ARTIGO: A dominação justificada e a genealogia do feminino

October 17, 2017 | Autor: Thiago Araujo | Categoria: Feminist Theory, Pierre Bourdieu, Género, Psicanálise, Linguagem
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Mestrando do curso de ciências sociais da UFBA. Email: [email protected]
Rousseau, em seu "Emílio", afirma que um dos grandes sinais de decadência de sua época é o enfraquecimento da maternidade. "As mulheres deixaram de ser mães: não o serão mais, não o querem mais ser."(ROUSSEAU, 1995, p. 21)

Na era moderna, diz Giddens, as mulheres são entendidas como seres "[...] emotivos, caprichosos, cujos processos de pensamento não caminham por linhas racionais." (GIDDENS, 1992, p. 17)


A DOMINAÇÃO JUSTIFICADA E A GENEALOGIA DO FEMINIINO: UM ENCONTRO ENTRE BOURDIEU E BEAVOUIR
Thiago de Araujo Pinho



INTRODUÇÃO
Esse artigo tem como finalidade esclarecer o vínculo existente entre gênero e discurso, utilizando a psicanálise e a sociologia como suportes para a investigação. Ao longo dessas páginas, a "palavra" é a ferramenta fundamental e, ao mesmo tempo, aquele critério que determina a performance dos atores em campo, seja como um recurso reflexivo ou mesmo espontâneo, "não-temático". Problemas em sua estrutura resultam em problemas na configuração da própria realidade e nos seus agenciamentos, especialmente no espaço politico. Entender a sua logica interna, sua capacidade de sedução e eficácia foi, inclusive, uma das grandes conquistas do feminismo, ao invadir a fortaleza do discurso dominante e revirar tudo aquilo de solido em seu interior, construindo também sua própria arquitetura, seu próprio horizonte de demandas e expectativas. Claro que de tudo isso não se conclui que o desafio do feminismo seja um simples problema semântico, um mal entendido linguístico. Sem duvida o corpo é um elemento indispensável para se entender os mistérios do signo. Ele, não sendo uma simples formalidade, logica ou linguística, traz em si um lugar, um espaço, um conjunto de práticas concretas e um suporte sensível.
NATUREZA E DISCURSO
Qualquer tipo de fronteira sustentada no interior do mundo, aquilo que é definido como certo ou errado, belo ou feio, verdadeiro ou falso, pode ser remetida a um esforço contínuo de atores sociais ao longo de uma trajetória complexa de muito interesse e luta. A pretensiosa autonomia ou obviedade que podem surgir em um meio como esse, ao menos para pensadores como Bourdieu, são armas retóricas utilizadas por grupos dispersos no campo, a fim de conferir aos seus desejos e expectativas uma aura mística, impenetrável, isenta de todo investimento crítico e subversivo. O arbitrário torna-se necessário e aquilo que um dia foi inscrito na esteira do tempo e atormentado por suas marcas passageiras, se ergue de um modo impositivo e naturalizante. Sua genealogia desaparece em meio a muita retorica espontânea e a um conjunto de práticas viciadas que implicam na reprodução de formas de constrangimento que, ao menos nos dias de hoje, são intoleráveis. Em outras palavras, "[...] nossa questão principal tem que ser [...] demonstrar os processos que são responsáveis pela transformação da história em natureza, do arbitrário cultural em natural." (BOURDIEU, 2002, p. 8).


