As contribuições do giro decolonial para uma perspectiva crítica dos direitos humanos

June 24, 2017 | Autor: Felipe Da Veiga Dias | Categoria: Direitos Humanos, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos
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Descrição do Produto

ORGANIZADORES:

BERNARDO DE AZEVEDO E SOUZA JULIANA BEDIN GRANDO MAIQUEL ÂNGELO DEZORDI WERMUTH

CIÊNCIAS CRIMINAIS E DIREITOS HUMANOS

REVISORA:

CAMILA PAESE FEDRIGO

ASSOCIAÇÃO REFLETINDO O DIREITO BENTO GONÇALVES 2015

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C569 Ciências criminais e direitos humanos / orgs. Bernardo de Azevedo e Souza, Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, Juliana Bedin Grando. / revisoras Camila Paese Fedrigo e Teresa Leopoldina dos Santos Ribeiro. Bento Gonçalves, RS: Associação Refletindo o Direito, 2015. 760 p. 21x29,7cm ISBN 978-85-67584-17-1 1. Direito penal. 2. Direitos humanos. I. Souza, Bernardo de Azevedo e. II.Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi. III. Grando, Juliana Bedin. IV. Fedrigo, Camila Paese.

CDU: 343.2

Índice para o catálogo sistemático: 1. Direito penal 343.2 2. Direitos humanos 342.7 Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária Márcia Servi Gonçalves – CRB 10/1500

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

10

A NUDEZ NO/DO DIREITO PENAL: A CONTRADIÇÃO ENTRE DIREITOS HUMANOS E O DIREITO PENAL DO INIMIGO 14 Aline Ferreira da Silva Diel Tamires de Lima Oliveria O DIREITO PENAL EM FACE DO FENÔMENO MIGRATÓRIO: QUANDO A MIXOFOBIA SE SOBREPÕE AOS DIREITOS HUMANOS 27 Camila Rodrigues da Rocha Klarissa Lazzarin de Sá POLÍTICA CRIMINAL E PRÁTICAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA: ESTRATÉGIAS PARA A PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA E PARA A PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NOS ESPAÇOS 41 Ester Eliana Hauser Lourdes Aparecida Grossmann O GÊNERO FEMININO A PARTIR DO PRISMA DA VITIMODOGMÁTICA E DA VITIMOLOGIA: percalços e possibilidades 60 Mariane Camargo D’Oliveira Maria Aparecida Santana Camargo DISCURSO FEMINISTA E PODER PUNITIVO: APROXIMAÇÕES (IM)POSSÍVEIS NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO 76 Joice Graciele Nielsson Raquel Cristiane Feistel Pinto A MAXIMIZAÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO A PARTIR DO ATUAL CONTROLE SOCIAL E A JUSTIÇA RESTAURATIVA E TERAPÊUTICA COMO MÉTODOS ALTERNATIVOS A JUSTIÇA RETRIBUTIVA NO BRASIL 96

Alexandre Marques Silveira Felipe da Veiga Dias A IMPORTÂNCIA DO SISTEMA DE TROCA AUTOMÁTICA DE INFORMAÇÕES DOS PARAÍSOS FISCAIS RELACIONADO AO TRÁFICO DE DROGAS E O ACESSO ÀS NECESSIDADES BÁSICAS DO CIDADÃO 112 Guilherme Augusto Souza Godoy A CONSTITUIÇÃO DE UM CÓDIGO PENAL ALICERÇADO NO ESTADO DE EXCEÇÃO DE “SALÒ OU OS 120 DIAS DE SODOMA” E A REPERCUSSÃO NO HOMO SACER 125 Laura Mallmann Marcht O COMBATE AO TERRORISMO NA SOCIEDADE INTERNACIONAL: O PAPEL DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS ‘ 136 Aline Michele Pedron Leves Pâmela Copetti Ghisleni PARA QUE(M) SERVE O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA?

155

Paulo Thiago Fernandes Dias A CORRUPÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO MODERNO E A INFLUÊNCIA POLÍTICA E MIDIÁTICA NA CRIAÇÃO DA LEI PENAL 174 Maíra Fronza Adalberto Narciso Hommerding A CRIMINALIZAÇÃO DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA E SEUS EFEITOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO 186 José Ricardo Maciel Nerling Regina Gütler Carvalho UMA INTRODUÇÃO ÀS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO BRASIL 198

Antônio Paulo Soares Lopes da Silveira Mariana Azambuja DIREITO PENAL DO INIMIGO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: DECORRÊNCIA DE UMA SEGURANÇA PÚBLICA EM CRISE 218 Pedro Henrique Baiotto Noronha A CASTRAÇÃO QUÍMICA: SUA EXPLÍCITA INCONSTITUCIONALIDADE EM CONSONÂNCIA À (RE)SOCIALIZAÇÃO DO APENADO 238 Diovan Roberto Schmalz A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL: QUAL SUA EFICÁCIA E POSSÍVEIS MEDIDAS ALTERNATIVAS 257 Lucas Oliveira Vianna CRIMES CONTRA A SEGURIDADE SOCIAL

280

Ana Paula Schmidt Favarin O MILITARISMO UM SISTEMA PARA SER REVISTO

294

Elmir Jorge Schneider PLURALISMO JURÍDICO, DIREITO INFORMAL E A CRIMINALIDADE 311 Jeannine Tonetto de Aguiar PROPOSTA DE REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: UMA ABORDAGEM À LUZ DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA 328 Dieison Felipe Zanfra Marques Tatiane Sartori Bagolin RACISMO: DA LEI AÚREA À CRIMININALIZAÇÃO. UM ESTUDO ACERCA DA EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASIILEIRA 342 Fagner Cuozzo Pias

A APLICABILIDADE DA LEI DO FEMINICÍDIO ÀS TRAVESTIS E TRANSEXUAIS 355 Ana Patrícia Racki Wisniewski; Camila Paese Fedrigo A SELETIVIDADE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DA ATUAÇÃO DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO COMO INSTRUMENTO DE LEGITIMAÇÃO E REPRODUÇÃO DA ORDEM SOCIAL EXCLUDENTE: UMA ANÁLISE A PARTIR DO PERFIL DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA CONTEMPORÂNEA 367 Luana Rambo Assis Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA DECISÃO JUDICIAL QUE DECRETA A PRISÃO PREVENTIVA 383 Bruno Silveira Rigon Felipe Lazzari da Silveira. O DIRETO FUNDAMENTAL À SAÚDE E A REALIDADE NA OBTENÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO ‘ 403 Janaína Machado Sturza Luís Fernando Pretto Corrêa A TUTELA DO DIREITO À SAÚDE NO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO 423 Juliana Oliveira Santos Marcelo Dias Jaques ANÁLISE BIOPSCICOSSOCIAL DO USO DE ALGEMAS: CONFLITO ENTRE A LEI E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 443

Fernanda Licéli Lowe

O PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO E O PODER JUDICIAL DE VALORAÇÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO 461 Gabriel Maçalai Patrícia Borges Moura OS REFLEXOS DA MÍDIA NO PROCESSO PENAL INQUISITORIAL BRASILEIRO 480 Damiani Costa e Silva Eduardo Vieira Hilário DIGNIDADE E DIREITOS HUMANOS PARA APENADOS – DIMENSÕES DA ECONOMIA SOLIDÁRIA 493 Enio Waldir da Silva O ASPECTO INTERNACIONAL E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA INTERAMERICANO A PARTIR DO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA 505 André Giovane de Castro Marcelo Loeblein dos Santos O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: (IN)APLICABILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL 526 Renata Maciel Juliana Bedin Grando O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS SOB A ÓTICA DA LEI MARIA DA PENHA 537 Eliete Vanessa Schneider Bruna Katiane Boeno A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DEMOCRÁTICA PREMISSA À UMA SOCIEDADE IGUALITÁRIA Janaína Schorr Alfedo Copetti Neto

COMO 549

ANÁLISE COMPARADA: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA ARGENTINA E NO BRASIL 564 Carla Dório de Oliveira Doglas Cesar Lucas OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO: AVANÇO OU RETROCESSO? 584 Daniela da Rosa Molinari Marcele Scapin Rogério OS NOVOS DIREITOS E A INFLUÊNCIA DAS NOVAS TECNOLOGIAS NOS DIREITOS HUMANOS: A INTERNET (IN) FORMANDO CIDADÃOS 602 Danielli Regina Scarantti POR UMA CULTURA PLANETÁRIA DOS DIREITOS HUMANOS: APONTAMENTOS A PARTIR DO PENSAMENTO DECOLONIAL 618 Carolina Menegon AS CONTRIBUIÇÕES DO GIRO DECOLONIAL PERSPECTIVA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS

PARA

UMA 632

Tamiris A. Gervasoni Felipe da Veiga Dias

DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA CRÍTICA: AFINAL, ONDE SE SITUAM? 649 Iuri Bolesina Tássia A. Gervasoni MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS COMO MECANISMO DE CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA E GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS 670 Luana Nascimento Perin Eloísa Nair de Andrade Argerich

A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS (DIR) EM ÁREAS ESPECÍFICAS 682 Ana Cristina Mendes Valéria Mendes Pinheiro A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO COMPORTAMENTO SOCIAL: O JORNALISMO JUSTICEIRO E A OFENSA AOS DIREITOS HUMANOS 708 Danielli Zaninni Vinícius Bindé Arbo de Araujo A BUSCA POR RECONHECIMENTO DAS IDENTIDADES E O EMPODERAMENTO DA SUBJETIVIDADE: O “CLUBE DA LUTA” E A REBELIÃO DOS DESAJUSTADOS 725 Tiago Meyer Mendes

APRESENTAÇÃO De acordo com a lição de Muñoz Conde1, enquanto existir Direito Penal – e nas atuais condições deve-se ponderar que ele existirá por muito tempo –, deve existir também sempre alguém disposto a estudá-lo e analisá-lo racionalmente, de forma a convertê-lo em instrumento de mudança e progresso rumo a uma sociedade mais justa e igualitária, denunciando, para tanto, além das contradições que lhes são ínsitas, as contradições do sistema econômico que o condiciona. Na contemporaneidade, os estudos acerca do processo de expansão do Direito Penal assumem especial relevância, em face das consequências nefastas que o alargamento da intervenção punitiva produz no que diz respeito à proteção dos direitos e garantias fundamentais, dado que dito processo

expansivo

encontra-se

assentado

em

bases

que

são

características de um Direito Penal autoritário e demasiadamente repressivo, inadmissível no atual estado de desenvolvimento da civilização. Ocorre que o medo e a insegurança que permeiam as relações sociais na pós-modernidade, em decorrência das novas tecnologias e da incerteza que o futuro da sociedade globalizada representa em face dos riscos que lhes são característicos, permitem a afirmação de que, da mesma forma como a modernização dissolveu a sociedade agrária do século XIX e elaborou a imagem da sociedade industrial, é agora responsável pelo surgimento da uma nova figura social: a sociedade de risco. O ingresso nessa sociedade de risco se dá a partir do momento em que os princípios de cálculo da sociedade industrial são encobertos e anulados, e os perigos socialmente produzidos ultrapassam os limites da segurabilidade. Com isso, passa-se de uma lógica de “distribuição de riquezas” – característica da sociedade industrial clássica – para uma lógica de “distribuição de riscos”. A potenciação dos riscos da MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 1

modernização caracteriza, assim, a atual sociedade de risco, que está marcada por ameaças e debilidades que projetam um futuro incerto2. O aumento da preocupação com as novas formas de criminalidade que se apresentam nesta realidade é consequência inafastável dos cada vez mais fortes sentimentos de insegurança e medo na sociedade conte\mporânea, a reclamarem por parte de uma população cada vez mais atemorizada diante da utilização deste “medo” como “mercadoria” pelos meios de comunicação de massa, por uma maior presença e eficácia das instâncias de controle social, diante daquilo a que Pérez Cepeda3 denomina de “cultura da emergência”. Os

sentimentos

contemporânea

de

adquirem

insegurança novas

e

medo

dimensões

na

sociedade

diariamente,

sendo

influenciados diretamente pelos meios de comunicação de massa, utilizados como mecanismos para fomentar crenças, culturas, valores e formar opinião sobre os mais diversos temas. Para sustentar os interesses que representa, a mídia passa explorar a criminalidade em grau máximo. Assim, o medo de se tornar vítima de um delito é transformado em mercadoria da indústria4 cultural, criando uma preocupação social com as novas formas de criminalidade. O medo difuso e constante do crime torna-se, então, infinitamente maior do que a possibilidade real de ser vítima de um delito. É dizer: a vivência subjetiva dos riscos passa a ser claramente superior à sua própria existência objetiva. O sentimento geral de insegurança e medo, alimentado e acentuado pelos

meios

de

comunicação,

apresenta-se,

pois,

de

maneira

desproporcional em relação à existência concreta do risco. Como aponta David Garland5, a gravidade do problema é inegável nos dias de hoje, a ponto de já estarem sendo desenvolvidas políticas específicas mais com 2BECK,

Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad.Trad. Jorge Navarro, Dabiel Jiménez e Maria Rosa Borrás. Barcelona: Paidós, 1998. 3 PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho penal postmoderno. Madrid: Iustel, 2007. 4 CARVALHO, Amilton Bueno de. Eles, os juízes criminais, vistos por nós, os juízes criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. pp. 23-24. 5 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan. 2008. p. 346 e ss.

objetivo de reduzir os níveis de medo e insegurança do que propriamente mitigar o crime. Em uma sociedade como a nossa, na qual os valores não são suficientemente robustos para orientar as condutas sob uma perspectiva generalizada,

predominando

a

desorganização,

aceleração

e

complexidade das relações sociais, associado ao interesse dos meios de comunicação em fomentar na coletividade uma sensibilidade exacerbada, é natural que a reação social seja a de clamar por conforto, mesmo que ilusório, por meio do Direito Penal, ainda que possa implicar em relativizações ou violações totais de direitos e garantais fundamentais. Com efeito, buscando dar respostas eficazes à população, o Direito Penal que se estrutura nesse contexto passa por um processo de expansão

do

seu

raio

de

intervenção,

com

uma

significativa

transformação dos objetivos e do campo de atuação da política criminal, em decorrência da proeminência que é dada à intervenção punitiva em detrimento de outros instrumentos de controle social (Direito Civil, Direito Administrativo). E a busca por eficiência exige a “adequação” dos conteúdos do Direito Penal e Processual Penal às dificuldades ínsitas à persecução às novas formas assumidas pela criminalidade, o que perpassa por um processo de “atualização” dos instrumentos punitivos, com a consequente flexibilização e/ou supressão de garantias penais e processuais penais liberais. Como consequência, surgem no âmbito das Ciências Criminais posturas repressivistas/punitivistas que concebem como principal causa da violência e da criminalidade na sociedade contemporânea o afrouxamento na repressão e a impunidade de grande parte dos envolvidos com crimes. Neste sentido propõem um maior endurecimento nas penas, a supressão de garantias e a busca pela superação da impunidade como estratégia primeira de segurança, panorama que coloca em risco os direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, o livro que ora temos o prazer de apresentar, afigura-se como fruto de um conjunto de pesquisas que foram apresentadas durante a realização do I Congresso Nacional de Ciências

Criminais e Direitos Humanos, na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, em parceria com o Canal Ciências Criminais. Partindo do panorama geral acima delineado, o presente livro dedica-se a promover o debate de diferentes temáticas relacionadas às Ciências Criminais, à luz dos Direitos Humanos. Trata-se de uma obra instigante que apresenta contribuições de diversos autores sobre temas atuais e relevantes no âmbito da Criminologia, Política Criminal, Direito Penal, Direito Processual Penal e Direitos Humanos, servindo como uma importante fonte de pesquisa para acadêmicos e demais pessoas interessadas no debate acerca da construção de um modelo de Direito Penal mais justo e igualitário, em conformidade com os postulados de um Estado Democrático de Direito.

Os organizadores.

A NUDEZ NO/DO DIREITO PENAL: A CONTRADIÇÃO ENTRE DIREITOS HUMANOS E O DIREITO PENAL DO INIMIGO1 Aline Ferreira da Silva Diel2 Tamires de Lima de Oliveira3 1. INTRODUÇÃO O controle exercido pelo direito penal conduz a uma instável segurança normativa, dada sua progressiva expansão regulatória. Essa esfera do direito conduz a sociedade a um temor relevante das ações humanas caracterizadas como violentas, achando no direito penal o veículo de proteção adequado, na medida em que este separa o sujeito transgressor do restante da sociedade que compactua com os acordos morais de "boa convivência". Para o sujeito transgressor, o afastamento do núcleo social é a medida coercitiva/educativa perfeita para o direito penal - aqui caracterizado pelo crescente direito penal do inimigo, ainda que de forma simbólica -, na medida em que busca corrigir - ou eliminar - o sujeito e alertar os demais sobre as ações proibidas. Esta lógica é tornada simples, pois "um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa" (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p. 36). Tem-se neste controle expansivo a caracterização da vida nua, que diferencia a bios e zoé, resultando no sujeito que possui uma vida que não vale a pena ser vivida. A figura excluída, ou o homo sacer, é banido do

1Este

artigo é resultado de um recorte teórico no qual se pretende desenvolver o Projeto de Dissertação vinculado ao Programa de Pós-Graduação stricto-sensu, Mestrado em Direitos Humanos, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ, Ijuí, RS. Este trabalho foi desenvolvido com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES 2Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões URI, campus Santo Ângelo/RS. Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - Unijuí, Ijuí/RS. Bolsista Capes. 3Mestranda em Direitos Humanos no Programa de Pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ - Brasil), graduada em Direito pela mesma instituição, bolsista Capes, e-mail: [email protected].

14

núcleo social, tornando-se um não-sujeito, que passa a viver sob a tutela de um estado de exceção, ou seja, marcado pela ausência de tutela dos direitos humanos. Enfrenta-se a nudez dentro do direito penal; a separação de indivíduos a partir de uma violência legitimada pelo Estado, deveras arbitrária, mas cogente nos preceitos normativos. "A redução do homem à vida nua é hoje a tal ponto um fato consumado que ela está agora na base da identidade que o Estado reconhece perante seus cidadãos" (AGAMBEN, 2015, p 84). É sob o propósito de debater a inserção crescente do Estado - aqui pelo direito penal - na vida dos indivíduos que este artigo se alicerça. A partir da concepção agambeniana sobre a vida nua e o discurso expansivo do direito penal, quese estabelece o contrassenso na tutela dos direitos humanos. "A vida nua não está mais confinada em um lugar particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente" (AGAMBEN, 2002, p. 146), o que legitima a morte - simbólica e real - dos indivíduos pelo Estado como um propósito moral. 2. ENTRE ZOÉ E BIOS: O CAMINHO DA SEPARAÇÃO DA VIDA QUE NÃO VALE A PENA SER VIVIDA E A CARACTERIZAÇÃO DO HOMO SACER Para Agamben (2002, p. 09)zoéé a vida comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses), enquanto biosé a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. A zoéé a vida livre, natural e ordenada pelas regras da natureza; é a vida nua. Bios é a vida "criada" pelo homem enquanto ser social; é a vida politizada. O homem cria a sociedade para viver bem e, conforme Agamben (2002, p. 10) parafraseia Aristóteles, "este é o fim supremo seja em comum para todos os homens, seja em comum separadamente" que "unem-se e mantêm a comunidade política tendo em vista o simples fato de viver". A vida em comunidade traz benefícios para o homem individual e "nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos" (ARENDT, 1989, p. 31). A 15

evolução do indivíduo depende da comunidade que o cerca, pois esta supre suas necessidades vitais. As coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das atividades humanas, que não teriam sentido sem tal localização; e, no entanto, este ambiente, o mundo ao qual vivemos, mão existiria sem a atividade humana que o produziu, como no caso de coisas fabricadas; que dele cuida, como no caso das terras de cultivo; ou que o estabeleceu através da organização, como no caso do corpo político (ARENDT, 1989, p. 31).

Para manter o corpo político em ordem é necessária uma intervenção superior que reprima qualquer possibilidade de revolta da população ordenada. O corpo político que deu vida ao Estado permite que este intervenha na vida individual dos cidadãos. Surge o direito como mecanismo intercessor, regulando condutas e sancionando o desvio. Nesta seara, o direito penal é o veículo predecessor que regula a "boa" convivência social, tendo em suas medidas coercitivas, o mecanismo de controle social. No entanto, este controle atravessa as fronteiras da simples regulação, a partir do momento em que o direito penal caracteriza-se por uma expansividade sem limites, controlando todos os atos da vida humana, seja individual ou em sociedade. Esta intervenção qualifica o sujeito que pode conviver em sociedade daquele que deve ser afastado. Surge a manipulação dos corpos para que se tornem dóceis e manejáveis, a partir de regras, estabelecidas pelo direito penal, que se configura como um contrato social de regulação das ações humanas. O indivíduo que não se adaptar a esta regulação será banido do corpo social, para que a ordem anterior possa ser mantida. Esta exclusão pode ser associada a uma figura arcaica do direito romano: o Homo Sacer.4 Este personagem, segundo apresenta Castor Bartolomé Ruiz, a partir da teoria de Agamben, é uma figura

4Ruiz

complementa que a figura do homo saceré um conceito-limite do direito romano que delimita o limiar da ordem social e da vida humana. Nele transparece a correlação entre a sacralidade e a soberania. Ambas são estruturas originárias do poder político e jurídico ocidentais porque revelam os dois personagens que estão fora e acima da ordem: o homo sacer e o soberano (RUIZ, 2013, p. 33).

16

[...] jurídico-política pela qual uma pessoa, ao ser proclamada sacer, era legalmente excluída do direito (e consequentemente da política da cidade). Tal condição de sacer impedia que ela pudesse ser legalmente morta (sacrificada), porém qualquer um poderia matá-la sem que a lei o culpasse por isso (2013, p. 33).

Saceré a vida abandonada pelo direito pelo fato de não ter-se adaptado à organização política-social. O Homo Sacer constitui a vida que não vale a pena ser vivida e que deve ser excluída do núcleo social, ensejando uma morte simbólica. O indivíduo declarado sacer deixa de constituir a bios, ou a vida em comunidade; "é uma vida matável por estar fora do direito, mas por isso mesmo ela não pode ser condenada juridicamente". Este abandono se caracteriza pela exposição "à vulnerabilidade da violência por ser desprovida de qualquer direito, sendo que tal vulnerabilidade se deriva de um ato de direito que a excluiu" (RUIZ, 2013, p. 33). O sujeito que transgride as concepções normativas da bios passa a ser constituído como o sujeito detentor da vida que não vale a pena ser vivida, e isto se conduz ao [...] fato de que à soberania do homem vivente sobre a sua vida corresponde imediatamente à fixação de um limiar além do qual a vida cessa de ter valor jurídico e pode, portanto, ser morta sem que se cometa homicídio. A nova categoria jurídica de "vida sem valor" (ou indigna de ser vivida) corresponde ponto por ponto [...] à vida nua do homo sacer (AGAMBEN, 2002, p. 146, grifo do autor).

Com efeito, "ohomo sacer não só mostra a fragilidade da vida humana abandonada pelo direito, mas também, e mais importante, revela a existência de uma vontade soberana capaz de suspender a ordem e o direito" (RUIZ, 2013, p. 33, grifo do autor). E na concepção de Agamben (2002, p. 146), "é como se toda valorização e toda "politização" da vida [...] implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, é então somente "vida sacra".5 Destarte, a

5A

vida sacra, na concepção de Agamben, é a vida insacrificável e, todavia, matável. Em complemento, o autor destaca que aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto, sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência - a morte insancionável que qualquer um pode

17

expansividade do direito penal, utilizando simbolicamente o direito penal do inimigo, acaba por asseverar o condicionamento de determinados sujeitos ao homo sacer alocando-os de volta a bios, ou à vida nua. 3. O DISCURSO EXPANSIVO DO DIREITO PENAL: OS FINS QUE JUSTIFICAM A VIDA NUA E A ADOÇÃO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO O direito penal obedece ao fim específico da exclusão, muito antes de proteger a sociedade da violência ou crescente criminalidade; aliás, "o exercício de poder do sistema punitivo, dado seu caráter flagrantemente seletivo,

visa,

antes

do

combate

à

criminalidade,

à

contenção

de

determinados grupos humanos que, diante da configuração socioeconômica, traduzem-se em inconvenientes sociais" (WERMUTH, p. 236). O Homo Saceré idealizado nos baixos estratos sociais, onde impera a marginalização da pobreza e onde as "raízes" do Estado apenas se apresentam no aspecto punitivo, criando estereótipos do indivíduo como um ser pobre, negro e favelado. Além do caráter de exclusão, o direito penal constitui a gestão da vida social, ao regular e controlar determinados - ou todos - os atos da vida humana em sociedade. Cria-se uma espécie de regulamentação da moral social, visando ao exercício de uma cidadania tida como correta. O indivíduo que não seguir esta regulação será tratado como outro que não se adaptou ou não aceitou esse contrato social. Esta é uma característica da expansividade desta seara do direito em todos os aspectos da bios.6 Outrossim, a própria sociedade encontra nos mecanismos penais uma barreira que divide a comunidade de "bem", dos sujeitos transgressores da

cometer em relação a ele - não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio (2002, p. 90). 6No que concerne à questão da expansividade do Direito Penal, Manuel Cancio Meliá e Günther Jakobs destacam que o ponto de partida de qualquer análise do fenômeno, que pode denominar-se a "expansão" do ordenamento penal, está, efetivamente, em uma simples constatação: a atividade legislativa em matéria penal, desenvolvida ao longo das duas últimas décadas nos países de nosso entorno tem colocado, ao redor do elenco nuclear de normas penais, um conjunto de tipos penais que, vistos desde a perspectiva dos bens jurídicos clássicos, constituem hipóteses de "criminalização no estado prévio" a lesões de bens jurídicos, cujos marcos penais estabelecem sanções desproporcionalmente altas (2005, p. 56).

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ordem social. Assim, a sociedade encontra no Direito Penal a força e a garra para exterminar o mal que a assola: se um cidadão atua fora do quadro jurídico estabelecido e aceite pela comunidade - a cujo pacto todos os homens aderem sob regra da prevalência da vontade da maioria -, violando o contrato social, e, depois de ser advertido com uma pena ou de saber que há condutas inadmissíveis e inaceitáveis na ordem jurídica por serem aniquiladoras da harmonia vivencial, esse cidadão não pode nem deve ser tratado como um cidadão, mas como um inimigo da comunidade (VALENTE, 2010, p. 16, grifo do autor). 7

Utilizando-se da pena, o direito penal se justifica como um meio de defesa social, o que significa "defender a sociedade desses seres perigosos que se apartam ou que apresentam a potencialidade de se apartar do normal (prognóstico científico de periculosidade) havendo que os ressocializar ou neutralizar" (ANDRADE, 2003, p. 37-38). Nesta senda, a pessoa caracterizada como homo sacer"é simplesmente posta para fora da jurisdição humana [...]" (AGAMBEN, 2002, p. 89). O sujeito tendente a perder seu lugar na sociedade, perde, deveras, todos os direitos intrínsecos ao seu status de cidadão, caracterizando a vida nua, ou aquela vida que não vale e pena ser vivida e, muito menos, tutelada pelo direito e suas garantias fundamentais, pois deixa de atender a um bem maior que é a própria sociedade, sendo caracterizado como um inimigo, não apenas da comunidade, mas do próprio Estado. Este inimigo é despersonificado frente à sua comunidade, passando a receber tratamento diverso do despendido ao cidadão comum - ou o cidadão de bem -. Esta despersonificação é caracterizada pela retirada do status de cidadão do "delinquente", tornando-o um inimigo da sociedade, a ser combatido pelo direito penal. Quem por princípio se conduz de modo desviado, não oferece garantia de um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo. Esta 7Para

Günter Jakobs, utilizando-se de autores contratualistas, justifica essa exclusão no sentido de que o delinquente que infringe o contrato social estabelecido pela sociedade portanto, pela maioria - não participa mais dos benefícios deste e, a partir deste momento, já não vive com os demais dentro de uma relação jurídica (JAKOBS; MELIÁ, 2005).

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guerra tem lugar com um legítimo direito dos cidadãos, em seu direito à segurança; mas diferentemente da pena, não é Direito também a respeito daquele que é apenado; ao contrário, o inimigo é excluído (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p.49).

Os indivíduos "que pela sua antijuridicidade permanente ou elevada danosidade da sua conduta são considerados como seres nocivos e perigososà vigência da ordem jurídica tutelante e detentora do primado da paz jurídica e social" (VALENTE, 2010, p. 91, grifo do autor), são controlados, conjunta e simbolicamente ao direito penal, por um Direito Penal do Inimigo, que passa a regular a vida nua, ou a vida desprovida de direitos. Ao tornar-se inimigo, este indivíduo será automaticamente excluído do grupo social, recebendo uma carga de estereótipos e estigmatizado, sendo dificultada sua reinserção na comunidade. A esta exclusão pode-se aferir a nudez estabelecida por Agamben. O Sujeito excluído é despido do status de cidadão, tendente a permanecer nos "arredores" da bios, ou do núcleo social. Torna-se uma vida que não merece ser vivida, podendo ser sacrificável impunemente. O que se observa é que o direito penal, muito contrário à função de interventor mínimo que lhe foi idealizada e consagrado nas declarações de direito, tem efetivamente mostrado ser o instituto jurídico de maior intervenção na vida em sociedade. Age não mais apenas a posteriori na estabilização de conflitos, mas a priori através de um controle social excessivo, que chega a determinar quem merece ou não ser detentor do próprio Direito. Fato que se estampa na crescente dualidade entre o sujeito "cidadão" e o transgressor da lei - o não sujeito, o "inimigo". Talvez a grande questão imposta ao Estado, desde a constituição das sociedades civis, tenha realmente sido esta: o que fazer com aqueles que se recusam a seguir as regras do "contrato social", aqueles a que não se pode controlar com a ameaça da lei? Uma análise não muito complexa da organização

social

da

humanidade

demonstra

que

o

isolamento,

o

afastamento espacial, parece ter sido escolhido durante séculos como a solução (o escravo era confinado aos grilhões da senzala, os doentes mentais 20

e os indesejados ao manicômio). Segundo Zygmunt Bauman (1999, p. 114), "o isolamento reduz, diminui, comprime a visão do outro". Na medida em que o outro (aqui o indesejado social) é afastado do convívio e intercâmbio comunitário, suas qualidades

e

circunstâncias

individuais

são

subjugadas

por

uma

caracterização legal que, visando suprimir a disparidade, retira do sujeito a relevância de sua singularidade, de sua identidade. De fato, ao resolver o problema da desobediência à lei, através da segregação espacial, o direito penal cria, na linha do pensamento de Bauman (1999), uma espécie de must, um dever que gera mútuo isolamento, qual seja o dever de segregar as diferenças e o dever de que a lei penal exerça, nessa lógica, um impacto submissor. A partir disto, o outro - lançado numa condição de forçada estranheza, guardada e cultivada pelas fronteiras espaciais estritamente vigiadas, mantido a distância e impedido de ter um acesso comunicativo regulador ou esporádico - é além disso mantido na categoria de estranho, efetivamente despojado da singularidade individual, pessoal, a única coisa que poderia impedir a estereotipagem e assim contrabalançar ou mitigar o impacto subjugador da lei - também da lei criminal (BAUMAN, 1999, pp. 115-6).

A esse respeito, uma constatação simples, mas que muitas vezes escapa à reflexão, é o fato de que o isolamento é apenas uma das formas de punição disponíveis ao Estado. Em geral, os ordenamentos jurídicos ocidentais contam com ao menos mais duas formas de penalização, quais sejam a pena de multa e a pena de prestação de serviços sociais. E mesmo a pena de prisão, nos moldes como é executada (tomando-se como exemplo a estrutura penitenciária brasileira), está longe de representar o sistema (re) socializante previsto constitucionalmente, quiçá oferecer ao preso o acesso aos seus direitos fundamentais básicos. É neste âmbito que a vida que não vale a pena ser vivida se materializa e o homo sacer pós-moderno depara-se com um sistema penal em que a pena ainda reproduz a antiga lógica meramente retributiva. Neste ponto, é impossível não sucumbir à indagação primordial "por que?". Por que em meio a uma evolução tecnológica e científica, que 21

pressupõe uma humanidade mais habilitada para resolver os desafios do convívio social, a lógica da segregação do inconveniente ainda persiste? Analisando a recorrência do modelo punição pela via do encarceramento como uma das consequências da globalização, Bauman (1999) aponta como possíveis causas de tal fenômeno o que aqui resumiremos em três aspectos, que se correlacionam. Primeiro, a promoção de questões classificadas na rubrica "lei e ordem" da agenda pública do Estado, que se refletem cada vez mais nas bandeiras eleitorais e são o espetáculo preferido da mídia. Segundo, a "autopropulsação" do medo, a insegurança e incerteza psicológica inflada ao máximo pela globalização pós-moderna, faz com que a nação busque no territorialismo uma espécie de porto seguro, armando-se e estando sempre em alerta com relação aos outros e, assim, impedindo a criação de laços verdadeiros de solidarismo internacional. Por fim, em terceiro lugar, todos estes aspectos criam a constante tensão social por segurança, desenhando no imaginário social a ideia de que a sociedade é demonizantemente má e necessita

ser

fortemente

controlada

e

seus

"maus

elementos"

combatidos/exterminados. A conclusão a que se chega, portanto, é de que o Direito Penal possui um poder que vai além da punição: o poder de exclusão, que cada vez mais se traduz em um poder de dar "a cada refugo seu depósito de lixo" (BAUMAN, 2005, p. 81). O Estado de direito não interfere neste círculo de exclusão, permanecendo o sujeito excluído à mercê de um direito garantidor da dignidade humana - ou os direitos humanos - insólito, que encontra barreiras em sua efetivação e estabelece o contrassenso entre um sistema punitivo/repressivo e um Estado Democrático de Direito garantidor de direitos e garantias fundamentais. 4. O DIREITO A TER DIREITOS EM CONTRASSENSO AO DIREITO PENAL O viver em sociedade nada mais é do que um direito humano, que faz parte de uma construção social que busca proteger uma série de direitos 22

intrínsecos à dignidade da pessoa humana. A construção desses direitos, que não são estáveis ou fixos, começou a partir das lutas do homem por sua emancipação e liberdade, direito puramente inerente ao seu status humano. Assim, "não nascemos iguais; tornamo-nos iguais como membros de um grupo

por

força

de

nossa

decisão

de

nos

garantirmos

direitos

reciprocamente" (ARENDT, 2007, p. 335). Neste sentido, para Hannah Arendt (1986, p. 17), "os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contado tornase imediatamente uma condição de sua existência" Assim, o sujeito precisa estar presente em sua comunidade para que possa "existir" como um ser humano, ou um sujeito de direito. Encontramos aqui um contrassenso entre o "direito a ter direitos" e os mecanismos repressivos do direito penal, que acabam suprimindo garantias básicas dos indivíduos, como a própria convivência em sociedade. Com uma expansiva criminalização de condutas e o direcionamento punitivo para determinados sujeitos, o Estado detém o monopólio punitivo ao mesmo tempo em que é responsável em efetivar os direitos humanos. Desta senda, a dignidade humana é sobrepujada frente aos mecanismos penais. Ao ser excluído do núcleo social, o sujeito tem decretada sua vida nua, deixando de receber a tutela do Estado em atenção às suas necessidades. O sujeito que não aceita o pacto social acaba por ser demonizado, e o direito penal serve como instrumento de proteção contra um inimigo iminente que está fadado a romper com a ordem anteriormente estabelecida. Os direitos humanos não conseguem chegar a este indivíduo de forma eficaz, pois não se trata apenas de garantias constitucionais dentro de um processo penal, mas o direito a própria existência como um sujeito de direitos; um ser humano, que possui o direito de estar e realizar em sociedade. Esta, pois, que é a essência dos direitos humanos, como tão bem conceituados por Arendt como o direito e a ter direitos. Sob esta perspectiva, o homo sacer acaba por encontrar na vida nua sua incivilidade, pois perdeu o seu status de cidadão, que na análise arendtiana, ao perder o "status civitatis significa ser expulso da humanidade, de nada valendo os direitos humanos aos expelidos da trindade Estado23

Povo-Território" (LAFER, p. 147). A isto se propõe o crescente Direito Penal do Inimigo, para o qual quem não consegue atender ao pacto social estabelecido, não pode esperar ser tratado como pessoa, mas o próprio "Estado não deve tratá-lo como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas" (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p. 42). Para

que

os

direitos

humanos

sobreponham-se

aos

preceitos

normativos penais é necessário que o Estado, enquanto comunidade, intervenha de modo a assegurar a igualdade entre os cidadãos pois, [...] nós não nascemos iguais: nós nos tornamos iguais como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais. A igualdade não é um dado - ele não éphysis, nem resulta de um absoluto transcendente externo à comunidade política. Ela é um construído, elaborado convencionalmente pela ação conjunta dos homens através da organização da comunidade política. Daí a indissolubilidade da relação entre o direito individual do cidadão de autodeterminar-se politicamente, em conjunto com os seus concidadãos, através do exercício de seus direitos políticos, e o direito da comunidade de autodeterminar-se, construindo convencionalmente a igualdade (LAFER, p. 150).

Os direitos humanos, como uma construção humana e política, podem muito bem ser moldados para atender todos os indivíduos em todas as dimensões sociais com suas especificidades. Neste sentido, Karam (2009) argumenta no sentido de que é preciso buscar instrumentos mais eficazes e menos nocivos do que o fácil, simplista e meramente simbólico apelo à intervenção do sistema penal, que, além de não realizar suas funções explícitas de proteção de bens jurídicos e evitação de condutas danosoas, além de não solucionar conflitos, ainda produz, paralelamente à injustiça decorrente da seletividade inerente à sua operacionalidade, um grande volume de sofrimento e de dor, estigmatizando, privando da liberdade e alimentando diversas formas de violência. A nudez desenhada por Agamben é encontrada no direito penal nos casos em que este apenas serve como instrumento de punição e medo, e não aos fins a que se destina, estigmatizando indivíduos através de um direcionamento punitivo e criando o óbice para o alcance dos direitos 24

humanos. A todos é permitido participar da vida em comunidade, pois o homem singular não consegue enxergar a sua condição humana, que reside exatamente na vita activa conceituada por Arendt (1987, p. 17), ou seja, a vida condicionada à produção de sua existência na comunidade. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O direito penal, através de seus mecanismos punitivos, acaba por estabelecer a diferenciação entre os indivíduos a partir do direcionamento punitivo, o que conduz àvida nua, ou a vida que não vale a pena ser vivida. Outrossim, o paradigma punitivo acaba por ser excludente, caracterizando o homo sacer, ou o sujeito que não merece viver em comunidade. Este aparato punitivo alicerça-se na expansividade de um direito penal enraizado em concepções baseadas no afastamento de determinados sujeitos, sendo estes caracterizados, não apenas pelo discurso da não obediência às normas do direito, mas por características sociais e pessoais. A punição simbólica expande-se sem limites, fazendo com que a sensação de impunidade cresça e, consequentemente, aumentem as alternativas

penais

justificadas

na

contenção

de

indivíduos

que,

supostamente, não concordam com as regras normativas estabelecidas pela sociedade, sendo declarados como inimigos que devem ser combatidos através da exclusão social. Em outras palavras, o sujeito que desobedece a norma passa a ser encarado como um outro ameaçador e, assim como nas sociedades primitivas de outrora, constitui-se em uma ameaça a ser evitada e exterminada, a fim de que se preserve o nós dos "cidadãos de bem". Sob este viés da perspectiva repressiva-excludente do direito penal, o humanus dos direitos humanos não é o sujeito universal, o "todos" que proclama a Declaração de 1948, mas tão somente aquele que nunca transgrediu a Lei, em oposição ao transgressor que, nesta lógica, é um não-humano. Resta claro, portanto, que o direito penal acaba por produzir um Estado fortemente endurecido no trato com seus cidadãos, formando um óbice na efetivação dos direitos humanos e gerando, em consequência, uma insegurança de ser 25

decretada a vida nua para qualquer sujeito. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. _______. Nudez. Tradução David Pessoa Carneiro. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. _______. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. 7. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. ________. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Org. e trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. KARAN, Maria Lúcia. A privação da liberdade:o violento, danoso, doloroso e inútil sofrimento da pena. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. RUIZ, Castor Bartolomé. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. In: Cadernos IHU em formação. Ano IX. n. 45. 2013. ISSN 1807-7862. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo: o progresso ao retrocesso. Coimbra: Almedina, 2010. WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. O Brasil e a criminalização da pobreza: a imposição do Medo do Direito Penal como instrumento de controle social e de desrespeito à Dignidade Humana. In: BEDIN, Gilmar Antonio. Cidadania, direitos humanos e equidade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2012.

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O DIREITO PENAL EM FACE DO FENÔMENO MIGRATÓRIO: QUANDO A MIXOFOBIA SE SOBREPÕE AOS DIREITOS HUMANOS Camila Rodrigues da Rocha1 Klarissa Lazzarin de Sá2 1.INTRODUÇÃO O presente trabalho aborda a perspectiva dos imigrantes em sua condição de vulnerabilidade social, diante de uma realidade na qual se busca preservar o Estado de Bem-Estar Social de tal modo que o caráter de repressão exposto pelas políticas governamentais está por atribuir às suas vidas o máximo de limitação de seus direitos. Nesse sentido, aborda-se a problemática referente ao sentimento de mixofobia, ou seja, o medo de misturar-se, que se perpetua entre as sociedades

que

tendem,

em

razão

disso,

a

se

tornar

brutalmente

excludentes. Esse sentimento acaba por tumultuar as relações e não propagar a paz social, pois a partir dele são produzidos gradativamente discursos de ódio e que levam a população a temer qualquer tipo de relação com o diferente, sempre o relacionando a fatores negativos, como a criminalidade e a clandestinidade. As políticas que de fato venham a integrar o imigrante em seu novo local de habitação e fazer com que ele possa interagir e participar da comunidade tem se demonstrado ínfimas, quando não inexistentes. A legislação apenas limita os direitos do imigrante, transformando-o, assim, apenas em um “inimigo” passível de perseguições. O sentimento de individualidade presente entre as pessoas não consegue mais produzir caráter humanista, ou seja, se a sociedade é excludente e não respeita os Direitos Humanos, é resultado das ações individuais que não conseguem aceitar o convívio com a imigração de forma Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI. Bolsista de Iniciação Científica Pibic/UNIJUÍ. Email: [email protected] 2 Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI. Bolsista de Iniciação Científica Pibic/CNPQ. E-mail: [email protected] 1

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pacífica. 2. O FENÔMENO MIGRATÓRIO NA CONTEMPORANEIDADE: os migrantes como seres “redundantes” e a mixofobia O fenômeno migratório mundial tem gerado grande pânico entre as populações. Ao perceber os fluxos migratórios aumentando de uma forma elevada, percebe-se o quanto são falhas as políticas de integração desses indivíduos, de maneira que os seus direitos básicos – necessários a uma vida digna como trabalho, saúde e educação – são desrespeitados. Desde os primórdios pode-se falar em migração. Inicialmente os colonizadores tinham a responsabilidade de formar as novas nações. Em um período posterior vieram os trabalhadores, que se enquadravam como africanos escravos e afins. Logo surgiram os pobres em busca de condições melhores de vida. São vários os motivos que levam uma pessoa a sair de seu país em busca de novos horizontes, induzidos por novas perspectivas. A identidade do imigrante é erroneamente associada ao terrorismo, à clandestinidade eà criminalidade. A ideia de estrangeiro se relaciona com aquele ser que está se utilizando de um lugar que não lhe é devido, ou seja, que ameaça a população autóctone que também se encontra vulnerável diante da competitividade gerada por poucas alternativas de emprego. Nesse rumo, tende-se a não mais tratar o imigrante de uma forma humanista e igualitária.Contudo, há de se falar na desumanização provocada pelo fenômeno migratório, a partir da qual o outro é sempre visto como inimigo e como oponente justamente por não nascer naquele determinado país, e como resultado não pertencer àquele determinado lugar. Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes (2009, página 32) conceitua aquele que não pertence a uma determinada coletividade:

a palavra estrangeiro é utilizada como rótulo que se destina a distribuir e classificar pessoas. Ao mesmo tempo em que tal classificação pode ser utilizada para rebaixar o estrangeiro, por seu “não- pertencimento”, serve também para exacerbar a unicidade do grupo que lhe exclui. Nessa linha de raciocínio, o estrangeiro, porque está em território alheio, é um intruso.

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Em que pese a Constituição Federal brasileira tratar dos Direitos Humanos e do princípio da dignidade humana, afirmando que todos são iguais perante a Lei, percebe-se o quanto, também no Brasil, as políticas governamentais são repressivas e utilitaristas no que se refere ao tema da imigração. O Estatuto do Estrangeiro pode, nesse sentido, ser considerado inconstitucional, por restringir muitos direitos, como, por exemplo, retirardo imigrante qualquer poder de decisão, impossibilitando-o de participar dos processos eleitorais. Nesse sentido, o exercício da cidadania não consegue introduzir o imigrante. Contudo, para sobreviverem, eles necessitam abdicar de todos os direitos que qualquer cidadão possui para que a figura do imigrante ideal, ou seja, aquele que está em um determinado local apenas para servir e não para participar, mesmo que seja bem qualificado e preparado para atuar no mercado de trabalho, não consiga interagir e participar de todas as práticas que envolvam o processo de cidadania que o sistema democrático permite. Os sistemas públicos de educação e saúde não tem conseguido dar conta da demanda da grande quantidade de imigrantes que tem entrado no Brasil, muitas vezes em situação irregular. Necessidades indispensáveis não estão sendo respeitadas. Falta saneamento básico para essas pessoas, têmse extremo impasse em relação a um alojamento adequado para o imigrante que se encontra em situações excessivamente precárias. Pode-se afirmar que não se tem conseguido políticas eficazes para resolver tais empecilhos. O imigrante necessita ser visto por aquilo que é: um ser humano.Por conseguinte é de relevante importância o reconhecimento pela coragem de enfrentar tantos obstáculos para abdicar de tudo o que lhe pertencia em seu país de origem para enfrentar o novo, o diferente. Para Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes (2009, página 35), desde logo devemos advertir que não compactuamos com as hierarquizações, as manipulações e as rotulações que costumam acompanhar as palavras imigrante e estrangeiro. Preferiríamos que seu conteúdo exprimisse mais a valentia de ousar estabelecer-se em outro país e enfrentar o desconhecido (migrante), e que despertasse a curiosidade e a vontade de interagir com aquele que é diferente (estrangeiro).

