As autobiografias de Marjane Satrapi: memória e representatividade em quadrinhos e animação

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CENTRO UNIVERSITÁRIO SENAC SENAC LAPA SCIPIÃO

ARIEL RODRIGUES DA SILVA

As autobiografias de Marjane Satrapi: memória e representatividade em quadrinhos e animação

SÃO PAULO 2015

ARIEL RODRIGUES DA SILVA

As autobiografias de Marjane Satrapi: memória e representatividade em quadrinhos e animação Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Centro Universitário SENAC – SENAC Lapa Scipião, para a obtenção do título de Especialista em Animação. Orientadora Profª Ana Lúcia Reboledo Sanches

SÃO PAULO 2015

Elaborada pelo sistema de geração automática de ficha catalográfica do Centro Universitário Senac São Paulo com dados fornecidos pelo autor(a). Silva, Ariel Rodrigues da As autobiografias de Marjane Satrapi: memória e representatividade em quadrinhos e animação / Ariel Rodrigues da Silva - São Paulo (SP), 2015. 50 f.: il. color. Orientador(a): Ana Lúcia Reboledo Sanches Trabalho de Conclusão de Curso (Pós-Graduação em Animação) Centro Universitário Senac, São Paulo, 2015. 1. Marjane Satrapi 2. Persépolis 3. Autobiografia 4. Quadrinhos 5. Animação I. Sanches, Ana Lúcia Reboledo (Orient.) II. Título

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Para mamãe, papai e meu irmão Marlon

AGRADECIMENTOS A minha família pelo apoio e a torcida. A minha orientadora, Ana Lúcia, pela sabedoria e paciência. A toda da equipe do espetáculo Fortes Batidas pelo companheirismo e os momentos felizes de 2015. E a Marjane Satrapi por me apresentar os quadrinhos muito além dos super-heróis.

E foi assim que, vestida de Fábula, a Verdade conseguiu entrar no grande palácio do poderoso Califa de Bagdá As Mil e Uma Noites

RESUMO Este trabalho tem como objetivo analisar a narrativa autobiográfica de Marjane Satrapi, Persépolis, dentro do contexto histórico das autobiografias literárias, sequenciais e fílmicas. Fazendo um quadro histórico do Irã representado na obra, passando pela representação que o Ocidente faz do Oriente Médio, o protagonismo feminino nos quadrinhos e as questões de adaptação dos quadrinhos para a animação. Palavras-chave: 1. Marjane Satrapi, 2. Persépolis, 3. Autobiografia, 4. Qaudrinhos, 5. Animação

ABSTRACT This work has the objective to analyze the narrative autobiographical story of Marjane Satrapi, Persepolis, within the historical context of literary, movie and graphic autobiographies. Doing Iran's historical picture represented in the work, through a representation that the west makes for the middle east, women's protagonism in the comics and the comic book adaption issues for the animation.

Keywords: 1. Marjane Satrapi, 2. Persepolis, 3. Autobiography, 4. Comics, 5. Animation

SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO

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2. A AUTOBIOGRAFIA COMO GÊNERO DE FICÇÃO

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2.1 A autobiografia gráfica

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2.2 A autobiografia animada

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3. A HISTORIOGRAFIA DA FICÇÃO

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3.1 O Oriente inventado

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3.2 Questões femininas

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4. ENTRE A NARRATIVA GRÁFICA E A NARRATIVA FÍLMICA

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4.1 A tradução

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4.2 Cinema de animação adulta para todas as idades

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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LISTA DE FIGURAS Figura 1 – O Xá Reza, sua esposa ao lado do presidente do Brasil, Marechal Castelo Branco, na revista Fatos & Fotos em 1965 Figura 2 – Mossadegh na capa da revista Time em 1951 Figura 3 – Khomeini, “o homem do ano”, na capa da revista Time em 1980 Figura 4 – Cena do filme Aladdin Figura 5 – Cena do filme Aladdin Figura 6 – Cena do filme O Gato do Rabino Figura 7 – Requadros de Persépolis Figura 8 – Requadros de Persépolis Figura 9 – Requadros de Persépolis Figura 10 – Requadros de Persépolis Figura 11 – Requadros de Persépolis Figura 12 – Animatic à esquerda e frames do filme à direita Figura 13 – Cena do filme Persépolis Figura 14 – Cena do filme Persépolis Figura 15 – Cena do filme Persépolis Figura 16 – Cena do filme Persépolis

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1. INTRODUÇÃO Este corpus apresenta um estudo a partir da obra Persépolis, de Marjane Satrapi, uma autobiografia em quadrinhos que depois ganhou uma adaptação cinematográfica em animação com direção da própria autora. Para realizar este estudo é necessário fazer um breve panorama histórico das autobiografias, o que incluí a literatura, os quadrinhos e o cinema. No caso do cinema é necessário fazer uma cisão entre o cinema de captação e o de animação, a distinção entre ambos parte do modo de construção da imagem em movimento. Enquanto no primeiro se constrói “um movimento a partir da captação de um movimento que ocorre por força própria, no qual a câmera, num processo mecânico, é responsável pela síntese de um movimento não analisado”. 1 Na animação o movimento se constrói pela “manipulação quadro-a-quadro dos elementos a serem movimentados a partir de uma síntese de um movimento previamente analisado, ou em processo de análise”.2 Cada um dos campos da autobiografia tem o seu tempo de maturação na história, mas no caso dos quadrinhos e do cinema essa maturação acontece em intervalos de tempo cada vez menores, ou seja, enquanto a evolução da literatura acontece em séculos, nos quadrinhos e no cinema essa progressão se dá em décadas. Will Eisner complementa: Na segunda metade do século XX houve uma mudança na definição do que é literatura. A proliferação do uso de imagens como um fator de comunicação foi intensificada pelo crescimento de uma tecnologia que exigia cada vez menos a habilidade de se ler um texto. (EISNER, 2013, p. 7)

Após apresentar a linha do tempo autobiográfica, também se faz necessário o mesmo esforço dentro do livro, ou seja, conferir o sincronismo histórico que Persépolis oferece ao leitor ou ao espectador, no caso da animação. O que inclui 1

GRIZANTE, Daniel. Animação computadorizada: a imagem em movimento expandida nos meios de comunicação digitais. 2007. 127 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica, Signo e Significação nas Mídias Digitais) Pontífice Universidade Católica. São Paulo, 2007. p. 13

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Ibid., p. 13

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questionar a representatividade do Oriente Médio pela civilização ocidental, lembrando que a narrativa se passa no Irã e o protagonismo feminino em meios marcados pela dominação masculina. Também é necessário analisar a trajetória da adaptação dos quadrinhos para a animação, processo que comumente chamamos de adaptação, mas neste trabalho usaremos o termo tradução, já que estamos trabalhando com linguagens artísticas e seus respectivos códigos, a palavra tradução descreve esse processo de maneira exata. O número de publicações autobiográficas vem aumentando nas últimas duas décadas, é possível dizer que está na moda falar do passado, e isso não se trata apenas de quantidade, mas modos de produção e publicação que não são ortodoxos como blogs, vlogs, entre outros. Além disso estamos procurando humanidade e veracidade dos acontecimentos que a rapidez da evolução tecnológica nos roubou, acompanhar a jornada do herói já não serve mais de consolo para a alma.

