As comemorações da Revolução Constitucionalista de 1932: representação do passado e construção social do espaço regional (São Paulo, 1934 e 1955)

May 23, 2017 | Autor: Marcelo Abreu | Categoria: Regionalism, Cultural Memory, Commemoration and Memory
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As comemorações da Revolução Constitucionalista de 1932: representação do passado e construção social do espaço regional (São Paulo, 1934 e 1955) Marcelo Santos de Abreu

Introdução A Revolução Constitucionalista de 1932 é um objeto disputado. Desde o seu fim, os vencedores procuraram representá-la como tentativa de separatismo ou como movimento contra-revolucionário que buscava assegurar a volta ao poder das oligarquias paulistas depostas em 1930. Os vencidos, no entanto, não aceitaram a derrota e tentaram qualificar o insucesso militar como um “sacrifício” em prol da democracia e do Brasil. Julgavam que haviam vencido a batalha política, uma vez que viram conquistadas as reivindicações do movimento: as eleições para a Assembléia Constituinte, em 1933, a Constituição de 1934, a reconquista da autonomia e a garantia do princípio federativo. Nota: Marcelo Santos de Abreu é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ e bolsista da CAPES. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 40, julho-dezembro de 2007, p. 154-171.

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Para além dos livros publicados desde 1932, outras formas de construção da memória social foram acionadas para assegurar a verdade dessa interpretação da história. Desde 1932, a visita aos cemitérios sugeria a importância que o culto aos mortos teria nas comemorações da Revolução Constitucionalista. Em 1934, pela primeira vez, organizaram-se cerimônias cívicas que visavam à perpetuação da lembrança dos acontecimentos. Em 1955, as comemorações mudaram com a inauguração do Monumento-Mausoléu ao Soldado Constitucionalista de 1932. A partir desse ano, e até hoje, a celebração do passado concentrou-se na inumação dos mais de oitocentos combatentes mortos no interior do monumento. Nas duas situações, os rituais criados contra o esquecimento articulavam algumas idéias centrais: democracia, autonomia e unidade regional. Este trabalho procura mostrar como o tema da unidade regional desenvolvido nas cerimônias cívicas instituía a unidade do espaço regional amparada nas representações sobre o evento político. Parto da descrição dos rituais de 1934 e 1955, para em seguida compará-los e realizar algumas reflexões sobre a relação entre representação do passado e construção social do espaço. 1934: as comemorações na capital Dias antes do 9 de julho, os jornais paulistanos noticiavam os preparativos para as comemorações da Revolução Constitucionalista.1 Os ex-combatentes eram convocados por notas de seus batalhões correspondentes. Deviam comparecer à sede do Clube Atlético Bandeirantes ou da Associação Comercial em datas e horas precisas para reuniões de organização. Exortava-se a população da capital a comparecer às cerimônias com as cores de São Paulo, flâmulas, bandeiras e flores. Apelava-se aos comerciantes e industriais que liberassem os trabalhadores para a cerimônia e que enfeitassem seus estabelecimentos com as cores estaduais. Os preparativos incluíam passagens gratuitas cedidas pelas companhias de estradas de ferro para que representantes “do interior” escolhidos por comissões locais pudessem comparecer às cerimônias “na capital”. A comissão executiva recomendava que os ex-combatentes participassem do desfile cívico em trajes civis, portando apenas braçadeiras como signos distintivos de cada grupamento. A ordem rigorosa do programa preconizava lugares precisos para cada seguimento convocado a participar do desfile cívico. Em primeiro lugar, o esquadrão de motociclistas, seguido da banda que executaria marchas militares ao longo do desfile. Depois, os combatentes organizados em cinco grupos que correspondiam aos setores do campo de batalha durante a guerra civil: Norte, Leste (Minas), Sul, Sul de Mato Grosso e Litoral. Atrás dos “batalhões”, seguiria a “re155

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taguarda” formada por colegiais, escoteiros, guardas-civis, atletas dos clubes paulistanos, a Cruz Vermelha, as associações femininas, o MMDC e os batalhões infantis. O tempo da celebração também obedeceria à precisão militar. Às cinco horas da manhã, o toque de alvorada no largo de São Francisco, seguido de salva de 21 tiros. Às seis horas, as bandeiras de São Paulo e do Brasil seriam hasteadas. Entre 12 horas e 14 horas e 45 minutos, a concentração dos batalhões organizados em cinco setores nas ruas adjacentes à avenida Paulista. Junto aos batalhões, a “retaguarda” também formaria em lugares especificados pela comissão executiva. Às 15 horas, começaria o desfile cívico que percorreria a rua Minas Gerais, desembocaria na avenida Paulista em frente ao Monumento a Olavo Bilac, seguiria a avenida passando em frente ao parque do Trianon, onde se encontraria o “monumento simbólico” em homenagem aos mais de oitocentos mortos da “revolução”, ao lado do qual estariam Pedro de Toledo, governador do estado durante a “epopéia”, e os mutilados de guerra. Depois de passar pelo Trianon, o “povo em marcha” desceria a avenida Brigadeiro Luiz Antonio em direção ao largo de São Francisco, onde a formação de ex-combatentes e “retaguarda” se dispersaria. Estas informações repetiam-se a cada edição de O Correio Paulistano e O Estado de São Paulo entre os dias 3 e 8 de julho. À medida que o dia 9 se aproximava, os jornais noticiavam também o entusiasmo crescente que tomava conta da cidade. A retórica que envolvia as notícias sobre a comemoração na capital e no interior sugeria o clima de mobilização militar: “toque de reunir”, “apresentar armas” e “dia de glória” eram as palavras que abriam as manchetes de O Correio Paulistano referentes às solenidades entre os dias 4 e 7 de julho. Pelo que se pode depreender dos textos, participar das cerimônias cívicas do 9 de julho era mais que um dever, era um imperativo cívico. A repetição constante da programação nos jornais da capital colocava a cidade em compasso: dispunha o espaço e o tempo para a evocação dos acontecimentos de 1932. O relato da imprensa diária naqueles dias resignificava os espaços da cidade, transformando-a em cenário para o teatro da memória ancorada no passado recente. É provável que os atores da encenação, os ex-combatentes em seus batalhões, “a retaguarda” formada por colegiais, escoteiros e pela “mulher paulista”, e as autoridades junto ao “monumento simbólico” no Trianon, ainda tivessem bem viva a lembrança dos acontecimentos e fossem, portanto, capazes de compreender o sentido das demarcações que o relato da imprensa operava sobre a cidade e seus lugares. Não era preciso, talvez, recordar que o largo de São Francisco foi o lugar “onde teve início o movimento revolucionário”.2 A idéia de que a Faculdade de Direito do largo de São Francisco fora “o berço civil da revolução” era um lugar comum nas memórias dos participantes 156