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Pode-se falar, diante do quadro apresentado, de uma forma de retrocesso que o Direito está evidenciando. À medida que um sistema de democracia, em que todos os indivíduos possam participar de forma igualitária, exercendo o poder governamental de uma nação, não consegue incluir o imigrante nesse regime, não mais se pode falar em democracia. O imigrante se sujeita, assim, às normas que restringem ao máximo seus direitos, pois o “inimigo” que é considerado o estrangeiro diante da ameaça que representa para o interesse nacional e para a ordem pública necessita ser controlado pelas forças governamentais, sendo assim cumprida a função da biopolítica. Nessa perspectiva, o Estado, ao se utilizar do controle de todas as populações, inclusive os imigrantes, produzirá como resultado aos cidadãos nacionais tranquilidade e calmaria em relação ao perigo gerado pela condição de ser imigrante. Para Michel Foucault (apud CASTRO, 2014, página 115), “para compreender a biopolítica, é necessário estudar o contexto geral da racionalidade política do liberalismo”. Trata-se da forma de governar aplicando-se o biopoder, ou seja, os Estados utilizam de técnicas para obter o controle de todas as populações para que assim possam administrá-las. Nesse sentido, Foucault(apud CASTRO, 2014, página 112) afirma que “governar consiste em conduzir condutas, ou seja, em pôr em marcha um conjunto de ações sobre ações possíveis: incitando-as, induzindo-as, desviando-as, facilitando-as ou dificultando-as, fazendo-as mais ou menos prováveis”. Desde os primórdios tenta-se barrar os direitos daqueles que não pertencem – ou que por questões de discriminação não podem pertencer – à “elite” da sociedade. O preconceito racial deu início a esse problema a partir do século XIX, quando, por exemplo, surgem os imigrantes colonizadores no Brasil para fins de branqueamento da população como uma política nacional, mais especificamente no Sul do país. Destaca-se que, nesse período, a prática da capoeira acabou sendo proibida por Lei, pois era exclusivamente exercida por negros. Nessa acepção, na contemporaneidade podemos ver a seletividade do indivíduo como passível de aceitação ou não 30

perante os demais. Ou seja, o fato de ser negro, pobre, imigrante ou refugiado, a circunstância de ser diferente, é passível de repúdio e dá o poder do Estado limitar através de um caráter repressivo e excludente os princípios que deveriam ser respeitados que é a liberdade, a igualdade e a fraternidade atribuindo ainda o direito de perseguição daquele que não é “desejável”. Ao imigrante pode-se atribuir o conceito de “ser redundante”, segundo a perspectiva de Bauman(2005, p. 20), para o qual ser “redundante” significa ser extranumerário, desnecessário, sem uso – quaisquer que sejam os usos e necessidades responsáveis pelo estabelecimento dos padrões de utilidade e de indispensabilidade. Os outros não necessitam de você. Podem passar muito bem, e até melhor, sem você. Não há uma razão auto-evidente para você existir nem qualquer justificativa óbvia para que você reivindique o direito à existência. Ser declarado redundante significa ter sido dispensado pelo fato de ser dispensável.

A necessidade que os Estados têm de controle dos fluxos migratórios, mesmo que se trate de dificultar a vida do imigrante, predomina sobre a ideia do diferente. O grande impedimento para uma convivência pacífica é o medo que, influenciado pela diversidade cultural, pode proporcionar falsas compreensões da realidade. Há de se falar na ideia de Foucault sobre a guerra de raças, por meio da qual os indivíduos, reunidos por um status, com costumes, usos e suas leis particulares (FOUCAULT, 1997, p. 160), não conseguem se adaptar ao diferente.Nesse rumo, tão somente restringem o estrangeiro como forma de crescimento econômico, já que, em outras perspectivas, ele não “serve” para mais nada além da clandestinidade e da criminalidade. A frase que destaca o medo e a insegurança gerada pela falta de legislação adequada ao tema imigração, com a criação de um marco regulatório no que tange a suprir as necessidades desses indivíduos em conjunto com Direitos Humanos e Dignidade Humana acompanha o imigrante por sua trajetória: “Nós não somos perigosos, mas estamos em perigo”. Podemos assim refletir sobre os temores que o imigrante possa enfrentar. Muitos desses imigrantes, que partem sozinhos nessa caminhada árdua que pode representar a migração deixam suas famílias em seus países 31

de origem e temem pela vida e segurança de seus familiares. Basicamente até atravessarem as fronteiras sobrevivem em lugares improvisados, passando por situações inimagináveis, até conseguirem fazer a travessia para os lugares planejados. É verídico afirmar que muitas dessas travessias feitas pelos imigrantes são irregulares. Todavia, essa forma irregular de entrar nos países se associa a atividades delituosas, principalmente pelas políticas da União Europeia, onde a irregularidade da situação migratória gera privação da liberdade do indivíduo. As pessoas que partem de seus países de origem tem grande dificuldade de regularizar sua situação, pois o mercado de trabalho se fecha para o imigrante, ou apenas utiliza-se deste quando a mão de obra for barata, então conseguir provar através de documentos que o imigrante exerce profissão ou empregos lícitos para sobreviver são totalmente seletivos e burocráticos. O que deveria facilitar suas vidas, apenas os transforma em clandestinos. Nessa perspectiva, a União Europeia tem fechado suas portas à imigração. Suas políticas têm se demonstrado repressivas e excludentes. Com intuito de garantir a segurança, as medidas punitivas se instauram de forma crescente para evitar ou minimizar a expansão da imigração irregular. Buscam-se formas de manter os imigrantes em seus países de origem, contendo a imigração em troca de pressões e ajuda econômica, e se possível, evitar a entrada de imigrantes na Europa e posteriormente forçar a saída dos imigrantes do território europeu. Quando não mais é cabível manter o imigrante em seu país de origem, têm-se visto que todas as medidas possíveis que a Europa puder utilizar-se no que tange a “expulsar” aquele indivíduo indesejado serão adotadas. Não se observa o cumprimento dos Direitos Humanos, o que faz com que o estrangeiro veja seus limites atrelados à repressão de forma direta e indireta. O simples fato de “ser” imigrante já é suficiente, em muitos casos, para transformar o indivíduo em objeto de punição, mesmo que não se tenha comprovado qualquer ato ilícito ou digno de precaução que possa turbar a paz social. Portanto, a figura do imigrante sempre será vista com olhos de governos que buscam tão somente utilizá-los como fontes de crescimento 32

econômico. Em outras perspectivas o imigrante não serve para nada além do terrorismo e clandestinidade, pela forma utilitarista sempre se restringindo ao máximo os seus direitos. E quando utilizar-se desse sistema de governo por algum motivo não couber, têm se utilizado de métodos que expulsem ou possam barrar a entrada de imigrantes nos países. O fenômeno da mixofobia, ou seja, o medo de “misturar-se” com estrangeiros está cada vez mais presente entre as pessoas. Particularmente em virtude do fato de que os imigrantes são seres associados sempre ao terrorismo

graças

à

influência

e

alienação

gerada

pelos

meios

de

comunicação em massa, que tratam o imigrante como sujeito de riscos, resultando no medo e aversão, ou profunda antipatia em relação aos estrangeiros, produzindo-se assim discursos de ódio que atingem não somente pessoas de países diferentes, contudo atingem também outras culturas, crenças, características físicas, fazendo com que o diferente se torne errado, inaceitável e digno de críticas e de repúdio. Se os Direitos Humanos são considerados desiguais perante o imigrante, é por resultado de uma sociedade excludente, n qual o mais poderoso domina a maioria vulnerável, e ser diferente é considerado como uma anomalia.Não se pode tratar o imigrante como se ele fosse fugitivo ou como se tivesse cometido um grave delito em seu país por não mais viver nele. É necessário ter discernimento do grau de adversidades enfrentadas por essas pessoas para conseguirem manter-se em um lugar até então desconhecido. Nessa lógica, depois de grandes contratempos, conseguir um emprego que lhes dê o mínimo de condição para prosseguir é extremamente difícil, seja pela remuneração baixa ou pela falta de oportunidade gerada pela escassez de empregos e pela falta de confiança depositada em suas habilidades. Enquanto os Estados não conseguirem analisar criticamente a situação de ser imigrante, de pertencer à outra nação, mas levar consigo os direitos mínimos que alguém pode desfrutar, o fenômeno da mixofobia existirá, a produção de racismo e de pânico continuarão habitando as condutas das pessoas. O outro não é um inimigo que está em determinado 33

local para “roubar” ou disputar determinado cargo, sendo assim passíveis de discriminação. O imigrante é um ser que passa a pertencer àquela comunidade, e começa a utilizar-se dela para conquistar seu espaço, para ter seus direitos respeitados, como humano, como uma pessoa digna que não é um parasita em um local que não lhe pertence. A criação de organizações socioculturais, por exemplo, que venham a tratar de assuntos de interesses dos imigrantes é uma boa iniciativa para novas perspectivas. Trabalhar a inclusão social do imigrante, fazendo com que seus interesses possam ser respeitados, e principalmente para que suas diferentes culturas sejam aceitas pelos demais de forma que se possa compreender e adquirir aprendizado com relação a esses cidadãos é a principal forma de combate a qualquer tipo de descriminalização e exclusão social, afastando-se assim a exploração que as entidades governamentais e econômicas vêm se utilizando. No entanto, não é essa a prática recorrente em relação ao tema da imigração. Na realidade contemporânea, cada vez mais o Direito Penal é chamado para atuar como “coadjuvante” na luta contra os imigrantes, particularmente os que se encontram em situação irregular. É sobre esse tema que se ocupará o tópico que segue. 3. O DIREITO PENAL EM FACE AO FENÔMENO MIGRATÓRIO: contornos biopolíticos A década de 1970 é marcada pela crise do Estado de Bem-Estar Social, que se depara com o esgotamento de suas estratégias protetoras de transformações sociais e econômicas, para que o Estado possa continuar com seu projeto includente. Nesse cenário, os ataques neoliberais ao Estado de Bem-Estar passam a afetar a população antes beneficiada por esse modelo. Em um contexto tal, o Direito Penal se dirige não mais a indivíduos concretos, mas passa a se projetar sobre grupos considerados “de risco”. “De fato, com a passagem de um modelo de sociedade amparada pelo Estado Social solidário à sociedade de risco securitário contemporânea, o medo e a insegurança tornam-se companhia indissociáveis do indivíduo. Assim, “para proteger-se do risco natural ou criado a nova ordem é a 34

segurança” e, “na dúvida, na ausência de um sistema de definição, controle e gestão dos riscos, erige-se a segurança como máxima.” (MORAIS apud WERMUTH, 2014 ). Os atentados terroristas que marcaram o início do século XXI trouxeram a discussão quanto à relativização dos limites dos poderes que os Estados teriam para enfrentamento desse mal que repentinamente assolava grande parte da população mundial. Nesse contexto, a flexibilização de garantias como a liberdade e a intimidade passaram a ser toleradas em nome desse “combate” ao terrorismo, a fim de se buscar a qualquer custo a segurança de um grupo protegido. Essa parcela da população protegida, tomada pelo medo e insegurança, são chamados a exercer sua função de alerta policial, dando origem a um cenário de guerra de uns contra os outros. O uso do termo terrorismo serve para deslegitimar a violência praticada pelo agente não vinculado ao Estado e ao mesmo tempo para sancionar reações violentas por parte de Estados constituídos. O medo passa a ser usado como combustível dessa guerra que independe de ameaça bélica e as situações de emergência convertem-se em regra. Nesse sentido, é preciso, a todo momento, avaliar se um determinado indivíduo constitui ou não um perigo para o Estado. Contudo, essa avaliação é realizada num contexto de emergência, podendo o Estado exercer prerrogativas de poder que compreendem a suspensão da lei. Para Zafaroni (2007, p. 18), o Direito Penal, ao admitir que alguns seres humanos são perigosos, os tornou meros objetos do poder, passíveis de segregação e eliminação, não os considerando mais pessoas. Ora, esse Direito Penal que admite as chamadas medidas de segurança, com caráter meramente contencioso desses indivíduos perigosos, fere o artigo 1° da Declaração Universal de Direitos Humanos. Em que consiste, pois, esse poder de Estado que promove a vida a partir da determinação e extermínio de “inimigos”? Esse Estado de “população” que passou a se preocupar com a vida e saúde de seus súditos como prioridade é definido por Foucault (apud AGAMBEN, 2010, p. 11): “Resulta daí uma espécie de animalização do homem posta em prática 35

através das mais sofisticadas técnicas políticas. Surgem então na história seja o difundir-se das possibilidades das ciências humanas e sociais, seja a simultânea possibilidade de proteger a vida e de autorizar seu holocausto”. Retomando o tema sobre a soberania, na qual o soberano detém o poder de decidir a ultima ratio sobre o estado de exceção, a verdadeira face da biopolítica, onde as pessoas são reduzidas à mera existência biológica (vida nua) e o soberano decide quem tem o direito de viver e quem deve morrer, pode ser definido – como feito por Agamben (2010) – como “tanatopolítica”. A perpetuação do estado de exceção se torna clara quando se toma o entendimento de que o problema não está em “quem” exerce a soberania, mas sobre “quem”, ou melhor, sobre “o que” ela é exercida. Nesse sentido, o homo sacer

- figura do direito arcaico romano resgatada pela obra

agambeniana (2010) para explicar a situação de determinadas pessoas ou grupos na contemporaneidade – é entregue ao bando, abandonado, pertencendo então ao bando soberano, e, consequentemente, tornando-se mera vida nua, vida sacra, e, portanto, matável. Qual então a relação entre essas pessoas tão distantes, mas próximas pelas situações fáticas as quais estão sujeitas, tais como os presos nos campos de concentração nazistas, os homens capturados no Afeganistão e presos em Guantánamo, os condenados à pena de morte, refugiados, imigrantes irregulares, dentre tantos outros casos? Não é a afirmação de que a vida é o direito fundamental primeiro que toda e qualquer pessoa detém pelo só fato de ser pessoa (artigo 5º, caput da CFB/88)? E é esse mesmo direito que estabelece quem pode ou não exercer a sua vida, sua sexualidade,

como

e

quando

poderá

exercer

atividades

laborativas,

dominando de tal forma a vida humana que decide o que é matável e o que é sacro. Nesse viés, fica evidente aquilo que Foucault (2012, p.136) refere ao salientar que “o ‘direito’ à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o ‘direito’ de resgatar, além de todas as opressões ou ‘alienações’, aquilo que se é e tudo o que se pode ser, este ‘direito’ tão incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a todos 36

estes novos procedimentos do poder”. Segundo Judith Butler, a negação da situação de prisioneiros de guerra àqueles detentos, o que segundo a Doutrina Bush excepcionaria a aplicação do Tratado de Genebra, já que ele são “combatentes ilegais”, sem que nenhum organismo internacional, mesmo a ONU, tenha contestado juridicamente (e não retoricamente como se o fez) esta prática, lançou aquelas pessoas num verdadeiro “limbo” jurídico, na medida em que estão completamente destituídos da proteção de qualquer estatuto jurídico: são meras vidas nuas (BUTLER, 2002, p.1-9). O conceito de biopolítica surge para Foucault a partir da década de 1970. Para o autor, o início do século XIX é marcado por este fenômeno responsável por transformar os mecanismos de poder até então conhecidos. O que antes limitava-se ao sim e ao não, à vida e a morte de um indivíduo, dão lugar a um poder que gera/gerencia a vida. O foco não mais é o indivíduo, sujeito, mas o homem-espécie, a coletividade. Se antes o Estado-nação exercia o poder sobre o indivíduo, a fim de que fosse administrado seu corpo, agora o poder normatizado é exercido sobre o corpo-espécie, exercendo-se a título de política estatal, por meio de políticas sanitárias, urbanísticas e educativas. O responsável pela socialização do corpo como primeiro objeto enquanto força de trabalho e de produção foi o capitalismo que se desenvolvia no início nesse período, ocasionando a entrada da vida humana na história. E como consequência desse novo poder, surge a necessidade de normas. A grade questão que surge é: como exercer o poder de matar num sistema centrado no biopoder? Como objeta Foucault (2012, p. 150), “de que modo um poder viria a exercer suas mais altas prerrogativas e causar a morte se o seu papel mais importante é o de garantir, sustentar, reforçar, multiplicar a vida e pô-la em ordem?”. E é nesse momento que o racismo é introduzido nesse cenário, permitindo que a vida seja dominada, legitimando a morte do outro, da raça ruim, do perigoso. Em síntese: “se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito de 37

matar; mas é porque o poder se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços da população. (FOUCAULT, 2012, p. 149). Nesse estado de biopoder, o racismo assegura, e quem sabe, legitima a morte, que está ligada à ideia de purificação, segurança, para então o soberano exercer seu poder. O terrorismo serve como justificativa ideológica para essa violência sancionada, onde os terroristas são considerados à margem da lei, para que então se justifique um tratamento de igual forma, são indivíduos não considerados parte da camada humana. A incorporação à legislação de penas mais duras, normas mais severas, sem atentar para os princípios e garantias penais, objetivando uma maior segurança dos “cidadãos” aclarando a tese defendida por Günther Jakobs, para o qual o combate efetivo da macrocriminalidade somente se torna medida satisfatória quando há uma diferenciação dos “cidadãos”, pessoas que eventualmente praticam alguns delitos, dos “inimigos”, aqueles que definitivamente rejeitaram as regras do Estado, como é o caso dos terroristas. O Direito Penal é onde o Estado mostra sua força, e um Estado Democrático de Direito tem como função controlar essa força da violência inerente ao estado de exceção sempre que pronta a se alastrar para todos os lugares. Entretanto, essa perpetuação do estado de exceção como algo já difundido no cenário político internacional, promove cada vez mais a indistinção entre Direito Penal e guerra. Assim, com a expansão do Direito Penal cumulado com o medo e a insegurança que se instalou no mundo todo, clama por medidas urgentes, por respostas urgentes de um Estado que enfrente e proteja o que é seu e nesse caso, o homo sacer, como é melhor representado o inimigo do Estado, já que não possui direitos, garantias ou mesmo uma identidade, não está incluso, está à margem, inclusive da própria lei. É nesse ponto que o caráter biopolítico do sistema se revela ao transformar em vida nua essa multidão cuja existência ou inexistência é irrelevante para o sistema. Esses sujeitos, não mais considerados pessoas, estão à mercê do soberano. E é exatamente nesse momento em que o 38

soberano reafirma a vida nua, ao capturar novamente a vida através de ações violentas mas, mesmo assim, legitimadas. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para que exista a harmonização entre imigração e Direitos Humanos, há de se ter um marco regulatório que acabe por tratar de forma eficaz e que garanta o cumprimento de exatamente todos os direitos do imigrante. Dessa forma, obtendo um paralelo entre ambos, será possível executar os princípios da Dignidade da Pessoa Humana de forma plena. Tem-se a problemática referente aos números de imigrantes que estão entrando nas Nações, de modo que está se tornando dia após dia difícil manter o controle dos fluxos migratórios, na medida em que o número de pessoas que saem de seu país de origem tem aumentado gradativamente. Ao passo que a quantidade de pessoas, diferentes, entram em um país, surgem turbulentas opiniões de pessoas atreladas pelo senso comum, gerando um espaço profícuo para a mixofobia. O conceito de imigração é erroneamente relacionado ao terrorismo e ao parasitismo social, o que legitima muitas campanhas no sentido de fechamento de fronteiras. A partir do momento em que o ser humano passar a obter caráter humanista e o mínimo de sensatez possível, o Estado de Direitos – concreto, real – não mais poderá banalizar a violência contra a migração, protegendo esses cidadãos, garantindo uma vida digna onde seja possível respeitar o direito das minorias e integrá-los junto à comunidade. Portanto, as políticas de integração deverão ser atribuídas ao imigrante, fazendo surtir a igualdade entre todos, sem exceções, com práticas sociais que possam no mínimo suprir suas necessidades básicas. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 39

BUTLER, Judith. O Limbo de GuantánamoDisponível . Acessado em 26/08/2015.

em:

CASTRO, Eduardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 22ª. Impressão. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2012. LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Direito de imigração: o estatuto do estrangeiro em uma perspectiva de direitos humanos. Porto Alegre: Nuria Fabris Editora, 2009. WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi.A produção da vida nua no patamar de (in)distinção entre direito e violência: a gramática dos imigrantes como “sujeitos de risco” e a necessidade de arrostar a mixofobia por meio da profanação em busca da comunidade que vem.São Leopoldo, UNISINOS. Tese nível Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Direito, Unidade acadêmica de Pesquisa e Inovação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2014. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

40

POLÍTICA CRIMINAL E PRÁTICAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA: Estratégias para a Prevenção da Violência e para a Promoção dos Direitos Humanos nos espaços escolares Ester Eliana Hauser1 Lurdes Aparecida Grossmann2 1. INTRODUÇÃO A violência hoje presente na família e na sociedade tem se reproduzido de forma intensa nos espaços escolares onde crianças e adolescentes, em geral, tem buscado responder aos seus conflitos por meio de mecanismos retributivo/punitivos violentos. Tais mecanismos não apenas expressam os processos de violências vivenciadas no mundo adulto e presenciada cotidianamente por muitos jovens, mas também reproduzem a lógica perversa presente no sistema penal tradicional que, estruturado nos pilares da culpa, da exclusão, da estigmatização e da dor, em pouco contribuem para a redução da violência e para a afirmação dos direitos humanos na sociedade. Por ser um local destinado ao aprendizado e a socialização, em que um dos principais aprendizados diz respeito aos relacionamentos interpessoais e de grupo, a escola passa a ser um locus privilegiado para que cidadãos em formação entrem em contato com ferramentas para compreender e desenvolver valores necessários para uma convivência mais pacífica e cidadã. Tomar consciência da própria cidadania e aprender a forjar instrumentos de relações sociais pacíficas, não punitivas, possibilita o aprendizado para uma cultura de paz que, vivenciada na escola, pode se refletir para os demais ambientes nos quais crianças e adolescentes vivem. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Especialista em Direito Público pela Universidade do Noroeste do Estado do RS – UNIJUÍ. Professora da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI. Email:[email protected] 2 Doutoranda pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Especialista em Direito pela Universidade do Noroeste do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Professora da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI. E-mail: [email protected] 1

41

Um destes instrumentos diferenciados para a pacificação de conflitos e promoção da cidadania são as práticas de justiça restaurativa a partir das quais se o busca aprimorar o diálogo, a compreensão dos sentimentos e necessidades envolvidos nas contendas, o desenvolvimento da empatia com a situação vivenciada, bem como a resolução de problemas e reparação de danos, numa perspectiva de protagonismo dos envolvidos e de corresponsabilização de todo o grupo, incluindo a família, a comunidade e o Estado. O Projeto Cidadania para Todos, através da oficina “Violência, Práticas Restaurativas e Cultura de Paz”, busca instrumentalizar a comunidade escolar para utilizar as práticas restaurativas para a resolução de conflitos. Tais práticas já estão previstas na legislação brasileira, entre as diretrizes da política pública de atendimento socioeducativo aos jovens autores de atos infracionais, sendo aplicáveis como uma estratégia de responsabilização diferenciada e atuando nas consequências da violência praticada por adolescentes, mas ainda são pouco adotadas como mecanismo de prevenção a esta violência e de construção de uma cultura de paz. Para demonstrar a importância da adoção das práticas restaurativas nas escolas como mecanismo de prevenção da violência, de superação da cultura punitiva e da promoção dos direitos humanos e da cidadania na infância e adolescência, o presente

artigo inicialmente discute a

necessidade de transformação da política criminal em uma política integral de defesa dos direitos humanos, bem como aborda os direitos humanos das crianças e adolescentes no Brasil e as políticas públicas relativas a eles. Posteriormente analisa a atuação do Projeto Cidadania para Todos no sentido de capacitar a comunidade escolar para a utilização de práticas restaurativas no seu ambiente e, ao final, propõe a adoção dessa prática como uma política pública para todas as escolas como mecanismo concretizador das diretrizes e princípios previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição Federal e como estratégia para a promoção e defesa dos direitos humanos. 42

2. DA POLÍTICA CRIMINAL A UMA POLÍTICA INTEGRAL DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS Tradicionalmente a expressão “Política Criminal” foi utilizada para designar apenas o conjunto de práticas punitivas utilizadas no controle de situações conflitivas, vinculando-se a expressão exclusivamente ao campo do Direito Penal. Feuerbach (apud DELMAS MARTY, 1992, p. 24) conceituava a política criminal como “[...] o conjunto de procedimentos repressivos através dos quais o Estado reage contra o crime [...]”, limitando-a a uma forma de reflexão sobre o direito penal.

Porém nas últimas décadas a perspectiva

ampliou-se consideravelmente para incluir como objeto da política criminal não somente os problemas de repressão ao crime, mas todo o conjunto de procedimentos/estratégias através dos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal. Delmas Marty (1992, p. 24) observa que a política criminal passa a ser conceituada sob uma perspectiva ampliada que analisa o fenômeno criminal sob diversos ângulos: “dos procedimentos apenas repressivos para todos os outros procedimentos, principalmente aqueles à base da reparação ou da mediação: do Estado para todo o corpo social [...] o que exclui a possibilidade de uma resposta totalmente isolada”. Deste modo busca-se introduzir ao lado da resposta “reacional (a posteriori), a resposta preventiva (a priori)”. Em que pese o duplo viés acima apontado, verifica-se, na atualidade, uma

tendência

ao

reforço

das

políticas

criminais

de

cunho

punitivo/repressivo, que propugnam pela ampliação da utilização do Direito Penal como estratégia de controle social. Tal reforço se manifesta, especialmente, por meio de políticas criminais eficientistas/punitivistas e do uso simbólico do D. Penal.3 A tendência política criminal repressivista, baseada no eficientismo penal e no uso simbólico do D. PenaL encontra, no atual momento histórico brasileiro, maior expressão na proposta de Emenda a Constituição que determina a redução da idade de imputabilidade penal de 18 para 16 anos no caso de crimes considerados graves. Tal proposta, já aprovada em duas votações na Câmara dos Deputados, vai de encontro ao modelo político criminal consagrado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente cujo viés não repressivista, propugna pela utilização de mecanismos de responsabilização alternativos e pela opção prioritária por medidas de caráter pedagógico e inclusivo a adolescentes autores de atos infracionais. 3

43

Partindo da análise da realidade contemporânea Meliá (2007), salienta que o fenômeno de expansão do Direito Penal se desenvolve em duas frentes: a) o desenvolvimento de um direito penal simbólico e; b) o ressurgir do punitivismo. O desenvolvimento do direito penal simbólico tem como objetivo exclusivo “dar impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido” (Meliá, 2007, p. 59). Diante dos medos e da insegurança gerada por novas formas de conflitividade social, o Direito Penal é utilizado como instrumento para produzir tranquilidade, mediante o mero ato de promulgação de normas que, em geral, sequer serão aplicadas. Assim, o legislador responde produzindo leis penais que, em oposição ao sentimento de insegurança que se alastra na sociedade, gerarão uma sensação de segurança e tranquilidade na população. Para Meliá (2007), no entanto, é impossível caracterizar a política criminal contemporânea exclusivamente a partir do caráter simbólico do direito penal. Para ele, paralelamente ao simbolismo, ha um ressurgir do punitivismo que se dá a partir de processos de criminalização a “moda antiga”. Isso significa que a promulgação de novas normas penais, em geral mais rigorosas, também se faz com o intuito de promover sua aplicação com firmeza e rigor. Ao referir-se ao eficientismo penal, Baratta (2000, p. 42) observa que o mesmo objetiva fazer mais rápida e eficaz a resposta penal, limitando ou suprimindo garantias estabelecidas na tradição do direito penal liberal. Para ele o eficientismo é reflexo da crise social e política, bem como dos processos de comunicação social que os acompanham na atualidade. Trata-se de um movimento político criminal que influencia profundamente a percepção dos políticos, juristas e da opinião pública sobre o uso do direito penal e sobre o modo de resolver os conflitos sociais, restringindo significativamente as respostas ao campo da punição. Deste modo produz percepções que levam a “criminalización de los conflitos, o sea, la lectura de los conflitos em el código binário crimen/pena”. (BARATTA, 2000, p. 42) Por outro lado, ao analisar os mecanismos não penais que compõe a política de controle da violência e da criminalidade e o próprio conceito de política criminal, Baratta (2000), salienta que este é extremamente 44

complexo, problemático e ambíguo.

Complexo, pois em que pese a

univocidade de seus fins, os instrumentos de prevenção não penais das infrações

e

de

suas

consequências

são

extremamente

variados

e

indetermináveis.4 Problemático pois em seus modelos mais avançados a “política criminal” representa, enquanto gênero, uma totalidade mais vasta e complexa da espécie “política penal”, sendo que “neste nível de elaboración la línea de distinción entre la política criminal y la política en sentido amplio (....) perde su pureza inicial.” (BARATTA, 2000, p. 28) Já a ambiguidade do conceito fica visível, segundo Baratta (2000), quando se examinam as relações entre política criminal e política social, especialmente aquela concretamente dirigida aos grupos sociais mais vulneráveis. Isso porque em que pese o reconhecimento, em nível constitucional, da dignidade humana, da igualdade e demais direitos fundamentais, não é incomum que as políticas sociais destinadas aos mais vulneráveis, em especial aos jovens pobres e marginalizados, ainda sejam marcadas por visões prevencionistas tradicionais. Tais modelos, ao colocarem os sujeitos vulneráveis na condição de potenciais agressores, produzem uma espécie de “criminalização da política social” que, ao preocupar-se especialmente com o controle de tais populações, não somente reproduz visões discriminatórias e perversas sobre tais grupos, mas também os coloca como meros “objetos” e não como sujeitos das políticas que lhe são destinadas. Deste modo, como propõe Baratta (2000, p. 32) Una vez que se há olvidado de garantizar la seguridade de los derechos de um certo número de sujetos vulnerables, pertenencientes a grupos marginales o peligrosos, la política O autor observa que neste campo a riqueza e variabilidade dos diferentes modelos operativos propostos dependem essencialmente das concepções teóricas em que se sustentam, destacando a existência de modelos que se situam em três níveis diferenciados: “En los niveles más básicos de la escala teórica encontraremos los modelos de la criminologia ‘administrativa’ de estrecha matriz etiológica, aplicable unicamente al control de la criminalidade; em los niveles intermédios conseguiremos los modelos de la criminologia etiológica que compreendem também el control de las consequências dos delitos; en fin, en los niveles más altos, se situan los modelos de la criminologia crítica que adopta el paradigma do etiquetamento o de la reacción social, y lo hacen más apropriado para la aplicación prática y para el control de las consecuencias de la delincuencia.” (BARATTA, ANO, p. 28) 4

45

criminal la reencontra como “objetos de uma certa forma de política social. Objetos, entonces, y no sujetos, porque también esta vez la finalidade de los programas de acción no es la garantia de sus derechos, sino ante todo reforzar la seguridade de suas vítimas potenciales. Para proteger as personas “respeitables” (y no para tutelar aquellas que no puedem disfrutar de sus derechos civiles, econômicos y sociales), la política criminal se transforma, em la terminologia de la nueva prevención, en “prevenção social” (de la criminalidade). (BARATTA, 2000, p. 32)

Nesta perspectiva, muitas vezes El Estado interviene, a través de la prevención social, no tanto para realizar su próprio deber de prestación respecto de los sujetos lesionados, sino para realizar, com acciones que se agregan a aquellas represivas el próprio deber de protección (....) respecto de los sujetos débiles, considerados como factores de riesgo. Estamos em presencia de uma sobreposición da polítca criminal a la política social, de uma “criminalización” de la política social. (BARATTA, 2000, p. 32)

Considerando

tais

questões,

em

especial

o

crescimento

dos

movimentos punitivistas/eficientistas, baseados na lógica de maximização do aparato repressivo do Estado, e a inadequação das políticas criminais não punitivas, estruturadas a partir da lógica de criminalização da política social acima mencionada, Baratta (2000, p. 47) sugere que abram espaços, na imaginação política, para a superação da lógica punitiva, construindo-se caminhos para a substituição da “política criminal” por “alternativas a política criminal.” Para isso sugere um esforço dos juristas e da imaginação coletiva no sentido de uma “emancipação da cultura do penal” a partir de uma releitura das necessidades humanas e das situações de risco/violência sob a ótica dos direitos fundamentais.

Neste aspecto propõe a transição de

uma política criminal para uma política integral de defesa dos direitos humanos. Olvidando los delitos y las penas, podremos pues assegurar em el âmbito de la política integral de los derechos, um espacio específico a la politica del derecho penal. Cuando sustituyamos la politica criminal por uma politica integral de protección de los derechos, la politica del derecho penl podrá – aunque em el modo residual y subsidiário que prescribe la Constitución – ser parte integrante de ella. (BARATTA, 2000, p. 47)

46

O processo de “libertação da cultura punitiva” exige, como sugerem Hulsmann e de Celis (1993, p. 179), mudança de percepção, atitudes e comportamentos. Mas para isso são necessárias, em primeiro lugar, “mudanças na linguagem”. Para os autores a linguagem e as imagens desenvolvidas no âmbito da justiça penal nos influenciam profundamente, fazendo com que “a justiça criminal exista em quase todos nós”, o que contribui para a disseminação, no tecido social, da lógica de “resolução” de conflitos nela presente. Tal lógica, baseada no castigo, na culpa, na exclusão ou na correção pode e deve ser superada. A Justiça Restaurativa aparece, nesta perspectiva, como potencial estratégia de questionamento e desconstrução do modelo punitivo que, por inúmeras razões, se impõe e se alastra nos dias atuais, inclusive nos espaços escolares. Por sugerir a substituição da linguagem, o diálogo entre os sujeitos e a reparação dos danos como principais estratégias, a perspectiva restaurativa, propõe uma nova lógica, que potencializa a participação, o diálogo e a corresponsabilização dos sujeitos, colocando todos os envolvidos como protagonistas dos processos de resolução de conflitos. Neste aspecto, representa, um significativo instrumento para a redução da violência e para a afirmação da dignidade da pessoa humana. 3. OS DIREITOS HUMANOS E A CIDADANIA DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL: as políticas para a proteção integral a infância e a adolescência a partir da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente. A Constituição Brasileira de 1988 foi um marco para a cidadania das crianças e dos adolescentes brasileiros. Ao consagrar a doutrina da proteção integral em relação a essa parcela da população, não somente os reconheceu como sujeitos de direitos e como pessoas em desenvolvimento, mas também os elegeu como prioridade absoluta da nação. Baseada neste novo paradigma estabeleceu uma série de direitos e garantias para as crianças e adolescentes, como a determinação da idade de imputabilidade penal aos dezoito anos, a responsabilidade da família, do Estado e da sociedade em 47

relação às questões da infância e adolescência, a descentralização e a municipalização do atendimento para esta faixa etária e a previsão de que suas demandas sejam consideradas prioridade absoluta. Para dar cumprimento a estes princípios e diretrizes, em 1990, foi publicada a Lei nº 8.069, denominada de Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, cujo objetivo foi o de regulamentar as conquistas expressas na Constituição Federal de 1988 em favor da infância e juventude. O texto consagra a Doutrina da Proteção Integral que, inspirada na perspectiva dos Direitos Humanos, está lastreada na Convenção das Nações Unidas para o Direito das Crianças5, da qual o país é signatário. Tais documentos não apenas reconhecem a cidadania de crianças e adolescentes, mas representam um passo significativo para a afirmação dos direitos humanos deste grupo social, historicamente alijado da condição de sujeitos de direitos. Referindo-se ao conceito de Direitos Humanos Herrera Flores (2000, p. 52) observa que os mesmos representam o conjunto de processos dinâmicos e interesses que pugnan por ver reconocidas sus propuestas partiendo de diferentes posiciones do poder. Desde aqui los derechos humanos deben ser definidos como eso, como sistemas de objetos (valores, normas, instituiciones) e sistemas de acciones (práctica sociales) que possibilitan la apertura y la consolidación de espacios de lucha por la dignidade humana.

Para o autor (2000, p. 52) os direitos humanos são (...) respuestas jurídicas económicas, políticas y culturales a relaciones sociales rotas o em constituión, que es preciso reconstruir o apoyar desde uma idea plural, diversificada y contextualizda de dignidade humana. (....) los derechos humanos no constituyen unicamente la denuncia que pretende restaurar algún conjunto de valores perdidos, sino uma via para la reconstrucción de bases de la convivência humana.

Reforçando esta ideia Canterji (2008, p. 69) salienta que o conceito de

A Declaração dos Direitos da Criança, proclamada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, articula todos os direitos civis, políticos, culturais, sociais e econômicos das crianças, sendo considerado o documento de direitos humanos mais aceito da história, tendo sido ratificado por 193 países. (UNICEF, 2014) 5

48

direitos humanos é complexo, não podendo ser tratado de forma simples ou ter seu estudo limitado aos textos legais, “pactos” ou “declarações”. Estes devem ser compreendidos como o “conjunto de processos (normativos, institucionais e sociais) que criam e consolidam espaços para a dignidade humana” e por isso deve se conhecer o contexto social em que estão situados e os grupos a que se destinam. No que tange aos direitos humanos de crianças e adolescentes, deve-se reconhecer, portanto, que (...) estes direitos se constituem em direitos especiais e específicos, pela condição que ostentam de pessoas em desenvolvimento. Desta forma, as leis internas e o sistema jurídico dos países que a adotam devem garantir a satisfação de todas as necessidades das pessoas até dezoito anos, não incluindo apenas o aspecto penal do ato praticado pela ou contra a criança, mas o seu direito à vida, à saúde, à educação, è convivência familiar e comunitária, ao lazer, à profissionalização, à liberdade, entre outros. (SARAIVA, 2002, pp. 26-27)

A atuação articulada dos diversos entes da federação possibilita uma maior

efetividade

nas

políticas

públicas,

consideradas

como

ações

concretizadoras de direitos, mas ressalta-se que a Constituição determina que essas políticas devem ser focalizadas nos municípios, local em que vive a criança e o adolescente e seu entorno social, principalmente a família. Pois é no convívio social cotidiano que se desenvolvem e concretizam os direitos e deveres previstos na esfera jurídica. Sob esta ótica, Gomes da Costa (1993, p.21), refere que a doutrina da proteção integral afirma o “valor intrínseco da criança como ser humano;[...] o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadoras da continuidade do seu povo [...] o que torna as crianças e os adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado.” A efetivação da doutrina da proteção integral exige a satisfação das demandas relativas às crianças e aos adolescentes, mediante políticas públicas sólidas, em especial aquelas relativas à saúde e a educação. Sendo a escola um espaço essencial para a construção de um cidadão pleno, consciente de seus direitos e deveres, e de seu papel como agente 49

transformador da realidade, evidencia-se a necessidade de qualificação das ações educativas, especialmente no que tange ao enfrentamento da violência, hoje tão presente em todos os espaços da sociedade e, em especial, nos espaços escolares. 4. EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS E PARA A CIDADANIA: a experiência desenvolvida no âmbito do Projeto de extensão “Cidadania para Todos” O Projeto de Extensão “Cidadania para Todos” é um projeto de ação comunitária, vinculado ao Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da UNIJUI, que é desenvolvido, desde o ano de 2006. Seu principal objetivo é promover a educação para a cidadania, para os direitos humanos e para a cultura de paz, por intermédio de oficinas e palestras, estruturadas a partir de eixos temáticos que tem a cidadania e os direitos fundamentais como aspectos transversais. A partir de tais práticas busca-se promover ações individuais e coletivas capazes de contribuir para a consolidação dos direitos humanos e a construção da cidadania, com especial ênfase na educação de crianças e adolescentes, tendo como referência a utilização de práticas restaurativas. O trabalho baseia-se na convicção de que a consolidação do Estado Democrático de Direito gerou a expectativa da realização de uma sociedade mais pacífica e igualitária, baseada na afirmação da dignidade da pessoa humana e no acesso a direitos fundamentais e que, nestes Estados a cidadania é um valor fundamental e caracteriza-se não somente pela possibilidade de participação política, exercida por meio do voto, mas, essencialmente, pela necessidade de que todos conheçam e se reconheçam como sujeitos de direitos e obrigações o que possibilita que os mesmos participem ativamente da construção de políticas públicas que assegurem a sua efetivação. A cidadania, segundo propõe Correa (2010, p. 24) “[...] significa a realização democrática de uma sociedade, compartilhada pelos indivíduos a ponto de garantir a todos o acesso ao espaço público e condições de sobrevivência digna, tendo como valor-fonte a plenitude da 50

vida”.

Neste sentido, Marshall (apud Correa, 2010, p. 23) afirma que ela

representa uma espécie de “[...] igualdade humana básica associada com o conceito de participação integral da comunidade”, o que exige uma postura ativa e de maior protagonismo por parte de todos. A temática da cidadania é trabalhada transversalmente, numa abordagem multidisciplinar, mediante ações desenvolvidas em Escolas de Ensino Fundamental e Médio dos municípios da região de abrangência da UNIJUI. Durante o desenvolvimento das atividades são utilizadas dinâmicas de grupo que favorecem a participação dos sujeitos, com a criação de espaços de reflexão e diálogo, com especial ênfase aos círculos restaurativos e demais práticas de Justiça Restaurativa. Além das oficinas temáticas e culturais, também se utilizam como estratégias de socialização de informações um site

6

e o programa de rádio

Papo Cidadão, divulgado na rádio UNIJUI FM e em rádios da região, bem como uma página no Facebook.7 Durante o desenvolvimento das atividades são utilizados recursos audiovisuais e dinâmicas de grupo que favorecem a participação dos sujeitos, criando espaços de reflexão e diálogo, com especial ênfase em práticas e círculos restaurativos. Tais estratégias buscam fortalecer o debate sobre cidadania e direitos humanos, no sentido da consolidação de práticas educativas cidadãs, que visam à emancipação dos sujeitos e a afirmação de uma cultura de paz. 5. AS PRÁTICAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA NA ESCOLA COMO ESTRATÉGIAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA A PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DA CIDADANIA A expressão Justiça Restaurativa tornou-se recorrente nos últimos anos no Brasil e tem atiçado o interesse e a curiosidade de profissionais de diversas áreas, em especial do Direito, da Psicologia, do Serviço Social e

6www.cidadaniaparatodos.com.br 7https://www.facebook.com/pages/Projeto-de-Extens%C3%A3o-Cidadania-Para-

Todos/239175732850951?fref=ts

51

da Pedagogia, notadamente quando estes atuam em questões relativas à violência e a conflitividade que envolve a infância, a adolescência, a família e a escola. Howard Zehr (2008) define a Justiça Restaurativa como um procedimento por meio do qual todas as partes envolvidas em situação lesiva

reúnem-se

para

decidir

coletivamente

como

lidar

com

as

circunstâncias decorrentes desse ato e suas implicações para o futuro. Busca-se, por meio deste procedimento, promover vivências baseadas em valores democráticos como a tolerância, o diálogo, o respeito, a solidariedade, a humildade, o empoderamento, a partir das quais se buscam respostas alternativas aos conflitos, que enfatizem, para além da perspectiva punitiva, a restauração dos prejuízos causados pela conduta lesiva, bem como dos laços sociais rompidos com a prática do delito, e que levem o autor a assumir as responsabilidades por suas ações. Azevedo (2005) salienta, contudo, que há uma corrente mais abrangente que define a Justiça Restaurativa a partir de seus valores, princípios e resultados almejados, representado um processo pelo qual se busca promover, para além da reparação dos danos, outros valores como “a participação, a reintegração e a deliberação”, constituindo este o seu corpo axiológico básico. Deste modo, unificando as duas concepções mencionadas, Azevedo (2005, p. 26) entende que A Justiça Restaurativa pode ser conceituada como a proposição metodológica por intermédio da qual se busca, por adequadas intervenções técnicas, a reparação moral e material do dano, por meio de comunicações efetivas entre vítimas, ofensores e representantes da comunidade voltadas a estimular: i) a adequada responsabilização por atos lesivos; ii) a assistência material e moral de vítimas; iii) a inclusão de ofensores na comumidade; iv) o empoderamento das partes; v) a solidariedade; vi) o respeito mútuo entre vítima e ofensor; vii) a humanização das relações processuais em lides penais; e viii) a manutenção ou restauração das relações sociais subjacentes eventualmente preexistentes ao conflito.

Apesar de ter sido institucionalizada e aplicada desde a década de 1970 na Europa e nos Estados Unidos, somente no ano de 2002 a ONU passou

a

orientar

os

países

membros

a

adotarem

as

práticas

restaurativas, estabelecendo seus princípios e valores básicos. No Brasil, 52

várias experiências8, especialmente no campo da justiça penal juvenil, têm sido desenvolvidas com êxito e nelas são utilizadas estratégias, visando à adequada

responsabilização

de

adolescentes

envolvidos

em

atos

infracionais. Busca-se, com este novo modelo, substituir a lógica de exclusão,

estigmatização

e

violência

presente

no

paradigma

retributivo/punitivo tradicional e superar os constantes fracassos quanto à adequada inserção de jovens infratores no seio da comunidade9. A Justiça Restaurativa constitui-se, segundo Azevedo (2005, p. 140) em uma proposição metodológica por intermédio da qual se busca, a partir da comunicação efetiva entre vítimas, ofensores e a comunidade transcender dinâmicas de culpa, vingança e punição, pois pretende conectar pessoas e desenvolver ações construtivas que beneficiem todos, tendo como foco as

necessidades

emergentes

do

conflito.

