a disponibilidade de cuidados médicos e sobretudo os aspectos ligados à segurança. A nível mundial e se forem resolvidos os latentes conflitos e interesses antagónicos de diversas regiões do cenário mundial, o turismo apresenta-se como um dos setores de maior crescimento na economia

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mundial e capaz de gerar mais valias significativas para as diferentes regiões e países. As taxas de crescimento do número de turistas e de receitas a nível mundial, as características actuais que acompanham as sociedades modernas e a crescente redução das horas de trabalho em benefício de mais horas de lazer formam a simbiose perfeita para levar à descoberta do mundo um número cada vez maior de consumidores desejosos de engrossarem as estatísticas do turismo internacional. REFERÊNCIAS BENI, Mário Carlos. Análise Estrutural do Turismo. São Paulo: Edit Senac, 2000. COOPER, C., FLETCHER, J., WANHILL, S., GILBERT, D. & SHEPHERD, R. Turismo, princípios e práctica. Porto Alegre: Edit. Bookman, 2002. COSTA, C.M.M. O papel e a posição do sector privado na construção de uma nova política para o turismo em Portugal. Novas Estratégias para o Turismo, Seminário Aep, Portugal, 2000. GOELDNER, Charles R., RITCHIE, J.R., BRENT & MCINTOSH, Robert W. Turismo: princípios, práticas e filosofias, 8ª edição. São Paulo: Editora Bookman, 2000. IGNARRA, Luiz Renato. Fundamentos do Turismo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 1999. LICKOR, Leonard, J. & Jenkins, Carson L. Introdução ao Turismo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000. MOLINA, Sérgio. O Pós-turismo. São Paulo: Editora Aleph, 2003. OLIVEIRA, Fernando F. Novas Estratégias para o Turismo e Lazer. Novas Estratégias para o Turismo, Seminário Aep, Portugal, 2000. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO TURISMO, Introdução ao Turismo, São Paulo: Editora ROCA, 2001. PEARCE, Douglas G. & Butler, Richard W. (orgs). Desenvolvimento em turismo: temas contemporâneos. São Paulo: Contexto, 2002. SWARBROOKE, John. Turismo sustentável: meio ambiente e economia. Vol 2. São Paulo: Edit. Aleph, 2000. SWARBROOKE, John & Horner, S. O comportamento do consumidor em turismo. São Paulo: Edit. Aleph, 2000. THEOBALD, William F. (organizador) Turismo Global, 2ª edição. São Paulo: Editora Senac. YÁZIGI, Eduardo Abdo. Turismo uma esperança condicional. São Paulo: Global, 1999.

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Um Universo Musical bem Bachiano: Diversidade Cultural e Diálogos Musicais nas Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos (1930-1945)

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Um Universo Musical bem Bachiano: Diversidade Cultural e Diálogos musicais nas Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos (1930-1945) Loque Arcanjo Jr.*

Resumo: Este artigo tem como objetivo demonstrar como a música se tornou um objeto de pesquisa em História, por meio de uma discussão acerca do universo musical no qual foram escritas As Bachianas Brasileiras, de Heitor Villa-Lobos, analisando seus diversos diálogos musicais, bem como sua relação com a obra de J.S Bach no momento de criação das peças. Palavras-chave: Música, História Cultural, Bachianas, Heitor VillaLobos. Abstract: This article intends to demonstrate how the music has become a historical researching subject matter through a discussion concerning the musical universe in which the musician Heitor VillaLobos' Bachianas Brasileiras had been composed, analysing its various musical dialogues, as well its relations with the work of J. S. Bach just right the moment Villa-Lobos had created his pieces.

Keywords: Music, Cultural History, Bachianas, Heitor Villa-Lobos.

É que, sob a influência da sócio-música de Villa-Lobos e sob a influência dessas excursões noturnas por tascas e bares e casas de mulheres do Rio é que, em grande parte, nasceu, como sócio-linguística, um livro que pode ser considerado uma rude tentativa de equivalência de Bachianas Brasileiras. Essa tentativa de equivalência: Casa Grande & Senzala.1 (FREYRE, 1982)

A atual incorporação da música como objeto de pesquisa histórica não se deu da noite para o dia. Remonta, na verdade, a uma renovação teóricometodológica resultante de trabalhos de gerações de

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Professor de História do departamento de Turismo da PUC/MG e do UNIBH. Mestrando em História Social da Cultura com especialização em História da Cultura e da Arte pela FAFICH/UFMG. *

1 FREYRE, G. . VillaLobos Revisitado. Transcrição de palestra proferida na abertura do Festival Villa-Lobos em 01-111982. Datilografado. MVL /Rio de Janeiro

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historiadores. Estes, ao longo de pesquisas sobre as relações entre história e cultura, refinaram seus discursos na busca de diálogos cada vez mais fecundos com outras disciplinas, como a antropologia, a psicologia e, também, com a musicologia. Os trabalhos no campo musical são de difícil produção para os historiadores. Segundo Marcos Napolitano, as fontes musicais, sob o ponto de vista metodológico, são vistas como primárias, novas e de estatuto paradoxal. “O documento musical sugere uma dose de especulação, por parte do historiador, na medida em que a obra teria um conjunto de significados quase insondáveis e relativos, variáveis de acordo com a fruição do ouvinte” (NAPOLITANO, 2003, p. 263). E sem falar na variedade de interpretações, uma vez que as partituras suportam uma infinidade de possibilidades interpretativas. Seguindo pressupostos metodológicos rigorosos para análise e demonstrando que a música e a literatura não são meros “espelhos” de realidade, o historiador passou a perceber que estes registros podem ser instrumentos reveladores. Novos questionamentos requerem novas fontes. O interesse do historiador sobre estes novos documentos se explica segundo o interesse que o pesquisador tem em inquirir sobre o que estas fontes podem revelar sobre as sociedades do passado. Esse interesse está conectado, também, a nosso presente cada vez mais “sonoro” e “imagético”. Apesar de reveladora, esta documentação não fala por si só e, de forma inversa, deve ser questionada, levando-se em conta seu contexto de produção. As partituras e as gravações, por exemplo, não podem ser confundidas com “a música em sua essência”; partem de escolhas e de um conjunto de códigos culturais que fazem delas objetos cognoscíveis com natureza

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específica, em temporalidades também diversas e específicas. Em outras palavras, as diferentes produções musicais de um dado tempo podem fazer referências a formas que remontam a outros tempos históricos. Os elementos destas formas encontrados num passado estão ali “representados” nestas produções, e não mais presentes como em sua concepção original. Assim, as apropriações e (re)significações da música bachiana, por exemplo, demonstram como símbolos e sonoridades são “atualizados” em outro tempo dentro de um outro processo de criação. As fontes musicais devem ser colocadas em diálogo com outros documentos, como a literatura, para que tenham legitimidade na pesquisa histórica. Correspondências, diários, documentos oficiais, programas de concerto, memórias, periódicos, dentre outros, dialogam com as fontes musicais e trazem, em seus respectivos cruzamentos, indícios mais complexos das concepções de mundo do compositor e/ou de sua produção musical. Portanto, a música não pode ser vista somente como fonte. Ela se torna objeto a ser pesquisado, revelando apropriações e (re)significações de formas, gêneros e sonoridades que dizem respeito a identidades, práticas culturais e valores presentes no contexto em questão. Para além da questão formal, o processo de recepção é um dado fundamental para a pesquisa histórica. Em outros termos, é necessário ir mais além de uma análise que enfoque compassos, ritmos, gêneros, tonalidades, intensidades, grafia musical, dentre outros aspectos formais. Torna-se importante, no caso do tema em questão, levantar outra tipologia de problemas. Como estaria representada a música de J. S.

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Bach (1685-1750) nas Bachianas Brasileiras, de VillaLobos? Como funcionou o processo de seleção daquilo que Villa-Lobos chamou de bachiano em sua série de composições escrita em homenagem ao compositor alemão? Como estas peças se tornaram símbolos do nacionalismo musical brasileiro entre os anos 30 e 40? AS BACHIANAS: UM DISCURSO MUSICAL ANTROPOFÁGICO? Ao se tornar objeto de pesquisa histórica, a música não apenas revela o que se ouvia ou executava no passado. Ela se transforma em elemento construtivo, modelador, criador de mundos e realidades culturalmente compartilhados. As Bachianas Brasileiras dizem não apenas sobre o mundo no qual foram produzidas, mas também conformam uma certa idéia de nacionalidade, de brasilidade, e ao mesmo tempo nos diz sobre o processo de “tornar real” uma composição bachiana no século XX. Sem falar que pensar as Bachianas é também tentar compreender como Villa-Lobos e seu tempo pensavam a música de Bach. Outro fator importante se refere à identificação do lugar social ocupado pelo compositor e como essa posição interferiu na difusão e no “estatuto de autoridade” que sua música adquiriu, como “versão” do Brasil. Em 1930, Heitor Villa-Lobos chegara a São Paulo após sua segunda viagem a Paris. Estava com quarenta e três anos, e com uma fama já conquistada desde sua primeira viagem à capital francesa, em 1923. Após sua chegada, começa a tecer as partituras do que seria mais tarde, após 15 anos de trabalho, as nove Bachianas Brasileiras, conjunto considerado sua obra-prima, juntamente com os Choros, escritos na década anterior. BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006

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Dentre estas nove peças escritas entre 1930 e 1945, destaca-se a de número cinco. “Em grande parte responsável pela penetração de Villa-Lobos nas mais diversificadas faixas do público” (NOBREGA, 1971, p.83). As obras, segundo o compositor, seriam em homenagem a J. S. Bach (1685-1750). Para alguns biógrafos, musicólogos e estudiosos de sua obra “constituem o grande momento da música de nossa terra” (PALMA, 1971, p. 11). Diversas são as explicações biográficas para o interesse de Villa-Lobos por Bach. Essas se apóiam em um argumento presente em quase todos os textos sobre a vida e a obra do compositor carioca. Data de seus oito anos a adoração por Bach. A explicação é dupla e não implica necessariamente em qualquer genialidade: o garoto estava farto daquela música banal que o assaltava por todos os lados e queria agarrar-se a algo diferente. Duas coisas pareciam-lhe incomuns: Bach e a música caipira. Uma força irresistível impeliuo para Bach. Sua idade impedia-o de compreendê-lo imediatamente, mas isso, no momento pouco se lhe dava – aquela música era diferente. Responsável por esta nova predileção foi a tia Zizinha, boa pianista, grande entusiasta do Cravo bem Temperado. E o pequeno Heitor extasiava-se diante dos prelúdios e fugas que a tia lhe tocava. Como vemos, desde criança Heitor Villa-Lobos recusava-se instintivamente a aceitar a rotina: tinha uma moldura, preferentemente polifônica. O acorde perfeito para Villa-Lobos tinha, e ainda tem, o efeito dos acordes dissonantes para uma pessoa normal. Dissemos um pouco acima que Bach e a música caipira pareciam-lhe incomuns. Na verdade, o menino pressentiu até uma certa relação entre estes gêneros de música tão pouco afins, pelo menos aparentemente. (MARIZ, 1949, p. 26)

A biografia escrita por Vasco Mariz é resultado de uma entrevista concedida por Villa-Lobos ao musicólogo. Torna-se necessário, portanto, como demonstra Guérios (2001), destacar o possível caráter autobiográfico do texto. A “adoração por Bach” desde os oito anos de idade apontaria para a necessidade por parte do biografado de construir sobre si a imagem de Ciência&Conhecimento

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um compositor prodígio como Mozart ou Beethoven, por exemplo? O garoto, “farto daquela música banal”, ouvia Bach. Isso não soaria ... genial? Sobre esse ponto, Mariz faz questão de frisar: a adoração por Bach “não implica necessariamente em qualquer genialidade”. Mas, ao contrário, parece que o biógrafo induz o leitor a pensar de forma diferente. Estabelecer um vínculo entre a música alemã e os acordes e melodias “caipiras” da música brasileira não soaria muito bem? Como poderia não parecer genial um “menino” que “pressentiu” uma relação entre a “música caipira” e as composições de Bach? Outros musicólogos seguem a mesma argumentação para explicar a composição das Bachianas. Alguns trechos parecem diretamente influenciados pela biografia pioneira de Vasco Mariz, escrita ainda na década de 1940: “Alimentado desde infância nestas duas fontes generosas – Bach e o populário musical brasileiro – era o compositor predestinado a realizar esta milagrosa fusão” (NOBREGA, 1971, p. 12). Nota-se a permanência da mesma idéia concebida, três décadas anteriores, na primeira biografia: a questão da genialidade e da predestinação como fundamento para justificar a composição das Bachianas Brasileiras. Referindo-se à obra, Bruno Kiefer questiona: ao prestar uma homenagem a Bach, Villa-Lobos não teria ido longe demais e forçado assim uma síntese inviável? (KIEFER, 1981, p. 114) Mário de Andrade, ao comentar a transformação operada por Villa-Lobos em sua maneira de compor dos anos 20 aos 30, parte para um caminho mais complexo e crítico. Mário faz uma comparação entre os Choros e as Bachianas. Segundo o musicólogo, a revolução de 1930 teria afetado não só a vida, mas também a obra do compositor, marcando o início de

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um período distinto da fase “brasileira” representada pelos Choros. O autor de Macunaíma aponta a opção por Bach como uma “solução desesperada” por parte do compositor: Mas enfim Villa-Lobos se fixa em Bach como uma solução talvez um pouco desesperada, e volta a produzir livremente. É o novo ponto culminante, das “Bachianas” em principal, sem mais aquela plenitude e mestria irretorquível da fase brasileira, mas sempre apresentando obras de muito interesse e algumas de grande valor. Villa-Lobos é o grande compositor brasileiro. (ANDRADE apud COLI, 1998 [1945], p. 173)

O trecho escrito por Mário de Andrade em 1945 demonstra uma explicação diversa para adoção de Bach por parte de Villa-Lobos. O que Mário teria chamado de “solução desesperada”? Com que parâmetros distingue “nacional” de “brasileiro” quando diz, mais à frente no texto, que “Villa Lobos se torna um artista condutício, anexado aos poderes públicos, bem pago, não mais necessariamente brasileiro, mas nacionalista” (ANDRADE apud COLI, 1998 [1945], p. 173)? Na década de 20, é notória a adoção do programa de Mário de Andrade por parte de Villa-Lobos na busca da criação de uma “música brasileira autêntica”. A estratégia de apropriação “espertalhona” da música estrangeira, destacada no Ensaio Sobre a Música Brasileira, escrito em 1928, parece ter sido seguida de forma mais eficiente por Villa-Lobos, segundo o próprio Mário, nos Choros do que nas Bachianas, escritas duas décadas depois. Quando, no seu Ensaio Sobre a Música Brasileira, Mário de Andrade diz que “a reação contra o que é estrangeiro deve ser feita espertalhonamente pela deformação e adaptação dele” (ANDRADE apud NAVES, 2001, p.189-191), ele está percebendo, segundo (NAVES, 2001, p. 190), “os

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riscos de um procedimento unilateral, capaz de tomar um único elemento étnico como configurador da identidade brasileira, criticando uma certa tendência de pensar o ‘nacional’ a partir do ‘exótico’”. O próprio Villa-Lobos se torna alvo desta crítica, segundo Naves, ao criar uma “pseudo-música indígena” (ANDRADE apud NAVES, 2001, p.190). O que teria levado Villa-Lobos a escrever, a partir de 1930, a série em homenagem a Bach? Certamente, ele deve ter ouvido este questionamento diversas vezes após as publicações das famosas partituras e das diversas execuções públicas feitas pelo maestro regendo as peças.

Assim como Pepper-corn (1989), acredito que não e possível estabelecer uma fase "neoclássica" de VillaLobos, pois o compositor compunha ao mesmo tempo peças que apresentavam estilos completamente diversificados. Classificar as Bachianas como peças musicais representantes de um estilo específico não traria benefício algum para os objetivos propostos neste trabalho.

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Diversos trabalhos apontam e continuam a apontar os Choros como uma fase mais experimental de Villalobos, seguindo um caráter mais brasileiro da obra do compositor; e as Bachianas, menos modernistas no sentido de uma volta aos modelos românticos e neoclássicos2 em voga na Europa, naquele momento. Até que ponto a historiografia não reforça a visão de Mário sobre a obra e aceita, assim, a idéia de maior ou menor autenticidade “brasileira”? O caráter antropofágico presente no Choros n°2 não estaria presente nas Bachianas, que também remontam a gêneros musicais brasileiros e os adaptam em contraponto a ritmos caracteristicamente bachianos? O mesmo não teria sido realizado com os ritmos e formas musicais herdados de Bach quando transformados ao “estilo” brasileiro? Ou Villa-Lobos apelara para o “exótico”, provocando, assim, uma crítica ácida por parte de Mário de Andrade? As Bachianas não representariam também um universo cultural híbrido, mestiço e multifacetado? O discurso antropofágico não estaria presente nas décadas de 30 e 40 lado a lado a um projeto político pedagógico

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“homogeneizador”, levado a cabo pelo governo do qual fez parte o compositor? O discurso político unificador eliminaria a diversidade da obra de arte em função destes elementos “homogeneizadores”? O nacional não pode ser aceito como um ponto de partida, como categoria. Nesse sentido, antes de “nacionalistas”, as Bachianas trazem elementos representantes de tradições musicais que remontam ao século XIX, tal como a modinha. Ao mesmo tempo, gêneros musicais apropriados da obra de Bach. Como opera o mecanismo sócio-cultural que permite estas obras serem reconhecidas ao mesmo tempo, como “Bachianas” e “Brasileiras”? Acredita-se aqui que a música nacionalista, representada pelas Bachianas, espelha um lugar de interseção entre diversas temporalidades e representações da música brasileira. A aparência homogênea destas peças não pode esconder a característica híbrida e mestiça destes trabalhos. Em outros termos, estas peças explicitam, à luz de uma análise cultural, a confluência de temporalidades diversas: modinhas, emboladas, cantilenas e martelos associam-se à música européia representada por árias, fugas e outras formas musicais provindas da Europa. Essa conclusão comprovaria a adoção do programa de Mário exposto no seu Ensaio. A música, assim, se tornaria um dos canais através dos quais a cultura é transmitida e transportada de um tempo a outro. Deixando de lado a lente da separação e da dicotomia com a qual as ciências sociais sempre enxergaram as relações culturais, este artigo pretende apontar a “transmissão”, “transformação” e os percursos de gêneros musicais, ritmos, formas, sonoridades, temáticas, grafias, etc, (“fragmentos e estilhaços” 3)

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que representariam uma diversidade cultural e uma mistura características de uma produção musical que se desenvolveu “entre mundos” que se cruzam. Nesse mesmo sentido, pensando em termos de diversidade e de mistura, Gruzinski alerta que o uso de expressões como “cultura brasileira” ou “cultura nacional” devem-se mais “à tradição das ciências sociais que às obscuras tradições afro-indígenas do Brasil”. Estes enfoques dualistas e maniqueístas seduzem pela simplicidade. “As mestiçagens quebram esta linearidade” (GRUZINSKI, 2002, p. 26). Pode-se perceber essa mesma preocupação em Chartier (2002) quando afirma que “o que se torna muito caro à abordagem cultural do passado é analisar como se cruzam e se imbricam diferentes figuras culturais” (CHARTIER, 2002, p. 49). Como VillaLobos se apropria das “figuras culturais” ao longo da produção das Bachianas? Nesse ponto, o conceito de apropriação cultural pretende “realçar a maneira contrastante através da qual os indivíduos fazem uso dos motivos ou das formas que partilham com os outros” (CHARTIER, 2002, p. 50). Essas “figuras culturais” são aqui entendidas como formas, ritmos, referências e gêneros musicais, com os quais o compositor manteve algum contato e que estão representados em suas composições.

Os termos estão em GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. SP: Companhia das Letras. 2002, p 87.

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Fabris (1994) afirma que o conceito de modernidade e suas convergências possíveis com o modernismo e a imbricação entre nacionalismo e engajamento estão dentre os principais enfoques sobre o modernismo. Ainda segundo a autora, os recentes trabalhos sobre o modernismo brasileiro chamam a atenção para a necessidade de um estudo aprofundado do século XIX, o que ela chama de “as raízes oitocentistas da modernidade brasileira”. No caso da manutenção de

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ideais românticos na concepção das Bachianas, entre os anos 30 e 40, este ponto se torna muito importante. No Ensaio, Mário explica como a tradição musical brasileira deve ser revisitada pelo músico nacionalista. As Bachianas representariam de certa maneira a concretização deste “programa” ao buscar elementos musicais fragmentados, modificados, (re)significados ao longo do tempo. De qualquer maneira, é necessária uma pesquisa mais detalhada que tenha como hipótese a utilização e o apelo ao “exótico” por parte do maestro carioca. O processo de criação musical das Bachianas, em certa medida, é fiel à posição de Mário de Andrade com relação à memória. Memória e esquecimento fazem parte, segundo Souza (1999), da estratégia discursiva de Macunaíma, obra publicada pela primeira vez em 1928. O esquecimento não se apresenta como destruição do passado, mas como selecionador de fragmentos que comporiam a narrativa. Esses “fragmentos e estilhaços”, presentes na música brasileira, fazem parte da mistura proporcionada pelos encontros entre América, África e Europa no início do processo de mundialização, segundo ele, no século XVI, e não pode ser reduzido à formulação de uma nova ideologia nascida da globalização. “O esforço que fazemos para juntar os fragmentos que nos chegam ininterruptamente de todos os campos do globo, tornou-se um exercício planetário que na verdade intensifica as práticas inauguradas no México do Renascimento” (GRUZINSKI, 2002, p.87). A constante referência utilizada por Gruzinski aos processos contemporâneos (como exemplo, a própria obra de Mário de Andrade) permite o redimensionamento do processo de mundialização,

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sob o ponto de vista histórico, a partir da articulação sincrônica e diacrônica dos tempos cruzados nos cinco séculos de sua construção. Essa ponte temporal construída pelo exercício experimentado por Gruzinski fornece novos paradigmas para o enfrentamento da questão da mestiçagem e para as indagações que norteiam nossos interesses pelas representações construídas acerca da mestiçagem. Investigando a obra de Villa-lobos, visualizam-se os encontros entre referências de mundos que não comportam mais apenas uma definição objetiva como, por exemplo, música nacionalista ou nacional. Torna-se legítima, portanto, a necessidade de se investigar as transcrições, os arranjos, os estudos de obras de Bach, feitas por Villa-Lobos durante o período de composição das Bachianas e que possivelmente estão representadas nas peças. Mostrase necessário, também, para responder historicamente os problemas que se colocam, investigar o universo musical no qual as obras foram compostas. O que Villa-Lobos ouvia? Quais obras eram executadas naquele contexto? Qual o contato que o compositor mantinha com as obras de Bach, além destas transcrições? Quais os mecanismos de difusão das obras de Bach e das peças do próprio Villa-Lobos? O que se perde e o que se mantém de tradições musicais apropriadas pelo compositor? UM UNIVERSO MUSICAL BACHIANO: VILLA-LOBOS “LEITOR” DE J. S BACH Em 26 de agosto de 1930, Heitor Villa-Lobos rege seu primeiro concerto no Brasil após quase três anos na Europa. Concerto promovido pela Sociedade Sinfônica de São Paulo. No repertório, dentre outras peças, o primeiro Concerto de Brandemburgo, de Bach (ANDRADE, 1963 [1930], p. 146). Villa-Lobos,

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obviamente, estudara o concerto. Por que não o de n° 2 ou de n° 6? A escolha do Concerto de Brandemburgo, n° 1 pode se justificar pela maior facilidade de adaptação da sonoridade desta peça àquele universo musical. A escrita do concerto permite maior mobilidade por parte do regente em promover alguma alteração, seja na orquestração ou na própria interpretação. E foi o que aconteceu. Villa-Lobos substituiu o violino pequeno por um violinofone, deixando provavelmente o concerto com uma sonoridade mais “romântica” em termos de intensidade sonora. A apresentação desta peça foi um dentre vários outros contatos diretos de Villa-Lobos com a obra de Bach. Durante toda a década de 30, esses contatos se intensificam. Transcrições, arranjos e composições ao estilo bachiano começam a fazer parte da rotina do compositor até a década seguinte. Datam desse período as transcrições da Fantasia e Fuga n° 6 , do Prelúdio e Fuga n° 4 e 6 e da Toccata e Fuga n° 3, todas de 19384. As Bachianas n° 5 e 6 foram compostas exatamente neste ano. A de n° 5, escrita originalmente para soprano e orquestra de violoncelos, e a de n° 6, para fagote e flauta. É muito interessante notar que alguns elementos musicais presentes nas obras de Bach se encontram quase que inalterados nas partituras de Villa-Lobos. Quando as melodias são modificadas, as estratégias encontradas pelo compositor para manter a aproximação rítmica, por exemplo, são interessantíssimas. Nas árias das Bachianas Brasileiras n° 5 e n° 6 5, nos primeiros compassos de ambas as peças, Villa-Lobos apropria-se de um famoso trecho da Toccata e Fuga n° 2 6 para órgão. A escala inicial utilizada pelo compositor brasileiro na introdução da Bachiana n° 6, executada pela flauta, está localizada nos

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MVL/Rio de Janeiro Bb/P207A forma abreviada MVL (Museu Villa-Lobos) será utilizada daqui em diante para facilitar a referência documental.