FORMA, CONTEÚDO E RESPONSABILIDADE
Para a elaboração desse artigo, serviu de análise, além do material teórico de autoras feministas e autores que discutiram o feminismo, um punhado de obras literárias que fundamentam a teoria aqui trabalhada, conferindo a ela uma consistência maior e uma evidencia pratica difícil de ser vista num nível mais especulativo. O encaminhamento do artigo, grosso modo, se resume a uma discussão sociológica a respeito da dominação masculina, apesar da filosofia e da psicanálise estarem presentes como suportes para a investigação, ultrapassando assim as fronteiras institucionais da própria sociologia, permitindo tratar o tema de uma forma mais dinâmica, sem que com isso seja cometido alguma espécie de reducionismo. As obras teóricas utilizadas como referência são basicamente três: "A dominação masculina", de Pierre Bourdieu (2002), o tão famoso "O segundo sexo", de Simone de Beauvoir (1967) e por ultimo, mas não menos importante, "O mito do amor materno", de Elizabeth Badinter (1980). De Foucault é utilizado o método genealógico, um exame critico inaugurado por Marx e Nietzsche, que realça todo o percurso concreto e todo interesse implícito por trás de discursos aparentemente óbvios e coerentes.
As obras literárias de fundo passaram por um processo de decupagem, em que seus elementos principais, personagens e conceitos, foram alinhados de modo a conferir firmeza a discussão, evitando que a literatura seja empregada como um recurso forçado ou até como um simples ornamento sem substancia. Flaubert, Kafka, Oscar Wilde e Balzac, nesse caso, foram tratados de um modo mais sociológico, o que não implica, sem duvida, que suas obras sejam restritas a uma única interpretação da realidade, mas sim que a proposta desse artigo a selecionou de tal modo que não esconde o percurso feito. A forma desse material procura ser coerente com aquilo que é discutido enquanto conteúdo. A transparência deve, ao menos aqui, ser um principio necessário, revelando tanto as intenções do autor, quanto as origens teóricas, também contingentes, que alicerçam a estrutura do texto. Em resumo, "vou expor diante de todos, tão livre e integralmente quanto puder, o encadeamento de ideias que me levou a pensar [...]"(WOOLF, 1928, p. 8), evitando a forma reificada do discurso dominante, que parece não se responsabilizar pelo que é dito e pelo percurso traçado, ao remeter sempre a "palavra" seja a uma natureza evidente, seja a alguma obviedade posta no mundo. A metodologia aqui sugerida, portanto, entende que não apenas o conteúdo manifesto de um texto apresenta um certo "enviesamento", mas também sua simples forma pode carregar um pesado conteúdo politico.

UMA GENEALOGIA DO FEMININO
Difícil não concordar com Oscar Wilde, em seu retrato de Dorian Gray, quando afirma que "a coisa mais banal adquire encanto simplesmente quando não revelada"(WILDE, 2000, p. 6). No instante em que o rastro de terra deixado pelos conflitos é ofuscado, os critérios de julgamento oferecidos ás mulheres são tomados de maneira instantânea, resultado de algum processo natural que se encontra objetivamente depositado nas próprias coisas e no próprio mundo. Existe a ilusão de um vínculo direto entre aquilo que é dito e o que se expressa na realidade, uma espécie de correspondência. Graças a uma cadeia de justificações muito bem estruturadas, os significantes simplesmente se convertem em fatos, perdendo sua contingencia em nome do que é natural e permanente; eles se atrofiam. A névoa do discurso dominante, de modo tão eficiente quanto só poderia ser, é incapaz de revelar seus fios aleatórios, seus comportamentos históricos e seus critérios instáveis, encobrindo, por sua vez, o que há de mais questionável, ao passo que o transforma em uma verdadeira parede de aço, forjada por instancias legitimas capazes de afastar a incerteza, na mesma medida em que gera um cenário previsível e administrável. Ao se encontrar perdida em meio a tanta obviedade e evidencia, a mulher "encara a ordem das coisas como dada" (BEAVOUIR, 1967, p. 69), como um destino inescapável que pesa sobre seus ombros. Cada comportamento, por mais singular que seja, aparenta ser direcionado por alguma totalidade conveniente, que o enquadra e o confere sentido. Graças ao movimento feminista, com sua luta e autoafirmação, essa totalidade está sendo aos poucos desconstruída, permitindo que os seus elementos, antes subordinados, possam se agrupar de novas formas, constituindo novas narrativas e inéditos critérios de julgamento, apesar de ainda existir muita coisa a ser superada, uma vez que a sociedade atual ainda se encontra a quilômetros de distância de um "reconhecimento" adequado.