Seu

objetivo

é

aproximar

e

corresponsabilizar “fortalecendo indivíduos e comunidades para assumir o papel de pacificar seus próprios conflitos e interromper violências." (AMES; HAUSER, 2013). Trata-se de uma nova visão que trabalha com uma concepção relacional da justiça, em que se concebe, “o crime como um encontro infeliz e a pena como uma possibilidade de troca”. (GARAPON, 2004) Trata-se, portanto, de uma metodologia que propõe uma mudança radical de linguagem e de orientação, buscando a partir do diálogo, identificar os danos oriundos da conduta lesiva, as necessidades de autores e vítimas, enfocando os fatores causais do comportamento, ao invés de responder às demandas de “severidade” ou “endurecimento” e punição. O enfoque principal é o restabelecimento da situação à condição anterior ao acontecimento do crime, a partir de uma espécie de mediação do conflito entre a vítima e seu agressor, permitindo-se, com isso, o compartilhamento do conflito entre as partes. (AMES; HAUSER, 2013, p.110-111)

Resulta evidente, portanto, que as estratégias propostas no âmbito da Justiça Restaurativa se afastam radicalmente das tradicionais respostas produzidas no âmbito dos movimentos político-criminais O Brasil iniciou suas experiências em Justiça Restaurativa no ano de 2005, nas cidades de Porto Alegre, São Caetano do Sul e Brasília, a partir de projetos financiados pelo Ministério da Justiça. Desde então inúmeras experiências tem sido desenvolvidas. 9 A Lei nº 12.594/12 que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo no Brasil estabeleceu, entre suas diretrizes, a necessidade de utilização de práticas restaurativas no processo de responsabilização do adolescente infrator. 8

53

repressivistas e da justiça retributiva tradicional, seja ela dirigida a adultos ou adolescentes infratores. No âmbito da justiça penal convencional, que estrutura-se a partir de um paradigma retributivo, a imposição de sanções aos autores de infrações penais fundamenta-se na necessidade de “retribuição” e “prevenção” ao crime. Neste paradigma o crime é definido como violação contra o Estado e o foco é o estabelecimento da culpa. A natureza interpessoal do delito é obscurecida e o conflito é visto como conflito entre o indivíduo e o Estado. A pena (imposição de dor) visa retribuir e punir, substituindo-se um dano (crime) por outro (pena). A vítima é ignorada e o infrator torna-se “objeto” da intervenção, o que produz nele, irremediavelmente, um processo de estigmatização. No paradigma restaurativo, ao contrário, o crime é visto como uma violação (dano) de uma pessoa por outra, e que este rompe o equilíbrio das relações sociais em uma determinada comunidade. O foco, a partir disso, será restabelecer as relações atingidas, reconstruindo o equilíbrio rompido com a prática do delito. (AMES; HAUSER, 2013, p.116)

Percebe-se, portanto, que no campo da justiça restaurativa o conflito não é reconhecido como algo necessariamente negativo, pois o mesmo é trabalhado como um processo educativo de cidadania e como um momento de aprendizagem no qual o protagonismo dos indivíduos é fundamental. Deste modo a noção de justiça é transformada, deixando de ser apenas uma imposição institucional, apresentando-se como resultado da construção dos sujeitos e da comunidade, o que faz com que os indivíduos se percebam como sujeitos/cidadãos, que compreendam as próprias necessidades e obrigações e também reconheçam os outros como sujeitos de direitos e como semelhantes. As metodologias propostas no âmbito da Justiça Restaurativa não repercutem apenas no campo da justiça formal e podem ser utilizadas, como técnicas de resolução de conflitos e prevenção da violência, nos mais diversos espaços da sociedade, em especial, nas escolas, onde a violência, em suas mais diversas formas, tem se manifestado de modo significativo nos últimos anos. Nestes espaços, as estratégias de Justiça Restaurativa, tradicionalmente dirigidas à resolução formal de conflitos de natureza criminais mais graves protagonizados por jovens infratores, assumem um novo significado ao contemplarem um conjunto de ações que, baseadas 54

em princípios e valores restaurativos, buscam promover a resolução pacífica de conflitos e, simultaneamente, prevenir a violência, a partir da construção de uma cultura de diálogo, tolerância, respeito, inclusão e paz. A utilização de práticas restaurativas nos espaços escolares, em especial os círculos restaurativos, promove valores e princípios que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e proporciona a comunidade escolar vivências e exemplos de convivência pacífica, humanizada e cidadã. A realização de círculos restaurativos, sejam eles destinados a resolver conflitos ou promover discussões sobre temas diversificados, permite consolidar uma cultura de paz, pois auxiliam os participantes na compreensão da realidade e dos problemas vivenciados e do significado dos direitos humanos, bem como do quanto se pode fazer, no espaço da escola, para garantir o respeito a eles. O debate aberto, franco e verdadeiro sobre valores, sentimentos e necessidades e a busca por soluções consensuais para os problemas vivenciados, no qual todos participam em condições de igualdade, reafirma os valores da pessoa humana

e

da

democracia

participativa

e

fortalece

o

sentido

de

comunidade e de pertencimento. Sabe-se que na atualidade, as respostas tradicionais, baseadas na lógica retribuição/punição, ainda se mostram muito presentes nas instituições de ensino e têm servido mais à perpetuação da violência escolar do que ao seu enfrentamento. Nos espaços escolares ainda persistem modelos de disciplina social autoritários, permissivos ou negligentes, o que em pouco contribui para a educação cidadã e para a afirmação de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e de obrigações, na perspectiva exigida pela doutrina da proteção integral consagrada no Estatuto da Criança e do Adolescente. Neste sentido se faz necessária (...) a abertura ao novo, experimentando novas estratégias articuladoras e capazes de substituir a “cultura de guerra” por uma “cultura de paz”. Um novo olhar é fundamental, em especial nas instituições responsáveis pela formação de crianças e jovens, pois, nas palavras de Howard Zehr (2008, p. 167) “a lente através da qual enxergamos determina o modo como configuraremos o

55

problema e a ‘solução”. (AMES; HAUSER, 2013, p. 122).

Este novo modo de olhar exige que as conflitualidades, as violências e suas causas sejam trazidas para um campo de visibilidade, por meio de instrumentos que permitam a observação do comportamento do outro, sem julgamentos apressados, que favoreçam o diálogo, a igualdade e a produção consensual e comunitária de respostas mais adequadas e humanizadas aos conflitos e as necessidades emergentes no contexto escolar. Neste aspecto o trabalho desenvolvido por intermédio do projeto “Cidadania para Todos” é de fundamental importância, pois além de assegurar a interação da Universidade com a comunidade e o diálogo com diferentes realidades e saberes, auxilia a promover, nos espaços escolares, a educação para a cidadania e para os direitos humanos a partir de estratégias que, por sua natureza restaurativa, fortalecem o protagonismo, a emancipação dos sujeitos e a construção de laços comunitários, consolidando práticas educativas cidadãs e afirmação de uma cultura de paz. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante da realidade de violência, que se produze e reproduze nos espaços sociais, comunitários e escolares é comum, na atualidade, o apego a estratégias tradicionais que propugnam pelo fortalecimento de aparatos

de

controle

com

natureza

punitiva/retributiva,

cuja

característica fundamental é a estigmatização e exclusão dos sujeitos. Nestes espaços, muitas vezes, o exercício de poder e controle espelha-se em métodos tradicionais os quais refletem grande parte dos vícios ligados às práticas autoritárias transmitidas ao longo das gerações. Evidenciam-se, por outro lado, modelos de disciplina social negligentes ou permissivos que recusam qualquer espécie de responsabilização ou de controle dos conflitos emergentes no âmbito da escola, o que contribuiu, de forma mais intensa, para a generalização da violência e da indisciplina. Tais modelos não contribuem com a formação de cidadãos responsáveis e 56

aptos a participarem de forma ativa e comprometida na sociedade e, neste aspecto não consolidam a ideia de proteção integral, consagrada na Constituição Brasileira e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Já a utilização de práticas baseadas em princípios restaurativos no espaço escolar mostra-se absolutamente salutar, pois além de contribuir para a prevenção e resolução de conflitos a partir de uma perspectiva mais democrática, participativa e cidadão, permite resgatar os laços que unem os indivíduos que convivem nestes espaços, fortalecendo o sentido de participação em uma comunidade. Restaurar significa “religar”, “estabelecer laços” e isso só se faz possível a partir da consolidação, no espaço da escola, de estratégias que resgatem os valores do diálogo, da igualdade, da participação, da solidariedade e da responsabilidade. Tais valores não podem ser “impostos”, precisam ser construídos coletivamente, a partir de práticas que os utilizem como modelos de ação. Estes princípios dizem respeito à construção de uma nova cultura e precisam ser incorporados nas estruturas das diversas instituições de modo a se estabelecer novas configurações de poder, baseadas em valores e relações mais democráticas nas quais a paz não é fruto de imposições, mas é construída cotidianamente por todos. A escola é um lócus privilegiado para efetivar a previsão constitucional que exige que a proteção à infância e a adolescência se faça, de modo articulado

pelo

Estado,

família

e

sociedade.

As

escolas

públicas

representam o Estado e são agentes catalisadores para a interlocução com a família e a comunidade. A implementação de práticas restaurativas nestes espaços, enquanto política pública de proteção e promoção da cidadania de crianças e adolescentes, pode representar um grande passo para o prevenção da violência, para a afirmação dos direitos humanos e para a consolidação da cidadania. REFERÊNCIAS AMES, Maria Alice; HAUSER, Ester Eliana Hauser. Violência Escolar e Práticas Restaurativas. In: HAUSER, Ester; GROSSMANN, Lurdes; PADOIN, Fabiana; RAMOS, Lizélia (orgs.). Cidadania e Direitos 57

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Os

direitos

da

criança

e

do

ZEHR, Howard. Trocando as lentes – um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Pala Athena, 2008. Lei nº 10.836/2004. Disponível . Acesso em: 10 de setembro de 2014.

em:

CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015. TODOS PELA EDUCAÇÃO. Disponível em: . Acesso em 10 set. 2015.

59

O GÊNERO FEMININO A PARTIR DO PRISMA DA VITIMODOGMÁTICA E DA VITIMOLOGIA: percalços e possibilidades Mariane Camargo D’Oliveira1 Maria Aparecida Santana Camargo2 1.INTRODUÇÃO Tanto a vitimodogmática quanto a vitimologia trazem relevantes instrumentais para uma abordagem jurídico-penal contemporânea mais adequada, coerente e viável para investigar as questões concernentes à vitimização da mulher, seja do prisma teórico, seja de uma perspectiva mais pragmática. A vitimodogmática, como preceitua Greco (2007), objetiva estabelecer qual foi a contribuição da vítima para o crime, possibilitando, assim, maior cuidado no momento de se atribuir a culpabilidade ao agente. Ela visa, consequentemente, estabelecer como deve ser tratado, do ponto de vista dogmático, o comportamento da vítima. Por sua vez, a origem da vitimologia esteve marcada por um questionamento etiológico e pelo estudo das relações entre criminoso e vítima. E quando o tema é a investigação da participação da vítima na gênese do comportamento criminoso, a evocação dos delitos sexuais surge na figura, construída com facilidade em uma sociedade sexista e machista, da “vítima-provocadora”, conforme esclarece Oliveira (2007). Embasando-se nestas premissas iniciais, a presente pesquisa, de cunho essencialmente teórico, embora sustentada em dados quantitativos disponibilizados nos sítios do governo federal, busca verificar em que medida a vítima mulher é visualizada e alcançada pela Criminologia brasileira, especialmente mediante a concatenação dos estudos da vitimodogmática com os da vitimologia, ao compreender que este fenômeno sociocultural requer mecanismos que vão além da responsabilização do agressor. 1Doutoranda

em Diversidade Cultural e Inclusão Social na Universidade FEEVALE/RS. Mestre em Direito (UNISC/RS). Docente do Curso de Direito da UNICRUZ. Bolsista PROSUP/CAPES. Advogada. E-mail: [email protected] 2Doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social – Mestrado – da Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Estudos Humanos e Pedagógicos (GPEHP) da UNICRUZ. E-mail: [email protected]

60

Considera-se, inclusive, que a violência contra o gênero feminino continua perpetuando, além de uma seletividade no contexto penal, a lógica patriarcal de dominação masculina. O estudo estrutura-se em quatro tópicos, onde são discutidas

algumas

questões

referentes

aos

marcos

teóricos

da

vitimodogmática e da vitimologia. Após, é verificada a pauta relacionada ao Direito Penal e à vítima. Na sequência, comenta-se como a vitimologia traz a perspectiva do gênero feminino, e, por fim, examinam-se alguns dados que tangenciam sobre a violência de gênero. 2. OS MARCOS TEÓRICOS DA VITIMODOGMÁTICA E DA CTITMOLOGIA

As

origens

do

movimento

vitimológico

estão

relacionadas

ao

nascimento do movimento internacional de Direitos Humanos no período do pós-guerra. Tornados públicos os horrores cometidos durante a II Guerra Mundial, a consciência da comunidade internacional foi despertada para o drama da vitimização. A distinção mais importante entre ambos vem de que, enquanto

o

movimento

de

Direitos

Humanos

considerava

a

macrovitimização, as origens do movimento vitimológico estava ligada aos processos

de

microvitimização.

A

identidade

genética

de

ambos

os

movimentos é especialmente curiosa quando se verifica, nos discursos atuais, uma aparente incongruência entre Direitos Humanos e direitos da vítimas (OLIVEIRA, 2007). É possível perceber que, conforme leciona Saliba (2009, p. 109), o tratamento histórico dispensado à vítima dentro dos estudos penais passou por três grandes momentos. O primeiro, descrito como “Idade de Ouro”, vigorou até o fim da Alta Idade Média, com relevante participação no sistema; no segundo momento, há uma neutralização do poder da vítima, e o Estado, por meio dos poderes públicos, monopoliza a reação; finalmente, em uma terceira fase, revaloriza-se o papel da vítima no processo penal. Desde a Escola Clássica impulsionada por Beccaria e Fuerbach à Escola Eclética de Impalomeni e Alimena, perpassando pela Escola Positivista de Lambroso, Ferri e Garofalo, o Direito Penal praticamente teve 61

como meta a tríade delito-delinquente-pena. O outro componente do contexto criminal, a vítima, jamais foi levado em consideração. Isto apenas passou a ocorrer quando outras ciências, e principalmente a Criminologia, tiveram que vir em auxílio do Direito Penal para a análise aprofundada do crime, do criminoso e da pena(FERNANDES& FERNANDES, 2012, p.455). Os primeiros estudos sistematizados sobre a vítima surgiram no final da década de 1940 e dois nomes estão relacionados ao nascimento da vitimologia: Mendelsohn e Von Henting. Há uma polêmica entre os estudiosos da vitimologia acerca de quem teria sido o pioneiro: Von Henting publicou, em 1948, sua obra mais conhecida The Criminal and His Victim. Mendelsohn, por outro lado, teria utilizado, no ano anterior, a expressão “vitimologia”. Sem embargo do interesse que possam ter alguns pela discussão, Oliveira (2007) refere que o fato importante é que, no final da década de 1940, o termo estava definitivamente cunhado. Desde os primeiros trabalhos em vitimologia a partir de Mendelsohn, que nomeou a ciência, e de Von Henting no final dos anos 1940, houve um avanço fantástico a ponto de hoje a vitimologia e os movimentos pelos direitos das vítimas constituírem possivelmente a força existente mais dinamizadora para a transformação dos sistemas de Justiça Penal. Isto, sobretudo, a partir do forte impulso nos anos 1960, em que se abriram novos horizontes de investigação e de ação em matéria criminológica e vitimológica (KOSOVSKI& SÉGUIN, 2000, p.22). No Brasil, em conformidade com Oliveira (2007), somente na década de 1970 foi publicada a primeira obra devotada ao estudo da vítima e a partir daí o assunto despertou algum interesse, fortalecido com a criação da Sociedade Brasileira de Vitimologia (SBV). A SBV, como relatam Kosovski e Séguin (2000), foi fundada em 28 de julho de 1984, quando especialistas das áreas de Direito, Medicina, Psiquiatria, Psicanálise, Psicologia, Sociologia e Serviço Social, além de estudiosos das ciências sociais, uniram-se para consolidar, no Brasil, os conhecimentos relacionados com a ciência da Vitimologia, que, anteriormente, era apenas um capítulo da Criminologia. Não obstante, em comparação com o destaque que o tema tem recebido na doutrina internacional, a produção brasileira é, no mínimo, tímida. 62

A vitimodogmática é, segundo Larrauri (1992, p. 63), o conjunto das abordagens feitas pelos penalistas que põem em relevo todos os aspectos do Direito Penal em que a vítima é considerada. Os primeiros estudos sobre os temas foram registrados na década de 1970. O crime de estelionato determinou uma reflexão mais específica dos juristas sobre a participação da vítima no delito. Isto ocorreu em razão das características próprias deste crime, onde se constatou uma atuação consciente da vítima, que, muita vezes, visava uma vantagem. Molina (1993) arrola os principais motivos para o fortalecimento do movimento vitimológico a partir da década de 1970. De início, o legado dos pioneiros da vitimologia demonstrou a recíproca interação entre autor e vítima. Além disso, no campo da Psicologia Social, emergiu uma área de estudos apta a fornecer um referencial científico com a elaboração de vários modelos teóricos baseados nos dados empíricos fornecidos pela pesquisa vitimológica. Os estudos experimentais de Latané e Darley na década de 1970 relacionados à dinâmica da intervenção dos espectadores nas situações de emergência e estudos de psicólogos sociais referentes a atitudes de assistência (ou abandono) das vítimas de delitos, também impulsionou o campo. Da mesma forma, a crescente credibilidade das denominadas “pesquisas de vitimização” e o movimento feminista são outros relevantes fatores impulsionadores do movimento vitimológico. Já a expressão “vitimodogmática” agrupa uma série de considerações dogmáticas referentes à intervenção da vítima na gênese do risco. A questão central é determinar em que medida a corresponsabilidade da vítima na ocorrência

do

delito

pode

ter

repercussões

sobre

a

valoração

do

comportamento do autor (MELIÁ, 1998, p. 223-224). Como menciona Sánchez (1989, p. 197), o ponto crucial da discussão vitimodogmática é o estudo do comportamento da vítima no âmbito da dogmática penal e, em especial, seus reflexos na responsabilidade do autor. 3. VÍTIMA E DIREITO PENAL A função primordial do Direito Penal como parte integrante do 63

controle social é a de participar, nos limites de sua competência, e com seus meios, da manutenção e asseguramento das normas que servem de base para as leis penais. Esta função cumpre seus propósitos sem atender à vontade ou aos fins da vítima, toda vez que se configura como Direito Penal estatal. Através da neutralização da vítima, o que se vê é que a decisão sobre as normas fica reservada ao sistema, sem qualquer influência da vítima, conforme constata Greco (2007). Sob o enfoque vitimodogmático, segundo a aludida autora (2007), existem institutos que interessam profundamente ao Direito Penal, como o consentimento, a concorrência de culpas e a provocação da vítima. Para estudá-los, deve-se valer de abordagens empíricas da vitimologia e, especialmente do conceito de vítima relacional, entendida como aquela que interage com o autor e com o meio. Também servirão aqueles trabalhos de campo sobre as diferentes tipologias de vítimas para temas como a classificação por estrutura dos tipos penais. A vitimologia não se resume hoje ao estudo das tipologias. Estabelecer o conceito de vitimologia é tarefa complexa, pois que inúmeros enfoques são possíveis e a expressão vítima, que delimita seu alcance, é também sujeita a diversas interpretações. Apenas para ilustrar a dificuldade, há uma pretensão de abarcar neste ramo do conhecimento o estudo e a definição de políticas públicas relacionadas a todas as espécies de vítimas. Há quem defenda que as consequências psicológicas de um forte trauma, seja ele causado por um ato humano ou por um fenômeno natural são muito semelhantes, consoante Oliveira (2007). Por isso, quando se pretende analisar as intersecções entre a Vitimologia, a Criminologia e o Direito Penal, vale mais falar em um “movimento vitimológico”, pois o que interessa é verificar como os conhecimentos advindos dos diversos campos de conhecimento causam e recebem impactos na área das ciências penais. Outro esclarecimento que deve ser feito é de que, no momento atual, os objetos de investigação da vitimologia e da vitimodogmática são distintos. Pela primeira vez se busca estabelecer os tipos de vítimas, bem como desenvolver os argumentos sociais, genéticos e jurídicos a respeito delas. Já a vitimodogmática visa estudar a responsabilidade da vítima em relação ao 64

crime,

sua

precisamente

parcela o

de

responsabilidade

reconhecimento

da

para

o

problemática

evento e

danoso.

seus

É

possíveis

encaminhamentos, através de uma fundação e construção dogmáticas consistentes, o que deve ser levado em conta para se valorar a vitimodogmática. O Direito Penal só atuará quando as condutas práticas forem merecedoras de pena, na ótica de Greco (2007). Nesse sentido, Oliveira (2007) ressalta que a relação da Vitimologia com a Criminologia e com o Direito Penal só pode ser bem dimensionada com o método da interdisciplinaridade, abandonando as ideias de sujeição e hierarquia. Ainda na busca de uma concepção útil, o que se tem em vista é um enfoque vitimológico na Criminologia e no Direito Penal. Esse enfoque é essencial para a compreensão adequada do fenômeno criminal em sua acepção ampla. Se não há crime sem vítima é um contrassenso tentar compreender o crime sem inserir a vítima na análise. Assim, abandonandose as antigas categorias de “ciência principal” e “ciência auxiliar”, o que importa é recolher dos estudos vitimológicos elementos que conduzam a um aperfeiçoamento das ciências penais. Sánchez (1993, p. 194) aduz que são poucos aqueles que não concordam com a necessidade de se orientar o Direito Penal para a vítima e sua maior satisfação. Desse modo, em torno da ideia de reparação – como sanção autônoma ou como pressuposto da não imposição de certas sanções – reúnem-se as mais variadas vertentes de pensamento. O problema não é mais saber se se deve ou não atender os interesses da vítima no Direito Penal, mas, sim, como fazê-lo. Em consonância com o destaque feito por Manzanera (1990, p. 128129), a importância do estudo da relação entre o delinquente e a vítima não é contestada por nenhum autor. É possível afirmar, sem espaço para dúvidas, que eventual análise feita acerca do autor e do crime, sem levar em consideração a vítima, chegará a uma visão míope e incompleta do fenômeno analisado. No entanto, em que pese o consenso acerca deste ponto de vista, a expressão “precipitação vitimal” recebeu muitas críticas e, por isso, durante a reunião de Bellagio (julho de 1975), foi feita a proposta de sua substituição por outras expressões consideradas mais adequadas como “vulnerabilidade da vítima” ou “participação da vítima”. A crítica à 65

“vitimologia

clássica”

foi

também

impulsionada

pelo

surgimento,

notadamente nos Estados Unidos, de inúmeros serviços públicos voltados para a vítima e pelo movimento “da Lei e da Ordem”. Iniciava-se, então, uma nova abordagem vitimológica que, afastando-se das concepções anteriores, criticadas por uma excessiva centralização na conduta da vítima (blame the victim), passou a buscar novas funções e objetos de estudo para a vitimologia. Hoje em dia não se pode estudar o Direito Penal de forma isolada, ignorando-se o binômio autor e vítima. Nota-se que a Criminologia, ciência que centrou seus estudos no criminoso e nos motivos do crime, acabou, paulatinamente, abrindo espaço para o surgimento da vitimologia, ciência que adicionou a presença da vítima ao fenômeno criminoso e, portanto, deu margem ao surgimento de mais um fator na equação crime-criminoso, chegando-se ao trinômio crime, criminoso e vítima (GRECO, 2007). É possível inferir, a partir do entendimento de Oliveira (2007), que, se existe uma certa unanimidade em torno da necessidade de dar-se à vítima alguma satisfação e em torno da ideia de que a neutralização da vítima pelo Direito Penal moderno foi longe demais, as medidas e propostas que surgem dessa concepção comum diferem muito entre si. Desde a perspectiva abolicionista, a apregoar com insistência a necessidade da devolução do conflito a seus protagonistas e a privatização da sua solução, aos modelos de conciliação e mediação mais ou menos dependentes do sistema penal, à concepção de uma reparação como pena autônoma, são muitas as possibilidades teóricas e práticas de enquadramento do problema. 4. O GÊNERO FEMININO NA VITIMOLOGIA O movimento feminista desempenhou aqui relevante papel. Não fossem as críticas lançadas aos primeiros estudos tipológicos, é possível que sua estrutura sexista estivesse ainda vigente. Houve uma repulsa inicial ao estudo etiológico da vitimização, incentivada pelo movimento feminista que via na discussão acerca da culpabilidade da vítima uma grave ameaça aos direitos da mulher. Segundo essa ótica, sobre a mulher, frágil e vitimizada 66

em uma sociedade patriarcal, pareceria absurdo que se fizesse recair a culpa pela ocorrência do crime. Assim, o questionamento etiológico deixaria aberto um flanco importante na luta feminista, motivo pelo qual era imperioso deslegitimá-lo (OLIVEIRA, 2007). Esse risco, ainda na visão de Oliveira (2007), fica evidente quando se pensa em alguns chavões ao estilo “mulher de malandro gosta de apanhar”, em justificativas como “foi a mulher que provocou o ataque sexual ao se vestir de maneira convidativa”, ou mesmo a antes larga exculpação do homicídio passional. Embora menos frequentes na atualidade, por efetiva conscientização,

ou,

ao

mesmo,

algum

constrangimento,

estas

representações não se encontram banidas do senso comum na sociedade brasileira, nem da literatura especializada sobre o tema, como na obra de Neuman (1994). A citada autora (2007) elucida que a crítica feminista traz em seu bojo importantíssimos temas vitimológicos. Mostra a necessidade de se compreender, em relação aos crimes sexuais, não apenas a estrutura do fato que envolve os protagonistas da cena, mas o contexto social em que se acha inserido. A partir daí, a reação social e a reação do sistema de justiça criminal podem ser compreendidas. A vitimologia apresenta ferramentas essenciais nos processos de vitimização em geral e que se mostram especialmente relevantes em duas categorias de vitimização da mulher: os casos de violência doméstica e os crimes sexuais. A primeira ferramenta são as chamadas “pesquisas de vitimização” por se tratarem de crucial intersecção entre a Vitimologia e a Criminologia. Estas pesquisas, de acordo com Kahn (1998) consistem, basicamente, em um questionário, dirigido a uma mostra significativa da população, a quem se pergunta se foi vítima de determinado delito. Normalmente são também incluídas perguntas relacionadas ao sistema penal (como, por exemplo, se a ocorrência foi ou não registrada e por que motivo), aos sentimentos de insegurança e que grau de satisfação com os serviços policiais. Estas informações obtidas, de maneira geral, revelam, conforme Larrauri (1991): a) que existe um maior número de delitos daqueles que se denuncia; b) que quando se produz a denúncia, ela obedece a motivos distintos de interesse 67

em conseguir a punição do culpado; c) que o fator mais influente é o estilo de vida; d) que as vítimas provêm de setores mais pobres da sociedade; e) que é frequente que a vítima conheça seu agressor; e, f) que a percepção de insegurança

e

de

medo

não

está

diretamente

relacionada

com

a

possibilidade matemática de ser vítima de um delito, principalmente. Através da descoberta de diversas formas de vitimização e, em especial, do constrangedor papel do Estado como agente vitimizador, surge a necessidade de dar alguma resposta à vítima e é na busca dessas respostas que inúmeras iniciativas têm emergido nos últimos tempos em variados campos. Assim é que se originou uma política de segurança pública que transformou as vítimas no foco principal de um discurso conservador, o movimento da Lei e da Ordem (Law and Order); foram criados, especialmente nos Estados Unidos, inúmeros programas de assistência às vítimas; diversos países seguiram a proposta lançada por Margareth Fry na década de 1960, criando fundos de compensação às vítimas; e, por fim, um grande número de reformas legislativas tem por finalidade superar o abandono histórico da vítima por parte do Direito Penal, proliferando projetos de reparação e mediação penal, em consonância com o asseverado por Oliveira (2007). Todas estas iniciativas surgiram diante de uma nova visão dos direitos das vítimas, que, ignoradas pelo sistema penal, durante tanto tempo direcionado unicamente para o criminoso, e desamparadas pelo Poder Público, reivindicavam uma maior atenção ao reconhecimento de seus direitos, assunto permanente em todos os simpósios internacionais de vitimologia (OLIVEIRA, 2007). A síntese de tais reivindicações está, de maneira expressa e inquestionável, na Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Delitos e Abuso de Poder, aprovada pela Assembleia-Geral da ONU em 29 de novembro de 1985. Na compreensão de Fernandes (1995), tal Declaração traz disposições referentes ao tratamento digno que deve ser dispensado às vítimas, aos seus direitos nos procedimentos administrativos e judiciais (direito à informação, à expressão de suas opiniões e preocupações, à assistência, à proteção de sua intimidade e de sua pessoa, bem como de seus familiares e testemunhas), e à utilização de mecanismos informais tendentes a facilitar a 68

conciliação e a reparação. É também dada grande importância ao ressarcimento, que compreende a devolução dos bens e pagamento das perdas e danos decorrentes da vitimização, além do dever estatal no direito à assistência. Como se depreende e com suporte na lição de Oliveira (2007), as pesquisas de vitimização da mulher constituem necessária ferramenta não apenas

para

o

conhecimento

estatístico

do

problema,

mas,

fundamentalmente, para trazer dados indispensáveis à construção de políticas públicas que atendam às necessidades femininas. 5. ALGUNS DADOS DE MULHERES VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO A violência contra a mulher em todas as suas formas (psicológica, física, moral, patrimonial, sexual, tráfico de mulheres) é um fenômeno que atinge mulheres de diferentes classes sociais, origens, regiões, estados civis, escolaridade ou raças. Faz-se necessário, portanto, que o Estado brasileiro adote políticas públicas acessíveis a todas as mulheres, que englobem as diferentes modalidades pelas quais ela se expressa. Nessa perspectiva, devem ser também consideradas as ações de combate ao tráfico de mulheres, jovens e meninas, como consta no Pacto Nacional

pelo

Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2011). Nesse aspecto, o Brasil celebrou um acordo federativo, que abrange as dimensões da prevenção, assistência, combate e garantia de direitos às mulheres denominado de “Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres”. O Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (2011) foi lançado em agosto de 2007, como parte da Agenda Social do governo federal. Parte do entendimento de que a violência constitui

um

fenômeno

de

caráter

multidimensional,

que

requer

a

implementação de políticas públicas amplas e articuladas nas mais diferentes esferas da vida social, tais como: na educação, no trabalho, na saúde, na segurança pública, na assistência social, na justiça, na assistência social, entre outras. Esta conjunção de esforços já resultou em ações que, simultaneamente, vieram a desconstruir as desigualdades e combater

as

discriminações

de

gênero,

interferir

nos

padrões 69

sexistas/machistas ainda presentes na sociedade brasileira e promover o empoderamento das mulheres; mas muito ainda precisa ser feito e por isso mesmo, a necessidade de fortalecimento do Pacto, já que suas ações propostas se apoiam em três premissas: a) a transversalidade de gênero; b) a intersetorialidade; e, c) a capilaridade. Ainda que seja um fenômeno reconhecidamente presente na vida de milhões de brasileiras, não existem estatísticas sistemáticas e oficiais que apontem para a magnitude deste fenômeno. Alguns poucos estudos, realizados em 2010 por institutos de pesquisa não governamentais, como a Fundação Perseu Abramo, apontam que aproximadamente 24% das mulheres já foram vítimas de algum tipo de violência doméstica. Quando estimuladas por meio da citação de diferentes formas de agressão, esse percentual sobe para 43%. Um terço afirma, ainda, já ter sofrido algum tipo de violência física, seja ameaça com armas de fogo, agressões ou estupro conjugal. Outras pesquisas indicam, também, a maior vulnerabilidade de mulheres e meninas ao tráfico e à exploração sexual. Segundo estudo da Unesco de 1999, uma em cada três ou quatro meninas é abusada sexualmente antes de completar 18 anos, conforme informa o referido Pacto (2011). Atualmente, existem 1.011 serviços de atendimento às mulheres em situação de violência. A Lei Maria da Penha n. 11.340/06, que completará 10 anos em 2016, prendeu 4,1 mil agressores, instaurou 685,9 mil procedimentos para coibir a violência e recebeu 2,7 milhões de ligações pela Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), de acordo com o Portal ODM (s/d).Esta é uma das importantes fontes de informações, já que a Central de Atendimento à Mulher, foi criada em novembro de 2005 pela SPM/PR para orientar as mulheres, em situação de risco e de violência, sobre seus direitos e onde buscar ajuda, bem como para auxiliar no monitoramento da rede de atenção à mulher em todo o país. Mesmo não oferecendo dados que permitam construir um diagnóstico sobre a violência contra 1. Decreto Presidencial sob o n° 7.393/2010. 17 as mulheres no país, a Central oferece uma visão geral das características deste fenômeno e de sua magnitude. Segundo o Relatório Nacional de Acompanhamento ODM (2014, p. 70

62), foram recebidas, no ano de 2012, 732 mil ligações válidas. No entanto, a desigualdade de gênero ainda persiste no mercado de trabalho, nos rendimentos e na política. E a violência doméstica continua atingindo milhares de mulheres brasileiras. Apresentam-se alguns indicadores que podem elucidar melhor a questão da violência, quanto aos tipos praticados, particularmente

por

companheiro,

cônjuge

ou

ex-marido,

sendo

predominantes as lesões corporais leves e graves:

Um dado relevante e que chama atenção é que as violências moral e psicológica atingem juntas, o percentual de 34,9% dessas ligações. A maior parte das mulheres que entrou em contato com o Ligue 180 e que também é vítima da violência tem de 20 a 40 anos (26.676), possui ensino fundamental completo ou incompleto (16.000), convive com o agressor por 10 anos ou mais, 40% e 82% das denúncias são feitas pela própria vítima. O percentual de mulheres que declaram não depender financeiramente do agressor é 44%. E 74% dos crimes são cometidos por homens com quem as vítimas possuem vínculos afetivos/sexuais (companheiro, cônjuge ou namorado). Os números mostram que 66% dos filhos presenciam a violência e 20% sofrem violência 71

junto com a mãe. Os dados do Pacto (2011) apontam que 38% das mulheres sofrem violência desde o início da relação e 60% delas relataram que as ocorrências de violência são diárias. Em números absolutos, o Estado de São Paulo é o líder do ranking nacional com um terço dos atendimentos (77.189), que é seguido pelo Estado da Bahia, com (53.850). Em terceiro lugar está o Rio de Janeiro (44.345). Em contrapartida, na referência que está contida no Relatório Nacional de Acompanhamento ODM (2014), aindanão há no país pesquisas regulares capazes de fornecer estatísticas para dimensionar e acompanhar o problema da violência contra as mulheres. Apesar das dificuldades para estimar a magnitude do fenômeno, a existência de um conjunto de registros administrativos coletados pelos governos permite algumas análises que, mesmo limitadas, indicam caminhos para avaliar as mudanças ocorridas no período ou para construir um perfil do fenômeno. Nesse enfoque, denota-se a imprescindibilidade de construção de indicadores para que se possam, efetivamente, avaliar as políticas públicas construídas e implementadas em termos de violência contra o gênero feminino. Logo, as possibilidades são inúmeras e os percalços constantes na luta para mitigar essa permanente problemática sociocultural. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS O impacto do movimento vitimológico no Direito Penal se dá por várias formas. Uma primeira aproximação revela que a evolução da dogmática penal teve um preço decorrente da transformação dos fatos concretos em categorias jurídicas. A vítima passou a ser o sujeito passivo do crime. O movimento vitimológico, portanto, traz a vítima de carne e osso para o Direito Penal, com suas aspirações, necessidades, angústias e expectativas. A forma como esta subjetividade foi interpretada pelo Direito Penal deu origem a dois campos distintos de atuações que podem ser designados como “políticas de exclusão” e “políticas de inclusão” (OLIVEIRA, 2007). Sob a perspectiva desta autora (2007), os estudos vitimológicos 72

relacionados especialmente às formas mais frequentes de violência contra a mulher são fundamentais também para a criação de estratégias de mais educação e mais prevenção. Ainda há muito trabalho a ser feito neste campo e

o

desafio

fundamental

é

buscar

a

criação

de

alternativas

e

encaminhamentos que atendam aos interesses das mulheres sem ceder aos discursos demagógicos e punitivos que reforçam as políticas de exclusão. Ainda é útil ressaltar que, conforme Kosovski (2012), a vitimologia, obviamente, não tem todas as respostas, mas pode auxiliar muito na análise sistemática e compreensão das vítimas e, paradoxalmente pode fornecer mais respostas adotando a perspectiva mais ampla dos Direitos Humanos. Essa perspectiva, por exemplo, poderia desvelar e trazer à luz o impacto da opressão na vitimização criminal, auxiliando, assim, a compreender suas causas. Depreende-se, pelo exposto, que a violência contra o gênero feminino vem, paulatinamente, perpetuando a lógica patriarcal, sexista e seletiva. Mostra-se imprescindível, por conseguinte, construir indicadores de políticas públicas que possam, pelas lentes da vitimodogmática e da vitimologia, pensar em estratégias mais efetivas visando avançar nos desafios para consolidar um enfoque transversalizado pelas questões de gênero no sistema jurídico-criminológico. REFERÊNCIAS BRASIL, SPM. Balanço Semestral Ligue 180: janeiro a junho de 2012. Brasília-DF, 2012. ______. Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Brasília, DF: SPM, 2011. BRASIL, RELATÓRIOS DINÂMICOS ODM. Rio Grande do Sul, Perfil Estadual, Promover a Igualdade entre os Sexos e a Autonomia das Mulheres. Disponível em: . Acesso em: 05 ago. 2015. BRASIL, ODM. Relatório Nacional de Acompanhamento ODM. Brasília, DF: IPEA : MP, SPI, maio 2014. FERNANDES, Valter; FERNANDES, Newton. Criminologia Integrada. 4. ed. 73

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Administra%C3%A7%C3%A3o-da-Justi%C3%A7a.-Prote%C3%A7%C3%A3odos-Prisioneiros-e-Detidos.-Prote%C3%A7%C3%A3o-contra-a-Tortura-Maustratos-e-Desaparecimento/declaracao-dos-principios-basicos-de-justicarelativos-as-vitimas-da-criminalidade-e-de-abuso-de-poder.html>. Acesso em: 15 ago. 2015. SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009. SÁNCHEZ, Jesús María Silva. La “Victimo-Dogmática” en el Derecho Penal Español. Cuadernos de Política Criminal (CPC), Madrid, p. 195-203, 1989. ______. La Consideración Del Comportamiento de La Víctima em La Teoría Del Delito: observaciones doctrinales y jurisprudenciales sobre la “victimo-domagtica”. Madrid: Consejo General Del Poder Judicial, 1993.

75

DISCURSO FEMINISTA E PODER PUNITIVO: APROXIMAÇÕES (IM)POSSÍVEIS NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO Joice Graciele Nielsson1 Raquel Cristiane Feistel Pinto2 1.INTRODUÇÃO O principal objetivo deste trabalho é refletir sobre as relações existentes entre o poder punitivo e o discurso feminista, a partir das contribuições teóricas do criminalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni e da análise do atual cenário brasileiro, sua caminhada para o enfrentamento da violência de gênero e a aprovação recente da Lei 13.104/15, a Lei do Feminicídio. Neste sentido, analisará em um primeiro momento, a partir das contribuições de Zaffaroni, o longo processo histórico de constituição e justificação de toda sorte de discriminações baseadas em diferenças biológicas, que hierarquizaram

a sociedade, sob o alicerce do poder

patriarcal, do poder punitivo e do saber dominante, como expressões de sustentação de um mesmo poder. Demonstra desta forma, a profunda vinculação existente entre patriarcado e poder punitivo, representando a própria violência de gênero, uma expressão do uso autorizado e legítimo deste, como forma de controle social. Em um segundo momento, analisa o fenômeno da violência de gênero a partir do legado propiciado pelo feminismo, na construção de vários marcos legais e políticos de visibilização, denúncia e enfrentamento. A partir do arcabouço internacional, no Brasil, o processo conduziu à recente aprovação da Lei 13.104/15, a Lei do Feminicídio, reforçando a tendência de reivindicação punitiva do agressor, expressa pelo movimento feminista. Este tendência será analisada a partir da constatação da pouca efetividade e dos pressupostos do direito penal mínimo e da criminologia crítica.

1Professora

do Curso de Direito da UNIJUÍ. Mestre em Desenvolvimento. Doutoranda em Direito/UNISINOS. 2 Especialista em Gestão de Pessoa. Aluna Especial do Metrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ.

76

A parte final busca, a partir de Zaffaroni, demonstrar que a busca por mecanismos

repressivo

punitivos

como

forma

de

enfrentamento

às

discriminações e a violência de gênero carrega em si uma armadilha, ao reforçar justamente o poder que está na gênese do próprio fenômeno. A par disso, considera que a insistência neste caminho de contato entre discurso feminista antidiscriminatório e poder punitivo representa uma forma de neutralizar seu caráter profundamente transformador e reforçar o próprio elemento discriminante e opressor. 2. HIERARQUIZAÇÃO BIOLÓGICA DA HUMANIDADE: a unidade ideológica das discriminações A discriminação, em sua forma de hierarquização baseada em diferenças biológicas dos seres humanos é um capítulo antigo e contínuo da história humana, cuja construção apresenta múltiplas facetas de um mesmo processo histórico: racismo, discriminação de gênero, de pessoas portadoras de deficiências, de doentes, de minorias sexuais e étnicas, de imigrantes, crianças e adolescentes, idosos, dentre outros. Zaffaroni (2009) utiliza a classificação proposta por Michel Wieviorka (1992) sobre o racismo, para afirmar que todos estes tipos de discriminações apresentam formas inorgânicas, orgânicas e oficiais de manifestação. As formas inorgânicas são aquelas que não têm discursos nem instituições que as sustentem de modo pretensamente coerente, mas se manifestam cotidianamente na biopolítica, cunhada por Foucault. As formas orgânicas aparecem quando partidos ou instituições, típicas da política tradicional assumem os discursos que as sustentam, e por fim, as formas oficiais, quando são assumidas e transformadas em políticas públicas pelos Estados. No nível inorgânico, tais discriminações constituem-se a partir de um poder in fluxo, conforme Foucault (1981), ou seja, nem fixo nem localizado numa pessoa ou instituição e, portanto, podem ocorrer de maneira isolada. Quando estas assumem formas orgânicas e articulam discursos de sustentação através de marcos institucionalizados e oficiais, embora possam colocar ênfase discursiva em um ou outro tipo de discriminação, sempre 77

tendem a se sustentar mutuamente, uma vez que “no son más que aspectos de una misma estrutura Ideológica”.(ZAFFARONI, 2009, p. 322). O ápice de toda esta “escoria ideológica” Zaffaroni (2009, p. 322) embora não tenha sido nem o único nem o primeiro foi o nazismo, que nada mais fez do que repetir pretensas teorias científicas prévias, como por exemplo, a antropologia que legitimou o neocolonialismo do século XIX, e a sociologia legitimante da ordem dentro das metrópoles deste período, todas claramente racistas e discriminatórias com relação à mulher e quanto a manifestações

diversas

de

gênero,

idealizantes

de

um

poder

viril

potencializado como resultado da luta seletiva. Do que se pode afirmar, novamente com o professor argentino, que não houve racista que não tenha defendido a necessidade de manter a mulher em uma posição de subordinação ao controle paternalista e patriarcal, assim como não deixaram de existir aqueles que idealizaram a perfeição física e a virilidade (MOSSE, 1997). E a que se deve a tão duradoura e inabalável manutenção desta unidade ideológica que hierarquiza diferenças biológicas entre os seres humanos nas mais diferentes formas de discriminações? Ao fato de cumprirem uma mesma função de poder, pode-se responder a partir do biopoder Foucaultiano, e da vontade de poder apontada por Nietzche. E é justamente este poder, segundo Zaffaroni (2009), manifesto através das discriminações biológicas que se sacraliza com o surgimento do poder punitivo, ou seja, da violência autorizada e legitimada pela própria hierarquização patriarcal, senhorial e corporativa da sociedade. No mesmo sentido reflete Hannah Arendt (2001). Para a filósofa, embora distintos, poder e violência, estão diretamente relacionados e a chave para a compreensão da violência é a forma como se concebe o poder, uma vez que aquela surge como recurso ou alternativa para manutenção deste, tendo sua utilização legitimada socialmente no que se denominou de exercício do poder punitivo. Conforme Zaffaroni (2009, p. 323) “Cambia la piel en su avance, pero el poder es el mismo y mantiene su sustancia desde hace, por lo menos, ochocientos años”, utilizando-se da violência autorizada como controle punitivo para sua manutenção. 78

Este poder hierarquizado, segundo Zaffaroni (2009), está assentado em três vigas mestras: o poder do pater familiae, ou seja, a subordinação da metade inferiorizada da humanidade e o controle da transmissão cultural (controle repressivo/punitivo da mulher); o poder punitivo, ou seja, o uso legítimo

da

violência

no

disciplinamento

dos

inferiores

(controle

punitivo/repressivo dos perigos reivindicatórios); e o poder do saber do dominus, ou a ciência deste senhor, que ao longo de tempo, foi acumulando capacidade instrumental de domínio (controle dos discursos). Estas três vigas nascem com o próprio poder e se cruzam e entrecruzam em sua construção. Sua presença na historia é antiga, mas sua forma atual, enquanto poder verticalizante de uma sociedade hierarquizada surge nos séculos XII e XIII na Europa, juntamente com o nascimento do poder punitivo. Este, ao contrário do que se posa afirmar, segundo Zaffaroni, nem sempre existiu, tendo aparecido e logo desaparecido em diferentes momentos históricos, de modo que a humanidade caminhou sobre o planeta durante milhões de anos sem conhecer a necessidade de punição, como temos hoje3. Tudo mudou quando os senhores passaram a confiscar o lugar das vítimas. Os chefes dos clãs deixaram de buscar a reparação e os juízes deixaram sua função de árbitros porque uma das partes foi substituída pelo senhor, enquanto poder político, que passou a selecionar os conflitos, afastou as vítimas e afirmou: “la víctima soy yo”. (ZAFFARONI, 2009, p. 324). Deste modo, o poder político passou a ser também o poder punitivo, a decidir os conflitos, e mais ainda, o que deveria ser considerado como conflito, fazendo desaparecer a vítima do cenário penal. Certamente, na atualidade, há tentativas de reparar esta situação, mas não são mais que paliativos que de modo algum restituirão o direito confiscado. O dia em que De acordo com o autor (2009, p. 324) “Hasta los siglos XII y XIII europeos no había poder punitivo en la forma en que hoy lo conocemos. Por ejemplo, cuando un germano lesionaba a otro, el agresor se recluía en el templo (asilo eclesiástico) para evitar la venganza, y allí permanecía mientras los jefes de sus respectivos clanes arreglaban la reparación (Vergeltung) que el clan dellesionante debía al clan del lesionado, bajo amenaza de que, de no resolverse, se declararían la guerra. Otro de los métodos de resolución del conflicto era dirimir la cuestión por un juicio que se decidía con la intervención de Dios en persona, es decir, con pruebas: las pruebas de Dios u ordalías. El juez en realidad era una suerte de juez deportivo, que sólo cuidaba la transparencia e igualdad para permitir que Dios expresara la verdad. La más común de las ordalías era la contienda o lucha, el duelo entre las partes o sus representantes: el vencedor era poseedor de la verdade”. 3

79

o poder punitivo seriamente restituir o direito da vítima, passará a ser outro o modelo de resolução de conflitos. Deixará de ser o poder punitivo, porque perderá seu caráter estrutural, de manutenção do poder, e poderá se abrir a outras práticas, como aquelas restaurativas, que levam em consideração todas as vidas humanas envoltas ao conflito. A partir desta usurpação da posição de vítima, segundo Zaffaroni (2009), o processo penal deixou de ser um procedimento para resolver um conflito entre as partes, e se converteu em um ato de poder de um senhor soberano, e o poder é seu único objetivo; o juiz penal deixou de ser um árbitro que garantia a objetividade e o equilíbrio entre as partes e passou a ser um funcionário que decide conforme o interesse de seu senhor (Deus), ou o juízo do certo e do justo passou a estar sempre do lado do poder, do dominus, representado pelo juiz, e esta certeza fez com que o método de estabelecimento da verdade dos fatos passasse a ser o interrogatório: uma verdade proporcionada pelo acusado respondendo o interrogatório (a inquisição, ou inquisitio) do juiz. Se aquele se recusava a confessar, era torturado até falar (aquilo que o dominus queria ouvir). Quando passou a ser esta a forma de se alcançar a verdade no processo penal, o saber passou a se constituir mediante o interrogatório das coisas e dos entes, que poderia chegar, conforme Foucault (1980) à tortura, à violência, e até ao experimento4. Como saber é poder, nos ensina o filósofo, este se acumula questionando os entes segundo o poder que se objetiva exercer sobre eles. O sujeito do conhecimento, que tem Deus a seu lado, se coloca na posição de inquisidor, em um plano superior ao objeto, como “un enviado de Dios para saber, es el dominus que pregunta para poder”. (ZAFFARONI, 2009, p. 325). Quando o objeto é outro ser humano, o saber senhorial estabelece uma hierarquia: o ser humano-objeto será sempre um ser inferior ao ser humano-sujeito. Não há nenhum diálogo, de modo que a discriminação hierarquizante entre os seres humanos torna-se sempre um pressuposto e uma consequência necessária desta forma de saber do

4Da

abertura de cadáveres e sua vivissecção, passando pelos médicos nazistas e a exposição de milhares de pessoas a radiação, conforme aponta o autor em El saber y las formas jurídicas, 1980.