4

5 VILLA-LOBOS, H. Bachianas Brasileiras n° 5: para canto e orquestra de cellos (manuscrito) RJ, 1938. MVL/ Rio de Janeiro - P.5.1.4 e VILLA-LOBOS, H. Bachianas Brasileiras n° 6: para flauta e fagote (manuscrito) RJ, 1938. MVL/ Rio de Janeiro P.5.1.4

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compassos 12 e 13 da peça escrita na Alemanha entre os anos de 1703 e 1707. Os intervalos, mesmo que em tonalidades diferentes, nesse caso, são reproduzidos de forma idêntica. Mesmo que não existam, no Museu Villa-Lobos, registros de um possível arranjo ou transcrição dessa Toccata em especial, certamente, Villa-Lobos a estudara. No movimento da Bachiana Brasileira n° 5, denominado “Martelo”, escrito em 1945, Villa-Lobos apropria-se do mesmo recurso citado acima. Em intervalos de terça, o piano7 que acompanha o canto executa uma seqüência descendente no momento em que acompanha o seguinte texto do canto: “Ai, triste sorte do violeiro cantadô! Ah! Sem a viola que cantava o seu amo, Ah! Seu assobio é tua flauta de irerê...”8. O trecho mais uma vez é semelhante àquele apresentado na Toccata e Fuga n° 2, de Bach, e mais uma vez utilizado por VillaLobos.

Bach, J. S: Tocata n° II in: Johann Sebastian Bach's Werke, Orgelwerke Erster Band. Leipzig: Bach-Gesllschaft, 1857.

6

Ver a versão para canto e piano arranjada pelo próprio compositor: VILLA-LOBOS, Heitor. Bachianas Brasileiras n° 5 for soprano e orchestra of violoncelli (voice and piano) New York: Associated Music Publishers, Inc. s/d MVL/Rio de Janeiro P.5.2.3

7

8

Seguindo as indicações de Mônica Duarte (2002), é importante destacar, para fins metodológicos, que existe um processo de seleção e descontextualização por parte do compositor no momento de concepção da obra. Essa seleção se dá por critérios culturais. Os elementos figurativos, classificados aqui como bachianos, são culturalmente naturalizados como elementos da realidade e não mais de pensamento. Relativos ao processo de objetivação, a seleção e descontextualização são inerentes ao processo de criação e recepção – e, portanto, re-criação – dos objetos musicais. Não podem, assim, ser encarados como “provas” diretas e objetivas do passado e sim reveladoras de subjetividades intrínsecas em seus respectivos discursos. O que está nas partituras não é exatamente a música de Bach, mas sim um conjunto de símbolos que permitem um conjunto de receptores reconhecerem aqueles elementos como bachianos.

Idem

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O ano de 1941 fora de um intenso contato com Bach por parte do compositor brasileiro. Diversos prelúdios e fugas transcritos para várias formações orquestrais datam deste período. Nesse mesmo ano, realizou-se no Rio de Janeiro o “Festival Bach Villa-Lobos”. Às 17 horas do dia 27 de outubro, o Conjunto de Violoncelos, sob a regência de Edoardo de Guarnieri, teria iniciado, de acordo com o programa, uma série de obras compostas por Bach e arranjadas por VillaLobos. No repertório, prelúdios e fugas. O impresso de divulgação do concerto dizia: “A arte multiforme de Heitor Villa-Lobos achou como farol e guia, no seu último desenvolvimento, a obra genial do Cantor de Leipzig, João Sebastião Bach” 9. Naquela segunda feira, além das 4 fugas e 4 prelúdios do Cravo Bem Temperado, estava no repertório a obra As Bachianas Brasileiras n° 110. A música de Bach, desde a sua redescoberta feita por Félix Mendelssohn, regendo a Paixão Segundo São Mateus, em fins do século XIX, não parara de se popularizar. Naquele contexto “romântico”, Mendelssohn estabeleceu uma série de transformações na interpretação (RUEB, 2001). O modelo de Kultur se fixara no modelo germânico, em ascendência. Para a música brasileira, não poderia ser diferente: “Ora, toda e qualquer imaginação criadora, sejam mesmo as incomparáveis de Bach ou de Mozart, tem seus altos e baixos” (ANDRADE, 1963 [1930], p. 154). Para Mário de Andrade, a figura de Bach soava como algo insuperável na música ocidental. É muito pouco estudado o papel desempenhado por Mário na formação e na carreira de Villa-Lobos. O compositor aderira ao movimento musical de momentos anteriores e o mesmo acontecera nas décadas de 30 e

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40. Mais que uma atitude desesperada, como afirmara Mário em 1945, no trecho citado anteriormente, o universo musical demonstra que Bach transitava com uma certa regularidade, como se pode notar no Festival realizado em 1941. E este trânsito certamente aproximou Villa-Lobos da obra do compositor alemão.

11 VILLA-LOBOS, Heitor. Predude n°3. Editions Max Eschig, 48 rue de Rome, Paris. 1955 [1940].

12 MUSICA VIVA. Prelúdios para violão de Villa-Lobos. [1941] MVL/Rio de Janeiro

13 Ver os trabalhos de PEREIRA, Marco. Heitor Villa-Lobos: sua obra para violão. Brasília: Musi Méd, 1984; SANTOS, Turíbio, Heitor Villa-Lobos e o violão. Rio de Janeiro: MVL, 1975.

Villa-Lobos transcreveu em 1938 a Toccata e Fuga n° 3 do original para órgão.A peça fora transcrita pra uma orquestra composta de 2fl., 2ob, c. inlg, cl. baixo, 2fg, cfg, 4cor, 2trop, 2trb, Tim e cordas. Desta trancrição existe localizada no Acervo do MVL apenas a cópia manuscrita da parte da trompa. Biblioteca MVL/ Rio de Janeiro - p..207.1.1

É de 1940 a série de seis prelúdios para violão11. Como anota o próprio compositor na partitura, o Prelúdio n° 3 fora escrito em homenagem a Bach e, como trazia um periódico daquele ano, era “preparatório para um concerto para violão e orquestra de câmara” 12. Os trabalhos que se propuseram a desenvolver uma análise da obra para violão solo do compositor se limitaram a apontar o “caráter” bachiano do prelúdio, estabelecendo um debate técnico e harmônico da partitura13. No período, Villa-Lobos fazia a transcrição de algumas das mais difundidas das peças de Bach para órgão: a Toccata e Fuga n° 3.14 A peça fora executada em 4 de março de 1944 sob a regência do maestro15. A utilização da nota pedal, recurso técnico aplicado ao órgão, é apropriada e utilizada por VillaLobos na segunda parte do prelúdio para violão, escrito em 1940.

14

15 VILLA-LOBOS. Sua Obra. 3ª ed., Rio de Janeiro: MV-L, 1989, p. 151-155.

O caráter romântico é um dos dados importantes nas transcrições das obras de Bach feitas por Villa-Lobos entre 1938 e 194116. A transcrição de uma peça para instrumento solo em uma execução que requer uma grande orquestração sinfônica, como se pode observar na transcrição da Toccata e Fuga n° 3, supra citada, estava de acordo com os pressupostos românticos herdados de uma tradição presente no século XIX, cultivada por compositores como Liszt, Wagner e Mahler e resgatada por Villa-Lobos nas décadas de 30 e 40.

16 VILLA-LOBOS. Sua Obra. 3ª ed., Rio de Janeiro: MV-L, 1989, p. 151-155.

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CONCLUSÃO Há muito que se estudar sobre a música de Heitor Villa-Lobos. Os documentos citados neste artigo estão disponíveis há um bom tempo para pesquisadores. O momento é fecundo, em parte, devidas às novas possibilidades apontadas pela História Cultural. Num trabalho recente, Paulo Renato Guérios fez uma pesquisa exaustiva sobre o compositor e sua obra. Acredito que permaneceram, na maioria dos trabalhos sobre a música de VillaLobos, ora uma análise mais estética das composições, ora uma abordagem mais biográfica. Guérios tentou buscar um equilíbrio e o resultado final foi um trabalho que contemplou tanto a música quanto a vida do compositor. Um outro grupo de pesquisas, estas em maior número, a partir da última década, privilegiou a relação da obra e da vida do compositor com a construção da nação. Toda essa tradição de pesquisa em torno do tema passa, atualmente, por uma renovação teóricometodológica que aproxima o historiador das fontes musicais e exige dele um conhecimento cada vez mais específico. O caminho está indicado por essa nova historiografia. O que se pretende neste momento é a busca de um diálogo entre diferentes documentos e a música, a fim de se escrever uma história cada vez mais musicológica e uma musicologia cada vez mais histórica.

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O Homem e o Meio Natural nas Minas Gerais durante o Período Colonial

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O Homem e o Meio Natural nas Minas Gerais durante o Período Colonial Leandro Pena Catão*

Resumo: O presente estudo analisa o período colonial mineiro à luz das relações entre História e meio ambiente. Apresenta-se uma série de fontes relativas à temática História e Natureza referentes às Minas Gerais para os séculos XVIII e XIX. Trata-se de um levantamento das técnicas de mineração empregadas naquele contexto e as conseqüências da aplicação de tais técnicas sobre o meio ambiente. O estudo pretende ainda analisar a leitura que os homens do século XVIII tinham da natureza que os cercava, assinalando as sensíveis alterações que tal leitura sofreu ao longo da segunda metade do século XVIII sob a influência do Reformismo Ilustrado em Portugal. Palavras-chave: História e Natureza; Mineração; Minas Gerais; Reformismo Ilustrado Abstract: This study analyzes the colonial period of Minas Gerais, keeping in mind the relation between History and Environment. Here we have several fonts concerning the theme History and Nature in Minas Gerais in the XVIII e XIX centuries. Actually, it is an overview about mining techniques used in that context and the consequences of its applications in the environment. This study also intends to analyze the point of view of XVIII century's men about the nature around them, emphasizing the sensible alterations that this point of view had suffered in the second half of XVII century, under the influence of the Illustrated Reformism in Portugal.

Keywords: History and Nature; Mining; Minas Gerais, Illustrated Reformism

Há bastante tempo historiadores e estudiosos de outras áreas do conhecimento vêm se debruçando sobre os mais variados aspectos da História das Minas Gerais durante o período colonial. Entretanto, são escassos e superficiais os trabalhos que abordam

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Doutor em História Social da Cultura pela UFMG Professor da Faculdade Estácio de Sá e da FUNEDI/UEMG 1

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especificamente a interação entre homem e meio ambiente na Capitania Mineira Colonial. Uma das intenções deste trabalho é suscitar a curiosidade de pesquisadores e estudiosos do referido tema para esta nova e interessante perspectiva de trabalho historiográfico, que lida exatamente com a correlação entre homem e meio ambiente. Este trabalho não se propõe a nenhum aprofundamento teórico no que diz respeito à metodologia da História Ambiental1, pretendendo apenas contribuir modestamente com a apresentação de aspectos referentes à forma com que a Coroa Portuguesa e os habitantes das Minas Gerais lidaram com a natureza, então exuberante, que os cercava.

Termo cunhado pela historiografia norte-americana em meados do século XX. No entanto, muitos trabalhos dedicados à esta temática foram produzidos fora dos Estados Unidos, sem necessariamente reivindicar o "rótulo" de História Ambiental, sobretudo na França.

1

2 BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil. p. 6163. ANTONIL, André João. p. 164-165.

Os primeiros veios auríferos foram encontrados na região das Minas Gerais no final do século XVII, perpetradas por várias Bandeiras paulistas. As descobertas se deram concomitantemente entre os anos de 1693-1695 na região do Rio das Velhas e nas proximidades onde se estabeleceria Vila Rica2. É difícil estimar o estado em que se encontrava a natureza, nos tempos em que os aventureiros paulistas fizeram os primeiros achados do metal precioso. O que sabemos é que boa parte do território que hoje corresponde ao território do Estado de Minas Gerais era recoberto pela mata atlântica, uma esplendorosa floresta, que guardava em seu interior uma igualmente fabulosa diversidade de seres vivos de todos os gêneros. Naquele ambiente florescia uma das mais extraordinárias biodiversidades existentes no nosso planeta3. A outra parcela do território mineiro era recoberto pelo cerrado, paisagem não tão exuberante nem tão rica quanto à biodiversidade em comparação com a mata atlântica, mas nem por isso menos bela4. Um fato que ilustra bem o quanto era difícil o acesso e locomoção naqueles tempos em que as Minas Gerais

3 DEAN, Warren. A Ferro e Fogo. p. 19-37

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eram recobertas pela mata atlântica era o fato de que se gastava quatro dias para ir do acampamento de mineração de Vila Rica às vizinhanças de ribeirão do Carmo, apesar de a distância entre as duas localidades ser de apenas duas léguas. O que dificultava o acesso eram “os grandes matos que impediam a certeza e brevidade do caminho” 5. A descoberta do ouro na região das Minas Gerais desencadeou um fabuloso contingente populacional em direção àquelas matas e cerrados. Foi a maior corrida do ouro da História da humanidade6. Num curtíssimo período, a região das Minas já estava povoada por dezenas de milhares de homens, todos em busca do enriquecimento a partir da exploração do ouro. A origem dos aventureiros era a mais variada: reinóis, paulistas e outros colonos vindos de outras partes da América portuguesa, acompanhados de seus cativos negros ou índios. Os primeiros habitantes das Minas não tinham por hábito fixar residência, devido ao caráter itinerante que caracterizava a exploração naquele contexto. Havia apenas dois caminhos de acesso àquelas terras, um com origem em São Paulo, denominado caminho velho, outro que partia da Bahia e acompanhava o rio São Francisco. Devido à falta quase absoluta de infra-estrutura, a vida dos primeiros mineiros foi bastante dura, marcada pela fome e carestia de uma série de itens. Não foi raro naquele contexto homens morrerem de fome com verdadeiras fortunas em ouro presas à cintura, ou terem que abandonar regiões riquíssimas em ouro para não morrerem de fome 7. Era um expediente do homem colonial e das populações indígenas antes da chegada dos europeus a estas terras, o hábito de procurar na natureza selvagem

Isso do ponto de vista de um amante da natureza contemporâneo.

4

5 BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil. p. 63.

6

Idem. p. 107.

BOXER, Charles R. p. 7172. ANTONIL, André João. p. 164-168 e 181-186.

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parcela importante do seu sustento diário. A natureza era uma fonte de alimentos e outros recursos indispensáveis à vida8. Saber como extrair do meio ambiente os meios básicos para a subsistência foi uma vantagem vital para aqueles que tiravam proveito de tal situação. Nesse ínterim, os paulistas levavam uma ligeira vantagem com relação a seus concorrentes reinóis, uma vez que seus laços com as culturas indígenas legavam àqueles conhecimentos extraordinários de como viver num meio tão hostil aos que desconheciam os segredos das matas e sertões. Em determinadas circunstâncias de extrema penúria vivida pelos mineiros durante os primeiros anos de mineração nas Gerais, tais conhecimentos foram crucias para determinar aqueles que teriam sucesso na dura empreitada da mineração. Para sobreviver, muitos homens “se aproveitarão até dos mais imundos animais” para se alimentarem9. O alimento era coletado na natureza das mais diversas formas. Raízes, animais de pequeno e médio porte, frutos e legumes de todo o tipo, ovos, mel, e até mesmo insetos eram utilizados como fonte de alimento por aqueles homens que se aventuravam por meses e, não raro, anos no coração do continente ainda “selvagem”.

8 Para maiores informações a esse respeito ver: HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras.

9

Naquele contexto, as florestas e sertões eram encarados como verdadeiros mananciais de alimentos e outros gêneros de extrema necessidade pelas populações luso-brasileiras que habitavam a América portuguesa. Entretanto, Minas Gerais não era uma região pródiga quanto à disponibilidade desses gêneros encontrados na natureza. Certamente o grande afluxo de homens que para ali se dirigiram nos primeiros anos de sua colonização foi uma das causas de tais dificuldades, mas certamente não foi a única. Vejamos algumas fontes a esse respeito: “Com esta notícia de grandezas, quis logo vir às Minas, mas não o fiz por falta

Idem. p. 56.

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de mantimentos nos caminhos e cama, de que morria muita gente”10. O autor destas palavras foi um “forasteiro” anônimo que partiu do Rio de Janeiro para as Minas Gerais em 1698. Ele relata nesse mesmo documento que fora grande a mortandade de homens nas Minas ocasionada pela carência de alimentos. A falta de comida levou muitos mineiros “a comerem bichos de taquara, que para os comer é necessário estar um tacho no fogo bem quente, e ali os vão botando; os que estão vivos logo bolem com a quentura e são os bons, e se se come algum que esteja morto é veneno refinado”11. Em outro relato relativo a esse mesmo contexto, o autor também acentua a falta de víveres silvestres na região das Minas: por serem tudo matos e asperíssimas brenhas, e falto do mais favorável gênero de caças, como veados, antas, emas, porcos monteses e mais gêneros de animais, e mel silvestre, que pelos campos gerais eram mais abundantes do que pelos sertões de matos incultos montanhosos e penhascosos 12.

Como vimos, a topografia acidentada das Minas também foi um obstáculo à obtenção de alimentos na natureza. Em praticamente todas aquelas pioneiras incursões até as Gerais, os sertanejos, mamelucos e principalmente os indígenas cativos tiveram um papel fundamental, uma vez que dominavam as técnicas necessárias à sobrevivência naquelas matas ainda pouco conhecidas e exploradas 13. Paulatinamente, a questão do abastecimento de gêneros alimentares na região mineradora foi equacionada, através da introdução da agricultura em mais larga escala nos arredores das principais vilas e localidades da Capitania das Minas Gerais e com o afluxo cada vez maior de gado a essa região, proveniente principalmente dos arredores do rio São Francisco e demais terras ao longo do caminho que

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10 "Notícias do descobrimento das minas de ouro e dos governos políticos nelas havidos." In: Códice Costa Matoso. Vol. 1 p. 245.

11

Idem. p. 245.

12 Notícias dos primeiros descobridores das primeiras minas do ouro e estas Minas Gerais, pessoas mais assinaladas nestes empregos e dos mais memoráveis casos acontecidos desde os seus princípios. In: Códice Costa Matoso. Vol.I p. 170171.

13 Acerca das habilidades e técnicas de indígenas e mamelucos com relação à obtenção de alimentos e outros do meio ambiente ver: HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras.

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ligava Salvador às Minas Gerais. Com o tempo, também se estabeleceram nas Gerais redes de comerciantes que garantiram o abastecimento de todo gênero de mercadorias à região, desde os de primeira necessidade, até utensílios do mais alto luxo que alcançavam ali preços muito maiores do que os observados no litoral14. A estabilidade referente ao abastecimento e o estabelecimento administrativo da Coroa portuguesa consolidariam de vez a colonização da região mineradora. Em meados do século XVIII, a população da Capitania de Minas Gerais já oscilava em torno de 450.000 pessoas. Isso significou uma pressão tremenda exercida sobre a natureza, em dois aspectos. De um lado, a extração do ouro propriamente dita e, de outro, o desmatamento de áreas cada vez maiores destinadas ao plantio de gêneros alimentícios destinados ao abastecimento das vilas e arraiais 15.

14 BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil. p. 7080.

DEAN, Warren. Op. cit. p. 108-109.

15

As técnicas empregadas na exploração aurífera na América portuguesa e nas Minas Gerais, em particular, estavam entre as mais rudimentares de sua época. O processo para retirar o ouro da natureza era bastante simples. No princípio o ouro era facilmente encontrado no leito dos rios, ribeirões e riachos. Utilizando uma bateia, os mineradores revolviam o leito e as encostas dos cursos d’água, ricos em ouro. A areia, o cascalho e a argila eram colocados na bateia juntamente com um pouco de água, então os garimpeiros giravam a bateia, eliminando paulatinamente seu conteúdo. Ao final do processo, o ouro estaria depositado no fundo da bateia16. As escavações originadas em decorrência da mineração davam origem a poços, que por sua vez eram denominados catas. Em 1715, todos os principais achados auríferos da região das Gerais já estavam produzindo. Com o passar dos anos, à proporção que os depósitos se foram fazendo em menor número e

BOXER, Charles R. Op. cit. p. 63. 16

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mais profundos, os métodos de extração tornaram-se mais complexos e mais nocivos à natureza, mas nem por isso menos antiquados. Os cursos naturais dos rios e riachos eram alterados e jogados contra as suas margens. Os rios e riachos onde eram realizadas estas práticas logo se tornaram sujos e lamacentos. Em outros casos, os riachos eram represados e tinham suas águas bombeadas às encostas dos morros próximos, onde também era alta a concentração de ouro. Os aquedutos por onde a água era conduzida até as encostas eram construídos com os troncos ocos das árvores. Na metade do setecentos, já havia grande carência de madeira nas proximidades de Vila Rica em decorrência do uso desordenado desse recurso. Em 1754, os mineiros de Vila Rica enviavam um recurso a D. José I solicitando que ordenasse aos proprietários das roças que não proibissem a extração de madeiras para uso nas minas17. No século XVIII, dizia-se que uma montanha de ouro nada vale sem água18. O impacto e os danos provocados à natureza por estas práticas atingiram proporções alarmantes: “O efeito desse tipo de mineração foi o de substituir a floresta por charnecas esburacadas”19. Quase tudo o que se via nas vizinhanças das catas eram montes de cascalho e terras ao redor de grandes fendas e crateras abertas por toda a parte. O desnudamento das encostas, fruto destas práticas de extração, provocou erosão de grandes quantidades de terra, produzindo gigantescos sulcos denominados voçorocas, além de assorear os leitos dos cursos d’água em seu caminho20. Outro efeito danoso à natureza oriundo da corrida do ouro se refere às grandes quantidades de mercúrio (na época chamado solimão) despejadas no meio ambiente. O mercúrio era utilizado para amalgamar o minério, e depois disso era “descartado”. A degradação do ambiente não era provocada apenas pela mineração em si. Não foi menor o estrago oriundo das roças.

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17 ARQUIVO Histórico Ultramarino. Doravante AHU. Cx. 64 doc. 65.

18 DEAN, Warren. Op. cit. p. 112-113.

19

Idem. p. 114.

20

Idem. p. 115.

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A técnica empregada no cultivo das roças era, tal qual a empregada na mineração, simples e rudimentar. Não apenas mineiros, mas também todos os colonos da América portuguesa queimavam uma determinada extensão da mata e com pouco trabalho plantavam os gêneros alimentícios. As cinzas provenientes das queimadas garantiam boas colheitas por alguns anos (quatro ou cinco no máximo), ao fim dos quais a terra, já exaurida e infestada de formigas, era abandonada, e o processo, repetido em outro lugar. Essa técnica já era empregada pelos indígenas antes da chegada dos europeus, foi rapidamente absorvida pelos sertanejos e colonos e continua sendo empregada ainda hoje em algumas regiões do Brasil. Naturalmente o tamanho das áreas incendiadas e a freqüência com que ocorriam com esse intuito foram aumentando progressivamente desde a chegada dos europeus à América portuguesa21. No caso das Minas Gerais setecentistas, essa prática significou a destruição de imensas áreas antes ocupadas por matas e cerrados.

21 Para mais informações acerca deste processo ver: DEAN, Warren. Op. cit., HOLANDA, Sergio Buarque de. Op. cit.

A demanda por alimentos era grande naquela região, uma das mais densamente povoadas do período colonial. Muitos negociantes e até mesmo antigos mineradores passaram a atuar no abastecimento alimentar, devido aos altos ganhos auferidos com aquele tipo de comércio. Qual era a postura da Coroa portuguesa ante a questão da depredação ambiental? Havia algum tipo de movimento que visasse à preservação daquele espaço? Qual era a posição dos colonos e sertanejos ante essas questões? Tanto a Coroa lusa quanto as populações residentes nas possessões portuguesas na América tinham uma visão utilitarista da natureza e seus recursos. Não existiu naquele contexto qualquer movimento ambientalista. Em alguns momentos (muito raros), os

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colonos na América portuguesa tomaram algumas medidas com o intuito de conter a devastação desenfreada de determinados recursos naturais. A maior parte dos colonos simplesmente imaginavam não ter fim tais recursos. Em 1591, por exemplo, o Senado da Câmara da Vila de São Paulo tentou impedir a matança indiscriminada de peixes22. A intenção era preservá-los para que o recurso estivesse sempre disponível. As florestas, sertões, rios, enfim, a natureza era encarada pelos colonizadores da América portuguesa como uma espécie de “despensa”, que disponibilizava a eles uma gama de recursos indispensáveis à vida. Manifestações como essa do senado da Câmara de São Paulo foram incomuns até 1750. Acreditava-se que os recursos que a natureza provia eram “inesgotáveis” ou simplesmente não se pensava na possibilidade de que eles um dia pudessem faltar. Segundo José Augusto Pádua, são quatro as variáveis centrais para se compreender o caráter ambientalmente devastador da ocupação colonial da América portuguesa: 1) a terra farta; 2) as técnicas rudimentares; 3) o braço escravo; 4) a mentalidade de que terra era para se gastar e arruinar, não para proteger ciosamente 23. Tal mentalidade era patente nas ações dos colonos em geral e dos mineiros, em particular, já que nem mesmo com os elevados montantes financeiros angariados com a extração do ouro e do diamante fizeram algum tipo de investimento técnico que proporcionasse uma extração menos danosa e mais racional dos minérios, que ocasionaria maiores rendimentos e menos desperdício de recursos24. A postura usufrutuária e destruidora dos mineradores era resultado também em parte do próprio caráter itinerante das catas e do

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Era costume dos paulistas a pratica de pesca através do represamento e envenenamento da água, o que matava todos os peixes de uma só vez. A técnica foi aprendida com os indígenas. HOLANDA, Sergio Buarque de. p. 71.

22

PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição. p. 73. Na obra o autor aprofunda cada um dos quatro itens levantados.

23

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sonho que muitos tinham de enriquecer e voltar para o reino. Apenas a partir da segunda metade do século XVIII, é que a Capitania das Minas Gerais adquire maior infra-estrutura e passa a contar com um contingente mais expressivo de pessoas com residência fixa em seu território25.

Idem. p. 78. Existiam naquele época técnicas de mineração amplamente mais avançadas e algumas inclusive difundidas na América espanhola.

24

25

Idem. p. 83.

DRUMMOND, José Augusto. A legislação ambiental brasileira de 1934 a 1988: comentários de um cientista ambiental simpático ao conservacionismo. p. 170.

