Artigo: ANALISANDO A ABORDAGEM DA TEMÁTICA DO CONSUMO NO CURRÍCULO PRESCRITO, À LUZ DA PEDAGOGIA FREIRIANA

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ANALISANDO A ABORDAGEM DA TEMÁTICA DO CONSUMO NO CURRÍCULO PRESCRITO, À LUZ DA PEDAGOGIA FREIRIANA1 ROCHA, Julciane Castro da Mestranda em Educação: Currículo, PUC-SP Orientadora: Profª. Dra. Mere Abramowicz, PUC – SP Instituição de fomento: CAPES E-mail do autor: [email protected] Introdução Esse trabalho tem como objetivo tecer algumas reflexões sobre a abordagem do tema do consumo no currículo prescrito proposto pelo MEC. O consumo foi introduzido no currículo como Tema Transversal em 1998, quando do lançamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Ele também está presente nas publicações sobre educação ambiental, organizadas pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) em parceria com o Ministério do Meio Ambiente, em 2005. A relevância dessa reflexão está na atualidade do tema. Nunca se falou tanto dos impactos do consumo em nossa sociedade e dos prejuízos que este causa ao meio ambiente, emergindo dos debates sobre aquecimento global, sustentabilidade e responsabilidade sócio-ambiental. Em outra vertente, o tema do consumo vem à tona com as reflexões sobre os direitos e deveres dos cidadãos nas relações de consumo. Há ainda a abordagem que chama a atenção para as consequências do consumo para os indivíduos, enfatizando as questões relacionadas ao consumo como um fator de distinção social e satisfação de desejos materiais e simbólicos. Diante dessa realidade, entendemos ser necessário lançar um olhar rigoroso para estas propostas, visando identificar e compreender seus propósitos e objetivos. Em outras palavras, esperamos reunir elementos para responder à seguinte questão: que formação acerca do tema do consumo está sendo proposta nestes materiais publicados pelo MEC? Para realizar esta reflexão, dialogamos com a obra de Paulo Freire e sua concepção de educação, compreendendo-a como um processo de tomada de consciência e desenvolvimento da atitude crítica dos educandos.

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Artigo apresentado no VII Colóquio Internacional Paulo Freire. Recife, UFPB, Setembro/2010

Metodologia Este estudo faz parte de minha dissertação de mestrado, que consiste em discutir a abordagem do tema do consumo no currículo proposto pelo MEC e pela Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP). Para tanto, apoiamo-nos na abordagem qualitativa, concretizada por meio de uma pesquisa documental. Trata-se de uma leitura crítica dos materiais selecionados, destacando os principais trechos que evidenciem os pressupostos e finalidades destas propostas de abordagem do tema do consumo no currículo escolar. Os materiais que selecionamos para este estudo são: o volume “Trabalho e Consumo” dos Temas Transversais, lançado em 1998 e o “Manual de Educação para o Consumo Sustentável, lançado em 2005. Ambos são publicações do Ministério da Educação e estão voltados para os educadores. Este último é uma adaptação brasileira do manual originalmente produzido no Chile em 1999 pela Consumers Internacional. Neste estudo, os trechos destacados dos documentos que farão parte de nossa análise são especialmente aqueles que contêm conceitos e definições, tais como: o que é consumo, consumidor e consumismo e sociedade de consumo. Também destacamos as descrições dos objetivos das respectivas propostas. Lembramos ainda que não pretendemos fazer uma descrição exaustiva dos trechos selecionados nos respectivos documentos. Enfatizaremos mais os resultados do que a apresentação dos dados, visando desenvolver sucintamente os argumentos e reflexões pertinentes ao trabalho. O próximo passo desta proposta é relacionar nossa interpretação dos conceitos e descrições que foram extraídos dos documentos com o pensamento de Paulo Freire. Para isso, selecionamos suas reflexões sobre a conscientização, entendida como um processo que tem como fim último a libertação dos oprimidos. Destacamos também a sua relação com o compromisso histórico da utopia e a transformação radical do mundo. Resultados Nesta parte do artigo, nosso objetivo é destacar e organizar os pressupostos e concepções acerca da temática do consumo contidas nos documentos analisados: o volume dos Temas Transversais (PCNs) dedicado ao Trabalho e Consumo e o Manual de Educação para o Consumo Sustentável. Objetivos e abrangência dos documentos analisados