80

dominus. A primeira tarefa em que se uniram poder punitivo e saber inquisitorial foi no fortalecimento da estrutura patriarcal e a consequente subordinação

da

mulher,

como

capítulo

indispensável

de

seu

disciplinamento social. Uniram-se na construção de um sistema simbólico de poder, que transformou a diferença de gênero na origem mais antiga, universal e poderosa de muitas das conceituações moralmente valoradas de tudo o que nos rodeia, conforme Harding (1996). Assim, produziram e reproduziram estereótipos de gênero (SCOTT, 1990), contribuindo para a construção e manutenção da opressão das mulheres e das mais diversas formas

de

discriminações

baseadas

em

diferenças

biológicas

(e

posteriormente morais) da sociedade. Nesse intento, era indispensável disciplinar a sociedade, eliminando da cultura os elementos pagãos, anárquicos ou disfuncionais, enquadrá-los na hierarquia e na disciplina da sexualidade, especialmente as mulheres e todas as formas diversas de sua manifestação. Tratava-se de uma tarefa inteiramente vinculada ao poder, que se confundiu, segundo Zaffaroni, com o processo de cristianização da sociedade no exercício de um poder disciplinante,

em

uma

Europa

em

que

apenas

as

elites

estavam

disciplinadas e ao qual o discurso teocrático serviu adequadamente como modalidade comunicativa. A inquisição foi a manifestação mais orgânica deste poder punitivo nascente e seu exercício disciplinante foi de uma crueldade inenarrável. Sua experiência consta em uma obra que, pela primeira vez expôs de forma integrada e orgânica um discurso sofisticado de criminologia, direito penal, direito processual penal e criminalística: o manual da Inquisição, publicado em 1484 com o título Malleus Maleficarum (Martelo das feiticeiras)5. Este é, segundo Zaffaroni, certamente o livro fundacional da moderna ciência penal e criminal. Na obra, podem-se identificar algumas das notas estruturais mais importantes do poder punitivo: a existência de um mal cósmico que ameaça

5

O martelo das feiticeiras Malleus Maleficarum (Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1991).

81

destruir a humanidade, frente ao qual não se deve titubear nem prescindir de qualquer meio; os piores inimigos são os que duvidam da existência deste mal, porque duvidam da legitimidade do poder punitivo; o mal não obedece causas mecânicas nem físicas, mas à vontade humana o que legitima o castigo; a vontade humana se inclina ao mal nas pessoas que são biologicamente inferiores, mais frágeis, como as mulheres6; a propensão ao mal existe como pré disposição; quem exerce o poder punitivo é imune ao mal; a confissão torna o acusado culpável, a não confissão significa mentira, estimulada pela força da sua própria maldade; e por fim, os signos do mal são incalculáveis, porque o mal se manifesta de incontáveis maneiras, impossíveis de serem catalogadas e previstas. Há assim uma articulação perfeita entre as três vigas do poder. O poder patriarcal controla mais da metade da população: tem o direito de punir mulheres, crianças e idosos, na gênese da violência (socialmente autorizada) de gênero; o poder punitivo se ocupa de controlar os homens jovens e adultos, ou seja, controla os controladores, e o saber instrumental é poder a serviço do domínio dos controladores e dos controladores dos controladores, em uma articulação básica que se mantem a despeito das lutas de classes e corporações, da automização das elites, do colonialismo, neocolonialismo, descolonialismo, hegemonia étnica e cultural. Em todas elas, permanece o mesmo esquema básico que exclui do poder e marginaliza socialmente

dissidentes,

minorias

étnicas,

sexuais,

pessoas

com

deficiências, doentes, psiquiatrizados, obesos, migrantes, e claro, mulheres, dentre outros. 3. PODER PATRIARCAL E A SOCIEDADE BRASILEIRA: discussões acerca do feminicídio Não há duvida de que o poder punitivo é uma das vigas mestras da hierarquização

verticalizante

que

alimenta

todas

as

formas

de

As inferioridades biológicas eleitas irão se alterando conforme os séculos e, em alguns casos, a ideologia punitiva se separará destas, ao menos aparentemente, para construir inferioridades morais. 6

82

discriminações e violações da dignidade humana. E esta discriminação e submissão das mulheres ao patriarcado são tão imprescindíveis como o próprio poder punitivo, constituindo uma relação de dependência mútua. O poder punitivo assegura o patriarcado, vigiando os controladores para que não deixem de exercer seu domínio7, de tal modo que, segundo Zaffaroni, se este rol fosse desfeito, a própria cadeia hierárquica cairia, porque as mulheres romperiam o processo de transmissão cultural que legitima o poder punitivo e o saber dominante. Por isso, ambos foram se aperfeiçoando ao longo dos séculos, e atualmente se encontram diante de uma situação paradoxal. É possível a utilização do poder punitivo como forma de combate ao patriarcado, mediante a penalização repressivo punitiva como combate à violência de gênero, especialmente em sua forma mais nua e cruel, o feminicídio? Esta dúvida tem gerado uma série de discussões, que colocam frente a frente defensores da criminologia crítica, como o próprio Raúl Zaffaroni, que tem servido de base às reflexões deste artigo, e feministas que buscam uma alternativa de enfrentamento à violência de gênero e à morte de mulheres exclusivamente por serem mulheres. Modernamente, violência contra a mulher ou violência de gênero é tida como toda ação violenta produzida em contextos e espaços relacionais e, portanto, interpessoais, em cenários societários e históricos não uniformes, e que incidem sobre a mulher, ou polo feminizado de uma relação, física, sexual, psicológica, patrimonial ou moralmente, tanto no âmbito privadofamiliar como nos espaços de trabalho e públicos (BANDEIRA, 2014). Esta violência “se origina no modo como se armam as relações entre homens e mulheres no âmbito doméstico e familiar” (HEILBORN & SORJ, 1999, p. 213), e nada mais é do que o modo como são estabelecidas as relações de Segundo Zaffaroni (2009, p. 329), “Si alguien duda de la eficacia de este poder, basta para demostrarlo la circunstancia de que, después del Malleus, los sucesivos discursos criminológicos casi no volvieron a mencionar a las mujeres hasta hace poco menos de veinticinco años, salvo referencias tangenciales y esporádicas. La criminologia de los últimos cinco siglos sólo se ocupa de los varones, lo que es altamente significativo teniendo en cuenta que los discursos no sólo expresan lo que dicen sino también lo que ocultan y que los operadores del saber no sólo se manifiestan en lo que ven sino también en lo que dejan de ver”. 7

83

submissão e de poder entre homens e mulheres na esfera privada, segundo a ótica da dominação masculina e do patriarcado. Neste sentido, representa a privatização do uso do poder punitivo. Este, frente às mulheres, é exercido pelo poder patriarcal, mediante uma sorte de violência aprendida no decorrer dos processos primários de socialização e deslocada para a esfera da sociedade em momentos secundários na sociabilidade da vida adulta. Não é, portanto, uma patologia ou desvio individual, mas sim uma permissão social, concedida e acordada com os homens na sociedade, cujas próprias instituições da sociedade, mediante um maior ou menor grau do que Portella (2005) identifica como permissividade ou licença social para a sua efetivação. Sua existência revela o controle social sobre os corpos, sexualidade e mentes femininas, exercido mediante o uso do poder punitivo autorizado pelo poder patriarcal. Neste ponto, cabe destacar que teorizar e pensar a violência de gênero a partir dos pressupostos aqui assumidos é uma possibilidade recente na história humana, visto que a construção do saber sempre foi controlada e constituiu uma das vigas dos processos de dominação e discriminação. Sua efetivação só foi possível a partir de um longo processo evolutivo de lutas antidiscriminatórias construído, principalmente, ao longo do século passado, em muito devido ao avanço da luta feminista. As lutas antidiscriminatórias têm, no feminismo, o seu principal e mais promissor representante, afinal, o discurso feminista é, segundo Zaffaroni (2009, p. 329), não apenas mais um discurso antidiscriminatório, mas “el discurso antidiscriminatorio por excelência”. Embora se possa considerar com Bobbio (1998), que todo pensamento progressista por excelência se empenha na luta contra a discriminação, neste campo, a esperança representada pelo feminismo8 não pode ser igualada a nenhum dos outros discursos dos discriminados. Afinal, segundo o argentino, nenhuma das outras minorias, embora Autores importantes do século XX, como Norberto Bobbio, no livro a Era dos Direitos; Fritjof Kapra, no seu Ponto de Mutação, e Manuel Castells, em seu estudo sobre a Sociedade em Redes, apontaram este como o século das mulheres, sustentando terem elas produzido uma das revoluções culturais mais importantes do período a partir da luta pela constituição de sua cidadania, identidade e existência. 8

84

numerosas, abarca metade da humanidade; muitos grupos discriminados perdem identidade ao se renovarem permanentemente (como as crianças, que se tornam adultos, e os idosos, que morrem); o discurso feminista é o mais suscetível de penetrar em todas as agencias, classes, corporações e instituições, não havendo, portanto, locus de poder social que não possa ser alcançado pelas mulheres, e, ao mesmo tempo, constituir-se em um discurso capaz de complementar-se e compatibilizar-se com todos os outros discursos de luta antidiscriminatória. Essa caminhada vitoriosa da luta feminista antidiscriminatória tem se consolidado em marcos legais, principalmente, no âmbito internacional a partir

da

Declaração

Universal

dos

Direitos

Humanos

em

1948.

Posteriormente, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (ONU) em 1979, ratificada pelo Brasil em 1984, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) em 1994 fortaleceram as ações, levando os Estados Partes, a se comprometerem com a implementação de uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, possibilitando avanço na construção da igualdade de gênero. A Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil em 1994, considera violência contra a mulher “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”, independente da origem do agressor (família, comunidade ou o próprio Estado), cabendo ao Estado intervir tanto no âmbito público quanto privado. De acordo com a Convenção, os Estados Partes devem “incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher”. As respostas apresentadas pelo Estado brasileiro, a partir deste processo, tem se concentrado na esfera repressivo punitiva, e mais recentemente, ainda que de modo incipiente, na criação de uma rede de

85

atendimento às vítimas. Esta cronologia9 judicializante passa inicialmente pela criação das Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres (Deam´s) em 1985, ganha um novo impulso a partir da Lei 9.099/95, que dispôs sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Jecrim´s), cuja responsabilidade passou a ser julgar crimes de “menor potencial ofensivo” dentre os quais estava a violência contra a mulher e se consolida definitivamente através da Lei Maria da Penha10 (Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006). Após a aprovação da Lei Maria da Penha, pesquisas11, passaram a indicar a permanência do fenômeno da violência, quando não sua gradação. Isto fica claro, por exemplo, no estudo Violência contra a mulher: Feminicídios no Brasil, produzido pelo IPEA12 em 2014, segundo o qual, no Brasil, no período de 2001 a 2011 ocorreram mais de 50 mil feminicídios, o que equivale em média, a 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, ou uma a cada hora e meia, aproximadamente. De acordo com a mesma pesquisa, constatou-se que não houve redução nas taxas de mortalidade de mulheres, comparando com o período anterior (2001-2006) e posterior (2007-2011) da Lei, sendo que a taxa de mortalidade para cada 100 mil mulheres, no primeiro período foi de 5,28 e no segundo período de 5,22, ou seja, com um pequeno decréscimo. Diante do cenário de falta de eficiência da legislação em vigor, e continuação da incidência do problema, a medida adotada mais uma vez foi repressivo punitiva, a partir da entrada em vigor da lei 13.104/2015, que alterou o código penal, criando uma nova modalidade de homicídio Este breve esboço do avanço das políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero não tem a pretensão de esgotar o debate sobre o tema, nem ignora as demais políticas implementadas neste sentido. Tem apenas o condão de demonstrar a preponderância da tônica repressivo-punitiva como principal resposta do Estado, e principalmente do direito diante do problema. 10 Alcunhada por Maria da Penha, em homenagem à luta da biofarmacêutica cearense que sofreu duas tentativas de homicídio pelo marido e tornou-se paraplégica, sendo seu agressor condenado após decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A lei, portanto, resultou de uma punição internacional dirigida ao Brasil, e de longo processo de mobilização. 11 Vide uma compilação de dados de diversas pesquisas sobre violência de gênero no Brasil, realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, disponível em: http://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/dados-e-pesquisas-violencia/dados-e-fatossobre-violencia-contra-as-mulheres/. Acesso em 27/05/2015 12http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_lei lagarcia.pdf.2014. Acesso em 27/05/2015. 9

86

qualificado, o feminicídio, tido como aquele crime praticado contra a mulher por razões da condição de sexo13 feminino. Esta lei modificou o art. 121 do Código Penal, incluindo no rol dos crimes de homicídio qualificado o Feminicídio, sendo aquele praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, que envolver: I – violência doméstica ou familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Possibilitou o aumento de pena, de um terço até a metade se o crime for praticado: I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.” E por fim, alterou a Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, incluindo o feminicídio no rol dos crimes hediondos. A partir da edição da Lei, tem se intensificado uma série de debates acerca dos rumos que o enfrentamento à violência de gênero tem tomado no Brasil. Este debate parte, inicialmente, do reconhecimento deste fenômeno como um problema social grave e letal, dirigido especialmente às mulheres. Tal apreensão é fundamental e deve ser anterior ao debate sobre a necessidade de criar mais uma lei penal, ou de alterar o código. Sem que isto esteja em questão, enquanto o fenômeno for tratado como um problema menor ou desenraizado dos elementos estruturantes que o constituem, o debate será vazio e desqualificado em sua potência de denúncia e enfrentamento antidiscriminatório (GOMES, 2015). Neste sentido, o debate acerca do tema adquire uma urgência e um caráter de denúncia em prol da luta antidiscriminatória cujo valor é fundamental. Reconhecer sua existência, identificar o fenômeno e apropriar-se do vocábulo “feminicídio” implica em apreender um conjunto de concepções teórico-políticas, que localizam a violência de gênero, suas características e seu contexto de produção. Esta “visibilização” esperada não se constitui apenas em trazer à mostra o que estava oculto (porque muitas vezes não está), senão de politizar algo que foi naturalizado, algo que não foi observado

Merece destaque o fato de o texto original do projeto de Lei conter a expressão gênero feminino. Durante a votação na Câmara dos Deputados, a palavra gênero foi substituída por sexo, a pedido da “bancada evangélica”. 13

87

e reconhecido em seu contexto de produção, qual seja patriarcal e necropolítico (MARTÍNEZ, 2010). Feminicídio tem, portanto, “força históricopolítica, força de denúncia, de análise e insurreição” (MARTÍNEZ, 2010, p.106), desmascarando o “patriarcado como uma instituição que se sustenta no controle do corpo e da capacidade punitiva sobre as mulheres, e mostrar a dimensão política de todos os assassinatos que resultam deste controle e capacidade punitiva, sem exceção” (SEGATO, 2008, p.37). Estabelecido o ponto inicial quanto a sua relevância, a questão que se coloca é, qual a melhor resposta a ser construída para o seu enfrentamento? A resposta a esse questionamento tem provocado um longo debate, tenso e paradoxal entre as demandas dos movimentos de mulheres e feministas, algumas chamadas por Larrauri (2007) de “feminismo punitivo” e a criminologia crítica. Apesar de ambos estarem comprometidos com a luta antidiscriminatória, com a transformação da realidade e com projetos societários alternativos, tem sido difícil encontrar consenso. Do ponto de vista deste artigo, tem-se que a resposta punitiva não é de forma alguma o modo mais adequado de constituir o processo de luta antidiscriminatória representado pelo feminismo. É importante reafirmar, que a judicialização do feminicídio é apenas uma de suas perspectivas de compreensão e que é totalmente possível estudar e denunciar o fenômeno demandando

aos

Estados

respostas

adequadas,

contudo

não

necessariamente penais ou punitivas. Neste mesmo sentido, o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM, 2011), em debate sobre a judicialização do feminicídio nos países latinos elencou cinco argumentos contrários à esta dinâmica de “ingresso” no sistema de justiça penal de cada país: 1) É preciso manter o princípio do direito penal mínimo; 2) O feminicídio já está contemplado no homicídio qualificado; 3) Os problemas de técnica legislativa podem tornar inconstitucional a nova lei; 4) Não há redução nas taxas do fenômeno, tampouco se resolve o problema da impunidade com a criação de um tipo penal, ou com o aumento de penas; 5) O sistema penal não pode ser demandado por um sentido simbólico e sim, por sua eficácia (que se reconhece que ele não tem). 88

A menção ao “direito penal mínimo” faz referência ao deslocamento da análise da compreensão da criminalidade, tomando o crime em seu contexto ontológico de constituição, que superou as leituras tradicionais e ampliou a apreensão da realidade, analisando o que constitui a noção de desvio e as condições estruturais que estão na gênese deste fenômeno, sobretudo, ao afirmar, como o faz Baratta (2002), que a noção de crime é historicamente construída, não existindo em si na realidade. Afinal, segundo o autor, crime e violência são fenômenos diferentes e, portanto, ao pretender que determinada violência seja reconhecida socialmente como um crime, faz-se necessário demandar um tratamento penal enfrentando todos os problemas estruturais do sistema de justiça criminal – essencialmente hierarquizado, seletivo, conservador e reprodutor de desigualdades. Nos marcos do direito penal mínimo, deve-se criticar a opção da luta feminista pela resposta penal à violência de gênero. Ao depositarem sua expectativas de luta no “poder punitivo” as mulheres convocam “o mesmo veneno que as submete(ia), mutila(va) e mata(va)”. (BATISTA, 2008, p.14). Recorrendo e reafirmando o “mito da tutela penal”, uma exata manifestação da cultura que se pretende combater (AZEVEDO, 2008, p.133). Além disso, este é um mecanismo totalmente ineficaz, como a própria realidade brasileira tem demonstrado, sendo consenso que uma lei penal não é a via adequada de abordagem de nenhum delito, só sendo utilizada em caso de gravidade (Toledo, 2009a), entretanto, isso não a torna passível de garantir a prevenção do fenômeno ou a punição dos casos (CLADEM, 2011). De acordo com Carmen Antony “como criminólogas, sabemos que o direito penal não previne nenhum tipo de condutas ilícitas” (apud CLADEM, 2011, p.11). Logo, “por que colocará o feminismo tantas energias em algo que não vai gerar nenhuma mudança, nem vai prevenir as matanças e mortes de mulheres?” (Celina Berterame apud CLADEM, 2011, p.214). A resposta, passa pela compreensão de que esta é exatamente a armadilha proposta pelo poder a fim de neutralizar a força antidiscriminatória do discurso feminista, e reduzir sua expressividade e capacidade de transformação estrutural da sociedade. 89

4.MANUTENÇÃO E FORTALECIMENTO DO PODER PUNITIVO: a grande armadilha dos discursos antidiscriminatórios Embora não reste dúvida de que o discurso feminista em algum momento cumprirá esta função revolucionária, não será em curto prazo, porque submetido aos mesmos riscos retardatários e neutralizantes com que o poder contém o avanço de tudo que lhe ameaça. Estes riscos se materializam, principalmente, através do fomento à tendência espontânea de fragmentação dos discursos antidiscriminatórios, que leva cada pessoa a desenvolver uma sensibilidade particular a alguma delas, e a defender sua prioridade e propriedade da própria dor: “mi desgracia es mía, no quiero perderla en un mar de desgracias, por respetable que sean el dolor y la desgracia ajenos”.(ZAFFARONI, 2009, p. 330). Esta cosmovisões

fragmentação

leva

unidimensionais,

a

uma

contraditória

cosmovisões

diversidade

parcializadas.

Cada

de

grupo

discriminado encara sua luta a partir de sua posição, fragmentando assim a luta a partir de sua visão particular (e parcial) do mundo. Ao fragmentar a luta, produzem contradições que impedem uma coalisão, fazendo-os esquecer que a sociedade hierarquizada não é apenas machista, não é apenas racista, não é apenas xenófoba, não é apenas homofóbica, etc., mas sim, é tudo isso junto. Com relação ao discurso feminista e o discurso do poder punitivo, embora com algumas peculiaridades, é inegável que as armadilhas neutralizantes e retardatárias não são diversas das que se colocam diante de todos os outros discursos discriminatórios. Inicialmente críticos severos ao discurso legitimante do poder punitivo, logo passam a reivindicar seu uso pleno para a resolução de seu problema particular. E o poder punitivo sempre opera seletivamente: se divide conforme a vulnerabilidade, que responde a estereótipos, construídos em relação com imagens negativas, carregadas de todos os tipos de preconceitos que contribuem para sustentar culturalmente as próprias discriminações. Transitoriamente, Zaffaroni (2009, p. 332) afirma que “la selección criminalizante es el producto último de todas las discriminaciones”. A ela obedecem as características comuns dos 90

prisioneiros, que podem ser classificadas segundo os preconceitos que determinaram sua seleção. Neste sentido, a obra de Cesare Lombroso, que descreve o que viu nas prisões e manicômios de sua época é, definitivamente, a melhor descrição feita das discriminações traduzidas em estereótipos criminais seletivos. Ninguém com as características descritas por ele poderia sair imune ao poder punitivo de sua época. O que falha radicalmente em Lombroso, segundo Zaffaroni (2009), são suas explicações, uma vez que confundiu as causas da criminalização com as do delito. Com relação à mulher, por exemplo, certamente as poucas presas que havia naquele momento tinham características virilizadas, mas não que as mulheres delinquentes fossem anormais: de sua observação, o que se deduz é apenas que o poder punitivo selecionava mulheres conforme o estereótipo de mulher viril, que seria um comportamento desviante da fêmea submissa e doméstica. Tampouco era verdade que a prostituição fora um delito, na realidade, era o encarceramento usado como forma de manter a mulher subordinada, escravizada, mercadoria de um homem que a possui (ZAFFARONI, 2009). Essa controladora

situação do

de

poder

servidão punitivo

torna sobre

desnecessária ela,

a

constituindo

intervenção a

máxima

manifestação do patriarcado ao qual o sistema penal delega o esforço de seu controle. O resultado é a primeira grande privatização do poder punitivo, anterior em muitos séculos às iniciativas recentes de privatização da segurança: o controle da mulher e o exercício do poder punitivo sobre elas, entregues aos homens, seus controladores. O poder punitivo do dominus, precisava apenas controlar os controladores. A partir da fragmentação dos discursos antidiscriminatórios, o que se verifica é que cada um critica desde sua particular discriminação a seletividade do poder punitivo, o que em princípio é correto e seria positivo, desde que não viesse acompanhado da “la pretensión de que el propio poder punitivo se ponga al servicio del discurso antidiscriminante” (ZAFFARONI, 2009, p. 333).Esta pretensão é insólita, sendo inconcebível que o poder hierarquizante da sociedade, o instrumento mais violento de discriminação, 91

a ferramenta que sustenta todas as discriminações possa ser convertida em um instrumento de luta contra a discriminação. Um poder que, por sua estrutura é exercido de forma seletiva e discriminante, de nenhum modo poderia ser exercido com intuito antidiscriminatório. Embora existam teorias que postulem esta transformação como o direito penal mínimo, ou as teorias garantistas, não há dúvidas de que são propostas que requerem uma mudança muito profunda na sociedade, principalmente uma sociedade como a brasileira, e que de modo algum podem ser tidas como um mero retoque na lei penal. Apenas, neste marco, segundo o professor Zaffaroni (2009) poderia ser pensado um poder punitivo que estivesse do lado do mais fraco, embora nada na história indique esta perspectiva de mudança, quando, ao contrário, toda a experiência tem mostrado que invariavelmente, o poder punitivo sempre esteve ao lado do mais forte. A partir disso, o resultado da pretensão de que o poder punitivo, sem maiores mudanças sociais e, apenas em virtude de algumas legislações pontuais, se converta em um aliado da luta antidiscriminatória, é que o poder punitivo passa a receber uma critica meramente pontual, que não o atinge de forma mais grave e, ao mesmo tempo, se beneficia com uma formidável legitimação tida como resultado da soma das reafirmações de sua utilidade, produzidas pela soma de todos os setores discriminados. O poder punitivo acaba tirando proveito de todo o progresso antidiscriminatório na medida em que este reclama soluções, e reafirma que a ineficácia das respostas antidiscriminatórias provém de garantias e limites impostos pela legalidade constitucional e internacional, ou seja, as lutas antidiscriminatórias não são eficientes por causa dos limites do poder e da força punitiva. “El máximo grado de burla se alcanza cuando el instrumento discriminante argumenta que su incapacidade antidiscriminatoria proviene de que no es suficientemente flerte” (ZAFFARONI, 2009, p. 334),levando as principais vítimas a lutarem pelo fortalecimento do poder que as discrimina. Poder punitivo descontrolado e ilimitado é sinônimo de Estado de polícia, e Estado de polícia é aquele que reprime com maior violência qualquer reivindicação antidiscriminatória. 92

No caso do feminismo o poder punitivo, depois de sua originária e brutal intervenção direta posta em prática na Inquisição, delegou a subalternização da mulher ao controle patriarcal, que o opera por meio da violência (socialmente autorizada) de gênero. Não necessita, portanto, criminalizar diretamente as mulheres, mas servir de base à sociedade hierarquizada e patriarcal para que esta se encarregue de punir os comportamentos de gênero desviantes. Exerce, assim, um controle indireto, que lhe permite figurar como totalmente alheio à inferiorização feminina. No entanto, é o mesmo poder que permitiu a violência de gênero, como forma de controle/repressão do corpo e da alma feminina. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Portanto, pode-se concluir que qualquer luta pela libertação da opressão e discriminação a que as mulheres estão submetidas, em nossa sociedade, deve exercer um combate aos três pilares que sustentam a hierarquização da sociedade a partir de diferenças biológicas: patriarcado, poder punitivo e saber dominante. Afinal, a violência de gênero é uma das expressões socialmente legitimadas do exercício do controle punitivo empreendido por aquele poder, a fim de manter sua hegemonia. Uma tentativa de libertação que reforce qualquer um destes elementos, embora possa parecer inicialmente favorável ou eficaz, apenas irá reforçar o poder de dominação, ao qual a mulher e todos os grupos discriminados estiveram submetidos ao longo da historia humana. Configura-se assim uma grande armadilha na qual as feministas não podem se deixar envolver na luta e no combate à violência de gênero e ao feminicídio, qual seja, reforçar o poder punitivo e ajudar a desconstruir os limites e garantias constitucionais a ele impostos. Esta armadilha tem o grande objetivo de neutralizar o caráter profundamente transformador do feminismo e das lutas antidiscriminatórias, uma vez que não sua edição não tem maior eficácia na diminuição das mortes de mulheres. Ao buscar combater a discriminação e a violência utilizando uma de suas vigas de sustentação

(poder

punitivo),

o

discurso

feminista,

discurso 93

antidiscriminatório por excelência, corre o risco, de ver-se envolvido em um contato não suficientemente sagaz ou hábil com o discurso legitimante do poder punitivo, e acabar assim, sucumbindo aquele. REFERÊNCIAS ARENDT, H. Poder e violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Sistema penal e violência de gênero: análise sociojurídica da lei 11.340/06. In: “Revista Sociedade e Estado”. Vol.23, nº1, p. 113-135, jan-abril, 2008. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3ed. Coleção Pensamento Criminológico. Instituto Carioca de Criminologia. Editora Revan: Rio de Janeiro, 2002. BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. Revista Sociedade e Estado, vol. 29, núm. 2, maio-agosto, 2014, pp. 449-469 Universidade de Brasília: Brasília. BATISTA, Nilo. Só Carolina não viu – violência doméstica e políticas criminais no Brasil. In: Jornal do Conselho Regional de Psicologia, ano 5, Rio de Janeiro, p. 12. 01 de março, 2008. BOBBIO, Norberto. Derecha e izquierda. Madrid: Taurus, 1998. CLADEM. Contribuciones al debate sobre la tipificación penal del femicidio/feminicidio. Lima, Peru, 2011. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981. FOUCAULT, Michel. El saber y las formas jurídicas.Barcelona, Gedisa, 1980. HARDING, Sandra. Ciencia y feminismo. Madrid: Ediciones Morata, 1996. HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil. In: Miceli, Sergio (Org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Anpocs, 1999. LARRAURI, Elena. Criminología Crítica y Violencia de Género. Editorial Trotta: Madrid, 2007. MARTÍNEZ, Ana María de la Escalera (2010). Feminicidio: Actas de denuncia y controversia. PUEG/UNAM: México, 2010. MOSSE, George. L’immagine dell’uomo. Lo stereotipo maschile nell’epoca 94

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95

A MAXIMIZAÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO A PARTIR DO ATUAL CONTROLE SOCIAL E A JUSTIÇA RESTAURATIVA E TERAPÊUTICA COMO MÉTODOS ALTERNATIVOS A JUSTIÇA RETRIBUTIVA NO BRASIL Alexandre Marques Silveira1 Felipe da Veiga Dias2 1. INTRODUÇÃO Com atual quadro de maximização da intervenção penal e banalização do poder punitivo no Brasil, é conveniente repensar sobre os objetivos dos institutos jurídicos no país. O Brasil passa por um momento de grande exteriorização de criminalidades, desigualdades, transgressões e métodos que já são antiquados para as demandas do atual modelo social. O atual sistema punitivo tem se tornado apenas uma máquina de privações, perdendo seus demais propósitos, reforçando a segregação, não evitando a reincidência, não alcançando maior efetividade no combate da criminalidade. O presente controle social tem se resumido apenas em exercer a jurisdição de uma forma seletiva e repressiva, levando em consideração apenas as influências e opiniões de um controle social informal e suas instituições que apelam por um sistema retributivo vingativo. Dessa forma, tem-se como decorrência o aumento da criminalidade a propagação de pânico moral e a sensação de insegurança, pois se esta retribuindo violência com mais violência, deixando de primar pela redução dos danos sociais. Nesse sentido, encontra-se em um contexto em que se torna pertinente um novo modelo de justiça criminal no Brasil, juntamente com exercício da pensamento crítico (abraçando as contribuições da criminologia neste mesmo sentido), para que se possa analisar as complexidades específicas de cada caso. Graduado em Direito pela Faculdade Metodista de Santa Maria (FAMES). Pós-graduando em Direito Penal – Complexo Educacional Damásio de Jesus. Integrante da Cátedra de Direitos Humanos (FAMES). [email protected]. 2 Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com período de Doutorado Sanduíche na Universidad de Sevilla (Espanha). Professor da Faculdade Metodista de Santa Maria (FAMES). Coordenador da Cátedra de Direitos Humanos (FAMES). [email protected]. 1

96

Portanto, o presente trabalho tem como objetivo analisar as condições do atual sistema punitivo brasileiro bem como elucidar a possibilidade de implementação e ampliação do exercido dos métodos da justiça restaurativa em todo ordenamento jurídico brasileiro. Deste modo, o estudo almeja demonstrar a viabilidade de uma nova forma de solução de conflitos decorrentes de delitos, bem como busca uma maneira mais humana e efetiva ao combate das desigualdades sociais. Para isto, o método de abordagem que servirá de referência para análise das ideias, informações e resultados desta pesquisa é o método dedutivo que parte de observações gerais para chegar a um objetivo de pesquisa específico. Quanto ao método de procedimento este será o monográfico, de modo que serão usados vários doutrinadores para que haja embasamento para o tema defendido no trabalho, ofertando a análise de um elemento pontual. Sendoque a técnica de pesquisa consistirá na investigação de documentação indireta através de pesquisa bibliográfica com exame de fontes normativas, doutrinárias e pesquisas empíricas de maneira a examinar as informações já demonstradas em outros documentos e aprofundar a referida discussão. 2.CONTROLE SOCIAL E A SUA INFLUÊNCIA NO ATUAL SISTEMA PUNITIVO Devido ao processo histórico nacional, no sentido do desenvolvimento jurídico-social,

a

dogmática

jurídico

penal

encontra-se

em

grande

defasagem, visto que a sociedade atual possui novas necessidades econômicas, educacionais e ainda padece de desigualdades sociais, raciais e um meio de controle social com tendência incriminadora de grupos mais vulneráveis(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2010, p. 58). Deste modo, Estado Democrático de Direito passa por uma ampla inversão de garantias fundamentais constitucionais, visto que torna-se evidentemente a diferença entre as normativas positivadas e os objetivos punitivos não declarados. Tal controle social tem como finalidade limitar as condutas dos indivíduos em sociedade; ocorre que este poder limitador e coercitivo 97

estávinculado às classessociais dominantes que possuem grande poder econômico,acesso aos meiostecnológicos da informação, comunicação,as instituições morais e religiosas, uma vez que “as classes mais poderosas utilizam esse mecanismo por meio do direito penal e de todo sistema punitivo, para consolidar um sistema de controle e dominação estrutural” (RUBIO;

FRUTOS,

2013,

p.

98.

Tradução

nossa).

Apresentando

a

combinação entre os mecanismos de controle formal e informal nasociedade contemporânea. Neste sentido, o controle social informal,exerce uma influência negativa sobre o meio dogmático penal e que por consequência atua sobre o sistema punitivo tido como controle social formal, por derivar das normas legais (SHECAIRA, 2004, p. 56). Em outras palavras as instituições religiosas, morais, famílias ou mesmo os meios de comunicação, embora ocupem espaço no controle social informal, acabam atualmente exercendo forte influência na atuação do controle social formal aplicado pelo Estado. Sob essa perspectiva,o delineamento do controle social formal exercido por intermédio do direito penal pode ser definido como: um dos instrumentos do controle social formal por meio do qual o Estado mediante um determinado sistema normativo (leia-se: mediante normas penais), castiga com sanções de particular gravidade (penas ou outras consequências afins) as condutas desviadas (crimes e contravenções) mais nocivas para a convivência, visando a assegurar, dessa maneira, a necessária disciplina social bem como a convivência harmônica dos membros do grupo. Esse controle social é dinâmico porque está vinculado a cada momento cultural da sociedade. Acompanha as alterações sociais (ou, pelo menos, deveria acompanhá-las) (BIANCHINI; MOLINA; GOMES, 2009, p. 24).

Entretanto, o que se presencia no direito penal é um controle social formal influenciável, cheio de rotulações e seletividades, sendo esta seletividade “o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas” (ZAFFARONIet. al., 2003, p. 43). O sistema punitivo por intermédio da atividade legislativa elenca determinadas primária),

condutas

esquecendo-se

rotulando-as de

primar

como

criminosas (criminalização

anteriormente

por

um

estudo

criminológico-social, onde deveria ser realizada uma análise crítica, com 98

ênfase na visão macrocriminológica e na própria política criminal brasileira. Essa ópticadá espaço para apreciação não apenas dos delitos e seus efeitos, mas igualmenteoferta a possibilidade da re-análise na sistemática de punição de determinados interesses sociais (revisão de bens jurídicos). Neste contexto, vale salientar a definição e a importância do estudo da criminologia (MOLINA, 2000, p. 37), a qual deve hodiernamente ocupar um papel diferenciado nas ciências criminais, de maneira a questionar e desconstruir as falácias que sustentam uma aplicação penal desvinculada da realidade ou dos próprios pressupostos constitucionais. Isto posto, deve-se indagar a estrutura do sistema punitivo atual, bem como

o

controle

indivíduos.Uma

social

vez

que

formal os

que

este

vem

PoderesLegislativo

exercendo

sobre

os

eJudiciário

ainda

se

encontram presos a uma ideia de pena retributiva,tendo como seu elemento subjetivo a penacompreendida como vingança. Dessa forma, “a ideia de vingança se pauta pela irracionalidade, o que não deixa de ser, também uma característica humana, eis que é consenso ser o homem usualmente levado ou influenciado pelos seus sentimentos”(JUNQUEIRA; VANZOLINI, 2014, p. 467). Em tal visão da pena alguém deve sofrer para saciar uma necessidade afetiva de vingança. Onde o mais importante é a certeza do sofrimento do que a punição do verdadeiro culpado, não importa quem esta sofrendo desde que alguém sofra.Neste seguimento, a vingança (pena retributiva), traz a ideia de desproporcionalidade, de forma que não leva em consideração os aspectos mais intrínsecos dos casos concretos e a relação ofensor e vítima. Ainda sobre a ideia de vingança Dotti afirma que: (...) é generalizada a opinião de que a pena deita raízes no instinto de conservação individual movimentado pela vingança. Tal conclusão, porém, é contestada diante da afirmação segundo a qual tanto a vingança de sangue como a perda da paz não caracterizavam reações singulares, mas a revolta coletiva (DOTTI, 1998, p. 31).

Desta forma, a pena retributiva acaba apenas punindo a criminalidade (ou ao menos uma parte selecionada da mesma), mas não a evitando, visto que tal pena traz as influências e os vícios dosmecanismos de controle social 99

informal. Ao passo que através do controle social informal que a mídia atualmente exerce “a justiça telemidiatizada é composta de palavras e discursos (moralistas, duros, messiânicos) que a população adora ouvir” (GOMES; ALMEIDA, 2013, p.20.). Portanto, os temas relacionados à criminalidade são vinculados através de um ponto de vista que na maioria das vezes traz como prerrogativa a culpa e a condenação. Assim, tornando pertinente ressaltar, que com a grande exteriorização da ideia de pena retributiva, ouve uma maximização da intervenção penal nos fatos ocorridos em sociedade, já que “a maximização operacional do sistema penal se revela, num primeiro momento, no aumento de edição de normas penais, fato que tem algumas consequências imediatas” (COPETTI, 2000, p. 73). Desta forma, havendo um descumprimento de matéria constitucional em relação aos princípios da insignificância e da intervenção mínimana intervenção/restrição de direitos fundamentais, gerando um abuso nos propósitos iniciais da intervenção penal. No mesmo ensejo, sobre os objetivos da intervenção penal, se apregoa a atuação penal enquanto instrumento final na cadeia jurídica, o que significa dizer que devem ser exauridas as alternativas civis, administrativas ou

quaisquer

outros

meios

disponíveis

ao

Direito,

comoa

“justiça

comunitária, a conciliação judicial e extrajudicial, os juizados especiais, e aJustiça Restaurativa”(SANTOS, 2007. p. 58.), como modelos de inovações institucionais. Isso enaltece o caráter subsidiário do sistema penal na proteção dos bens jurídicos mais relevantes de modo que tal nível de poder não pode ficar a mercê da mera influência midiática ou dos desejos sanguinários de vingança. Nesse

prisma,a

tutela

jurídico-penal

não

se

constituirá

com

legitimidade se não for condizente com direitos e princípios fundamentais constitucionais.Visto que a Constituição Federal tem a função de delinear as bases de intervençãodos ramos do direito, bem como atuar diretamente sobre a liberdade de legislar, aplicando aqueles princípios destinados a fornecer garantias aos cidadãos, aos quais estão vinculados os Poderes estatais(em

especial

na

formatação

das

normas

pelo

Legislativo).

(CANOTILHO, 2002, p. 1151). Assim necessita-se do filtro constitucional, 100

verificando a transgressão de matérias fundamentais existentes no meio jurídico-penal, tais como a maximização da intervenção penal e a ideia de pena retributiva. Ainda neste sentido, a pena retributiva oriunda da atual intervenção penal, impede qualquer forma de diálogo e entendimento, de modo que a visão restaurativa, terapêutica, visa exatamente à abertura de um diálogo e a compreensão (reconhecimento do outro), superando a mera visão punitiva e atualmente vingativa. Ademais, “as modificações introduzidas no sistema penitenciário são insuficientes para atender a sua verdadeira finalidade, qual seja, recuperar os delinquentes” (MUAKAD, 1998, p. 19). Seguindo este raciocínio, nota-se que o atualcontrole social colabora para um retrocesso egocêntrico de um Estado controlador, levando em consideração queexiste a “pretensão e a soberba gerada pela crença romântica de que o Direito Penal pode salvaguardar a humanidade de sua destruição impedem o angustiante e doloroso processo de reconhecimento de limites” (CARVALHO, 2004, p. 207). Uma vez que, se esta tão somente retribuindo violência com mais violência, sem qualquer chance de uma política mediadora, ressocializadorae restaurativa, já que a construção de uma sociedade mais justa e menos conflituosa, jamais se concretizará se forem utilizados os mesmos procedimentos punitivos perversos evingativos, adotados até o presente momento. Nesta conformidade, Andrade dispõe sobre as características e objetivos centrais originários do controle social afirmando que: uma característica do controle social formal é a de querer não apenas a definição do objeto do controle, mas a justificação dos meios empregados para fazê-lo, de modo que suas ações (especialmente as coercitivas) devem receber uma fundamentação racional, e esta constitui o seu marco de legitimação (ANDRADE, 2015, p. 178).

Portanto, seria iminente ressaltar que a atual ideia de sistema punitivo e de pena retributiva, deve ser superada pelas esferas de controle da sociedade (formal e informal), bem como devem ser restabelecidos os parâmetros constitucionais definidos no Estado Democrático de Direito, ou 101

seja, um direito penal contido no uso da violência. Assim como devem ser exploradas as novas perspectivas de solução de conflitos em substituição ao modelo de pena retributiva, com concepções como a da justiça restaurativa, para que haja um bom funcionamento do sistema jurídico, e adequada proteção dos direitos básicos dos seres humanos na esfera penal. 3.A NECESSIDADE DE UMA JUSTIÇA PENAL RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA AO ATUAL SISTEMA PUNITIVO Com a latente falência do modelo punitivo no Brasil e o aumento significativo da violência e criminalidade, urge a inserção de alternativas ao pensamento fantasioso de incremento da máquina penal como solução aos conflitos sociais no país. Vive-se em um momento de insegurança social e jurídica, juntamentea frustração das respostas dogmaticamente construídas, que padecem de uma intervenção penal seletiva repleta de desigualdades (CANTERJI, 2008, p. 102), já que“a criminalidade é um ‘bem negativo’, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixadano sistema socioeconômico e conforme

a desigualdade

social entre os

indivíduos” (BARATTA, 1997, p. 161). Por conseguinte, os cidadãos excluídos do sistema de justiça formal, acabam por fazer justiça com as próprias mãos, uma vez que, encontram-se ligados ao propósito da vingança. Portanto, certifica-se da necessidade de implementação de um sistema de justiça criminal complacente com a realidade

do

país.

Destarte

questiona-se

sobre

a

possibilidade

de

implementaçãode modelos diferenciados no Brasil, como no caso da justiça restaurativa, a qual traz uma lógicaalternativa e terapêuticaao atual sistema punitivo, visando à inclusão social, bem como uma solução mais humanizada para restaurar as mazelas deixadas pelo crime. Nesse sentido, é pertinente a inserção de novos mecanismos e iniciativas, que possibilitem a diminuição de prisões desnecessárias evitando abusos e maus tratos, que irão auxiliar na efetivação do controle judicial sobre o sistema prisional. Assim podendo começar com: 102

(...) uma criminologia que se proponha curiosa e compreensiva; uma criminologia que não produza criminosos e criminalizações, mas sim cognições desejantes de liberdade, que não apenas expliquem o passado e seus atores, mas se projete para o futuro e seus sujeitos possíveis (CHIES, 2008, p. 103).