A Coroa também entendia que a floresta era mais um recurso colonial a ser explorado. Contudo, a metrópole esboçou medidas preservacionistas já no século XVI. Resta discutirmos as motivações que estavam por traz desse comportamento. Em 1605, a administração portuguesa cria o “Regulamento do Pau-Brasil”, que instituía permissões especiais para o corte da árvore tão valiosa do ponto de vista comercial26. Àquela altura, já era uma proeza difícil encontrar árvores de pau-brasil nas matas. Medidas como essa visavam garantir a exploração desse recurso tão valioso, já que estava na iminência de simplesmente desaparecer, o que provavelmente ocorreu com alguns espécimes de fungos, insetos, animais e vegetais, a questão é que o pau-brasil possuía alto valor comercial, daí o interesse da Corte. O fato é que a metrópole não se interessava ou não tomou qualquer medida para conhecer todos os recursos e dividendos que a exuberante natureza brasileira poderia lhe proporcionar, exuberância aliás cantada desde o início da colonização. Mas esse panorama iria alterar-se. OS REFORMISTAS ILUSTRADOS DESCOBREM A NATUREZA.

26

O século XVIII, conhecido como o século das Luzes,

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foi um período ímpar da História Ocidental, palco de eventos que iriam marcar de maneira incomum os rumos das sociedades européias. O Iluminismo não foi um movimento homogêneo, muito pelo contrário. Podemos afirmar que as Luzes eram muitas, variando sensivelmente de acordo com a região e o credo. Assim, cada Estado europeu vivenciou esse período em consonância com as suas especificidades27. Talvez, seja possível identificar elementos que caracterizassem de forma tênue uma unidade entre os diversos movimentos ilustrados da Europa, como a defesa da idéia de progresso, da eficiência da estrutura administrativa, da observação científica da natureza e da valorização do saber aplicado à busca da felicidade terrena e do bem-estar social28. Vamos nos ater neste trabalho a este penúltimo item. As primeiras manifestações do pensamento Ilustrado penetraram em Portugal por meio dos denominados “estrangeirados”, homens que, ao passar para o AlémPirineus devido às mais variadas razões, circularam pela Europa, entraram em contato com as “novas idéias” que então proliferavam nos meios eruditos e, então, retornavam a Portugal (ou não, como foi o caso de alguns estrangeirados) divulgando as ditas “novas idéias”, e isso desde o reinado de D. João V29. Mas a ilustração em Portugal ganha impulso definitivo no governo de D. José I, que tinha como primeiro ministro o proeminente Marquês de Pombal. Durante seu governo, foi empreendida uma série de reformas no campo educacional que abarcou todos os níveis do ensino. Os jesuítas, que praticamente monopolizavam todos os níveis da esfera educacional, foram afastados dessa função, que, a partir de então, passava a contar com uma orientação ilustrada no campo das ciências naturais aplicadas. É nesse contexto que nasce a discussão política acerca do uso predatório que se fazia

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VILLALTA, Luiz Carlos. Op. cit. p. 97. Reformismo Ilustrado, censura e práticas de leitura. TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia neoclássica, p. 25.

27

28

TEIXEIRA, Ivan. Op. cit.

29 NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial 1777-180, p. 220-221; MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo, p. 8-11.

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da natureza por um lado, e por outro as reflexões no sentido de conhecer mais profundamente o meio natural da América portuguesa. No último quartel do século XVIII, ainda era incipiente o movimento preservacionista ambiental no mundo luso-brasileiro (se é que existia), mas já se ouviam vozes na defesa de uma exploração “racional” dos recursos naturais. Nessa época, as ciências naturais em Portugal já haviam alcançado uma estabilidade razoável em grande medida devido à importância econômica que possuíam30. Foi nesse período que finalmente a mata atlântica tornar-se-ia objeto de curiosidade do governo português31. É nesse contexto que se encaminham para as mais diversas partes da América portuguesa jovens estudantes luso-brasileiros com a missão de tecer estudos embasados nas mais recentes descobertas no campo científico. Esses estudos abarcaram desde as minas de ouro e diamante à pesca de baleias na costa baiana, passando também pelas questões mais diversas acerca de tudo que dizia respeito à agricultura. Todos esses estudos foram patrocinados pela Real Academia de Ciências de Lisboa, que tinha por diretriz as disposições da “ilustrada” Corte portuguesa, que contou naqueles anos com os serviços de homens que deram prosseguimento às reformas pombalinas, com destaque para Rodrigo de Souza Coutinho32.

30 PÁDUA, José Augusto. Op. cit. p. 38-40.

DEAN, Warren. Op. cit. p. 134.

31

32

Ocorreram nas Minas Gerais movimentos que de um certo prisma preconizaram o interesse pelo conhecimento de vários aspectos do mundo natural, que se deu na virada do século XVIII para o XIX. Aproximadamente em 1750, o então ouvidor da Comarca de Vila Rica, Caetano da Costa Matoso, encomenda dois inquéritos muito interessantes sobre aspectos da natureza, dentre outras coisas. No

Idem, p. 39-41.

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primeiro deles, intitulado Noticias das taquaras, dos cipós e das muitas comidas que se fazem de milho nas Minas, tem-se o relato da existência de uma infinidade de espécimes de árvores, cipós, etc, com a indicação da incidência, da localização bem como da utilidade de todo o material arrolado. Devido à etimologia dos espécimes, observamos a grande influência dos conhecimentos provenientes da cultura indígena33. O segundo inquérito tem o mesmo teor e características do primeiro e é intitulado: Lembranças das ervas medicinais, dos cipós e das arvores e paus mais usuais no país das Minas. Com a criação da Real Academia de Lisboa em 1779, o interesse pelo meio natural brasileiro intensificou-se acentuadamente. A Real Academia de Lisboa manteve contato com outros centros de pesquisa de seu tempo, bem como estimulou a coleta e observação do meio natural das colônias, publicando os trabalhos que considerava mais relevantes34. Não demoraria a se sentir o reflexo destas iniciativas nas Minas do ouro. Em 1786, Luis da Cunha Meneses, o Governador da Capitania das Minas Gerais, remetia para o museu da Real Academia “três caixas com tigres de espécies diferentes”, conforme ordenara Martinho de Melo e Castro, sucessor e primo de Pombal na condução da política do Império luso35. Concomitantemente, o naturalista Joaquim Veloso de Miranda percorria as Minas Gerais à procura de espécimes vegetais, animais e minerais que pudessem de alguma forma interessar economicamente à Coroa. Um ano depois, o Governador das Minas do ouro remetia para Martinho de Melo e Castro outros três caixotes com os frutos das pesquisas até então realizadas36. Em 1790, o novo governador da Capitania das Minas Gerais, Conde de Barbacena, remetia para o Reino outras quatro caixas contendo o mesmo gênero daquelas enviadas nos anos

CÓDICE Costa Matoso. Vol. 1. p. 782-786.

33

34 DEAN, Warren. Op. cit. p. 135.

35

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AHU. Cx. 124 doc. 19.

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anteriores37. Mas o ápice do interesse da Coroa pelo meio natural brasileiro bem como das pesquisas a esse respeito ainda estava por vir.

36

AHU. Cx. 126 doc. 48.

37

AHU. Cx. 134 doc. 56.

Para maiores detalhes acerca das políticas envolvendo o meio ambiente luso-brasileiro ver: PÁDUA, José Augusto. Op. cit. p. 51-67.

38

39

Em 1796, D. Rodrigo de Souza Coutinho assume o ministério da Marinha e Ultramar, como um dos mais importantes políticos de seu tempo. Em relação a seus predecessores, o novo ministro deu maior amplitude e demonstrou maior interesse pelas questões relativas à natureza e ao meio natural. Discípulo do Marquês de Pombal, procurou colocar Portugal em pé de igualdade com relação às mais desenvolvidas potências européias de seu tempo. Nesse contexto, vários Estados europeus buscavam garantir os seus suprimentos de recursos naturais, e isso incluía as colônias. No caso português, como se sabe, o interesse em conhecer a América portuguesa era vital, uma vez que era ela responsável pela maior parte das receitas do Império. Visando ampliar e aperfeiçoar a utilização dos amplos recursos naturais e riquezas do Brasil, Souza Coutinho procurou cooptar as elites coloniais, patrocinando seus estudos nas mais diversas áreas do conhecimento no velho continente 38. Dentre as áreas de interesse, a mineração e a agricultura tiveram espaço de relevo nos estudos empreendidos, o que colocou a Capitania de Minas Grais no roteiro das pesquisas de campo. Vários naturalistas lusitanos percorreram o território mineiro num tempo relativamente curto visando levantar propostas para otimizar as tecnologias aplicadas nos referidos campos, entre os quais José Vieira Couto, José Gregório de Morais Navarro e Joaquim Veloso de Miranda39. Com relação à mineração, havia um consenso entre os letrados quanto à necessidade de se revitalizar esse setor da economia através da introdução de novas

Idem. p. 55.

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técnicas para a exploração dos recursos minerais, análises mineralógicas mais refinadas, que viabilizassem a exploração de novas áreas40. Quanto à agricultura, Souza Coutinho propunha a introdução de novos gêneros na capitania das Minas, além da introdução de novos métodos de cultivo. O ministro dizia que se deveria introduzir o uso de bois e arados, “com os quais se poupam muitos braços que se podem empregar em outras coisas interessantes”.41 Além da agricultura e da mineração, estava entre as principais preocupações de D. Rodrigo de Souza Coutinho o conhecimento e a exploração de novos recursos em potencial da exuberante natureza do Novo Mundo, cujo uso ainda não era conhecido. Devido a tais preocupações de natureza política e econômica, as investigações do meio natural na Capitania das Minas ganharam contornos até então desconhecidos naquele território42. Nos últimos anos do século XVIII, portanto no fim do período colonial, Souza Coutinho ordena a criação de um Jardim Botânico na capital das Minas, Vila Rica. Rodrigo de Souza Coutinho orientou aos naturalistas enviados às Minas que estudassem com afinco as potencialidades naturais desse território ampliando as expedições às “áreas incultas”, enviando os novos espécimes para serem examinados em Portugal. Orientações do mesmo teor foram igualmente encaminhadas à administração da Capitania das Minas Gerais, bem como a outras partes do império luso, contendo instruções para a coleta e a remessa do produto das pesquisas. Em carta datada de 1798, enviada pelo então governador das Minas, Gerais Bernardo José de Lorena, a D. Rodrigo de Souza Coutinho, aquele informava quanto ao cumprimento

O naturalista José Vieira Couto produziu um estudo fruto de suas observações acerca de aspectos da mineralogia das Minas Gerais, que se encontra publicado pela Fundação João Pinheiro. Memória sobre a Capitania das Minas Gerais; seu território, clima e produções metálicas.

40

41 PÁDUA, José Augusto. Op. cit. p. 57.

42

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Idem. p. 55.

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das ordens superiores, enviando um estudo geral da flora e da fauna do território43. Um ano depois, Bernardo José de Lorena remetia 48 caixas para Portugal, contendo gêneros animais e vegetais44.

43

AHU Cx. 145. doc. 24.

44

AHU Cx. 148. doc. 12.

45

AHU cx. 151. doc. 16.

46

47

AHU cx. 148. doc. 36. AHU cx. 153 doc. 36.

Remessas dessa natureza já ocorriam antes da ascensão de Rodrigo de Souza Coutinho ao cargo de Ministro de Estado, mas não no volume e intensidade alcançados no início do século XIX. Esse dado corrobora a idéia de que, desde 1750, ampliava-se o interesse da Coroa portuguesa pelas riquezas do meio natural de sua mais importante possessão ultramarina. Ainda em 1799, o naturalista Joaquim Veloso de Miranda se encontrava entretido com a pesquisa em território mineiro de espécimes de árvores que poderiam ser úteis para o fabrico de papel45. Nesse mesmo ano, o governador Bernardo José de Lorena dava conta a Souza Coutinho do estabelecimento do Jardim Botânico nas terras de Tenente Coronel José Pereira Marquês, devedor da Coroa46. Em 1800, o governador enviava a planta do Jardim Botânico para o Ministro, assim como espécies de plantas e árvores próprias para a fabricação de papel, acompanhadas de notas escritas pelo naturalista Joaquim Veloso47. Dentre as funções de um Jardim Botânico, destacavase, principalmente no caso das Minas Gerais, a de preservar as plantas nativas que “são raras, ou cuja destruição será inevitável, apesar de todas as proibições”48. Os jardins botânicos tinham também como função a aclimatação de espécimes animais e vegetais oriundas de outras partes do império português ou mesmo de outras partes do planeta, com o intuito de promover a exploração futura de tais recursos naturais49. Ao que parece, a instalação do

PÁDUA, José Augusto. Op. cit. p. 91.

48

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Jardim Botânico de Vila Rica não foi bem sucedida e teve vida efêmera. As razões do fracasso não são conhecidas, mas sabemos que, alguns anos após a virada do século, D. Rodrigo caíra de seu cargo. Concluindo nosso trabalho, percebemos que a devastação e o consumo intensos dos vastos recursos naturais inerente à colonização das Minas Gerais, impulsionaram em Portugal, após 1750, uma mudança de paradigma quanto aos usos e consumo dos recursos ambientais. Afinados aos mais recentes estudos e orientações das Ciências Naturais então em voga na Europa no século das Luzes, ganha força em todo Império português uma visão “racional” quanto à exploração e lida dos recursos da natureza. A partir desse prisma, nascem as primeiras iniciativas no sentido de melhor se conhecer a floresta e a natureza, bem como preservar esses recursos. Porém, as motivações preservacionistas daqueles tempos eram embasadas numa lógica utilitarista, ou seja, preservar para sempre poder explorar. Preservava-se por interesses inteiramente políticos e econômicos50. As pesquisas e expedições promovidas com o intuito de melhor conhecer o meio natural colonial pelas razões que já expomos, abriram o caminho para um movimento que teve continuidade durante o século XIX, período em que as Minas Gerais receberam vários estudiosos oriundos de países europeus que aqui chegaram para conhecer e estudar a já não tão exuberante natureza, após um século de colonização portuguesa. 49 DEAN, Warren. Op. cit., p. 140-141; PÁDUA, José Augusto, Op. cit., p. 91.

50 DEAN, Warren. Op. cit., p. 140-141; PÁDUA, José Augusto, Op. cit., p. 91.

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REFERÊNCIAS Arquivo Histórico Ultramarino AHU cx 64 doc 65 AHU cx 124 doc 19 AHU cx 124 doc 27 AHU cx 126 doc 48 AHU cx 134 doc 56 AHU cx 145 doc 24 AHU cx 148 doc 12 AHU cx 151 doc 16 AHU cx 148 doc 36 AHU cx 153 doc 36 AHU cx 153 doc 44 AHU cx 154 doc 44 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. CÓDICE Costa Matoso. 2 vol. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2000. DEAN, Warren. A ferro e fogo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. DRUMMOND, José Augusto. A legislação ambiental brasileira de 1934 a 1988: comentários de um cientista ambiental simpático ao conservadorismo. p. 127-151. In: Ambiente e Sociedade. Ano II. Vol. 34. 98/99. HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. São Paulo: EDUSP, 1999. VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808 O Império luso-brasileiro e os Brasis. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América portuguesa. São Paulo, Tese de Doutorado USP, 1999.

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A Imagem do Profissional de RH no Interior da Empresa

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A Imagem do Profissional de RH no Interior da Empresa Ivan Moreira*

Resumo: A conjuntura econômica global nos obriga a pensar o papel do profissional de RH no ambiente organizacional na atualidade. Essa questão, fundamental para o destino das empresas, nos levou a pesquisar "A IMAGEM DO PROFISSIONAL DE RH NO INTERIOR DA EMPRESA". Buscamos saber como os funcionários estão vendo os profissionais de RH, no exercício dos seus papéis, que lhes foram atribuídos pela economia globalizada de acirrada competição e que paradoxalmente está convergindo os objetivos do capital e do trabalho. Palavras-chave: estratégico, especialista, recursos humanos e mudanças. Abstract: The global economic conjecture obliges us to think about the role of the human resource professional in the organizational environment nowadays, this fundamental issue to the enterprise destiny, has lead us to do a research " THE IMAGE OF THE HUMAN RESOURCE PROFESSIONAL INSIDE THE ENTERPRISE ". We have come to analyse how the employees see the human resource professionals in the exercise of their roles, roles in which they have been given through the globalized economy of the great competition and that paradoxically is changing the objectives of the capital and of the work to the same direction. Keywords: strategic, specialist, human resources and changes.

Esta monografia foi apresentada ao curso de Gestão de Recursos Humanos, como um trabalho interdisciplinar e requisito parcial para aprovação no 1º período em 2005. O objetivo proposto é o de conhecer como está se desenvolvendo o trabalho do RH dentro das organizações, sendo o foco da pesquisa elucidar qual a percepção e imagem que os funcionários têm do trabalho desenvolvido atualmente pelos profissionais

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Graduando em Gestão de Recursos Humanos pela Faculdade Estácio de Sáde Belo Horizonte.

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de Recursos Humanos. A metodologia utilizada foi uma pesquisa quantitativa e de campo, em três empresas dos segmentos de prestação de serviços em Transporte Urbano e prestação de serviços de Call Centers, cujo universo de pesquisa somou aproximadamente 6.570 funcionários. Foi desenvolvida utilizando-se o sistema de amostragem, com amplitude definida em 136 pesquisados, visando obter-se uma margem de erro de 10%. A coleta de dados deu-se através de um questionário impresso e anônimo, auto-explicativo, aplicado no próprio local de trabalho dos pesquisados, através de um pesquisador passivo. A pesquisa justifica-se pela conjuntura vivida pelas organizações e consequentemente pelos profissionais de RH, uma vez que, para enfrentar a atual realidade do mercado, os RH estão sendo obrigados a mudanças que exigem a implementação de novos modelos de gestão de pessoas, novas políticas, procedimentos e processos, que obviamente estão interferindo diretamente na realidade profissional dos funcionários. Pesquisa realizada em São Paulo mostrou que essa dinâmica ainda não é completamente percebida e/ou aplicada na realidade da maioria das empresas brasileiras, o que fundamentou a escolha da linha de pesquisa: “A imagem do profissional de RH no interior da empresa”. Visa-se saber como os funcionários estão percebendo as evidências de que as relações entre pessoas e organizações tendem a tornar-se cada vez mais convergentes, qual seja o de realização de seus respectivos objetivos, e que neste contexto o setor de Recursos Humanos cumpre um importante papel, o de mediar esta relação, ajudando tanto as empresas como as pessoas. Essa análise justifica e explica o porquê de querer saber como essas pessoas dentro das empresas percebem a atuação dos profissionais de RH, para que estes possam, se for o caso, definir, corrigir

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e/ou aperfeiçoar seus desempenhos individuais, assim como o modelo de gestão adotado ou a adotar na empresa, como forma de viabilizar a missão e os objetivos da empresa, assim como os objetivos individuais de cada funcionário, incluído, aí, o do profissional de Recursos Humanos. REVISÃO LITERÁRIA Para enfrentar a atual realidade do mercado, os setores de Recursos Humanos estão sendo obrigados a mudanças que exigem a implementação de novos modelos de gestão de pessoas, novas políticas, procedimentos e processos, que obviamente estão interferindo diretamente na realidade profissional dos funcionários. Essas mudanças, iniciadas nos anos 90 como conseqüência da exaustão das políticas econômicas fundamentadas no neoliberalismo e alimentadas pela evolução tecnológica, a globalização e algumas questões sociais, como expõe TONELLI (2002, p. 80), ainda não são completamente percebidas e/ou aplicadas na realidade da maioria das empresas brasileiras, conforme pesquisa do SESC de São Paulo, citada pela mesma autora. Esta constatação nos remete ao raciocínio de que seria razoável supor que o mesmo fenômeno está acontecendo com as pessoas empregadas nas organizações. A maioria delas ainda não percebeu as evidências de que as relações entre pessoas e organizações tendem a tornar-se cada vez mais convergentes, qual seja o de realização de seus respectivos objetivos, e que nesse contexto o setor de Recursos Humanos cumpre um importante papel, o de mediar esta relação, ajudando tanto as empresas como os pessoas. Esse raciocínio fundamentou a escolha da linha de pesquisa: “A imagem do profissional de RH no interior da empresa”, essa

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escolha, no entanto, suscitou dúvidas de como pesquisar essa imagem do profissional, sem que a avaliação dos funcionários tomasse uma conotação mais pessoal, em detrimento dos aspectos puramente profissionais focalizados pelo trabalho. Essa questão levou o direcionamento do trabalho ao encontro de um viés concebido a partir do proposto por ULRICH (2003, p. 39): “Para criar valor e obter resultados, os profissionais de RH precisam começar não pelo foco nas atividades ou no trabalho, mas pela definição das metas, as quais garantem os resultados de seu trabalho”. Segundo o autor, a definição das metas pressupõe a definição de novos papéis do RH no contexto organizacional, os quais, segundo o autor, seriam os de “Parceiro Estratégico, Especialista Administrativo, Defensor dos Funcionários e Agente de Mudanças”. Ainda segundo ULRICH, através dos processos desenvolvidos em cada um desses papéis, o RH ajudaria a empresa alcançar seus objetivos, como ele afirma: O papel do RH se concentra no ajuste de suas estratégias e práticas à estratégia empresarial como um todo. Ao desempenhar este papel, o profissional de RH pouco a pouco se torna um parceiro estratégico, ajudando a garantir o sucesso e a aumentar a capacidade de sua empresa a atingir seus objetivos. (ULRICH, 2003, p. 42).

Essa conceituação teórica embasou a arquitetura e a elaboração do questionário para a coleta de dados, de forma a levantar a percepção dos funcionários das empresas pesquisadas a cerca da imagem do profissional de RH, a partir do desempenho dos quatro papéis acima definidos. É de suma importância para os profissionais de Recursos Humanos que entrarão em breve no mercado de trabalho, exatamente em um momento em que as organizações passam por grandes transformações estratégicas,

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estruturais, operacionais e consequentemente nas atividades que eles exercerão dentro dessas organizações, saber como estão sendo vistos neste momento do ponto de vista dos funcionários, hoje mais do que nunca, considerados essenciais para a consecução dos objetivos organizacionais e consequentemente para o sucesso da empresa, como afirma FLEURY (2002, p.11): “Toda e qualquer organização depende, em maior ou menor grau, do desempenho humano para seu sucesso”. Dentro dessa visão e a associando-a com a de ULRICH (2003, p. 39), em que ele afirma que um dos atuais papéis dos Gestores de Recursos Humanos é o de contribuir estrategicamente com a organização, pode-se entender que uma das formas de contribuição seria a elaboração de um modelo de gestão de pessoas, que possibilite o “gerenciamento e a orientação do comportamento humano no trabalho” (FLEURY, 2002, p.12). Seguindo-se esse direcionamento, justifica-se plenamente saber como essas pessoas dentro das empresas percebem a atuação dos profissionais de RH, para que estes possam, se for o caso, definir, corrigir e/ou aperfeiçoar seus desempenhos individuais, assim como o modelo de gestão adotado ou a adotar na empresa. Com esse conhecimento, o profissional de RH poderá privilegiar a implementação de políticas e procedimentos adequados ao cumprimento e manutenção do equilíbrio das relações da organização com os funcionários, de forma que ambos possam alcançar suas respectivas metas e objetivos, criando ainda um sentido para o trabalho realizado, como uma das fontes de motivação que contribui para a otimização do desempenho (SILVA, 2000, p. 35),

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como forma de viabilizar a missão e os objetivos da empresa, assim como os objetivos individuais de cada funcionário, incluídos aí, os do profissional de Recursos Humanos. Como Gestores de RH, teremos que enfrentar os desafios como os descritos por ULRICH (2003, p. 40): “O redirecionamento do foco das práticas de RH, mais sobre a cadeia de valor (fornecedores e consumidores) e menos sobre as atividades no interior da empresa”. Ou ainda por CHIAVENATO (2002, p. 4): “Fala-se hoje em estratégia de recursos humanos como a utilização deliberada das pessoas para ajudar a ganhar ou manter uma vantagem auto-sustentada da organização em relação aos concorrentes que disputam o mercado”, reforçado por outra afirmação como: Toda e qualquer organização depende, em maior ou menor grau, do desempenho humano para seu sucesso. Por esse motivo, desenvolve e organiza uma forma de atuação sobre o comportamento que se convencionou chamar de modelo de gestão de pessoas” (FISCHER, 2002, p.11). METODOLOGIA Para a consecução dos objetivos propostos na concepção deste trabalho, foi desenvolvida uma pesquisa quantitativa, de campo, com pesquisador passivo, em três empresas dos segmentos de prestação de serviços em Transporte Urbano e prestação de serviços de Call Centers. Identificação das empresas pesquisadas: a empresa de Transporte Coletivo Urbano foi fundada em 1963, possui cerca de 475 funcionários, 101 ônibus que transportam, aproximadamente, dois milhões de

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usuários/mês na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Possui uma estrutura de Recursos Humanos que desenvolve suas atividades dentro de um modelo que preconiza a valorização dos funcionários, a administração participativa, visando atingir a “qualidade total” como um de seus objetivos. Foi a primeira empresa do Brasil, neste segmento, a conquistar o selo de Qualidade em Transporte, conferido pelo IDAQ ( Instituto de Desenvolvimento, Assistência Técnica e Qualidade em Transporte). A primeira empresa de prestação de serviços no segmento de Call Centers foi fundada em 1994, especializada na terceirização de operações de telemarketing para outras organizações, operando hoje cerca de 170 PA’s (posições de atendimento). Tem definido entre seus princípios “promover o desenvolvimento humano, a qualificação técnica e a postura ética em todas as nossas relações”. A segunda empresa do segmento de Call Centers, cuja sede fica na cidade do Rio de Janeiro, é de grande porte e desenvolve sua atuação no mercado nacional, através de operações de telemarketing. Possui aproximadamente 35 mil funcionários, dos quais cerca de 6.000 estão sediados em Belo Horizonte. A empresa possui uma grande estrutura de Recursos Humanos, que trabalha, entre outros, com o princípio da “meritocracia”, ou seja, valoriza seus funcionários a partir de seus próprios méritos individuais. População e amostragem: as três empresas somam aproximadamente 6.570 funcionários. A pesquisa foi