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do movimento constitucionalista que começaram a ser publicadas imediatamente após o fim do conflito armado.3 Aureliano Leite, em um texto representativo desse esforço intelectual acerca do passado recente, descrevia o clima da “dileta Faculdade de Direito” repleta de voluntários tomados por “entusiasmo frenético” a transformar as arcadas em praça de guerra: As demais dependências do primeiro andar foram respeitadas. Naquela veneração por suas paredes lendárias, livros, quadros, retratos e arquivos, ninguém invadiu nenhuma peça. Mas, no rés do chão, aconteceu o contrário. As velhas salas de aula foram ocupadas para depósitos de armas e munições, alojamento e assistência médica. (Leite, 1934: 89) Nas memórias escritas pelos “constitucionalistas” e na demarcação do espaço operada pelo relato jornalístico, o velho edifício, repositório de tantas lembranças e da tradição liberal de São Paulo, ganhava mais uma camada de significado, convertendo-se em símbolo da Revolução Constitucionalista. As cerimônias do dia 9 contribuiriam para este investimento de sentido, uma vez que o toque de alvorada soaria no largo de São Francisco às cinco da manhã e para lá afluiriam os ex-combatentes em marcha pelo Centro da capital quase 12 horas depois. No dia 9, a marcha partiu da rua Minas Gerais, nas proximidades dos cemitérios da Consolação e do Araçá, onde estavam enterrados muitos dos revolucionários mortos. Entre eles, três dos estudantes de direito mortos a 23 de maio de 1932. Naquele dia, os estudantes Mário Martins de Almeida, Euclides Bueno Miragaia, Drausio Marcondes de Souza e Antonio Américo Camargo Andrade foram mortos na praça da República em meio aos confrontos entre manifestantes contrários à “ditadura” e membros do Partido Popular Paulista (Leite, 1934: 56). Dos nomes e prenomes dos estudantes mortos surgiu a sigla MMDC, que deu nome à organização política destinada a lutar contra a “ditadura”. Segundo um de seus fundadores, o MMDC surgiu no dia seguinte ao incidente na praça da República e congregava representantes de todos os partidos (PD e PRP) e “classes sociais” (Leite, 1934: 62). A escolha do lugar da concentração para o desfile não era, portanto, gratuita, mas obedecia a fins práticos e simbólicos. Próxima dos cemitérios, a rua Minas Gerais serviria de ponto de encontro para ex-combatentes e familiares que fossem reverenciar os mortos na manhã do dia 9. Além disso, o nome da rua remetia a uma das principais frentes de batalha durante a guerra de dois anos antes: o setor Leste, isto é, a fronteira entre São Paulo e Minas Gerais (Hilton, 1982). 157

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A ordem dos batalhões em desfile, definida pelos “setores” do campo de batalha a que cada um pertenceu, remetia à importância de cada “setor” durante a guerra. À frente da marcha seguiam os voluntários que serviram no setor Norte, seguidos dos setores Leste (Minas), Sul, Sul de Mato Grosso e Litoral. Os setores Norte e Leste correspondiam ao Vale do Paraíba e à fronteira Minas-São Paulo respectivamente, onde se deram os combates mais encarniçados da guerra civil. O setor Sul correspondia à fronteira com o Paraná, principal teatro de operações das tropas federais (Hilton, 1982). Estes três setores foram as principais frentes de batalha durante o movimento armado, e a ordem do desfile hierarquizava as regiões de todo o estado onde se deram os combates. Pode-se dizer que a marcha dos ex-combatentes pelas ruas de São Paulo enunciava, em um discurso feito de passos, a história recente. Segundo Michel de Certeau, existe uma retórica da caminhada em que a arte de moldar percursos corresponde aos atos de fala (Certeau, 1994: 179). Os relatos sobre os percursos têm como principal função criar um espaço autorizado, legitimamente reconhecido (Certeau, 1994: 209). O percurso dos ex-combatentes em sua marcha criava um princípio ordenador do espaço da cidade que articulava os tempos da história recente. Partia-se, nas proximidades dos cemitérios, de um presente carregado da memória dos mortos para chegar ao largo de São Francisco, ao “berço civil da revolução”, lugar que remetia ao passado ainda vivo nas lembranças dos primeiros dias do movimento constitucionalista. Mas a ordem dos “paulistas” no desfile, como um procedimento metonímico, também articulava toda a história da revolução inscrita na hierarquia dos “setores” do teatro de operações: era como se todo o espaço regional marcado pela experiência da guerra afluísse para a capital. Neste sentido, é possível afirmar que a marcha dos ex-combatentes pronunciava um princípio ordenador do espaço regional que articulava a periferia ao centro, o “interior” à “capital”. A capital, mais que centro político de um espaço geográfico, é o núcleo onde os valores sociais dominantes se concentram (Shils, 1996: 55). Antes de ser um lugar fisicamente demarcado, a capital é uma idéia central no sistema, é o ponto de concentração da autoridade no espaço social. Não foi por acaso, portanto, que a Faculdade de Direito foi tomada como lugar exemplar nos rituais do 9 de julho. Espaço de formação das elites políticas desde o século XIX (Adorno, 1988), a escola de direito era um repositório das idéias centrais que articulavam a atuação dos políticos paulistas na cena nacional (Love, 1982: 217). Marcada por uma formação liberal nas arcadas, nas décadas de 1920 e 1930, parte dos grupos dominantes enunciaria e lutaria por uma forma de organização da democracia sustentada em princípios elitistas. Nessa visão da democracia ilustrada, “as ‘elites modernas’ forjariam a consciência nacional promovendo a transformação da massa inculta em cidadãos ordeiros e respeitadores dos valores cívicos e patrióticos” (Capelato, 1988: 147). As intenções pedagógi158