Nessa lógica atentando para uma “ideia de uma justiça restaurativa aplica-se a práticas de resolução de conflitosbaseadas em valores que enfatizam a importância de encontrar soluções para ummais ativo envolvimento das partes no processo”, tal concepção objetiva que as partes consigam decidir “a melhor forma de abordar as consequências do delito, bem como as suas repercussões futuras” (AZEVEDO, 2005b, p. 136). Destarte, o modelo restaurativo “foca sua atenção no ato danoso e nos prejuízos que resultaram dele, ao contrário do modelo criminal, então, a orientação não é unidirecionada, mas envolve um olhar mais amplo” (ROLIM, 2009, p. 241).Logode acordo com a resolução nº 12/2002 da ONU, a justiça restaurativa constitui-se em um procedimento consensual e voluntário entre vítima e infrator, e quando necessários com mais pessoas da comunidade que tenham sido afetadas pelo crime. Desta forma, juntamente com os mediadores também denominados facilitadores, busca-se fornecer as ferramentas para suprir os traumas deixados pelo crime, através do uso da transação, mediação, conciliação, audiências e processos decisórios consensuais.Ainda procura restabelecer o diálogo e “faz com que as partes assumam posição mais ativa na mediação e se expressem com mais frequência do que o próprio mediador ou facilitador” (AZEVEDO, 2005a, p. 144). Ademais, proporciona,

o

enfoque

permite

comprometidas

com

que o

de as

interação partes

processo,

que

a

justiça

envolvidas visto

se

que

restaurativa sintam

mais

osmecanismos

restaurativospremiam uma perspectiva maior dos interesses pessoais dos envolvidos. Assim pode-se afirmar que“ambas as partes envolvidas na experiência da mediação veem um tipo de ‘justiça’ em vez de passivamente receber ‘justiça’”; isto revela que as duas partes acabam por se sentir “mais responsáveis e abandonam os estereótipos tradicionais da sua forma de pensar: ‘o delinquente intratável’ e a ‘vítima que se aproveita’ se convertem 103

em ‘mitos’ impraticáveis” (PETERS;AERTSEN, 1995, p. 140, tradução nossa). Além disso, a abordagem mais informal do procedimento permite uma maior tratativa do crime e suas consequências, visando à restituição, reparação e também o pedido de desculpas.Dessa maneira, contrastando com o perfil atual retributivo, que apenas centraliza-se no sujeito infrator, e no ato punitivo. Uma vez que “o poder de punir do Estado fica organizado de forma objetiva e silenciosa, tendo como objetivo fazer da pena um remédio para o mal do indivíduo” (FOULCAUT, 1997, p. 171). Todavia, na prática o que ocorre são procedimentos formais de grande complexidade, os quais deixam as partes alienadas e isoladas em relação ao processo, e ainda tem como resultado, penas cruéis e desumanas, com quase nenhum meio de assistência psicológica ou terapêutica. Nesse sentido, “o ambiente do cárcere deve ser evitado, sempre que possível, nos casos em que a breve passagem do condenado pela prisão não enseje qualquer trabalho de ressocialização” (GRECO, 2007, p. 529). Consequentemente, o efeito do atual sistema punitivo é de frustação e desgosto, onde não há uma real responsabilização, mas apenas um ato de punição intimidatório, o qual impossibilita a reparação de traumas e prejuízos. Em oposição, a base da justiça restaurativa é a correção desses antigos paradigmas, e também “cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovem reparação,reconciliação e segurança”(ZEHR, 2008,p. 171). Contudo, no Brasil em específico no Rio Grande do Sul, verifica-se a existência de aplicabilidade de alternativas ao atual perfil retributivo de forma bastante ampla, a partir de um projeto de justiça terapêutica desde 2005 na cidade de Porto Alegre, o qual abrange vários elementos e medidas que tem como objetivo aumentar as chances de infratores e usuários de drogas se ressocializarem, oportunizando tratamento para que os mesmos adquiram

comportamentos

terapêuticas

poderão

ser

socialmente propostas

adequados3.

pelo

Ministério

Estas

medidas

Público

como

Associação de Justiça terapêutica “é um programa judicial de redução do dano social, direcionado às pessoas que praticam pequenos delitos e ao mesmo tempo são usuários, abusadores ou dependentes de drogas lícitas e/ou ilícitas”. Disponível em:< http://www.anjt.org.,br/index.php?id=1> Acesso em: 20 de Ago de 2015. 3

104

circunstância para transação penal e suspenção do processo ou da pena, podendo “o MP propor pena restritiva de direitos que, de uma forma ou de outra, inclua a participação em cursos ou seminários sobre drogas – além da suautilização no contexto do Estatuto da Criança e do Adolescente, em casos de adolescentesusuários de drogas” (ACHUTTI, 2012, p.13). Ainda conforme os instrumentos do projeto de justiça terapêutica, a aplicação da proposta é cabível em casos de contravenções penais, crimes contra a pessoa como aborto, lesões corporais leves envolvendo relações domésticas ou familiares e de vizinhança. Também em crimes contra o patrimônio como furto, roubo, dano, apropriação indébita, estelionato e receptação entre outros. Ademais, conforme a Associação de Brasileira de Justiça

Terapêutica

(ABJT,

2004)

“a

expressão

Justiça

Terapêutica

representa o trabalho dos operadores do direito e dos profissionais de saúde que, de forma integrada, trabalham para oferecer uma perspectiva de vida e de cidadania mais humana e justa aos infratores”. Contudo, este projeto ainda enfrenta muitos óbices e resistência de parte dos operadores da lei, sendo assim em decisões prolatadas pelos Desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, as medidas restaurativas têm sido bastante citadas, visto que, existem muitos recursos contra progressão de regimes e concessão de outros benefícios aos apenados, alegando que antes da concessão dos benefícios é necessário a submissão dos apenados a exames psicológicos e psiquiátricos para obtenção de algum direito previsto em lei. Dessa forma, no caso concreto os Desembargadores têm decido que “não há impossibilidade de concessão do benefício, pois nem o laudo é impeditivo. Ademais, o apenado não recebeu qualquer espécie de tratamento ou orientação restaurativa” (BRASIL, 2014), deixando claro que não se pode exigir a recuperação de uma pessoa que não recebeu tratamento algum. Portanto, fica claro que um tratamento restaurativo e terapêutico aplicado durante o cárcere, também seria bastante eficaz viabilizando a diminuição de reincidência em condutas infracionais e comportamentos habituais do uso de drogas, bem como resultando em uma possível redução da criminalidade. Ademais, ainda durante o lançamento do projeto de 105

audiência de custódia no Rio Grande do Sul o atual presidente do Supremo Tribunal Federal o Ministro Ricardo Lewandowski afirmou que “é preciso buscar novas formas de solução de controvérsias, como ocorre aqui de forma pioneira” (BRASIL, 2015), fazendo referência às praticas de mediação, conciliação e ampliação do exercício da justiça restaurativa que já tem vem sendo colocada em pratica no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Seguindo este raciocínio, a justiça restaurativa viabiliza a manutenção da paz social com dignidade, sendo capaz de complementar as necessidades do atual sistema dogmático penal, buscando reduzir o impacto dos crimes sobre os cidadãos. A simples punição não considera os fatores emocionais e sociais, e que é fundamental, para as pessoas afetadas pelo crime, restaurar o trauma emocional – os sentimento e relacionamentos positivos, o que pode ser alcançado através da justiça restaurativa, que objetiva mais reduzir o impacto dos crimes sobre os cidadãos do que diminuir a criminalidade(PINTO, 2005, p. 22).

Dessa maneira, a implementação da justiça restaurativa e terapêutica em todo Brasil oferece grandes chances de redução da exclusão social e da violência. Haja vista que o sistema penal contemporâneo estimula de forma subjetiva a discriminação, violência e a desigualdade. Uma vez que fica claro a diferenciação dos direitos dos “bons cidadãos” e os “maus cidadãos” (ZAFFARONI, 2012. p. 309). Em contrapartida, cabe ressaltar que “a igualdade é básica ou fundamental na democracia social. Sem ela, a liberdade será uma quimera, a vida será um insulto e a isonomia, que é um aspecto da igualdade, não deixará de ser puro artifício, pura verbalidade” (COSTA, 1992, p. 124). O processo restaurativo seria primordial, já que preza pela cooperação dos envolvidos e a participação comunitária enaltecendo a interação processual, bem como a proteçãodas necessidades e direitos das partes com maior igualdade. Assim, esta técnica alternativa fortaleceria a aplicabilidade de direitos e garantias fundamentais inerentes à pessoa humana, e ainda estaria explorando a prática de democratização dos cidadãos envolvidos, ajudando

a

“constituir

sociedades

civis

mais

fortes

aumentando

a

capacidade e o interesse dos cidadãos em participar de organizações sociais, 106

ao mesmo tempo que contribui para impedir que os conflitos se tornem maiores”(OXHORN; SLAKMON, 2005, p 188). Portanto,

acredita-se

que

a

expansão

do

sistema

de

justiça

restaurativa e das formas alternativas no Brasil seria um ótimo meio de modificação ao atual modelo punitivo, uma vez que pretende agir e solucionar diretamente as necessidades das partes, e também reafirmar as responsabilidades do ofensor de um modo mais didático e terapêutico. Bem como irá contribuir para evitar as muitas contrariedades e influências errôneas exercidas pelo controle social informal sobre o sistema punitivo. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Devido aos grandes obstáculos enfrentados pela justiça criminal brasileira, o presente estudo buscou abordar os transtornos e empecilhos derivados do controle social informal, como a pressão por punições exercida sobre o sistema jurídico penal, que acaba gerando consequências negativas na atuação penal brasileira. Atualmente são perceptíveis as anômalas desigualdades sociais e as reiteradas violações de direitos e garantias dos investigados, acusados, apenados e muitas vezes até mesmo de seus familiares, uma vez que no contexto penitenciário, já se tornou prática corriqueira o desrespeito às garantias individuais e fundamentais. Em vista disso, existe um conjunto de antagonismos a Constituição Federal, nesse sentido, verificando-se fragmentações aos princípios e normas fundamentais. Logo, a pena acaba por transcender e transbordar a pessoa do apenado, já que as mazelas do cárcere e do crime também afetam a vítima, a qual em geral encontra-se completamente sem proteção, amparo psicológico social, bem como sem compreender seus próprios direitos e o que esta ocorrendo no processo, ficando alienada. Em suma, questionasse sobre o fundamento da atual maximização da intervenção penal e seu sistema punitivo, pois é explicito a grande primordialidade que é dada a pena retributiva com caráter de vingança pelo atual meio de controle social. Nesse sentido, seria edificante a busca por novos meios que auxiliem no combate as desigualdades, a falta de 107

consideração com ambas às partes, a estigmatização com foco somente sobre o infrator com a finalidade de intimidar e punir. Deixando de primar pelos interesses dos envolvidos e da sociedade de um modo geral, no que concerne

o

combate

efetivo

da

criminalidade,

e

ainda

realizar

o

restabelecimento das partes com as garantias necessárias, fazendo com que a justiça se faça presente em todos os momentos da vida social. Assim, devendo-se perfazer e esgotar todos os meios cabíveis antes de chegar à intervenção penal, que para muitos é a solução para todos os problemas. Dessa forma deve se levar em consideração os novos mecanismos de administração de conflitos, com o exercício e implementação de uma justiça

terapêutica

e

restaurativa.

A

justiça

restaurativa

traz

uma

abordagem com foco na relação entre as partes, possibilitando fazer uma análise criminológica capaz de esmiuçar a complexidade de cada caso concreto, trazendo a faculdade de refletir além da justiça retributiva, com o auxilio dos profissionais da rede pública de saúde. Contudo, conclui-se que é evidente que o modelo restaurativo e terapêutico é perfeitamente compatível com a jurisdição brasileira, visto que, conforme já demonstrado existem projetos e aplicação de métodos restaurativos no Brasil, restando assim à regularização, juntamente a edificação deste instituto com as estruturas legais já existentes no ordenamento jurídico, para que assim exista uma efetiva democratização na administração de conflitos. Igualmente prima-se por uma definitiva aceitação do método pelos profissionais do direito, despertando o interesse social de participação na diminuição das desigualdades sociais, bem como colaborar para responsabilização espontânea do infrator, reparação de traumas e prejuízos emocionais facilitando a restauração e inclusão de ambas as partes, afastando da visão retributiva de vingança e aproximando-se de um viés mais humano e social. REFERÊNCIAS ABJT. Associação Brasileira de Justiça Terapêutica: um instrumento para a justiça social. Posto Alegre, Mar de 2004. Disponível em: . Acesso em: 20 de Ago de 108

2015. ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. Porto Alegre, 2012. Disponível em: Acesso em: 20 de Ago de 2015. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica do controle da violência a violência do controle penal. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. AZEVEDO, André Gomma de. O componente de mediação vitima – ofensor na justiça restaurativa: uma breve apresentação de uma inovação epistemológica na autocomposição penal. In: SLAKMON, Catherine; VITTO, Renato Campos De; PINTO ,Renato Sócrates Gomes. (Org.). Justiça restaurativa: (Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD) 2005. AZEVEDO, Rodrigo. O paradigma emergente em seu labirinto: notas para o aperfeiçoamento dos Juizados Especiais Criminais. In WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de (orgs.). Novos diálogos sobre osJuizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997. BIANCHINI, Alice; GARCÍA PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio.Direito Penal: Introdução e princípios fundamentais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. BRASIL. Supremo Tribunal Federal.Notícias STF/Ministro Lewandowski lança projeto Audiência de Custódia no RS. 31 de jul de 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 de Ago de 2015. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.Agravo Nº 70058107525.Relator Nereu José Giacomoll. 29 de mai de 2014. Disponível em: . Último acesso em 27.08.2015 9

<

165

furto qualificado pela escalada e rompimento de obstáculo de 15 bombons caseiros, avaliados em R$ 30,00, à pena de detenção em regime inicial aberto, em que pese reconhecida a primariedade do réu e a ausência de prejuízo à vítima). Analisando os julgados mencionados no parágrafo anterior, o Plenário do Supremo entendeu que para a aplicação do princípio da insignificância, não basta, tão somente, a aferição da inexpressividade penal constante da lei, sendo necessário um olhar social sobre o caso, evitando-se, com o reconhecimento da atipicidade, o estímulo à prática de tais condutas: O Plenário aduziu ser necessário ter presentes as consequências jurídicas e sociais que decorrem do juízo de atipicidade resultante da aplicação do princípio da insignificância. Negar a tipicidade significaria afirmar que, do ponto de vista penal, as condutas seriam lícitas. Além disso, a alternativa de reparação civil da vítima seria possibilidade meramente formal e inviável no mundo prático. Sendo assim, a conduta não seria apenas penalmente lícita, mas imune a qualquer espécie de repressão. Isso estaria em descompasso com o conceito social de justiça, visto que as condutas em questão, embora pudessem ser penalmente irrelevantes, não seriam aceitáveis socialmente. Ante a inação estatal, poder-se-ia chegar à lamentável consequência da justiça privada. Assim, a pretexto de favorecer o agente, a imunização de sua conduta pelo Estado o deixaria exposto a uma situação com repercussões imprevisíveis e mais graves. Desse modo, a aferição da insignificância como requisito negativo da tipicidade, mormente em se tratando de crimes contra o patrimônio, envolveria juízo muito mais abrangente do que a simples expressão do resultado da conduta. Importaria investigar o desvalor da ação criminosa em seu sentido amplo, traduzido pela ausência de periculosidade social, pela mínima ofensividade e pela ausência de reprovabilidade, de modo a impedir que, a pretexto da insignificância do resultado meramente material, acabasse desvirtuado o objetivo do legislador quando formulada a tipificação legal. Aliás, as hipóteses de irrelevância penal não teriam passado despercebidas pela lei, que conteria dispositivos a contemplar a mitigação da pena ou da persecução penal. Para se conduzir à atipicidade da conduta, portanto, seria necessário ir além da irrelevância penal prevista em lei. Seria indispensável averiguar o significado social da ação, a adequação da conduta, a fim de que a finalidade da lei fosse alcançada (BRASIL, 2015).

Com a devida vênia, não se pode concordar com a motivação esposada pelo Plenário do Supremo, por conta do julgamento dos Habeas Corpus n° 123.108/MG, 123.533/SP e 123.734/MG, notadamente, quando se observa que o mesmo raciocínio não é aplicado em casos de crime contra a ordem tributária,

para

os

quais

o

tratamento,

administrativo,

legal

e 166

jurisprudencial, é muito mais tolerante e parcimonioso, salvo se a sonegação ultrapassar a quantia de R$ 20.000,00 (vinte mil reais). A discrepância é tão latente que, a pessoa que furta o objeto de alguém não se beneficia caso promova o ressarcimento do bem, antes da denúncia. Já aquele que responde por sonegação fiscal, caso pague o tributo omitido, antes do início do processo, será beneficiado com a extinção da punibilidade. Segundo

SILVA

(2011),

as

bases

jurídicas

do

princípio

da

insignificância são o princípio da igualdade (em seu sentido material), o princípio da liberdade (no Estado Democrático e Constitucional de Direito, a prisão é ou deveria ser a ultima ratio), o princípio da Fragmentariedade (o Direito Penal só se preocupa de infrações graves) e o princípio da proporcionalidade. Ao estabelecer tratamento penal, normativo e jurisprudencial, diverso aos crimes contra o patrimônio público e privado, o Estado brasileiro se afasta de uma linha de política criminal coerente, na medida em que distorce institutos jurídicos (quebra da isonomia e da proporcionalidade) e colabora para o cada vez mais caótico sistema penitenciário pátrio. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Buscou-se

com

esses

apontamentos,

destacar

a

cultura

patrimonialista que vem norteando a edição de normas penais, além do tratamento penal mais rigoroso àqueles que respondem por crimes contra o patrimônio, mesmo que praticados sem violência ou grave ameaça. A exemplo da virada que se operou com a legislação civil, já que o Código de 1916, excessivamente patriarcal e patrimonialista, deu lugar ao Estatuto de 2002, o qual dedicou espaço interessante aos direitos da personalidade, representando inegável avanço. A legislação penal, tanto o Código Penal, quanto a extravagante, precisa dessa mudança de paradigma. Entretanto, essa virada deve perpassar também pelos órgãos de atuação

jurisdicional,

afinal,

não

raro

os

processos

que

envolvem

comportamentos inexpressivos, no sentido de ofensa ao bem jurídico 167

patrimônio, a aplicação do princípio da insignificância só se dá, e quando se dá, no julgamento de habeas corpus, pelo Supremo Tribunal Federal. A imposição de pena de prisão ao crime de furto, por exemplo, além da imposição de óbices alheios à verificação da análise da insignificância, só reforçam o estado de crise estatal, no que tange à definição de uma política criminal coesa (ou expande ou retrai o direito penal), e no que se refere ao número excessivo de prisões desnecessárias e desumanas. Quando se observa que crimes contra a ordem tributária, cuja sonegação pode chegar à quantia de quase R$ 20.000,00 e mesmo assim não

ser

processado

criminalmente,

diante

da

“inexpressividade”

da

importância sonegada, uma pergunta insiste em incomodar: para que(m) serve o princípio da insignificância? REFERÊNCIAS ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. -16ª ed. rev. e atual, São Paulo: Malheiros, 2015. BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. - 17ª ed. rev. e atual. de acordo com a lei n. 12.550, de 2011. São Paulo: Saraiva, 2012. BOTTINI, Pierpaolo Cruz et al. A confusa exegese do princípio da insignificância e sua aplicação pelo STF: análise estatística de julgados. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v.20, n.98, p. 117-148, set./out. 2012. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Acórdão nos Habeas Corpus n. 123.108/MG, 123.533/SP e 123.734/MG, Relator: Barroso, Roberto. Publicado no DJ de 3 ago. 2015. Disponível em: Acessado em 25 ago. 2015. _______, Supremo Tribunal Federal. Princípio da insignificância é aplicado a furto de objetos de pouco valor. Disponível em: Acessado em 25 ago. 2015 CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre; GARCIA, Rogério Maia; LOUREIRO, Antônio Carlos Tovo. Breves considerações sobre a tipicidade material e as infrações de menor potencial. In: AZEVEDO, Rodrigo 168

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170

A CORRUPÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO MODERNO E A INFLUÊNCIA POLÍTICA E MIDIÁTICA NA CRIAÇÃO DA LEI PENAL Maíra Fronza1 Adalberto Narciso Hommerding2 1. INTRODUÇÃO O lucro e o capital atuam como novo medidor axiológico da sociedade. E tais mediadores, integrantes do subsistema econômico, invadem, ainda que indiretamente, o subsistema jurídico, que acaba sendo pressionado pela mídia, pela política e até mesmo por interesses eleitoreiros, o que termina por causar a corrupção do sistema de direito, especialmente na seara penal. É de fácil percepção que os representantes da população (legisladores) estão preocupados apenas com a criação da legislação para sanar determinados problemas, sem, contudo, observar se as normas criadas terão, ou não, alguma efetividade diante do problema e, inclusive, se são realmente a solução para os problemas que surgem com a expansão do neoliberalismo. O presente trabalho pretende fazer um breve análise do subsistema jurídico atualmente corrompido por outros sistemas e acerca da influência política/popular e midiática que pressiona o legislador na tomada de providências diante da problemática da criminalidade. 2. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TEORIA SISTÊMICA DE LUHMANN A noção da autopoiese no sistema social é devida a Nicklas Luhmann. O sistema autopoiético surge da concepção de sistema trazida por dois biólogos chilenos, Maturana e Varela, entendendo que um organismo vivo,

FRONZA, Maíra. Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI; Pós-graduada em Direito Tributário pela UNIDERP - Universidade Anhanguera; Graduada em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI. 2 HOMMERDING, Adalberto Narciso. Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Alicante, Espanha (2012); Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS (2005); Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (2001). 1

171

seja animal, seja vegetal, deve ser considerado um sistema dotado de partes vinculadas entre si, independentes de outros seres, mas, que interagem dentro do próprio grupo. E é por isso que o dito sistema é considerado pelos referidos doutrinadores como sistema fechado. Ressalta-se, outrossim, que os ditos autores também referiram que o sistema, além de fechado, era autopoiético e autorreferencial, conceitos que foram aprimorados pelos estudos de Luhmann. O conceito de “autopoiesis”, como dito, teve início no final da década de 60 pelos biólogos chilenos Maturana e Varela. Os mencionados biólogos utilizavam, então, do dito termo para indicar as designações como autorreferido e autorreferente não só relacionadas aos seres vivos, mas também para referir acerca do sistema nervoso (RODRIGUES e NEVES, 2012). Como o conceito de autorreferência está intimamente ligado à concepção da autopoiese, importa transcrever o dito conceito trazido por Luhmann que refere como sendo uma “unidade do sistema consigo mesmo” (apud RODRIGUES e NEVES, 2012, p. 30). No entanto, o conceito de autopoiese surge quando os referidos biólogos tentam explicar a autonomia de um organismo vivo que é considerado como um sistema que se autoproduz. Para melhor compreensão, pode-se dizer que o sistema autopoiético é um sistema fechado que, embora seja operado de forma autorreferenciada em um determinado meio ou “entorno que o circunda”, produz uma operação de diferenciação. Um exemplo de grande valia utilizado pelos biólogos chilenos (Maturana e Varela) para explicar o conceito de autopoiese é de que um ser vivo, seja ele planta ou animal ou, ainda, determinada célula, não depende exclusivamente do meio em que vive, mas, sim, de sua própria unidade sistêmica. Isto é, ser uma célula nervosa (e não epitelial), ser um milho (e não um feijão), ser um gato (e não um cachorro) (RODRIGUES e NEVES, 2012). Dito de outro modo, são os elementos internos dos seres vivos (dos sistemas vivos) que fazem com que esses (os seres vivos) sejam o que são, inclusive, conservem o seu estado dessa forma. 172

Enfim, a autopoiesis é a capacidade que os sistemas autorreferidos têm de produzirem-se a si próprios como unidades diferenciadas. Em outras palavras, pode-se dizer que o sistema que se autoproduz também se autorrestrutura, se autorrepara, se autotransforma e se autodapta sem perder sua identidade. Luhmann (apud RODRIGUES e NEVES, 2012, p. 32) afirma mais, que “os sistemas autopoiéticos são aqueles que por si mesmos produzem não apenas a sua estrutura, mas também os elementos que os constituem [...] sem importar a base energética ou material. Os elementos são informações, são diferenças que no sistema fazem diferença”. Segundo Luhmann (apud RODRIGUES e NEVES, 2012), para análise do teoria sistêmica, faz-se necessária a distinção entre sistema e entorno. Para o dito doutrinador, os sistemas estariam sempre ligados, acoplados e, inclusive, orientados em relação a um entorno. O entorno poderia também ser descrito como a parte externa de um determinado sistema. Destaca também que no processo autopoiético a observação é importante para a diferenciação do sistema e do entorno, muito embora ambos sejam inteiramente ligados. Aspecto também de grande valia que merece ser considerado é o fato de que Luhmann entende a teoria sistêmica como evolucionista à medida que interpreta o meio em que está inserido. Para Luhmann, no entanto, o que importa é a autopoiese como um sistema de reprodução. E tal sistema de reprodução no sistema social é o denominado processo de comunicação, uma vez que os sistemas sociais são entendidos como sistemas comunicativos (apud RODRIGUES e NEVES, 2012). Rodrigues e Neves (2012, p. 60-61) referem que “a comunicação é a operação própria dos sistemas sociais. É uma operação puramente social porque pressupõe o envolvimento de vários problemas psíquicos em que se possa atribuí-la exclusivamente a um ou a outros destes sistemas: não pode haver comunicação individual”. Dito de outro modo, segundo os referidos autores na esteira de Luhmann, quem comunica é o sistema social, e não os seres humanos, haja vista que é a sociedade que se reproduz como sistema de comunicação. 173

Ainda que os subsistemas sejam fechados à comunicação com outros subsistemas, quando se organizam, porém, os variados subsistemas como ciência, economia, política, etc., passam a se comunicar com outros subsistemas por meio de decisões. E tais decisões, segundo Rodrigues e Neves (2012), não prejudicam a autopoiesis do sistema social. A comunicação nada mais é do que um processo de atualização constante que envolve um grande número de pessoas que pensam de modo diverso (RODRIGUES e NEVES, 2012) Segundo Elaine V. Domingos Santos (2009), o sistema é sempre menos complexo que o ambiente em que ele está inserido e, em razão da complexidade do dito ambiente, faz-se necessária a seletividade de elementos que reduzam tal complexidade. Elaine

V.

Domingos

Santos

(2009,

p.1)

também

conceitua

contingência: Contingência é o fato de que, entre as possibilidades que se mostram no sistema ou para o sistema, pode sempre ocorrer das expectativas esperadas naquelas relações frustrações. Em outras palavras, cada seleção atribuída a um sistema é produto de alternativas que fora deixadas de lado. Numa situação contingencial, não se sabe quais os resultados a serem escolhidos visto que se trabalha com possibilidades. Portanto, na contingência, depende-se de expectativas futuras, ou seja, há a necessidade de assumir riscos.

A autora ainda ressalta que o sistema social surge quando os indivíduos expõem sua contingência um ao outro (indivíduo) gerando a referida complexidade. Outro aspecto importante trazido por Elaine V. Domingos Santos (2009) quanto à teoria de Luhmann é a impossibilidade da existência de sociedade sem meio ambiente, ainda que o sistema seja autopoiético. A ligação do sistema com seu meio ambiente é também denominada de acoplamento estrutural. Elaine novamente refere a comunicação como um exemplo concreto de sistema autopoiético. Como visto, o sistema está ligado ao seu exterior, ou seja, ao mundo de valores que conduz a sociedade. Surge, então, a necessidade de dividir a sociedade em subsistemas que relaciona a desigualdade e a igualdade entre 174

indivíduos. E daí também surge a distinção entre incluídos e excluídos (SANTOS, 2009). Por fim, o direito, além da economia, da política, da religião, é umo subsistema inseridos dentro de um sistema que, como dito, é autopoiético e que sobrevive dentro de seus próprios limites, autorreproduzindo-se para atingir suas necessidades. Entretanto, a comunicação dos sistemas sociais, ainda que seja importante, atualmente está ocorrendo de modo acelerado, o que vem proporcionando uma certa “corrupção sistêmica”, consoante será adiante discorrido. 3. A CORRUPÇÃO DO SISTEMA (SUBSISTEMA) JURÍDICO MODERNO E O

SIMBOLISMO

LEGISLATIVO

EM

RESPOSTA

ÀS

PRESSÕES

POPULARES Como é sabido, os sistemas sociais atuais, quais sejam, direito, economia, político, etc., estão cada vez mais interligados. Ocorre que, muito embora

essa

“comunicação

sistêmica”

seja

importante

para

o

desenvolvimento da sociedade moderna, a interferência direta de um sistema ou subsistema em relação ao outro acaba por causar a denominada “corrupção sistêmica, o que é chamada por muitos estudiosos como “alopoiesis”. A “alopoiesis”, entretanto, não pode ser vista como um conceito isolado, mas, sim, oriundo da denominada “autopoiesis” trazida por Luhmann por meio da sua teorias sistêmica de matriz biológica. Consoante Marcelo Neves (2009), o sistema autopoiético que é fechado e autônomo em relação aos demais subsistemas da sociedade se contrapõe com o termo alopoiese que, por sua vez, se relaciona com o estado de corrupção sistêmica. E a alopoiese é o fenômeno que impede o desenvolvimento do Direito em determinados pontos da sociedade justamente pela falta de autonomia que decorre da sobreposição de outros códigos, especialmente econômico (ter/não ter) e o político (poder/não poder) (NEVES, 2009). 175

Para Lira (2015), a relação do direito penal dentro do sistema jurídico depende da função que o referido subsitema jurídico desempenha na sociedade. Ou seja, é o processo de comunicação existente entre os subsistemas existentes com o Sistema do Direito que irá fomentar a criação de normas para a regulação de condutas tidas como lícitas ou ilícitas. Segundo Luhmann (2005, pp. 188-189), “o Direito se encarrega de uma só função, a saber: estabilização das expectativas normativas, via regularização temporal, objetiva e social”. A bem da verdade, quando há uma intromissão dos sistemas políticos, sociais e/ou econômicos, seja por meio de pressões populares ou midiáticas, ocorre a corrupção do Sistema de Direito. E isso causa a alopoiese, que é simplesmente a interferência de outros sistemas no processo operativo jurídico (LIRA, 2015). Em outras palavras, significa dizer que o sistema jurídico perde sua autonomia quando invadido por outros campos, o que Luhmann denomina de “estado de corrupção” (2005, pp. 151-193). O exemplo típico de “intromissão” referido por Adalberto Narciso Hommerding e José Francisco Dias da Costa Lyra (2014, p. 100) é a pressão política e midiática. E é nesses aspectos que estão focadas as discussões deste trabalho acadêmico. Como é sabido, o direito surge em razão da necessidade da regulamentação da paz, da ordem social, da segurança e, inclusive, do bemestar comum. E tudo isso se dá com o objetivo de melhorar a convivência entre as pessoas e o progresso social. Tal fato torna o direito dinâmico, exigindo que ele, a cada época, acompanhe os anseios e interesses da sociedade para a qual foi criado. É justamente nesse ponto que o presente trabalho pretende focar o estudo. Ou seja, a legislação sofre mutação em decorrência das variações sociais no tempo e no espaço. E isso está relacionado diretamente com a pressão política e midiática de que se falava anteriormente. Portanto, há a necessidade de o direito se refazer. Porém, a lei, como expressão positiva do Direito, não pode ser simplesmente criado como forma de dar uma resposta à sociedade sem ter, na prática, qualquer eficácia. Max Weber (apud OLIVEIRA, 1997) já dizia que o direito é um 176

instrumento de dominação da sociedade, haja vista que a dita sociedade se submete às regras de obediência impostas. Logo, aqueles que detêm o poder político controlam a sociedade porque impõem a sua vontade. Assim, os detentores do poder político exercem a dominação da sociedade, que “crê” estar organizada por meio da criação da legislação. Na verdade, o que se vê, principalmente no Brasil, que adotou o Sistema codificado de regulação social, é que o legislador, diante das pressões dos demais sistemas existentes, cria determinada legislação com o objetivo de “dar uma resposta à sociedade” no sentido de que está (o poder legislativo) tomando as providências necessárias diante de determinado fato. E essa forma de criação de leis denomina-se de simbolismo legislativo. Nesse sentido, Lira refere que (2015, p. 105): A função simbólica da lei caracteriza-se, então, pela não produção de efeitos externos. É dizer: a eficácia e a efetividade da lei só acontecem na mente dos governantes e dos cidadãos, pois aqueles acreditam terem feito algo para a proteção da paz pública.

No entanto, o que se vê é que o legislador, quando da criação de determinadas

leis,

não

busca

realmente

solucionar

as

verdadeiras

necessidades e exigências sociais, o que, acredita-se, no caso do Brasil, deve ser feito por meio de políticas públicas, e não por meio de políticas legislativas simbólicas , de cunho criminalista populista, que visam apenas “aquietar” as massas populares e as influências da mídia. O sistema jurídico atual apresenta, portanto, uma corrupção ou irritação causada por outros subsistemas, o que, como dito, dá origem ao simbolismo legislativo que visa passar uma “falsa” percepção da realidade. 4. A INFLUÊNCIA POPULAR E MIDIÁTICA NA CRIAÇÃO DA LEI PENAL ORIUNDA DO NEOLIBERALISMO EXPANSIVO A bem da verdade, segundo Bauman e Mendoza Buergo (apud HOMMERDING e LYRA, 2014, p. 76):

177

[…] a pós-modernidade ou a modernidade-tardia, novo padrão distintivo de relações econômicas e sociais, trouxe, no seu bojo, um conjunto de riscos, inseguranças e problemas de controle social, reconfigurando, dessa forma, as expectativas sociais com relação às políticas criminais de repressão à criminalidade, já que o “caldo cultural” pede o endurecimento da resposta penal.

Hommerding e Lyra (2014) referem que o Estado de Bem Estar Social encontra-se em crise, seja pelos fatores oriundos do neoliberalismo, seja pelos fatores oriundos da globalização, e, em razão disso, a sociedade “clama” por estabilidade e segurança. E para a solução de tal problemática (insegurança e instabilidade), fazse necessária a implantação de uma promessa de “vencer o inimigo”, ainda que se tenha que infringir outros conceitos e, inclusive, corromper o subsistema jurídico penal. A legislação penal, como consequência, sofre influência direta dos subsistemas.

É

a

chamada

“corrupção”,

referida

por

Luhmann

(HOMMERDING e LYRA, 2014). A insegurança, o medo e a busca pela eficácia preventiva fazem com que o Direito Penal fique adstrito à política, ainda que acabe seguindo o caminho da desformalização material e processual. A velocidade da propagação das informações por meio da mídia, como é sabido, é praticamente instantânea e tem o condão de fazaer transparecer os detalhes acerca dos riscos atuais e dos medos que vêm em face da ausência de segurança pública. E isso, como refere Lira (2015, p. 105), “insufla” o povo contra o poder legislativo como o objetivo de que tome providências em relação à repressão da criminalidade. O legislador, então, pressionado pelas pressões populares e midiáticas e, até podemos dizer, com a intenção de não decepcionar seus eleitores, cria leis, ainda que de pouca eficácia legislativa (legislação simbólica) para “dar a impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido" (CANCIO MELIÁ, 2010, p. 79). A respeito do tema já diziam Hommerding e Lyra (2014, p. 46) que atualmente há “uma percepção social emocionalmente carregada e forjada pelos mass mídia, isto é, uma cobertura sensacionalista e populista à 178

criminalidade, que estimula uma política criminal de cunho conservador, a saber: tendência de governar pelo crime”. Acredita-se que o “protagonismo” dos meios comunicativos apresenta um sério problema, pois há, de certa forma, o uso político do controle penal por meio da legislação criada que se apresenta como mecanismo de “ofuscamento e encobrimento dos problemas sociais” que acaba fugindo das atribuições políticas (HOMMERDING e LYRA, 2014, p. 47). O cenário atual demonstra claramente que, em sua maioria, as legislações penais atuais foram elaboradas pelo legislador ante a exigência da sociedade por uma resposta para determinada situação, ainda que fosse uma situação isolada. Inúmeras Leis Penais Brasileiras foram criadas por ingerência da mídia. Segundo Mascarenhas (2010), a Lei nº 8.072/90 foi a primeira “Lei Midiática” que surge em face da pressão existente. O caso criminal célere que deu origem à criação da referida norma foi o sequestro do empresário Abílio Diniz, ocorrido em 1989. O sequestro do empresário Roberto Medina também contribuiu para a criação da Lei dos Crimes Hediondos. É claro, todavia, que já existia uma forte movimentação legislativa para a criação da referida Lei, mas o clamor dos meios comunicativos aliados às ondas de criminalidade “pressionaram” para a elaboração da dita Lei. Consoante coloca Mascarenhas (2010), a Lei nº 8.930/94 também foi fruto de uma pressão midiática, principalmente oriunda da Rede Globo de Televisão. Tal Lei surgiu em razão do homicídio da atriz Daniela Perez, a personagem Yasmin em uma novela da referida rede de televisão. A mãe e escritora Glória Perez, com o assassinato de sua filia Daniela, dirigiu uma mobilização nacional para a criação da Lei nº 8.930/94 que tinha por objetivo acrescentar à Lei dos Crimes Hediondos o homicídio qualificado. Odacir Silva Mascarenhas (2010) cita os casos de Doka Street e Ângela Diniz, de Daniela Perez, de Roberto Medina, Abílio Diniz, a Chacina de Diadema, o assassinato dos jovens Liana Friendbach e Felipe Caffé, a morte da missionária norte-americana Dorothy Stang, além dos acontecimentos 179

gerados pelos presos Beira-Mar e Marcola, como influentes para a modificação da legislação penal. A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) também foi uma legislação elaborada “às pressas” em razão de clamores oriundos da Comunidade Internacional em relação aos direitos das mulheres (LIRA, 2015) que, como é de conhecimento de muitos (especialmente juristas e aplicadores do direito), apresenta vários problemas quando da sua aplicabilidade na prática. Não se pretende dizer, entretanto, que a Lei Maria da Penha, assim como outras legislações não sejam necessárias para a regulações de certos atos sociais. O que se quer demonstrar, por conseguinte, é que a Lei Maria da Penha, entre outras, foi elaborada para responder anseios populares e midiáticos, sem que se fizesse um estudo prévio e, não menos importante, sem que se adotassem níveis de racionalidade legislativa para a sua criação. Lembra-se, outrossim, que tal Lei (Lei Maria da Penha) teve intensos reflexos no Código Penal e, inclusive, na nova Lei no Feminicídio – Lei nº 13.104/2015). Muitos doutrinadores falam ainda que a influência na mídia na criação das Leis é tão relevante que pode ser enquadrada como um “quarto poder”. Segundo João Queiroz (apud MASCARENHAS, 2010): a “comunicação social” vem reclamando o papel e esta função mediadora e, em causa deste atributo, pretende ser um ‘cão de guarda’ (watchdog) dos interesses públicos e, nesta medida, simbolicamente, um ‘4º Poder’ social e público que vigia e controla os poderes legislativos, executivo e judicial.

É claro que, do ponto de vista constitucional, não há como atribuir a designação de quatro poder à mídia. Mas não há como esconder que a mídia ganhou tal alcunha em razão da sua falta de legitimidade e da falta de controle existente sobre os órgãos de comunicação. Mascarenhas (2010) refere que a imprensa possui sim um papel de vigilância dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A diferença é que a mídia não se preocupa com o interesse público, mas, sim, com o interesse “do público”. E essa forma de manipulação de ideias em razão de determinados

interesses

enseja

um

comportamento

midiático

supra 180

constitucional. Não se pode esquecer de destacar que, ainda que seja minoritária, a mídia não tendenciosa e responsável é importante para o desenvolvimento do Estado Democrático, haja vista que busca revelar as informações verdadeiras dos acontecimentos, sem que haja qualquer influência externa, seja oriunda do governo, seja oriunda de instituições privadas. Porém, como dito, tal mídia quase inexiste no cenário brasileiro. Como é sabido, a mídia procura relatar acontecimentos que atraem, divertem, emocionam e chocam, gerando uma sensação de insegurança na sociedade. E isso acaba “pressionando” o Poder Legislativo para a implantação de uma legislação mais severa, ainda que não se tenha um estudo técnico eficaz da correta aplicação da Lei Penal. Giovani Santim (apud MASCARENHAS, 2010) refere que a imprensa trata os problemas políticos, sociais e econômicos como um “paravento”. Em outras palavras, a mídia alimenta uma cultura do medo por meio da criação de riscos que ameaçam a segurança e a ordem, consoante o interesse de determinados grupos sociais. Nota-se, portanto, que a mídia se detém em divulgar apenas notícias mórbidas, grotescas e cruentas, pois o objetivo é provocar uma sensação de choque no leitor/telespectador e, inclusive, no próprio legislador que acaba se corrompendo pela pressão midiática, muitas vezes distorcida. A mídia, de fato, pode ser considerada um “quarto poder”, pois pode realmente selecionar, falsear e sobretudo silenciar acerca de determinados acontecimentos. Nesse sentido, cita-se trecho de Guareschi (apud MASCARENHAS, 2010): Se é a comunicação que constrói a realidade, quem detém a construção dessa realidade detém também o poder sobre a existência das coisas, sobre a difusão das ideias, sobre a criação da opinião pública. Mas não é só isso. Os que detêm a comunicação chegam até a definir os outros, definir determinados grupos sociais como sendo melhores ou piores, confiáveis ou não-confiáveis, tudo de acordo com os interesses dos detentores do poder. Já foram feitos estudos interessantes sobre o que determinados povos pensam de outros povos. Essa opinião está baseada, principalmente, nas informações

181

que as pessoas recebem. Em estudos e pesquisas realizados no campo da comunicação, verificou-se que a opinião pública é preparada com informações sobre determinadas populações de tal modo que isso pode chegar a justificar até mesmo uma invasão de um país adversário. A pesquisa de Hester (1976) mostrou que, de cada 100 notícias enviadas do bureau das Associated Press de Buenos Aires para o quartel central dos Estados Unidos, apenas 8 eram aproveitadas. Mas o mais sério era que das 8 aproveitadas, 4 eram notícias que falavam de violência e criminalidade – quando das 100 originais, apenas 10 eram sobre o assunto. Com isso, os países informados por essas agências vão formando opinião, construindo imagens sobre determinados povos, identificando-os como criminosos e violentos. Não é difícil, posteriormente, legitimar uma invasão ou retaliações sobre populações que, para a grande maioria, são criminosas e violentas (grifo nosso).

Não há dúvidas, por conseguinte, que o Poder Legislativo sofre uma “pressão” na elaboração das leis penais ante o clamor público para a efetivação dos direitos. O crime continua sendo tratado como um problema de interesse público. A mídia, portanto, intensifica a preocupação da sociedade quanto à delinquência e à ausência de segurança pública. Ocorre que, em busca da repressão penal, na maioria das vezes, a figura do “inimigo”, representada por atores das classes sociais populares, é demonizado pela mídia, promovendo,

assim,

uma

produção

legislativa

penal

precipitada

(MASCARENHAS, 2010). Não sequer aqui apenas “criticar” as Leis Penais criadas no Brasil por ingerência da mídias e, consequentemente, da população, mas, sim, demonstrar que muitas vezes a pressão política acaba deixando de lado, como dito, os aspectos técnicos e teóricos importantes que devem ser observados pelos legisladores para a criação de determinada norma. Para Miguel Carbonell (apud HOMMERDING e LYRA, 2014, p. 107): [...] os meios de comunicação, que se relacionam intimamente com o poder econômico, serão as forças principais que determinarão, em realidade, a conduta dos indivíduos e pressionarão os poderes públicos para obterem qualquer tipo de benefícios, nem sempre lícitos.

A criação da legislação no Brasil, especialmente a Lei Penal, está vestida de simbolismo que, aos olhos do povo, passa a ser considerada a 182

solução adequada para a punição e prevenção de certos acontecimentos graves. Porém, tal legislação na sua essência (criação) vê-se corrompida pela influência política/popular e midiática, seja pela pressão eleitoreira ou oposicionista, seja pela necessidade de uma rápida solução dos conflitos apresentados, o que, consoante referido, não traz o resultado esperado, a solução do conflito social. E a prova da corrupção do sistema penal por outros subsistemas evidencia-se no fato de que, muito embora haja o endurecimento penal e a explosão carcerária, a criminalidade não está decrescendo (HOMMERDING e LYRA, 2014). Nesse sentido, colaciono dados extraídos do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias realizado em junho de 2014 que demonstra o aumento da população carcerária (2014, p. 15): Entre 2000 e 2014, a taxa de aprisionamento aumentou 119%. Em 2000, havia 137 presos para cada 100 mil habitantes. Em 2014, essa taxa chegou a 299,7 pessoas. Caso mantenha-se esse ritmo de encarceramento, em 2022, a população prisional do Brasil ultrapassará a marca de um milhão de indivíduos. Em 2075, uma em cada dez pessoas estará em situação de privação de liberdade.

E tal problemática permanece, consoante ensina François (1999, pp. 378 e seguintes), talvez porque “o Direito Penal necessita de tempo para proceder a uma auto-observação (tempo de aprendizagem) e forjar uma dogmática jurídica orientada pelas consequências”. Não há dúvidas, por conseguinte, que o controle penal é marcado por uma intervenção de outros sistemas que “pressionam” para a criação de uma Lei Penal que reafirme, ainda que simbolicamente, certos valores e o consenso social. É por isso que, de regra, a Lei Penal não resolve conflitos e problemas sociais. Acredita-se, portanto, que a solução para esse impasse pode estar nas teorias de Luhmann que entendem que o sistema jurídico necessita de uma “clausura operativa” a fim de impedir que a pressão social ou uma determinada campanha dos meios comunicativos possa modificar o direito. E mais: o legislador, quando da elaboração de determinada Lei, deve ter a visão do conjunto, da filosofia moral, da política, dos interesses opostos 183

dos grupos que pressionam a elaboração de determinada legislação, entre outros fatores principiológicos, o que, pelo que se vê, não é o que está ocorrendo em nosso país.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Acredita-se que o Direito Penal Brasileiro está em crise e, portanto, precisa ser reformulado. É necessário que o legislador, quando da criação da Lei Penal esteja atento às influências de outros subsistemas, como econômico, cultural, etc. (alopoiesis). E mais: cabe ao legislador abandonar algumas ideias trazidas pela mídia e, inclusive, estar atento as pressões emanadas da globalização e dos interesses eleitoreiros, sob pena de corrupção do sistema penal como um todo, o que, convenha-se, vem ocorrendo com a legislação vigente, sobretudo a penal. Há, por conseguinte, a necessidade de que seja realizado um estudo prévio efetivo acerca da efetividade de determinada Lei, buscando verificar se a norma que entrará em vigor realmente irá solucionar os problemas da criminalidade ou apenas será destinada para “tranquilizar a sociedade atormentada”. A nação não necessita de legislações simbólicas, mas, sim, de projetos e políticas que resolvam os problemas sociais, como é o caso da criminalidade. REFERÊNCIAS: BRASIL. Ministério da Justiça - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Disponível em: . Acesso em 8 ago. 2015. HOMMERDING, Adalberto Narciso; LYRA, José Francisco Dias da Costa. Racionalidade das leis penais e legislação penal simbólica – 1. ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2014. JAKOBS, Gunther. CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo: noções e críticas - 4. ed. Tradução André Luís Callegari e Nereu Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. LIRA, Cláudio Rogério Sousa. Direito Penal na pós-modernidade: a racionalidade legislativa para uma sociedade de risco - 2ª edição. Curitiba: Juruá. 2015. 184

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185

A CRIMINALIZAÇÃO DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA E SEUS EFEITOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO1 José Ricardo Maciel Nerling2 Regina Gütler Carvalho3 1. INTRODUÇÃO A conduta de divulgar fotos ou vídeos com cena de nudez ou ato sexual sem autorização da vítima, conhecida como a pornografia de vingança, tem se tornado algo comum nos dias de hoje. A popularização das redes sociais e a democratização da internet, dos computadores e dos celulares smartphones, vieram a facilitar esse tipo de conduta, causando inúmeros transtornos às vítimas, em sua maioria do sexo feminino, sendo que algumas chegaram ao extremo de cometer suicídio, uma das consequências mais lastimáveis desse tipo de conduta. O presente artigo é o resultado de um estudo dessa situação. Buscouse saber desde a origem do termo, como ele é tratado em alguns países, como os Estados Unidos, Japão, Inglaterra, e como estamos tratando desse assunto no Brasil. Além disso, discutimos as consequências dessa conduta para as vítimas e para os autores, bem como de uma possível criminalização desse ato, trazendo os projetos de leis sobre o tema, como forma de coibir novos casos e novas vítimas. Além de discutir a possível criminalização da conduta de divulgar indevidamente imagens e vídeos de outrem, o presente artigo também ressalta a importância da discussão da moral e de gênero, já que estes são, visivelmente, os pilares de uma possível melhora do contexto em que vivemos quando o assunto é pornografia de vingança. 2.CONCEITO E ORIGEM DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA O termo “pornografia de vingança” é ainda muito recente, passou a ser Artigo Científico realizado no decorrer do curso de Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ. 2 Acadêmico do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ. [email protected] 3Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ. [email protected] 1

186

discutido – e definido - no período que compreende os últimos 5 (cinco) anos, sendo, portanto, um objeto de estudo novo, um tema ainda jovem, tanto no quesito social, quanto judicial. Em resumo, pornografia de vingança é o ato de divulgar indevidamente material íntimo de outrem. Embora esse ato tenha tomado grandes proporções recentemente, o mesmo tem início ainda nos anos oitenta (1980), quando revistas eróticas masculinas criaram, nos Estados Unidos, sessões para divulgação de cenas produzidas pelos próprios leitores. A terminologia também tem origem norte-americana, e decorre do termo “revenge porn”, traduzido literalmente para o português como “pornografia de revanche”. Vale citar que também veio do país ianque a primeira resposta a esse ato. O estado da Califórnia foi pioneiro ao introduzir na legislação penal a pornografia de vingança, através de lei sancionada em 2013 pelo então governador Jerry Brown, que a tornou crime. A proposta foi do senador republicano Anthony Cannela, e passou a prever prisão e multa4 aos responsáveis. Seguindo a linha, como resposta ao fenômeno e aos suicídios cometidos pelas vítimas, países como o Japão (2014), por exemplo, promulgaram legislação pertinente ao tema5, e outros, como a Inglaterra, discutem atualmente a sua criminalização6. A pornografia de vingança é mais um ato que reflete a sociedade contemporânea, marcada pela individualização social, pela facilidade de acesso às tecnologias e pela universalização instantânea das informações e mensagens ao redor do globo. A popularização das redes sociais e a democratização da internet, dos computadores e dos celulares smartphones, são alguns dos meios que vieram a facilitar que a pornografia de vingança viesse a se tornar contumaz nos finais de relacionamentos amorosos e sexuais. Todavia, de maneira alguma são os responsáveis por seu acontecimento, vez que a causa desse problema não é tecnológica, e sim humana.