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desenvolvida utilizando-se o sistema de amostragem aleatória, com amplitude definida em 136 pesquisados, visando obter-se uma margem de erro de 10%, conforme tabela estatística para a determinação de amplitudes de amostras de pesquisas, proposta por (DE FELIPPE JÚNIOR, 1994, p. 24). Vejamos a tabela 1: Tabela 1 – Dados complementares da amostragem Coleta de dados: a coleta de dados desenvolveu-se através de um questionário impresso e anônimo, autoexplicativo, aplicado no próprio local de trabalho dos pesquisados, através de um pesquisador passivo, cuja atuação restringiu-se a ministrar as explicações

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referentes aos objetivos da pesquisa em seus sentidos amplo e estrito, não interferindo nas respostas, somente atuando se solicitado pelos pesquisados para dirimir alguma dúvida, quanto ao enunciado de uma ou outra questão. As análises apresentadas foram desenvolvidas com base nos resultados tabulados em planilha do aplicativo Microsoft Excel, desenvolvida especialmente para essa finalidade, o que possibilitou a utilização de tabelas e gráficos que deram mais visibilidade e facilitaram sobremaneira a análise e a interpretação dos dados e informações obtidas. ANÁLISE E RESULTADOS

INTERPRETAÇÃO

DOS

Como resultado da pesquisa realizada, verificou-se que os profissionais de RH das três empresas obtiveram uma significativa pontuação apontando o resultado de seus trabalhos, às vistas dos funcionários, como proficiente (tabelas 2 e 3), o que pode indicar que esses profissionais estão desenvolvendo seus trabalhos em consonância com as tendências apontadas na pesquisa bibliográfica, no que diz respeito a um modelo de gestão de pessoas que privilegie estratégias, políticas e procedimentos que propiciem a convergência das relações entre empresa e pessoas, para que ambos possam realizar com sucesso seus objetivos. Tabela 2 - TABULAÇÃO DO RESULTADO POR

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PAPÉIS E GLOBAL Tabela 3 – LEGENDA PARA A TABELA 2

Fica evidente que o nível de satisfação com o modelo de gestão, sob o qual os profissionais de RH das

empresas pesquisadas estão desenvolvendo seus trabalhos, no aspecto geral é bom, embora existam pontos cujas avaliações não chegaram a tanto, como nas questões: 4) O RH tem ajudado a empresa a desenvolver programas de melhorias que atendam às expectativas dos empregados?. Nessa questão percebe-se que os funcionários reivindicam maior participação do RH, na busca por um modelo de gestão que também priorize os interesses e expectativa dos empregados. 6) O RH participa da criação de programas que aumentam a dedicação dos empregados? Parece-nos que essa questão é uma extensão da anterior (4), entendemos que os empregados estão associando o nível de sua dedicação

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ao quanto a empresa prioriza os interesses deles na elaboração e execução de suas políticas e estratégias. 8) O RH mantém procedimentos de captação e manutenção dos talentos da empresa? Entendemos essa questão como um alerta de que está faltando empenho no sentido de manter os “talentos” nas empresas, provavelmente a visão dos empregados sobre esta questão esteja diretamente ligada às visões das duas anteriores. 9) O RH apóia novos movimentos e comportamentos, visando manter a empresa competitiva? Parece-nos que os empregados estão dando um aviso ao RH, de que ele necessita estar em constante atualização, quanto a sua visão e atitudes relacionadas com a evolução do contexto organizacional. 12) O RH é visto apenas como uma área especializada em assuntos de RH?A mais baixa (3,20 - Tab. 4) das notas atribuídas às questões da pesquisa nos remete aos motivos que nos fizeram decidir por essa linha de pesquisa, ou seja, que os empregados em sua maioria, assim como a maioria das empresas, ainda não perceberam que o relacionamento capital & trabalho está mudando por força das circunstâncias da acirrada concorrência resultante do atual cenário econômico e que os objetivos de ambos estão convergindo. Embora com sentidos diferentes, a nota atribuída a essa questão demonstra que os funcionários ainda percebem o RH com uma atuação limitada apenas a suas funções tradicionais (selecionar, treinar avaliar). 18) RH desenvolve programas e políticas éticas e socialmente responsáveis? Essa, assim como as demais questões citadas anteriormente, que receberam as notas mais baixas, deixam claras as aspirações dos empregados

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quanto a uma postura ética e socialmente responsável por parte das empresas no que diz respeito aos empregados. Faz-se necessário ainda registrar o quão relevante foi a pontuação das questões 11 (O RH é visto como um órgão que contribui para o sucesso da empresa?) - a mais alta ( 4,25 - Tab. 4) - e 15 (O RH trabalha para adicionar valor à empresa?), com nota (4,13 – Tab. 4), que nos revelam a consciência dos funcionários pesquisados, quanto ao papel mais amplo que o trabalho do RH deve assumir dentro do contexto organizacional. Tabela 4 - TOTALIZAÇÃO DAS RESPOSTAS

CONCLUSÃO Os resultados obtidos indicam que, embora as empresas pesquisadas possuam modelos de Gestão de RH atualizados com o cenário econômico atual, os profissionais de RH dessas empresas ainda necessitam de ajustes “finos” na forma como desenvolvem seus trabalhos.

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Poderiam propor e implementar em suas empresas políticas e objetivos em RH, para que estes coincidam ao máximo possível com os objetivos dos empregados, propiciando assim condições de envolvimento, motivação e uma maior produtividade que garantam e sustentem os resultados almejados tanto pelas empresas, assim como por seus funcionários. Embora isso pareça utópico, o que se conclui nas pesquisas bibliográficas realizadas com autores da área é que essa é a única saída possível para as empresas contemporâneas e conseqüentemente para os profissionais de RH. Fica bastante claro que a imagem dos profissionais de RH é positiva e de significativa importância para os funcionários das organizações pesquisadas. Entendemos que isso aconteça como conseqüência das atribuições inerentes aos profissionais de RH nas organizações onde desenvolvem a interface entre o empregador e o empregado. É óbvio que o resultado obtido neste trabalho é parcial, tendo em vista as limitações impostas pela situação em que este foi desenvolvido no que diz respeito a tempo e recursos para o desenvolvimento mais amplo e tecnicamente perfeito em seus aspectos metodológicos. Temos o desejo e a esperança de podermos em breve dar continuidade às pesquisas para obtermos uma visão completa e o mais próxima possível da verdadeira imagem do profissional de RH no interior da empresa. AGRADECIMENTOS Pela valiosa e imprescindível colaboração para a elaboração desse artigo: às professoras Rita de Cássia

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Prates Guimarães, Maria Lúcia Ferreira, Luciana Gelape e Mônica Serafim, aos colegas e pesquisadores de campo Daniele David, Marcelo Lima, Gabriel Xavier, Leidyane Fernandes e Luis Campos. REFERÊNCIAS BOOG, Gustavo e Magdalena. Manual de gestão de pessoas e equipes. S. Paulo: Editora Gente, 2002 CHIAVENATO, Idalberto. Gestão de Pessoas: o novo papel dos recursos humanos nas organizações. São Paulo: Atlas, 2002. DE FELIPPE JÚNIOR, Bernardo. Pesquisa: o que é e para que serve. Brasília: Sebrae, 1994. FISCHER, André Luiz. Um resgate conceitual e histórico dos modelos de gestão de pessoas – FLEURY, Maria Tereza. As pessoas na organização. São Paulo: Editora Gente, 2002. GIL, A. de L. Administração de recursos humanos: um enfoque profissional. São Paulo: Atlas, 1996. SILVA, A. T. Administração e controle. São Paulo: Atlas, 1997 TONELLI, Maria José. Desenvolvimento histórico do RH no Brasil e no mundo; URICH, David. Os campeões de recursos humanos – São Paulo – Futura 2003

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As Raízes do Futebol na Capital Mineira

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As Raízes do Futebol na Capital Mineira1 Marilita Aparecida Arantes Rodrigues2

Resumo: O artigo aborda as raízes do futebol na cidade de Belo Horizonte. Com o objetivo de analisar o seu processo de implantação na capital mineira, procura resgatar os responsáveis por esse processo, os interesses despertados, seus primeiros jogadores, os primeiros clubes e campeonatos e sua aceitação na sociedade belo-horizontina. Palavras-chave: História, Esporte, Futebol, Belo Horizonte. Abstract: The article approaches the roots of the football in the city of Belo Horizonte. With the objective of analyzing the sport's implantation process in the capital of the state, it tries to rescue those responsible for that process, the awakened interests, its first players, the first clubs and championships and its acceptance in the city's society. Keywords: History, Sport, Football, Belo Horizonte.

O enraizamento do futebol em Belo Horizonte foi resultado de um longo processo, que passou por fases diferenciadas, marcadas por interesses inconstantes. Esse fato também foi vivenciado por outras práticas esportivas consideradas modernas e civilizadas, como o turfe e o ciclismo, que foram sonhadas pelos idealizadores da capital moderna de Minas Gerais, mas que não foram efetivamente apropriadas, inicialmente, pelos habitantes da cidade. Mesmo passando por momentos de inconstâncias, foi o futebol a modalidade esportiva que despertou o maior interesse dos belo-horizontinos e se transformou numa grande paixão de toda a sua população. Mas como se iniciou esse processo? Quem foi responsável pela sua

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1 Artigo construído com dados extraídos da pesquisa que venho realizando para subsidiar minha tese de doutorado em História, na UFMG, que foi apoiada pelo CEPE da Faculdade Estácio de Sá.

Professora de História da Educação Física na Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte.

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implantação na cidade? Que interesses foram despertados? Quais foram os seus primeiros clubes? Seus praticantes foram quem? Teve o futebol inicialmente uma boa aceitação por parte dos belohorizontinos? Nesse artigo, procuro responder a essas questões, com o propósito de analisar a sua semeadura, os seus momentos iniciais na cidade. A introdução do futebol em Belo Horizonte se assemelha à de outros estados brasileiros. A história do futebol no Brasil tem destacado nomes de estudantes brasileiros, filhos da elite, educados na Europa, que, ao retornarem de seus estudos, foram responsáveis pela introdução desse esporte no país. Como a Europa proporcionava uma base educacional que aqui ainda não existia, no final do século XIX, os filhos das famílias abastadas, ao buscarem essa educação, aprendiam novas práticas culturais e também suas tradições. Ao retornarem para o Brasil, contribuíram para o enraizamento de uma nova cultura e uma nova civilização, necessárias à modernidade proclamada pela recém-inaugurada República. O paulista Charles Miller é considerado, por alguns estudiosos do futebol, como o introdutor do futebol no Brasil. Em 1883, ainda criança, mudou-se para Southampton, na Inglaterra, onde estudou em diferentes escolas, tomando aí contato com diferentes práticas esportivas como o tênis, o rugby e o cricket, mas o seu maior entusiasmo foi pelo foot-ball. Ao retornar ao Brasil, em 1894, trazendo na sua bagagem duas bolas e bombas para enchê-las, uniformes e chuteiras, foi o responsável por divulgar as regras e organizar os primeiros jogos entre os sócios do São

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Paulo Athletic Club. O historiador Joel Rufino dos Santos caracteriza assim a contribuição de Miller: “O que Charles Miller nos trouxe, em 1894, foi um esporte universitário e burguês. Elegante e obediente a um código. Esporte de gentlemem, exatamente como são o tênis e o golfe de hoje” (SANTOS, 1981, p.1213). Foi também um gentleman, Oscar Cox, outro nome destacado na disseminação desse esporte no Rio de Janeiro. Em 1897, ao retornar de uma temporada de estudos na Suíça, começou a agitar a juventude estudantil carioca, promovendo jogos e incentivando os amigos para a prática do foot-ball. Foi o grande incentivador do futebol carioca. Junto com compatriotas ingleses, no Payssandu Cricket Club, participou de algumas partidas, mas somente em 1891, no intuito de dar ao jogo o estatuto de uma atividade independente do clube e da colônia inglesa, organizou com um grupo de amigos uma partida entre os jovens brasileiros e os sócios do Rio Criquet, dos ingleses de Niterói. Esse jogo, para alguns estudiosos, marcaria o início do futebol na Capital Federal (MELO, 2000; JAL e GUAL, 2004; PEREIRA, 2000). Mas, mesmo antes da chegada de Miller ao Brasil, já se praticava futebol em algumas escolas como o Colégio São Luís, em Itu, desde 1880, o Colégio Anchieta, em Nova Friburgo-RJ, desde 1886 e o Colégio Pedro II, no Rio, desde 1892. Além dos colégios, uma outra via de entrada do futebol no Brasil foi por meio de funcionários ingleses que aqui trabalhavam em empresas de seu país de origem (MELO, 2000). Mas foi com Miller que foi dado o impulso fundamental para sua completa organização.

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Em Belo Horizonte o futebol chegou com Victor Serpa, carioca, estudou na Suíça e veio cursar Direito na capital mineira. As notas cronológicas de Octávio Penna referem-se ao dia três de maio de 1904, como o marco dessa introdução, quando foi feito “o primeiro ensaio no Parque, em uma de suas alamedas, à direita do portão da avenida Afonso Pena” (PENNA, 1997, p.83). Abílio Barreto esclarece que o local dos primeiros exercícios foi nas proximidades de onde se construiu o teatro Francisco Nunes (BARRETO, 1944). Mas teria sido realmente Victor Serpa o introdutor do futebol em Belo Horizonte? Como na história do futebol no Brasil, os nomes de Charles Miller e Oscar Cox é que são representativos no processo de difusão do futebol como um campo esportivo, isto é, como um sistema de agentes e instituições que funcionam como um “campo de concorrência” onde se defrontam agentes com interesses específicos como nos sugere Pierre Bourdieu1, que são os clubes, as entidades que o dirigem, as competições, dentre outros. Em Belo Horizonte, Victor Serpa foi também o responsável por todo esse processo.

Maiores explicações sobre o conceito de campo esportivo de Pierre Bourdieu podem ser obtidas em BOURDIEU, Pierre. Como é possível ser esportivo? In: Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p.137.

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No entanto, o jornal O Operário de 19 de agosto de 1900, portanto três anos antes da chegada de Victor Serpa à cidade, traz uma reportagem que sugere a existência, naquela época, de um jogo de bola praticado pelos operários italianos. A nota dizia que “no dia 15 do corrente mês, em uma venda da Lagoinha, alguns italianos jogavam pacificamente umas garrafas de cerveja marca barbante ao inocente jogo da bola que mais que um jogo é um verdadeiro exercício ginástico” (O OPERÁRIO, 1900a, p.3). E o jornal do dia 2 de setembro fazia referências também a esses “jogadores de bolas” (O OPERÁRIO, 1900b, p.2).

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Apesar da narrativa do jornal não deixar claro que jogo de bolas era esse e como não foi encontrada nenhuma outra evidência sobre esse jogo em Belo Horizonte, somente podemos fazer alguma relação com situações semelhantes encontradas na Capital Federal. Segundo Leonardo Pereira, no final do século XIX surgem e se fortalecem novos esportes na cidade. O “jogo da bola” - esporte originário da Espanha - era jogado por dois competidores que arremessavam, com raquetes em forma de arco, uma bola contra um paredão, saindo perdedor aquele que não conseguisse rebater a jogada do adversário. Existiam significados ambíguos em relação a esse jogo naquela época, pois podia ser visto como uma simples diversão ou considerado como uma atividade poderosa para o desenvolvimento das forças físicas, segundo valores higienistas da época, qualidades apontadas para justificar interesses de empresários que promoviam essa atividade na cidade (PEREIRA, 2000). Mas, no Rio de Janeiro havia também uma relação da cerveja barbante com o futebol. Segundo Victor Melo, nas primeiras décadas do século XX, o futebol já era praticado por muita gente, e de todas as classes sociais. Foram criadas ali as primeiras ligas populares, denominadas “ligas barbante”, assim chamadas em referência às tampas de cervejas2 de baixa qualidade, produzidas nos fundos de quintais de residências cariocas (MELO, 2000). Assim a ligação com a “cerveja barbante” pode significar alguma relação com futebol popular. Por ser um jogo realizado para divertimento de operários na cidade, era visto como “caso de polícia” como todos os jogos populares, como cita a crítica da liga operária no referido jornal. Por isso, acredito que esse jogo não ganhou representatividade na cidade, diferentemente

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A cerveja começa a ser produzida no Brasil por volta de 1830. Nessa época, tinha um grau de fermentação tão alto que, mesmo depois de engarrafada, produzia uma enorme quantidade de gás carbônico, criando grande pressão. Daí a denominação de cerveja barbante (ou da "marca barbante"), pois, devido à fabricação rudimentar, precisavam de um barbante para impedir que a rolha saltasse da garrafa. COUTO (2005).

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do jogo trazido por um filho de uma distinta família da capital federal, acadêmico de Direito, que havia estudado na Europa e aqui chegou trazendo a novidade lá praticada. Na visão de Raphael Ribeiro, a figura de Victor Serpa foi emblemática, pois representava os valores da época, tanto da modernidade e civilidade vindas da Europa e da Capital Federal, como do estudante de direito que atuava em diversas áreas como na imprensa, eventos literários e teatrais (RIBEIRO, 2002).3 Sua relação como o Rio de Janeiro era constantemente representada pelas idas e vindas da Capital Federal noticiadas nos jornais tais como: “Regressou do Rio o acadêmico Victor Serpa, nosso apreciado colaborador” (FOLHA PEQUENA, 1904a, p.1).

Victor Serpa colaborou com diversos órgãos de imprensa. A Epocha anunciou a fundação de um jornal que se chamaria A Semana, um periódico monarquista, que seria dirigido pelo "talentoso acadêmico, escritor e laureado poeta Victor Serpa" (A EPOCHA, 1904a, p.2). Victor realizou também a tradução do francês de um texto de comédia - Juliano não é ingrato, que foi apresentado no festival Augusto Campos, um "delicadíssimo sarau literário, uma soirré chic", como referenciou o jornal Folha Pequena. (FOLHA PEQUENA, 1904b, p.2.)

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E Victor Serpa era a representação do que havia de mais distinto, e suas qualidades “ornamentavam seu caráter multiforme, de perfeito gentleman” (A EPOCHA, 1905b, p.1). Era destacada a sua “cultura de espírito, distinção de maneiras, amenidade de trato, finura em tudo, aprazia-nos vê-lo generoso, belo de alma e coração, interessando-se por todos os movimentos de nossa mocidade, e com o seu destaque próprio” (A EPOCHA, 1905a, p.2). Como acadêmico, teve uma participação ativa na Faculdade de Direito, assumindo a presidência do Instituto Acadêmico, em novembro de 1904. O jornal A Epocha assim o descrevia: “Si na academia foi o colega dignificador pelo trabalho simples e fecundo, pelo brilho natural de um cérebro equilibrado, gozando do apreço de todos, foi o conversador apurado, o espirituoso animador das boas rodas, malicioso sem espinhos, narrando sempre o caso com graça. Deu

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bases sólidas, entre nós, ao foot-ball” (Ibidem, p. 2.). E essa base foi marcada pela implantação definitiva do futebol na cidade, com a fundação do seu primeiro clube, o Sport Club Foot Ball, iniciativa de Victor Serpa. Segundo Abílio Barreto, coube ao acadêmico, que já havia fundado em Ouro Preto, em novembro de 1903, o “grupo Unionista”, decano do futebol em Minas, a glória da iniciativa de se fundar em Belo Horizonte o “Sport Club”. Grande entusiasta e exímio jogador do esporte bretão, tendo [vindo] cursar a nossa Academia de Direto, apenas se relacionou no meio horizontino, tratou logo de congregar em torno do pensamento que havia tido – o lançamento do futebol na capital – um grupo de moços que, se haviam tido igual pensamento, não se tinham abalançado a dar-lhe corpo e organização (BARRETO, s/d).

Foto: Victor Serpa Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto

Um poema publicado numa coluna humorística do jornal A Epocha retrata Victor Serpa como um personagem importante, responsável pela divulgação do futebol na cidade.

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Traços XVIII Vive a ensinar o jogo estúpido das bolas Nas praças, nos cafés, nas ruas, nas escolas. E quando alguém se espanta ao ver os seus calções Esquisitos demais, sem ligas, sem botões, Ele fica sem graça e diz muito apressado: ‘É preciso educar este povo atrasado!’ ‘Na Europa _ norte a sul _ não se encontra um lugar Onde o povo não saiba as bolas atirar;’ ‘Eu vou contar um caso esplêndido a respeito...’ E logo vem um caso intermino e sem jeito! Já jogou com Loubet as bolas, de manhã, E de tarde fez verso ao lado de Rostand. Afirmam que ele é todo um monte de borracha, Pois sempre cai no chão e nunca se esborracha! Quando joga no Parque a péla, exposto ao Sol, Parece resumir o medonho foot-ball! (TIMOUR, 1904, p.2) Percebe-se nos traços do poeta, inicialmente, uma crítica ao “medonho” futebol, mas o que se destaca no poema é o papel representado pelo Victor Serpa como um educador, que traria para a cidade, como uma forma de superar o atraso – o futebol –, essa prática criada na Europa e que aqui representaria uma modernidade para a cidade. O antropólogo Roberto

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DaMatta analisa o momento da introdução do futebol na sociedade brasileira, destacando o seu caráter inovador: o futebol foi introduzido sob o signo do novo, pois, mais do que um simples “jogo” estava na lista das coisas moderníssimas; era um “esporte”. Ou seja, uma atividade destinada a redimir e modernizar o corpo pelo exercício físico e pela competição, dando-lhe a rigidez necessária a sua sobrevivência num admirável mundo novo – esse universo governado pelo mercado, pelo individualismo e pela industrialização (DAMATTA, 1994, p.11).

E as atividades físicas esportivas simbolizavam, tanto aqui como na Europa, um lazer civilizado. Mesmo sendo considerada uma prática moderna, apropriada por pessoas da elite na cidade, ela não teve uma aceitação unânime pela população, principalmente pelas camadas letradas. Os jornais, a partir daquele momento, passaram a relatar os valores e prazeres da atividade física em crônicas e pequenas notas, mas assumiam, freqüentemente nessas crônicas e em notas humorísticas, uma postura crítica em relação à verdadeira “mania” que vai surgindo na cidade. O jornal A Epocha, na sua coluna “Fagulhas”, em diferentes momentos apresenta entre as Cousas que implicam, a “mania de futebol” (A EPOCHA, 1904c, p.2) e o “foot-ball do Victor Serpa” (A EPOCHA, 1904b, p.2). Percebe-se que Victor Serpa personalizou o futebol na cidade. Chamam atenção algumas crônicas em que era frisada a alienação provocada pela mania do futebol que tomava conta da cidade: Enquanto a gente se enerva a escrever a prosa insossa para os jornais, fala da vida alheia, discute a política, flagela a fraqueza dos governos, namora e bebe cerveja, ha por aí quem se apaixone pelos exercícios físicos, ao ar livre, correndo, transpirando, bradando com a valentia dos pulmões, soltando a gargalhada sonora, em toda a beleza da agilidade, da força e da saúde!

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E quando, no meio artificial e não raro doente, cheio de sobressaltos e dúvidas, corrupção e ódios, até a pena nos pesa qual comprida alavanca de ferro, que movemos com anseios e tortura, como eles, ágeis e fortes, cantam o grande poema da vida á luz clara do firmamento! Abrem os braços, esticam o corpo, firmam as pernas, retesam os músculos, correm, saltam, atacam, fogem com graça, tornam a atacar, e vencem! É após a luta, que alegria, que orgulho! Perguntai ao apaixonado jogador de bola, aos atiradores, ao vencedor de corridas, a qualquer lutador atleta, que pensa das sensacionais intrigas d[o] dia, da vaidade dos superficiais ou do sucesso dos políticos, – que ele vos responderá com um meneio de ombros e um sorriso malicioso, enquanto dispara a queima-roupa uma sonora praga e escapole para o comentário de algum novo acontecimento do sportismo. São esses os que vivem. Esplende-lhes o gozo nas faces, acompanha a alegria da natureza; e quando refulge a luz, vibra a canção dos dias harmoniosos, arrebentam as flores, ondula a relva dos campos, são felizes porque amam a verdadeira beleza, que é a da saúde e da força (OS SARAOS do..., 1904, p.1).

E a crítica vai aparecendo de forma mais direta: Belo Horizonte é uma moçoila maníaca. [...] Agora, porém, vai alcançando vantagens sobre a invencível inconstância de nosso povo, numa firmeza lastimável de mania, um presente grego, digo, inglês – o foot-ball. O magnífico sport que, em outras cidades, o povo joga, aqui joga o povo. [...] o mal invadiu todos os bairros, transformando a cidade num vasto campo de exercício, em que até as pernas ocupadas dos transeuntes servem de goal (PAN d’EGA, 1905, p.1).