No volume introdutório dos PCNs, consta que a finalidade do tema trabalho e consumo como tema transversal é “indicar como a educação escolar poderá contribuir para que os alunos aprendam conteúdos significativos e desenvolvam as capacidades necessárias para atuar como cidadãos, nas relações de trabalho e consumo” (BRASIL, 1998, p.68). No volume dedicado especificamente a este tema transversal, seu objetivo é apresentado de maneira mais detalhada. Serão apresentados de maneira resumida os aspectos mais relevantes encontrados ao longo do texto que definem a atuação da escola em face da problemática do consumo: •

Explicitação das relações sociais que produzem as necessidades, desejos e os produtos e serviços que irão satisfazê-los (Ibidem, p. 339);



Participação dos debates sobre as formas de realização e organização do trabalho e do consumo, compreendendo suas relações, direitos vinculados, as contradições e valores, resultando em uma auto-imagem positiva e uma atitude crítica para a valorização de formas de ação que favoreçam uma melhor distribuição da renda (Ibidem, p.339-344);



Promover uma sólida formação cultural, “favorecendo o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes de cooperação, solidariedade e justiça” (Ibidem, p.345). Embora esteja condicionada a fatores estruturais, a escola pode desempenhar um papel importante na inclusão dos grupos sociais desfavorecidos (Ibidem, p.344).



A abordagem histórica pode contribuir para desvelar como se constituem as relações de consumo e a não- naturalidade destas. Ao contrário, são construídas a partir de múltiplas determinações (Ibidem, p.369). O Manual de Educação para o Consumo Sustentável não apresenta os objetivos

de forma sistematizada, como faz os PCNs. Eles estão descritos ao longo da introdução do documento, voltada para os educadores. De forma resumida, seu objetivo “é o adensamento conceitual das questões socioambientais em suas dimensões de conhecimentos científicos, políticas públicas e das propostas de ações que ajudem a promover intervenções pertinentes com foco na melhoria da qualidade de vida” (MEC et al, 2005, p.9). Mais adiante, o documento explicita que sua pertinência está no fato dele propor “novos conceitos sobre os padrões de relação da sociedade moderna com a natureza de

maneira orgânica, interdisciplinar e transversal em relação ao currículo escolar como um todo” (Ibidem, p.9) Conceitos fundantes apresentados nos documentos analisados a) O consumidor e o ato de consumir Para os autores dos PCNs, consumidor é “toda pessoa que compra um produto ou paga pela realização de um serviço”. Portanto, “consumir é ter acesso não só aos bens primários de subsistência, mas também usufruir dos desenvolvimentos tecnológicos, dos bens culturais e simbólicos” (BRASIL, 1998, p.352). Ainda nesta mesma página, o acesso ao mercado de consumo, aos produtos e serviços é descrito como um direito básico do cidadão. Dentro desta perspectiva, todo e qualquer serviço público – inclusive a educação - também envolve uma relação de consumo, uma vez que são pagos por todos por meio dos impostos diretos e indiretos. Já no Manual de Educação para o Consumo Sustentável, consumidor é quem compra um produto ou contrata um serviço de um fornecedor; também é aquele que utiliza um produto comprado por outros. Ou seja, uma criança que se diverte com um brinquedo comprado para ela é consumidora; um morador de rua que recebe um prato de comida ou um doente mental que recebe tratamento são também consumidores (MEC et al, 2005, p.23)

Nos PCNs, os autores avançam na definição de consumo, quando afirmam que consumir não é um ato “neutro”: significa participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos modos de usá-lo, tornando-se um momento em que os conflitos, originados pela desigual participação na estrutura produtiva, ganha continuidade por meio da distribuição e apropriação de bens e serviços (BRASIL, 1998, p.353).

No Manual de Educação para o Consumo Sustentável, o conceito de consumo também é ampliado, ao se afirmar que “o consumo não é uma atividade neutra, individual e despolitizada” já que “envolve também coesão social, produção e reprodução de valores” e a manifestação da forma como vemos o mundo (MEC et al, 2005, p.14). A partir do exposto, consideramos que o conceito de consumo é mais abrangente neste segundo documento do que no primeiro, pois além de abordar o aspecto social do consumo e as desigualdades produzidas e reproduzidas neste ato social, também engloba o aspecto da produção de identidades. Essa leitura do consumo é fortemente marcada nos estudiosos contemporâneos da Antropologia do Consumo como Barbosa