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cas do desfile cívico organizado em 1934 combinavam a reverência ao passado consubstanciada no culto aos mortos à aceitação dos princípios de autoridade que deveriam articular o jogo político no presente. Naquela circunstância histórica marcada pelos debates em torno dos temas da centralização ou descentralização, isto é, entre a organização de um estado sob controle forte do governo central e a manutenção dos princípios federativos (Gomes, 1980: 240-241), a instituição social da unidade regional era uma exigência. Ainda assim, o campo político paulista encontrava-se cindido, mesmo com os esforços de construção da Chapa Única no sentido de garantir uma atuação unificada da bancada paulista na Constituinte (Gomes, 1980: 299). De fato, em meio às notícias sobre a comemoração do dia 9, O Correio Paulistano e O Estado de São Paulo travavam um debate intenso acerca da atuação do governo de Armando de Salles Oliveira e da Chapa Única. O Correio, órgão oficial do Partido Republicano Paulista que voltara a circular em 1934, acusava a aproximação do interventor federal com as intenções escusas do chefe do Governo Provisório. O PRP dizia através de seu aparelho que Armando de Salles Oliveira orientaria a bancada paulista a votar em Getúlio Vargas.4 O Estado, a defender as posições do Partido Constitucionalista, que agregava elementos do Partido Democrático e da “Ação Nacional” do PRP (Gomes, 1980: 301), rebatia as críticas acusando os perrepistas de incitar o separatismo e de conspiração contra o governo estadual.5 Essa querela em torno da política no presente se transfigurou aos poucos na forma como cada órgão de imprensa representante dos grupos políticos em disputa se apropriou da comemoração e de seu sentido cívico. As acusações mútuas de que os partidos tentavam monopolizar o civismo paulista consubstanciado nas comemorações do dia 9 ganharam as páginas dos jornais.6 Essas disputas em torno da política e da memória de 1932 não impediam, no entanto, que a narração das comemorações nos dois jornais coincidisse. Neste sentido, apesar da luta que se configurava sobre o protagonismo dos partidos no desenvolvimento dos acontecimentos de 1932, pode-se dizer que a imprensa colaborava para a eficácia das cerimônias do 9 de julho como um rito da unidade. Isto fica evidente quando os dois órgãos de imprensa narram de maneira quase idêntica todos os passos do desfile, na forma como atribuem sentidos aos espaços da capital percorridos, na marginalidade que constroem sobre as comemorações “no interior”, relegadas a breves notas sobre a adesão das associações de classe e personalidades interioranas às comemorações “na capital”. Um momento do desfile cívico em particular também evidencia essa tentação de apresentar São Paulo como um corpo unido em torno da memória. Quando os ex-combatentes passaram em frente ao parque do Trianon, prestaram continência a Pedro de Toledo, aos mutilados e aos mortos representados no cenotáfio especialmente construído para a ocasião. Nenhum dos jornais fez qualquer refe159

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rência desairosa a Pedro de Toledo; ao contrário, reverenciaram a sua autoridade relembrando sua ação como governador, caracterizada por um posicionamento acima das disputas.7 Além dos mortos anônimos, o ex-governador foi a única personalidade homenageada com a deferência especial dos ex-combatentes. Pedro de Toledo, septuagenário de família ilustre, recém-egresso do exílio em Portugal, governador aclamado durante a jornada constitucionalista, ex-embaixador brasileiro na Europa, formado em direito em São Paulo e Recife,8 deslocado da cena pública e do debate político que se desenrolava, representava melhor do que ninguém o princípio de autoridade que todas as forças políticas liberais preconizavam como forma necessária à ordem democrática elitista que desejavam construir. Porque se havia disputas sobre a direção do governo de São Paulo e do Brasil, não havia dúvidas sobre qual grupo social deveria dirigir o estado. A continência dirigida ao personagem durante o ritual era a reverência a um princípio ordenador da ordem política. Na consagração de Pedro de Toledo como personagem histórico, pode-se entrever a forma como um grupo social constrói sua objetivação como representante de uma coletividade, isto é, através de um ato que configura a impostura legítima que caracteriza toda delegação de poder (Bourdieu, 1990). Depois da passagem pelo Trianon, a marcha seguiu ainda alguns metros pela avenida Paulista, desceu a avenida Brigadeiro Luis Antonio e chegou ao largo de São Francisco. Nesse caminho, era como se os homens e mulheres que participavam do desfile refluíssem ao passado, ao ponto exato onde a revolução começou. Já não se ouvia o som do toque de alvorada, perdido então, quase 12 horas depois, no espaço infinito. Mas era possível ver as bandeiras de São Paulo e do Brasil hasteadas em frente à Faculdade de Direito às seis horas da manhã. Podia-se perceber igualmente a solidez do edifício e, talvez, venerar sua paredes “lendárias” carregadas de mais um significado: dali partiram os primeiros revolucionários de 1932 e ali sempre se formaram os indivíduos capazes de fazer a história, como Pedro de Toledo e os quatro jovens mortos. Pode-se dizer que os participantes do desfile, representantes de todos os “setores” da frente de combate, vindos “do interior” e de toda a “capital”, elementos de todas as “classes” como afirmavam os jornais,9 encontravam-se no centro de onde emanavam os valores que deveriam formar os paulistas. E, no entanto, muitos seguiram dali, como outros o fizeram pela manhã, para os cemitérios da capital, para homenagens menos solenes aos seus mortos. Nesse momento, o luto e o silêncio se sobrepunham aos sentimentos cívicos evocados durante toda a semana e intensamente vividos naquele dia 9 de julho. Esses sentimentos mais pessoais e difusos, porém, não cancelavam o civismo paulista objetivado na ritualização da história de 1932, porque a memória pública é feita da mistura de interesses e sentimentos populares sobre a experiência do 160