Alguns cronistas, como o que assinava Pan d’Ega, da crônica acima, criticava o interesse pelo “fazer” corporal que aliena, em detrimento aos interesses políticos, artísticos e culturais que eram valorizados na época. Outros chegavam a falar numa verdadeira “crise de falência intelectual” (SPIRIDIAM, 1904, p.2). No seu ímpeto de fugir da cidade, “invadida pelo futebol”, Pan dÉga comentou:

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Quem me aplacou os nervos foi o Lúcio que o via aproximar-se, calmo e pensabundo, como no dia em que o apresentei ao leitor. Abracei-o numa irrefreável expansão de alívio, certo de que, como eu, também ele malsinaria o morbus invasor. Interroguei-o sobre a política e internacional de que ele dava tão detalhadas notícias; mas, com grande espanto meu, retrucou: _ Não leio mais jornais. Tenho agora melhores ocupações. _ Que dizes? Perguntei desconfiado. Lucio recuou um passo, arregaçou até o ombro direito a manga do casaco, e, enrijando o bíceps, com o braço em ângulo, falou: _ Olha esse muque. Entrei para o “José de Alencar Foot-ball Club.” Estendi-lhe a mão aflita que ele apertou, achando-a fria, e fugi!(Ibidem)

E o foot-ball passou a figurar ao lado de outros “problemas” daquele período como relata a cronista Marialva, numa nota intitulada Incipientes: “Ó era de crise, de tombos políticos, de foot-ball e polêmica!” (MARIALVA, 1904, p.1). Apesar das críticas, o papel de Victor Serpa na difusão do futebol na cidade não pode ser questionado. Conquistando boas relações na cidade, congregou acadêmicos, funcionários e comerciantes para a criação do Sport-Club. Nessa iniciativa participaram os srs.: Fritz de Jaegher, professor de alemão do ginásio mineiro; Major Augusto Serpa, chefe das oficinas da Imprensa Oficial; Dr. Oscar Americano, cirurgião dentista; major Arthur Haas, José Gonçalves, Avelino Reis, J. Almeida, Claudiano Martins Junior, Miguel Liebmann e J. Jordão, do alto comercio; Celso Werneck e Jefferson Mourão, funcionários do Estado; Antônio Mascarenhas, Joaquim Brasil, Olavo e Abel Drummond, Thomé Pereira, Joaquim Baptista de Mello, J. Roque Teixeira, Francisco e Viriato Mascarenhas, estudantes; e muitos outros (REMEMORANDO, 1927, p. 2).

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Assim, em 10 de julho de 1904, foi fundado o clube e eleita sua primeira diretoria, cuja presidência ficou com Oscar Americano; a vice-presidência com Augusto Pereira Serpa; a tesouraria com José Gonçalves e a secretaria com Avelino de Souza Reis. Victor Serpa assumiu a função de capitão. O Minas Gerais de 13 de julho, em nota na seção “Festas e Diversões”, acrescentava que a diretoria dessa “útil diversão” informava que nos dias 14 e 17 já haveria exercícios práticos no campo (MINAS GERAIS, 1904a, p.6). Os estatutos do clube, compostos de seis capítulos, foram aprovados no dia 23 de agosto do mesmo ano, sendo visados pelo então chefe de polícia Cristiano Brasil. Podiam participar desse clube “pessoas dignas”, nas categorias de sócios efetivos, moradores da capital; correspondentes, residentes fora da capital e beneméritos (ESTATUTOS do..., 1904, p.15). O valor estipulado para o pagamento adiantado da jóia para o ingresso no clube de 10$000 e a mensalidade de 5$000 eram altos o bastante para selecionar criteriosamente seus participantes, valores iguais aos cobrado pelo Fluminense do Rio de Janeiro, clube que se afirmava como da elite, formado por “rapazes da melhor sociedade, quase todos educados em colégios da Inglaterra”4. Os clubes do Rio, que passaram a aceitar como sócios operários de todas as categorias, como o Bangu, cobravam 2$000 como jóia para o ingresso e 1$000 mensais, permitindo assim que trabalhadores menos especializados também pudessem participar. A associação do Sport-Club tinha como fim especial “fazer propaganda de todos os jogos e exercícios atléticos tais como: foot-ball (principalmente), pedestrianismo, cricket, lawns(sic)-tennis, esgrima, etc, 4 Referência do jornal Autosport, de 1912, citado por PEREIRA, 2000, p.28-29.

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etc”. Estas eram algumas das práticas esportivas em voga no momento, com destaque principalmente para as de origem inglesa, que, aliadas aos valores do exercício físico, passaram a ser valorizadas como uma forma de completar a higiene do corpo. Mas somente o futebol foi efetivamente implantado no clube. Os estatutos do clube foram assinados por Oscar Americano, José Gonçalves, Avelino de Souza Reis, Victor Serpa, Charles B. Norris, Augusto Pereira Serpa, Antônio Baptista Vieira Junior, Jordão de Carris Figueiredo, Miguel Liebman, Joaquim Roque Teixeira e Antônio Nunes de Almeida. O clube organizou-se inicialmente com dois times de futebol seniores, o “team do Victor Serpa” e o “team do Oscar Americano” assim constituídos: Mr. Victor Serpa’s XI – De Jaegher (goal-keeper), Liebmann e Almeida (backs), Sales, Abel e Chagas (half-backs), Fr. Mascarenhas, Tomé, Norris, Viserpa e Viriato (forwards) e o reserva Baptista. Dr. Americano’s XI: Gonçalves (goal-keeper), Jepherson e Roque (backs), major Serpa, Avelino e Fabiano (half-backs), Brazil, Jordão, Dr. Americano, Antonino e Claudionor (forwards) e os reservas Raul e Saturnino. Mas possuía também teams juniores que eram capitaneados por Rômulo Joviano e Nuno Santos. Faziam parte desse grupo, Paulo Cunha, Octavio Penna, Américo Martins Penna, Ricardo Martins Penna, Hildebrando Castelar, Alfredo Martins Penna, Gy Santos, Vivico Costa, Evaristo S[alomon], Carlos Toledo Filho, Mário Toledo, José Severiano Machado Coelho Amaro Drumond, João de Mello Franco e Waldemar Ribeiro (FOLHA PEQUENA, 1904c, p.1).

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O time do Sport Club reproduzia o modelo seguido pelos jogadores cariocas, um padrão europeu de jogo, que era utilizado por todos os times do período. Além do goal-keeper, os times possuíam dois backs – jogadores de defesa –; três halfs – que jogavam na intermediária do campo – e cinco fowards – jogadores de ataque. Esse modelo, segundo Leonardo Pereira, foi apresentado em 1905, na obra Sports atléticos, de E. Weber, um autor francês que ensinava os princípios e as técnicas de diferentes esportes de origem inglesa, como o hockey, o lawn-tennis e o foot-ball. Essa obra passou a ser uma “espécie de bíblia” para os cariocas. Com o intuito de esclarecer aos seus esportistas as regras e técnicas do jogo, era citado, com freqüência, nos grandes jornais da cidade (PEREIRA, 2000).5 A fotografia do Sport Club, encontrada nos arquivos do Abílio Barreto, retrata um grupo de pessoas de peles claras, elegantemente vestidas, algumas uniformizadas e outras de terno e gravata, cabelos penteados e bigodes “respeitáveis”.

5 Segundo Pereira (2000), essa obra foi publicada originalmente na França em 1905 e, em 1907, foi editada no Brasil pela Editora Garnier.

Foto: O Sport Club em 1904. A partir da esquerda estão: 1. Jordão Caíres; 2. [ ]; 3. Augusto Pereira Serpa; 4. Virgílio Fabiano Alves; 5. Dr. Oscar Americano, 6. José Gonçalves; 7. Avelino Rodrigues; 8. Antônio Nunes de Almeida; 9. Francisco de Assis das C. Rezende; 10. Abel Horta Drumond; 11.Victor Serpa está assentado com a bola aos pés; 12. Viriato Mascarenhas; 13.Tomé Andrade;

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179 14. Joaquim Brasil; 15. Joaquim Roque Teixeira; 16. Miguel Liebman; José Mariano de Sales; 18 [ ]; 19. Antônio Mascarenhas. Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto

Assim, os sportmen, reunidos em torno do clube para criarem as primeiras raízes do futebol na cidade, eram pessoas da elite da cidade, dentre elas profissionais liberais, funcionários públicos, comerciantes e estudantes, tanto universitários como também ginasiais. Para estes últimos, as crônicas também dedicavam espaço. Um cronista identificado como Sportman assim escreveu: É para vocês, meus gárrulos sportsmen pequeninos, que hoje escrevo. Quisera, em verdade, dizer duas palavras de animação à brava mocidade do Ginásio, que anteontem tão promissoramente estreou nas lides do sport. [...] É bem possível que vocês não dêem polemistas tão mordazes e vãos, como os nossos de hoje, mas certo hão de dar, para bem de Minas e da Pátria, moços sadios d’alma e de corpo, como os inolvidáveis guerreiros e sábios de Roma, que decantavam outrora a ‘mens sana in corpore sano’ (SPORTSMAN, 1904, p.1-2).

Após alguns treinos preliminares, realizados num campo improvisado, localizado entre a rua Sapucaí e a antiga estação da Central, realizaram-se jogos, marcados inicialmente para as 7 horas da manhã, nos domingos, entre os times do Sport Club. Esses jogos eram noticiados, com antecedência, nos jornais da cidade, como o Folha Pequena e A Epocha. Posteriormente, o próprio clube, em seção paga, divulgava seus jogos, no horário da tarde, para conquistar o interesse de jogadores e espectadores: Sport Club Secção paga Todos os domingos às 4 horas da tarde há matck(sic) de foot-ball entre dois valentes teams do club (A FOLHA, 1905, p. 4).

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Um desses jogos, realizado em 2 de outubro de 1904, foi assim noticiado pelo Minas Gerais: Anteontem foi disputado mais um match de football no campo dessa novel sociedade, perante tão numerosa quão fina roda de distintos sportmen e gentis sportwomen. Prestou-se graciosamente a servir de referee o sr. capitão Haas, que se conservou durante toda a partida perfeitamente imparcial e atento, o que grandemente contribuiu para o bom resultado dela. Venceu ainda desta vez o team do Sr. Victor Serpa por 2 gols a 1, apesar do denodo e do brilho com que se bateu o do dr. Oscar Americano. Os pontos foram marcados para os vencedores, pelos srs. José Mariano de Sales e Victor Serpa e para os vencidos pelo sr. Joaquim Brasil. A luta esteve sempre animadíssima, o que demonstra que o popular sport está finalmente para sempre implantado em nosso áureo Estado (SPORT CLUB, 1904a, p. 6).

Esse jogo entre os dois grupos do Sport Club despertou um grande interesse na cidade. Na opinião de Abílio Barreto, “não temos lembrança de nenhuma outra iniciativa lançada em Belo Horizonte e cuja aceitação e imediato e rápido desenvolvimento se possa comparar a do futebol” (BARRETO, s/d). E esse interesse era o do “fina roda”, cujos espectadores tratados como Sportmen e Sportwomem já começavam a ser destacados. As impressões dos espectadores eram as mais variadas sobre a novidade na cidade. O cronista Spiridiam, em diálogo com seu amigo literato Bicudo, que o havia convidado para assistir a uma partida de football, uma coisa nunca vista, assim respondeu: Nem eu, acrescentei. Quando chegamos ao chamado campo, fiquei surpreso. Senhoras e cavalheiros lá estavam embevecidos, arriscando comentários, interessados pelo jogo. Bicudo franziu os supercílios e eu pus-me a observar. Marmanjos e crianças, todos de bonets e calções, as pernas nuas dos joelhos para baixo, calçados com sapatões de turco, atiravam ponta-pés numa bola que andava de Herodes para Pilatos. Momentos depois passou perto de mim um foot-baller e eu pude ver-lhe as truculentas barrigas das pernas com cada mancha assim de sinapismo... Não me contive e chamei

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a atenção do Bicudo. O insigne mestre ria perdidamente, achando tudo aquilo trágico e cômico ao mesmo tempo, e sem perceber, instintivamente repetiu [...] Neste mundo há cada uma (SPIRIDIAM, 1904, p.2).

E os termos em inglês usados no jogo e divulgados na imprensa eram uma forma de reproduzir na cidade o jogo praticado na Inglaterra. Assim crônicas e notícias sobre os jogos eram permeadas por referee, goal, team, penalty, off-side, kick-off, entre outros. Esses termos do esporte passaram a figurar, também, em todos os batepapos da cidade. Inclusive estabelecimentos comerciais ganharam nomes ligados ao esporte, como o Salão Sportman a Rotisserie Sportsman, que aparecem nos anúncios dos jornais Estado de Minas e A Rua. Quanto ao nível técnico dos jogadores, o jornal Vida Sportiva, de 1927, destacava: Desses jogadores, só três ou quatro – Victor Serpa, Avelino Reis, Thomé Norris – já haviam praticado o ‘football’ em outras cidades. Os restantes começaram a aprendê-lo, com mais ou menos habilidade. O capitão Jefferson Mourão era um centro-avante impetuoso e bravio, famoso em ‘charges’no adversário. José Mariano de Sales, atual delegado de investigações e capturas da Capital, magro e veloz como era, gostava dos “rushes” de efeito, escapando rapidamente com a bola, para ir perdê-la perto do ‘goal’, aos pés do Roque, o sólido ‘full-back’. O major Serpa, muito míope, raramente conseguia manter o pé na pelota; mais chutava sempre com grande vigor nas canelas do inimigo. O sr. José Gonçalves (proprietário hoje da Casa Titan), tornou-se logo um esplendido ‘goal-keeper’. Deixou fama.Outro bom arqueiro foi o dr. José Martins Prates, atualmente deputado do Congresso Mineiro. Havia outros jogadores bons, Victor Serpa, porém, sobrepujava-os a todos, por seu jogo impecável, do melhor estilo (REMEMORANDO..., 1927, p.2).

Os jogos iniciais foram realizados com os times do clube que levavam o nome do Capitão.6 Mas logo após a criação do Sport Club e depois da realização do seu primeiro jogo público, outros clubes começaram a se

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organizar “numa proliferação espantosa, não obstante a crença de que tal ramo desportivo era impróprio para nosso clima e estafante para a nossa mocidade” (BARRETO, s/d). A partida realizada em 9 de outubro de 1904 com os times capitaneados por Avelino Reis e Tomé Pereira foram assim constituídos: AVELINO's XI: Gonçalves (goal-keeper), Jordão e Roque (backs), major Serpa, Avelino e Fabiano (halfbacks), Jefferson, Antonino, dr. Americano, Brasil e Claudionor (forwards). Reservas: Saturnino, Velloso e Guilherme. O THOMÉ's XI: Mascarenhas (goalkeeper), Libermann e Almeida (backs), Celso, Thomé e Abel (half-backs), Mellinho, Sales, Norris, Viserpa e Virialho (forwards). Reservas: Baptista, Chagas e De Jaeger (SPORT CLUB, 1904b, p.3)

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É importante destacar que essa frase não é de Plínio e sim de Juvenal (Decimus Junius Juvenalis), poeta satírico romano.

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Sua primeira diretoria foi formada por Francisco Tiburcio de Oliveira, presidente; Otávio Viana Martins, secretário; Álvaro Magalhães Mascarenhas, tesoureiro; Francisco Mascarenhas, Francisco Rebelo de Paula Horta e Raul Cruz, comissão de sindicância. Os estatutos foram organizados por Francisco Mascarenhas, Pedro Queiroga e Antônio José da Cunha.

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Sua diretoria foi assim constituída: Nicanor Noronha; 1o secretário, Mario Linhares; 2o Ricardo Martins Penna e tesoureiro, Américo M. Costa.

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O segundo clube a ser criado também foi destacado pelo Minas Gerais: “Denomina-se Plínio Foot-ball Club a sociedade recentemente fundada nesta Capital para exercícios físicos. É divisa da novel associação o preceito de Plínio: Mens sana in corpore sano7. A primeira partida efetuar-se-á hoje” (MINAS GERAIS, 1904b, p. 6). Abílio Barreto esclarece que a fundação desse clube foi realizada numa reunião efetuada no Externato do Ginásio Mineiro, localizado na Rua da Bahia, no dia 2 de outubro de 1904, o mesmo dia em que foi realizado o primeiro jogo de destaque do Sport Club. O clube era composto de 30 sócios, com 22 titulares e 8 reservas. Sua finalidade específica era o “exercício do foot-ball”. O uniforme do time, definido nos estatutos, era camisa de meia decotada, com listas pretas e brancas; calção branco apertado por um cinturão preto; meias pretas e compridas e mais um acessório usado na época, um “bonnet de gomas pretas e brancas” (ESTATUTOS, 1904, p. 3.).8 O Minas Gerais de 19 de outubro noticiou a criação de um outro clube, o Mineiro Foot-Ball Club (MINAS GERAIS, 1904c, p.7).9 Nesse período, foi criado também o Athletico Mineiro Foot-ball Club, que não é o atual. Victor Serpa, no seu papel de grande educador e divulgador do futebol na cidade, era também presidente do Athletico, que posteriormente viria a se chamar Viserpa-foot-ball-club (A EPOCHA, 1905a, p.2). A primeira partida entre esses novos clubes foi realizada entre as equipes do Plínio e do Athletico, no dia 17 de outubro, “resultando o magnífico match num empate de 0 a 0, o que demonstra o mérito das duas

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defesas inimigas”, como apresentava o crítico esportivo do Minas Gerais (MINAS GERAIS, 1904c, p.7). Com quatro clubes na cidade, os esportistas procuraram organizar competições promovidas por uma associação desses clubes, criando assim, em Belo Horizonte, a sua primeira Liga de Futebol. Dessa forma, o primeiro passo para uma organização mais efetiva do futebol na cidade foi relatado pelo jornal A Folha Pequena, de 10 de outubro de 1904: Reuniram-se ontem à noite, no Grande Hotel, os representantes das sociedades locais de ‘football’, ‘Sport-Club’, ‘Plínio Foot-ballClub, e ‘Athletico Mineiro’ a fim de organizarem nesta capital uma liga de grêmios sportivos, idêntica às existentes no Rio e em São Paulo Foram votadas as leis básicas da nova associação e convocada outra assembléia, em que deverá ser eleita a diretoria, para o dia 12 do corrente, às 7 horas da noite, no mesmo local (FOLHA PEQUENA, 1904d, p. 2).

Essa associação, ao seguir os passos do que acontecia nas duas maiores cidades brasileiras, seguia também o que havia na Europa e também em alguns países da América do Sul, como a Argentina, o Uruguai e o Chile que a haviam inspirado. A forma de organizar competições amadoras, promovidas por uma associação de clubes, já acontecia em São Paulo, desde 1901, fundada pelos clubes São Paulo Athletic, Sport Club Germânia, Club Athletic Paulistano e Sport Club Internacional, cujo primeiro torneio oficial foi realizado em 1902 (PRONI, 2000). Já no Rio de Janeiro, houve um ensaio em 1904, para a formação de uma liga, mas a iniciativa parece não ter prosperado a princípio, tendo conseguido seu intento somente em 1905, com a Liga Metropolitana de Foot-ball, “quando o crescimento do jogo ameaçava a fidalguia que as associações de clubes tentavam atribuir a ele”. Essa Liga, formada pelos clubes Fluminense, Botafogo, Atletic e

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Bangu, que tomava para si a tarefa de “zelar pela imagem refinada do jogo”, adotava em seus estatutos, os regulamentos da Foot-ball Association da Inglaterra, afirmando assim o aspecto distintivo do futebol (PEREIRA, 2000, p.63-64). Em Belo Horizonte, o Sport Club, que possuía dois grupos de atletas, oficializou, para participar da Liga, o nome de seus dois times que passaram a ser o Colombo e o Vespúcio.10 Assim, o primeiro Campeonato organizado pela Liga contou com a participação de cinco times: os dois do Sport Football Club, Colombo e Vespúcio; Plínio Football Club; Mineiro Football Club e Athletico Mineiro Foot-ball Club.

10 O Grupo Colombo usava "bonnet encarnado e preto em listas, camisa preta, calções brancos, meias pretas e botas de football". O Grupo Vespúcio usava "bonnet encarnado e preto em listas, camisa crême, calções pretos de sarja, meias pretas e botas de football". (MINAS GERAIS,1904c, p.7)

O Minas Gerais de 19 de outubro divulgou, como primeira partida do campeonato da Liga, a disputa entre os dois times do Sport-Club, o Colombo e o Vespucio, que seria realizada no dia 23 de outubro, mas a edição de 26 de outubro, ao noticiar os jogos do campeonato da liga, na sua seção “Festas e Diversões”, descreve com detalhes duas partidas. Inicialmente o jogo do Plinio versus Mineiro, que foi uma partida “renhida”, e depois o Colombo versus Vespucio. No segundo jogo foi destacada a ausência de Gonçalves, dr. Oscar e o capitão Serpa, do lado do Colombo, e de Fritz de Jaegher, Norris e Liebmann, do Vespucio, o que foi a causa do grande desapontamento dos espectadores, pois foi uma partida “fria”, “glacial”, sem o “fogo” e o “interesse” que despertavam os “mestres” ( MINAS GERAIS, 1904d, p.7). Os jogos da liga passaram a atrair para os campos os belo-horizontinos amadores do foot-ball, que podiam apreciar um “bem organizado match entre os clubs” (MINAS GERAIS, 1904e, p. 3). O Minas Gerais noticiava, com a chamada “O campeonato de 1904”,

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as partidas entre os clubes, exaltando as qualidades dos jogadores, publicando as posições dos times no campeonato e divulgando os horários dos jogos, que aparecem às sete da manhã e às quatro e quinze da tarde. Adjetivados de valentes, disciplinados e arrojados, dentre outros, os foot-ballers da cidade jogavam de forma admirável o “cavalheiresco football” (MINAS GERAIS, 1904f, p. 2). Apesar do cronista dizer que “cresceu enormemente o entusiasmo pelo omni-importante torneio nos arraiais sportivos”, o Minas Gerais publicou notícias sobre o campeonato somente até sua edição de 6 de novembro, que apresentou o seguinte quadro das posições dos clubes: Segundo o Vida Sportiva de 1927, o campeonato não terminou devido às fortíssimas chuvas de novembro, que impediam a realização dos jogos. Mas Abílio Barreto, em seus manuscritos, afirma que o Vespucio venceu o campeonato, portanto o campeão pertencia ao Sport Club.

Naquele mês de novembro, ainda aparecem notícias sobre jogos realizados nos clubes Athletico e Sport. O cronista destacava os valores do esporte: Este gênero de diversão esportiva, que ultimamente tanto incremento tem tomado no nosso meio, alia em si o útil ao

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agradável, pois ao mesmo tempo em que dá força ao corpo, concorrendo assim para a perfeição da espécie, é um elemento de distração para o nosso público. É de presumir que haverá hoje grande concorrência ao Athletico Mineiro Foot-ball (MINAS GERAIS, 1904g, p.6).