(2008), Barbosa e Campbell (2009) e Lima (2010), mas foi negligenciada durante muito tempo nos estudos sobre o tema nas Ciências Sociais. Os bens, em todas as culturas, funcionam como manifestação concreta dos valores e da posição social de seus usuários. Na atividade de consumo se desenvolvem as identidades sociais e sentimos que pertencemos a um grupo e que fazemos parte de redes sociais (MEC et al, 2005, p.14)

b) Consumismo e suas consequências Nos PCNs, a definição de consumismo vem contextualizada ao paradigma do sistema de produção capitalista que “depende de criar cada vez mais mercadorias para continuar se expandindo, e que para isso tem uma complexa engrenagem de ‘fabricação de novas necessidades’, instalando a ideia do poder de consumo como um valor em si” (BRASIL, 1998, p.353). Na mesma página, o consumismo é denominado como “consumo compulsivo, excessivo e acrítico de determinados bens, independentemente de sua necessidade ‘real’”. O grande aumento de produtividade conseguido pelas novas tecnologias também contribui para o aumento do consumo, já que a organização da produção de bens e serviços corresponde à necessidade de vendê-los. (Ibidem, p.352). Da mesma forma, a propaganda contribui com este cenário: “além de produtos e serviços [...] divulgam-se estilos de vida, padrões de beleza e comportamento que traduzem determinados valores e expectativas” (Ibidem, p.392). O acesso aos bens produzidos socialmente é reconhecido como algo desigual: “reconhece-se a existência de ‘bolsões’ de consumo diferenciados: se em alguns o consumo de bens é praticamente ilimitado, em outros existe a impossibilidade de acesso aos bens de consumo e serviços considerados vitais” (Ibidem p.352). No documento Manual de Educação para o Consumo Sustentável, o consumismo também é um dos conceitos abordado pelos autores. O conceito é tratado dentro do quadro social mais amplo da sociedade de consumo, definida como “a importância que o consumo tem ganhado na formação e fortalecimento de nossas identidades e na construção das relações sociais” (MEC et al, 2005, p.15). Como consumismo, o documento define como sendo “a expansão da cultura do ‘ter’ em detrimento da cultura do ‘ser’ [...] Nesse processo, os serviços públicos, as relações sociais, a natureza, o tempo e o próprio corpo humano se transformam em mercadorias” (Ibidem, p.15). Mais adiante, os autores complementam: “os indivíduos passam a ser

reconhecidos, avaliados ou julgados por aquilo que consomem, aquilo que vestem ou calçam, pelo carro e pelo telefone celular que exibem em público” (Ibidem, p.15) Os autores apontam ainda a vinculação da felicidade e qualidade de vida com as conquistas materiais, o individualismo e a redução do cidadão ao consumidor como características desta sociedade, fruto do consumismo fomentado pelo sistema capitalista. As consequências do consumismo nas sociedades ocidentais modernas é o foco principal do documento. O impacto ambiental ganha notoriedade neste aspecto, no entanto o texto não se resume a ele. Podemos reconhecer a abrangência na abordagem do tema quando os autores apontam que “o padrão de consumo nas sociedades ocidentais modernas, além de ser socialmente injusto e moralmente indefensável, é ambientalmente insustentável” (Ibidem, p.16), causando problemas intrageracionais e intergeracionais. Assim, a questão ambiental não se desvincula da questão da desigualdade de acesso e usufruto dos bens produzidos socialmente, que pode ser observada nos seguintes trechos: meio ambiente não está relacionado apenas a uma questão de como usamos os recursos (os padrões), mas também uma preocupação com o quanto usamos (os níveis), tornando-se uma questão de acesso, distribuição e justiça social e ambiental [...] A ideia de um consumo sustentável, portanto, não se limita a mudanças comportamentais de consumidores individuais ou ainda mudanças tecnológicas [...] é necessário envolver o processo de formulação e implementação de políticas públicas e o fortalecimento dos movimentos sociais (Ibidem, p.16)

c) Educação do consumidor Os PCNs assinalam que a escola não está à parte da dinâmica do trabalho e do consumo existente em nossa sociedade, sendo o espaço escolar influenciado e influenciador nestas relações. Por esta razão, se faz necessário o envolvimento da escola com este tema, visto que ele já faz parte de seu cotidiano. São essas reflexões que justificam e delineiam os propósitos de uma educação do consumidor: propiciar aos alunos o desenvolvimento de capacidades que lhe permitam compreender sua condição de consumidor, com os conhecimentos necessários para construir critérios de discernimento, atuar de forma crítica, perceber a importância da organização, solidariedade e cooperação para fazer valer seus direitos e assumir atitudes responsáveis em relação a si próprios e à sociedade (Ibidem, p.354).