O mito do amor materno (BADINTER, 1980) é um exemplo curioso de tudo isso, ao conectar uma capacidade natural ("dar á luz") a um conjunto de práticas e valores que são arbitrários por definição, embora, pelo modo como são articulados, pareçam também naturais e por isso, inevitáveis. Badinter revela a sutileza do discurso dominante, principalmente quando expõe a frustração das mulheres no século XVIII ao perceberem o quanto se afastavam da imagem clássica que se tinha do feminino. Para essas mulheres o corpo não era uma instancia harmônica, supondo alguma unidade conveniente, ou algum elemento que se ajusta bem ao "eu". Ele era dissonante, um obstáculo para toda e qualquer forma de coerência. Era um excesso que parecia não compactuar com a narrativa daquelas mulheres presas em um tipo de contradição interna. Já no século XIX e início do XX, esse descompasso consigo mesma, quando não era reduzido a histeria, era tido como uma aberração e um atentado ao "verdadeiro propósito" da natureza e de sua lógica interna. A passividade e a maternidade eram expectativas erguidas como signos intransponíveis; uma evidencia que poucas eram capazes de desconstruir.

Faz alguns dias que começo a me apavorar com o nosso destino, a compreender por que tantas mulheres têm rostos entristecidos sob a camada de ruge que neles põem as falsas alegrias de uma festa. (BALZAC, 2012, p. 237)
Essa espécie de carência simbólica, essa incapacidade de articular signos a seu favor, é bem ilustrada por uma característica curiosa da literatura do século XVIII, e também por boa parte do romance do século XIX. A figura feminina sempre esteve presente nesses textos, tendo, inclusive, descrições profundas de seus hábitos, de suas preferencias e de suas expectativas. Tudo parecia fluir para uma zona de reconhecimento, se não fosse por um detalhe: a narrativa era contada por homens. Milhares e milhares de descrições feitas por eles; Surpreendente. Surpresa também para Virginia Woolf e sua personagem indefinida que, num belo dia, ou nem tanto assim, decide fazer uma busca na biblioteca sobre o papel da mulher ao longo dos séculos. Sem palavras, ou qualquer outro tipo de reação, constata que todos os relatos eram feitos por homens. Mesmo aquelas passagens mais íntimas, mais profundas e mais pessoais, eram narradas por eles. Talvez Balzac, nesse sentido, seja o melhor exemplo de um escritor dedicado a retratar o universo feminino de um modo tão intimo, pintando um quadro com uma pretensão descritiva. A comédia humana é uma espécie de grande palco onde a mulher é a personagem central e toda sua vida, o repertório de um drama exposto em detalhes.
Ao passar do tempo, depois de lutas e frustrações, o feminismo adquire uma estratégia incrível para mudar os rumos do fluxo social. De um momento privado, "individualizante", a realidade da mulher passa com o tempo a adquirir uma dimensão mais sociológica, coletiva. Tem-se início uma luta por legitimidade e por espaço dentro de um mundo que, em função de seu "desencantamento", abre brechas no próprio tecido que o compõe, permitindo assim que o "outro", antes esquecido no subsolo do social, apareça e reivindique a posse de um campo que também é seu. Não mais sufocado pelas "metanarrativas", por aqueles discursos totalizantes e constrangedores, o espaço publico começa a ganhar novas configurações e novos critérios de definição do que é válido e do que não é. Ao contrário de antes, num modelo mais kantiano de mundo, nada, agora, é definido de antemão, como um a priori. Mesmo simples formas de convivência são moedas de troca simbólicas, lançadas em um espaço de circulação de idéias e conflitos.
Claro que até esse momento ser alcançado, contudo, muitas transformações precisaram se desdobrar, o que revela uma trajetória nada fácil em busca de novas alternativas de convivência.