4 5 6

Prevê até 6 (seis) meses de prisão e multa. Prevê até 3 (três) anos de prisão e multa. Projeto deve impor pena de até 2 (dois) anos de prisão.

187

A pornografia de vingança é, na verdade, reflexo de um contexto social decadente, onde teses mais conservadoras ainda propõem que um parceiro seja propriedade do outro, retirando de outro ser humano sua liberdade de escolha, sua dignidade, e denegrindo sua imagem, num ato desmedido de completo desrespeito e intolerância. Desde os primórdios da humanidade, a rejeição amorosa e sentimental é encarada como algo a ser punível, algo a ser vingado por aquele que foi deixado7. Sabe-se, por exemplo, que o próprio adultério, em algumas culturas antigas, tinha por pena a morte de quem o cometia. Essa cultura retributiva se mantém viva até hoje, seja na forma legal, como, por exemplo, em alguns países em que a Sharia8 prevê pena capital, ou na forma costumeira, muitas vezes velada, onde, na prática, ainda existe o

assassinato

de

pessoas

por

seus

companheiros(as)

ou

ex-

companheiros(as), principalmente motivados por ciúmes, sentimento de propriedade e a não aceitação do fim do relacionamento. A divulgação de imagens íntimas deriva desse mesmo tipo de ideologia e sentimento possui igual “teor prático”, refletindo uma diferente atitude diante da mesma motivação arcaica. O que a distingue, entretanto, é o fato de ser realizada por meios tecnológicos recentes, como a internet, redes sociais, etc. Todavia, ainda visa agredir, destruir, punir e vingar, tomando na atualidade, frequentemente, proporções gigantescas, até mesmo globais, conforme bem expõe a escritora Maria João Marques, estas exposições – maioritariamente de mulheres – são primas afastadas daqueles ataques mais violentos que as mulheres sofrem, às mãos de maridos e familiares, noutras partes do mundo, quando mostram a ousadia de serem donas dos seus narizes – ou, na versão Ocidente, terem vida sexual. Ácido vertido na cara para permanentemente desfigurar as senhoras insubmissas e assim lhes arruinar a perspectiva de encontrarem novo marido. Ou rega com combustível e fogo a seguir. (...) As possibilidades são tantas quantas as imaginações sádicas. O fundo é igual: mostrar que as mulheres não podem abandonar uma relação impunemente (MARQUES, 2015).

7Vale

ressaltar que, no Brasil, faz apenas 10 anos que o crime de adultério foi revogado, o que se deu através da lei 11.106/05. Ademais, não se pode olvidar que até mesmo as discussões acerca do divórcio ainda são muito recentes no ordenamento jurídico brasileiro. 8Lei Islâmica adotada em países que professam oficialmente a fé muçulmana.

188

Embora haja vítimas de ambos os sexos, a maior parte delas, nesse caso, são mulheres, por conta de uma vulgarização da sexualidade feminina. A pornografia de vingança reforma uma visão machista da sexualidade, como se a divulgação de imagens íntimas fosse positiva para os homens e negativa para as mulheres. É como se não fosse aceito que a mulher possa expor sua sexualidade, sua natureza, seu desejo; passa, ao mesmo tempo, a mensagem de que é, para o homem, motivo de orgulho relacionar-se e demonstrar o fato. Demonstrando a afirmativa acerca da cultura machista, recentemente, uma dupla do estilo “sertanejo universitário”, chamada Max e Mariano, lançou uma música intitulada “Eu vou jogar na internet”, onde faz apologia à pornografia de vingança. Na letra, os cantores ameaçam a vítima – que, ressaltamos, é do gênero feminino -, conforme se transcreve da letra: (...) semana passada mesmo, a gente ficou. Sem que você percebesse, eu gravei de nós um vídeo de amor. (...) Eu vou jogar na internet, nem que você me processe. Eu quero ver a sua cara quando alguém te mostrar; quero ver você dizer que não me conhece (Max e Mariano,2015).

Essa questão cultural é basilar até mesmo para a definição de um bem jurídico e sua necessidade de tutela. Conforme especifica o autor LUIZ REGIS PRADO: (...) procura-se conceber o bem jurídico como valor cultural – entendida a cultura no sentido mais amplo, como um sistema normativo. Os bens jurídicos têm como fundamento valores culturais que se baseiam em necessidades individuais. (...) os valores culturais transformam-se em bens jurídicos quando a confiança em sua existência surge necessitada de proteção jurídica (PRADO, 2003, p. 44).

No caso da pornografia de vingança, há um grave dano moral, pois está em jogo a dignidade humana, a privacidade, a imagem, a moralidade. Existem bens que não se limitam aos patrimônios, são bens que compõem a própria pessoa em sua subjetividade, conforme explica CAHALI, ao conceituar os danos morais:

189

Parece mais razoável (...) caracterizar o dano moral pelos seus próprios elementos; (...) ‘como a privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, a tranquilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a integridade física, a honra e os demais sagrados afetos’ (CAHALI, 1999, p. 20).

Há,

portanto,

agressão

a

bem

jurídico

reconhecido

social

e

moralmente, o que confirma a necessidade de criminalização, com base no que afirma Raúl Cervini (2002, p. 204) ao tratar da avaliação moral na dinâmica legitimadora da norma penal, “de que o fim último do Direito é a regulação de um determinado comportamento externo, que consiste em um fazer ou omitir, procurando salvaguardar bens jurídicos.” Nem

sempre

a

conduta

se



entre

pessoas

envolvidas

em

relacionamentos ordinários. Isso pode ocorrer até mesmo entre pessoas que sequer se conhecem pessoalmente. A tecnologia tem dado diversos recursos para que pessoas possam, facilitando, em muitos casos, até mesmo a ação de pedófilos, que convencem menores, utilizando-se de sua ingenuidade, através de insistentes elogios, a mostrarem através da web cam partes de seu corpo. Ademais disso, tornaram-se comuns o “sexo pela internet” ou “sexo virtual”, em que pessoas tiram suas roupas e realizam cenas com estímulos sexuais em tempo real, e os já populares “nudes9”, em que a própria pessoa envia para alguém suas “fotos quentes”, nua, seminua ou somente mostrando seus órgãos genitais, revelando, assim, suas carências afetivas e suas taras. Já existem até mesmo sites, programas e aplicativos, especializados no assunto, que objetivam unicamente facilitar que os interessados tenham acesso ao “sexo ao vivo”. A utilização dos mesmos é livre e consensual; mais que isso, ganham espaço e um maior número de adeptos. Fazendo-se um parêntese, podemos fazer uma outra análise, entendendo que essa seja uma característica do que o filósofo Zygmunt Bauman chama de “sociedade de consumidores”:

9Deriva

da palavra “nudez”.

190

A ‘subjetividade’ do ‘sujeito’, e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. A característica mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em mercadorias (p. 20).

E, de fato, é o que acontece. Voltando ao que se tratava, entende-se que padrões morais acabam fazendo com que a divulgação de um momento de intimidade venha a ser utilizado como estratégia de ataque e violência, acarretando, assim, grave humilhação social para milhares de mulheres, que têm suas vidas afetadas diretamente pela atuação do agressor e da própria sociedade, que a coloca, mesmo sendo vítima, na posição de culpada pelo ato, fazendo-a se sentir dessa forma. Isso, em alguns casos, acarreta doenças psíquicas, o uso de álcool e drogas, e até mesmo o cometimento de suicídio. Das respostas do Poder Judiciário brasileiro, especialmente o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, podemos observar a reparação dos danos materiais e morais pela divulgação de vídeos com cenas de sexo, através de indenização pecuniária, conforme se vê, por exemplo, nas Ementas das Jurisprudências nº 70054368287 e 70064563927 daquele órgão. Todavia, não se tem respostas efetivas na esfera penal, vez que faltam elementos jurídicos para tanto. Contudo, nesses últimos tempos, com o crescente casos de crimes cometidos pelos meios virtuais, com a divulgação de imagens e vídeos íntimos, vitimando principalmente mulheres, buscou-se criar mecanismos que inibam esse tipo de conduta. A Lei n. 12.737/12, conhecida como lei Carolina Dieckmann, foi criada devido ao caso da atriz Carolina Dieckmann que teve seu computador invadido e seus arquivos pessoais subtraídos, inclusive com a publicação de fotos íntimas que rapidamente se espalharam pela internet através das redes sociais. Essa lei acrescentou ao Código Penal os artigos 154-A e 154-B, tipificando como crime a invasão de dispositivo informático, da seguinte forma: Art. 154-A Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de

191

segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita.

Como se vê, o art. 154-A pode até ser aplicado aos casos envolvendo aspectos sexuais, mas não foi elaborada especificamente para isso, não tem previsão

de

um

crime

específico

para

quem

simplesmente

divulga

informações pessoais, de cunho íntimo, de outrem, não podendo ser aplicado no caso da pornografia de vingança. Pode-se aplicar somente quando a divulgação provém de uma invasão de dispositivo informático. O projeto de lei n. 5.555/13, de autoria do Deputado Federal João Arruda (PMDB-PR), prevê a alteração da Lei n. 11.340 - Lei Maria da Penha-, o objetivo é criar mecanismos para combater condutas ofensivas contra a mulher na Internet ou em outros meios de propagação da informação, sob a justificativa de que Há uma dimensão da violência doméstica contra a mulher que ainda não foi abordada por nenhuma política pública ou legislação, que é a violação da intimidade da mulher na forma da divulgação na Internet de vídeos, áudios, imagens, dados e informações pessoais da mulher sem o seu expresso consentimento (PL 5.555/2013).

Chamado de Maria da Penha Virtual esse projeto de lei possui a intenção de proteger a mulher da violência praticada também nos meios virtuais, com a divulgação de imagens e vídeos que venham violar sua privacidade, como forma de atingir sua honra e imagem perante a sociedade. Esse tipo de conduta geralmente é praticada por quem possui intimidade com a vítima, em que cônjuges, ex-cônjuges, namorados, etc, se valem da condição de coabitação ou de hospitalidade para obter tais registros, divulgando-os posteriormente, com a finalidade de prejudicar a mulher. O problema se torna ainda maior quando o agente usa esses arquivos para ameaçar ou extorquir a vítima, tornando ainda mais cruel a situação em que a mesma se encontra. Além disso, visou-se através desse projeto de lei aproveitar todo o sistema já instituído com a Lei Maria da Penha aqui no Brasil, e que é exemplo para todo o mundo, como forma de tornar mais rápida e eficaz a 192

punição de quem pratica a conduta aqui discutida. Já quando esses casos envolvem criança e adolescente, aplica-se a Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, alterado com a Lei 11.829/2013. A matéria dessa lei foi justamente a tipificação de crimes contra crianças e adolescentes na internet, como assim traz o art. 241-A do ECA: Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

Visto de maneira geral, a Lei n° 11.829/08 trouxe alterações de suma importância, uma vez que passou a tipificar várias condutas que antes eram silenciadas pela legislação e a preencher determinadas lacunas. Portanto, quando o assunto é a divulgação de materiais pornográficos de crianças e adolescentes, aplicam-se os dispositivos trazidos a partir do art. 240 do ECA, visando a proteger o bem jurídico da vida, da liberdade, privacidade, etc. É importante frisar que as modificações trazidas pela Lei n° 11.829/08 são específicas e superiores àquelas contidas no Código Penal, afastando, assim, a aplicação dos tipos penais que porventura sejam semelhantes. Cabe salientar, também, a importância de a lei n. 12.965/2014, conhecida como Marco Civil na Internet quando o assunto é pornografia de vingança. Sancionada pela presidente Dilma Roussef há um pouco mais de um ano, ela tem por objetivo trazer algumas mudanças para o uso da internet no Brasil, estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres. Salienta-se da importância de haver leis regulamentando o uso da Internet, pois como disse o advogado criminalista Eduardo Muylaert (apud REIS, 1996, p. 53), “o controle da Internet é difuso e cooperativo, para não dizer anárquico. Ela cresceu livre de censura. Apesar disto o uso que tem sido feito da Internet suscita uma pluralidade de questões do ponto de vista da ética e também do Direito Penal”. Com o Marco Civil da Internet, portanto, pessoas vítimas de violações 193

da intimidade, da pornografia de vingança, podem solicitar a retirada de conteúdo, de forma direta, aos sites ou serviços que estejam hospedando este conteúdo, caso contrário, o provedor que disponibilizou tais conteúdos será

subsidiariamente

responsabilizado

pela

violação

da

intimidade

decorrente da divulgação, como traz o art. 21: Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

Por este e outros motivos é importante que passem a existir regras sobre o uso de imagem no ambiente digital. Sendo assim, as vítimas de violação de intimidade na internet podem solicitar a retirada de conteúdo, de forma direta, aos sites ou serviços que estejam hospedando este conteúdo, e caso não consigam exclusão imediata devem procurar amparo legal, responsabilizando subsidiariamente o provedor que divulgou os dados. No Código Penal, portanto, a conduta de divulgar materiais íntimos de outrem, com a intenção de vingança, quando não se enquadra na lei Maria da Penha, como violência doméstica, ou no ECA, como pedofilia, se enquadra no crime de difamação, cuja conduta é imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação, tendo como detenção de três meses a um ano, que se aplica a quem produziu e a quem repassa imagens íntimas a título de vingança. Essa pena, porém, na grande maioria das vezes é substituída por pena alternativa, como pagar cesta básica ou prestar algum serviço à comunidade, sem qualquer discussão comunitária e conscientizadora acerca dessa prática. Portanto, o maior problema é o descaso com esse tipo de conduta, que dá a sensação de impunidade à vítima, fazendo com que a mesma se sinta injustiçada para além de todo abalo psicológico já sofrido. O projeto de Lei n. 6.630/13, de autoria do Deputado Federal Romário (PSB/RJ) foi criado com o objetivo de acrescentar artigo ao Código Penal, tipificando a conduta de divulgar fotos ou vídeos com cena de nudez ou ato 194

sexual sem autorização da vítima. A diferença é que nesse projeto de lei não há diferenciação de gênero, como o projeto de lei n. 5.555/13, que amplia a quantidade de delitos abrangidos pela Lei Maria da Penha, ou seja, delitos cometidos somente contra a mulher. O PL 6.630/2013 incluiria artigos no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual no Código Penal, com a seguinte redação Art. 216-B. Divulgar, por qualquer meio, fotografia, imagem, som, vídeo ou qualquer outro material, contendo cena de nudez, ato sexual ou obsceno sem autorização da vítima. Pena – detenção, de um a três anos, e multa. §1º Está sujeito à mesma pena quem realiza montagens ou qualquer artifício com imagens de pessoas. §2º A pena é aumentada de um terço se o crime é cometido: I - com o fim de vingança ou humilhação; II – por agente que era cônjuge, companheiro, noivo, namorado ou manteve relacionamento amoroso com a vítima com ou sem habitualidade; §3º A pena é aumentada da metade se o crime é cometido contra vítima menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa com deficiência.”

A criminalização da conduta de divulgar imagens íntimas também é uma forma de proteção à vítima, vez que também visa coibir que essa venha a sofrer outros tipos de violências decorrentes da exposição, como situações vexatórias,

perda

do

emprego,

abandono

familiar,

propostas

para

prostituição, perseguição virtual, entre outros. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A tipificação dessa conduta é mais uma possível resposta a um ato que merece total repúdio da sociedade. Cabe a nós analisar o contexto social, que ainda reconhece a sexualidade e o desejo feminino como motivo de degradação moral. A lógica está completamente errada: no lugar de condenar moralmente quem publicou as imagens e vídeos a título de vingança, condenam a vítima por ter feito o que está exposto nos arquivos. Portanto, uma possível solução para esse crescente problema social está além de punir quem pratica o ato violar a intimidade e a vida privada de outrem dessa forma, mas em criar uma conscientização de igualdade de gênero. 195

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197

UMA INTRODUÇÃO AS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO BRASIL Antônio Paulo Soares Lopes da Silveira1 Mariana Azambuja2 1. INTRODUÇÃO O que é loucura? Simplesmente um rótulo? Uma condição? Uma verdade? Um sentido? Um destino? Uma determinação? Ao passar dos séculos constatamos o fascínio humano pela necessidade de determinar a natureza humana, e, consequentemente, a normalidade quanto homem que se determina no mundo por sua própria espécie e razão. A cultura e a história desenvolveram perfis estéticos e subjetivos de normalidade, os quais devem ser seguidos por todos. Nesse passo, a normalidade se impõe como uma realidade construída e constituída socialmente; a sociedade vai elevar a classificar o que se tem pelo aceito, o termo médio do que devemos ser. Assim, sempre será esperada uma forma de agir dos indivíduos pertencentes a certos grupos culturais. Entretanto, nem sempre os indivíduos perseguem essa proposição dos grupos de ser portarem como o esperado. No momento em que os objetivos traçados na ação individual não se coadunarem com os mandamentos legais, tal conduta poderá incorrer no âmbito criminal, e, se constatado que o indivíduo apresenta-se como inimputável ou semi-imputável, em um prisma jurídico, este responderá por essa inaptidão de viver em sociedade, recebendo em contrapartida uma medida de segurança, capaz de prevenir que atue contra a segurança da coletividade – normal. Necessário introduzir o artigo citando, também, o poema de um dos pacientes internados na instituição de tratamento psiquiátrico que foi tema do documentário “A casa dos mortos”. 1Mestrando

em Ciências Criminais pela PUCRS, Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS, e Advogado atuante na Criminal e Cível. 2Mestranda em Ciências Criminais pela PUCRS, Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS, e Advogada Criminalista.

198

Em célebre passagem, este paciente compositor, ou compositor paciente, nos brinda com a seguinte reflexão “(...) ‘A psiquiatria é a mais atrasada das ciências’ – Parafraseio Jânio de Freitas porque a casa dos mortos, que é a metáfora arquitetônica pela qual designo a psiquiatria, pede que se fale contra si mesma!”3 Passando à análise mais ortodoxa, a construção do sistema brasileiro de internações manicomiais tem todo seu liame precedido e esculpido dentro do Código Repressor, portanto, coligadas às práticas penalísticas. Sobre esse aspecto, a dogmática no trabalho antecedeu à construção crítica, pois essa ordem de discursos propiciou a demonstração do distanciamento entre os institutos jurídicos, penalmente constituídos e postos, com a dura realidade prática que se apresenta no cotidiano das instituições totais. Nesse ponto, consabido que as instituições de internação possuem carências tanto de estrutura quanto de apoio estatal. De mesma forma, inegável que as práticas de internação estão cada vez mais em cheque na forma clássica posta, pois são escassos os resultados benéficos, resultando apenas como a exclusão do indivíduo indesejável do convívio social. Portanto, é imprescindível que se proponha o debate quanto à temática, tendo em vista a precariedade deste método de tratamento quanto às medidas de segurança, deve ser negado o sistema vigente, para que de alguma forma mitigue os alicerces da verdade científica posta, propiciando a forjadura de novas concepções quanto o tratamento da matéria. 2. APONTAMENTOS SOBRE CULPABILIDADE, INIMPUTABILIDADE E PERICULOSIDADE. A consciência de que deveriam existir sanções criminais que não fossem as penas surgiu com o Projeto do Código Penal suíço de Carl Stoos em 1983 e o “contra projeto” de V. Liszt e Kahls em 1911(FERRARI, 2001, p.

Poema consultado no site: . Acessado em: 26/08/2015. 3

199

30). No Brasil, a reforma penal de 1984 adotou o sistema vicariante em nosso ordenamento jurídico, ou seja, afastou a aplicação dupla da pena e medida de segurança para os imputáveis e semi-imputáveis, pois a aplicação concomitante atentaria contra o princípio do ne bis in idem. Portanto, o imputável que cometer uma conduta ilícita será sujeito à pena correspondente ao delito, enquanto o inimputável à medida de segurança. Ao semi-imputável caberá pena ou medida de segurança, mas nunca as duas, o que difere do sistema duplo binário.Assim, para o entendimento sobre a medida de segurança é de suma importância que se aponte

breves

conceitos

do

que

se

teria

por

inimputabilidade

e

periculosidade. Verifica-se que a imputabilidade é o elemento que se destaca na estrutura

da

culpabilidade,

sendo

admitida

por

muitos

como

seu

pressuposto. Assim, quando da sua ausência ou imperfeição, por falta ou debilidade de seus componentes, se exclui ou se atenua a culpabilidade, e, consequentemente, a responsabilidade penal (ANÍBAL, 2005, p. 85). Sobre a culpabilidade, caracteriza-se como um juízo reprovação sobre o sujeito que realiza algum tipo de injusto penal. Os fundamentos que o compõem ramificam-se: na capacidade geral de compreender e querer as proibições ou mandados da norma jurídica (capacidade de culpabilidade), na necessidade do conhecimento real ou possível da proibição concreta do tipo de injusto específico (consciência real ou potencial da antijuridicidade), por fim,na normalidade das circunstâncias em que ocorreu o fato (exigibilidade de comportamento diverso).” (SANTOS, 2002, p. 173). Importante ressaltar que a culpabilidade é a forma utilizada para a mensuração da pena cominada ao agente. Portanto, a pena é proporcional à culpa. Nesse sentido, fica claro que existe a necessidade da configuração de responsabilidade subjetiva do agente, não se elevando uma responsabilidade objetiva, a qual para configuração basta apenas uma associação casual entre a conduta e um resultado de lesão ou perigo para um bem jurídico. Além disso, verifica-se que a responsabilidade penal é sempre subjetiva, 200

sendo indispensável à verificação da culpabilidade do agente (BATISTA, 2007, p. 104). Assim, imputabilidade

como e

elementos a

da

periculosidade,

culpabilidade necessários

apresentam-se para

esclarecer

a a

inimputabilidade dos agentes os quais recaíram as medidas de segurança. A imputabilidade do agente é reconhecida quando este não se encontra no estado normal de autodeterminação, e, portanto, não possui a capacidade de compreender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento (QUEIROZ, 2008, p.389). Deste modo, para caracterização dos indivíduos inimputáveis que não possuem consciência da prática do injusto penal, necessária verificação de um processo biológico que lhes tenha alterado, de modo permanente ou transitório, as funções psíquicas e determinada perda ou suspensão da capacidade normal de entendimento e vontade exigida pelo Direito Penal punitivo (ANÍBAL, 2005, p. 85). Segundo Cezar Roberto Bitencourt, para o reconhecimento da existência de incapacidade de culpabilidade é suficiente que o agente não tenha uma das duas capacidades: de entendimento ou de autodeterminação (BITTENCOURT, 2009, p. 380). No sistema biopsicológico, adotado pelo nosso ordenamento, existem distinções no reconhecimento da imputabilidade, cingindo-se entre os indivíduos menores de 18 anos, pessoas com doença mental, pessoas com o desenvolvimento mental incompleto ou retardado, embriaguez completa por caso fortuito ou força maior, pelo álcool ou substâncias análogas (SANTOS, 2002, p. 187). Em relação à aplicação das medidas segurança, têm-se como incapacidade de culpabilidade as pessoas com doença mental ou com o desenvolvimento mental incompleto ou retardado (SANTOS, 2002, p. 187). Ainda, verifica-se a figura dos semi-imputáveis (ou com imputabilidade reduzida), caracterizados por constituírem uma área limítrofe, um estado intermediário situado na divisa entre a perfeita saúde mental e a insanidade (QUEIROZ, 2008, p.390) Nesse passo, esta redução na capacidade mental influenciará na 201

diminuição de pena, bem como poderá acarretar uma aplicação de medida de segurança. No entanto, a medida de segurança baseia-se na periculosidade do agente, e não na culpabilidade, uma vez que o doente mental, ao praticar um ato contrário ao ordenamento jurídico, torna-se uma ameaça ao convívio social (TEOTÔNIO, 2012, p. 49). Assim, caberá análise da culpabilidade e da periculosidade do agente para se verificar a necessidade da aplicação da medida de segurança, isto é, se o agente é inimputável ou semi-imputável e se demonstra periculosidade. Ainda, a periculosidade deve ser observada de forma concreta, nunca presumida, uma vez que deve ser demonstrada a necessidade da aplicação da medida de segurança, por possuir um caráter preventivo (PRADO, 2011, P. 789). 3. MEDIDA DE SEGURANÇA COMO PENA? Após a realização de uma breve análise dos conceitos basilares que alicerçam as medidas segurança, torna-se necessária a discussão sobre sua natureza, com a imperiosa verificação de seu caráter sancionador. No ordenamento jurídico-penal brasileiro a medida de segurança é tratada como forma de sanção penal, porém tal concepção não é pacífica e possuí grande divergência na doutrina, existindo diferentes posições sobre o assunto. Entende-se que a medida segurança se apresenta como uma resposta do Estado às pessoas com incapacidade pelos atos que praticaram, possuindo uma função preventiva, e, de nenhuma forma, alicerçada na função retributiva, tendo em vista a própria inexistência de consciência da prática do injusto penal pelo agente (FERRARI, 2001, p. 61-62). Neste passo, a medida de segurança “constitui uma providência do poder político que impede que determinada pessoa, ao cometer um ilícitotípico e se revelar perigosa, venha a reiterar na infração, necessitando de tratamento adequado para sua reintegração social” (FERRARI, 2001, p. 2930). 202

Assim, tem-se que sua função se relaciona com o objetivo de evitar que o agente pratique novos delitos. Em contrariedade ao aceito, Raúl Zaffaroni entende que as medidas de segurança não deveriam estar na alçada do direito penal, alicerçando que “a agressividade de um paciente não depende do acaso da intervenção punitiva, mas sim de características da doença que o juízo cível deve valorar em cada caso” (ZAFFARONI, 2011, p. 139-140). Complementa

o

autor,

fundamentando

que

tais

medidas

são

materialmente administrativas e só formalmente penais, e que a rigidez punitiva da forma condiciona a matéria, tornando-se uma medida deveras arbitrária e prejudicial para os pacientes internados (ZAFFARONI, 2011, p. 139-140). Em contrariedade, Magalhães Noronha explicita que não procede a afirmação de que a medida de segurança tem antes caráter administrativo, ao passo que a pena possui caráter jurisdicional. Sustenta que, o Direito de punir emana do Estado-Administração, e, portanto, o direito de impor a medida de segurança, apresenta-se, de mesma forma, como manifestação do jus puniendi (NORONHA, 2003, p. 313). Assinala que, tanto a pena como a medida de segurança tem natureza de ato jurisdicional, pois ambas se filiam à atividade administrativa do Estado, que, por ser de coação indireta, necessita de prévio controle jurisdicional (NORONHA, 2003, p. 313). Para Hans-Heinrich Jescheck, a pena cominadade acordo como grau daculpablidadesó

podeatenderparcialmentea

missãopreventiva

doDireito

Penal.Considerando asegurança da comunidade, pode ser necessáriomais tempode privaçãoda liberdademerecidapelaculpabilidade doinfrator,e de acordo coma sua ressocialização podesernecessária a intervençãosobre ele,sujeitoà

pena

deprisão.Também

de

prisão,

diferentemente

deveprevenir-se,

em

defesa

da da

execução

normal

comunidade,

certas

intervençõessem privaçãoliberdade (JESCHECK, 1993, p. 731). Segundo Jorge de Figueiredo Dias, de acordo com a razão histórica e político- criminal do seu aparecimento, as medidas de segurança visam à finalidade genérica de prevenção do perigo de cometimento, no futuro, de 203

factos ilícito-típicos pelo agente (DIAS, 2007, p. 87). As medidas de segurança são orientadas, ao menos prevalentemente, por uma finalidade de prevenção especial ou individual da repetição da prática de factos ilícitos – típicos. Por outras palavras, as medidas de segurança visam obstar, no interesse da segurança da vida comunitária, a prática de factos ilícitos – típicos futuros através de uma actuação especial – preventiva sobre o agente perigoso. A finalidade de prevenção especial ganha assim, também neste enquadramento, uma dupla função: por um lado, uma função de segurança, por outro lado, uma função de socialização.(DIAS, 2007, p. 87). Assim, podemos observar que as principais diferenças entre a pena e as medidas de segurança consistem em três fatores: enquanto as medidas de segurança

são

aplicadas

aos

inimputáveis

e

semi-imputáveis

excepcionalmente, as penas são dirigidas aos imputáveis;o fundamento da aplicação da pena é a culpabilidade, e das medidas de segurança a periculosidade;as medidas de segurança têm natureza preventiva, e as penas, natureza retributivo – preventivo. 4. PRESSUPOSTOS E ESPÉCIES No ordenamento jurídico brasileiro a previsão de aplicação da medida de segurança incide sobre os inimputáveis ou os semi-imputáveis, como preleciona o artigo 26 do Código Penal.4 Em relação aos semi-imputáveis5, verifica-se que a pena aplicada poderá ser diminuída de um a dois terços, e deverá ser convertida em medida de segurança se o condenado necessitar de especial tratamento curativo. Sobre este aspecto, verifica-se que o ordenamento jurídico 4Art.

26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). 5Art. 26. (...) Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

204

brasileiro se desvinculou do sistema do duplo binário para o vicariante, e, portanto, não existe a possibilidade de aplicação de pena e medida de segurança ao semi-imputável de forma cumulativa (PRADO, 2011, p. 481). A

legislação

reconhecimento

da

delineou,

portanto,

inimputabilidade:

dois a

pressupostos

enfermidade

para

mental;

e

o a

incapacidade de entendimento e/ou autodeterminação. Deste modo, o simples fato de existir patologia psíquica não vai delinear a imputabilidade do agente, uma vez que deve ser demonstrada a influência da patologia na incapacidade de autodeterminação do agente, e, consequentemente sua periculosidade (PRADO, 2011, p. 786). Ainda, no que pese a clara demonstração de periculosidade do indivíduo associada à patologia psíquica, não se pode aplicar a medida de segurança, pois existe a imposição de que ele tenha praticado um fato típico e antijurídico, sem que ocorra nenhuma das causas de justificação (NORONHA, 2003, p. 315). Nesse sentido, constata-se que nosso ordenamento jurídico não permite a aplicação de medidas de segurança pré-delitivas por razões de segurança jurídica, tendo em vista o receio de dar azo ao arbítrio judicial (NORONHA, 2003, p. 315). Sobre outro aspecto, constata-se que os inimputáveis, por não constituírem o elemento da culpabilidade, não cometem crimes. O artigo 97, caput, do Código Penal, prevê como definição da conduta praticada “fato previsto como crime”, isto é, apenas cometem uma ação típica e ilícita (NORONHA, 2003, p. 315). Desta forma, uma vez constatado a prática de injusto penal (ou fato previsto como crime) por inimputável, este será submetido a processo penal, como se imputável fosse ocorrendo à instauração de incidente de insanidade mental. Assim, após avaliação realizada por perito, o magistrado reconhece a imputabilidade do agente, absolvendo-o e aplicando a medida de segurança cabível (internação ou tratamento ambulatorial), qualificando-se como medidas restritivas e detentivas respectivamente (TEOTÔNIO, 2012, p. 50). O artigo 96, inciso I, do Código Penal, prevê os locais nos quais poderá ser cumprida a medida de segurança, elencando os hospitais de custódia e 205

tratamento psiquiátrico, e na falta dos mesmos, em outro estabelecimento adequado. De outra forma, a Lei de Execuções Penais em seu artigo 101, prevê que “O tratamento ambulatorial, disposto no artigo 97, segunda parte, do Código Penal, será realizado no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ou em outro local com dependência médica adequada”. Assim, no caso de internação, obrigatoriamente o condenado deverá ser internado no Hospital de Custódia, sendo a mesma relativizada no caso de inexistência de vagas ou de instituição com essa competência e consequente transferência do sentenciado, a outro local adequado. Entretanto,

verifica-se

que

existem

entendimentos

os

quais

interpretam de forma diversa o texto do Código Penal, no sentido de que o magistrado verificará, no caso concreto, qual a melhor necessidade de tratamento para o condenado (ambulatorial ou internação) na medida em que a medida de segurança possui o caráter preventivo (evitar a ocorrência da prática de novo fato pelo agente), bem como um caráter terapêutico (recuperação e ressocialização dos indivíduos inimputáveis ou semiimputáveis) (CALDEIRA, 2013, p. 14). Por fim, o magistrado deverá fixar um tempo mínimo de cumprimento da medida de segurança, sendo previsto no artigo 97, §2º, do Código Penal, entre 01 ano a 03 anos de duração. Desta forma, a internação ou tratamento ambulatorial será por tempo indeterminado, enquanto a perícia médica não verificar que ocorreu a cessão de periculosidade do condenado (internado), elevando-se os arquétipos elementares da Escola Positivista (Garofalo, Ferri e Lombroso). Importante, apontar que, conforme o artigo 26 do CP, os inimputáveis são isentos de pena, mas são sujeitos à medida de segurança. Nosso Código atual prevê duas espécies de medida de segurança: a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e sujeição a tratamento ambulatorial. Não há um prazo definidor da duração da medida de segurança, devendo

perdurar

enquanto

não

for

constatada

a

cessação

da

periculosidade. Entretanto, a duração da medida de segurança é um tema bastante controverso, uma vez que se verifica o prejuízo causado ao 206

condenado, tendo em vista a falta de critérios para a duração do tempo de pena, mesmo com o Supremo Tribunal Federal considerando o limite máximo de 30 anos6. Ainda, é possível que a pena seja substituída por medida de segurança quando o condenado for considerado semi-imputável ou quando houver a superveniência de doença mental, e o tratamento ambulatorial pode ser convertido em internação. 5. A DOENÇA MENTAL: um recorte analítico em relação ao transtorno de personalidade antissocial Observou-se que, dentre as possibilidades de se reconhecer a inimputabilidade de um indivíduo, o Código Penal Brasileiro elenca a doença mental como uma destas possibilidades. Mister reconhecer que, para o Direito Penal, além do prejuízo pessoal, necessário para o reconhecimento de uma psicopatologia, é de suma importância que o agente tenha praticado algum fato típico previsto como crime. Assim, o termo “doença mental”, no campo penal, relaciona-se com todas as alterações mórbidas da saúde mental, independentemente da causa, referindo-se às psicoses endógenas ou congênitas (esquizofrenias, paranoia, psicose maníaco-depressiva); exógenas (demência senil, paralisia geral

progressiva,

epilepsia);

ou

as

neuroses

e

os

transtornos

psicossomáticos (CATALDO NETO, 2006, p. 164-165). Nesse prisma, restringindo a análise em relação ao transtorno de personalidade antissocial, tentar-se-á fazer um panorama sobre a finalidade das medidas de segurança, do seu propósito, bem como sobre como podemos objetivar novos tratamentos. O transtorno de personalidade antissocial está previsto no DSM-V 301.7 (no CID 10 está previsto como F.60.2), podendo-se dividir seus critérios diagnósticos em quatro pontos.

6HC

98360/RS. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento: 04/08/2009.

207

O primeiro seria coligado a um padrão difuso de desconsideração e violação dos direitos das outras pessoas, com incidência desde os 15 anos de idade, conforme indicado por no mínimo três das seguintes situações: fracasso

em

agir

de

acordo

com

as

normas

sociais

relativas

a

comportamentos legais, conforme indicado pela repetição de atos que originam sanções; tendência à falsidade, sendo verificada por mentiras repetidas, utilização de nomes falsos ou de trapaça para ganho ou prazer pessoal; impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro; irritabilidade e agressividade, conforme indicado por repetidas lutas corporais ou agressões físicas; descaso pela segurança de si ou de outros; irresponsabilidade reiterada, conforme indicado por falha repetida em manter uma conduta consistente no trabalho ou honrar obrigações financeiras; e ausência de remorso, conforme indicado pela indiferença ou racionalização em relações a ter ferido, maltratado ou roubado outras pessoas (DSM-V, 2014, p. 659-663). No segundo ponto, o indivíduo deve ter no mínimo 18 anos de idade. Em terceiro ponto, devem existir evidências da incidência de transtorno de conduta com surgimento anterior aos 15 anos de idade. Ainda, no último ponto, verificar-se-á a ocorrência de comportamento antissocial não se dá exclusivamente durante o concurso de esquizofrenia ou transtorno bipolar (DSM-V, 2014, p. 659-663). Pode-se observar como característica diagnóstica essencial para a verificação da patologia, o padrão difuso de indiferença e violação dos direitos dos outros, o qual surge na infância ou no início da adolescência e continua na vida adulta. Este padrão pode ser conhecido como, psicopatia, sociopatia ou transtorno da personalidade dissocial. Constatando-se que a falsidade a manipulação são aspectos centrais da personalidade do indivíduo (DSM-V, 2014, p. 659-663). Ainda, o indivíduo deve ter no mínimo 18 anos de idade e deve ter apresentado alguns sintomas de transtorno da conduta antes dos 15 anos, bem como padrão persistente e repetitivo de comportamento no qual os direitos básicos dos outros ou as principais normas ou regras sociais apropriadas a idade são violados. De mesma forma, deve ser observada a 208

prática de agressão a pessoas e animais, destruição de propriedade, fraude ou roubo ou grave violação a regras(DSM-V, 2014, p. 659-663). Constata-se que o padrão continua até a vida adulta. Indivíduos com este transtorno da personalidade antissocial não têm êxito em ajustar-se às normas sociais referentes a comportamento legal. Atitudes lesivas ou destrutivas, estando preso ou não. O engano e a manipulação servem para obter ganho ou prazer pessoal – ganhar dinheiro ou sexo – (DSM-V, 2014, p. 659-663). Deste modo, os indivíduos tomamdecisões no calor do momento, sem análise e sem consideração em relação às consequências a si ou aos outros. Observa-se que, tendem a ser irritáveis e agressivos e podem envolver-se repetidamente em lutas corporais ou cometer atos de agressão física – inclusive espancamento do cônjuge ou filho – (DSM-V, 2014, p. 659-663). Também se verifica que possuem pouco remorso pela consequência de seus atos, apresentando, no mais das vezes, indiferença por terem ferido, maltratado ou roubado alguém, racionalizando de modo superficial essas situações. Em certas ocasiões, culpam as vítimas por serem tolas e merecedoras de seu destino (DSM-V, 2014, p. 659-663). Assim, minimizam as consequências danosas de seus atos ou demonstram total indiferença ao resultado que prejudicou outrem. Existem características associadas que apoiam o diagnóstico. Verificase que os indivíduos com transtorno carecem de empatia, com tendência a serem insensíveis, cínicos e desdenhosos em relação aos sentimentos, direitos e sofrimentos alheios. Apresentam uma autopercepção inflada e arrogante, podendo ser execessivamente opiniáticos, autoconfiantes ou convencidos (DSM-V, 2014, p. 659-663). Ainda, possuem um charme desinibido e superficial, podendo ser muito

volúveis

e

verbalmente

influentes.

Em

contrapartida,

são

irresponsáveis e exploradores em seus relacionamentos, e, em certos casos, possuem

vários

parceiros

sexuais,

sem

jamais

ter

mantido

um

relacionamento monogâmico (DSM-V, 2014, p. 659-663). Por fim, o desenvolvimento e o curso crônico do transtorno podem tornar-se menos evidentes ou apresentar remissão conforme o indivíduo 209

envelhece, em particular por volta da quarta década e vida (DSM-V, 2014, p. 659-663). De mesma forma, embora essa remissão tenda a ser especialmente evidente quanto a envolvimento em comportamento criminoso, é possível que haja diminuição no espectro total de comportamentos antissociais e uso de substância. Por definição, a personalidade antissocial não pode ser diagnosticada antes dos 18 anos de idade (DSM-V, 2014, p. 659-663). Neste passo, consigna-se que a psiquiatria há muito vem encontrando dificuldades para lidar com o transtorno antissocial. Atribui-se tamanha dificuldade à falta de sentimentos para com os outros, bem como a falta de empatia e/ou remorso do indivíduo (GAUER, 2006, p. 67-68). A temática é bem controversa, entretanto, o objetivo central para delinear o transtorno foi com a finalidade de discutir as medidas que devem ser adotadas em relação aos casos em que os agentes de delitos são diagnosticados com esse distúrbio. Nesse

prisma,

negar

a

complexidade

dos

fenômenos

que

se

apresentam, é uma forma de acreditar que estamos preparados para lidar com eles (GAUER, 2006, p. 72). Assim, tendo em vista a forma em que estão sendo aplicadas e pensadas as medidas de segurança, verifica-se que não servem de forma alguma

como

método

de

tratamento

para

pessoas

com

transtorno

antissocial. Inseri-los em uma instituição total em nada vai acrescentar para uma melhora do quadro clínico. Sobre isso, Alfedro Cataldo alicerça que “inferimos que a medida de segurança

criminal

exigirá

a

incidência

de

todos

os

princípios

constitucionais, não se submetendo o cidadão a condições que contrariem a dignidade da pessoa humana, proporcionalidade e intervenção mínima” (CATALDO NETO, 2006, p. 72). Assim, como as medidas de segurança apenas reafirmam um sistema punitivo que se pauta pela constrição do “indivíduo perigoso”, e nem de longe busca o mínimo critério socializador e de recuperação, imperioso que se busque novas formas antimanicomiais para tratar da matéria. Por fim, necessária a busca de um conhecimento que possa desvelar 210

de forma a acolher toda a complexidade envolvendo os eventos sociais. A busca de produzir avanços sociais verdadeiros, sem jamais desconsiderar as sutilezas envolvidas (GAUER, 2006, p. 73). 6. UMA ANÁLISE CRÍTICA Observa-se que a aplicação da medida de segurança deveria ter por premissa inicial a recuperação médico-social do agente inimputável, considerado perigoso, que tenha cometido o delito, devendo existir o pressuposto básico da denominada periculosidade para sua aplicação (TEOTÔNIO, p. 2012, p. 47). Entretanto, como elucida Eugênio Zaffaroni, a medida de segurança possibilita ao juiz condenar o indivíduo a internação manicomial, com a premissa inicial de diferenciação da coerção penal, poisnão possui caráter de sanção. Porém, ao contrário senso, o autor afirma que as medidas de segurança, atualmente, integram a coerção penal (ZAFFARONI, 1998, p. 90). Deste modo, o nome dado às medidas de segurança serve apenas para encobrir a perpetuidade da sanção e mais nada. Tornam-se injustas, cruéis e desumanas, tendo em vista a possibilidade de prolongamento da pena, através de repetidas perícias médicas, até o tempo de 30 anos (ZAFFARONI, 2004, p. 781). Verifica-se que, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça, já se manifestaram quanto à necessidade das medidas de segurança respeitaram o princípio da proporcionalidade, isonomia, e, principalmente, o preceito constitucional de que a pena não será perpétua. Ainda,

é

necessário

apontar

a

precariedade

das

instituições

manicomiais, bem como o fato de que, ainda nos dias de hoje, em muitos estados, os doentes mentais que praticam ilícitos, encontra-se segregados em casas de custódia e tratamento psiquiátrico sob o fundamento de uma (suposta) imperiosa necessidade social (FERRARI, 2009, p. 05). Em relação a isso, Goffman aponta o quanto este processo de institucionalização vai desconstruindo a identidade do institucionalizado, ocasionando a perda total de sua autodeterminação, implicando em sua 211

desculturalização, fazendo com que o indivíduo assuma uma personalidade imposta pela instituição e pela sociedade, vivendo em um local fechado com uma vida formalmente administrada, entretanto uma percepção individual que se esvai (GOFFMAN, 1992, passim). Portanto, mais do que devido que tratemos os doentes mentais da mesma forma que os imputáveis, tendo em vista o total desconhecimento da conduta de cada qual, não se pode descurar da dignidade da pessoa humana, reconhecendo limite máximo aplicável de punição a qualquer cidadão (FERRARI, 2009, p. 05). Deste modo, embora tanto o Código Penal quanto a Lei de Execuções Penais não prevejam a possibilidade, deve o magistrado, em atenção ao princípio da individualização da pena, previsto no artigo 5º, inciso XLVI da Constituição Federal, aplicar a medida de segurança da maneira mais benéfica ao caso concreto, tendo em vista as necessidades do tratamento do condenado (TEOTÔNIO, p. 2012, p. 53-54). Portanto, ao analisar a questão apenas pela ótica de uma aplicação legislativa da medida de segurança, compromete-se totalmente a finalidade a que foi destinada, apresentando-se muito mais do que uma prevenção, mas sim uma forma, mesmo que não a mais adequada, de proporcionar tratamento ao individuo que praticou o injusto penal. A medida de segurança não pode de nenhuma forma, transformar-se em uma mera restrição de liberdade do “condenado”, pois assim, como se depreende do documentário “A Casa dos Mortos”, estaríamos condenando os inimputáveis a uma pena muito mais severa do que aos imputáveis, do que até mesmo a uma pena de prisão.7 Neste prisma, deve-se buscar a mudança dos princípios orientadores do trato com os indivíduos diagnosticados com psicopatologias, criando novas modalidades de assistência, que possuam a capacidade de atender de forma mais humana e acolher a clientela dantes recebida pelos hospícios ou manicômios. Logo, buscando formas de atendimento que relevem e desvelam as particularidades de cada caso. Portanto, objetivando e proporcionando a 7

Casa dos Mortos. Direção:

Débora

Diniz.