Segundo os autores, os cidadãos “ainda desconhecem sua força como consumidores, sua condição de sujeito nas relações de consumo, seus direitos e sua

capacidade para intervir nessas relações” (Ibidem, p.353). Ainda nesta perspectiva, os autores ressaltam a importância dos alunos entenderem que a cidadania se constrói por meio de “uma série de lutas em prol da afirmação dos direitos ligados à liberdade, à participação nas decisões públicas e à igualdade de condições dignas de vida” (Ibidem, p.343). No documento Manual de Educação para o Consumo Sustentável, os autores deixam claro que, embora o cenário atual da sociedade com relação ao consumo seja preocupante, a mudança é possível. O consumo tornou-se um lugar onde é difícil ‘pensar’ por causa da sua subordinação às forças do mercado. Mas os consumidores não são necessariamente alienados e manipulados. Ao contrário, o consumidor também pode ser crítico, ‘virando o feitiço contra o feiticeiro’. O consumidor também ‘pensa’ e pode optar por ser um cidadão ético, consciente e responsável [...] Se o consumo pode nos levar a um desinteresse pelos problemas coletivos, pode nos levar também a novas formas de associação, de ação política, de lutas sociais e reivindicações de novos direitos (MEC et al, 2005, p.21)

O texto ainda aponta que a mudança não é possível se apenas o consumidor mudar sua postura: “o debate sobre os padrões e níveis de consumo precisa ser ampliado para incluir o processo de formulação e implementação de políticas públicas, criando um espaço de aliança entre os diferentes setores da sociedade” (Ibidem, p.20) Pensando a educação sobre o consumo a partir de Paulo Freire A epistemologia da educação defendida por Paulo Freire foi construída por meio de uma vasta bibliografia. No entanto, para esta reflexão, selecionamos alguns dos aspectos contidos em três obras do autor: Pedagogia do Oprimido (2005), Pedagogia da Autonomia (2002) e Conscientização (2001). Para que a libertação seja almejada, subentende-se que existam pessoas nãolivres. Nas palavras de Freire, estes são os oprimidos, “homens concretos, injustiçados e roubados. Roubados na sua palavra, por isto no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoa vendida” (FREIRE, 2005, p.40). Um dos eixos da educação libertadora é a luta contra a opressão dos “esfarrapados do mundo”. Para tanto, é necessário um trabalho de conscientização, por meio do desvelar do mundo da opressão e dos mitos que o alimentam, pois até o momento em que os oprimidos não tomem consciência das razões de seu estado de opressão, “aceitam” fatalistamente a sua exploração. Mais ainda, provavelmente assumam posições passivas, alheadas, com relação à

necessidade de sua própria luta pela conquista da liberdade e de sua afirmação no mundo. Nisto reside sua “conivência” com o regime opressor (Ibidem, p.58).

Freire estabelece uma diferença entre tomada de consciência e conscientização. A tomada de consciência é a primeira aproximação do homem e da mulher diante da realidade, aproximação espontânea e, portanto, ingênua (não crítica). A conscientização, por sua vez, é “o desenvolvimento crítico da tomada de consciência [...] no qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma postura epistemológica” (FREIRE, 2001, p.30). Importante destacar que este processo é contínuo, já que “considerar a nova realidade como algo que não possa ser tocado representa uma atitude tão ingênua e reacionária como afirmar que a antiga realidade é intocável” (Ibidem, p.31). Outro aspecto que merece destaque acerca do conceito de conscientização é sua relação com a utopia, entendida não como o irrealizável, mas sim como o inédito viável (FREIRE, 2005, p.124). Quanto mais conscientizados nos tornamos, mais capacitados estamos para ser anunciadores e denunciadores, graças ao compromisso de transformação que assumimos. Mas esta posição deve ser permanente [...] a partir do momento em que chegamos à conscientização do projeto, se deixarmos de se utópicos nos burocratizamos (FREIRE, 2001, p.33)