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passado com propósitos e anseios emanados de um grupo político organizado sobre a história e a política no presente (Bodnar, 1992: 18-19). As flores tomaram o lugar das bandeiras e flâmulas nos cemitérios paulistas desde a manhã,10 e é provável que não fosse mera adesão popular aos apelos da “comissão executiva”, mas uma incorporação pela mesma comissão de um gesto comum desde o dia de finados de 1932 – uma evidência, portanto, da relação entre a cultura cívica e o universo religioso cristão que delimitava o culto patriótico dos mortos (Mosse, 1990). A espontaneidade desse novo percurso ao final do desfile se revela no fato de o público disperso dirigir-se às necrópoles paulistanas sem qualquer coordenação previamente formalizada pelos organizadores das cerimônias. No “interior”, também aconteciam “romarias cívicas” aos cemitérios de cada localidade. Naquele 9 de julho, sentir-se paulista implicava posicionar-se entre o orgulho cívico e o sentimento de luto. Na capital, cada um desses sentimentos tinha lugar e gestos precisos. O “civismo paulista” expressava-se na chegada solene dos batalhões em marcha ao largo de São Francisco e misturava-se ao luto na continência defronte o cenotáfio.11 O luto, como manifestação pessoal da perda relacionada aos movimentos da história recente, revelava-se na visita silenciosa aos cemitérios, onde as famílias e amigos dos mortos não faziam mais do que depositar flores sob seus túmulos – e talvez lembrar da vida sacrificada em nome de São Paulo e do Brasil. 1955: as comemorações no estado Vinte e três anos depois da revolução, luto e civismo se encontram em um mesmo lugar. No dia 9 de julho de 1955, foi inaugurado o Monumento-Mausoléu ao Soldado Constitucionalista de 1932. Ainda inconcluso, sua construção arrastava-se por mais de dez anos nas imediações do parque do Ibirapuera, lugar que podia ser tomado como novo espaço que demarcava a identidade paulista nos anos 1950 (Marins, 2003: 33). A inauguração e a transferência dos restos mortais de Martins, Miragaia, Drausio e Camargo, além de Paulo Virgínio, para o mausoléu concentrava as atenções da imprensa, tornando-se centro exemplar de um complexo ritual (Turner, 1974; Geertz, 1991) que articulava vários pontos da capital e de todo o estado de São Paulo. A partir da narrativa dos eventos desenvolvida em O Correio Paulistano e O Estado de São Paulo, entre os dias 3 e 10 de julho,12 é possível ter a dimensão das cerimônias cívicas daqueles dias. Entre os dias 4 e 7, aconteceram as cerimônias de exumação dos “mártires” nos cemitérios do Araçá e São Paulo, na capital, e nos cemitérios municipais de São José dos Campos e Cunha, no Vale do Paraíba. No dia 8, os cortejos com os restos mortais de Martins, Dráusio e Camargo parti161

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ram da Faculdade de Direito do largo de São Francisco para a Catedral da Sé; ao mesmo tempo, outro cortejo partiu da cidade de São José dos Campos com os despojos de Miragaia e do “caboclo cunhense” Paulo Virgínio para a capital, em direção à catedral. No dia 9, um único cortejo com os “heróis” da capital e do interior reunidos sairia da catedral para o mausoléu. Esses rituais centrais se articulavam a outros. A visita aos cemitérios persistia como manifestação mais popular. Nas cidades do interior paulista, especialmente no Vale do Paraíba, as comissões municipais programaram “romarias cívicas” aos túmulos dos ex-combatentes de cada localidade, precedidas por missas solenes nas principais igrejas, no dia 9. Na capital, alguns batalhões e associações civis mandaram celebrar missas em homenagem aos mortos. Na Faculdade de Direito, à tarde, foi realizada uma “sessão cívica” quando os parentes dos estudantes de direito mortos em 1932 receberam diplomas simbólicos junto ao monumento dedicado à sua memória no pátio do edifício. À noite, a Companhia Municipal de Transportes Coletivos promoveu um festival de música com a presença de artistas do rádio. Como em 1934, a chamada à lembrança dos eventos e personagens da Revolução Constitucionalista ganhou as páginas dos jornais antes de chegar às ruas da “capital” e “no interior”. Os apelos da “comissão central”, que congregava a Sociedade Veteranos de 32, a Comissão Pró-Paulo Virgínio, a Fundação Pró-Monumento e Mausoléu ao Soldado Constitucionalista, entre outras associações cívicas, dirigiam-se à população da capital e de todo o estado para que saíssem às ruas com as cores de São Paulo. O apelo aos industriais e comerciantes para que liberassem os trabalhadores repetia-se mais uma vez, assim como a orientação para que enfeitassem seus estabelecimentos com as bandeiras de São Paulo e do Brasil e exibissem “relíquias de 1932”. Os mesmos apelos que emanavam da comissão central eram reproduzidos pelas comissões municipais em cada localidade. Além disso, as comissões orientavam a forma de proceder durante as cerimônias. Os homens deveriam comparecer às solenidades em trajes civis, as mulheres e crianças com as cores estaduais nas roupas e nas flâmulas. Todos deveriam guardar um silêncio respeitoso durante os cortejos e nas cerimônias de exumação e inumação dos despojos dos cinco “mártires” escolhidos. Esses apelos e a programação foram repetidos em todas as edições dos jornais e nas rádios desde o dia 3. O esforço governamental no sentido de colaborar com a mobilização realizava-se no decreto que considerava o dia 9 ponto facultativo nas repartições públicas. Além disso, a Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo promoveu palestras nas escolas para ressaltar “a importância histórica daquela eclosão de civismo que a todos empolgou” e dignificar o “soldado paulista que (...) deu seu sangue em prol da legalidade”.13 No interior e na capital, associações cívicas e de classe tomaram iniciativas semelhantes para promo162