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2. A AUTOBIOGRAFIA COMO GÊNERO DE FICÇÃO Flávio Josefo foi um historiador judaico romano que viveu no século I e registrou in loco a destruição de Jerusalém pelas tropas do imperador romano Vespasiano. Suas obras mais importantes são A Guerra dos Judeus e Antiguidades Judaicas. Na primeira, conta desde a ascensão dos macabeus em 167 a.C. até a derrubada do segundo Templo de Jerusalém em 70 d.C. A segunda, constitui-se em narrar desde a criação de Adão e Eva até a Primeira Guerra Judaico-Romana. Porém, a obra que constituí de maior valor de contribuição para este corpus é Vida de Flávio Josefo, realizada entre 94 e 99 d.C., também conhecida por Autobiografia, que possivelmente seria um apêndice de Antiguidades Judaicas, na qual remonta sua trajetória de vida e justifica suas decisões durante a guerra contra os romanos em resposta as alegações feitas por seu inimigo político Justo de Tiberíades. 3 Embora sua autobiografia seja seu trabalho mais contraditório, depreciado e dito como mal escrito pela historiografia, ele é o primeiro que une uma narrativa pessoal com a narrativa de seu povo, o que torna ele a primeira figura notória no universo das autobiografias e o coloca em relação com o objeto de estudo deste trabalho mais a frente. Com outra linha de raciocínio Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, escreveu Confissões, 398 d.C., a partir de uma juventude seguindo o Maniqueísmo e conforme seu amadurecimento e arrependimento se converte ao Cristianismo, mas sua escrita não é muito mais moderna do que a de Josefo, dividida por numerosos e pequenos capítulos o Bispo, em linhas gerais, condena a vida mundana para elevar seu louvor a deus. A primeira autobiografia moderna vem das mãos do filósofo Jean-Jacques Rosseau, Confissões, publicada em 1782, aparece em uma sociedade muito mais complexa e fragmentada pelo pensamento Iluminista. Onde registro da história não pertencia mais a quem apenas tivesse acesso à escrita, como no caso do clero, ou, poetas e contadores de histórias que resguardavam consigo genealogias de uma sociedade, sua mitologia e tradições. Esse processo de catalogação do passado foi tomado pela imprensa que já estava consolidada na época. 3

DEGAN, Alex. Josefo Exegeta: história e memória. Revista de História, São Paulo, n. 162, p. 297-310, 1º semestre de 2010

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Rosseau escreveu sua história como um romance em prosa de forma que o eu se dispõe ao julgamento dos leitores e o autor empírico parece corresponder sua idiossincrasia de acordo com a história, e assim como Josefo utiliza seu livro para responder ataques de rivais, neste caso, o também filósofo iluminista Voltaire. A forma e o conteúdo de seu trabalho acabam virando influência no movimento artístico, político e filosófico que vem a seguir, o Romantismo. Com a formação dos estados nacionais e a queda dos regimes absolutistas, em um ambiente de conflito permanente a narração perde lugar para o romance de forma que Verena Alberti diz que “o romance, ao contrário da narração, seria o lugar do indivíduo revelar-se independente de uma sociedade que (in)forma, aconselha, difunde e resguarda a tradição” 4, ou seja, já que todos os grandes acontecimentos políticos são passados para o público pela imprensa agora o artista pode simplesmente falar de si, como Alberti reitera: […] ao lado do ser moral autônomo, signatário do contrato social, a modernidade também cria o indivíduo único e singular, o ser psicológico, que “aparece quando o social passa a ser visto como estatal, o oficial, o central, aquilo que é essencialmente exterior à dimensão interna dos indivíduos, onde o que reinaria é o amor e sentimentos semelhantes”. (ALBERTI, 1991, p.70)

As características acima viriam a descrever parte da subjetividade romântica, marcada pelo predomínio do eu e dos sentimentos do artista que eram representados por elementos da natureza em função da mulher idealizada que quando perdida causava loucura, morte ou suicídio, acompanhada também de uma nostalgia medieval. Mas veio também a critica pela forma, onde a epopeia neoclássica é substituída pelo romance em prosa e a métrica poética já não era obrigatoriedade entre os autores. O que ia contra a lógica da sociedade da época, que estava em luta pela consolidação de suas respectivas unificações na Europa e do avanço tecnológico provocado pela Primeira e Segunda Revoluções Industriais. Houve outra Autobiografia notável no mesmo período, escrita por Benjamin Franklin, em 1793, inspirada pelo pensamento iluminista. Franklin escreve um 4

ALBERTI, Verena. Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 7, 1991, p. 69

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volume formado de diversas cartas endereçadas ao filho, por volta de 1771, quando Franklin estava na Inglaterra e o filho em solo norte-americano. O livro, apesar de interrompido pela Guerra da Independência, fez sucesso, e atendendo a pedidos escreve um novo volume, dessa vez em dialogo franco com o leitor, já que o filho resolveu ficar ao lado dos ingleses. Seu trabalho, de certa forma, cria o chamado “Sonho Americano” e foi duramente criticado por Karl Marx. Em 1853 é publicado Doze Anos de Escravidão, de Solomon Northup. A história de um homem negro e livre que é sequestrado e vendido como escravo para trabalhar nas fazendas da Louisiana durante doze anos até conseguir provar sua liberdade. A obra foi bem recebida e embasou o discurso abolicionista nos anos seguintes, porém cai no esquecimento dos estudos acadêmicos sobre autobiografias e até nos estudos sobre o maior episódio de violência institucionalizada da idade moderna que foi a escravidão negra e ameríndia. Não entrou em discursos de líderes internacionais como O Diário de Anne Frank, como veremos a seguir, e nem o seu número de traduções foi tão grande. O que de alguma forma denuncia o racismo estrutural que pertence tanto a sociedade estadunidense quanto a brasileira. A obra só ganhou seu devido lugar destaque quando ganhou uma adaptação cinematográfica realizada pelo cineasta Steve McQueen em 2013. As críticas indiretas do Romantismo perderam o valor conforme a industrialização aumentava o conforto da vida urbana com o progresso de bens materiais, além da situação politicamente estável. As reformulações na sociedade aconteciam cada vez mais rápido. Surgiram novas linhas de pensamento como o Positivismo, de Augusto Comte; e o Comunismo; de Karl Marx. Charles Darwin, escreve A Origem das Espécies, e Sigmund Freud trabalha com a psicanálise. Nas artes acontece a invenção da fotografia que causa uma renovação nas artes visuais que resultará nas vanguardas. Na literatura o Romantismo dá espaço para o Realismo e o Naturalismo, que também influenciara o teatro. Com a redução da jornada de trabalho tem-se início a indústria do entretenimento ou “mercado das emoções baratas”5 com os parques de diversões e dispositivos ópticos como a lanterna mágica, a câmara escura, o fenaquistocópio e o zootroscópio, que resultariam no cinema de captação e no cinema de animação, tomando espaço dos 5

SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 70

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cabarés e do teatro de revista como principal diversão da classe trabalhadora. Houve um aumento na produção de autobiografias. Mas o fim do século XIX e começo do XX também teve suas mazelas, as relações burguesas pautadas no consumo estavam começando a mostrar desgaste. A classe proletária começava a se reunir, sindicalizar e até formar partidos, exigindo melhores condições de trabalho, o que gerou confrontos e massacres como a Revolução Russa de 1905, por exemplo. A segunda década do século XX se inicia com diversos conflitos entre os proletários e os donos dos meios de produção e os estados europeus preocupados com suas ambições expansionistas para fins comerciais. Também ficou marcado pela sequência de guerras que criou feridas abertas na história de milhares de pessoas que só conseguiriam formar cicatrizes muitas décadas depois. Adolf Hitler era mensageiro no exército alemão durante a Primeira Guerra Mundial, onde desenvolveu um exacerbado patriotismo alemão, mesmo sendo austríaco. Com o fim da guerra Hitler participa da criação do pensamento de que a derrota da Alemanha na guerra é culpa do “judaísmo internacional”, dos comunistas e dos políticos civis que aceitaram o Tratado de Versalhes. Ascendeu politicamente até ser líder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães e tentar um golpe de estado na Baviera, o plano foi descoberto e Hitler junto com os seus comparsas foram presos. Na prisão escreve sua autobiografia, Minha Luta, publicada em 1925, com sucesso notável no início, Hitler foi o primeiro autor a usufruir financeiramente de sua obra autobiográfica, sendo a sua maior fonte de renda desde então. Em 1933 quando o Partido Nazista chegou ao poder com Hitler como chanceler o livro virou best-seller e permaneceu nessa condição até o fim do Terceiro Reich, já que era uma regra extraoficial ter o livro em casa. O Holocausto, assassinato em massa de milhões de pessoas, por motivos de religião, nacionalidade, adversários de guerra, etnia e orientação sexual, promovido pelo Estado Nazista chefiado por Hitler, fez como suas maiores vítimas do genocídio os Judeus com cerca de seis milhões de mortos, entre eles Anne Frank e parte de sua família. O Diário de Anne Frank, escrito entre julho de 1942 e agosto de 1944, enquanto Anne e sua família estavam escondidas em um anexo secreto de um