De um modo geral, até o século XIX, um universo simbólico inteiro é constituído em cima de polaridades que reafirmam a submissão do feminino, resguardando a ele, no mais das vezes, apenas um papel coadjuvante e com pouco ou quase nenhum reconhecimento. As palavras parecem dançar em torno de um núcleo consistente e necessário, permitindo que uma gramática perversa seja compartilhada e principalmente mantida a salvo de possíveis resistências que possam comprometer sua performance dominante. Mesmo distinções filosóficas como a kantiana, entre um masculino racional e um feminino sensível, acabam reproduzindo uma certa fronteira que demanda desconstrução, já que, nesse mesmo esquema filosófico, razão e sensibilidade nunca estiveram num mesmo nível de importância, reservando ao primeiro sempre um lugar privilegiado. Quando Kant (1784) fala a respeito do "belo sexo" e de sua impotência em alcançar a maioridade, acaba justificando, mesmo que sem querer, uma desigualdade de gênero, conferindo a ela, por conta disso, uma estrutura sólida e bem atraente.
O AUTOR, A FORMA E A LEITURA
Esse movimento genealógico da busca de entrelinhas, das frestas da narração, leva o sujeito a desconsiderar a possível autoridade do Autor, ao menos enquanto função, buscando, ao contrario, seus pontos cegos, sua área fora de alcance. O Autor, nesse caso, enquanto figura central de uma obra, nada mais é do que um obstáculo na compreensão do mundo, justamente ao criar e ao oferecer um tecido coerente e bem costurado em torno de si e de suas ideias. Assim como na psicanálise, o significado brota daquilo que não é dito e das falhas da enunciação, ao descortinar o núcleo do sintoma e dos bastidores da vida social. O machismo, nessa nova configuração, não vai ser uma mera evidência, algum dado consciente, alguma obviedade, mas algo encontrado na brecha do discurso, no furo no tecido da linguagem, como diria Beckett.
O machismo, como é de se esperar, não apenas manifesta sua influencia em conteúdos, em determinadas informações que circulam por ai, mas principalmente em formas, em modos de conduzir a prática e estruturar o raciocínio, como no exemplo da leitura. É curioso como mesmo num inofensivo esquema lógico, num simples modo como termos de um enunciado são articulados, esse modelo excludente continua a manter seu controle e reproduzir suas expectativas. O que são relações binárias, como masculino/feminino, pai/mãe, menino/menina, se não um modo de transcrever em palavras uma certa disposição simbólica da própria realidade? Pensar nelas como meros recursos formais, ou como uma pura técnica, exclui a parte mais dinâmica do seu interior, sua vitalidade e todo seu devir. O formalismo, sem dúvida, é também, ele mesmo, um artifício simbólico e não, como pode parecer, um simples equívoco, um erro. A legitimidade que confere aos discursos é uma estratégia previsível dentro de um jogo em que atores buscam cada vez mais solidez e segurança naquilo que precisam fazer e dizer.

TEATRO, LINGUAGEM E CORPO

Em um cenário desigual, cujo palco é constituído ao sabor do protagonismo de alguns, os papeis são definidos de antemão, cabendo aos corpos a simples busca por uma correspondência com os critérios que circulam por todo lado. O que há de arbitrário nos enunciados, curiosamente, nunca é tomado como tal, mas como um prolongamento de uma simples vontade particular, tornando a situação um assunto privado, restrito a apetites e personalidades. Em outras palavras, o discurso hegemônico é tão eficaz que se torna uma extensão do corpo feminino, se incorporando em suas narrativas de maneira orgânica e insuspeita. Nessa peça cotidiana em que homens e mulheres continuam a encenar, não há espanto em ver, em cada gesto bem calculado, "[...] vestidos de cauda, grandes mistérios, angústias dissimuladas por trás dos sorrisos" (FLAUBERT, 2000, p. 58); uma verdadeira dança trágica e mascarada.