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ver o conhecimento dos eventos de 1932 e seu valor cívico, uma realização que se coadunava com a pedagogia do cidadão-súdito que caracterizava a história ensinada naquele tempo (Bittencourt, 1992-1993: 7-16). É possível que a grande mobilização popular daqueles dias também resultasse de um preparo para esse tipo de manifestação cívica, uma vez que desde o fim do Estado Novo as celebrações da Revolução Constitucionalista voltaram às ruas. Além disso, no ano anterior, o IV Centenário da Cidade de São Paulo foi um momento de mobilização popular inigualável na história da cidade. Portanto, havia um clima favorável à comemoração. Ao contrário de 1934, as disputas políticas internas à região não se transfiguraram no debate sobre a memória de 1932, uma evidência da eficácia do trabalho de construção da memória do evento como símbolo da unidade regional. A distância no tempo e a rearticulação dos grupos políticos regionais segundo outros princípios, a partir da redemocratização que se seguiu ao fim do Estado Novo, levavam à constituição de certa unidade no discurso da imprensa sobre a política nacional e regional. Em 1955, os órgãos de imprensa avaliavam negativamente o governo estadual e, principalmente, a campanha presidencial em curso. O candidato paulista à presidência, Adhemar de Barros (PSP), era visto com desconfiança por conta de seu perfil populista, das denúncias de malversação dos fundos públicos e de sua ligação histórica com o “getulismo”. Aliás, este era um tema importante na discussão da campanha presidencial, pois todos os candidatos tinham biografias ligadas a Getúlio Vargas: Juscelino Kubitschek e João Goulart, na aliança PSD-PTB, Juarez Távora e Milton Campos pela UDN. A eleição era vista como uma oportunidade para “desentulhar o terreno” ou “instaurar o processo” do “estado novo” e de seu bando”,14 como afirmava o editorial do Estado de São Paulo publicado no dia 8. As opções, contudo, não eram boas, mas O Estado de São Paulo apoiava a candidatura da UDN, enquanto o Correio Paulistano parecia manter certa neutralidade. De qualquer forma, as comemorações do 9 de julho foram apropriadas como um símbolo do compromisso paulista com a democracia e a ordem legal, devendo servir de exemplo para a atuação política no presente.15 A Revolução de 1932 aparecia novamente como símbolo da unidade, da autonomia e do compromisso dos paulistas com a democracia. O sentido da palavra, contudo, mudara com a crescente participação das “massas” no cenário político. Essa percepção revelava-se na preocupação com as greves em Santos e com a mobilização para um congresso estudantil a ser realizado na capital na semana seguinte às comemorações.16 Não por acaso, parte do programa da Cruzada Paulista, associação suprapartidária de viés regionalista surgida em 1954, concentrava-se na moralização do voto.17 Além da mobilização das “massas”, outro aspecto do contexto também era ressaltado como uma ameaça à unidade: o crescimen163

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to do movimento municipalista. Dizia-se que o congresso dos municipalistas era apenas um pretexto para as articulações políticas do governador visando às eleições.18 É na tessitura dessas relações da memória com a política que se pode compreender a celebração da Revolução Constitucionalista em 1955, caracterizada pela multiplicação dos espaços e formas comemorativas acionadas para evitar o esquecimento e assegurar a integridade de São Paulo. Assim, a exumação dos corpos dos “soldados-santos” realizada simultaneamente na capital, em Cunha e em São José dos Campos, no dia 7, os cortejos que partiram da Faculdade de Direito e do Vale do Paraíba em direção à Catedral da Sé, no dia 8, e o cortejo e inumação dos despojos no mausoléu, no dia 9, objetivavam uma representação do espaço regional unificado na lembrança da guerra civil. É bastante significativo o destaque dado pela imprensa às comemorações “no interior”, se comparado à marginalidade a que foram relegadas em 1934. Obviamente, o aumento das comunicações entre os municípios interioranos e a capital facilitava o trabalho dos correspondentes enviados para cobrir as cerimônias no Vale do Paraíba, isto é, desde o quase esquecido “setor Norte” do desfile cívico de 1934. Mas este fato não explica totalmente o destaque conferido a esses espaços em 1955. Além dos quatro estudantes mortos em 23 de maio de 1932, a comissão central acatou o pleito da Comissão Pró-Paulo Virgínio, dirigida pelo procurador-geral do estado, César Salgado, no sentido de também homenagear o “herói cunhense”. Some-se a isso o fato de que Miragaia fora enterrado, por insistência de sua família, no lugar onde nasceu – São José dos Campos. No dia 7, ao mesmo tempo em que os despojos de Drausio, Camargo e Martins foram levados para o pátio da Faculdade de Direito, um cortejo com os restos mortais do “obscuro caboclo cunhense”, torturado e morto pelas tropas “ditatoriais” por não revelar as posições dos “revolucionários”, seguiu para São José dos Campos passando por várias cidades do Vale do Paraíba: Aparecida do Norte, Taubaté, Pindamonhangaba, Caçapava e Guaratinguetá. Em cada cidade, “grande massa popular” acolhia o herói do interior. Em Aparecida do Norte, por exemplo, os restos mortais foram conduzidos até a Basílica de Nossa Senhora Aparecida, centro de culto à padroeira do Brasil desde a década de 1930. Enquanto isso, em São José dos Campos, o corpo de Euclides Miragaia partia do cemitério local para a Igreja Matriz em uma “romaria” que seguiu pelas ruas embandeiradas com as “13 listras”, indicação do sucesso dos apelos das comissões locais para que o povo enfeitasse as ruas com as cores de São Paulo. Junto ao altar, o “herói de São José dos Campos” aguardaria a chegada do “herói de Cunha”. Os esquifes de Miragaia e Paulo Virgínio foram velados durante a noite do dia 7. Na missa solene, o pai de Miragaia e os filhos e enteados de Paulo Virgí164