Mas o futebol belo-horizontino, em janeiro de 1905, sofre uma perda lastimável com a morte prematura de seu mais importante incentivador, o Victor Serpa, vítima de gripe, no Rio de Janeiro. A imprensa, colegas de faculdade, os times de futebol da cidade e de Ouro Preto e famílias amigas expressaram diferentes manifestações de pesar pela perda do grande amigo. O jornal A Epocha, que, em 18 de dezembro de 1904, havia publicado o recebimento de um cartão de despedida do “simpático amigo” Victor Serpa, que saía de férias para o Rio, publicou nas edições de 22 e 29 de janeiro de 1905, notícias sobre o seu falecimento e relatou o grande número de manifestações e homenagens. Destaca-se o tributo do Athletico-foot-ballclub, do qual Victor Serpa era presidente, que, além de decretar oito dias de luto, mudou o seu nome para Viserpa-foot-ball club. Outros Clubes como o Sport, o Juvenil e o Plínio e também o Club Unionista de Foot-Ball, dos alunos da Escola de Minas de Ouro Preto, também fundado por Viserpa, enviaram mensagens a família e realizaram cerimônias em homenagem à memória do amigo. Famílias e amigos acadêmicos também expressaram seu pesar celebrando missas em diferentes cidades. Todas essas manifestações revelaram o importante papel assumido por Victor Serpa na sociedade. Suas qualidades, cultura de espírito e distinção eram destaque e chegaram a ser relembradas posteriormente por um cronista que dizia: “tempo houve em que Bello Horizonte vibrou, aninhando em seu seio moços de espírito, cultos e fortes para a luta”. O nome de Victor Serpa é destacado em meio a outros que foram evocados pelo

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cronista por terem proporcionado “inesquecíveis dias” na cidade (ESTADO DE MINAS, 1906b, p.1.). Mesmo após o falecimento do seu grande líder, o futebol continuou a se enraizar na cidade. O Viserpa Foot-ball Club, no dia 29 de janeiro, já realizava uma partida, tendo sido eleito para seu presidente mais um acadêmico, o foot-baller Júlio Lemos (A EPOCHA, 1905b, p.2.). E outros times passaram a figurar nos jornais como Brasil Foot-ball Club, com seus dois times – Russo e Japonês – (MINAS GERAIS, 1904h, p. 8), Juvenil Foot-ball Club (A EPOCHA, 1905a, p. 2), José de Alencar Foot-ball Club, Esperança Foot-ball Club e Estrada Foot-ball Club (PAN d’ EGA, 1905, p.1). Em agosto de 1905, ganha as manchetes do jornal A Epocha o anúncio do primeiro jogo a ser realizado fora da cidade, entre o time do Viserpa Foot-ball Club e o Hugo Braga Foot-ball Club, da cidade de Barbacena. O cronista destacava que seria a “primeira vez que se [empenhariam] em luta, no Estado de Minas, clubs de cidades diferentes” e a iniciativa seria uma boa forma de despertar o entusiasmo nos clubes de outras cidades (FOOT BALL, 1905a, p.2). Mas esse entusiasmo não seria só para os clubes de outras cidades, mas também os de Belo Horizonte. As notícias sobre o foot-ball passaram a ser raras. Depois de fevereiro de 1905, em que A Epocha noticiou que “entre as ruas Parahyba e Pernambuco, em excelente situação, foi aberto o campo em que o Viserpa Foot-ball Club fará d’agora em diante os seus exercícios” (A EPOCHA, 1905c, p. 3.), somente em junho aparece uma nota esclarecendo que por aqueles dias o Brasil Foot-ball Club recomeçaria seus exercícios, suspensos há pouco tempo por motivo de força maior (FOLHA PEQUENA, 1905, p.1.). A partida intermunicipal traria novo interesse ao foot-ball. Marcada inicialmente

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para o dia 6 setembro, ficou definitivamente acertada para o dia 1º de outubro. Nessa nota foi noticiada a fusão entre o clubes: Viserpa e Sport. As diretorias, reunidas, decidiram que a nova associação iria chamar Viserpa Sport Club e que as mensalidades seriam reduzidas para 3$000, não pagando jóia os jogadores que já tivessem pertencido a outros clubes. Achava-se na Casa Colombo uma lista para ser assinada pelos que concordassem com a fusão e também para aqueles que se interessarem por fazer parte da associação. Essa era uma iniciativa para abrir possibilidades de que mais pessoas pudessem participar do seleto clube, que, ao diminuir o valor da mensalidade para 3$000, um valor ainda alto o bastante para selecionar seus participantes, motivaria a entrada de novos adeptos. A medida era, para o cronista do A Epocha, uma esperança de que o “foot-ball tome vigoroso impulso” (FOOT-BALL, 1905b, p. 1). Mas também um indicativo de que o interesse não era o mesmo dos tempos iniciais. É importante ressaltar que fazia parte da comissão redatora desse jornal, que tanto apoio dava às notícias do futebol, Júlio Lemos, o Capitain do Viserpa (A EPOCHA, 1905d, p.1). O resultado e empenho dos diretores do clube parecem não ter dado o resultado esperado. Depois da nota “hoje, às 4 horas, haverá jogo no ground do Viserpa Sport-club”, de 15 de outubro de 1905, mesmo o presidente do Viserpa fazendo parte da comissão redatora do jornal A Epocha, as notícias sobre futebol desapareceram dos jornais da cidade. Assim como o ciclismo e o turfe, que despertaram inicialmente um grande interesse por parte dos belo-horizontinos, o futebol, apesar da efervescência vivida nos primeiros anos, também entrou numa fase de declínio e desinteresse do povo mineiro. Os anos de 1906 e 1907 foram marcados pela ausência de notícias sobre ele,

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momento em que as atenções da população se voltaram para o Prado Mineiro, com a implantação do turfe na cidade. O que marca esses anos iniciais foi o papel desempenhado por Victor Serpa na difusão do futebol em Belo Horizonte, como um esporte de elite, envolvendo pessoas representativas na cidade, comerciantes, universitários e ginasianos na criação de times que tiveram vida efêmera na cidade. Somente a partir de 1908 é que o futebol vai ressurgir, com a criação de times que até hoje vêm construindo a história desse esporte na cidade, como o Clube Atlético Mineiro. Mas essa já é uma outra história... REFERÊNCIAS A EPOCHA. Bello Horizonte, 4 set. 1904a, p. 2. A EPOCHA. Bello Horizonte, 4 set. 1904b, Fagulhas, p. 2. A EPOCHA. Bello Horizonte, 30 out. 1904c, Fagulhas p. 2. A EPOCHA. Bello Horizonte, 18 dez. 1904d, p. 1. A EPOCHA. Bello Horizonte, 22 jan. 1905a, p. 2. A EPOCHA. Bello Horizonte, 29 jan. 1905b, p. 1-2. A EPOCHA. Bello Horizonte, 26 fev. 1905c, p. 3. A EPOCHA. Bello Horizonte, 1 out. 1905d, p. 1. A FOLHA. Bello Horizonte, 15 jan.1905, p. 4. A RUA. Bello Horizonte, 12 nov. 1907, p. 4. BARRETO, A. Descrição histórica e comentário da fotografia do primeiro clube de futebol fundado em Belo Horizonte. Museu Histórico Abílio Barreto, 25 out. 1944. BARRETO, A. O passado desportista da capital III – Nasce o futebol na cidade. A fundação e o primeiro jogo publico do “Sport-Club-Foot-Ball”. Manuscritos – ABPi 4/029, s/d. BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. COUTO Fernanda. Cerveja a toda hora: chegada real. Disponível em: http://bolnamesa.com.br/especiais/ pais2002/chegada.jhtm>. Acesso em 24 set.2005. DAMATTA, Roberto. Antropologia do óbvio. Revista da USP, São Paulo, n.22, 1994. (Dossiê Futebol) ESTADO DE MINAS. Bello Horizonte, 01 jan. 1906a, p. 4. ESTADO DE MINAS. Bello Horizonte, 22 abr. 1906b, Registro, p. 1.

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Sistematização da Constituição do Estado de Minas Gerais: Pesquisa realizada com apoio do Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão - CEPE da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte

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Sistematização da Constituição do Estado de Minas Gerais: Pesquisa realizada com apoio do Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão - CEPE da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte* Professores pesquisadores Fátima Aurélia Baracho Macaroun** Denise de Carvalho Falcão*** Leonardo Goulart Pimenta**** Alunos Alan Silva Faria José Eustáquio Pimenta dos Santos Jussara de Freitas Leite Baron Luciana das Graças dos Santos

Resumo: O objetivo do projeto de pesquisa, desenvolvido em torno da sistematização da Constituição do Estado de Minas Gerais, era verificar a interpretação e aplicação da Constituição Estadual pelos Poderes Judiciário e Legislativo desde a sua promulgação, em 1989, através do levantamento de decisões e jurisprudências dos Tribunais, bem como de projetos de lei aprovados pela Assembléia Estadual, principalmente visando à efetiva realização do modelo de estado federal brasileiro. A pesquisa se baseou na coleta de dados específicos sobre a interpretação e aplicação da Constituição Estadual de 1989, incluindo decisões e jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, além da análise de livros e artigos especializados, razões de veto por inconstitucionalidade e pareceres das Comissões da Assembléia Legislativa do Estado. Após um período de um ano e meio de coleta e análise de dados, chegou-se a relevantes conclusões. A mais significativa foi no sentido de que ambos os tribunais pesquisados, Tribunal de Justiça de Minas Gerais e Supremo Tribunal Federal, sistematicamente não reconhecem a autonomia do Estado de Minas Gerais. Ou seja, mais de 75% das decisões proferidas em ações diretas de inconstitucionalidade, seja contra a Constituição Estadual ou a Constituição Federal, expedidas pelo Tribunal de Justiça de

Pequisa realizada com apoio do Centro de Extensão e Pesquisa - CEPE da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte.

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** Mestre em Direito-Professora da Faculdade Estácio de Sá de BH.

*** Mestre em Direito-Professora da Faculdade Estácio de Sá de BH.

Mestre em Teoria do Direito-Professor da Faculdade Estácio de Sá de BH

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Minas Gerais ou pelo Supremo Tribunal Federal, são contrárias aos fundamentos da forma federativa, gerando um grave desvio na efetivação do federalismo no Brasil. Palavras-chave: autonomia, estados-membros, constituição federal, constituição estadual de Minas Gerais, assembléia legislativa, federalismo. Abstract: SUPREME COURT OF BRAZIL - STATE COURT OF MINAS GERAIS The objectives of the study were to verify the interpretation and application of the Constitution of Minas Gerais State made by the Judiciary and Legislative Powers, since its promulgation. Decisions and jurisprudence of the Courts were collected in addition to law projects approved or rejected by Legislative Assembly of Minas Gerais State. The research was based on specific data about interpretation and application of the Constitution of Minas Gerais State, including decisions made by the Supreme Court of Brazil, Supremo Tribunal Federal, and also by the State Court of Minas Gerais, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. After eighteen months of data collection and analysis, the most important conclusion was that more than 75% of the decisions made by the Supreme Court and State Court decided against the autonomy of Minas Gerais state, denying the federalist model adopted by Brazil in his Constitution.

Keywords: federalism, constitution, legislative assembly, autonomy

O presente trabalho refere-se ao resultado de pesquisa científica desenvolvida com o apoio do Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão - CEPE da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte. O objetivo geral do Projeto de Pesquisa desenvolvido em torno da sistematização da Constituição do Estado de Minas Gerais era verificar a interpretação e aplicação da Constituição Estadual pelos Poderes Judiciário e Legislativo desde a sua promulgação, em 1989, através do levantamento de decisões e jurisprudências dos Tribunais, bem como de projetos de lei aprovados pela Assembléia Estadual.

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São diversas as pesquisas, publicações e consolidações em torno da interpretação e aplicação da Constituição Federal de 1988. Entretanto, o mesmo não se pode dizer das Constituições Estaduais de maneira geral. Para se ter uma idéia, quanto à Constituição mineira não há qualquer registro de trabalhos ou pesquisas que envolvam uma análise mais profunda sobre os debates que ocorrem no âmbito do Poder Judiciário (Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça de Minas Gerais) e do Poder Legislativo (Assembléia Legislativa de Minas Gerais), pois vários pontos que seriam essenciais à compreensão da sistemática constitucional estadual são colocados à margem diante dos processos de sistematização e consolidação. Tal constatação leva-nos a afirmar que faltam elementos que sirvam de subsídio para analisar não só a Constituição, mas toda a legislação estadual, fato esse que ressalta a necessidade de um trabalho que verifique as diretrizes adotadas quando da interpretação e aplicação dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais vigentes. O trabalho de pesquisa realizado teve, portanto, como marco inicial, a Constituição do Estado de Minas Gerais, e a pretensão era sistematizar suas normas, principalmente em comparação com a Constituição da República de 1988, a partir do modelo de Estado Federal adotado pela Constituição brasileira. Trata-se, portanto, de uma pesquisa inédita e de grande valor prático para os aplicadores do Direito. A pesquisa se baseou, inicialmente, na coleta de dados específicos sobre a interpretação e aplicação da Constituição Estadual de 1989, incluindo decisões e jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e do

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Tribunal de Justiça de Minas Gerais, além da análise de livros e artigos especializados, razões de veto por inconstitucionalidade e pareceres das Comissões da Assembléia Legislativa do Estado. As informações foram coletadas através de buscas em arquivos relacionados à natureza e origem dos dados disponíveis. As decisões e jurisprudências foram levantadas por meio de compilações realizadas pelos Tribunais selecionados para a pesquisa, e as razões de veto por inconstitucionalidade e pareceres das Comissões da Assembléia Legislativa de Minas Gerais foram pesquisados nos arquivos e publicações deste órgão. Complementando a pesquisa, foram utilizados livros e artigos publicados em periódicos e revistas especializadas, com o intuito de dar aos trabalhos o amparo doutrinário necessário a todo projeto dessa natureza. Sob esse aspecto, é de fundamental importância uma abordagem teórica sobre o surgimento do Estado federativo, sobretudo no que se refere à autonomia outorgada pela Constituição Federal aos Estadosmembros. O modelo de Estado Federal é de criação norteamericana e pressupõe algumas características peculiares. Como se sabe, o modelo de Estado Federal derivou da ineficácia do modelo confederativo, adotado pelos Estados norte-americanos após a independência da Inglaterra. Isso porque, no modelo de Confederação, cada Estado preservava sua soberania, e por tal razão sempre poderia haver alguma decisão discordante e que ocasionasse o rompimento do vínculo entre os Estados.

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Assim, surge, em razão de longos debates, que depois foram sintetizados na obra “O Federalista”, o modelo de Estado Federal, nova forma de Estado, em que se destacam características próprias. ALMEIDA (2000) ressalta como características fundamentais do Estado Federal a autonomia dos Estados-membros, que abdicam da anterior soberania e passam a fazer parte da Federação como entes autônomos; a Constituição como fundamento jurídico do Estado Federal; a inexistência do direito de secessão; a repartição constitucional de competências e a repartição de rendas entre os entes federativos. Dentre tais características, e talvez a mais importante para a realização da pesquisa, destaca-se a autonomia dos entes federativos que compõem essa forma de Estado. Nesse sentido, cada ente federativo tem sua própria ordem constitucional, e sua competência, legislativa e material, determinadas pela Constituição Federal. A autonomia dos entes federativos baseia-se principalmente na capacidade de autolegislação, autogoverno e auto-administração daquele ente. Cada ente federativo, portanto, tem, respeitada a repartição constitucional de competências, capacidade de autolegislação no que concerne aos assuntos de seu interesse. Com essa forma de Estado, busca-se a descentralização de competências, ou seja, cada ente fica mais próximo e com capacidade real de se organizar e resolver seus próprios problemas e peculiaridades. Há, portanto, em um Estado Federal, a convivência de diversas ordens constitucionais regionais, dentro de cada ente federativo. O modelo idealizado pelos criadores prevê uma considerável autonomia de seus entes; ou, com efeito, não seria efetivado o modelo proposto.

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Entretanto, como afirma BARACHO (1986), nem sempre o modelo original é seguido na prática pelos Estados que adotaram tal forma: Na análise do federalismo, chega-se a dizer que a descentralização política que ele implica, em muitos casos não passa de uma ficção legal. A tendência à centralização leva à afirmativa de que ocorre um verdadeiro processo de desfederalização em muitos dos modelos atuais, com altos índices para uma predominância do Estado unitário. A forma de Estado federal implica, normalmente, a distribuição territorial do poder político, com a coexistência de esferas de governo, com competências definidas, possibilitando coordenação e independência. Dentro desse entendimento, no Estado Federal não deve ocorrer um poder para regular todos os aspectos da atividade estatal, desde que o governo central surge legalmente limitado no exercício de algumas funções, ao passo que importantes esferas da atividade governamental são dirigidas às unidades locais.

O Brasil adota a forma de Estado Federal desde a proclamação da República, em 1889, seguindo o modelo de Estado adotado nos Estados Unidos da América, em que há a convivência de centros de competência, com tais competências previstas e definidas na Constituição Federal. A partir da Constituição de 1988, o Município foi também reconhecido como ente federativo, passando a possuir autonomia administrativa e legislativa. Assim, dentro do modelo brasileiro atual, cada Estado e cada Município têm capacidade de constituir sua própria ordem normativa, dentro das limitações previstas na Constituição Federal. Como realização de sua autonomia, o Estado de Minas Gerais dispõe de uma Constituição, promulgada em 1989, e de uma legislação específica. Ocorre, no entanto, que apesar de várias pesquisas, publicações e consolidações sobre a aplicação e interpretação da Constituição Federal, não há qualquer trabalho de pesquisa sobre a Constituição Mineira. Há

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uma série de discussões ocorridas, em especial no Poder Judiciário (Tribunal de Justiça de Minas Gerais e Supremo Tribunal Federal) e no Poder Legislativo (Assembléia Legislativa de Minas Gerais), que passam despercebidos aos processos de sistematização e consolidação. Resta, dessa forma, uma lacuna em termos de subsídio para análise da própria Constituição, assim como de toda a legislação mineira. Não há qualquer indicação criteriosa e organizada sobre os sentidos e interpretações já discutidos e aplicados no Estado. Os cientistas do direito, em especial os cientistas mineiros, não dispõem de uma pesquisa que lhes ofereça elementos para avaliar a sistemática de interpretação que é realizada sobre a Constituição de Minas e de sua legislação especifica. Nestes termos, o projeto desta pesquisa teve como principal objetivo, em razão da grande escassez de trabalhos nessa área, analisar as normas constantes da Constituição do Estado de Minas Gerais, ente federativo dotado de autonomia constitucional. A previsão inicial era traçar parâmetros para que pudéssemos avaliar qual o verdadeiro grau de autonomia do Estado de Minas Gerais como ente da Federação. Isto é, dentro da estrutura federalista brasileira, verificar se a Constituição do Estado de Minas Gerais poderia ser considerada como marco de autonomia estadual para que o Estado atingisse suas próprias metas e resultados, dentro de suas peculiaridades regionais. Para tanto, adotou-se a pesquisa das decisões do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal de Justiça de Minas Gerias e de pareceres proferidos pela

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Assembléia Legislativa de Minas Gerais, para que fossem levantados dados e realizadas análises concretas acerca da Constituição Mineira de 1989. Essa metodologia objetivou, em primeiro plano, a avaliação dos resultados do controle de constitucionalidade realizado por via de ação perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o Supremo Tribunal Federal, ações cujo objeto foram normas presentes na Constituição de Minas Gerais e na legislação estadual. Tal levantamento teve como marco inicial a Constituição Federal de 1988, como forma de se concluir como a estrutura vigente a partir de 1988 vem se realizando concretamente dentro dos Tribunais. Baseando-se nos sistemas austríaco e norte-americano, o Brasil adota dois sistemas de controle de constitucionalidade, que se completam por atingir objetivos diferenciados. FERRARI (2004) assim resume os modos de argüição da inconstitucionalidade frente ao órgão jurisdicional: Quanto aos modos de argüição da inconstitucionalidade frente ao órgão jurisdicional, estes se dividem em: a) via de defesa, quando a argüição é feita incidentalmente no curso de um processo comum e discutida a inconstitucionalidade na medida em que seja relevante para a solução do caso. Havendo a declaração de inconstitucionalidade, esta atinge apenas às partes litigantes, continuando válida e produtora de efeitos em relação aos demais; b) via de ação, que, tendo objeto mais amplo, visa retirar do ordenamento a norma tida por inconstitucional pelo órgão competente, quando seus efeitos se estendem erga omnes.

Portanto, no sistema por via de defesa ou exceção, de origem norte-americana, realizado de modo difuso, qualquer das partes pode argüir a inconstitucionalidade de um preceito e o juiz competente pode declarar uma norma

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inconstitucional, restringindo-se ao julgamento do caso concreto. Quando há essa declaração de inconstitucionalidade, seu efeito restringe-se às partes envolvidas na demanda, autor e réu. A norma permanece no sistema, e continua produzindo efeitos para todos que não fizeram parte da demanda. Esse modo de controle de constitucionalidade, de interpretação judiciária da Constituição, não foi objeto de investigação, tendo em vista que seria necessário analisar detalhadamente milhares de decisões que são expedidas todos os meses pelas centenas de juízes de primeiro grau que compõem o Judiciário mineiro. Ainda que tal pesquisa fosse de alguma forma viável, a grande abstração analítica impossibilitaria qualquer reflexão ou conclusão teórica. Outro modo de controle de constitucionalidade perante os órgãos judiciários, que interessa ao presente trabalho, é o controle por via de ação ou principal, de origem austríaca, realizado de forma concentrada, diretamente nos Tribunais Superiores. A Constituição da República de 1988 prevê competência privativa do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar ações diretas de inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade de leis ou atos normativos federais e estaduais (art. 102, I, “a”). E prevê ainda, em razão da forma federativa, que cada Estado-membro disponha sobre semelhante modo de controle de constitucionalidade, de normas municipais e estaduais, em relação à Constituição Estadual, a ser realizado pelo respectivo Tribunal de Justiça Estadual (art. 125, §2º). Nesta forma de controle, para se questionar a constitucionalidade de leis ou atos normativos federais ou estaduais, podem ser propostas ações próprias (Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação

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Declaratória de Constitucionalidade), com legitimação ativa restrita prevista na Constituição da República e nas Constituições Estaduais. A legitimação ativa está prevista no artigo 103 da Constituição Federal e no artigo 118 da Constituição Estadual. A Constituição Federal prevê esta forma de controle de constitucionalidade em face da Constituição Federal, a ser realizado diretamente perante o Supremo Tribunal Federal, através da propositura destas ações próprias, no artigo 102, inciso I, alínea a. A Constituição Federal também prevê a hipótese de controle de constitucionalidade em âmbito estadual, quando prevê em seu artigo 125 que cada Estado implantará seu sistema de controle de constitucionalidade a ser realizado perante o Tribunal de Justiça Estadual. A Constituição do Estado de Minas Gerais prevê essa competência para julgamento em seu artigo 106, inciso I, alínea h. Em ambos os casos, o julgamento é realizado em caráter abstrato, ou seja, não se discute o direito das partes, sendo o objeto da ação a análise da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma questionada. Uma vez declarada a inconstitucionalidade nesta espécie de controle, os efeitos são totalmente diversos dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade pela via de defesa, já descritos acima. Aqui a declaração de inconstitucionalidade retira a norma considerada inconstitucional do ordenamento jurídico, o que faz com que o efeito dessa declaração atinja a todos (efeito erga omnes). Tendo em vista tais características, este foi o enfoque do presente trabalho de pesquisa: procurou-se verificar, com a análise de decisões proferidas em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal

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e pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, quais normas estaduais, quando contestadas em sua constitucionalidade, foram mantidas ou não, como forma de determinar se a forma federativa é reconhecida pelos órgãos judiciários. Para concretizar esses objetivos, as primeiras atividades foram no sentido de se delimitar quais as informações relevantes a serem retiradas das decisões judiciais sobre a Constituição de Minas Gerais e qual a formatação a ser utilizada nessa coleta. A conclusão dessa primeira etapa foi concretizada no modelo utilizado pelos alunos participantes (Fichário), o qual definiu as seguintes informações como pertinentes: ano, natureza da ação, órgão, assunto, artigos citados e resumo da decisão. Ainda nesse primeiro momento ocorreu a especificação do cronograma, divisão e distribuição das atividades de pesquisa entre os professores e os alunos bolsistas e voluntários que também participaram do projeto. Observe-se também que o trabalho de coleta a ser realizado pelos alunos participantes foi especificado em função do cronograma apresentado no Projeto, através do qual cada aluno recebeu determinados objetivos e uma amostra temporal a ser pesquisada. Em 30 de setembro de 2004, a pesquisa iniciou-se no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, sendo que, nos 67 volumes da Revista Trimestral de Jurisprudência, nos 260 livros da Revista Forense e nos 62 volumes dos Arquivos da Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, foram pesquisadas todas suas decisões em Ações Diretas de Inconstitucionalidade no período de janeiro de 1989 a dezembro de 2004. Dessa análise foram destacadas 92 decisões, sendo que 76,09% foram acordadas no sentido de, no todo ou em parte,

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por maioria ou unanimidade dos votos, declarar a inconstitucionalidade de Leis e atos normativos Estaduais e Municipais, em face da Constituição do Estado de Minas Gerais. Ao final desta primeira etapa da pesquisa já foi possível concluir que sistematicamente o Tribunal de Justiça de Minas Gerais não reconhece a autonomia garantida na Constituição Federal, isto é, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais reiteradamente decide contra a autonomia dos entes, em desacordo com o princípio fundamental da forma federativa. Isso significa que, ao se contestar uma lei ou um ato normativo estadual ou municipal diante da Constituição Estadual de 1989, a tendência no Tribunal de Justiça de Minas Gerais é de que a autonomia do Estado seja desconsiderada em afronta à forma federativa determinada constitucionalmente. Finalizado esse primeiro objetivo específico do trabalho, em janeiro de 2005, iniciou-se a coleta de dados no Supremo Tribunal Federal, isto é, o levantamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas no Supremo Tribunal Federal, originadas do Estado de Minas Gerais no período de janeiro de 1989 a julho de 2005. Tal atividade teve por base a mesma metodologia de trabalho utilizada no recolhimento das decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tendo novamente como fonte os 67 volumes da Revista Trimestral de Jurisprudência, os 260 livros da Revista Forense e os 62 volumes dos Arquivos da Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Concluído o levantamento, em julho de 2005,

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destacados e analisados todos os 89 acórdãos sobre o tema, verificou-se que 78,66% das decisões do Supremo Tribunal Federal julgou, no todo ou em parte, por maioria ou por unanimidade de votos, pela inconstitucionalidade de dispositivos da Constituição Estadual de Minas Gerais de 1989, Leis e Decretos estaduais, Regimentos Internos e outros dispositivos estaduais em face da Constituição Federal de 1988. Novamente, ao final dessa etapa da pesquisa, foi possível concluir que, assim como o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o Supremo Tribunal Federal sistematicamente não reconhece a autonomia do Estado de Minas Gerais. A tendência das decisões do órgão judiciário máximo no Brasil, responsável por garantir os princípios basilares da ordem jurídica nacional, é a de não reconhecer a autonomia do Estado de Minas Gerais em suas decisões concretas sobre controle de constitucionalidade. Por fim, a partir de fevereiro de 2005, os pesquisadores selecionaram 37 pareceres da Comissão de Constituição e Justiça, 30 Razões de Veto no tocante às inconstitucionalidades, 27 propostas de emendas à Constituição Estadual, 117 emendas de projetos de lei pendentes de análise sobre a constitucionalidade. Também investigaram a tramitação das leis dentro da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, buscando levantar os pareceres das Comissões relacionados à interpretação da Constituição do Estado de Minas Gerais de 1989. Assim, investigou-se especialmente os pareceres das Comissões de Constituição de Justiça, órgão responsável pela análise preliminar da constitucionalidade das leis em tramitação na Assembléia Legislativa de Minas Gerais. Isso significa que, em princípio, a Comissão conclui sobre a

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constitucionalidade de um projeto de lei, servindo-se dessa forma para evitar que leis consideradas inconstitucionais sejam aprovadas e promulgadas. Ao término da análise dos levantamentos, observou-se que 35 projetos considerados inconstitucionais pela Comissão de Constituição e Justiça foram aprovados e se transformaram em lei. Com efeito, tal lei formalmente aprovada apresenta uma probabilidade substancial de sofrer um questionamento judicial por via direta ou indireta. Tal constatação demonstra a falta de comprometimento do Legislativo com seu próprio regimento, colocando em risco a integridade e coerência do ordenamento estadual. Assim sendo, sugere-se, como outro objeto de pesquisa, a contraposição entre as leis que, apesar de parecer desfavorável sobre sua inconstitucionalidade por parte de um órgão do próprio Legislativo, restam aprovadas, e as leis declaradas inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais como forma de se investigar a consciência do órgão Legislativo mineiro em editar e aprovar leis originalmente inconstitucionais. Após todos os trabalhos realizados, a conclusão mais significativa sobre a interpretação da Constituição de Minas Gerais de 1989 é que a maioria absoluta das decisões em ações diretas de inconstitucionalidade, seja contra a Constituição Estadual ou contra a Constituição Federal, expedidas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais ou pelo Supremo Tribunal Federal, são contrárias aos fundamentos da forma federativa. Vê-se, portanto, que um grave desvio na jurisprudência vem passando impunemente à consideração dos juristas, tendo em vista a ausência de sistematização sobre a interpretação das constituições estaduais.

