Artigo: COMO PENSAR A EDUCAÇÃO? (HOMEM: A MEDIDA DE TODAS AS COISAS)

July 24, 2017 | Autor: Diogo Santos | Categoria: Filosofia da Educação, Mito, Filosofia Antiga Grega e Romana, Filosofia
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COMO PENSAR A EDUCAÇÃO? (HOMEM: A MEDIDA DE TODAS AS COISAS)

Diogo Santos (Professor Adjunto, UERJ/ Faculdade de Educação) [email protected]

Resumo: Este trabalho pretende pensar a educação no ocidente, percebendo como seus fundamentos a tríade: medida, culpa e expiação. De que maneira este modelo é implementado? Como somos levados a crer na educação normatizadora e anuladora do ocidente? Haveria uma outra possibilidade? Como os antigos gregos, de quem acreditamos retirar nosso modelo, pensavam a educação? Tentaremos, pelas vias do pensamento, percorrer aquilo que nos assinala a questão: “o que é educação”, que possibilidades nos acenam e nos abrem este percurso? Afora as apostilas, afora os modelos, afora os desmandos do poder, como podemos pensar com frescor e vitalidade a questão da educação, que é em si a pergunta: “o que é isto: o homem”?

Palavras-chave: Filosofia da educação, criação, pensamento

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O que é filosofia? Ao iniciarmos um percurso que tente iniciar uma tarefa de pensar uma disciplina, uma atividade humana ou uma ciência de maneira filosófica, o fazemos buscando suas origens históricas junto à filosofia, buscamos conceitos oriundos da filosofia a serem aplicados naquilo que estudamos, buscamos autores filosóficos para iniciar um diálogo, ou simplesmente coletamos opiniões nestes mesmos autores; no entanto a pergunta pelo o que é a filosofia e o que é a tarefa da filosofia continuam silenciadas. E assim iniciamos um percurso que tenta pensar a educação a partir da filosofia, ou uma possível e improvável área do saber intitulada “Filosofia da Educação”. Seria possível pensar a educação filosoficamente? Não seria a educação um longo processo doutrinatório e aniquilador da vontade e da memória daqueles que são educados? Não seria a educação a anulação de eu próprio? Não seria a educação a preparação de trabalhadores expropriados de si? Não seria a educação o processo de consolidação de uma ideologia que visa a permanência do mesmo, a permanência do processo homogeneizante do globo? Não seria a educação o processo que nos faz crer naquilo que nos anula, que nos faz acreditar que aquilo que nos aniquila nos salvará, que nos faz ansiar por aquilo que nos oprime, que nos faz sentir culpados por desejar, criar, errar, percorrer, viver? Como pensar a educação? Seria possível pensar a educação, isto que nos assinala, que nos impõe o processo de anulação do mundo, dos homens, do ser? Como pensar a educação filosoficamente? Não seria a educação aquilo que nos impõe o não pensamento, aquilo que pune o pensar, que extravia os pensadores, que persegue os que não se submetem? Como pensar a educação? Não deveríamos enquanto pensadores, enquanto homens, lutar pelo seu fim? Não deveríamos iniciar um combate pela sua destruição, não deveríamos perseguir seus defensores? Não deveríamos impossibilitar sua eficácia? Não seria debalde qualquer esforço que vise 2

inviabilizar a educação? Não crêem os ocidentais naquilo que os aniquila? Não são os ocidentais os cultuadores da morte em vida? Como pensar a educação? Seria a educação algo distinto disto que nos determina, limita e elimina? Como pensar a educação filosoficamente? O que é filosofia?

Pensemos portanto o que é educação! Pensemos sem prestarmos contas a organizações de poder, a instituições disciplinadoras, a burocratas, a administradores ou aos arautos do poder! Pensemos como errantes, erremos e errando, talvez, errando e só errando, poderemos talvez nos perder. Só há pensamento no erro, na errância da paixão, cuidadosa e indisciplinada, calma e imoral, atenta e vagarosa. Tentemos errar e assim pensar: o que seria a educação? Isto que não se dá quando na determinação anuladora, isto que chamamos ocidente, platonismo ou aristotelismo, quando na determinação. Pensemos e ouçamos mais uma vez as palavras de Jaeger:

Homero é o representante da cultura grega primitiva. Já apreciamos o seu valor como “fonte” do nosso conhecimento histórico da sociedade grega mais antiga. Mas a sua descrição imortal do mundo cavaleiresco é algo mais do que um reflexo involuntário da realidade na arte. Este mundo de grandes tradições e exigências é a esfera mais elevada da vida, na qual a poesia homérica triunfou e da qual se nutriu. O Pathos do sublime destino heróico do homem lutador é o sopro espiritual da Ilíada. O ethos da cultura e da moral aristocrática encontra na Odisséia o poema da sua vida. A sociedade que produziu aquela forma de vida desapareceu sem deixar qualquer testemunho para o conhecimento histórico, mas a sua representação ideal, incorporada na poesia homérica, converteu-se no fundamento vivo de toda a cultura helênica. Hölderlin disse: O que permanece é obra dos poetas. Este verso exprime a lei fundamental da história da educação helênica. (JAEGER, Paidéia, 2003, p. 66)

A lei fundamental da história da educação helênica: O que permanece é obra dos poetas. O que permanece, o que faz vigorar a memória: a poesia. O que faz educar no 3

sentido não-ocidentalizante, no sentido não-homogeneizante, no sentido primeiro, originário, do vigor potente do obrar humano: a poesia. O gesto poético nos educa, ou seja, o gesto poético não nos educa, nada nos educa. O gesto poético nos educa, ou seja, não há educação. O gesto poético: o que permanece, apenas isto permanece, apenas isto cria. Como educar, se isto se dá somente no gestualizar do poético? Será que perguntar pela educação, esta palavra tão pesada, tão dura, tão forte, tão angustiante, não seria perguntar pelo homem? Será que a educação técnica, pela técnica, para a técnica, já não expropriou o homem do próprio homem, no processo de humanização do real? Mas não seria o real aquilo que é percebido pelo homem? Não seria o real aquilo que é julgado como real pelo homem? Não haveria o irreal, o surreal? Não é o real aquilo que está ao alcance do homem, aquilo que deve ser dominado, estudado, analisado, medido pelo homem? Não seria o princípio métrico aquilo que fundamenta o desenvolvimento humano, aquilo que confere liberdade ao pensamento? O sofista Protágoras já nos disse que:

O homem é a medida de todas as coisas. πάντων χρημάτων μέτρον ἐστὶν ἄνθρωπος.

Que diz o sofista da medida de todas as coisas? Que diz esta condenação de ser a medida de todas as coisas? Ao escutarmos o dito do sofista, escutamos como uma fatal profecia: “o homem mede o real, pois isto é o humano, o real deve se submeter à medida que é e somente é humana”. Escutamos algo que acusaria uma terrível maldição carregada pelo homem, o fardo de dever impor sua medida ao todo. Mas o que é a medida de todas as coisas? O que é a medida? O metro. Só o homem mede, só o homem ajuíza e julga o real. As coisas (χρηµάτων) diz em grego não do real, do todo, mas 4

simplesmente da palavra coisa, de algo “em estreito relacionamento com o homem” (Guthrie, Os Sofistas, p. 180). Assim devemos lembrar que coisas não diz do real, nem de uma totalidade, mas das coisas que estão juntas ao homem, e assim ele as mensura, as compara com um metro, julgando-as, em boas ou ruins, altas ou baixas, longas ou curtas, isso é medir, e somente o homem mede, e somente pode medir aquilo que está como coisa a seu dispor. No intuito assim de medir todas as possibilidades do real, o homem submete o todo a seu dispor. Submete os animais, a terra e o sol, o sonho, a verdade e as paixões, a vida, a morte e o tempo, o espaço, os percursos e as viagens. Submete o real a uma medida do real. Pela educação somos assim reduzidos à medida do real, reduz-se nossos empenhos à medida do que é empenhado.

πάντων χρημάτων μέτρον ἐστὶν ἄνθρωπος.

A medida de todas as coisas é o homem.

Mas o homem não é o real e a medida não é o real. Todas as coisas à disposição do homem não totalizam o real. Assim como o medir não reduz as possibilidades oferecidas nem pelo real, nem pelas coisas, nem pelo homem. Assim continua Protágoras:

πάντων χρημάτων μέτρον ἐστὶν ἄνθρωπος, τῶν μὲν ὄντων ὡς ἔστιν, τῶν δὲ οὐκ ὄντων ὡς οὐκ ἔστιν.

A medida de todas as coisas é o homem, tanto dos seres que são ao modo do ser, como dos que não são ao modo do não ser.