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apartamento em Amsterdã, fugindo do antissemitismo propagado pelos nazistas. Anne escreve sobre coisas cotidianas no princípio, mas conforme amadurece descreve com detalhes a relação familiar, a convivência com os vizinhos, seus sonhos e arrisca sobre a natureza humana. Em 1944 a família é traída e acaba descoberta pela polícia alemã e levada a campos de concentração, no fim Anne ficou no campo de Berger-Belsen até fevereiro de 1945 onde morreu de tifo epidêmico, pouco antes do fim da Segunda Guerra Mundial. No fim da guerra seu pai, Otto Frank, sobrevivente de Auschwitz, conseguiu reunir os escritos da filha e publicá-los em 1947 após muita controvérsia sobre a autoria do diário, deram por fim que era de Anne Frank. Seu diário é a autobiografia mais vendida e lida do mundo, ironicamente superando a de Hitler, com traduções em uma infinidade de idiomas, ganhou adaptação cinematográfica e diversas adaptações televisivas. Virou símbolo na luta contra o preconceito e o antissemitismo com menções de John Kennedy e Nelson Mandela. Com o fim da Grande Guerra EUA e URSS, ambos vencedores do conflito, provocaram a Guerra Fria, que nunca foi bélica entre as duas potências apesar de começar com uma corrida armamentista e partir para o enfrentamento ideológico entre Capitalismo e Comunismo. Paralelamente era dado o início da Terceira Revolução Industrial, que ficou marcada pela pesquisa e desenvolvimento da tecnologia da informação o que resultou na Corrida Espacial. Seus efeitos na literatura e na cultura pop em geral eram claros com o crescente domínio do fantástico, da ficção científica e das distopias, era muito difícil partir para o realismo quando acabara de sair de uma guerra de violência sem precedentes e estavam na iminência de um conflito nuclear que poderia acontecer a qualquer momento, “ainda não havia chegado a hora dos questionamentos” 6 classifica Lipovetsky. Com o avento da televisão à cores e ciência da propaganda a sociedade parece viver uma revolução tecnológica por dia, a economia estritamente baseada no consumo do Estado de Bem-Estar Social que depois é substituído drasticamente pelo Neoliberalismo ambos usando a imagem como principal difusora de informação, 6

LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, jean. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 161

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Sevcenko analisa: Mas claro que não foi a tecnologia que impulsionou o turbilhão das imagens; antes o contrário. Tal é seu potencial de capturar os sentidos, o desejo e a atenção dos seres humanos, que logo os estrategistas as elegeram como o meio ideal para difundir ideias, comportamentos e mercadorias, pressionando por novas e melhores técnicas para reproduzi-las. (SEVCENKO, 2001, p.125)

As Palavras, autobiografia de Jean Paul Sartre é publicada em 1964 e Simone de Beauvoir escreve quatro trabalhos autobiográficos entre 1958 e 1972. Ambos cativaram seus respectivos leitores, mas assim como não havia chegado a hora dos questionamentos, também não era a hora das autobiografias. O que transforma O Diário de Anne Frank na última grande prosa autobiográfica do século XX. Com a queda do Muro de Berlim, simbolizando o fim da Guerra Fria e a vitória do capitalismo. Que não se deu por conflito bélico ou porque teria uma ideologia superior, mas pelo fato de aceitar críticas. Os sistemas políticos que tentaram banir a critica morreram, sintomaticamente, por obsolência tecnológica. A critica, portanto, é a contrapartida cultural diante da técnica, é o modo de a sociedade dialogar com as inovações, ponderando sobre seu impacto, avaliando seus efeitos e prescrutando seus desdobramentos. (SEVCENKO, 2001, p. 17-18)

E assim as críticas vieram principalmente contra episódios de violência institucionalizada como a escravidão negra e ameríndia, o Holocausto, os conflitos no Oriente Médio, as torturas das ditaduras cívico-militares na América Latina e a marginalização de diversas minorias. Isso nos mais diversos campos da arte, na literatura o principal meio era a autobiografia.

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Nesse novo dispositivo, são todos os passados de todas as comunidades particulares que emergem de novo, rompendo o modelo tradicional unitário da “grande História”. O surgimento do famoso “dever da memória”, ligado inicialmente ao Holocausto, e a exigência de reconhecimento das diferentes identidades coletivas espalharam uma cultura e uma ética memoriais sobre o conjunto do campo social-histórico. (LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p. 158-159)

Mesmo com todo o poder da autobiografia a liberdade de crítica do capitalismo tem um limite.

Subsistem ainda elementos da cultura popular, que são metodicamente selecionados e incorporados pela indústria do entretenimento, mas eles estão descontextualizados, neutralizados e encapsulados em doses módicas, para uso moderado, nas horas apropriadas. Seu fim não é o êxtase espiritual dos rituais populares tradicionais, mas propiciar a seres solitários, exauridos e anônimos a identificação com as sensações do momento e com os astros, estrelas e personalidades do mundo glamouroso das comunicações. (SEVCENKO, 2001, p. 79)

E assim acontece a banalização das biografias, autorizadas ou não, de pessoas com trajetórias concisas em sua área de atuação ou celebridades instantâneas, que avaliam não ter a habilidade da escrita literária e contratam escritores fantasmas para escrever sobre as suas vidas que em grande parte apelam para lições de vida de cunho moralizante, assemelhando-se a autoajuda para criar fenômenos editoriais, oferecendo placebo individual para a dor da existência e aumentando a solidão contemporânea. Alberti escreve sobre o valor da escrita do próprio testemunho:

Ou seja, sobre o pano de fundo da modernidade, é possível dizer que o esforço autobiográfico, análogo ao psicanalítico, constitui também a “procura do tempo perdido”, expressão e atualização do tempo

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mítico, localizado na “civilização mecânica”, no “próprio homem”. (ALBERTI, 1991, p. 77)

2.1 A autobiografia gráfica Antes de qualquer comentário sobre a autobiografia em quadrinhos é preciso escrever sobre a trajetória do Romance Gráfico, movimento artístico e editorial responsável pelo amadurecimento dos quadrinhos. No começo do século XX o principal meio de difusão dos quadrinhos eram os jornais impressos nos quais eram publicadas as tirinhas. Embora atualmente sejam marcadas pelo humor, a sátira de pessoas públicas e acontecimentos cotidianos, as tirinhas abarcavam diversos gêneros como aventura, terror, suspense, entre outros. Chegada a década de '20 os autores começavam a publicar pequenas antologias com suas tiras, no formato de revista, que sem a limitação de espaço do jornal fez um grande salto criativo e por consequência comercial. Paralelamente, na Bélgica, Frans Masereel publica 25 Images de la Passion d'un Homme, em 1918. Como o título indica são 25 imagens, xilogravuras, que contam a história de um jovem proletário que lidera uma revolta contra seu empregador. A narrativa é montada apenas pelas gravuras, não tem quadros de narração e balões de diálogos como estamos acostumados a ler, e unida em uma publicação ao contrário das formas periódicas da época, o que a qualifica como o primeiro Romance Gráfico7. Masereel consolida sua estética expressionista e publica diversas narrativas totalmente gráficas, com destaque para Le Soleil, 1919, uma releitura do Mito de Ícaro, que influenciou o trabalho de Lynd Ward e Will Eisner. Ward conheceu o trabalho de Masereel quando estudava xilogravura na Alemanha e ao voltar para seu país de origem, os Estados Unidos, adotou a técnica e fez o seu romance gráfico. Gods' Man, lançado em 1929, é uma releitura de Fausto. Depois ele produziu mais quatro romances gráficos até publicar Vertigo, em 1937, considerada sua obra-prima, conta como a Grande Depressão atingiu um velho industrialista, um jovem e uma mulher, através de 230 painéis com estilo 7

Esses romances eram publicados como wordless novel, romance sem palavras em português. O termo graphic novel que dá origem ao termo romance gráfico é de origem difusa, mas foi popularizado por Will Eisner.