O panóptico foucaultiano (FOUCAULT, 1975), com sua autoridade verticalizada, torna-se desnecessário, uma vez que as próprias mulheres fiscalizam o comportamento uma das outras e principalmente os seus próprios. O discurso dominante é reproduzido pelo dominado sem qualquer resistência; na verdade, com toda boa intenção, a mulher compactua com as regras do jogo, na exata medida em que escolhe uma inocente peça de roupa numa vitrine de um shopping qualquer. "Que força estará por trás da louça simples que usamos ao jantar [...]?" (WOOLF, 1928, p. 26), perguntaria Virginia Woolf. Para Giddens (2003), em sua teoria da estruturação, a escolha mais concreta e particular pode contribuir para a existência de instituições consagradas. A fronteira entre o individual e o geral perde importância, torna-se fluida e se não fosse o esforço dos próprios atores, nem haveria qualquer sinal de sua presença. As decisões de cada uma atravessam o tempo, delineiam espaços e repercutem de modos inesperados no mundo da vida. Para surpresa da mais imediata das mulheres, seus gestos a direcionam para além dela mesma, encaminhando seu corpo e sua vida para uma generalidade que se confunde com o próprio feminino. Cada mulher carrega nas costas o destino de todas as outras, seja para o "bem", questionando o padrão e reavaliando o que é dado, seja para o "mal", o que é mais comum, ao reforçar estereótipos e fragmentar as consciências. Já que "[...] ilusões são mais frequentes que mudanças" (KAFKA, 2000, p. 195), é provável que a reprodução seja o destino de quase todo gesto implicado no cotidiano de cada uma. Como seres sociais que são, apesar das condições atuais escorregarem em uma espécie de individualismo suspeito, os atores acabam sempre por escolher de um modo genérico, por mais concreto e solipsista que pareçam as alternativas. A dúvida que brota desse dilema, logo, não é se os critérios e os valores serão reproduzidos ou não, e sim o conteúdo do que será replicado e quais suas consequências para o destino de toda uma sociedade.
Sem definição própria, sem um predicado positivo que a constitua, a mulher é lançada numa rede diferencial, sendo apenas alguém na medida de seu vinculo com outras partes da malha simbólica. Ela é filha num primeiro momento, personagem de pureza e transparência. No segundo, é esposa, essa prestativa, disponível e paciente. Na terceira, é mãe, figura sensível, tolerante e protetora, essa sendo o auge de sua realização, aquele destino que chancela sua existência. A mulher, portanto, não tem, num sistema como esse, uma característica própria, muito menos autonomia. Ela depende de um outro (pai-marido-filho) para que haja reconhecimento. Se, por acaso, esse outro desaparece, ou se simplesmente nunca existiu, a estrutura diferencial é quebrada, e ela perde sua chance de ser alguma coisa. Um dos grandes ganhos do feminismo, por isso, foi a atribuição de um valor positivo para a figura feminina. Não que isso dispense o papel de mãe ou esposa, que continuam sendo vínculos importantes. Esses papeis, agora, são opcionais, agregadores, não mais necessários e impositivos. São acoplados numa espécie de ontologia, um fundamento que define novas possibilidades para a figura feminina, não mais presa em laços autoritários e inquebráveis.
Ao entender que seu corpo é uma extensão de todo um conjunto de práticas sociais e não um simples domínio privado, é possível extrair disso uma responsabilidade quase republicana, em que um gesto é sempre acompanhado de uma consciência ampliada, política. Quando determinada mulher reivindica o direito de abortar, ela não apenas escolhe para si mesma, mas para todo um conjunto de mulheres que depende de tal escolha. Reproduz assim uma série de valores democráticos, que embora não se convertam de imediato em instituições politicas ou jurídicas, podem muito bem servir de fundamento para relações cotidianas, criando as condições iniciais para uma luta mais ampla que, aos poucos, transforma convenções em leis.