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nio se abraçaram, num gesto imprevisto que colaborava para o sentido da celebração: a recomposição da família paulista, a união de “estudantes” e “povo” em torno dos ideais cívicos, a qual caracterizava a narrativa canônica sobre a Revolução de 1932. Na capital, os despojos dos estudantes paulistanos eram velados na Faculdade de Direito. Essa sensação de simultaneidade, de conformidade dos tempos, era estimulada nos textos da imprensa, como a unificar o espaço regional no tempo da celebração. No dia 8, pela manhã, os “heróicos valeparaibanos (sic)” partiram de São José dos Campos em direção à capital, onde as urnas de Martins, Drausio e Camargo deixavam as arcadas carregadas por “acadêmicos” e “veteranos” rumo à catedral. A comissão central recebeu o cortejo que partira de São José dos Campos na divisa da cidade de São Paulo com Guarulhos, no ponto exato do espaço que demarcava a divisão entre o centro do poder estadual e o “interior”. Às 11 e 30 da manhã, os dois cortejos se encontraram na praça da República, local consagrado como espaço da lembrança dos acontecimentos de 23 de maio de 1932. Nesse momento, o prefeito Lino de Matos aproveitou a ocasião para assinar, ao rés do chão, um decreto que conferia o nome de Paulo Virgínio a uma das ruas da capital. A recepção dos “heróicos valeparaibanos” na divisa da capital, o encontro dos dois cortejos e a nomeação da rua instituíam simbolicamente a unificação do interior com a capital. Daquele lugar carregado de sentido, um único cortejo percorreu as ruas do centro até a catedral. Ao longo do caminho, ex-combatentes em trajes civis destacavam-se da multidão com seus bibes e “capacetes de aço”, adereços característicos das tropas revolucionárias. Na chegada à catedral, os esquifes foram colocados “ombro a ombro” defronte ao altar. Seguiu-se uma “vigília cívica” entre meio-dia e nove da noite, em que uma guarda de honra se revezava junto aos esquifes. De hora em hora, corporações representativas da sociedade se alternavam na guarda dos “mártires”. Na primeira hora, a Comissão Central, na segunda, soldados da Aeronáutica, na terceira, os estudantes dos cursos superiores, na quarta, soldados do Exército, na quinta, operários e empregados do comércio, na sexta, membros de entidades de classe e profissionais, na sétima, professores universitários, secundários e primários, na oitava, soldados da Força Pública estadual, na nona e última hora, os “Veteranos de 32”. Após a saída da última guarda, os portões da Catedral se fecharam e assim permaneceram até as nove horas da manhã do dia 9 de julho. Capital e “interior”, “estudantes” e “povo”, todos os grupos representativos da sociedade paulista irmanados na memória de 1932, eis um dos sentidos dos rituais que se desenvolveram, entre o dia 7 e 8, em todo o estado. A sincronia das cerimônias da capital e do interior e a convergência dos cortejos na praça da República construíam uma imagem unificada do espaço regional. Sob o peso da memória da Revolução Constitucionalista, a sociedade paulista se apresentava 165