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naturalista, abandonando o expressionismo de outrora. Vertigo foi lançado como um livro convencional por uma grande editora no mesmo período em que circulavam as primeiras revistas em quadrinhos. Apesar do seu grande valor artístico Vertigo foi a última narrativa sem palavras de Lynd Ward, mas em relação aos trabalhos que estavam em voga na época Eisner faz uma ressalva: A história exige que o leitor contribua com diálogos e interfira no fluxo da ação entre as páginas. Apesar dessa permuta ter sido bemsucedida ao demonstrar a viabilidade da narrativa gráfica, ela não poderia ir muito longe para um público alheio aos quadrinhos. Muitos leitores acharam esse livro difícil de ler. Alguns gostaram dos efeitos magníficos de suas xilogravuras, mas, de maneira geral, este experimento negligenciou o reforço de uma mistura equilibrada de imagem e texto. Obviamente, Ward não estava interessado em encontrar uma solução para a grande dependência que a narrativa gráfica tem de um leitor “preparado”, já condicionado a participar do processo narrativo. A quantidade de ação que acontece entre essas cenas exige uma considerável capacidade de absorção por parte do leitor para que ele seja capaz de compreendê-la. Também é necessária uma certa “alfabetização visual”. (EISNER, 2013, p. 145)

Em 1938 é publicada a revista Action Comics #1, que no princípio era uma antologia de diversas histórias, cuja a capa foi protagonizada pelo Superman, simbolizando o início da era dos super-heróis nos quadrinhos, conhecida também por Era de Ouro. Rapidamente virou produto de exportação para diversos países que estavam procurando histórias para complementar as suas publicações voltadas para o público infantil. Foi o ápice comercial dos quadrinhos, que eram a forma de entretenimento mais barata do período. Em 1954 surge Comics Code Authority, uma forma de autocensura das editoras de quadrinhos de forma que atendesse o apelo moralista do Congresso após

a

publicação

do

livro

Sedução

dos

Inocentes,

que

relacionava

preconceituosamente o conteúdo dos quadrinhos com a delinquência juvenil. Com a medida quem saiu perdendo de fato foram as histórias adultas como as de terror, enquanto os super-heróis continuaram campeões de venda, porém de forma mais

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infantilizada do que anteriormente, com destaque para a Marvel Comics e seu principal herói, o Homem-Aranha. Will Eisner já era um quadrinista consolidado durante a ascensão dos superheróis, principalmente pelo periódico dominical The Spirit, a história de Danny Colt, policial dado como morto, mas que seguia combatendo o crime na cidade fictícia de Central City. Todavia, Eisner fez com que um outro trabalho ganhasse maior notoriedade na história, Contrato com Deus, de 1978, são quatro “contos” sobre a situação imigratória no Bronx dos anos '30, que o próprio Eisner definiu como Romance Gráfico e cita Lynd Ward como uma de suas inspirações. A história foi publicada como livro, sem a periodicidade habitual dos quadrinhos, mas além do trabalho de Ward, a história contava com ricos diálogos e composições, mostrando uma relação “parasitária”8 com o cinema em função do amadurecimento dos quadrinhos. A obra, assim como o pensamento teórico de Eisner sobre os quadrinhos, fez com que finalmente a arte sequencial ganhasse a concepção de manifestação artística, para além de um entretenimento barato e infantil. Art Spielgman publica o primeiro capítulo de Maus, em 1980. Que seria reunido com os outros capítulos e publicado como primeiro volume de um Romance Gráfico pela editora Pantheon em 1986. A primeira autobiografia em quadrinhos, dando a largada sobre os questionamentos e o “dever da memória” acerca do Holocausto, como fora citado anteriormente. A história de Art a princípio é formada de entrevistas com seu pai, Vladek Spielgman, que remontam do cotidiano da Polônia antes da II Guerra Mundial até a sua saída do campo de concentração de Auschwitz. Em 1991 foi lançado o segundo volume de Maus, com os cinco capítulos finais publicados pela revista Raw. Que mostra Art em conflito por usar artisticamente essa história e ainda ter lucro com ela. O que faz da autobiografia em quadrinhos ser notável é o que podemos chamar de trabalho plástico da memória. Afinal, qual traço, quadro, cor e perspectiva pode representar algo tão subjetivo? A solução de Spielgman foi antropomorfismo, retratando com animais determinadas etnias e nacionalidades, por exemplo, no livro os judeus são ratos, nazistas são gatos, americanos são cachorros, poloneses são porcos e assim por diante. 8

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 150

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Outro quadrinista que usou sua obra como denúncia e poder de voz para grupos oprimidos, embora de forma mais jornalística do que autobiográfica, foi o maltês Joe Sacco. Com o lançamento do livro Palestina, em 1996, Joe introduziu nos quadrinhos um formato próximo ao documentário cinematográfico, através de entrevistas com pessoas comuns em lugares com conflitos militares, no caso de Palestina é a trajetória de Jerusalém até a Faixa de Gaza. Em 2000 ele retoma a mesma linha de trabalho só que o conflito em questão é a guerra civil na Bósnia. Também nos anos 2000, é lançada Persépolis, a autobiografia de Marjane Satrapi. Publicada em quatro volumes pela editora francesa L'Association entre 2000 e 2003. Marjane narra desde a sua infância durante o Regime do Xá no Irã até a idade adulta quando decide ir para a França numa viagem sem volta. Diferentemente de Spielgman e Sacco, que tratam de seus temas com extrema densidade, Marjane consegue dar uma história agridoce, tudo na sua medida, com diversas referências da cultura pop ela alcança um público muito mais amplo do que seus antecessores. 2.2 A autobiografia animada Conforme separamos a discussão cinematográfica entre cinema de captação e cinema de animação, a relação da autobiografia também é muito divergente com cada uma delas. No cinema de captação é muito difícil precisar obras autobiográficas, principalmente com movimentos artísticos como o cinema-verdade dos anos '50 e ascensão do gênero documentário nos anos '70. Assim como houve uma banalização das biografias na literatura e no cinema a partir dos anos 2000, que mesmo se tornando o principal meio de difusão de informação e luta de minorias marginalizadas, se perde em cinebiografias de fins totalmente comerciais, como histórias sobre celebridades instantâneas. No cinema de animação a discussão de autobiografias em longa-metragem se resume a dois filmes. Assim, Marjane Satrapi utiliza em 2007, em Persépolis, o desenho animado para evocar, através dos sobressaltos do Irã moderno, sua própria história e a das mulheres submetidas à lei islâmica. O filme

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de animação torna-se ao mesmo tempo quadro histórico e autobiografia: uma estreia do gênero. (LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p. 102)

Lipovetsky comenta o pioneirismo de Persépolis 9 no cinema de animação, mas vale lembrar que o filme vem da tradução dos quadrinhos para o cinema. Se a discussão for sobre uma história original no cinema esse mesmo destaque fica com o filme Valsa com Bashir, de Ari Folman, lançado em 2008. Onde o cineasta reconstrói sua memória perdida do Massacre de Sabra e Chatila em 1982.