Se faz sentido o slogan "ninguém nasce mulher: torna-se[...]"(BEAVOUIR, 1967. p. 9), a genealogia, logo, é uma leal companheira no rastreamento desse "vir a ser", na busca áspera através dos circuitos simbólicos que atravessam mesmo aquelas instâncias mais insuspeitas da vida privada. De histórias infantis até rebuscadas teorias filosóficas, passando por piadas e comentários de corredor, o percurso genealógico pode ser visto em toda sua riqueza e contradição, numa espécie de microfísica. A unidade interna do que é dito é desmanchada e reinterpretada agora de acordo com uma nova intensidade que surge no "seio do mundo", invadindo a fortaleza bem construída do universo dominante, ao mesmo tempo em que ameaça aquilo de certo que até então existia. Dos bairros mais pobres até aqueles mais privilegiados, algo parece dar ao gênero uma autonomia curiosa, pressionando o pesquisador a refletir em seus próprios termos, sem realizar qualquer tipo de redução teórica. Ou seja, que problemas de classe existem, isso é obvio. Que os temas que levantam tem importância e merecem ser discutidos e repensados, não há qualquer dúvida. Contudo, não há mais necessidade, como havia no próprio Marx (2004), de "subsumir" as inquietações de gênero ao modo de produção, reduzindo sua angústia a um simples apêndice de uma narrativa mais ampla, que teria na propriedade sua referência inquestionável. Claro que as convergências existem, mas é necessário entender que Simone de Beauvoir, Elisabeth Badinter, Virginia Woolf e tantas outras mulheres, reivindicam uma história que possa ser contada em sua própria "frente de batalha", e ao fazer isso recorrerem a enredos irredutíveis e extremamente ricos naquilo que pretendem transmitir. Há uma temporalidade própria do universo feminino que deve ser respeitada, fruto que é das lutas do passado e das novas articulações que entram em cena e pedem por visibilidade.

A PALAVRA E A POLÍTICA
Diferentemente de outros ramos da psicologia, a psicanálise tem a palavra como seu instrumento fundamental, condição para a própria clinica, não importando o seu teórico de fundo. Nomear uma angústia, um desconforto, é construir para si mesmo uma ferramenta de luta e afirmação. Enquanto isso não acontece, o desespero é consumido como um assunto íntimo, como algo muitas vezes incapaz de ser nomeado. Impedir que o outro fale, impedir que conte sua história e narre suas conquistas e fracassos, é um dos maiores golpes de "violência simbólica" que existe. Nesse terreno, não são correntes que impedem o sujeito de seguir seu caminho, mas os obstáculos deixados no universo linguístico ao seu redor, seja por conta da falta de repertorio, fruto de um acesso limitado a um certo recurso simbólico, ou, o que é comum, pela simples falta de autorização, ainda que o sujeito, tecnicamente falando, tenha recurso de sobra.
Apesar de tudo, é necessário esclarecer, isso não implica que aquilo que é dito seja verdade, ou ao menos essa é a preocupação do psicanalista. Em outras palavras, não é sua validade que interessa, mas simplesmente seu potencial de agenciamento. A última coisa que um analista pode se perguntar, no meio de sua prática clinica, é se a narrativa que constrói com seu paciente é verdadeira. O que interessa, no final das contas, é o desenrolar do que é dito, os efeitos práticos de sua construção, seja lá qual for seu fundamento. Se o que é dito transforma aquele quem diz, modifica os seus rumos de ação e amplia o seu horizonte reflexivo, isso é tudo o que importa, da mesma maneira que a duvida sobre a validade de uma doutrina religiosa simplesmente não faz sentido diante de seu efeito transformador. Assim como no mantra, o significado das palavras não interessa, e sim suas consequências no corpo e na vida dos envolvidos.
Embora numa escala maior, a politica opera mais ou menos do mesmo modo que a psicanálise, ao menos em seu método. Em ambos os casos a palavra é o recurso principal, aquele critério que acaba por decidir as condições do jogo. Seja um jogo público, ou mesmo privado, o sujeito articula signos para marcar sua presença e melhor circular pelo espaço. As palavras adquirem, para ele, um perfil pragmático, um modo de conduzir seu sofrimento de uma maneira conveniente, menos constrangedora. Ao conseguir associar signo e corpo, ou seja, ao acoplar sua trajetória concreta, suas experiências, no meio do vinculo formal entre significante e significado, o ator realiza um verdadeiro salto simbólico, fabricando, de uma maneira bastante criativa, uma nova gramática, essa não mais perversa, mas sim um suporte para o entendimento de uma nova realidade, de novas relações e novas perspectivas.