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unida em suas partes – espaços diversos e grupos sociais – apesar de todas as diferenças e interesses que marcavam a dinâmica social naquela circunstância. Justamente por isso é que o espaço regional, como um “lugar imaginado”, precisa ser lembrado como unidade, porque os “lugares lembrados” servem “como âncoras simbólicas para gente dispersa” (Gupta e Ferguson, 2000: 36). Em 1955, os cortejos entre a capital e o interior, entre a Faculdade de Direito e a praça da República, entre esse espaço carregado de sentido e a catedral suspendiam temporariamente a dispersão por meio do movimento ordenado entre os lugares e da confluência dos percursos para um centro ritual: o dia 9 de julho e o Monumento-Mausoléu ao Soldado Constitucionalista. No dia 9, é preciso notar, o centro se desloca da catedral para o mausoléu, de um altar religioso para um altar laico. Mas nesse deslocamento, contudo, a centralidade da autoridade é reafirmada o tempo todo. Na manhã do dia 9, uma multidão lotou a catedral. Na missa “réquiem”, as autoridades e personalidades concentravam-se junto ao altar, junto aos “santos-mártires”; atrás se encontravam os veteranos e seus descendentes; além desse limite, a “multidão” anônima, destituída de qualquer traço distintivo. Nessa situação ritual, a disposição espacial demarcava as hierarquias sociais. É significativo que só às autoridades e a alguns dos veteranos fosse atribuída singularidade através da menção aos seus nomes, sobrenomes e funções. Mesmo uma pessoa “do povo”, que desempenhava um papel de destaque na saída dos esquifes carregando uma bandeira paulista feita em 1932, só era referida como d. Maria, uma “mulher de cor” veterana das trincheiras. Ao longo do trajeto entre a catedral e o mausoléu, este centro formado pelas autoridades e veteranos ilustres seguiu de perto o carro do Corpo de Bombeiros que conduzia as urnas mortuárias. Os mesmos personagens também desempenharam um papel fundamental na inumação dos “mártires”, enquanto a multidão assistia a tudo silenciosamente nas margens. As autoridades do presente e os personagens ligados à “epopéia de 32” conduziram as urnas ao seu destino final: a tumba construída sob a estátua do herói jacente. Personalidades cuja história se prendia à política da capital, como o prefeito Lino de Matos, ou aos órgãos representativos de todo o estado, como Franco Montoro, então presidente da Assembléia Legislativa, conduziram as urnas dos “heróis do interior”, enquanto os esquifes dos “heróis da capital” ganharam seu lugar definitivo no “patrimônio cívico de Piratininga” pelas mãos dos chefes militares do Exército e da Aeronáutica, do governador do estado, Jânio Quadros, e de outras personalidades de destaque. Esses gestos foram os últimos que a “multidão” pôde ver entre a reverência e o silêncio. Dentro da cripta, o bispo de São Paulo encomendou os corpos. Os tambores soaram por 32 segundos e só uma voz se ouviu. Guilherme de Almeida, poeta paulista consagrado nos meios literários e na cena pública, recitou a Oração 166

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ante a última trincheira. Nesse poema, que hoje se encontra gravado em uma das paredes do mausoléu, Guilherme de Almeida relacionava o monumento à terra paulista, “corpo místico de São Paulo”, que só poderia ser maculada para o alicerce, a lavra, a sepultura e a trincheira, a mais legítima das feridas. Naquele “cavado trapo de terra”, misto de sepultura e trincheira, os “soldados-santos”, destituídos de tudo, permaneceriam para sempre: “Sem nada, senão vós mesmos, velai por nós! / Sem nada senão São Paulo, velai por nós!”.19 Mas a sepultura-trincheira também era lavra, pois o culto aos mortos era uma afronta ao esquecimento do passado regional, caracterizado pela luta perene de São Paulo pela democracia e o Brasil. Era também alicerce, pois, segundo um dos artigos que relacionava os fatos do passado às necessidades do presente, sobre a lembrança do “sacrifício de São Paulo” esperava-se erguer o Brasil imaginado em 1932.20

Conclusão: representação do passado e construção social do espaço As cerimônias cívicas de 1934 e 1955 são bastante diferentes em sua forma e nos significados instituídos pelos rituais no que se refere à construção de uma imagem de São Paulo como espaço unificado. No entanto, nos dois contextos, há um fundo comum, algumas idéias centrais que as comemorações procuravam objetivar, isto é, tornar manifesto. Todo ritual é uma formalização de princípios ordenadores e relações sociais consideradas relevantes para uma sociedade. Mais do que refletir e ratificar essas relações e idéias centrais, o ritual é uma forma de criá-las. Esta criação, contudo, não é mera reprodução e repetição de idéias imutáveis. As sociedades mudam, estão na história, e os símbolos socialmente construídos também se transfiguram. No caso das cerimônias consideradas neste trabalho, os referentes para a construção da Revolução Constitucionalista são praticamente os mesmos nos dois contextos. Imediatamente após o término do movimento revolucionário, inicia-se a criação de uma representação do passado recente que procura caracterizar a revolução como um movimento vitorioso, a despeito da derrota militar. Afinal, vieram as eleições de 1933, a Constituição de 1934, a manutenção do princípio federativo, a ampliação do direito de voto, a democracia, enfim, com as limitações da negociação mais ou menos controlada pelo Governo Provisório (Gomes, 1980). Pouco tempo depois da “vitória”, o Estado Novo, a supressão das liberdades e garantias individuais, a construção de um novo conceito de democracia que anulava o critério liberal da representação popular, uma nova organização do Estado nacional que proscreveu a garantia de autonomia. Ao fim do Estado Novo, a ordem democrática liberal se recriava em um espaço social diver167

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so, em que a presença das “massas” na cena pública crescia. Inicialmente, sob o peso dos aparatos criados para controlar sua autonomia organizativa, mas, aos poucos, a partir da década de 1950, encontrando brechas para expressar seus anseios e interesses. Neste sentido, entre 1934 e 1955, a idéia de democracia ilustrada de viés elitista e liberal não encontra mais lugar para realizar-se. Nos anos 1950, quando a democracia representativa funcionava plenamente, as leituras que os participantes das cerimônias do 9 de julho, inclusive a “multidão” silenciosa, podiam fazer desse conceito provavelmente eram mais múltiplas do que nos anos 1930. Não é um acaso, portanto, que, além dos “estudantes”, os “moços imolados”, um homem do “povo” fosse incorporado ao mesmo tempo ao “patrimônio cívico de Piratininga”. A insistência na comunhão, na coesão social, é muito mais pronunciada em 1955 que em 1934. Inversamente, a insistência no princípio da autoridade no ritual de 1934 é muito maior, como atestam o sentido atribuído à Faculdade de Direito pelo lugar que ela ocupava nas cerimônias e a reverência única à figura de Pedro de Toledo na passagem pelo Trianon. Em 1955, as hierarquias sociais também são objetivadas pelos rituais, mas de forma mais difusa e menos rígida, pois o centro do ritual é o culto aos mortos que consubstanciava o par estudantes-povo. Em 1934, as comemorações ratificam a subordinação do “interior” à “capital”, ao passo que o esforço de integração entre as duas partes é muito mais eficaz, em 1955, com a realização e o destaque conferido ao cortejo que levou os “heróicos valeparaibanos” ao centro de poder. Em 1934, a construção do espaço regional objetivada nos rituais reduzia-se a uma metáfora: a ordem dos batalhões hierarquizada segundo os “setores” das antigas frentes de combate desfilando pelas ruas da capital. Vinte e três anos depois, o centro ritual desloca-se no espaço: desde as fronteiras do estado, na cidade de Cunha, passando por todo o Vale do Paraíba, convergindo para a catedral e daí para o mausoléu, terreno mais ou menos neutro que deveria guardar a lembrança do sacrifício e do protagonismo de todos os grupos sociais. Neste deslocamento é possível que a imagem de São Paulo como unidade política tenha produzido efeitos mais eficazes que os desfiles de 1934. Nas duas situações rituais, a construção social do espaço se materializa em atos criadores que têm como sedimento uma visão do passado e uma percepção do presente. Ao contrário de pensar o espaço, particularmente a região, como um dado, como uma grade neutra onde os fenômenos sociais se localizam (Gupta e Ferguson, 2000: 32), a análise dos rituais do 9 de julho permite afirmar que o espaço é socialmente instituído. Neste processo, além das representações da natureza que normalmente balizam a demarcação de um lugar, as representações do passado, principalmente da história política, desempenham um papel prepon168