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Codirigido e coescrito com Vincent Paronnaud, também conhecido com Winshluss.

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3. A HISTORIOGRAFIA DA FICÇÃO Uma vez realizado o compêndio de autobiografias na literatura, nos quadrinhos e na animação, é hora de conferir o que separa a autobiografia de uma ficção convencional, o sincronismo histórico. Flávio Josefo, Art Spielgman e Marjane Satrapi tem em comum o ponto de partida, a história pessoal e familiar, identidades problemáticas que entrecruzam a trajetória de um povo, uma religião ou um país. 10 Josefo e Spielgman tem como ferida compartilhada a perseguição histórica sofrida pelo povo judeu no Império Romano e pelos Nazistas, respectivamente. Porém, Josefo se submeteu ao Império Romano para preservar a história de seu povo, entre outras razões. Spielgman, por sua vez, sendo homem, judeu e com residência fixa nos EUA tinha o establishment a seu favor para publicar sua obra. Marjane conta um pedaço da história do Irã, mas a produção e publicação de sua obra aconteceram quando a autora já tinha residência fixa na França, o que deixou ela fora do alcance de alguma retaliação agressiva do governo iraniano, como a ocorrida com o escritor Salman Rushdie11, por exemplo. Persépolis começa mostrando o impacto cultural da Revolução Iraniana de 1979, mas volta brevemente ao passado para relembrar o período autoritário anterior, o Regime do Xá12.

10

CORREIA, Isabel Peixoto; SILVA, Sandra Raquel. Identidade, resistência e sobrevivência –

do local ao global nos romances gráficos Maus e Persépolis. In: VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas. 2009/2010. Braga. Universidade do Minho. p. 3 11

Em 1989 Salman Rushdie publica Os Versos Satânicos, onde usa versos do Corão para

satirizar o Islã, provocando protestos dos ativistas muçulmanos em diversos países, a reação mais violenta veio do Irã. O aiatolá Khomeini proferiu um fatwa – um pronunciamento de acordo com a lei islâmica – dando sentença de morte para Rushidie. 12

O título Xá é uma versão portuguesa da transcrição persa shah, que pode ser entendido

como rei ou imperador.

26

Figura 1 – O Xá Reza Pahlavi, sua esposa ao lado do presidente do Brasil, Marechal Castelo Branco, na revista Fatos & Fotos em 1965

Fonte: http://mlb-s1-p.mlstatic.com/fatos-fotos-de-1965-james-bond-xa-do-ir-cincia-dener-14310MLB175608538_1496-O.jpg - Acesso em 25/11/2015

Mohammad Reza Pahlavi13 foi o último Xá do Irã, assumindo o trono em 1941. O governo era uma monarquia parlamentarista que contava com o apoio dos Estados Unidos e da Inglaterra em troca de facilidades na exploração do petróleo. A situação mudou com eleição do primeiro-ministro Mohammed Mossadegh em 1951. Sua política prezava pelo nacionalismo e via a Anglo-Persian Oil Company como o grande marco do imperialismo britânico na região, e com apoio do parlamento nacionalizou o petróleo, dando fim a refinadora inglesa, tal feito o transformou no “homem do ano” da revista Time daquele mesmo ano.

13

Seu pai, Reza Pahlavi, era um soldado e tinha a intenção de aplicar um golpe de estado na

dinastia Qajar – da qual Marjane é descendente – e proclamar uma república, ludibriado e com apoio dos ingleses se autoproclama Xá da Pérsia. Ele tinha apoio ocidental e industrializou o país, mas demonstrou apoio a Hitler durante a II Guerra Mundial e por pressões do da Inglaterra e da URSS abdicou do seu trono passando para seu filho, o último Xá.

27

Figura 2 – Mossadegh na capa da revista Time em 1951

Fonte: http://www.writersviews.com/articles-images/mossadegh1951.jpg – Acesso em 25/11/2015

O primeiro-ministro também pensava em como aumentar os seus poderes, entrando em confronto direto com o Xá. Então as partes prejudicadas pela nacionalização do petróleo, EUA e Inglaterra, realizaram um golpe de estado no Irã em 1953, retirando Mossadegh do cargo que tinha sido democraticamente eleito e colocando um general no seu lugar. Esse golpe também inciou a mudança do Xá de um monarca constitucional para um ditador que perseguiu o clero xiita, os liberais e os comunistas. Aiatolá Sayyid Ruhollah Musavi Khomeini era um dos maiores opositores do Xá dentro do clero xiita, temendo por sua vida fugiu para o Iraque em 1964 e depois para a França em 1978. Com a revolta popular que culminou na queda do Xá no ano seguinte, Khomeini volta ao Irã na condição de grande líder xiita – segmento do islã majoritário no Irã – e proclama a República Islâmica de Irã. O regime político mudou, mas o modus operandi de perseguição aos opositores se manteve, comunistas que tinham acabado de ganhar sua liberdade com a queda do último Xá foram alvo de perseguições e assassinatos, dessa vez por parte dos xiitas. Com a república estabelecida Khomeini partiu para a Revolução Cultural, uma nova constituição foi escrita com base na lei islâmica, ou xaria, baseada nos escritos

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do Alcorão, no islamismo a religião não se separa do direito. Uma das suas consequências é o ponto de partida dos quadrinhos, o uso obrigatório do véu para as mulheres. Em seguida veio Guerra Irã-Iraque que teve início em 1980, Khomeini usou o conflito como meio para simplesmente aniquilar os seus opositores no país. Figura 3 – Khomeini, “o homem do ano”, na capa da revista Time em 1980

Fonte: http://content.time.com/time/covers/0,16641,19800107,00.html – Acesso em 25/11/2015

A trajetória apresentada por Marjane segue corretamente ponto a ponto, porém ela presenciou apenas o início da guerra, já que com o endurecimento do regime e o temor pela vida sua filha seus pais resolveram enviá-la para a Áustria para que ficasse em segurança. Em sua primeira passagem pela Europa percebe duas problemáticas que no futuro influenciariam o seu trabalho: A interpretação europeia do Oriente Médio e os direitos das mulheres frente ao Islã. 3.1 O Oriente inventado Entre as primeiras grandes civilizações urbanas do sul da Mesopotâmia, o aparecimento da escrita ligava-se intimamente à justificação do poder monárquico, produzindo extensas listas de reis

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em que se contava como a realeza descendeu dos céus, encontrando sua legitimidade. Assim, o mito se fundia com a história, completando a genealogia do Estado. (DEGAN, 2010, p. 297)

Para além da Mesopotâmia os gregos se especializaram no uso da escrita como instrumento de ramificação social e dominação de outros povos, patenteando estudos matemáticos e filosóficos feitos pelos africanos, por exemplo. O primeiro caso emblemático de um produto ocidental representando o Oriente Próximo – seja ele acadêmico ou artístico – é a peça teatral Os Persas, escrita por Ésquilo. O autor participou, como soldado, da Batalha de Salamina realizada entre gregos e persas, com a derrota dos últimos. Com sua peça Ésquilo transforma o Oriente em algo próximo e fragilizado, pelas mulheres asiáticas aflitas que presenciam a queda de Xerxes I, o símbolo que um não oriental representou todo Oriente. 14 Com a morte de Maomé, em 632, veio a insurgência árabe que tomou territórios otomanos, bizantinos e persas. Convertendo os derrotados a religião que a Europa cristã passou a ver como rival monoteísta, cultural e militar equivalente, o Islã. Desde então, a representação do Oriente está entre a barbárie e o exotismo. 15 Parafraseando Marx é possível entender o combate cultural entre Europa Ocidental cristã e o Oriente Próximo muçulmano: “(...) na medida em que existe um vínculo apenas local entre 'o Oriente', na medida em que a identidade dos seus interesses não gera entre eles nenhum fator comum, nenhuma união nacional e nenhuma organização política, eles não constituem classe nenhuma. Por conseguinte, são incapazes de fazer valer os interesses da sua classe no seu próprio nome, seja por meio de um Parlamento, seja por meio de uma convenção. Eles não são capazes de representar a si mesmos, devem ser representados.” 1617 Said estudou de forma profunda e abrangente o arcabouço erudito que a Europa criou sobre o Oriente, mais que um nome geográfico, uma invenção dele. Essa doutrina ficou conhecida por Orientalismo, expressando antipatia ao Islã 18 e 14

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 51

15

Ibid., p. 455

16

A única alteração na frase é o termo “os parceleiros” que foi substituído por “o Oriente”.