Disponível

em:

212

aplicação de novos conceitos como cidadania, atenção integral, bem como a alocação do referencial saúde no lugar da doença (CATALDO NETO, 2006, 158-159). Proporcionar a transformação nas relações cotidianas entre os profissionais que trabalham na área de saúde mental, usuários, famílias, comunidade, serviços, buscando, como já referido, cada vez mais a desistitucionalização e humanização destas relações (CATALDO NETO, 2006, 158-159). Nesse sentido, observa-se que a partir do século XX ocorreu o processo de edificação e de crise das instituições totais punitivas (no nosso caso os manicômios). Embora incrustados na cultura ocidental, os manicômios começaram cada vez mais a serem questionados (CARVALHO, 2013, p. 282). As

instituições

totais

se

revelaram

incapazes

de

preservar

minimamente os direitos das pessoas nelas mantidas, sendo questionadas, também, sobre a incapacidade de atingirem o objetivo ressocializador a que foram fundadas (CARVALHO, 2013, p. 282). Assim,

da

mesma

forma

que

o

processo

de

carcerização

e

institucionalização em massa vêm afetando como um todo à sociedade, o processo de internações, mesmo com uma mudança drástica a partir dos movimentos

antimanicomiais,

continua

com

seu

trilhar

desumano

prevencionista. O que deveria ser uma medida terapêutica acaba por se transformar em um dispositivo pior que uma sanção penal, mas sim um exercício de futurologia pseudocientífica, que acaba por tratar vidas como supérfluas (RAUTER, 1997, p. 71-72). Desta feita, voltamos à antiga prática das relações de poder, que se perpetua e se entrelaça na história humana, isto é, novamente voltamos à prática de imputar rotulação de periculosidade a certos grupos sociais, sempre com tratamentos rigorosos e punitivos, típicos de inimigos. Aqui, percebe-se a similitude no tratamento relegado aos estrangeiros, mendigos, leprosos, bruxas, prostitutas, ébrios, toxicômanos, terroristas, a todos os indivíduos que sempre constaram nesse grupo de excluídos sociais, podendo relacionar com um medo coletivo da loucura, o qual não podemos 213

entender. Em outro enfoque, ainda se pretende expor a precariedade do conceito de periculosidade. Observando a aleatoriedade de sua valoração pelo simples fundamento de que não se pode com precisão antever o futuro do indivíduo, o que predispõem a existência de graves erros no procedimento (CATALDO NETO, 2006, 172). No mais, esse conceito de periculosidade está sustentado na interpretação jurídica de laudos psiquiátricos formulados a partir experts no assunto, funcionando na forma de discursos de verdade, pois constituídos com estatuto científico, por pessoas com qualificação para tanto, geralmente com formação em nível superior. (FOCAULT, 2001, p. 08). Por fim, pode-se finalizar a crítica com uma enfática passagem de Goffman: “é uma satisfação pensar que aqueles que exilamos nos hospitais psiquiátricos estão recebendo tratamento, e não castigo, sob os cuidados de um médico.”(GOFFMAN, 1992, p.299). 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho teve como escopo realizar um panorama sobre como as medidas de segurança são aplicadas no ordenamento jurídico brasileiro. De outra forma, objetivou-se, a partir do transtorno de personalidade antissocial, realizar uma crítica ao propósito das medidas segurança, coadunando e fazendo eco com os movimentos antimanicomiais. Nesse sentido, demonstrou-se que o caráter sancionador da categoria jurídica estudada, a qual se apresenta apenas como uma forma de institucionalizar o indivíduo. Observou-se que as instituições de saúde não condicionam

qualquer

tratamento

eficaz

para

patologia

psicológica

apresentada pelo indivíduo. Em outro vértice, ficou delineado que, a medida de segurança, fundamentada a partir do conceito de periculosidade, constituído na criminologia clássica, tem como mote apenas a obstrução de sua convivência, isto é, o mesmo caráter repressor e utilitário de um Direito 214

Penal que visa à defesa social e à prevenção de qualquer perigo a qualquer custo. Aqui, verifica-se o mesmo fenômeno punitivo da criminalização e prisão em massa, tendo em vista que o objetivo é a proteção da incolumidade pública, desfazendo-se, assim, os direitos individuais democráticos, em detrimento desse interesse social. Criam-se

verdadeiras

instituições

de

depósito

humano,

que

descontroem as diversas identidades de inúmeras pessoas, em virtude da necessidade de segurança. Assim, as diversas vidas que são esquecidas nesses depósitos se transformam em meras passagens e números registrais, deixando tão somente documentos, invés de memórias, vivências e experiências. Assim“(...) das mortes sem batidas de sino;(...) das overdoses usuais e ditas legais;(...) das vidas sem câmbios lá fora- que se reescrevam, então,Os Infernos de Dante Alighieri;mas, aqui é a realidade manicomial!”8 Por derradeiro, a premissa reflexiva foi atendida, através do objetivo de se introduzir de forma crítica como as medidas de segurança funcionam no ordenamento jurídico brasileiro. REFERÊNCIAS ANÍBAL, Bruno. Direito Penal, parte geral. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2005. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, volume I, São Paulo Ed. Saraiva. 2009, p. 380. CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. CALDEIRA, Marconi. Medidas de Segurança. Tratamento Ambulatorial. Entre os Limites de Sua Aplicação e o Princípio da Individualização da Pena. In. Revista Síntese. Direito Penal e Processual Penal. V. 13, n. 78, Poema consultado no site: . Acessado em: 26/08/2015. 8

215

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217

DIREITO PENAL DO INIMIGO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: DECORRÊNCIA DE UMA SEGURANÇA PÚBLICA EM CRISE Pedro Henrique Baiotto Noronha1 1. INTRODUÇÃO Não é novidade que o sistema de segurança pública brasileiro está em crise, sendo possível vislumbrar frequentemente índices altíssimos nas estatísticas de criminalidade, especialmente

quando comparados aos

indicadores de países com maior desenvolvimento. Da mesma forma, é de conhecimento público que os cidadãos brasileiros sentem-se inseguros e temerosos em virtude da violência que, de certa forma, assola o país. Tal constatação advém da consulta aos noticiários e das opiniões expostas pela população. E este sentimento de insegurança é confirmado pelas pesquisas. Embora os índices de criminalidade não sejam divulgados de forma oficial por todos os estados da Federação – a este respeito, Oliveira, Dufloth e Horta (2014) apontam que 26% dos estados brasileiros não apresentam dados de criminalidade em seus sítios na internet, inobstante a Lei nº 12.681 de 4 de julho de 2012 tenha instituído o SINESP, Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas, que dentre suas finalidades inclui armazenar, tratar e integrar dados e informações para auxiliar na formulação, implementação, execução, acompanhamento e avaliação das políticas relacionados com segurança pública (art. 1º, inciso I da mencionada Lei) - o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2014) aponta, por exemplo, que o Brasil teve 53.646 mortes violentas no ano de 2013, e que, naquele ano, gastou 5,4% de seu PIB com custos da violência, segurança pública, prisões e unidades de medidas socioeducativas. Em consulta ao sítio do SINESP (2015), onde constam dados de 1Assessor

de Juiz de Direito. Bacharel em Direito pela Unicruz. Especializando em Direito Processual Civil-EAD pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Aluno especial da disciplina Sistemas Regionais de Direitos Humanos do Curso de Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unijuí.

218

ocorrências dos anos de 2010 a 2013, denota-se que, no total dos estados cujas informações são apresentadas, há um aumento ano a ano da ocorrência de latrocínios, homicídios dolosos, estupros, furtos de veículos e roubos de veículos (em relação a estes dois últimos delitos há uma pequena diminuição no ano de 2012, com um índice de aumento maior no ano de 2013), baseado no número de ocorrências a cada 100 mil habitantes. Dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, 2013), apontam que o Brasil está entre os países com maiores taxas de homicídio no mundo. Interpretando estes dados, Ingram e Costa (2014, tradução nossa) destacam que o Brasil possui taxas consistentemente maiores que a média da América do Sul, sendo superado somente por Colômbia e Venezuela. Além disso, o Brasil teve taxas de homicídio similares às dos Estados Unidos no início dos anos 1980, mas no final daquela década, tornando-se uma democracia emergente, já apresentava o dobro das mencionadas taxas (CALDEIRA e HOLSTON, 1999, tradução nossa). Vale mencionar, no entanto, que a confiabilidade dos dados apresentados à época da ditadura militar brasileira deve ser vista com reservas, notadamente diante do publicamente conhecido controle exercido sobre as fontes de informação à época. No entanto, ainda que considerados os dados mais precisos referentes aos últimos anos, tudo aponta para o fato de que o Brasil está há um longo tempo em uma crescente de violência, que pode ser analisada talvez como incompatível com sua apontada condição de país emergente e sua comumente aludida posição de destaque no Mercado Comum do Sul (Mercosul) e no BRICS (mecanismo atualmente formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), visto que apesar dos avanços nos âmbitos sociais e econômicos, a questão da criminalidade é cada vez mais preocupante. E as discussões quanto aos rumos a serem tomados pelas políticas criminais não se restringem ao campo doutrinário, mas são objeto das mais variadas expressões da população como um todo. Por

estes

motivos,

ao

mesmo

passo,

constatam-se

diversos 219

movimentos visando a pacificação social no país. No entanto, muitos destes movimentos reivindicam a aplicação de normas penais mais severas, algumas delas caracterizando possíveis supressões de direitos e garantias fundamentais. Neste norte, o mote do presente estudo é observar se as ideias propostas pelos movimentos podem caracterizar a propagação da doutrina e das medidas repressivas apontadas pelo Direito Penal do Inimigo no Brasil, esclarecendo inicialmente de maneira breve os ditames de tal doutrina e, acaso evidenciada tal hipótese, o que isso pode significar em termos de evolução ou retrocesso, tendo em conta os direitos fundamentais, tanto individuais quanto coletivos. 2. POLÍTICA CRIMINAL E “DIREITO PENAL” DO INIMIGO Não há dúvidas de que a existência de tipos penais decorre da violação de condições necessárias à convivência social. A este respeito, Aníbal Bruno (1967, p. 11) leciona que “o fato que se apresenta como contrário à norma de Direito, porque ofende ou põe em perigo o objeto da sua proteção, forma o ilícito jurídico, cuja espécie mais grave é o ilícito penal, que viola as mais fundamentais entre as leis da convivência”. Sendo assim, o Estado utiliza-se do Direito Penal, conjunto de normas jurídicas onde regulada sua atuação no combate ao crime, com a finalidade de buscar o equilíbrio social e a proteção de bens jurídicos previamente definidos. E o Direito Penal, sem sombra de dúvidas, é um instrumento que se diferencia da ciência da Política Criminal. O autor acima citado ensina, ainda, que a Política Criminal define os objetivos do Estado diante do problema do crime, formulando os meios necessários para atingir tais finalidades. Quer dizer, esta busca determinar os fatos que devem ser definidos como crimes, apontando as medidas que devem ser tomadas pelo Estado para o combate à criminalidade. Ou seja, “sua posição é sempre adiante do Direito vigente, cujas reformas oportunas sugere e orienta, recebendo inspiração, por um lado, da filosofia e da história, e por outro, e 220

sobretudo, das ciências criminológicas” (1967, p. 34). Dito isso, é possível afirmar que a Política Criminal serve como norte e exerce influência no Direito Penal. Ademais, seus apontamentos surgem com base nas condições fáticas da sociedade, mormente a respeito de condutas consideradas como delitos. No sistema jurídico moderno, a pessoa acusada deixou de ser simples objeto do poder punitivo do Estado, passando a ser sujeito de Direitos, dentre os quais destacam-se o direito ao princípio da reserva legal, à presunção da inocência, ao devido processo legal (BEDIN, 2002). Quando se trata de Direito Penal sempre se discute a respeito de limites, tais como de intervenção, de tolerância, para a liberdade, para direitos, para as ofensas, para o Estado e para o indivíduo. É permanente a busca do equilíbrio entre segurança e liberdade, suas fronteiras e limites (BUSATO, 2007). Em um mesmo aspecto, há constante atrito entre doutrinas de Direito Penal mínimo, Direito Penal garantista (muitas vezes inclusive vulgarizando o significado do termo) em face daquelas que apontam a necessidade de maiores

represálias

do

ponto

de

vista

penal,

apontando

inclusive

determinadas “velocidades” ou ainda a exclusão de determinados indivíduos da condição de sujeito de direitos, a fim de garantir o pacto social e a vigência do Estado Social e Democrático de Direito. Dentre estas, este estudo visa observar o modelo que pode ser chamado de sócio-filosófico estabelecido por Günter Jakobs e que estabelece a necessidade de que o Estado, através do Direito Penal, trate determinados indivíduos de maneira distinta, ou seja, separando o “inimigo” do “cidadão”, perdendo aquele o status de pessoa, e em decorrência disso os direitos que a este são inerentes, teoria esta que ficou conhecida como Direito Penal do Inimigo, o que talvez pudesse ser melhor nomeado em nosso idioma, com base naquilo que mencionado alhures sobre Direito Penal, Criminologia e Política Criminal, como “Política Criminal do Inimigo”. Segundo a teoria de Jakobs, o Direito Penal do cidadão e o do inimigo (também nomeado indivíduo perigoso ou terrorista) não são duas esferas isoladas do Direito Penal, mas na realidade, são dois polos ou tendências 221

opostas, em um único contexto jurídico-penal. Ao contrário do que se vê com o cidadão comum, a relação do Estado com o indivíduo perigoso, determinarse-ia pela coação, e não pelo Direito. Diferentemente do criminoso comum, para quem o Direito busca seu ajuste com a sociedade, com o dever de reparação e de ajustar-se com a sociedade, os quais tem como pressuposto a existência da personalidade (JAKOBS; MELIÁ, 2010). Deste modo, a teoria afirma não somente que o Estado tem direito de buscar a segurança frente a indivíduos que persistentemente reincidem no cometimento de crimes, mas também “os cidadãos tem direito de exigir do Estado que tome medidas adequadas, isto é, têm um direito à segurança”, que é o “direito dos demais” (JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 28). Não há dúvidas, de fato, de que esta afirmação é verdadeira, e que em uma sociedade complexa é necessário que o Estado tome as medidas necessárias à manutenção da ordem, bem como que é direito dos cidadãos exigir que tais medidas sejam tomadas. Neste sentido, pode ser lembrado inclusive que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou em algumas oportunidades, em especial através do Ministro Gilmar Mendes, pela aplicação do muito bem fundamentado princípio

da

proibição

da

proteção

insuficiente

(ou

proibição

da

insuficiência), apontado como “uma espécie de garantismo positivo”, em determinados casos onde o Estado, “não pode abrir mão da proteção do Direito Penal para garantir a proteção de um direito fundamental”, conforme exposto no julgamento do RE 418.376-5/MS (BRASIL, 2006, p. 7). No entanto, a questão que provoca discussão não são as finalidades buscadas pela doutrina do Direito Penal do Inimigo, que são legítimas, mas sim os meios indicados, mormente no que tange à exclusão de determinadas pessoas do direito à personalidade, não fazendo mais estas jus a determinados direitos fundamentais, também no ponto referente aos critérios utilizados para diferenciar o cidadão do inimigo e, especialmente, qual a forma de exercer um controle sobre uma questão tão subjetiva que é esta diferenciação. As finalidades da doutrina de Direito Penal do Inimigo e da aplicação do princípio da proibição da insuficiência possuem muita identidade, 222

especialmente no que tange ao objetivo de salvaguarda do Estado e da sociedade. Entretanto, as ferramentas utilizadas são amplamente distintas, pois enquanto o primeiro utiliza-se da supressão de direitos e exclusão da própria personalidade, punindo o indivíduo pelo que ele é, e não pelo fato, o outro faz uso do direito do Estado em não deixar de aplicar a sanção penal em casos graves, ou seja, pelo fato, e quando imprescindível, especialmente quando há conflito entre direitos fundamentais. É induvidoso que há um oceano de distância entre (a) o Estado não deixar de aplicar o Direito Penal para a garantia de um direito fundamental e, (b) deixar de aplicar um direito fundamental, ou mesmo excluir de um indivíduo a condição de pessoa a fim de buscar a repressão de ilícitos. Ademais, sendo o princípio da proibição da proteção insuficiente uma decorrência do princípio da proporcionalidade, ele há de privilegiar os direitos fundamentais em face do combate intenso à criminalidade. Em outro enfoque, os argumentos de Jakobs prosseguem, discorrendo ele que terrorista é o sujeito que “rechaça, por princípio, a legitimidade do ordenamento jurídico, e por isso persegue a destruição dessa ordem” (JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 35), o que autorizaria restrições ao inimigo em seus direitos de pessoa, tanto no âmbito material quanto no direito processual,

citando-se

como

exemplo,

em

casos

extremos,

a

incomunicabilidade do indivíduo, inclusive com proibição de contato com defensor. Ou seja, entende ele ser legítima a consideração de duas espécies de delinquentes, que seriam a pessoa que comete delitos, e aquele indivíduo que deve ser impedido de destruir o ordenamento jurídico, não podendo este último ser tratado como pessoa, sob pena de vulnerar o direito à segurança das demais pessoas da sociedade (JAKOBS; MELIÁ, 2010). A própria opinião de Günther Jakobs alterou-se no decorrer dos anos, visto que na Jornada de Direito Penal de 1985, em Frankfurt am Main, desenvolveu os modelos contrapostos de Direito Penal do inimigo e Direito Penal do cidadão, sendo o primeiro enquadrado, à época, como uma categoria analítica com potencial crítico, e, naquela oportunidade, a impressão obtida foi a de que o enquadramento de determinados tipos do 223

Código Penal Alemão servia para a deslegitimação daqueles (NEUMANN, 2010). No entanto, posteriormente, Jakobs passou a apontar o Direito Penal do inimigo não com intenção de ser “sempre pejorativa” (JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 21). E por seus próprios argumentos, a doutrina em exame é alvo de constantes e duras críticas, recebendo inclusive contraponto de Manuel Cancio Meliá, na interessante obra que dividem – não somente de fato, mas também em argumentos. Nesta, Meliá defende o repúdio ao Direito Penal do Inimigo, especialmente por sua ampla contaminação no Direito Penal ordinário, associando tal circunstância à expansão do Direito Penal, ao punitivismo e também ao Direito Penal simbólico, cuja motivação do legislador está nos efeitos simbólicos obtidos por sua simples promulgação (JAKOBS; MELIÁ, 2010). Vale ressaltar que o tema voltou a ser centro das atenções com as medidas adotadas pelos Estados Unidos da América após os atentados ocorridos no dia 11 de setembro de 2001, com sequestros de aviões tripulados, sendo dois deles jogados contra o World Trade Center, outro contra o Pentágono e o último caindo em um campo aberto na Pensilvânia. A partir de então, o terrorismo veio à pauta no cenário internacional, e com isso, a teoria de Jakobs assumiu grande relevância, especialmente em virtude das políticas adotadas pelos Estados Unidos da América e seus aliados na chamada guerra ao terror. Quanto a este ponto, Wermuth (2015, p. 118) descreve que o terrorismo seria um dos “‘novos riscos’ que que mais obrigou o Estado a se reinvestir nas suas funções, inclusive com limitações consideráveis ao exercício de determinadas liberdades públicas pelos cidadãos”, tornando portanto a segurança como prioridade. Refere que “a tragédia envolvendo as torres gêmeas em Nova Iorque pode ser vista como o estopim de uma nova doxa punitiva, pautada pela noção de guerra”. Denota-se que após o ocorrido, o governo norte-americano passou a adotar políticas repressivas e de índole que pode ser definida como fortemente ligada ao chamado Direito Penal do inimigo, incluindo restrições a

liberdades,

proteção

da

privacidade

e

aumento

de

detenções, 224

especialmente a estrangeiros e, especificamente os que tenham nomes islâmicos ou árabes, inclusive utilizando-se de instrumentos que já eram previstos em lei para a prática de tais atos. A título de exemplificação, descreve CHEVIGNY (2011) que os governos locais e federal dos Estados Unidos da América teriam, de certa forma, tirado proveito do temor após o ocorrido em 11 de setembro de 2001, permitindo

maior

intromissão

por

meios

eletrônicos,

informantes

e

infiltração, não somente para casos de informações internacionais, mas em casos criminais domésticos e contra ativistas políticos domésticos, visto que ocorrera autorização para que o governo utilizasse da Corte de Inteligência Internacional para estes casos. Cita inclusive que um artigo do USA Patricot Act, que era pouco visado e autorizava interceptações de inteligência internacional, logo após os atentados teve alteração de duas palavras, passando a prescrever a possibilidade da Corte de Inteligência Internacional ordenar interceptação caso a investigação tenha propósitos domésticos e estrangeiros. Ademais, descreve que passaram a ocorrer detenções muito mais frequentes que ações penais, passando o governo a deter centenas de pessoas, em sua maioria estrangeiros, virtualmente todos com nomes islâmicos ou árabes, sob acusações de prática de delitos leves, violações de regas de imigração, ou alegação de que seriam testemunhas materiais, o que é autorizado pele letra da lei. Cita que pouco se informou a este respeito, havendo grande sigilo, pois o Procurador-Geral teria decretado que os procedimentos de imigração naqueles casos deveriam ser bloqueados para o público. Sobre a posição adotada pelos Estados Unidos da América, Jakobs referiu tratar-se de “persecução de delitos mediante guerra” (JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 39). Sob esta ótica, é possível afirmar que os acontecimentos do dia 11 de setembro de 2001 foram catalisadores da adoção de uma política criminal rígida, alicerçada na necessidade de proteção contra um inimigo que se pode chamar de indeterminado - ou indeterminável: o terrorismo. Como forma de defesa

do

Estado

extremamente

norte-americano,

repressiva,

que

adotou-se

evidentemente

uma

política

causou

criminal

limitações

a 225

determinados direitos fundamentais, tratando de formas diferentes o cidadão comum norte-americano e aquele que, em constatações feitas somente por indícios e aparências, poderiam, aos olhos do governo, ser inimigos do Estado. Por outro lado, como já visto, a conjuntura atual da sociedade brasileira, no campo da segurança pública, não é a mais favorável. O crescimento da criminalidade é evidente, como já apontado no presente trabalho, e muito se indaga a respeito dos caminhos que serão adotados futuramente no Brasil, e as consequências que tais escolhas resultarão. 3. EVIDÊNCIAS DA PROPAGAÇÃO DA DOUTRINA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NO BRASIL E SUAS POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS A situação atual da violência urbana no Brasil beira ao caos. O controle preventivo da criminalidade vem falhando em sua razão de existir. As pessoas sentem-se inseguras, e não à toa, pois os mais diversos delitos ocorrem cotidianamente, tonando-se fatos reiterados e cada vez mais comuns. E isso, sem dúvida, decorre de inúmeras transformações sociais, culturais, antropológicas e comportamentais, mas também resulta em muitas outras alterações do cotidiano. Afora a mudança de hábitos evidenciada nas últimas décadas, que não é o objeto deste estudo, constatase também que esta situação aponta para a existência de uma certa revolta na população em face da ocorrência de tais crimes, a instigação para que sejam adotadas fortes medidas em face da criminalidade, em especial medidas repressivas contra autores de delitos. É verdade que o medo decorre não somente do crime, eis que a chamada sociedade de risco, fenômeno global decorrente do desenvolvimento acelerado, possui vários aspectos. Nos últimos tempos, com um apontamento de declinação, em um âmbito global, do Estado Assistencial em um neoliberalismo conservador, bem como com o aumento da produtividade, redução de mão-de obra e taxas de desemprego e subemprego, há exclusão social, insegurança e riscos 226

pessoais em virtude do aumento de prática de delitos violentos e contra o patrimônio (PEGORARO, 2007). Mas, analisada a situação com olhar somente no âmbito criminal da situação no Brasil, o corolário lógico é que passaram a ocorrer movimentos de diversas fontes visando um endurecimento de políticas criminais, mas, especialmente, a existência de maiores represálias do ponto de vista penal a agentes que praticam delitos, quão mais pelo crescimento da criminalidade no país, o que é um facilitador do já apontado Direito Penal simbólico. E esta espécie de comportamento não é novidade no mundo. Cita-se como exemplo novamente os Estados Unidos da América, com o movimento de Lei e Ordem (Law and Order), bem como com a política criminal denominada tolerância zero, ou teoria das janelas quebradas (brokenwindows theory). Assumem destaque, ainda, leis que ficaram conhecidas naquele país nos anos 1990 como three strikes and you’re out, oriunda da Califórnia, em que se estabeleceu que o réu que cometesse um novo delito, após condenação por delito grave ou violento, seria punido com o dobro de pena inicialmente fixada para o crime. E no caso de terceira infração penal após dois delitos graves ou violentos, ser-lhe-ia aplicada pena de prisão perpétua, com mínimo de cumprimento efetivo de 25 anos encerrado. Tais leis foram observadas em inúmeros estados norte-americanos, bem como o governo federal aprovou legislação semelhante. No entanto, estas leis geraram casos de grave desproporcionalidade, como por exemplo ocorreu no caso Califórnia X Leandro Andrade, réu este viciado em drogas que tinha em seu histórico furtos leves e tráfico de drogas, que foi flagrado em uma tentativa de furto de fitas de vídeo, com a finalidade de comprar drogas, sendo condenado à prisão perpétua (BUSATO, 2007). Sem o intuito de ser taxativo, eis que os exemplos são muitos, o Direito Penal na Espanha também sofreu reformas no ano de 2003, convertendo aquilo que se chamava de Código Penal da Democracia do ano de 1995, em um Código Penal da segurança, como intitulado pelo próprio governo. E dentre as medidas, destaca-se por exemplo uma super agravação da pena em virtude da habitualidade, consistente na reincidência por três delitos previstos em mesmo título do mencionado Código, oportunidade em que 227

passa a ser possível a aplicação de pena superior em grau àquela prevista na lei para o delito tratado, retomando assim normas da ditadura franquista, permitindo a imposição superior em grau à prevista para o delito, com raízes na figura do “delinquente por tendência” do Código penal fascista italiano e na do Gewohnheitsverbrecher, Lei sobre o delinquente habitual, adotada pelo regime nacional socialista alemão, impondo o “internamento em custódia de segurança” em campos de concentração e por tempo indefinido aos delinquentes habituais, inclusive em delitos como furto (CONDE, 2006). A Alemanha, segundo estudo de Neumann (2010), nas últimas décadas está tomando rumos em seu Direito Penal com inúmeras características apontadas como típicas do Direito Penal do Inimigo, em especial com a ampla antecipação da punibilidade, pena desproporcional nos tipos correspondentes, transição para uma legislação de combate e desmantelamento de garantias processuais. Claro que, não obstante estes apontamentos, os últimos fatos que realmente atiçaram as discussões no mundo acadêmico a respeito da bandeira do “Direito Penal” do Inimigo foram as condutas adotadas pelos norte-americanos após os ataques do dia 11 de setembro de 2001. No entanto - dentro das devidas proporções, pois o ocorrido nos Estados Unidos da América tomou uma amplitude mundial – também no Brasil está evidente que o nível de criminalidade também aponta para a existência de organizações criminosas e indivíduos que se encaixam perfeitamente na descrição de Jakobs para inimigo ou terrorista, na definição por ele empregada de tais palavras. E em nosso país também existem movimentos recentes que apontam para tentativas de reduções e restrições de direitos fundamentais, o que pode significar um caminho de inserção do Direito Penal do Inimigo na legislação brasileira e no Direito Penal ordinário. Neste

enfoque,

Callegari

e

Motta

(2008)

asseguram

que

a

contaminação do Direito Penal comum pelo Direito Penal do Inimigo de fato existe, citando como exemplos a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90), onde não houve nova incriminação de condutas, mas somente alteração de penas e restrição de garantias processuais a autores de determinados 228

crimes, concedendo-se portanto tratamento distinto a autores de crimes já existentes; e o estabelecimento do Regime Disciplinar Diferenciado através da Lei 10.792/2003, que dispõe sore a possibilidade de restrições aos indivíduos segregados como em visitas e isolamento, sendo aplicável inclusive ao preso provisório ou ao condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de participação em organizações criminosas. Há ainda outros exemplos que conduzem à idêntica conclusão. Dentre estes, chama atenção fato ocorrido no Estado do Rio de Janeiro. Após as manifestações sociais ocorridas no Brasil a partir de Junho de 2013, a partir de protestos do chamado Movimento Passe Livre, e que posteriormente tomaram enorme proporção nacional, em que grande parte da população foi às ruas deblaterar em face das políticas adotadas pelo governo, nos pontos atinentes à educação, à saúde e à segurança, mas especialmente contra a nefasta corrupção arraigada à coisa pública brasileira, circunstâncias estas que foram infladas pelo enorme gasto público com obras para o evento da copa do mundo de futebol que ocorreria no Brasil no ano de 2014. Dentre

estas

manifestações,

vislumbrou-se

a

ocorrência

de

depredações ao patrimônio público e privado, saques e ocupações de prédios públicos. Em face disso, houve também forte resposta policial, muitas vezes violenta e desproporcional contra pessoas que tinham interesse em ordeiramente exercer seu direito de livre expressão. Restou evidente a dificuldade de diferenciação entre os autores de delitos, que aproveitaram tais oportunidades, e os verdadeiros manifestantes. Da mesma forma, segundo Souza (2013) diante de algumas atuações da Polícia Militar do Rio de Janeiro naquelas situações, ficou evidenciada a seletividade do Estado Penal, eis que se conferiu tratamento mais belicoso a setores sociais mais oprimidos, ocorrendo ainda inúmeras detenções arbitrárias, sob diversos argumentos, inclusive acusações de organização criminosa entre pessoas que sequer se conheciam, corrupção de menores e apologia ao crime. Se isso não bastasse, após tal onda de protestos o governo do Estado do Rio de Janeiro editou em 22 de julho de 2013 o Decreto estadual 44.302, o qual constituiu uma Comissão Especial de Investigação de Atos de 229

Vandalismo em Manifestações Públicas – CEIV, ficando autorizada tal comissão a tomar todas providências necessárias à investigação de prática de atos de vandalismo, inclusive com requisição de informações, realização de diligências e uma possibilidade ampla e subjetiva de prática de quaisquer atos necessários à instrução de procedimentos criminais para punição de ilícitos praticados no âmbito de manifestações públicas. Além disso, determinou-se que as empresas de telefonia e internet deveriam entregar informações de suspeitos em envolvimentos em protestos, atendendo pedidos de informações do CEIV no prazo de 24 horas (SOUZA, 2013). Decreto este flagrantemente inconstitucional, tanto formalmente quanto materialmente, foi alvo de inúmeras críticas à época, motivo pelo qual sofreu alteração após ajustamento com auxílio do Ministério Público daquele Estado, denominada de aperfeiçoamento, conforme nota publicada no portal do Governo daquele Estado (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2013). Sobre este decreto, Souza (2013) acrescenta que a definição de manifestantes como vândalos foi uma estratégia criminalizante, com preceitos da teoria do direito penal do inimigo, de modo que o jus puniendi estaria acolhendo o discurso da guerra, passando a agir como um Estado contra a lei. Nesse diapasão, há no Brasil alguns Projetos de Lei referentes ao terrorismo, e recentemente teve repercussão o Projeto de Lei nº 2016/2015 que tramita na Câmara dos Deputados, visando regulamentar o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, e que disciplina o terrorismo tratando de disposições investigatórias e processuais, reformulando o conceito de organização terrorista, alterando as leis nºs 7.960 e 12.850. A controvérsia a respeito deste projeto veio à lume após apresentação de parecer favorável pela sua aprovação da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara, apontando a constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa do projeto. Caso aprovado e sancionado, o projeto inclui sob o manto da lei das organizações criminosas (Lei nº 12.850/2013) as organizações terroristas, abrangendo atos preparatórios e executórios que ocorram por motivos de 230

“ideologia, política, xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou gênero” e que visem “provocar o terror, expondo a perigo a pessoa, o patrimônio, a incolumidade pública ou a paz pública ou coagir autoridades a fazer ou deixar de fazer algo” (BRASIL, 2015). E a discussão se deu porque deputados dos partidos PSOL e PCdoB afirmaram que o texto seria genérico e daria margem para enquadramento de movimentos sociais no conceito de terrorismo (CARVALHO; CARDOSO, 2015). E, por tal redação acima apontada, realmente poderia existir tal risco de interpretação, especialmente tendo em vista os exemplos já apontados ocorridos nos Estados Unidos da América, onde após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 foram utilizadas legislações que já existiam para execução de medidas caracterizadoras do Direito Penal do Inimigo. No entanto, antes da aprovação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara, foi acrescentada nova redação ao projeto de lei, apontando que aquela disposição não se aplica às condutas praticadas em “manifestações políticas, movimentos sociais ou sindicais movidos por propósitos sociais ou reivindicatórios”, e que tenham objetivo de “contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender ou buscar direitos, garantias e liberdades constitucionais” (BRASIL, 2015), o que já traz maior segurança no que tange aos possíveis resultados do referido projeto, embora chame a atenção tal redação original. Aliás, nesta toada, seguindo a linha de pensamento já proposta por Jakobs, a própria lei das organizações criminosas, Lei 12.850/2013, possui em seu bojo disposições que apresentam apontamentos coincidentes com a doutrina do Direito Penal do Inimigo, especialmente pela forma utilizada para se definir tais organizações, mormente porque já existia previsão do crime de formação de quadrilha ou bando na legislação penal brasileira. Para Hireche e Figueiredo, a existência das definições de crime organizado e de organizações criminosas, “como conceito dissociado da figura já existente e punível da formação de bando ou quadrilha, ao que tudo indica, é manifestação de um discurso de emergência do Direito Penal, de Direito Penal Simbólico e de Direito Penal do Inimigo” (2015, p. 6). De todos estes exemplos, rol que novamente não é taxativo, induvidosa 231

a constatação da existência de similitude entre aspectos observados em tais situações e tentativas de modificações no ordenamento jurídico brasileiro e a doutrina do Direito Penal do Inimigo. Jakobs aponta que o legislador “está passando a uma legislação – denominada abertamente deste modo – de luta” (JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 33), o que também é constatado no Brasil, onde muito se fala em luta ou combate às drogas, ao crime organizado e em especial à macrocriminalidade. No mesmo norte, afirma ele que a pena, no caso do Direito Penal do Inimigo, não é uma compensação de um dano à vigência da norma, mas sim a eliminação de um perigo. Refere que a punibilidade avança em direção à preparação, dirigindo-se a pena à segurança em face de fatos futuros, e não somente a sanção de fatos cometidos (JAKOBS; MELIÁ, 2010). No Brasil, a resposta da política criminal à crise já apontada tem sido a utilização da pena, tal como descrevem CALLEGARI e MOTTA “como se não existissem outros mecanismos de controle social válidos, ou ao menos igualmente eficazes” (2008, p. 2), o que gera aumento da população carcerária e sem dúvida aumento de gastos públicos, o que, por sua vez conduz à diminuição de investimentos em outros quesitos Assim, é possível afirmar que o legislador brasileiro, como forma de resposta à crescente violência, apresenta muitas vezes como solução o enrijecimento da norma penal e com maior criminalização, e em parte destas alterações (ou tentativa de alterações) acaba contaminando o direito penal ordinário com ditames da terceira velocidade do direito penal, qual seja a do Direito Penal do Inimigo. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS De tudo que observado, resta clara a existência de indícios de propagação da Doutrina do Direito Penal do Inimigo na política criminal brasileira e que estes possuem evidente vinculação com a insegurança que macula o bom andamento da sociedade, não havendo dúvidas de que aquela é uma decorrência desta. Entretanto, todos os cuidados devem ser tomados com a política 232

criminal repressiva que vem sendo adotada, especialmente quando se passa a confundir o Direito Penal do Inimigo com o Direito Penal ordinário. Tanto é assim que Jakobs adverte que “a introdução de um cúmulo – praticamente já inalcançável – de linhas e fragmentos de Direito Penal do inimigo no Direito Penal geral é um mal, desde a perspectiva do Estado de Direito” (JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 41). E a advertência não é à toa, pois não é novidade na história da humanidade que Estados, em períodos autoritários, tenham adotado medidas restritivas de liberdades pessoais e de controle político sob o argumento de controle em face de insegurança ou desordem. Os cuidados devem ser redobrados quando da inserção de normas que restrinjam direitos tanto materiais quanto processuais no âmbito penal, sob pena de privilegiarse um Estado de Polícia em detrimento das garantias democráticas do Estado de Direito. No entanto, no Brasil ainda permanece a tranquilidade da manutenção destas garantias especialmente em virtude do exercício do controle de constitucionalidade de normas em todas as suas formas, motivo principal pelo qual, não obstante todas as tentativas de redução e restrição de direitos básicos aos acusados de um crime, a segurança jurídica está sendo mantida. Com efeito, parece haver consenso entre os favoráveis os contrários à aplicação de um Direito Penal do Inimigo de que sua incidência, ramificação, entrelaçamento e avanço sobre o Direito Penal comum, ou “do cidadão” são um risco, podendo ser extremamente perigoso ao Estado de Direito e devendo

portanto

ser

evitado,

sob

pena

de

supressão

de

direitos

fundamentais dos cidadãos. De acordo com os ensinamentos de Beccaria, que até hoje se mostram pertinentes, “mais fortes e sensíveis devem ser as impressões sobre os espíritos endurecidos de um povo apenas emergido do estado selvagem [...] à medida que os espíritos se abrandam nos estados de sociedade, cresce a sensibilidade e, com ela, deve decrescer a força da pena” (2002, p. 139). Pois afinal, erro, preconceito discriminação circundam o ideário da persecução criminal e a aplicação de penas, e embora por vezes pareça agradável aos interesses da sociedade o endurecimento da política criminal 233

repressiva, com restrições mais severas tanto do ponto de vista penal quanto do processual penal, devemos lembrar que não há demonstração segura capaz de comprovar que a expansão do direito penal traz resultados práticos na diminuição de violência e criminalidade, ao passo que a elevação dos cidadãos a condições dignas de existência e o resgate de valores sociais são exemplos bem-sucedidos de políticas que acabam por reduzir a prática de crimes. Com base no exposto, e como forma de lembrança, sempre é necessário que seja feito o seguinte questionamento: com a propagação do Direito Penal do Inimigo, quem ou o que irá decidir quem é o inimigo e quem é o cidadão? REFERÊNCIAS ANÍBAL BRUNO, de Oliveira Firmo. Direito Penal Parte Geral. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi de. Dos delitos e das penas. Traduzido por Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. BEDIN, Gilmar Antonio. Os direitos do homem e o neoliberalismo. 3. ed. ver. e ampl. Ijuí: Unijuí, 2002. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 2016/2015. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2015. ______, Lei nº 12.681. Disponível Acesso em: 4 jul. 2015.

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237

A CASTRAÇÃO QUÍMICA: SUA EXPLÍCITA INCONSTITUCIONALIDADE EM CONSONÂNCIA À (RE)SOCIALIZAÇÃO DO APENADO Diovan Roberto Schmalz1 1. INTRODUÇÃO Nas últimas décadas, a imposição da castração química como sanção penal a autores de crimes contra a liberdade sexual tem sido tema de inúmeros debates nos cenários jurídico e social brasileiro e internacional. Inclusive, por consequência do sensacionalismo jornalístico que se fundou em

torno

desse

tema,

vemos

a

sociedade

civil

manifestando-se

favoravelmente à adoção da castração química como medida punitiva estatal, porém, não sabendo exatamente de que se trata ou o que seja, realmente, a castração química (HEIDE, 2007). Por esta razão, se fazem pertinentes criteriosas análises acerca deste instituto penalizador, dissecando-se questões como a conceituação da castração química, sua (in)eficácia sob o aspecto ressocializador do apenado, os países cujas legislações a permitem, a existência de projetos de leis brasileiros que tratam do assunto e, por fim, a (im)possibilidade de sua implantação no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, parte-se, inicialmente, do estudo acerca da castração química,

seu

conceito

e

desenvolvimento

histórico,

sua

forma

de

administração e os medicamentos que são utilizados. Em seguida, analisarse-á o perfil psicológico do abusador sexual, a (in)eficácia do tratamento hormonal e os efeitos no corpo do indivíduo. A seguir, serão observados os projetos de leis criados no Brasil com o escopo de utilizar a castração química como medida punitiva, bem como, se levará em consideração o contraste legislativo internacional, observando-se a maneira como é aplicada a pena da castração nos países em que esta é prevista legalmente. 1 Bacharel em Direito [email protected]

(UNIJUI).

E-mail:

[email protected]

ou

238

Por fim, pretende-se ponderar os direitos constitucionais do apenado com a possibilidade legal da aplicação desta pena, bem como, apurar se o condenado seria ou não beneficiado com tal penalidade. 2.

A CASTRAÇÃO QUÍMICA COMO MEDIDA PUNITIVA: historicidade,

conceito e efeitos domedicamento no corpo do apenado Em razão de difundidos discursos eficientistas e de defesa social, que perpassam a perda do controle sobre a criminalidade e a consequente impunidade, observa-se que, no âmbito do Direito Constitucional Penal brasileiro e internacional, surgiu, já há algum tempo, o debate sobre a aplicação de uma pena própria aos indivíduos que cometem crimes contra a liberdade

sexual,

sobretudo

quando

praticados

contra

crianças

e

adolescentes. O Direito Penal brasileiro advém do Direito Canônico (sendo, portanto, a prática de um crime considerada como “pecado”) e o atual sistema repressivo foi, inicialmente, inspirado no modelo imposto pela Santa Inquisição, no qual castigos corporais e tortura eram de utilização diária(HEIDE, 2007). Em breve tomada histórica, pode-se observar que a castração enquanto medida punitiva originou-se com a Lei de Talião, em que vigorava a máxima do “olho por olho, dente por dente”. O sujeito considerado criminoso era punido na medida de seu crime, sendo-lhe aplicado dano igual ou semelhante ao que havia praticado. Nos primórdios, a castração era realizada a macete, isto é, esmagavam-se, mediante golpes de cassetete, os testículos do autor do crime sexual (MARQUES, 2010). A castração, “como punição, é usada desde a Antiguidade para impor humilhações a vencidos em guerras e, na primeira metade do século XX, com o objetivo de 'purificar a raça', tornando vários tipos de criminosos estéreis” (AGUIAR, 2007). No princípio da história do direito brasileiro, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal, o Direito Penal e Processual Penal baseavam-se nas ordenações Manuelinas, Filipinas e Afonsinas, as quais adotavam as penas 239

de morte, de mutilação através do corte de membros (aqui se verifica a castração), de degredo, de tormento, a prisão perpétua e o açoite. Mesmo após o Brasil tornar-se um país independente, a imposição destas penas manteve-se por longo período, pois o direito brasileiro continuou a nortearse naquele medieval ordenamento jurídico europeu. No tocante à castração,o entendimento era no sentido de que o homem que praticasse determinados atos sexuais, considerados imorais ou criminosos, poderia ser condenado à castração - então conhecida por “capação” -, que podia ser concretizada por várias maneiras, objetivando que, com o castigo, o agressor não tivesse mais possibilidade de voltar a delinquir devido à aniquilação do seu apetite sexual (MARQUES, 2010). Atualmente, devido aos avanços sociais e científicos, criou-se uma nova modalidade de castração, denominada “castração química”, que, diferente da castração física - pois não envolve amputação de órgãos genitais -, é ocasionada pela administração de substâncias químicas que bloqueiam a produção do hormônio testosterona nos delinquentes sexuais masculinos, cessando a libido e controlando o desejo e os impulsos sexuais daqueles a ela submetidos. Como conceitua Mattos (2009, p. 59): “A castração química ou terapia antagonista de testosterona, como muitas vezes é denominada, é uma forma de castração reversível, causada mediante a aplicação de hormônios que atuam sobre a hipófise, glândula do cérebro que regula a produção e liberação da testosterona”.

O método mais comum na realização da castração química consiste na aplicação de antiandrógenos de via oral ou injetável, como o medicamento Depo-Provera (acetato de medroxyprogesterona), que nada mais é que uma versão sintética do hormônio feminino progesterona (HEIDE, 2007). Algumas das drogas mais usadas na castração química são a flutamida e o acetato de ciproterona. A primeira é um antiandrógeno nãoesteroidal que compete com a T e com a DHT pelo receptor de andrógeno (RA) nas células da próstata, e a segunda é uma droga esteroidal que além de competir pelo RA inibe a produção de Hormônio Luteinizante (LH) pela 240

hipófise, o que por sua vez inibe a produção de T pelos testículos (OLIVEIRA, 2005). Há ainda os que intitulam a castração química como “terapia antagonista de testosterona”, uma vez que, sendo utilizada como tratamento voluntário pelo apenado, aplicando-se os medicamentos de acordo com o seu consentimento, não se compararia àquela

castração mecânica de séculos

atrás. Doravante, relativamente aos efeitos da castração química no corpo do condenado, verifica-se a redução da libido ou impulsos sexuais, já que haverá uma falta de irrigação no pênis. Neste ponto, estudos com o DepoProvera (acetato de medroxyprogesterona), que é a versão sintética da progesterona, o hormônio feminino pró-gestação, demonstram que há uma redução do apetite sexual compulsivo dos sex ofenders e que seus efeitos colaterais compensam-se pelos benefícios (HEIDE, 2007). Verifica-se que os principais efeitos ocasionados pela castração química são, em tese, temporários – como a redução do apetite sexual e o prejuízo nas ereções -, sendo possível, posteriormente, após ser considerado como curado o indivíduo submetido ao tratamento, reverter a produção do hormônio testosterona aos níveis habituais daquele sujeito, bastando, para isso, que se interrompa o uso do medicamento. Ainda assim, em que pese a característica da reversibilidade e dos aparentes

benefícios

da

castração

na

forma

química,

os

estudos

preexistentes na área ainda não foram capazes de comprovar se os demais efeitos (colaterais) causados por esta intervenção hormonal também cessariam com a interrupção do tratamento medicamentoso. Nesse sentido, Spalding (1997, tradução nossa) aponta que: Quando usado nos homens, a MPA efetivamente inibe as ereções, ejaculações e reduz a frequência e intensidade dos pensamentos eróticos. Os efeitos incluem o aumento do apetite, ganho de peso de 15 a 20kg, fadiga, depressão, hiperglicemia, impotência, diminuição do volume ejaculatório, insônia, pesadelos, dispneia (dificuldade em respirar), ondas de calor e frio, perda de cabelo, náusea, cãibras nas pernas, irregular função da vesícula biliar, diverticulite, enxaqueca, hipogonadismo, flebite, aumento da pressão do sangue, hipertensão, tromboses (próximo a ataque cardíaco), diabetes, e encolhimento da próstata e dos vasos seminais. (tradução nossa).