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A questão assinala assim ao modo do ser. O homem traz à sua medida o ser das coisas que são e das que não são. Ou seja, a medida não dá conta do movimento do ser, a medida mede e medir é comparar com o metro. Além da medida, e na medida, há o ser em movimento, pois todo medir consiste-se na impossível tentativa de paralisar o movimento, ou seja, de fazer o ser não ser e do não ser ser, sem tempo, atemporalmente.

Ser e não ser no movimento de um sendo anunciam o ser de tudo que é e simultaneamente não é. Ser é não ser. Apenas é aquilo que igualmente e na medida do ser não é. A anulação da positividade carrega consigo a possibilidade de haver a positividade, e assim possibilita a abertura do movimento. Movimento é em seu movimento inércia. Deus é em sua divindade não Deus. O espaço abre o vazio àqueles que o percorre. O som inaugura o silêncio e este inaugura o som. A mãe ao dar à luz seu filho o dá igualmente à morte. Apenas o Deus destruidor poderia criar o mundo. Apenas o Deus perverso poderia criar a felicidade. Ser e não ser no movimento de um sendo anunciam o ser de tudo que é e simultaneamente não é. Ser é não ser.

πάντων χρημάτων μέτρον ἐστὶν ἄνθρωπος.

A medida de todas as coisas é o homem.

Só o homem é capaz de conferir medida, medir é comprar com o metro, já o dissemos, mas ao comparar o todo ou reduzir o todo à medida, a medida do mundo não se torna o metro, o espaço, mas o comparar, o mesurar. A medida está no que mensura. A ação do ocidental é a ação da mensuração. 6

Como medir na medida do ser e do não ser? Como educar percebendo o movimento do homem e de seu tempo, que é infinito? Como educar o real? Como fazer o real responder a nossos anseios? Como reduzir o tempo ao julgamento do tempo? Como perceber as possibilidades do real e julgá-lo em sua infinitude? O que seria o homem, se tudo se dá no movimento, como apreender a unidade do indivíduo se tudo se dá sempre em constante mudança? Como educar este indivíduo se ele não é uma unidade, mas o todo, em relação com o todo, sendo afetado pelo todo e afetando o todo? Lembremos, então, agora de Leibniz que em seu Discurso de Metafísica nos diz que:

Por isso, quando se considera bem a conexão entre as coisas, pode dizer-se que, na alma de Alexandre, há, desde sempre, restos de tudo o que lhe aconteceu e sinais de tudo o que lhe acontecerá, e até mesmo vestígios de tudo o que se passa no universo. (LEIBNIZ, Discurso de Metafísica, p. 25)

Se a unidade espacial está em relação com cada unidade no espaço, direta ou indiretamente, assim se dá também com cada unidade temporal, ou seja, com cada unidade que por estar presente no espaçotempo, fecunda o espaçotempo com sua presença e igualmente com sua ausência. Cada unidade por estar em relação com todo, reúne o todo em cada gesto, em cada gesto assinala os restos do passado e os sinais do futuro. Cada palavra guarda a memória de tudo que foi dito e cada dizer abre as possibilidades de tudo que se dirá. Cada rosto guarda em si o rosto de cada homem, dos homens que percorreram e dos que percorrerão esta terra. Como educar o um, se este um é o todo, está em relação com o todo? Perguntar pelo um, é perguntar pelo universo. Chamar o um é chamar o todo, como, perguntamos, é possível educar o um? Apenas educando, conduzindo o todo, sendo este todo o universo, o todo que é o um. 7

Saber é assim, antes de tudo esquecer. Permitir que o esquecimento se instaure como perda, a perda que fere, que retira, na proximidade daquilo que subjaz oculto, mas presente, insistente, imanente. Esquecer é antes de tudo saber, saber como aquilo que é mais próprio. A perda é antes de tudo uma forte posse, talvez a mais segura posse, pois aquilo que está perdido, ausente, esquecido é aquilo que se dá em presença com mais força, mais dureza, mais afeto. Esquecemos porque sabemos, esquecemos porque esquecer é saber, um forte saber.

Nós, ocidentais, creditamos ao esquecimento uma negatividade, tentamos evitar o esquecimento, tentamos não esquecer, desenvolvemos técnicas e medicamentos que tentam afastar a sombra do esquecimento, no entanto, mesmo assim, mesmo contrariando todo esforço, o esquecimento se faz presente, o esquecimento deve imperativamente se fazer como forte presença.