17

MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 131

18

SAID, 2007. p. 454

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aos povos que o seguem, uma de suas posições que complementa o raciocínio de Marx é que “a identidade humana não é natural e estável, mas construída e de vez em quando inteiramente inventada”.19 Os efeitos do Orientalismo estão enraizados na academia e na arte, para concluir este capítulo usaremos dois filmes de longa-metragem em animação para avaliar a sua representação. Aladdin, filme produzido pela Walt Disney Feature Animation, em 1992, é uma adaptação do conto Aladim, do livro As Mil e Uma Noites. O Orientalismo se mostra presente canção Arabian Nights que apresenta os créditos iniciais e têm os seguintes versos “Where they cut off your ear / If they don't like your face / It's barbaric, but hey, it's home”,20 e causou protestos do Comitê Árabe-Americano Antidiscriminação e os versos foram alterados no lançamento do VHS no ano seguinte. Outro ponto de controvérsia é o design dos personagens, enquanto o protagonista remete ao ator Tom Cruise ou modelos da Calvin Klein, logo, o padrão de beleza anglo-americano, os outros homens da história são grotescos, tem sotaques estrangeiros e pelos faciais de forma que percam a jovialidade, design que o estúdio adota para a criação de vilões.

19

Ibid., p. 442

20

Na dublagem brasileira a letra é Vão cortar sua orelha / Pra mostrar pra você / Como é bárbaro o nosso lar.

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Figura 4 – Cena do filme Aladdin

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=1Qp5lAquEU4 – Acesso em 25/11/2015 Figura 5 – Cena do filme Aladdin

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=1Qp5lAquEU4 – Acesso em 25/11/2015

Outro filme de animação que representa povos muçulmanos, mas sem os mesmos esteriótipos é O Gato do Rabino, lançado em 2011, dirigido pelos franceses Antoine Delesvaux e Joann Sfar. O filme de estrada acompanha a trajetória de um grupo formado por etnias e religiões, da Argélia até a Etiópia, onde buscam por uma cidade onde vivem judeus negros. Os personagens não possuem traços

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estereotipados ou construídos de forma depreciativa, durante a narrativa se encontra as duas faces do extremismo, judaico e islâmico, porém o filme é capaz de proporcionar uma cena em que os personagens das duas religiões rezam em paz Figura 6 – Cena do filme O Gato do Rabino

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=f4QqjoqFExo – Acesso em 25/11/2015

3.2 Questões femininas Marjane inicia Persépolis a partir de um elemento da Revolução Cultural provocada por Khomeini que afetou exclusivamente as mulheres, o uso do véu. Após a ascensão do Islã xiita foi adotada a hijab, como norma de vestimenta feminina, que era seguida de duas formas possíveis: usando o xador que cobre todo o corpo deixando exposta apenas a face, visual adotado pelas mais conservadoras e principalmente pelas Guardiãs da Revolução ou apenas cobrir a cabeça com um lenço, deixando a face e algumas mechas de cabelo a mostra – visual mais progressista – mas, ainda assim, usando camisas e outras peças de roupa que não deixem o corpo a mostra, nada que excite os homens, como indica a lei islâmica.

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Figura 7 – Requadros de Persépolis

Fonte: (SATRAPI, 2007. p. 6; 78) - A sequência de imagens foi adaptada para esta página

As divergências sobre o uso do véu seguem até os dias atuais enquanto coletivos feministas, ocidentais ou não, afirmam seu uso como ferramenta de dominação patriarcal, todavia, o argumento não só de setores conservadores, mas ativistas do feminismo islâmico defendem o uso do véu como forma de ir contra a objetificação do corpo feminino, considerando a vulgarização do corpo como parte da decadência ocidental. Em outro ponto da narrativa, um episódio de violência contra as mulheres que se opunham ao regime foi um dos fatores para que os pais de Marjane tivessem exilado a filha na Áustria. O caso é o da personagem Nilufar, uma jovem comunista de 18 anos que foi pega pelos Guardiões da Revolução, como pela lei islâmica não se pode matar uma virgem, eles a casam com algum guardião que violenta a moça para depois matá-la. Em regimes autoritários é comum usar além da tortura física e psicológica, a violência sexual como forma de coagir as vítimas do sexo feminino. Quando Marjane é enviada a Áustria, fica hospedada por um período em uma pensão de freiras e começa a ler os trabalhos de Simone de Beauvoir, em Persépolis são citados Os Mandarins e O Segundo Sexo, trabalhos de grande influência no pensamento feminista e somavam a busca de Marjane por se tornar uma mulher livre e emancipada. Na Europa, Marjane fica impressionada com a liberdade sexual que as mulheres têm, em especial sua amiga Julie, e considera seu primeiro passo na cultural ocidental. Porém, na Europa conheceu outro tipo de assédio, enquanto

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trabalhava de garçonete. Em alguns aspectos sobre o respeito as mulheres os europeus não ficavam muito longe dos Guardiões da Revolução. Figura 8 – Requadros de Persépolis

Fonte: (SATRAPI, 2007. p. 226; 303) - A sequência de imagens foi adaptada para esta página

Quando retorna a sua terra natal, Marjane é surpreendida pelo visual das mulheres iranianas de sua idade, muito mais próximo do ocidental do que ela que já havia morado na Europa. Apesar da maquiagem que no primeiro momento é transgressora, logo em seguida, se revela que suas ambições enquanto mulheres ainda estão perfeitamente enquadradas de acordo com o regime. Vendo em Marjane uma ocidental decadente. Já na faculdade Marjane, de forma mais discreta, continuar lutando por equidade de gênero. O regime havia matado muitos universitários e secundaristas durante a Guerra Irã-Iraque e política não era um assunto que se conversava abertamente, mesmo assim é escancarada o tratamento sexista em relação a liberdade de vestimenta e questões como liberdade sexual.

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Figura 9 – Requadros de Persépolis

Fonte: (SATRAPI, 2007. p. 299)

Essas entre qualidades transformam Persépolis em um dos primeiros romances gráficos onde o feminismo é temática da obra, e os quadrinhos se tornariam um grande meio de resistência. (…) os povos menores – outrora colonizados, escravizados, suprimidos – não precisam mais ficar calados ou se deixar explicar apenas por europeus e americanos mais velhos do sexo masculino. Houve uma revolução na consciência das mulheres, das minorias e dos marginais, tão poderosa a ponto de afetar o pensamento dominante em todo o mundo. (SAID, 2007, p. 462)