Para Freire, “a pedagogia do oprimido [...] é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação” (Freire, 2005, p.45). A grande diferença dela está na participação ativa dos oprimidos no seu processo de libertação. Em outras palavras, ela tem que “ser forjada com ele e não para ele” (Ibidem, p.34). Por este motivo, não é possível “depositar” no oprimido a crença de sua liberdade, pois esta é a tática dos opressores. O diálogo é a ferramenta utilizada pela liderança revolucionária para conscientizar o oprimido da necessidade da luta. Esse é o “caráter pedagógico da revolução” (Ibidem, p.154). Freire revela com exatidão o que motiva os opressores e “quanto mais controlam os oprimidos, mais os transformam em “coisa”, em algo que é como se fosse inanimado” (Ibidem, p.52). Para os opressores, o que vale é ter mais e cada vez mais, à custa, inclusive, do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter e ter como classe que tem [...] se ter é condição para ser, esta é uma condição necessária a todos os homens [...] Ter mais não é um privilégio desumanizante e inautêntico dos demais e de si mesmo, mas um direito intocável. Direito que

“conquistaram com seu esforço [...] Se os outros [...] não têm, é porque são incapazes e preguiçosos [...] (Ibidem, p. 51-52).

Assim, passam a vigiar os oprimidos continuamente, pois são vistos como inimigos potenciais. Por outro lado, os oprimidos, em dado momento de sua existência, podem sentir-se atraídos pelo opressor, pelos seus padrões de vida. “Na sua alienação, querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo” (Ibidem, p.33). Diante deste quadro, Freire afirma: “e aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores” (Ibidem, p.33). Para isso, não deve haver simplesmente uma inversão de papéis em que o oprimido se transforma em opressor, mais precisamente “patrões de novos empregados” (Ibidem, p.36). Conforme assinalamos, o papel daqueles que lutam por uma educação libertadora é promover a conscientização. Para que esta seja possível, a escola e os educadores devem adotar uma postura diferente daquela que hoje vislumbramos. Para que formemos seres críticos, não é mais possível “treinar o educando no desempenho de destrezas” (FREIRE, 2002, p. 13). Eis a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los (FREIRE, 2005, p.66). Esta educação atende a necessidade dos opressores, pois em vez de estimular a criticidade, promove a ingenuidade, garantindo o status quo. Fortemente desumanizadora, a educação bancária comandada pelos opressores forja os oprimidos, conforme assinala o autor: Para isto se servem da concepção e da prática “bancárias” da educação, a que juntam toda uma ação social de caráter paternalista, em que os oprimidos recebem o nome simpático de “assistidos”. [...] Os oprimidos, como casos individuais, são patologia da sociedade sã, que precisa, por isto mesmo, ajustá-lo a ela, mudando-lhe a mentalidade de homens ineptos e preguiçosos (Ibidem, p.69).

O primeiro passo para a superação da educação bancária é “a exigência da superação da contradição educador-educandos. Sem esta, não é possível a relação dialógica [...] Agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens de educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (Ibidem, p.7879). Neste processo de conscientização por meio de uma educação libertadora, é necessário reconhecer a condição do homem como seres históricos e a sua historicidade. “Dessa forma, aprofundando a tomada de consciência da situação, os homens se

“apropriam” dela como realidade histórica, por isto mesmo, capaz de ser transformada por eles” (Ibidem, p.85). A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou virar “quase natural”. [...] Do ponto de vista de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o educando a esta realidade que não pode ser mudada. O que se precisa, por isso mesmo, é o treino técnico indispensável à adaptação do educando, à sua sobrevivência (FREIRE, 2002, p.21-22).

Como a educação é essencialmente política, o educador também não pode zelar por uma pseudo-neutralidade de sua posição. Freire é incisivo ao afirmar que “para que a educação fosse neutra era preciso que não houvesse discordância com relação aos modos de vida individual e social, com relação ao estilo político a ser posto em prática, aos valores a serem encarnados” (FREIRE, 2002, p.124). Freire assinala que o diálogo é fundamental para a efetiva libertação dos homens, porém não o desvincula da ação. Este justifica que, a palavra inautência, descolada da ação, torna-se mero verbalismo. Por outro lado, a ação pela ação, descolada da reflexão, torna-se ativismo. Por isso, ele denomina que ambas, juntas, formam a “práxis, que implica a ação e reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 2005, p.77). Este legítimo diálogo se inicia da composição dos conteúdos programáticos, elaborados em conjunto. Este processo permite “inserir os homens numa forma crítica de pensarem seu mundo” (Ibidem, p.112), promovendo a conscientização. Assim, “a superação não se faz no ato de “consumir ideias” mas no de produzi-las e de transformá-las na ação na comunicação” (Ibidem, p.117). Conclusão Neste artigo, centramos nossa reflexão sobre o tema do consumo na obra de Freire e que, transpostas ao tema do qual tratamos neste estudo, nos leva a considerar como efetiva uma formação crítica sobre o consumo que tenha como propósito a superação da realidade atual. Assim sendo, as propostas que se limitam a instrumentalizar os educandos para sua inserção na sociedade de consumo ou que tratem apenas de remediar efeitos, e não as causas da atual configuração da nossa sociedade, não seriam condizentes com a perspectiva freiriana de educação libertadora.