Punimos com severidade aqueles que se esquecem de cumprir com suas tarefas. Realizamos avaliações que medem a capacidade mnemônica de toda uma turma, de toda uma instituição ou até mesmo de todos aqueles que pretendem cursar uma faculdade ou terminar um período de estudo. Com severidade e interdições o esquecimento é punido no ocidente, mas este não pergunta: o que é esquecer? Por que esquecer? Se esquecer é fracassar, o que é fracassar? Por que sentimos que o fracasso deve ser punido? Por que percebemos igualmente a indistinção, a união inequívoca entre fracasso e punição, sendo esta o evento único decorrente do insucesso, a austera derrota que derruba os que não cumprem, que sepulta os que não medem com exatidão, que aniquila os errantes e 8

aqueles que se tentam distintos? Por que percebemos o esquecimento como derrota, a morte como derrota, o fracasso como derrota?

Mas em si, como evento em si, o que seria a derrota? Aquilo que justifica a sanção ou a própria a sanção em si. Se sentimos a derrota como o peso do que não deveria ser realizado, sentimos igualmente que independente da ação ou da vontade do derrotado, ela precisa ser expiada. A derrota é sempre decorrente de uma culpa, pois todo ato, toda ação, toda vontade e todo pensamento são causas da culpa e necessitam de expiação, na medida em que todo ato, toda ação, toda vontade e todo pensamento são desvios de um sistema que não prevê e não pode perceber aquilo que transcende o ato normativo, burocrático, ritualizado.

Assim, a derrota é a única consequência possível para a ação desviante – ação. Se a derrota é algo necessário, a expiação se torna algo desejável, a sanção, uma obrigação de toda sociedade e, principalmente, do perpetrador – o indivíduo. Como avaliação, uma medida não seria possível sem a inculcação dos conceitos cristãos de derrota, culpa, expiação, sanção, purificação e salvação.

"Eis o Cordeiro de Deus, Aquele que tira o pecado do mundo" (João, 1:29).

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O cristianismo, a grande ideologia do controle das massas, institui a figura do intermediário entre verdade e o pecador. Se a verdade só pode ser desvelada através da submissão ao intermediário, este intermediário conduzirá ao correto caminho através da imposição da culpa e da aceitação irrestrita da sanção e da expiação – obrigatoriedades da purificação.

Mas por que retirar o pecado do mundo? Um contra-senso para a própria estrutura do cristianismo, já que o mundo e a vida são frutos do pecado. Retirar o pecado do mundo é retirar o mundo do próprio mundo. O cristianismo institui nas instituições ocidentais a promessa de uma salvação que nunca advirá, já que a salvação consiste na impossível perda da essência mesma do que é e faz o mesmo. Como salvarse de si? Como refugiar-se de si? Com esconder-se de si? Daí que toda instituição ocidental se fundamentará numa promessa de salvação e expiação catártica. Sofremos com a escola, sofremos com a cadeia, com concursos, com o trabalho, sempre a espera do que advirá e isso que advirá nos salvará de nossa própria indigência. Acreditamos nas instituições, defendemos aquele nos martiriza, pois somos conduzidos como numa missa – uma ritualização vazia, moralizadora e estática. Eis o cordeiro de Deus, eis nosso carrasco, o flagelo do ocidente. Como cordeiro difunde a fraqueza, incutindo a culpa. Por isso o pior dos pecados é o esquecimento. Aquele que esquece não é determinado pela culpa, aquele que julga, avalia, censura, pontua, aprova ou reprova não pode esquecer, pois este é o cordeiro de Deus, o que purifica, o que educa, o que encaminha para a salvação – mas somente os escolhidos, os fracos, os que se submetem, os que suplicam dor e agradecem a mão que pune.

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Assim somos satisfeitos pela derrotas e inebriados pela dor constringente. Mas nesse culto niilista da negação de si mesmo, acreditamos que o vencedor é aquele que derrota, aquele que recebe o prêmio ao final do percurso burocrático, no entanto a sanção não reside na avaliação final, mas no próprio percurso. A expiação é dor de percorrer. No concurso todos são reprovados, pois aceitaram, foram forçados a aceitar a investidura do que avalia. O avaliador derrota a todos, pune a todos, indistintamente, pois o avaliador aponta a si mesmo como o cordeiro de Deus.