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A pesquisa apresentou um resultado significativo sobre o tema: mais de 75% das decisões sobre a inconstitucionalidade das normas do Estado de Minas Gerais foram indeferidas pelo Supremo Tribunal Federal, ou também, o órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro reiteradamente rejeita a afirmação da autonomia do Estado de Minas Gerais em suas decisões, daí que toda pretensão de autonomia estadual, garantida na Constituição Federal de 1988, não vem obtendo o devido reflexo na atuação concreta do Tribunal responsável pela guarda dos princípios constitucionais. A partir dessa constatação circunscrita a um ente federativo, restaria saber se tal perspectiva é adotada pelo Supremo Tribunal Federal em relação aos demais Estados-membros brasileiros, ou seja, é necessário investigar se a postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal em relação à autonomia do Estado de Minas Gerais afirma-se como regra dentro de suas decisões. Se os Estados brasileiros, ao serem questionados judicialmente sobre a constitucionalidade de sua legislação, têm sua autonomia negada, isso significa que a forma federativa não vem obtendo o devido reconhecimento por parte do Judiciário. Portanto, sugere-se uma pesquisa complementar que tenha como objetivo saber se o Supremo Tribunal Federal reconhece a autonomia dos Estados federados brasileiros instituída na Constituição de 1988, como forma de se generalizar as constatações apresentadas sobre o Estado de Minas Gerais.

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REFERÊNCIAS ALMEIDA, F. D. M. Competências na Constituição de 1988. 2ª ed. São Paulo: Editora Jurídico Atlas, 2000. BARACHO, J. A. O. Teoria geral do federalismo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1986. FERRARI, R. M. M. N. F. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 5a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. HORTA, R. M. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. MAGALHÃES, J. L. Q. Pacto Federativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. POLETTI, R. Controle da Constitucionalidade das Leis. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. TRIGUEIRO, O. Direito Constitucional Estadual. Rio de Janeiro: Forense, 2000. Secretaria-Geral da Mesa Diretora da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Constituições do Estado de Minas Gerais (1891, 1935, 1945, 1947 e 1967 e suas alterações). Belo Horizonte, 1988.

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Prevalência de Verminoses Gastrintestinais em Crianças do Município de Catuji - MG

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Prevalência de Verminoses Gastrintestinais em Crianças do Município de Catuji - MG* Zenon Rodríguez-Batista** Bráulio R.G. M. Couto***

Resumo: Nas áreas rural e urbana do município de Catuji, Minas Gerais, foram coletadas 327 amostras de fezes de crianças em idade escolar, com realização posterior de exames parasitológicos, utilizando-se as seguintes técnicas: exame direto, HPJ, Kato-Katz e Baermann. A prevalência de verminoses foi de 33% na zona rural e 32% na zona urbana. As verminoses diagnosticadas como positivas na zona rural foram: Ascaris lumbricoides (77%), Ancilostomídeos (11%), Schistosoma mansoni (7%) e Trichuris trichiura (5%). Na zona urbana, as amostras positivas indicaram: A. lumbricoides (80%), S. mansoni (14%) e T. trichiura (6%). Esses resultados coincidem com aqueles obtidos em pesquisas realizadas em comunidades urbanas e/ou rurais ou comunidades faveladas, indicando que a relação entre saneamento e saúde pública influencia drasticamente as altas prevalências parasitárias. Palavras-chave: Helmintoses intestinais. Geo-helmintose. Epidemiologia Abstract: A survey including 327 fecal specimens from schoolchildren in rural and urban areas was collected in Catují, Minas Gerais, Brazil. Samples were examined using formalin-ether sedimentation technique, HPJ, Kato-Katz and Baerman methods. The overall prevalence of intestinal parasites was 33% in rural area and 32% in the City. The intestinal helminthes observed at rural area: Ascaris lumbricoides 77%), Ancilostomídeos (11%), Schistosoma mansoni (7%) e Trichuris trichiura (5%). In the urban area: A. lumbricoides (80%), S.mansoni (14%) e T. trichiura (6%). These results are similar with others obtained from studies implemented in rural or urban communities or poor ghettos, indicating that the public health status affects the prevalence of parasitic helminths. Keywords: Helmintoses Epidemiologia

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intestinais.

Geo-helmintose.

* Pesquisa realizada com apoio do Centro de Extensão e Pesquisa-CEPE da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte.

** Doutor em ciência: Parasitologia-Professor da Faculdade Estácio de Sá de BH.

*** Mestre em ciência da Computação-Professor da Faculdade Estácio de Sá de BH.

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Os parasitas intestinais apresentam uma distribuição mundial com altos níveis de prevalência em regiões com precárias condições socioeconômicas e higiênicas (WHO, 2005). Estima-se que as infecções causadas por protozoários e helmintos intestinais afetam mais de 3,5 bilhões de pessoas no mundo e causam doença em mais de 450 milhões de pessoas, a maioria crianças (SCHUSTER & CHIODINI, 2001). Novas estimativas indicam que 230 milhões de crianças infectadas estão com idade entre 0 e 4 anos (WHO, 2004). Na América Latina, em países como o México, QUIHUI-COSTA et al. (2004) observaram prevalência de helmintos intestinais de 33% em Sinaloa e de 53% em Oaxaca, estados separados por 1741 km e localizados no nordeste e sudeste mexicanos, com diferenças socioeconômicas, culturais e ecológicas. Na América Central, na Republica do Panamá, em um estudo realizado na província de Coclé com crianças do ensino fundamental, ROBERTSON et al. (1989) detectaram uma prevalência de 12% para ancilostomídeos, de 18% para A. lumbricoides e de 27% para T. trichiura. Na América do Sul, na Venezuela, RIVERO-RODRÍGUEZ et al. (2000) verificaram as prevalências de enteroparasitas no município de Maracaibo, sendo que os valores para T. trichiura foram de 41% e para A. lumbricoides de 35%. No Brasil, as verminoses gastrintestinais constituem um importante problema de saúde pública devido, principalmente, aos baixos níveis educacionais ou às baixas condições socioeconômicas da população, refletindo-se essa situação na falta de educação sanitária do cidadão e de saneamento básico nas comunidades (NEVES, 2003). Na região norte do país, no Estado do Amazonas, COURA et al. (1994)

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citaram 51% de parasitismo pelo A. lumbricoides nos moradores da localidade de Barcelos, na área de Rio Negro. Posteriormente, MIRANDA et al.(1998), pesquisando comunidades indígenas, como no caso de Parakana, no Estado do Pará, observaram que o Ascaris lumbricoides infectou 42% dos examinados; os ancilostomídeos, 33% e Strongyloides stercoralis , 5,6% dos mesmos. Entretanto, em se tratando da região nordeste, no Estado do Piauí, ALVES et al. (2003) encontraram, no município de São Raimundo Nonato, na região do Parque Nacional Serra da Capivara, padrões diferentes dos encontrados em outras regiões próximas, com nenhuma das amostras de fezes processadas positivas para A. lumbricoides e T. trichiura. Contrariamente, na mesma região do país, na comunidade de Jequié, no estado da Bahia, BRITO et al. (2003) observaram altas prevalências de helmintos intestinais tais como T. trichiura, 74%, A. lumbricoides, 63% e ancilostomídeos, 15%. No Estado de Minas Gerais, na mesorregião Sul/Sudeste, no município de Alterosa, MACHADO et al. (1998) apontam que 23% da população se apresentavam parasitadas com A. lumbricoides num estudo realizado no subdistrito de Covacos. Na mesorregião Oeste, no município de Bambuí, ROCHA et al. (2000) observaram baixo grau de parasitismo em crianças do ensino fundamental, como, por exemplo, 4,8% para o A. lumbricoides e 1,4% para os ancilostomídeos. Na mesorregião do Triângulo Mineiro, MACHADO e COSTA-CRUZ (1998), na cidade de Uberlândia, pesquisando em creches, citam o caráter hiperendêmico de S. stercolaris, além de infecções de 15% para o A. lumbricoides, 6% para ancilostomídeos e 4% para Enterobius vermicularis. Na

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Zona da Mata, nos municípios de Caparaó e Alto Caparaó, estudos sobre a A. lumbricoides em 1171 crianças indicaram uma prevalência de 12% (CARNEIRO et al. 2002). Esse contexto indica a necessidade de se fazer mais estudos, para que ações resolutivas sejam levadas a cabo e a situação de saúde das crianças mineiras tenha melhor prognóstico. Assim, o objetivo do presente trabalho foi o de identificar os principais helmintos gastrintestinais em alunos de 1ª a 4ª séries do município de Catuji, MG. 2. MATERIAL E MÉTODOS O município de Catuji está localizado a 17° 30’ de latitude sul e 41° 30’ de longitude ao meridiano de Greenwich, nas divisas dos Vales de Mucuri e Jequitinhonha. Entre 17 e 20 de junho de 2004, foram coletadas 327 amostras de fezes de crianças de 1a a 4a séries do ensino fundamental, das redes municipal e estadual de ensino do município de Catuji. Dessas, 223 amostras foram da zona rural e 104, da zona urbana. A prevalência foi calculada como o número de crianças positivas para qualquer verminose gastrintestinal, dividido pelo total de indivíduos testados. Já a intensidade da infecção foi obtida pela média aritmética do número de ovos por grama de fezes das crianças (total de ovos por grama de fezes das crianças positivas para cada verminose, dividido pelo total de indivíduos testados - ABRAMSON e ABRAMSON, 1999; GOULART, 2000). Foram realizados exames parasitológicos de fezes das amostras, utilizando os seguintes métodos: direto, HPJ, Kato-Katz e Baermann (DE CARLI, 2001). As crianças positivas foram classificadas em três categorias, conforme a intensidade da infecção: leve, moderada e grave. A

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comunidade também foi classificada em uma das três categorias definidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS): tipo I, com alta prevalência e alta intensidade de verminose (mais de 10% das crianças com nível grave de infecção); tipo II, alta prevalência e baixa intensidade de infecção (prevalência de 50% ou mais de verminose) e tipo III, baixa prevalência e baixa intensidade (prevalência abaixo de 50% e menos de 10% das crianças com nível grave de infecção MONTRESOR et al. - WHO/CTD/SIP, 1998). 3. RESULTADOS De um total de 327 amostras de fezes coletadas e processadas pelas diferentes técnicas coproparasitoscópicas, 223 (68%) foram coletadas na zona rural e 104 (32%) na zona urbana. A prevalência de parasitose conforme a zona foi de 33% para a rural e de 32% para a urbana (fig. 1). A tabela 1 mostra os principais parasitas diagnosticados no município, sendo que os ancilostomídeos só foram registrados na zona rural e o A. lumbricoides foi o parasita de maior prevalência em ambas as regiões. Dos 32% de crianças que resultaram positivas na pesquisa, 46% tinham nível leve e moderado de infecção e 8% nível grave (fig. 2). A prevalência e a carga parasitária de verminoses gastrintestinais observadas nas crianças do município de Catuji permitiram classificar a comunidade na categoria de risco III da OMS (baixa prevalência e baixa intensidade de infecção). Nessa situação, somente os casos positivos devem ser encaminhados para tratamento (WHO/CTD/SIP, 1998). No que se refere à intensidade de infecção, a zona rural apresentou uma média de 4.250 ovos por crianças e não houve diferença (valor-p=0,26) entre esta zona e a urbana (fig. 3). Com relação ao sexo, os meninos apresentaram uma maior prevalência, com 37%,

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enquanto nas meninas foi observada uma prevalência de 28%. A análise estatística sugere uma diferença na prevalência de parasitose entre meninos e meninas (valor-p = 0,08; fig. 4 e 5). 4. DISCUSSÃO A Organização Mundial da Saúde no seu relatório da terceira reunião global para o controle de parasitas (WHO, 2005) continua caracterizando no mundo, como áreas de maior prevalência de helmintos intestinais, aquelas onde a pobreza é o denominador comum, reafirmando ainda que as altas prevalências nestas regiões são as marcas do subdesenvolvimento nos paises identificados como tropicais ou subtropicais. Na América latina, ainda hoje, já no século XXI, essa situação é mantida nas regiões pobres ou de extrema pobreza, seja na área urbana ou rural. No México, por exemplo, pesquisas apontam para a desnutrição, resultante primária da pobreza, como principal fator de risco associado às altas prevalências de helmintos intestinais. Quando comparados dois estados como Sinaloa e Oxaca, com perfis ecológicos e socioeconômicos diferentes e distantes a mais de 1500 Km, as altas cargas parasitárias manifestam-se nas áreas de pobreza. Na República do Panamá foram registradas prevalências de 18.2% para A. lumbricoides, 12.0% para ancilostomídeos e de 27.5% para T. trihiura com uma intensidade de infecção para A. lumbricoide de 20-126.180 OPG. Estes resultados foram obtidos em áreas predominantemente indígenas de extrema pobreza com marcante desnutrição, analfabetismo e baixa renda per capita. Esses resultados de QUIHUICOSTA et al. (2004); de RIVERO-RODRÍGUEZ et al. (2000) e de ROBERTSON et al. (1989) reafirmam a seguinte hipótese: quanto maior for o grau de pobreza, também será maior o grau de parasitismo em condições tropicais ou subtropicais.

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A estratégia da OMS (WHO, 2004) de implementar concomitantemente nos diferentes países o programa de prescrição de fármacos anti-helmínticos e o programa de distribuição de vitamina A para crianças pré-escolares, residentes em áreas com altas prevalências, se tornaria um paliativo, independentemente de a vitamina A ser uma droga utilizada na prevenção da cegueira ou como revigorante do sistema imunológico ou que ainda sua prescrição regular possa reduzir a mortalidade infantil em até 34%. Acreditamos, sim, na luta para se conseguir, no menor tempo possível, as oito metas de desenvolvimento do milênio propostas pela OMS, e que, no Brasil, os programas sociais de governo, tais como Programa Saúde da Família, Fome Zero e Bolsaescola, possibilitarão atingir tais objetivos. Nas diferentes regiões do estado de Minas Gerais assim como nas diferentes regiões do país, as causas que definem as maiores prevalências das principais geo-helmintoses são as mesmas discutidas anteriormente, ou seja, a pobreza com suas diferentes sintomatologias tais como: no homem, desnutrição, anemia, avitaminoses, - no meio ambiente, falta de educação sanitária, falta de saneamento básico, água tratada, sistema de esgoto; no agente - helmintos com alta capacidade biótica, alta patogenicidade e alta resistência às condições adversas do clima. Dessa forma, a persistência de alguns ou do conjunto de fatores fazem com que as regiões brasileiras do Norte, Nordeste e as regiões mineiras do norte do estado sejam as que apresentam maiores prevalências (COURA et al. 1994; MIRANDA et al. 1998; ALVES et al. 2003; BRITO et al.). O município de Catuji faz divisa com os vales do Jequitinhonha e do Mucuri, região localizada ao norte do estado de Minas Gerais. Essa região dos vales é caracterizada por uma área de pobreza endêmica. Catuji possui uma população total de 7.332 habitantes,

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uma taxa de analfabetismo de 35.4%, um PIB per capita de R$1.362, além de ser classificado como um município de baixa renda estagnada (MINSA, 2004). Esta região reúne, portanto, os elementos que determinam as condições favoráveis de altas prevalências de geo-helmintos como verificado nesta pesquisa e em pesquisas semelhantes executadas em outras regiões do estado (MACHADO & COSTACRUZ 1998; e CARNEIRO et al. 2002). REFERÊNCIA

Endereço para correspondência: Laboratório de Parasitologia, FESBH. Av. Francisco Sales, 23 – Bairro Floresta – Belo Horizonte/MG – CEP 30.150220. Tel.: (31) 3279-7700. Endereço eletrônico: [email protected]

*

ABRAMSON, JH; ABRAMSON, ZH. Survey Methods in Community Medicine. 5th ed. Jerusalén: Churchill Livingstone, 1999. ALVES, J.R.; MACEDO, H.L.; RAMOS, A.N.; FERREIRA, L.F.; GONÇALVES, M.L.C.; ARAUJO, A. , Intestinal parasite infections in a semiarid area of Northeast Brazil: preliminary findings differ from expected prevalence rates. Cad Saúde Pública, v. 19, n. 2, p. 667-670, mar. 2003. BRITO L,L.; BARRETO, M.L.; SILVA, R.C.; ASSIS, A.M.; REIS, M.G.; PARRAGA, I.; BLANTON, R.E. Risk factors for iron-deficiency anemia in children and adolescents with intestinal helminthic infections. Rev Panam Salud Publica, n. 14, n.6, p.422-431, Dec. 2003. CARNEIRO, F.F.; CIFUENTE, E. TELLEZ-ROJO, M.M.; ROMIEU,I. The risk of Ascaris lumbricoides infection in children as an environmental health indicator to guide preventive activities in Caparão and Alto Caparão. Bull World Health Organ, n. 80, n. 1, p. 40-46. 2002. COURA, J.R.; WILLCOX, H.P.; TAVARES, A.M.; PAIVA, D.D.; FERNANDES, O.; RADA, E.L.; PEREZ, E.P.; BORGES, L.C.; HIDALGO, M.E.; NOGUEIRA, M.L. Epidemiological, social, and sanitary aspects in an area of the Rio Negro, State of Amazonas, with special reference to intestinal parasites and Chagas’ disease. Cad Saúde Pública. V. 10, sup. 2, p. 327-336, mar. 994. DE CARLI, GA. Parasitologia Clínica. São Paulo: Editora Atheneu, 2001. FRANÇA, JL; VASCONCELLOS, AC; MAGALHÃES, MHA; BORGES, SM. Manual para normalização. 5 ed. Belo Horizonte, UFMG, 2001. GOULART, EMA. Metodologia e Informática na Pesquisa Médica. Belo Horizonte, Independente, 2000. QUIHUI-COSTA, L; VALENCIA, M.E.; CROMPTON, D.W.T.; PHILLIPS, S.; HAGAN, P.; DIAZ-CARVALHO, S.P.; TRIANA, T.A. Prevalence and intensity of intestinal parasitic infections in relation to nutritional status in Mexican school children. Trans R Soc Trop Med Hyg, V, 98, p., 653-659, 2004.

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Figura 1. Prevalência de parasitoses conforme a região do município de Catuji:

Tabela 1. Principais parasitoses diagnosticadas na zona rural e urbana no município de Catuji:

Figura 2. Do total de 106 crianças positivas, 49 tinham nível leve de infecção (15%), 49 tinham nível moderado (15%) e 8 tinham nível grave de infecção (2%):

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Figura 3. Não houve diferença na intensidade de infecção entre a zona rural (média de 4.250 ovos por criança, desvio padrão – DP = 11.627) e a zona urbana (média de 3.497 ovos por criança, DP = 13.886; valorp=0,26):

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Figura 4. Os meninos apresentaram prevalência de parasitoses maior que as meninas (valor-p = 0,08):

Figura 5. Não houve diferença significativa na prevalência de parasitose conforme a faixa etária das crianças (valor-p = 0,34).

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Diagnóstico da Oferta de Serviços de Lazer nos Hotéis da Região Central de Belo Horizonte - MG

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Diagnóstico da Oferta de Serviços de Lazer nos Hotéis da Região Central de Belo Horizonte - MG Hilton Fabiano Boaventura Serejo1 Daniel Braga Hübner2 José Otávio Aguiar3

Resumo: Este documento apresenta os resultados da pesquisa intitulada "DIAGNÓSTICO DA OFERTA DE SERVIÇOS DE LAZER NOS HOTÉIS DA REGIÃO CENTRAL DE BELO HORIZONTE, MG". Foi financiada pela Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, por meio de seu Centro de Pesquisa e Extensão - CEPE. Envolveu três professores dos cursos de Administração Hoteleira e Turismo, e contou com o apoio dos alunos do 8º período do curso de Administração Hoteleira, turma do primeiro semestre de 2005, durante a etapa de coleta de dados. O relatório busca analisar e compreender como é desenvolvida a oferta de vivências de lazer nos hotéis da região central de Belo Horizonte, uma cidade que muitos acreditam ser vocacionada ao turismo de negócios e eventos, em especial os dirigentes públicos. Teve como objetivos específicos: identificar quais conteúdos culturais do lazer são desenvolvidos por esses hotéis de Belo Horizonte (interesses: manuais, físico-esportivos, artísticos, turísticos, sociais, intelectuais), recuperar a trajetória histórica e cotidiana das relações sociais de lazer nos hotéis pesquisados e buscar a verificação da demanda pelos serviços de lazer nos hotéis da região central da cidade: seu público, equipamentos e opções oferecidas. Percebemos que o lazer é um fenômeno pouco compreendido, divulgado, e, até mesmo, valorizado por vários gestores dos hotéis pesquisados. Isso ocorreu devido à influência pragmática, regida por uma razão instrumental, que predomina em nossa sociedade. Palavras-chave: lazer, serviços, hotéis de Belo Horizonte Abstract: This document reports all steps to a research named "DIAGNÓSTICO DA OFERTA DE SERVIÇOS DE LAZER NOS HOTÉIS DA REGIÃO CENTRAL DE BELO HORIZONTE, MG" (Diagnosis of leisure service offering in hotels of Belo Horizonte downtown area, MG). It was financed by Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte (Estácio de Sá College of Belo Horizonte) through its Centro de Pesquisa e Extensão -

1 Mestre em Educação pela PUC-Minas e Especialista em Lazer pela UFMG; Coordenador do Laboratório de Estudos do Lazer e da Recreação do Curso de Turismo da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte Brinquedoteca.

2 Mestrando em Turismo e Meio Ambiente pela UNA e Especialista em Lazer pela UFMG.

Doutor em História pela UFMG.

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CEPE (Research and Extension Center) It involved three professors of Hostelry Management and Tourism courses, and it was supported by students from the 8th level of Hostelry Management course, class from the first semester of 2005, during data collecting. Such a report seeks to analyse and understand how leisure experiences offering in hotels of Belo Horizonte downtown area is developed, since the city is believed to be business and events tourism-bound, mainly the government. Specific goals: identifying leisure cultural contents developed by these hotels in Belo Horizonte (manual labour, physical-sporting, artistic, touristic, social and intellectual activities), tracing back the historical and everyday path of leisure social relations in hotels focused and verifying the call for leisure services in downtown hotels: their clients, equipment and options offered. It is noticed that leisure is misunderstood, badly publicized and valued by the hotel managers researched. That occurred due to pragmatic influence, ruled by an instrumental ratio that prevails in our society. Keywords: leisure, services, hotels of Belo Horizonte

Coordenado, inicialmente, pelo Prof. Daniel Hübner, do curso de Administração Hoteleira, a pesquisa contou com a participação dos professores Hilton Serejo e José Otávio Aguiar, do curso de Turismo, e o apoio de um grupo de estudos sobre a "História do Lazer e da Hospedagem" que se reunia em encontros programados na Brinquedoteca. Esse grupo teve a participação de alunos dos cursos de Administração Hoteleira e Turismo. No desenvolver dos trabalhos, o professor Hilton Serejo assumiu a coordenação da pesquisa.

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A pesquisa “Diagnóstico da oferta de serviços de Lazer nos Hotéis da região central de Belo Horizonte – MG” foi fruto do interesse e vontade de três professores da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte – FESBH, que apoiou e financiou o desenvolvimento das atividades de pesquisa que compõem esse projeto acadêmico. Em conversas preliminares na FESBH, os professores Daniel Braga Hübner, Hilton Fabiano Boaventura Serejo e José Otávio Aguiar argumentavam sobre a necessidade de pesquisar essa temática, buscando identificar e compreender melhor as características dos serviços de Lazer nos Hotéis da região central de Belo Horizonte. Decidiram então elaborar um projeto de pesquisa e submetê-lo à aprovação da instituição4. A pesquisa teve como objetivo geral diagnosticar quais são os principais serviços oferecidos na área do Lazer pelos hotéis da região central de Belo Horizonte. E como objetivos específicos: pesquisar junto aos hotéis

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citados quais os serviços oferecidos na área do lazer e identificar quais os conteúdos culturais do lazer são desenvolvidos por esses hotéis de Belo Horizonte (interesses: manuais, físico-esportivos, artísticos, turísticos, sociais, intelectuais)5. No relatório entregue ao CEPE, recuperamos a trajetória histórica e cotidiana das relações sociais de lazer nos hotéis pesquisados. O projeto justificou-se pela necessidade de diagnosticar como na sociedade contemporânea, em uma capital brasileira importante como Belo Horizonte, a temática do lazer foi e é desenvolvida nos hotéis pesquisados, uma cidade administrativa e sabidamente com uma demanda hoteleira que tem ênfase no turismo de negócios. Dessa forma, a pesquisa procura apresentar a relevância do lazer nesses empreendimentos, bem como fornecer subsídios para outros projetos, pesquisas e ações nas áreas do lazer, do turismo e da administração hoteleira, podendo, inclusive, abrir portas para a realização de estágios de alunos da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte e projetos de extensão envolvendo a Faculdade e os Hotéis pesquisados. Esse trabalho teve caráter multi e interdisciplinar, pois envolveu dois cursos de graduação (Administração Hoteleira e Turismo) que se interessam diretamente pela pesquisa, contemplando diversas disciplinas dessas áreas.

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5 Segundo Marcellino (1996) essa é a classificação mais aceita pelos estudiosos da área.