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4. ENTRE A NARRATIVA GRÁFICA E A NARRATIVA FILMÍCA Persépolis deve ser considerado um romance gráfico de aprendizagem, ou trama de maturação, já que ele mostra de forma temporal linear, a vida de Marjane dos dez até os vinte e cinco anos de idade. Além disto, conta sua história no tempo presente, mesmo o público sabendo que autora já é uma mulher adulta, a história transmite as suas sensações conforme o período correspondente. Com diferentes níveis de apreensão, familiar, político e pessoal. Com muitos personagens e alta quantidade de informação, o que implica diretamente no estilo gráfico adotado pela quadrinista. As ilustrações do livro foram feitas com nanquim, marcadas pelo forte contraste em preto e branco que remetem ao expressionismo alemão, as gravuras de Frans Masereel e as pinturas persas com grande expressividade nos olhos. Não utiliza as tradicionais onomatopeias e trabalha linhas de movimento de forma mínima, como as usadas para transmitir velocidade. A passagem do tempo nos quadrinhos se dá de três formas: O formato do quadro, seu tamanho e a leitura do balão. 2122 Em Persépolis os requadros são retangulares e as sarjetas não sofrem alterações, colocando a ação no tempo presente e deixando a narrativa mais ágil. Alguns requadros que são maiores, de meia página ou página inteira, dão uma suspensão no tempo, representando sonhos, nostalgias ou fortes imagens de episódios de violência. Em seus estudos Eisner diz que a escrita dos quadrinhos está mais próxima da teatral do que a cinematográfica. 23 O raciocínio parece se confirmar ao comparar o trabalho de Marjane com o do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, já que em momentos diversos a personagem Marjane fala diretamente ao leitor sem o recurso narrativo, rompendo a linha dramática da história, outro ponto de contato entre eles é o uso da pantomima. Recursos que nas mãos de Brecht serviam para lembrar o público de estavam participando de uma ilusão, um espetáculo teatral, em vez de uma realidade paralela. Nas mãos de Satrapi esses recursos reforçam o contrato

21

MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: M.Books, 2005. p. 99-102

22

EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 44

23

Ibid. p. 122

37

com o leitor, uma suspensão temporária da desconfiança 24, onde vale mais a coesão da narrativa do que a veracidade dos fatos. Figura 10 – Requadros de Persépolis

Fonte: (SATRAPI, 2007. p. 15; 177; 120; 341) - A sequência de imagens foi adaptada para esta página

4.1 A tradução Assim como as autobiografias e biografias, o processo tradutor também está na moda com várias possibilidades possíveis como uma prosa que ganha uma tradução cinematográfica, um filme que tem sua tradução para o teatro musical, recentemente vem se traduzindo filmes de animação para filmes de captação e o processo mais atual que são as traduções das histórias em quadrinhos para o cinema, tanto de captação como o de animação. Nota-se que Persépolis pertence ao último tipo. Pode-se interpretar a moda das traduções de diferentes maneiras, uma delas é tomar “aqueles elementos de utopia e sensibilidade que estão inscritos no passado e que podem ser liberados como estilhaços ou fragmentos para fazer face a um projeto transformativo do presente”25. Do qual Marjane é próxima e que busca atingir um público mais amplo com a transmutação de sua obra, como ícone na luta por direitos, principalmente das mulheres. 24

DINIZ, Ligia. A identidade em quadrinhos: a construção de si em Persépolis, de Marjane

Satrapi, e Fun Home, de Alison Bechedel. In: Dalcastagnè. Regina. (Org.). Histórias em quadrinhos: diante da experiência dos outros. Vinhedo: Horizonte, 2012. p. 61 25

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 6

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Outra possibilidade “é a prática do sistema de acumulação capitalista que vê, no antigo, um modo reatualização das mercadorias para acelerar a demanda do consumo”26, onde se encaixa, por exemplo, os filmes de super-heróis criados a partir das histórias em quadrinhos, os mesmos da Era de Ouro, já que o futuro é cada vez mais incerto por causa das mudanças tecnológicas causando uma grande nostalgia. Operar sobre o passado, além de um problema de valor, constitui-se também numa operação ideológica através da qual podemos confirmar a produção do presente ou encobrir essa realidade. Se, no primeiro caso, se favorece um encontro dialético com o passado para preparar o futuro, no segundo, trata-se de distanciar esse futuro indefinidamente. No primeiro caso, os valores da história constituemse num modelo para a ação, já no segundo, trata-se de um fantasma a ser evocado como nostalgia, moda ou revival. (PLAZA, 2013, p. 6)

Além do aspecto ideológico, as mudanças tecnológicas interferem no modo de produção do trabalho artístico, já que “todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja em som, massa física, como cor”. No caso de uma transmutação para animação é necessária uma análise de desenho original para definir parâmetros de trabalho. Dos quadrinhos para a animação é necessário pensar nas diferenças estilísticas, na mise-en-scène, a narrativa que na animação é sequencial cinética, e não estática sequencial27, já que nos quadrinhos nada impede o leitor de ir direto para a última página, exceto o contrato ficcional que o autor e leitor fazem e isso inclui a ordem de leitura, da esquerda para direita e de cima para baixo, no ocidente. Já no filme o espectador é obrigado a ver toda a sequência para acompanhar a casualidade do enredo. Por último, mas não menos importante, o som, que agora expressa diálogos, a trilha sonora e o foley. É possível acompanhar a mudança do traçado dos quadrinhos que perpassa pelo animatic até a composição final do filme, que tem a predominância das linhas grossas, precisas e geométricas – mais notável nos personagens masculinos – e 26

Idem

27

WELLS, Paul; QUINN, Joana; MILLS, Les. Desenho para animação. Porto Alegre:

Bookman, 2012. p. 130-131

39

com fortes contrastes, preservando a identidade visual, como se Marjane tivesse animado à mão, ainda que seja uma animação clássica feita no papel. A grande diferença vem na direção de arte do filme, texturas muito bem definidas para ambientes e objetos, trabalhando com degradês e tons de cinza e pouca opacidade, realizada em pintura digital. Acompanhe a transformação visual da cena a seguir nos quadrinhos, depois no animatic com as imagens do storyboard e os frames do mesmo segmento no filme: Figura 11 – Requadros de Persépolis

Fonte: (SATRAPI, 2007. p. 335)

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Figura 12 – Animatic à esquerda e frames do filme à direita

41

Fonte à esquerda: https://www.youtube.com/watch?v=7jhHUb2Lk0w – Acesso em 21/11/2015 Fonte à direita: Marjane Satrapi, Vincent Paronnaud. 2007. Persépolis

Por razões técnicas um longa-metragem de 95 minutos não contaria integralmente uma história de 352 páginas, caso contrário o exercício da tradução não teria sentido, logo, também exige que o roteiro cinematográfico seja enxuto em relação a obra anterior, nesse caso, vários capítulos com pormenores sobre pessoas envolvidas com a família Satrapi e o amadurecimento intelectual da protagonista foram omitidos. Outro recurso é a elipse narrativa, em especial na passagem pela Áustria, que omite a visita de sua mãe quando estava morando com oito homossexuais. Enquanto nos quadrinhos a ação se mantêm quase totalmente no tempo presente, na animação parte da história é narrada pela Marjane adulta que está relembrando o passado, em estilo documental. O elemento totalmente novo no filme é a cor que diz qual é o tempo presente da história e esclarece a passagem do tempo, maiores especificações deste elemento agora comprometerá a análise do filme a seguir.