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derante, uma vez que o espaço se define por uma prática (Certeau, 1994: 202), pela conjunção de movimentos, pelo tempo a inscrever marcas e criar imagens que acabam por delimitar as ações futuras. Neste sentido, pode-se dizer que o espaço é história. No caso específico que tratei aqui, São Paulo como região é a história da Revolução Constitucionalista e sua lembrança.

Notas

1. A descrição das comemorações baseia-se nas edições de O Estado de São Paulo e O Correio Paulistano de 3 a 10 de julho de 1934. 2. Cf. O Correio Paulistano, São Paulo, 3 de julho de 1934. 3. Entre 1932 e 1937, publicam-se 105 livros relativos à Revolução Constitucionalista. A maior parte é de memórias escritas por ex-combatentes ou personalidades políticas do movimento (Camargo, 1972). 4. Cf. O Correio Paulistano, São Paulo, 1º de julho de 1934. 5. Cf. O Estado de São Paulo, São Paulo, 3 de julho de 1934 e O Estado de São Paulo, São Paulo, 4 de julho de 1934. 6. Cf. O Estado de São Paulo, São Paulo, 5 de julho de 1934 e O Correio Paulistano, São Paulo, 6 de julho de 1934. 7. Cf. O Estado de São Paulo, São Paulo, 10 de julho de 1934 e O Correio Paulistano, São Paulo, 10 de julho de 1934. 8. Para informações biográficas acerca de Pedro de Toledo, ver http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/ht m/biografias/ev_bio_pedrodetoledo.htm.

9. Cf. O Correio Paulistano, São Paulo, 10 de julho de 1934 e O Estado de São Paulo, São Paulo, 10 de julho de 1934. 10. Cf. O Correio Paulistano, São Paulo, 10 de julho de 1934. 11. Antoine Prost, em seu artigo sobre os monumentos aos mortos da Primeira Guerra na França, define um tipo especial de monumento que mescla as dimensões patrióticas e religiosas das homenagens. 12. A descrição dos rituais de 1955 baseia-se nas edições de O Correio Paulistano e O Estado de São Paulo de 3 a 10 de julho de 1955. 13. Cf. O Estado de São Paulo, São Paulo, 8 de julho de 1955 e O Correio Paulistano, São Paulo, 8 de julho de 1955. 14. Cf. “Uma tese insólita”, O Estado de São Paulo, São Paulo, 8 de julho de 1955. 15. Cf. “As lições da história”, O Estado de São Paulo, São Paulo, 9 de julho de 1955. 16. Cf. “Seriedade, não demagogia”, O Correio Paulistano, São Paulo, 3 de julho de 1955 e “Proibida a realização de Congresso Nacional de Estudantes”, O Estado de São Paulo, São Paulo, 9 de julho de 1955.

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estudos históricos l 2007 – 40 17. “Homenagem dos heróis de 32 à Cruzada Paulista”, O Correio Paulistano, São Paulo, 10 de julho de 1955. 18. Cf. “Municipalismo e política”, O Correio Paulistano, São Paulo, 8 de julho de 1955.

19. Cf. “Oração ante a última trincheira”, O Correio Paulistano, São Paulo, 10 de julho de 1955. 20. Cf. “As lições da história”, O Estado de São Paulo, São Paulo, 9 de julho de 1955.

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As comemorações da Revolução Constitucionalista de 1932

Resumo As comemorações da Revolução Constitucionalista de 1932 consagravam a memória deste evento político. Outro sentido das cerimônias cívicas era a produção social do espaço regional como unidade política. Este artigo analisa as relações entre as representações do passado e a construção social do espaço. Palavras-chave: Revolução Constitucionalista, comemoração, construção social do espaço Abstract The commemorations of the Constitutionalist Revolution (1932) consecrated the memory of this political event. Another sense of the civic ceremonies was the social production of the regional space as a political unity. This article analyses the relations between the representations of the past and the social construction of space. Key words: Constitucionalist Revolution, commemorations, social construction of space Résumé Les commémorations de la Révolution Constitutionnaliste (1932) consacraient la mémoire de cet événement politique. Un autre sens des cérémonies civiques était la production sociale de l’espace régional comme une unité politique. Cet article analyse les relations entre les représentations du passé et la construction sociale de l’espace. Mots-clés: Revolution Constitucionaliste, commémorations, construction sociale de l’espace

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