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ASPECTOS METODOLÓGICOS DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

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A pesquisa se desenvolveu a partir da aplicação de questionários, por meio de visitas agendadas com os meios de hospedagem da Região Central de Belo Horizonte. Ao todo, foram listados 69 meios entre hotéis e apart-hotéis. Definiu-se como região central de Belo Horizonte aquela interna ao perímetro da Avenida do Contorno, delimitando o espaço geográfico pesquisado. Desse total, 60 meios de hospedagem (mh’s) foram relacionados para o desenvolvimento da pesquisa, através de critérios de classificação como: categoria, estar em funcionamento (dos 69 meios de hospedagens iniciais, alguns estavam interditados). Dos 60 mh´s escolhidos, um teve suas atividades encerradas durante o período de realização da pesquisa, o Merit, que era um tradicional hotel próximo à Praça Sete e outro se recusou a responder a entrevista. Dessa forma, 58 mh’s participaram efetivamente da pesquisa. A coleta de dados foi realizada pelos alunos da disciplina de Recreação e Animação Turística do 8º período do curso de Administração Hoteleira, durante o primeiro semestre de 2005. A turma foi dividida em 5 grupos. Cada grupo ficou responsável por 12 hotéis, sorteados aleatoriamente durante as aulas. As informações dos hotéis pesquisados foram coletadas através de questionários semi-estruturados e entrevistas com os responsáveis pelo desenvolvimento de serviços de lazer nos hotéis da Região Central de Belo Horizonte. Paralelamente à coleta de dados, foi desenvolvido um grupo de estudos sobre lazer, recreação, hotelaria e

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turismo na Brinquedoteca, que é um laboratório do Curso de Turismo da FESBH. As discussões e reuniões desenvolvidas pelo grupo de estudos, composto pelos professores envolvidos na pesquisa e alunos dos cursos de Administração Hoteleira e Turismo, ajudaram a fundamentar as ações de pesquisa bibliográfica, compondo a sustentação teórica do projeto. A tabulação dos dados foi realizada por estagiários do curso de Turismo da FESBH. A análise dos dados foi desenvolvida pelos professores, e o relatório final com os dados da pesquisa e seus resultados, apresentados à comunidade científica. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A HOTELARIA: APONTAMENTOS HISTÓRICOS Segundo Marc Bloch6, eminente historiador da primeira metade do século XX, a história pode ser compreendida como um “estudo dos homens no tempo”. Essa definição amplia, consideravelmente, o âmbito dos vestígios e informações que podem integrar o que definimos sob a pecha de documento histórico. Isso também se aplica a uma ampliação do escopo de objetos a serem pesquisados. Assim, os hábitos de hospedagem e hospitalidade guardam uma história particularizada no âmbito dos estudos históricos e antropológicos, dentre outras razões por se situarem no centro das relações de troca e partilha que entremeiam os contatos entre alteridades. O hábito de abrigar viajantes no trajeto desértico, já milenar entre os povos do Saara; a particular tradição de hospitalidade entre os esquimós; o quarto contíguo às casas coloniais da América BLOCH, March. Métier d'Historiem. Paris: Gallinard, 1923.

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Portuguesa, que tinha a função de receber viajantes para o pernoite – citado por cronistas como Auguste de Saint-Hilaire7 - esses são alguns exemplos de hospitalidade que poderíamos elencar. Nosso estudo buscou apresentar o cotidiano da construção de uma tradição hoteleira em Belo Horizonte e se situou dentro da linha de interesse por recuperar memórias e estabelecer genealogias e arqueologias dentro de práticas de homens no tempo. Dentro desses estudos, optamos por diagnosticar os principais serviços de lazer oferecidos pelos hotéis da região central de Belo Horizonte. Retomando as questões históricas, já citadas nesse trabalho, os hotéis e estalagens remontam às civilizações antigas, e já podiam ser observados na Roma clássica de uma forma muito semelhante àquela que concebemos hoje. Entretanto, não deve ser insensível à nossa percepção que o significado atribuído ao conceito de hospedagem variou significativamente com o advento da cultura burguesa e individualista. A idéia do quarto de hotel que podia ser reservado por um indivíduo que desejava privacidade e podia pagar para tanto se generalizou, em alguns países da Europa Central, somente a partir do século XVII. Os séculos XIX e XX disseminaram e consolidaram tal cultura de hospedagem, hoje já naturalizada como hábito internacional nas modernas relações que se inserem no amplo conceito de turismo. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às Províncias do Rio de janeiro e de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989. 7

Daí a utilidade da pesquisa realizada, cujos dados e análises apresentamos a seguir.

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DISCUSSÕES SOBRE OS DADOS COLETADOS Conforme repetidamente observado por Cornélius Castoriadis (1989)8, a forma pela qual nos acostumamos a perceber a realidade no mundo ocidental é conjuntista e identitária. Assim, estabelecemos um conjunto de organismos unicelulares que devem, por sua vez, se diferenciar dos pluricelulares; um conjunto de regimes totalitários que devem contrastar com seus congêneres autoritários; um conjunto de homens selvagens frente aos quais pretendemos definir, por contraste, nossa identidade civilizada. Ao estudarmos as práticas de hotelaria e hospedagem no passado, buscamos estabelecer a particularidade da forma pela qual essas práticas se delineiam no presente. Dessa forma, procuramos identificar o tempo de atuação dos hotéis pesquisados, pois recuperar a história do surgimento desses meios de hospedagem em Belo Horizonte nos ajudará a entender a forma pela qual hoje avaliamos a prática hoteleira na capital mineira. Assim, a primeira questão que procuramos compreender foi o tempo de existência dos hotéis em Belo Horizonte. Cremos que a TAB. 1 deixa claro a resposta a esse ponto. TABELA 1 Tempo de existência do Hotel.

8 CASTORIADIS, Cornélius. A criação e o social histórico. In: CASTORIADIS, Cornélius. As encruzilhadas do labirinto: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

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Percebe-se que a maioria dos hotéis pesquisados (60%) estão estabelecidos em Belo Horizonte há mais de 10 anos. Pode-se compreender que isso ocorre principalmente pelo fato de o centro de Belo Horizonte estar consolidado como uma área favorável à hotelaria com ênfase no turismo de negócios. Hoje se observa a inauguração de novos empreendimentos hoteleiros em outras regiões de Belo Horizonte, assim como em seus municípios limítrofes. Como exemplo podemos citar o caso de Contagem, Betim e Nova Lima, que inauguraram vários novos meios de hospedagem. Por exemplo, a rede Accor Hotels lançou o IBIS Betim, Parthenon Vila da Serra, na região de Nova Lima. Em Contagem também estão sendo inaugurados outros meios de hospedagem, como a unidade de hospedagem do SESC-MG.

A classificação em estrelas é realizada pela Embratur. Outras classificações de meios de hospedagem também existem e são bem aceitas, como a da ABIH, que utiliza asteriscos e o Guia 4 Rodas, que utiliza desenhos de casas. Algumas redes também possuem suas próprias classificações, com nomes específicos para cada categoria de hotel. Por fim, existem os certificados de qualidade e padronização de serviços, como a ISO 9000.

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O principal meio de hospedagem de Belo Horizonte da atualidade, o Ouro Minas Palace Hotel, o único hotel da cidade classificado como cinco estrelas9, não foi pesquisado porque esta pesquisa se restringiu à região central do município de BH, delimitada pela Avenida do Contorno. Além deste hotel, outros empreendimentos de destacada atuação na cidade também não foram pesquisados por se encontrarem fora do escopo da pesquisa. Procuramos perceber, também, se houve mudança de proprietários com relação aos estabelecimentos pesquisados. A TAB. 2 nos ajudará a compreender essa questão.

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TABELA 2

A administração de um hotel guarda, necessariamente, a marca da formação e da compreensão de mundo de quem administra o empreendimento. Percebê-lo e identificá-lo justifica nosso esforço no sentido de recuperar a trajetória individual desses estabelecimentos de hospedagem. Dessa forma, uma mudança de proprietário pode refletir redirecionamentos na política administrativa do hotel. Nos dados coletados ficou evidente que a maioria dos empreendimentos não teve mudança societária. Desse modo, pode-se perceber que a região central de Belo Horizonte é consolidada quanto aos empreendimentos hoteleiros, pois a maioria dessas empresas está estabelecida há mais de 10 anos e sem mudança societária. Com isso, inferimos que a região central de Belo Horizonte é propícia a esse ramo de negócios. Contudo, não há razões que justifiquem o investimento em novos hotéis nessa área, pois a concorrência é muito grande e há casos de empreendimentos hoteleiros que encerraram suas atividades por previsão de prejuízo, como o Hotel Merit10. Além disso, há uma tendência na descentralização da prestação de serviços nas regiões com maior aglomeração de pessoas.

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O Hotel Merit encerrou suas operações em 31/dez/2004. Localizado próximo à Praça Sete, a principal referência do centro de Belo Horizonte, foi um empreendimento estável por muitos anos, e decidiu encerrar suas atividades antes de ter problemas financeiros. Previu dificuldades devido ao número de hotéis concorrentes e outros fatores, como localização e necessidade de novos investimentos. Avisou ao mercado, seus fornecedores, clientes e parceiros, diferentemente de outras empresas de turismo, como a Soletur Operadora, que faliu e trouxe muitos problemas a outras empresas e clientes, que ficaram com o prejuízo de sua má gestão. 10

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Outro aspecto pesquisado se relacionou de forma mais direta ao campo do lazer. Tentamos identificar quais os equipamentos de lazer são predominantes nos hotéis da região central de Belo Horizonte. TABELA 3

Equipamentos e/ou espaços específicos para o Lazer encontrados e/ou oferecidos nos Hotéis. Segundo Marcellino (1996), podemos dizer que há os equipamentos específicos e não específicos para o lazer. Os equipamentos não específicos se referem a espaços não construídos para essa função, como exemplo podemos citar as ruas, as escolas etc. Já os equipamentos específicos são concebidos para a prática de várias atividades e procuram atender a um ou mais dos conteúdos culturais do lazer.

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Nos hotéis pesquisados, optamos por compreender se havia espaços e equipamentos específicos destinados ao lazer e com qual dos conteúdos culturais haveria uma aproximação maior. Percebemos que a maioria dos hotéis oferece equipamentos na área do lazer que se relacionam com os chamados conteúdos físicoesportivos. Essa afirmação pode ser validada ao verificarmos a oferta de piscinas e salas de ginástica como um dos principais equipamentos de lazer oferecidos. Concluímos, também, que outro conteúdo cultural da área do lazer oferecido de forma muito constante é o social. Consideramos isso ao analisarmos que o número de bares presentes nos hotéis é grande e esse espaço favorece o relacionamento e os contatos face a face, características primordiais nos conteúdos sociais da área do lazer. Em contraponto, entendemos que os conteúdos intelectuais são pouco difundidos nos estabelecimentos pesquisados. Apenas um hotel possui biblioteca e sete hotéis possuem salas de leitura, o que consideramos ser pouquíssimo dentro do universo pesquisado. Acreditamos que, por aqui, a leitura de jornais e revistas é maior que a de obras literárias como romances, contos, poesias, entre outros. Isso pode facilmente ser comprovado pelas estatísticas do nosso mercado editorial, pela oferta de bibliotecas públicas e até mesmo privadas nas cidades brasileiras e outros indicadores, muitos dos quais fornecidos pelo IBGE. A população alfabetizada no Brasil não é total, o que também dificulta uma promoção ao hábito de leitura, conforme dados obtidos no IBGE (2001).

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Um hábito comum entre os ingleses que estão em viagem, a leitura, não tem a mesma adesão entre os viajantes brasileiros. É característica marcante daquele povo a leitura a bordo, seja em trens, ônibus ou aviões, bem como nas salas de leitura e bibliotecas dos hotéis. Aqui no Brasil, raros são os empreendimentos que possuem esse serviço e estrutura11. Essa falta de diversidade no campo do lazer, por parte dos hotéis da região central de Belo Horizonte,

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também pode ser compreendida quando se verifica que somente três hotéis utilizam parcerias para suprir a falta de espaços e vivências para o lazer. Será que esse pouco interesse em propiciar equipamentos e espaços para o lazer influenciaria na contratação de um profissional especializado para atuar nessa área? A próxima tabela nos ajudará a responder essa questão: TABELA 4

Ao analisarmos a TAB. 4, em que 88% dos hotéis pesquisados demonstraram não possuir um profissional especializado para atuar nessa área, tornase evidente a ausência de preocupação com a área do lazer e com o profissional que atua nesse campo. Percebemos, inclusive, uma visão estereotipada em relação à atuação e formação dos profissionais do lazer por parte da gerência desses empreendimentos, uma vez que, muitas vezes, eles são vistos apenas como reprodutores de atividades. Essa visão também é comum e disseminada entre os estudantes da área, pois, em vários cursos de graduação em Turismo e Administração Hoteleira, é comum a associação do lazer com a recreação. Muitas disciplinas, que têm a recreação como um componente de seu programa, ainda a restringem ao seu aspecto operacional, à mera reprodução técnica de jogos e brincadeiras sem uma sistematização teórico-prática de conhecimentos.

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Atualmente, percebe-se que uma parcela significativa da população vem-se adequando de forma acrítica ao contexto em que vive, no qual tudo é comercializável e pode se tornar um produto, inclusive o lazer. Em um mundo caracterizado pelo desemprego, pela má distribuição da riqueza e do conhecimento, o lazer pode ser apenas uma simples diversão ou entretenimento, servindo como fuga dos problemas e como forma de compensar a alienação em outras esferas da vida, mantendo viva a velha fórmula do “pão e circo”. Werneck (2000) argumenta que o lazer está ganhando importância em nossa sociedade, principalmente por estar sendo considerado um fecundo e promissor mercado, gerando lucros significativos para aqueles que detêm o poder e as regras desse jogo. O Turismo e a Hotelaria representam, atualmente, ramos que se destacam na chamada indústria do lazer. Dessa forma, fica evidente que o lazer e o turismo estão atrelados a uma vertente economicista e aos valores neoliberais de sociedade. Mesmo atrelado a uma vertente mercantilista, concluímos que o fenômeno lazer não tem despertado o interesse da administração na maioria dos hotéis pesquisados, principalmente, por ser considerado como um aspecto de menor valor, já que a maioria dos hóspedes diz estar a trabalho, o chamado turismo de negócios. Isso se torna claro ao visualizarmos a TAB. 5, que complementa as análises da TAB. 4.

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TABELA 5

Observa-se que os empreendimentos hoteleiros não se preocupam com o lazer dos seus hóspedes e investem pouco em opções de lazer que favoreçam o bem-estar de seus clientes. Ao analisarmos os dados presentes na TAB. 6, percebemos que o baixo número de eventos ou atividades relacionados ao campo do lazer são reflexos dessa pouca valorização da área por parte da gerência dos hotéis pesquisados. TABELA 6

A realização de eventos ou práticas de lazer e entretenimento para os hóspedes desses empreendimentos da região central de Belo Horizonte não é muito freqüente. Apenas 12 hotéis declararam

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desenvolver algum tipo de realização nessa área. Mesmo assim, um terço dos hotéis que oferecem essa opção aos seus clientes declararam as alternativas ‘brindes’ e ‘premiações’ como um evento, o que podemos entender como estratégias de marketing para promover o hotel, uma vez que esses brindes e premiações são produtos e serviços do próprio empreendimento, como diárias, canetas, chaveiros, roupões e outros acessórios. O videokê, que já é um equipamento com muita rejeição entre hóspedes e clientes de empreendimentos diversos, como bares e restaurantes, foi citado por apenas um hotel. E o bingo, que faz muito sucesso entre o público da terceira idade, por dois hotéis. Esses números confirmam a pouca preocupação dos hotéis da região central da cidade de Belo Horizonte em entreter seus hóspedes e clientes. Seria muito interessante se pudéssemos ter com freqüência o oferecimento de shows e espetáculos artísticos, feiras de gastronomia, jogos de tabuleiros e jogos de azar (desde que permitidos pela legislação), nas dependências desses empreendimentos. Até mesmo a realização de bailes, noites dançantes e muitas outras idéias poderiam contribuir para o oferecimento de um maior número de opções de lazer e entretenimento dos hóspedes e dos moradores da cidade, promovendo uma interação entre os participantes, uma característica do turismo. Por que não desenvolver, nesses empreendimentos, alternativas de socialização entre os hóspedes como acontece nos hotéis de lazer, seja no campo ou no litoral? Por que não promover a realização de inúmeras atrações como jogos, brincadeiras, gincanas, campeonatos, oficinas e tantas outras opções?

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A demanda pode ser incrementada. Basta criatividade e inovação. É preciso desenvolver esses hábitos entre os hóspedes e os empreendedores. Perceber que o hóspede não é somente um cliente que busca conforto e satisfação. Antes disso, ele é um ser humano e pode encontrar bem-estar em muitas outras realizações durante o seu período de hospedagem se tiver acesso a opções diferentes, criativas e em conformidade com aquilo que o ser humano sempre busca: o prazer de viver. Contudo percebemos que a maioria das gerências dos hotéis pesquisados é regida pelos interesses do mercado e possuem uma ação muito pragmática e utilitarista. Pois, se não há demandas pela área do lazer ou pelo menos essa demanda é mínima, conforme fica evidente na TAB. 7, por que deveriam se preocupar em ofertar serviços nessa área? TABELA 7

As demandas por lazer, de acordo com os entrevistados, são baixas: apenas 19%. Embora tenha sido um número pequeno, acreditamos que essa demanda pode aumentar significativamente a partir do incremento de novas opções quando estas começarem a ser oferecidas. Muitas vezes uma demanda é gerada e incentivada pelo empreendimento, como na própria hotelaria a oferta do serviço de quarto (room-service), sendo um elemento diferencial em alguns hotéis e um simples serviço em outros.

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Uma demanda por um serviço ou produto não existe para um público que não está acostumado a usufruílos. Mas, a partir do momento em que é oferecida uma inovação, o público torna-se fiel e até mesmo dependente da nova opção oferecida. Isso ocorreu com muitos produtos e serviços no mercado de tecnologia, como os celulares, computadores, internet, câmeras digitais, etc. Nos dias atuais, muitos de nós não passamos um dia sequer sem utilizá-los. Não é mais desejo, e sim uma necessidade para cada um de nós. Investir em opções de lazer para os hóspedes pode ser uma excelente forma de cativar os clientes, aumentar, conseqüentemente, o tempo de estada no hotel e fidelizá-los. Com isso, teríamos mais emprego e renda para os habitantes de Belo Horizonte. Afinal, há muito espaço para a implantação de opções de lazer na região central de BH. CONSIDERAÇÕES FINAIS As ações das instituições de ensino e pesquisa que analisam as práticas sociais e mercadológicas têm ganhado mais espaço e reconhecimento devido aos eficientes resultados que são gerados a partir do seu desenvolvimento. Essa pesquisa não pretende encerrar as discussões acerca das práticas de lazer que são oferecidas nos hotéis da região central de Belo Horizonte, mas contribuir para o entendimento e o aprofundamento das questões que envolvem o lazer, os serviços prestados pela hotelaria e suas conseqüências e benefícios para hóspedes e também empreendimentos hoteleiros e turísticos, como parques, clubes,

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shoppings, navios de cruzeiro e outros, que têm como foco principal ou indireto o desenvolvimento de vivências de lazer. Trata-se de uma pesquisa inicial, e devido à sua estreita relação com uma instituição de ensino, pode propiciar um rico aprendizado aos seus alunos, oportunidade de desenvolvimento de trabalhos práticos e pesquisas na área do lazer, bem como a realização de estágios nessa área, devido à capacitação técnica específica e contatos feitos com diversos empreendimentos hoteleiros na região central de Belo Horizonte. A partir desse estudo inicial, que é um diagnóstico específico sobre os serviços de lazer oferecidos, podemos criar novas propostas junto aos empreendimentos envolvidos na pesquisa, viabilizar parcerias e convênios, ampliar a inserção dos alunos da Faculdade Estácio de Sá de BH nessa área tão fascinante e interessante, do ponto de vista não somente mercadológico, mas também social, profissional e pessoal. Trata-se de uma área reconhecida internacionalmente por seus benefícios gerados às pessoas, garantida constitucionalmente como um direito social no Brasil e de valorização permanente, devido às demandas que são colocadas à sociedade a cada dia. Por fim, acreditamos que este relatório é a base inicial para o desenvolvimento de novas pesquisas, estudos e propostas na área do lazer, não somente para a hotelaria e o turismo, mas também para a sociedade, a comunidade acadêmica e institucional, bem como para o indivíduo responsável e consciente dos benefícios do lazer para a humanidade.

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REFERÊNCIAS BLOCH, March. Métier d’Historiem. Paris: Gallinard, 1923. CASTORIADIS, Cornélius. As encruzilhadas do labirinto: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. IBGE. Censo Demográfico 1970/2000. 2001. Acesso em: 26 ago. 2005. MARCELLINO, Nelson Carvalho. Estudos do Lazer: uma introdução. Campinas, SP: autores associados, 1996. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às Províncias do Rio de janeiro e de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989. WERNECK, Christianne Luce Gomes. Lazer, trabalho e educação: relações históricas, questões contemporâneas. Belo Horizonte: Ed. UFMG; CELAR-DEF/UFMG, 2000.

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REGRAS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA CIÊNCIA&CONHECIMENTO Ciência & Conhecimento publicará trabalhos inéditos sob a forma de ensaios, artigos, resenhas de livros e entrevistas. Os artigos podem ser de origem diversa, tais como: trabalhos acadêmicos de alunos orientados por seus professores; resultado de pesquisas individuais dos professores da instituição para a obtenção do seu título de Mestre e/ou de Doutor; reflexões teóricas e/ou reflexões sobre experiências e pesquisas profissionais de professores em torno de temas relevantes para os cursos ofertados pela Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte; resultados de pesquisas científicas desenvolvidas com o apoio do Centro de Pesquisa e Extensão – CEPE; relato de experiência profissional (estudo de caso com análise de implicações conceituais, descrição de procedimentos ou estratégias de intervenção, contendo evidência metodologicamente apropriada de avaliação, de eficácia e de interesse para o profissional de um dos cursos da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte); resultado de pesquisa ou estudo acadêmico relevante desenvolvido por profissional qualificado, independente da Instituição a que pertença; revisão crítica de literatura; comunicação breve (relato sucinto, mas completo, de investigação científica); carta ao editor (avaliação crítica de artigo publicado pela revista ou resposta de autores a crítica formulada a artigo de sua autoria); nota técnica (descrição de instrumentos e técnicas originais de pesquisa). Os ensaios são trabalhos de natureza filosófica ou técnicocientífica. As resenhas deverão ser de livros recentes. As entrevistas deverão ser conduzidas em torno de idéias, pesquisas ou temas relevantes para as ciências sociais aplicadas, cuidando-se de preservar a natureza acadêmica e científica da Revista. A entrevista será realizada pelo Conselho Editorial ou por professor ou grupo de professores da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte. Os artigos encaminhados são submetidos à análise do Conselho Editorial para aceitação ou recusa e devem seguir as seguintes normas:

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— Os textos devem ser digitados no programa Word for Windows, em espaço 1,5 e margens de 2,5 cm, com no máximo 15 (quinze) laudas. A fonte deve ser Times New Roman 12, e os textos devem ser entregues ao Centro de Pesquisa e Extensão da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte da seguinte forma: 1) em um envelope: uma cópia impressa e um disquete, ambos com identificação do autor, uma breve autorização de publicação e seus dados completos de endereço, para que receba 3 exemplares da Revista; 2) em um segundo envelope: duas cópias impressas, sem identificação de autor; — Os artigos deverão ser acompanhados de um resumo em português, com até 300 palavras, incluindo palavras-chave; um resumo em inglês (Abstract), incluindo palavras-chave (Keywords); — As notas explicativas e informações complementares devem ser numeradas em notas de rodapé, com fonte tamanho 9; — As citações de textos originais com mais de 5 (cinco) linhas devem vir destacadas do texto, sem aspas, em fonte do tamanho 10. As que vierem no texto devem estar entre aspas, seguidas do sobrenome do(s) autor(es), data e número de página, escritos entre parênteses; — Gráficos, tabelas, mapas e ilustrações devem ser apresentados no original, em arquivo separado, com indicações ao longo do texto, dos locais em que devem ser inseridos. — As referências devem aparecer após o texto, obedecendo às seguintes normas da ABNT: • Sobrenome do autor em caixa alta seguido de vírgula e inicial do nome seguida de ponto. No caso de mais de um autor, deve ser usado o ponto-e-vírgula para separá-los. Quando existirem mais de três autores, indica-se apenas o primeiro, acrescentando-se “et al.” • Logo a seguir, o título da obra deve vir em itálico, sendo só a primeira letra em maiúscula (exceto nome próprio), seguido de ponto. Caso haja subtítulo, deve estar separado do título por dois pontos e escrito normalmente sem grifo. Depois do título, tem-se o local escrito por dois pontos, o nome da editora seguido por vírgula e a data da publicação, pontuada.

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• Se houver número de edição, este deve vir imediatamente após o título da obra, escrito conforme o exemplo: CERVO, A. L.; BERVIAN, P. A. Metodologia científica: para uso dos estudantes universitários. 2.ed. São Paulo: McGrawHill, 1978.

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• Para revista ou periódico, temos primeiro o sobrenome do autor do artigo em caixa alta, seguido da inicial do nome e ponto, o título do artigo, também pontuado, sem estar destacado em itálico. Depois, o título da revista em itálico, seguido por vírgula, o local acompanhado de vírgula, o volume abreviado em sua primeira letra seguido por vírgula e o número da revista também abreviado e seguido por vírgula. As páginas inicial e final que compreendem o artigo devem estar separadas por hífen e precedidas de p., depois vírgula, o mês abreviado, o ano e ponto final. Exemplo: CHIN, Elizabeth. Ethnically correct dolls: toying with the race industry. American Anthropologist, New York, v. 101, n. 2, p. 305-321, Jan. 1999. Consultas on-line: Se a fonte for INTERNET, é obrigatório escrever: Disponível em:. Acesso em: número do dia, mês abreviado e ano com quatro dígitos. Se a fonte for e-mail, tem de constar: mensagem recebida por [email protected] em 14 nov. 2002. — Não serão aceitos artigos que estejam em desacordo com as normas estabelecidas. Para outras informações, os interessados podem contatar o coordenador do Centro de Pesquisa e Extensão da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, prof. Paulo Vítor de Lara Resende, no local de trabalho ou no endereço eletrônico .

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