A partir da leitura crítica destes documentos publicados pelo MEC, foi possível identificar avanços e retrocessos nos objetivos e propósitos destes materiais, especialmente quando comparamos o primeiro com o segundo. Nos PCNs, notamos certo avanço principalmente nos objetivos declarados para o Ensino Fundamental, que nos sugere a busca de uma formação para o educando visando uma postura crítica diante das relações desiguais de consumo, da discriminação, do apelo ao consumismo e de seus impactos na sociedade. Ainda que a proposta dos PCNs seja aparentemente mais abrangente que a proposta do Manual de Educação para o Consumo Sustentável, notamos que as contextualizações sócio-históricas apresentadas neste último são mais críticas, portanto, mais condizentes com uma educação que se proponha a superar a sociedade de consumo. A abrangência dada ao tema da sustentabilidade, dando o mesmo peso para aspecto social e o aspecto ambiental da questão demonstra criticidade com relação às desigualdades produzidas na sociedade de consumo. Da mesma forma, o esclarecimento de que a superação desta realidade envolve as instituições e as políticas públicas (inclusive em nível global) e não apenas os indivíduos isoladamente é um grande avanço na abordagem deste tema. Quando afirmamos a necessidade de entender as causas dos problemas que hoje enfrentamos diante desta relação desumanizadora do consumo, novamente observamos certa insuficiência nos PCNs, já que enfoca mais os efeitos sociais do consumo A força do coletivo é entendida nos PCNs no sentido de garantir os direitos já adquiridos por meio da legislação, não sendo explicitada a possibilidade de, por meio da união de forças, ser possível alterar radicalmente a forma como atualmente somos lançados nos desafios do consumo. Assim, a força do coletivo é reduzida à luta pela reafirmação dos direitos que regulamentam as relações atuais de consumo, sem estímulo desta enquanto potência para a alteração das relações de apropriação e distribuição de bens e serviços em nossa sociedade, ou seja, o modo de produção capitalista, “fundado sobre a desigualdade social e pela exploração” (BRASIL, 1998, p.353). Freire afirma que “a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos [é de] libertar-se a si e aos opressores” (FREIRE, 2005, p.36). A sociedade mais igualitária em termos econômicos, ainda assim, seria oprimida e alienada. Este é um aspecto que nenhum dos documentos aborda. Apesar dos avanços, em ambos os documentos identificamos uma abordagem que propõe mais a correção de alguns inconvenientes produzidos pela sociedade de

consumo do que sua efetiva superação. Voltar nossos olhos para as injustiças e vincular as discussões da escola para o que efetivamente ocorre na sociedade é o primeiro passo. Porém, para que a educação seja libertadora, ela deve buscar trazer à tona as raízes dos problemas sociais, promovendo a auto-reflexão crítica. Mais ainda, segundo Freire, é necessário reconhecer que o mundo não é, o mundo está sendo. Não basta nos indignamos com as atuais relações de consumo, uma vez que somos capazes, enquanto sujeitos históricos, de transformar as relações de consumo, humanizando-as. É preciso despertar no educando a consciência de que a forma como nos relacionamos com a produção de bens são escolhas humanas passíveis de mudanças profundas, por meio da ação. Em outras palavras, esta relação não é uma determinação social. Para o autor, palavra e ação que não caminham juntas, tornam-se verbalismo e ativismo. A práxis implica “ação e reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 2005, p.77). Bibliografia BARBOSA, Livia. Sociedade de Consumo. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. ________; CAMPBELL, Colin (Org). Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. (2. reimp.) BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quatro ciclos: apresentação dos temas transversais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 1998. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental; temas transversais –Trabalho e Consumo. v.10.7. Brasília: MEC/SEF, 1998b. FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Centauro, 2001. ________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ________. Pedagogia do oprimido. 40. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. LIMA, Diana Nogueira de Oliveira. Consumo: uma perspectiva antropológica. Petrópolis, Rj : Vozes, 2010 . Col. Conceitos Fundamentais. MEC; CONSUMERS INTERNATIONAL; MMA, IDEC. Consumo sustentável: manual de educação. Brasília, 2005. Disponível em: . Último acesso em 30 julho 2010.

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