UM NOVO HORIZONTE SIMBÓLICO
Após um exame, sem dúvida um pouco superficial, dos relatos contidos no "Segundo sexo", e de algumas teorias cientificas que trataram a respeito do tema, conclui-se que os agenciamentos internos de uma sociedade são "exercícios racionalizantes" muitas vezes de disposições preconceituosas, resultando em elaboradas justificativas presentes tanto em um simples comentário cotidiano, até em grandes sistemas filosóficos Não há, como imaginava Hegel (HONNETH, 1995), uma relação de reciprocidade entre homens e mulheres, como se ambos, por algum motivo, se complementassem e convergissem para um mesmo ponto reconciliatório. O que existe, na verdade, não é um exercício de reconhecimento mútuo, mas sim um desequilíbrio de forças, um conflito que se estende até as profundezas da própria linguagem.. É destruído, no processo, toda e qualquer expectativa de autonomia, todo horizonte de expectativa, ao naturalizar desigualdades e limites, tornando seus contornos opacos, evidentes e sólidos. Isso quer dizer que o masculino "legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada" (BOURDIEU, 2002, p. 32).
Felizmente, mesmo aquelas teorias mais legítimas são corroídas com o passar das gerações, perdendo sua solidez básica conforme o ritmo das "lutas por reconhecimento". Mesmo a famosa tese freudiana da inveja do pênis, acaba sendo, segundo Beauvoir, antes que uma constatação orgânica de uma espécie de desigualdade, uma "[...] confirmação de uma necessidade que [a menina] sentiu anteriormente, uma racionalização, por assim dizer, dessa necessidade" (BEAVOUIR, 1967, p. 19). Em outras palavras, a inveja do pênis, cujos casos foram relatados aos montes por Freud no século XIX, é muito mais um sintoma de um processo mais amplo, social, por assim dizer, do que uma causa de alguma deficiência; Bourdieu diria que há uma "construção social dos órgãos sexuais" (BOURDIEU, 2002, p. 21). Essa angústia histórica das mulheres transborda de tal modo as fronteiras de sua própria subjetividade, que pode ser apresentada de diversas formas, seja num sentimento surdo de desconforto, até numa justificativa que acaba reproduzindo o desiquilíbrio de gênero. O que interessa, portanto, é não se perder de vista o núcleo genealógico do problema, por mais racionalizado e diverso que ele se apresente. Essa genealogia, em grande medida, ao expor o que há de mais desprezível em seu interior, permite visualizar os conflitos dos diferentes atores sociais em busca de autoafirmação, desconstruindo seus discursos transcendentes e seus argumentos incontestáveis. A natureza se torna arbitrária e uma trajetória de luta e poder se descortina de dentro do palco social supostamente harmônico e democrático.
Uma das estratégias emancipatórias utilizadas pelo feminismo de um modo geral é, portanto, revelar o discurso machista como "humano, demasiado humano". Lançando suas pretensões na história e nas lutas simbólicas de um campo dinâmico, as mulheres podem enxergar através da neblina da retórica dominante e propor alternativas mais eficazes em um mundo que demanda novas instituições e novas formas de convivência. Existe, por sua vez, como um novo horizonte de práticas, um compromisso com a pluralidade, que acaba por ser, como bem diria Rawls (1999), um dos grandes fundamentos da experiência ocidental contemporânea. O discurso machista, no limite, se configura como um obstáculo para a constituição de uma sociedade liberal, cuja palavra de ordem é "reconhecimento". Por mais variadas que sejam as opiniões em uma sociedade como a nossa, ainda assim se faz necessário um consenso mínimo em relação a alguns postulados fundamentais. O respeito ao outro é um desses requisitos, implicando numa desconfiança diante de qualquer proposta que não traga em seu interior essa condição básica. Machismo, racismo ou homofobia, acabam sendo um contrassenso contemporâneo, em que instituições democráticas, liberais, que prezam o pluralismo e a opinião acima de qualquer coisa, se veem presas em uma relação anacrônica com esses modelos de convivência ultrapassados.