A instauração do erro como desvio a ser punido e corrigido, gera o conceito de pecado. Se pecar é errar, pecar é viver, sendo o maior pecador aquele que busca a si mesmo, aquele que se mostra como indivíduo. Se errar é buscar a diferença, errar é viver; a individualidade, algo que precisa imperativamente ser suprimida desde o nascimento, eis o conceito de pecado original que não se restringe a uma determinada religião, mas é o alicerce de toda e qualquer instituição de controle. Somos culpabilizados por nascer, por desejar, por ansiar, por esquecer, por lembrar, por se perder ou por se adequar e assim, confiamos na burocracia, no regaço das leis, normas e protocolos. Acreditamos na fé, numa fé própria que pode nos salvar, mas não seria a fé, o encarceramento na vontade de outro? A fé nunca é própria, a fé pertence sempre a outrem, uma corda que um outro, que não vemos, que não conhecemos, nos joga, para que temerosos de nos perder, agarramos. A fé não é um milagre, não é um paradoxo, nem algo sagrado, nem tão pouco divino, a fé é anulação pela vontade de um outro. A fé institui a supressão pela culpa, fé é cessação. O homem antigo não tinha fé em seus deuses, crer ou descrer não é uma questão para ele, pois os antigos deuses não eram concepções abstratas. O homem moderno igualmente não tem fé em seu Deus, a fé do homem moderno é a fé na instituição que o instrumentaliza. 11

Seja qual for o conceito e a fé instituída pelas instituições ocidentais eles terão um valor em si. Por que são elevados, benéficos, excelentes, por que são valorosos por si: a democracia, a religião, o amor, a educação, a cidadania, a ordem, a paz, a não violência? Por que somos levados a crer que o democrático é mais elevado, melhor que o não-democrático? Por que aquilo que assinala o ergue-se com o furor democrático precisa ser reverenciado, defendido? Quem determinou o valor do que é dito democrático? Um outro que não vemos, não conhecemos. Que valor a democracia carrega em si? Não há algo que carrega em si um valor, o valor é sempre uma atribuição, determinada por uma estrutura burocrática, invisível, que não pode ser manipulada, alterada, e nunca recua, avança, impondo valores a tudo, através do estabelecimento de normais, leis e protocolos de ação. Kierkegaard nos diz em seu Conceito de Angústia que “No instante que o pecado é posto, a temporalidade passa a ser pecaminosidade” (p. 218) e assim o real é suprimido pelo valor, a vida pela medida, a ação pela norma, a paixão pelas regras, o homem pelo cidadão, os deuses pelo Deus, apóstolo da nulificação absoluta.

Por que, então, pensar a educação? A sucção de tudo que é único, forte e distante? Por que, então, pensar a educação e não lutar contra ela? Por que avaliar e ser assim um arauto dos sacerdotes do pecado, santos da inculcação da culpa e pastores da proliferação da fé?

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Se acreditamos que é possível educar é porque acreditamos que educar é avaliar, medir, aprovar ou reprovar. Se julgamos o um, podemos julgar o real, podemos reduzir o todo à proximidade, o que é distante, classifica-se, assim, como irreal, incorreto.

Não são a vida, a memória, as paixões e a história do homem vestígios de tudo o que se passa no universo, não são as ações, as empresas, os percursos, e os empenhos, restos do que aconteceu e sinais de tudo que acontecerá, não é a face de cada homem o espelho de todos os homens, tanto daqueles advieram como daqueles advirão? Lidar com o um, travar relações com o um não é lidar com o todo? Tentar educar o um não seria tentar educar o todo, conduzir, ordenar o todo?

Educar é assim medir, medir o humano. Educar é matar o movimento. Educar é fazer o outro não perceber o real e reduzi-lo, assim, à mensuração. Homero educou os gregos, ou seja, Homero não educou os gregos. Na dupla cefalia dos homens, educar e não educar anulam-se na possibilidade daquilo que cria enquanto gesto criador. Toda educação carrega consigo sua própria anulação. A educação ocidental arruína a si própria, pois em sua voracidade afirmativa prescreve o positivo, quer o positivo, permite apenas o positivo. Tudo aquilo que é criador aniquila a si próprio, palavras aladas e assim, em sua duplicidade, permanecem, o que permanece é obra dos poetas, permanece apenas porque não permanece, como palavra alada que voa pra não voar, vive para não viver, vigora como ser e como não ser. Na vidamorte que é a vida, na memóriaesquecimento que é a memória.

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