42

4.2 Cinema de animação adulto para todas as idades O filme começa com Marjane tentando embarcar em um voo de Paris para Teerã, reaparece no banheiro colocando o véu e recebe um olhar desconfiado de outra mulher que está passando batom nos lábios. Na França o uso do véu nunca foi assimilado em sua cultura laica e em 2010 foi criada uma lei que proibia o seu uso em todo o país. Em um guichê é indagada sobre seu passaporte ela para e não responde. Senta-se em um banco e acende um cigarro. O cenário pouco a pouco perde sua cor, só Marjane é preservada nesse processo que se vê criança correndo em 1978. Figura 13 – Cena do filme Persépolis

Fonte: Marjane Satrapi. Vincent Paronnaud. 2007. Persépolis

Em passagens ágeis logo se chega ao momento em que Marjane, criança, questiona o pai sobre a legitimidade do Xá como representante de deus, conforme aprendeu na escola, mecanismo já comentado anteriormente. Mas diferentemente dos quadrinhos ao falar sobre a ascensão do Xá, abrem-se cortinas como numa encenação teatral e os personagens são como bonecos de uma animação cut-out e ao final da história as cortinas se fecham, o que vai de encontro a comentário de

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Marx sobre os grandes eventos da história serem encenados duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa. No caso do Iraniano o curso da história foi invertido. O filme também tem suas novidades, acrescentando ao que já foi contado nos quadrinhos, como no trecho em que Marjane procura fitas no mercado negro e cruza com as guardiãs da revolução e elas veem escrito “punk in not ded” atrás da jaqueta jeans. Nota-se que “ded” foi um erro de grafia para dead. Figura 14 – Cena do filme Persépolis

Fonte: Marjane Satrapi, Vincent Paronnaud. 2007. Persépolis

Outro momento que não está presente nos quadrinhos é ela e a avó assistindo o que parece ser Godzilla no cinema, reforçando o laço afetuoso com ela, assim como no fim da história. A história segue seu curso até sua ida para a Áustria e voltamos ao presente no aeroporto e Marjane ainda está sentada e tira seu véu, nesse momento da história ela não está mais no Irã, acontece o mesmo recurso de cores da primeira vez e ela se vê chegando na sua morada com as freiras. Uma elipse acelera a história até sua última morada na Austria, na casa da Frau Doktor Heller e depois satiriza ao máximo o término da relação com Markus.

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Marjane retorna ao Irã e depois reaparece no aeroporto no presente, mas dessa vez não leva a ação para o passado sendo feita por um corte seco. Quando volta Marjane passa a ter depressão, o filme trata poeticamente sua tentativa de suicídio e o estado letárgico que ela estava. Depois de sua recuperação acontece uma elipse narrativa junto a um número musical com a clássica canção Eye of The Tiger da banda Survivor que deixa ela já na universidade e encontrando Reza, o homem com quem iria se casar. Com o fim do casamento e da universidade, Marjane e seus pais concluem que a vida no Irã ficou insustentável e, por fim, parte para a França numa viagem sem volta. Figura 15 – Cena do filme Persépolis

Fonte: Marjane Satrapi, Vincent Paronnaud. 2007. Persépolis

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Figura 16 – Cena do filme Persépolis

Fonte: Marjane Satrapi, Vincent Paronnaud. 2007. Persépolis

No presente, Marjane sai do aeroporto e entra num táxi, quando o taxista pergunta de onde ela vem, prontamente responde, Irã, mantendo a integridade que prometeu a seus pais, sua avó e o tio Anuch. A versão fílmica da história não tem problemas de enredo em relação aos quadrinhos. O aeroporto é a maior metáfora do filme, já que a estrutura física do aeroporto esteja em um determinado território, dentro dele não se tem pátria ressaltando sua decisão no fim. Apesar da seriedade dos temas abordados, trata todos de forma poética e sem crueldade desnecessária. Nos quadrinhos a impressão final é de que Marjane traz o Irã para o mundo enquanto o filme leva o mundo ao Irã e por isso dá preferência ao panorama histórico político e menos espaço aos problemas femininos – embora representado no filme nos quadrinhos são mais presentes – mas, o excesso de fades como transições de cena e o tempo em preto e branco podem, a princípio, afastar o olhar dos mais novos sobre a obra. Alberti escreve sobre os dilemas da autobiografia, mas que são recorrentes na tradução:

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Assim, se alguém se põe a escrever uma autobiografia, um sentido em sua vida e dela operar uma síntese. Síntese que envolve omissões, seleção de acontecimentos a serem relatados (uns adquirem maior peso, são narrados mais longamente que outros), operações que o autor só é capaz de fazer na medida em que se orienta pela busca de uma significação: busca essa que lhe dirá quais acontecimentos ou reflexões devem ser omitidos e quais (e como) devem ser narrados. É essa busca também que prevalece na estrutura do texto, os relatos vão sendo narrados, acumulando-se uns aos outros, de modo que a significação se constrói no momento mesmo em que o autor escreve a autobiografia. (ALBERTI, 1991, p. 77)

Assim é possível dizer que a síntese da busca mítica de Marjane é “a liberdade tem um preço”.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A autobiografia, como foi apresentada, é resultado de um processo histórico e do uso da ficção como forma de transgredir o imediatismo causado pela Terceira Revolução Industrial e a política neoliberal que nos deixam sempre procurando o futuro em nossas telas, TVs, celulares, computadores, tablets, entre outras. Esperando o nosso Sr. Godot, mas diferentemente dos personagens de Beckett nós sabemos que o Sr. Godot não vem. Logo, procurar entender o passado é a melhor maneira de entender as dores do presente. No caso de Marjane, a autobiografia tinha como intenção mostrar o Irã real, desconstruir a representação do Irã feita pela grande mídia europeia. Vale lembrar que enquanto Persépolis, os quadrinhos, estavam sendo publicados na França, George W. Bush, na época presidente dos EUA, colocou o Irã na lista de países que denominou como “Eixo do Mal”. Ainda que os países dessa lista realmente tenham regimes autoritários, isso preserva o esteriótipo de bárbaro e terrorista que recai sobre todos os habitantes e imigrantes do Oriente Médio, em especial aos seguidores do Islã. Já o lançamento do filme, aconteceu em meio a política de Guerra ao Terror do governo Bush, O que contribuiu para o longo alcance que o filme obteve, ganhando boas avaliações da crítica especializada. Além de ser honesto ao não trabalhar com esteriótipos já utilizados em animação, que são perigosos porque agem diretamente no patrimônio poético do público, em especial as crianças. O que garante que consumindo esse tipo de produto uma criança não seja islamofóbica no futuro? Persépolis, filmes e quadrinhos, fala do Irã, mas ambos foram criados na França, se tivessem sido publicados no país do qual a história se trata não teriam um fim muito diferente do cineasta Jafar Panahi que dirigiu o longa-metragem O Círculo, em 2000, cuja chamada era “seu único crime era ser mulher” retratando a falta de direitos das mulheres iranianas. Esse e seus filmes seguintes eram lançados e aclamados internacionalmente, mas banidos pelo governo iraniano. Até quem em 2010 Panahi apoiou a candidatura de Mir Hussein Mussavi a presidência do Irã, ele propunha um governo tecnocrata e mais próximo do ocidente, acabou derrotado. O

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governo ficou entre condenar Panahi a ficar seis anos na prisão ou vinte anos sem poder filmar, acabou pegando a segunda condenação. E assim seria o fim de Persépolis no Irã. Outro ponto relevante no sucesso de Persépolis é que ele nas duas linguagens – quadrinhos e animação – rompe, de certa maneira, o ciclo da jornada do herói contemporânea, que terminam as suas sagas como semideuses, sem a falha trágica. Embora a palavra herói seja utilizada tanto para homens quanto para mulheres, destaca-se que os elementos das jornadas apesentadas por Joseph Campbell e Christopher Vogler são estritamente masculinos e não influenciaram diretamente a construção deste corpus. Marjane se expõe nas virtudes e nos defeitos, seus conflitos são internos e externos, e no fim ao seguir a palavra de todos os seus mentores, seus pais, sua avó e o tio Anuch, se torna mulher culta e emancipada, íntegra com sua identidade cultural, mas não pode ter liberdade na sua terra natal e então a busca em outro lugar, porém só. O principal ponto de questionamento da jornada feminina em relação a masculina é o uso da violência para atingir os seus objetivos, enquanto a mulher se veste de fábula para entrar no palácio, o homem procura uma espada para invadir o palácio. O dramaturgo Bertolt Brecht escreveu na peça Galileu Galilei “pobre do país que precisa de heróis”, mas afinal quantos túmulos são necessário para se construir um herói?

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