O anacronismo desses movimentos pode ser visto, de um jeito mais habermasiano, no modo deficiente desses grupos em justificar suas tomadas de posição. Nas eleições de 2014, isso ficou evidente, quando representantes desses movimentos procuraram, em vão, justificar seus valores, em grande medida fundados numa defesa superficial de coisas como família e religião. Claro que houve muitos adeptos a uma retorica como essa, mas, por outro lado, a péssima recepção que teve, em especial nas redes sociais, é um indicio de que paulatinamente esses grupos se veem deslocados, com cada vez menos formas de legitimar seus preconceitos, que um dia foram óbvios e nem sequer demandavam explicação. Muitos viram essa ascensão reacionária, digamos assim, com receio, como algum retrocesso ou algo do tipo, contudo, se visto mais de perto, percebemos que o simples fato de subir em publico e se utilizar da "palavra" para se afirmar, já é uma bela amostra de que aquela obviedade tão necessária para qualquer forma de dominação caiu por terra. É possível supor, talvez, que com o tempo esses grupos reacionários percam força e abram espaço para aqueles indivíduos que realmente tem algo a contribuir para a sociedade, ao invés de buscar um retorno para uma realidade idílica, de um passado perfeito, que jamais existiu. É para frente que devemos olhar, para o mundo onde se quer que nossos filhos vivam, um mundo com possibilidades abertas a todos, um mundo onde exista liberdade de expressão para qualquer um que se sinta constrangido com as decisões da maioria. Talvez um pouco do "véu de ignorância" de Rawls fosse interessante, afastando todo e qualquer egoísmo quando o assunto é a esfera publica e o destino de toda uma geração.

CONCLUSÃO
A proposta desse artigo foi discutir a maneira como a "dominação masculina" constrói seus discursos, lançando mão, para isso, de uma cadeia eficaz de justificativas que desembocam tanto em teorias cientificas, em seu momento refinado, quanto em simples e grosseiros comentários cotidianos. Diferenças a parte, o que existe em comum nesses dois polos de construção simbólica é o desejo de manter uma fronteira desigual entre homens e mulheres, fazendo com que todo o arbitrário, toda contingência que estrutura a vida, se converta numa imposição inquestionável.
O objetivo do movimento feminista, desde o século XIX, com seu realismo literário subversivo, foi buscar uma brecha no tecido bem costurado da dominação masculina, rasgando seus critérios, ao propor novas formas de convivência, ao passo que confere á mulher uma posição mais privilegiada e a retire dos bastidores daquilo que chamamos de sociedade. Essa reviravolta supõe um novo conjunto de associações que demandam, além de acordos e diálogos, muita luta e ainda muito sofrimento. Contudo, o simples fato desse sofrimento não ser mais compreendido em sua privacidade, passando a ser interpretado como um sintoma social e coletivo, garante um avanço considerável para o feminismo. Essa passagem importante de uma Emma Bovary, com seus conflitos privados, para uma Simone de Beauvoir, e sua militância declarada, é hoje uma das vitórias mais importantes do movimento feminista e de toda uma teoria mais ampla sobre o gênero. Dar sentido a angústia, dando nome ás suas manifestações, não é apenas um artificio psicanalítico, mas também um exercício politico fundamental numa época onde o discurso é uma arma indispensável e a busca por identidade, um pré-requisito necessário.
Referência Bibliográfica

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
BALZAC, Honoré. A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada. São Paulo: Globo, 2012.
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BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamazov. São Paulo: abril cultural, 1970.
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