241

Contudo, a administração prolongada de hormônios inibidores do hormônio testosterona pode provocar efeitos irreversíveis, haja vista que a aplicação do acetato de medroxiprogesterona (MPA) em homens pode deixar sequelas como a falha na irrigação do pênis e na ereção, frustrando o orgasmo, acarretando, também, perda óssea, aumento de peso, hipertensão, mal-estar, trombolismo, fadiga, hipoglicemia, ginecomastia e depressão (VIEIRA e DOS SANTOS, 2008, p. 19). Conquanto o efeito estimado da castração química venha a ser uma espécie de impotência temporária, de acordo com o Psiquiatra Aderbal Vieira Júnior, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo, em entrevista à Revista Época (2008), o uso prolongado e excessivo dos denominados inibidores hormonais pode dificultar a recuperação de toda a potência sexual do homem. Assegura ainda que a castração química traz como efeitos o aumento da pressão arterial e a atrofia da genitália masculina, podendo a medida acarretar até mesmo câncer hepático. Diante

disso,

do

ponto

de

vista

clínico,

evidencia-se

a

desproporcionalidade com que se apresenta a castração química enquanto medida punitiva, pois, embora atinja seu objetivo principal - tornar o delinquente sexual temporariamente inapto e alheio à prática de crimes sexuais -, acaba gerando efeitos colaterais consideravelmente nocivos à saúde. Ressalta-se, ainda, que este caráter temporário da castração química pode vir a tornar-se perpétuo, já que, como exposto, com a utilização prolongada de medicamentos inibidores do hormônio testosterona, os efeitos colaterais podem se tornar irreversíveis e irremediáveis, mesmo após a interrupção do tratamento. Em suma, as alterações e anomalias propostas nesta nova modalidade de castração, não desfazem o seu componente degradante e cruel ao corpo humano. Outrossim, em se tratando de crimes sexuais, é imprescindível a análise de suas causas e a possível associação destas a fatores naturais ou biológicos da vida ou a eventos sociais. Neste aspecto, Alexandre Aguiar 242

(2007) explica que: Várias pesquisas indicam que a testosterona, hormônio ligado à sexualidade e à violência, é um dos fatores comumente presentes naquelas pessoas que cometem crimes. Não é à toa que a maioria dos homicidas são homens na faixa etária de 15 a 39 anos. Eles têm níveis de testosterona 15 a 20 vezes maiores que as mulheres, e é nessa faixa etária que esse hormônio atinge o auge no corpo.

Todavia, a Biologia, por si só, é incapaz de sintetizar a ocorrência de todos os crimes a uma única causa, haja vista que, acompanhando a estatística acima, existem ainda, por exemplo, homicidas mulheres, idosos e até infantes. Então, buscando-se estabelecer a motivação da prática delituosa, Alessando Baratta (2002) explica que: “O delito era conduzido assim, pela Escola Positiva, a uma concepção determinista da realidade em que o homem está inserido, e da qual todo o seu comportamento é, no fim das contas, expressão.”Logo, a prática do crime estaria associada a uma série de fatores sociais que circundam a vida do criminoso, sendo, portanto, os atos dos delinquentes reflexos da própria sociedade em que estão inseridos. Mas, afinal, seriam fatores biológicos ou fatores sociais os condutores da prática delitiva contra a dignidade sexual? Nesse sentido, para se definir a motivação destes crimes, se faz necessário o estudo do perfil psicológico do abusador sexual. Notoriamente, entre os crimes sexuais, os que causam maior espanto à sociedade são aqueles relacionados a pedofilia, o que, em suma, refere-se à atração sexual por crianças (“ped” tem origem grega e significa “criança”). Na maioria dos casos de pedofilia a criança tem menos de 13 anos, pré-púbere, e o indivíduo molestador é um homem de 16 anos ou mais, pós-púbere (HOLMES, 1997). Portanto,

enquanto

desordem

mental

e

de

personalidade

do

indivíduo, a pedofilia é uma espécie de parafilia, a qual constitui o gênero dos transtornos mentais relacionados ao sexo, sendo definidas como distúrbios qualitativos ou quantitativos do instinto sexual, podendo existir como sintoma numa perturbação psíquica, como intervenção de fatores 243

orgânicos glandulares, ou simplesmente como questão da preferência sexual (FRANÇA, 2001). Associando as razões que podem ensejar o surgimento da pedofilia, sabe-se que

alterações funcionais cerebrais, principalmente em região de

lobos frontal e temporal, estão implicadas com esta doença. Além disso, experiências

sexuais

precoces

(abuso

sexual),

inabilidades

sociais,

experiências de negligência parental, inadequadas formas de aprendizagem sexual, alterações neuroquímicas têm sido apontadas na etiologia da Pedofilia (BALTIERI, 2009). No tocante aos demais crimes de abuso sexual contra vítimas maiores de 13 anos de idade, é possível estabelecer sua motivação a partir do estudo de comportamentos evidenciados pelos agressores (de conotação biológica

ou

social),

as

características

do

crime

(finalidade,

atos,

planeamento), e a escolha e características das vítimas. Assim, os sujeitos que partilham critérios comuns são identificados, descritos e, em seguida, classificados em categorias distintas. Porém, é possível e comum encontrar tipos de violadores que são incoerentes ou que não podem ser enquadrados nos critérios anteriores. Nesse entendimento, para Jocelyn Aubut (1993), é possível a definição de quatro grandes categorias para classificar os denominados violadores, sendo estas: a)Busca pelo poder – Nesta categoria, estão elencados os homens que se sentem inaptos ou fora dos padrões perante a vida em geral e face às mulheres em particular, sentindo-se incapazes de estabelecer um contato íntimo com as mulheres e a sociedade em geral. Por esta razão que, para eles, a violação sexual vem a ser um teste em relação a sua competência sexual e a si mesmo, uma maneira de se afirmar enquanto homem dominante em seu grupo social. Assim, o indivíduo que busca pelo poder, incorre na conduta ilícita de maneira planejada e astuciosa, escolhendo geralmente vítimas da sua idade e visa a capturá-las, dominá-las e, por fim, conquistá-las, por exemplo, explicando-lhes, após o delito, que não queria magoá-las. b)Raiva– Aqui se inserem os indivíduos que cometem o ato ilícito de maneira brutal, cruel, impulsiva e espontânea. Através da violação sexual, o indivíduo busca humilhar e ferir a vítima, isso porque, não agem motivados pela sua excitação ou libido, mas sim pela sua raiva. E, estas violações ocorrem, na maioria das vezes, devido a algum conflito, preexistente entre o autor e a vítima. Logo, para o agressor, abusar sexualmente da vítima seria antes uma vingança ou desencargo de sua raiva, do que simplesmente a exploração do corpo

244

desta. c)Sadismo - O violador sadista é caracterizado pela prática ritualizada de outro crime diferente do abuso sexual (por exemplo, o roubo e o sequestro), mas que, durante a prática deste, o indivíduo inflige maus tratos (golpes, tortura, queimaduras, lacerações) erotizados sobre a vítima. Aqui, ocorre uma fusão da sexualidade com a agressão, mas estas não são voluntárias, são planejadas a fim de proporcionar prazer ao abusador. Suas vítimas são geralmente desconhecidas, mas portadoras de características desejadas pelo agressor, como idade, roupas, aparência, status social, etc. d)Comportamento antissocial – Nesta, o agressor apresenta uma vasta história de degradação e de comportamentos antissociais. Vive à margem da sociedade e procura, sobretudo, a satisfação das suas necessidades. Revela-se impulsivo, mas não sente raiva perante as mulheres, pois, para ele, elas são um mero objeto que lhe permite satisfazer as suas necessidades. Importante destacar que para estes abusadores o delito sexual é secundário ao seu modo de vida, e se dá, principalmente, em razão de sua problemática mais antissocial do que sexual. (grifo nosso).

Veja-se que esta classificação aponta a motivação dos crimes sexuais para além de fatores biológicos, apresentando, como principal causa, fatores sociais que norteiam e compõe a vida do indivíduo que comete estes crimes. Logo, se os crimes sexuais são cometidos tanto por fatores biológicos quanto por fatores sociais, não seria a castração química enquanto medida punitiva a solução deste problema, pois, conforme exposto acima, a violência sexual não está essencialmente fundamentada na satisfação de um desejo e não se refere, em todas as situações, em um excesso hormonal. Assim, a administração da castração química no sujeito delinquente, além de causar inúmeros efeitos colaterais em seu corpo, com certeza não faria com que este compreendesse que é imoral, criminoso, bárbaro e cruel abusar sexualmente de outrem. Nos mesmos termos posiciona-se Spalding (1997, tradução nossa): MPA tem sido usada com sucesso em um único tipo de ofensor sexual, os parafílicos, que demonstram um padrão de excitação sexual, ereção e ejaculação que é acompanhada por distintas fantasias. Enquanto o MPA tem sido provado com sucesso em alguns portadores de parafilias, deve ser considerada a opinião científica que a droga não tem uma expressiva influência nos demais tipos de criminosos sexuais, os quais também estão incorporados no âmbito do novo estatuto: os réus que negam a perpetração da agressão; os réus que admitem a perpetração da agressão, mas justificam o seu comportamento em forças não-sexuais ou não-pessoais, como drogas, álcool e estresse; e os réus que são violentos e parecem ser instigados por fatores não-sexuais, como poder, fúria ou violência.

245

Não obstante, sequer aos indivíduos diagnosticados como portadores da pedofilia a castração química se apresenta como medida apropriada, como explica Danilo Baltieri (2009): Medicações para controlar a ação da testosterona são muito poucas vezes necessárias para a população de pessoas que padecem da doença médica conhecida como Pedofilia. A princípio, cerca de 90% dos portadores de Pedofilia conseguem adequada resposta terapêutica através da psicoterapia e de medicações como antidepressivos e outras medicações que auxiliam no controle dos impulsos sexuais desviados. Medicações que controlam a ação da testosterona, conhecidas como medicações hormonais, podem ser necessárias para os restantes 10%, quando nenhuma outra forma de tratamento produziu efeitos adequados, em termos de cessação de impulsos sexuais desviados.

Para mais, Spalding (1997) explica que, para se submeter ao tratamento com a administração da castração química, o agressor sexual deverá se apresentar regularmente ao médico designado, pelo prazo estabelecido em sua pena, para que se efetue a aplicação dos medicamentos hormonais. Assim, encontra-se dificuldade no tratamento em razão desta obrigatoriedade da administração dos inibidores hormonais, haja vista que, caso a apresentação regular não seja obedecida pelos indivíduos, pode, ainda, levar os delinquentes ao aumento da produção da testosterona, provocando, de maneira inversa da pretendida inicialmente, uma maior incidência na prática de crimes sexuais. Ainda, referente à eficácia da castração química em impedir a prática de novos crimes sexuais, David Holmes (1997, p. 424) assevera que, apesar de reduzir o desejo sexual, tal procedimento não elimina necessariamente “a excitação e o comportamento sexual”. Exemplificando, o autor refere que na Alemanha, dos 39 estupradores castrados, 50% deles relataram que ainda eram capazes de ter relação sexual. Pelo

exposto,

constata-se

que

a

administração

de

inibidores

hormonais não acarretaria, necessariamente, a redução do desejo e da violência sexual, pois o indivíduo que se vê privado de sua virilidade, ainda poderá incidir na prática de crimes sexuais, porém, estando, em tese, privado da ereção peniana, utilizará outros métodos libidinosos para abusar sexualmente da vítima (VIEIRA, 2008, p. 20). 246

Destarte, encontra-se aqui um enorme equívoco quando se interpreta que a castração química enquanto medida punitiva seria capaz de evitar a reincidência do indivíduo a ela submetido, pois, além das considerações já colacionadas, sendo os crimes sexuais praticados por questões biológicas e sociais, os motivos que conduziriam o sujeito a delinquir continuariam a existir mesmo após a castração. 3. EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS NO DIREITO COMPARADO E AS PROPOSTAS LEGISLATIVAS NO BRASIL Não é de hoje que a castração química vem sublevando-se como tema polêmico em vários países. Com marco inicial, na década de 1990, com o advento da publicização de inúmeros casos de abusos sexuais praticados contra crianças, adolescentes e mulheres de todas as idades, teve início - no Brasil e em vários outros países - um movimento a favor do recrudescimento do Direito Penal em relação à penalização de crimes praticados contra a liberdade, a dignidade e a incolumidade sexual (SILVEIRA, 2008). Assim, a castração química surgiu como uma resposta à indignação do corpo social com um sistema punitivo estatal que castiga mas não reabilita. E diante deste contexto de insegurança e revolta populacional, alguns países passaram a admitir em seus ordenamentos jurídicos a implantação da castração química como sanção penal autores de delitos sexuais. A primeira forma de castração química como punição a crimes sexuais, surgiu no Estado da Califórnia (EUA), no ano de 1997, com a previsão legal, no ordenamento jurídico estadual, de aplicação da castração química como medida punitiva a crimes sexuais. Destarte, Bruno Fontenele Cabral (2010) refere que, seguindo os passos do Estado da Califórnia, outros Estados americanos, como Iowa, Texas,

Flórida,

Luisiana,

Wisconsin,

Geórgia

e

Montana,

também

estabeleceram, em seus ordenamentos jurídicos estaduais, a aplicação legal da castração química de forma voluntária ou obrigatória. Da mesma forma, outros países também introduziram a castração 247

química em seus diplomas legais e admitiram sua aplicação a criminosos sexuais. São exemplos: Grã-Bretanha, Suécia, Itália, Dinamarca, Alemanha, Moldávia, França, Áustria, Dinamarca e Coréia do Sul. No Brasil também houve campanhas no sentido de implantar no ordenamento jurídico pátrio a castração química como medida punitiva, sendo que, nos últimos 20 anos, foram apresentadas inúmeras propostas legislativas com essa temática. A exemplo: PEC nº 590/98; Projeto de Lei nº 7.021/02; Projeto de Lei nº 552/07; Projeto de Lei nº 5122/2009; Projeto de Lei nº 349/11; Projeto de Lei nº 597/11; entre outros mais. Contudo, de todos os projetos de lei apresentados, merece destaque o Projeto de Lei nº 552/07, por ter sido o único projeto a obter parecer favorável. Este projeto de lei, apresentado pelo Senador Gerson Camata, semelhante aos demais projetos, visava acrescentar ao Código Penal a pena de castração química ao autor de crimes sexuais contra crianças. Este projeto legislativo, em razão do caráter de voluntariedade previsto em seu texto – prevendo a castração química como um tratamento que seria aplicado apenas aos apenados que realmente desejassem a ele se submeter -, teve parecer favorável do relator Ministro Marcelo Crivella. No entanto, após seu trâmite ordinário, o Projeto de Lei nº 552/07 foi, enfim, arquivado. Contudo, frise-se que todas as propostas legislativas apresentadas foram arquivadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em virtude da explícita violação a dispositivos constitucionais e direitos e garantias

individuais,

sobretudo

a

dignidade

da

pessoa

humana,

assegurados pela Constituição Federal brasileira. 4. DA INADMISSIBILIDADE DA ADOÇÃO DA CASTRAÇÕ QUÍMICA COMO MEDIDA PUNITIVA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO: a violação ao princípio da dignidade Em relação ao Direito Constitucional Penal, um dos princípios que possui especial relevância é o da dignidade da pessoa humana. Referido princípio exerce papel fundamental no sentido de permitir a validade 248

constitucional de diversos institutos jurídicos da seara penal. Para Alexandre de Moraes (2005, p.17): A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve (sic) assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos Direitos Fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III, estabeleceu a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental. Todavia, como explica Marcelo Novelino (2008, p. 26), tal princípio “[...] não é um direito concedido pelo ordenamento jurídico, mas um atributo inerente a todos os seres humanos, independentemente de sua origem, raça, sexo, cor ou quaisquer outros requisitos”. Sob este aspecto, aduzido princípio consolida ao Estado a obrigação de proteção da pessoa humana, de maneira a resguardar, respeitar e promover condições que possibilitem aos seus cidadãos uma vida com dignidade. No entanto, apesar da notória importância dos direitos fundamentais, observa-se hoje o desrespeito e o descrédito crescentes desses direitos, sobretudo em relação à dignidade humana. Por esta razão, é imprescindível que o Estado não apenas abstenha-se da prática de atos que atentem contra essa dignidade, mas também que promova seu fortalecimento, a fim de se efetivar a dignidade a todo sujeito de direito. À vista disso, relativamente à castração química, é evidente que tal medida, enquanto sanção penal, é incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que qualquer medida punitiva que ameace a integridade física e psicológica da pessoa humana é lesiva não apenas ao princípio da dignidade, como também aos direitos humanos em sua essência. Direitos estes que, inclusive estabelecidos em convenções e tratados internacionais, visam a consolidar internacionalmente os direitos fundamentais inerentes ao ser humano. 249

Exemplo é o Tratado da Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominado Pacto de San José da Costa Rica, o qual busca fortalecer a justiça social e à liberdade e autonomia dos cidadãos nos países do continente americano. Assim, importa salientar que, no Brasil, o Pacto de San José da Costa Rica possui equivalência de Emenda Constitucional, como prevê o art. 5º, §§2º e 3º, da Constituição Federal de 1988. Em seu artigo 5º, o Pacto de San José da Costa Rica dispõe, da mesma forma que se encontra disposto nas normas constitucionais e infraconstitucionais brasileiras, sobre o Direito à integridade pessoal do ser humano, destacando o respeito à integridade física, psíquica e moral. Ressaltando ainda que ninguém será submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes, e, que a pessoa que estiver em regime de segregação em casa prisional, deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. Acerca da caracterização das penas cruéis, Alexandre de Moraes (2006, p. 338) explica que: [...] dentro da noção de penas cruéis deve estar compreendido o conceito de tortura ou de tratamentos desumanos ou degradantes, que são, em seu significado jurídico, noções graduadas de uma mesma escala que, em todos os seus ramos, acarretam padecimentos físicos ou psíquicos ilícitos e infligidos de modo vexatório para quem os sofre.

Nesse sentido, percebe-se que a implantação da castração química enquanto medida punitiva no ordenamento jurídico brasileiro, é totalmente incompatível tanto com as normas constitucionais e infraconstitucionais brasileiras, como também com o próprio direito positivo brasileiro. Por conta disso, não se pode outorgar propostas legislativas que desrespeitem a superioridade da Carta Magna pátria, violando princípios fundamentais sob os quais a própria nação mantém seu alicerce. Portanto, tem-se a castração química como uma sanção penal totalmente contrária aos fundamentos da República Federativa do Brasil. Isso porque, ao ser usada como medida punitiva a agressores sexuais, a castração química acaba ferindo não só princípios fundamentais inerentes a todo ser humano, mas também diversos dispositivos constitucionais. 250

5. A CASTRAÇÃO QUÍMICA COMO DIREITO DO CONDENADO Ultrapassada a discussão constitucional sobre o tema, questiona-se, então,

acerca

da

possibilidade

do

indivíduo

apenado

optar,

espontaneamente, por se submeter à castração química. Possibilidade esta que já é realidade em muitos países e que também foi trazida a discussão no Brasil, quando do advento de algumas propostas legislativas que, conforme abordado anteriormente, buscavam a implantação da castração química como medida punitiva no sistema jurídico nacional. Sabe-se que, dentre as finalidades da pena, estão a ressocialização do reeducando e a prevenção de novos delitos. Apesar da crise de legitimidade que afeta a pena privativa de liberdade na contemporaneidade, a pena de castração química, para seus defensores, insurge-se como o método menos desumano e mais eficaz no combate à criminalidade sexual, bem como, para eles,

seria

plenamente

possível

sua

adequação

aos

parâmetros

do

ordenamento jurídico brasileiro. Para seus idealizadores, a conversão da castração química em um direito do apenado, de maneira que este pudesse optar ou não a submeter-se ao tratamento, tornaria esta medida punitiva legitima sob o aspecto constitucional,

uma

vez

que

estariam

respeitados

os

direitos

constitucionais do condenado e colaboraria com a diminuição dos crimes sexuais. Assim, aquele que se dispusesse a realizar o tratamento seria beneficiado com uma redução da pena que poderia variar entre um e dois terços, em analogia ao benefício da delação premiada, prevista na Lei 8.072/90. A lógica é simples: parte da pena de prisão tornar-se-ia desnecessária, pois a função ressocializadora estaria sendo atingida também por meio da castração química. O condenado teria a opção de cumprir a pena nos termos da lei atual ou de submeter-se ao tratamento durante todo o período em que ele não estivesse encarcerado. Obviamente, esse tratamento somente poderia ser feito após laudo médico que comprovasse sua necessidade e com o pertinente apoio psicológico. Hipoteticamente falando, um estuprador condenado a nove anos de reclusão poderia cumprir de três a seis anos da pena, sendo que, no restante do período, ele deveria 251

comparecer ao local adequado para exames e aplicação do hormônio feminino. Caso ele interrompesse o tratamento, a solução seria prendê-lo novamente para que cumprisse o restante da pena. (AGUIAR, 2007). Nesse contexto, Bruno Fontenele Cabral (2010) destaca a axiomática ligação entre a pena de castração química de criminosos sexuais e o livro "Laranja Mecânica",deJohn Anthony Burgess (2004), no qual o protagonista do livro,Alex, criminoso sexual condenado, é usado, com sua autorização expressa, numa experiência científica criada pelo Estado para a eliminação de seu comportamento criminoso por meio da aplicação do método denominado Ludovico. Ressalte-se que, ao submeter-se a tal experiência, Alex teria um período considerável de sua pena descontada. Tal método baseava-se em um tratamento psiquiátrico que, através de choques, eliminava as reações do condenado sempre que nele se manifestasse o desejo de delinquir ou um comportamento considerado inadequado. Após ser posto em liberdade, Alex não mais volta a delinquir, porém, o faz não por estar ressocializado, mas simplesmente porque ele era atingido por uma dor extrema sempre que cogitava praticar algum delito. Contudo, verifica-se que, hipoteticamente, em sendo admitida no ordenamento jurídico brasileiro, a pena de castração não obteria, por si só, resultados eficazes no combate à criminalidade sexual, pois ainda seria necessária uma rede completa de atendimento psicológico e social ao apenado. Ainda assim, mesmo que de maneira facultativa, a adoção de tal medida punitiva como sanção aos autores de crimes sexuais, além de confrontar diretamente normas constitucionais e infraconstitucionais, não atende as funções precípuas da pena, uma vez que, de acordo com o conjunto de considerações trazidas à baila, a castração de um indivíduo não impedirá que este venha a se tornar um criminoso reincidente específico, e, tampouco, inibirá a prática de delitos sexuais da sociedade (CABRAL, 2010). Em um quadro mais gravoso, tem-se que, além de mostrar-se ineficaz sob o aspecto ressocializador da pena e de violar normas e princípios constitucionais, admitir a castração química como sanção penal também implicaria em um retrocesso jurídico ao direito brasileiro, na medida em que 252

se abriria precedentes e, assim, promoveria o ressurgimento das sanções penais corpóreas e desumanas muito utilizadas em séculos passados. Ademais, ainda que não seja imposta como pena, mas como um tratamento facultativo que possa importar na redução da pena ou na extinção da punibilidade, a castração química não encontra amparo constitucional para sua implantação, à medida que implicaria em impor ao condenado a escolha entre ser submetido a um tratamento hormonal cruel e degradante ou a cumprir integralmente a pena privativa de liberdade a que foi condenado - em uma casa prisional que não oferece as mínimas condições da manutenção de sua dignidade. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por todo o exposto, verifica-se que a discussão de penas alternativas no sistema jurídico penal brasileiro, em especial quando se tratam de propostas legislativas no sentido de recrudescer a punição Estatal em relação à criminalidade, é ainda questão delicada no país. Pois, mesmo nos dias de hoje, a sociedade, e inclusive os legisladores, enxergam na punição a panaceia da criminalidade, uma solução baseada no castigo e na dor pela qual o condenado deve ser submetido para “pagar” por seus erros. E isso evidencia-se à medida que os legisladores brasileiros violam dispositivos constitucionais, promovendo propostas legislativas que vão de encontro ao texto legal da Carta Magna de 1988, como o caso dos projetos de lei que pretendem implementar a castração química no sistema punitivo brasileiro. Nesse contexto, as mudanças legislativas na esfera penal não podem ser fruto de ideais que contrariem os valores democráticos e busquem, de forma distorcida e equivocada, “resolver” os problemas da violência e da criminalidade tão somente com propostas repressivistas e contrárias às propostas de um Direito Penal Mínimo, de caráter subsidiário. Logo, adotar a castração química como recurso punitivo impingiria em uma abertura de precedentes, de maneira a permitir a interpretação legal de que outras penas corporais e cruéis também pudessem vir a ser proporcionais à prática de outros crimes, o que nos aproximaria da 253

desvirtuação do positivismo penal que hoje norteia o Direito Constitucional Penal brasileiro. Ademais, permitir a ocorrência de castração química a criminosos no Brasil, também desrespeita efetivamente os direitos humanos fundamentais dos

apenados,

afrontando

diretamente

dispositivos

constitucionais

e

infraconstitucionais. Sendo assim, evidencia-se, nitidamente, a impossibilidade de se encaixar no ordenamento jurídico brasileiro qualquer medida punitiva capaz de lesionar um princípio que tem como fundamento algo intrínseco à condição de ser humano, qual seja, sua dignidade. REFERÊNCIAS AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O "direito" do condenado à castração química. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1593, 11 nov 2007. Disponível em: . Acesso em: 10 ago 2014. AUBUT, Jocelyn. Les Agresseurs Sexuels: théorie, évaluationettraitement. Montréal: Leseditions de laCheneliére inc. 1993. Disponível em: Acesso em: 11 set 2014. BALTIERI, Danilo. Pedofilia é doença? Revista Guia-me, em 03 jun 2009. Disponível em: . Acesso em: 10 set 2014. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. Disponível em: . Acesso em 10 set 2014. BRASIL. Constituição da república federativa do Brasil de 1988. ______. Câmara dos deputados. Internet, em 1999. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/>. Acesso em: 13 set 2014. ______. Senado federal. Internet, em 2007. Disponível http://www.senado.gov.br/>. Acesso em: 13 set 2014.

em:

<

______. Projeto de lei do senado n.º 552, de 18 de setembro de 2007. Acrescenta o art. 216-B ao decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – 254

código penal, para cominar a pena de castração química nas hipóteses em que o autor dos crimes tipificados nos arts. 213, 214, 218 e 224 for considerado pedófilo, conforme o código internacional de doenças. In: Diário do Senado Federal, Brasília, n° 146, em 19 set. 2007. BURGESS. Anthony. Laranja Mecânica. São Paulo: Editora Aleph, 2004. CABRAL, Bruno Fontenele. Discussão sobre a constitucionalidade da castração química de criminosos sexuais no direito norte-americano. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2593, 7 ago. 2010. Disponível em: . Acesso em: 24 set. 2014. CONVENÇÃO americana de direitos humanos de 1969. Pacto de San José da Costa Rica. FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogam, 2001. HEIDE, Márcio Pecego. Castração química para autores de crimes sexuais e o caso brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1400, 2 maio 2007. Disponível em: . Acesso em: 20 set 2014. HOLMES, David S. Psicologia dos transtornos mentais. Tradução de: Sandra Costa. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. JÚNIOR, Aderbal Vieira. Hormônios contra o crime. Revista Época, em 26 mai 2009. Disponível em: . Acesso em: 06 set 2014. MARQUES, Archimedes. Crimes sexuais: da antiga capação para a moderna castração química. Clubjus, Brasília-DF: 01 abr 2010. Internet, 2010. Disponível em: . Acesso em 14 out 2014. MATTOS, Giovana Tavares de. Castração química: análise crítica sobre sua aplicação como punição para delinquentes sexuais. 2009. 199 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Direito) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009. MORAES, Alexandre de. Curso de direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2005. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. NOVELINO, Marcelo. Da dignidade da pessoa humana. Prática Jurídica. Ano VII, n.º 77, ago 2008. 255

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256

A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL: QUAL SUA EFICÁCIA E POSSÍVEIS MEDIDAS ALTERNATIVAS Lucas Oliveira Vianna1 1. INTRODUÇÃO Para compreender o conceito de maioridade penal, importa remeter-se, previamente, à definição de imputabilidade penal: “conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível” (AMARO, 2004). No artigo 228 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), está disposto: “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. O inimputável, de acordo com o artigo 26 do Código Penal (BRASIL, 1940), é isento de pena. Dessas ideias, extrai-se que maioridade penal é a idade a partir da qual o indivíduo que praticar uma infração pode receber pena. Dessarte, tal punição não é imposta aos adolescentes, sendo-lhes aplicadas, consoante dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD), medidas socioeducativas, que são: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional (BRASIL, 1990). Essas medidas socioeducativas possuem finalidade diferente da pena, pois pretendem garantir a manutenção do vínculo familiar e possuem caráter pedagógico (NETO e GRILO, 1995). No entanto, o aumento da violência urbana nos últimos anos tem preocupado e causado medo na sociedade (SOUZA E CAMPOS, 2007), tanto pelo maior número de ocorrências quanto pela crueldade e técnicas criminosas (RAMOS, 2005). Um dos fatos mais perturbantes é que a violência cometida por adolescentes – e contra eles – vem aumentando em proporções

inusitadas

(KAUFMAN,

2004),

tendo

havido

recorrentes

acontecimentos brutais envolvendo menores de idade, o que tem levado a sociedade a cobrar do Estado que reduza a maioridade penal (ALVES et al., 2009). 1

Atualmente,

a

maior

parte

da

população

apoia

a

redução

Acadêmico do curso de Direito da URI.

257

(DATAFOLHA, 2015), e há diversos projetos em trâmite no Congresso Nacional que propõem a medida (SALES et al., 2013). Essa questão tem dividido opiniões, causado polêmicas, e gerado discussões (CERQUEIRA e MARQUES, 2010). De um lado, os que apoiam a redução, com argumentos como: o ECRIAD se tornou uma proteção para aqueles que desejam cometer crimes, que o fazem na certeza da impunidade (RODRIGUES e HUMILDES, 2008); os adolescentes têm plena consciência de seus atos (SALES et al., 2013), o que se evidencia por terem direito a escolher seu representante político (JORGE, 2002); alguns menores infratores apresentam transtornos graves de personalidade, como psicopatia (KAUFMAN, 2004); outros países que possuem menoridade penal inferior a nossa são mais desenvolvidos e têm menores índices de violência (CUNHA et al., 2006); por sua inimputabilidade, os menores são usados por maiores de idade para cometer crimes (ALVES et al., 2009). Por outro lado, os que são contra a medida sustentam, entre outros fundamentos, que: reduzir a maioridade penal é tratar o sintoma, em vez de a doença, sendo necessário adotar ações que tratem os fatores sociais e reintegrem o infrator à coletividade (CRUCES, 2010); os países que responsabilizam menores mais cedo têm índices de violência menores por outros fatores (ALVES et al., 2009); não há como julgar a eficácia do ECRIAD se ele não é aplicado efetivamente, com os fins para os quais foi concebido (SOUZA e CAMPOS, 2007); a prisão fabrica delinquentes, não reeduca, e contribui para a reincidência (FOUCAULT, 1999); a maioridade penal é cláusula pétrea da Constituição, não podendo ser alterada por emenda (ANDRADE, 2013). Sendo um assunto controverso, atual, e de relevantes consequências para a sociedade brasileira, faz-se oportuno um estudo sobre a eficácia da redução

da

maioridade

penal

como

medida

para

diminuição

da

criminalidade, e possíveis providências alternativas. O presente artigo tem por objetivo fazer isso através da análise das opiniões de diversos juristas, da pesquisa no acervo bibliográfico pertinente, da contraposição dos argumentos opostos, e da ponderação lógica acerca desses argumentos. Não se objetiva que este trabalho configure-se como veredicto absoluto, haja vista que representa uma das óticas sobre o assunto, elaborada com base nos 258

textos da amostra, sendo que o tema envolve uma miríade de fatores demasiadamente numerosos para serem abrangidos por um artigo desta extensão. Tem-se por finalidade concatenar informações de diversos artigos e, com base nessas, estabelecer uma hipótese para o problema proposto. 2. CONTEXTO SOCIAL Para analisar a situação da delinquência juvenil no Brasil, é necessário fazê-lo, como em todo estudo, observando o contexto que cerca o objeto de análise, a fim de evitar construir uma visão fragmentada do mesmo. No que tange à população em geral, dados obtidos pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (BRASIL, 2010) indicaram que 28,7% da população brasileira vive na pobreza (54 milhões de pessoas), o que inclui cerca de 25 milhões de crianças, e que 10% da sociedade (19 milhões) encontra-se em estado de extrema pobreza. A escassez financeira desses jovens, aliada ao consumismo fomentado pela mídia, segundo o qual o grande valor é possuir bens que a maioria das pessoas não tenha (CASTRO, 2002), faz com que muitos deles tentem encontrar uma fonte de renda, tanto para colaborar no sustento seu e de sua família, quanto para adquirir itens os quais são privilégio das classes média e alta. Alguns o fazem por meio do tráfico e de assaltos, outros, através do trabalho. Entretanto, os que escolhem a via laboral encontram diversas dificuldades. Silva e Oliveira (2015), constataram que 85,8% dos adolescentes de 15 anos que trabalham recebem menos de um salário mínimo, e mais de 60% daqueles entre 15 e 17 anos também não percebem esse valor. O estudo ressalta, ainda, que a maioria exerce a atividade na informalidade, sem qualquer proteção social. Além disso, a pesquisa revela que trabalhar precocemente ocasiona, em muitos casos, um atraso no progresso escolar: entre os menores que trabalham, 90% dos que possuem 15 anos não concluíram o ensino fundamental, e 69,4% dos adolescentes de 16 a 17 anos também não completaram esse estágio do ensino. Porém, a deficiência educacional do Estado não se manifesta somente naqueles que necessitam 259

trabalhar. No Brasil, entre os adolescentes de 15 a 17 anos, 84% frequentam a escola, mas apenas 48% no nível de ensino adequado à sua idade (MEC apud BRASIL, 2010). Em 2013, aproximadamente um terço dos adolescentes com idade de 15 a 17 anos ainda não havia terminado o ensino fundamental (SILVA e OLIVEIRA, 2015). Ante esses dados, percebe-se que se apresenta muito mais atrativa a opção pela criminalidade, mormente em razão da improvável ascensão financeira, no regime capitalista, de um indivíduo desprovido de qualificações, que vive em uma comunidade em que um traficante de drogas lhe oferecerá, por uma semana de tráfico, o montante que ele receberia por um mês de trabalho assalariado (CASTRO, 2002). Pode-se verificar que o meio social de origem da maioria dos adolescentes em conflito com a lei é exatamente esse, ao analisar as estatísticas a seguir, que dizem respeito ao contexto social de menores infratores. Um estudo feito pelo IPEA e pelo Ministério da Justiça (SILVA e GUERESI, 2003) apontou que 66% dos adolescentes internados eram oriundos de famílias pobres, 51% não frequentavam a escola e 49% não trabalhavam quando cometeram o delito. Além disso, mais de 60% eram negros. A profissão do pai da maioria dos detentos é pedreiro, 28% sequer sabem a profissão do pai, e 34% possuem mãe doméstica, diarista, ou faxineira (FEBEM, 2006). Dos internos, 89,6% não haviam concluído o Ensino Fundamental, apesar de estarem em uma faixa etária equivalente à do Ensino Médio (16 a 18 anos) (SILVA e GUERESI, 2003). Uma das maiores causas do envolvimento em atos infracionais é a evasão escolar, visto que, sem estar estudando, o menor se torna ocioso e mais suscetível de cometer delitos (VIEIRA apud ESTEVÃO, 2007). Esses dados corroboram a ideia supracitada de que pobreza, evasão escolar e falta de trabalho não só estão relacionados entre si e com a delinquência juvenil, mas são as principais causas desta. Outro aspecto determinante é a exposição desses menores às drogas, que se encontram facilmente acessíveis nas comunidades em que vivem. Uma pesquisa efetuada pelo Conselho Nacional de Justiça (BRASIL, 2012) demonstrou que 74,8% dos adolescentes internos são usuários de entorpecentes. Dentre esses, 89% usavam maconha, 43% cocaína, e 21% crack. Vieira apud Estevão (2007) destaca que a pobreza, o uso de drogas e a 260

influência de amigos são as principais razões para a prática delituosa, igualando-se em números, o que denota a fragilidade do adolescente à influência de terceiros, e a íntima relação da delinquência juvenil com o uso de drogas. A exclusão social vivenciada diariamente pelos menores das comunidades carentes incentiva-os a procurarem espaços de participação, mecanismos e meios de sair do anonimato e da indiferenciação, o que os leva a formarem grupos juvenis de comportamento violento e delinquente, como as gangues, com o intuito de manifestar a revolta pela exclusão não apenas socioeconômica, mas também simbólica (SILVA e OLIVEIRA, 2015). Outro fator determinante é a desestruturação dos núcleos familiares em que vivem esses adolescentes. Primeiramente, para se compreender a importância

da

desenvolvimento,

família em

na

uma

formação

pesquisa

dos

feita

valores

pela

do

UNICEF

menor (2002)

em com

adolescentes de diversas faixas de renda e regiões, a família foi escolhida por 85% dos participantes como a principal responsável pela garantia do bemestar e dos direitos dos adolescentes. Ocorre que, na maioria dos casos, os adolescentes em conflito com a lei não têm esse amparo. Amaral (2012), em uma entrevista com um ex-detento, relatou que ele disse que “onde ele mora, as crianças já matam, porque são largadas, os pais não educam, não conversam, não dizem o certo e o errado”. Uma das principais causas de transtornos de conduta e, consequentemente, da criminalidade entre menores é a falta – ou desajuste – da figura paterna. Ratificando essa ideia encontram-se as pesquisas, que demonstram que a maioria dos jovens internados foi criada apenas pela mãe (BRASIL, 2012; FEBEM, 2006), 27% dos internos possuem histórico de abuso de álcool na família, e, dentre esse grupo, 48% por parte do pai. Outrossim, confirmando a relação entre desestabilidade familiar e propensão à criminalidade, em 29% das famílias dos menores houve morte violenta, sendo 93% por alguma forma de assassinato (FEBEM, 2006). Ao encontro dessa ideia vêm Shikida et al. (2014), que registram que, em 38% dos casos de adultos em conflito com a lei, havia antecedentes criminais no seio familiar. Diante dessas informações, conclui-se que o jovem infrator não é um fenômeno acidental, fruto de sua própria natureza inerentemente má, salvo 261

raras exceções, e sim o resultado de uma série de fatores que, por serem sociais, denotam um insucesso do Estado. 3. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E CONTRÁRIOS Neste espaço, serão abordados os pontos principais que permeiam o debate sobre a maioridade penal, comparando os argumentos de ambos os lados, com o objetivo de averiguar a qual posicionamento assiste razão. 3.1. Voto Jorge (2002) argumenta que, se o menor com 16 anos completos tem discernimento para escolher seu representante através do voto, também o tem para discernir o caráter ilícito de um crime. Essa é uma das alegações mais recorrentes, inclusive, nos projetos de lei. Todavia, um voto e um crime são atos jurídicos completamente distintos, e o discernimento para um não pode servir como base para se deduzir o discernimento para o outro (ALVES et al., 2009). O uso imprudente do direito político – ao votar-se em um candidato inadequado – não gera, na vida do menor, as consequências nefastas que advém do cometimento de um crime. Disso depreende-se que é necessário um discernimento muito maior para o segundo. 3.2. Transtornos psicológicos Kaufman (2004), em consonância com alguns defensores da redução, afirma que alguns dos adolescentes em conflito com a lei são portadores de transtornos de personalidade graves, como a sociopatia e a psicopatia, e que para a maldade inerente não há tratamento médico, e talvez nem exista reeducação possível. Não obstante tenha-se realmente observado patologias em alguns adolescentes, isso não sustenta a redução da maioridade penal, mas a contraria. Se o menor possui algum transtorno, precisa receber tratamento psicológico e psiquiátrico adequado, uma vez que a prisão não irá recuperá-lo, mas sim agravar a sua conduta antissocial, e, ao fim de sua 262

pena, será menos suscetível de receber com efetividade um tratamento (CRUCES, 2010). O que esse conceito confronta é o limite de prazo da internação. Amaro (2004) relata que, em 40 anos tratando pessoas que podem ser consideradas normais do ponto de vista social e psiquiátrico, observou que se pode levar mais de uma década para obter sucesso no tratamento, o que denota a insuficiência do prazo de três anos de internação para regenerar adolescentes autores de delitos graves. 3.3. Aliciadores de menores Suscita-se, frequentemente, no debate acerca da redução, que a impossibilidade de penalização de menores propicia que quadrilhas os utilizem para serem responsabilizados por crimes graves coordenados por maiores, tendo em vista que sua punição será mais branda (KAUFMAN, 2004). Todavia, é esse adulto quem responde penalmente tanto pela prática do crime, quanto pela corrupção do menor, nos termos do artigo 244-B do ECRIAD (ALVES et al., 2009). O que se faz imperioso é uma aplicação efetiva da legislação existente. Além de que, se a maioridade penal for reduzida para 16 anos, aliciadores recorrerão aos adolescentes de 15 anos; caso seja reduzida para 14 anos, utilizarão os de 13, e assim por diante. A questão principal não é a inimputabilidade penal, mas sim o contexto em que os menores estão inseridos desde a infância, vulneráveis à influência de traficantes, sem perspectiva de emprego e renda, sem condições econômicas básicas, com educação precária e núcleos familiares completamente desestruturados (RODRIGUES e HUMILDES, 2008). 3.4. Apoio da população Também pesa a favor da redução o fato de ser apoiada pela maior parte da população. Atualmente, 87% dos brasileiros são favoráveis a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos (DATAFOLHA, 2015). Entre estes, 74% defendem que ela deva valer para qualquer tipo de crime cometido, e 26% entendem que deve ser aplicada apenas para crimes 263

específicos, como homicídio e estupro. Porém, isso se deve ao enfoque exacerbado da mídia sobre os atos infracionais praticados por adolescentes (MONTE et al., 2011). A forma como a imprensa representa esses indivíduos é estigmatizante, como se a conduta criminosa fosse algo definitivo no seu futuro, integrante da sua própria constituição como sujeito, como se não houvesse qualquer laço social ou afetivo que pudesse servir de alicerce para sua transformação em um “homem de bem” (ESPÍNDULA et al., 2006). Uma pesquisa feita por Galvão e Camino (2011), com estudantes, demonstrou que aqueles que opinaram favoravelmente à redução da maioridade penal utilizaram

argumentos

típicos

dos

estágios

inferiores

da

tipologia

kohlberguiana, ou seja, apresentaram reduzida capacidade de julgamento moral, bem como argumentos repetitivos e rasos. As estatísticas, no entanto, são incompatíveis com o que a imprensa apresenta. Cuneo (2001) afirma que, conforme o Fórum Nacional de Defesa da Criança e do Adolescente, aproximadamente 10% do total de crimes, no Brasil, são cometidos por menores. Dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida; em contrapartida, eles são as principais vítimas da violência: 36,5% das mortes, por fatores externos, de adolescentes no País, têm como causa homicídios, ao passo que para a população total correspondem a 4,8% (UNICEF, 2015). Um estudo feito pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ (BRASIL, 2012) que analisou mais de 14 mil processos apontou que, dos atos infracionais cometidos por internos, a maior parte concentrava-se em infrações contra o patrimônio (52%) e relativas a tóxicos (26%), enquanto que apenas 18% eram contra a pessoa, e 1% contra a dignidade sexual. Como se pode extrair das estatísticas, conquanto a mídia faça parecer que os estupros e homicídios cometidos por menores são numerosos, a maior parte dos delitos não é de alta gravidade. Ocorre que, em virtude de alguns casos terem ocasionado forte comoção social, a mídia os coloca excessivamente em foco, o que causa uma generalização por parte da população acerca da crueldade dos menores delinquentes.

264

3.5. Inimputabilidade vs. impunidade Aqueles que apoiam a redução aduzem que o ECRIAD é uma lei demasiadamente branda, que garante direitos ao menor, mas não explicita deveres, e que não prevê consequências para seus atos (GRANDINO, 2007). Segundo estes, a legislação atual gera uma sensação de impunidade por parte dos menores, fomentando a sua inconsequência, por protegê-los de uma punição. Contudo, um estudo realizado por Cunha et al. (2009) demonstrou haver uma correlação positiva entre a idade e a gravidade do delito, ou seja, adultos apresentaram uma média de gravidade de delitos maior do que adolescentes, o que não ocorreria se a imputabilidade penal prevenisse a criminalidade. Não há uma falta de punição ao adolescente delinquente, pois a internação não deixa de ser uma privação da liberdade. Vale registrar que, conforme observa Estevão (2007), para que um criminoso adulto cumpra 3 anos no regime fechado (ao qual corresponde a medida de internação), sua pena de reclusão não pode ser inferior a 18 anos, uma sanção muito raramente aplicada. A título de exemplo, o autor cita o roubo com emprego de arma de fogo, cuja pena, em regra, é aplicada em 5 anos e 4 meses de reclusão, e o estupro com violência presumida (que pode possuir vítima menor de 14 anos) cuja pena, em regra, é fixada em 6 anos de reclusão. Nesses dois exemplos, em tese, é possível a determinação do regime inicial semiaberto para o cumprimento da pena, e, mesmo que na condenação seja fixado o regime inicial fechado, depois de cumprir menos de um ano da reclusão, no primeiro exemplo, e um ano, no segundo, o sentenciado já poderá progredir para a semiliberdade. Ainda se deve ponderar que a privação da liberdade, por 3 anos, de uma pessoa com 16 anos, tem muito mais impacto do que para uma pessoa com 30 anos (SILVA e OLIVEIRA, 2015). Destarte, comparando os dois sistemas, é visível que a medida de internação não é tão branda quanto alegam os defensores da redução.

265

3.6. A prisão Um argumento muito levantado por aqueles que se posicionam contrários à redução é que colocar menores em contato com criminosos contumazes e experientes agravaria sua situação de antissociabilidade e, consequentemente, a reincidência. Um relatório apresentado pela Comissão dos Direitos Humanos e Minorias (Brasil, 2006) mostrou que praticamente todos os estados do Brasil apresentam presídios superlotados, alguns na ordem de 200%, com problemas como: falta de assistência médica aos presos doentes; má qualidade da água e da comida; prática de tortura e corrupção por parte dos agentes e da polícia; falta de acompanhamento psicológico e insalubridade das instituições. Na penitenciária de AraquaraSP, que possui somente 160 vagas, o relatório apontou haver 1.500 presos. A superlotação gera problemas como violência entre os presos, rebeliões, motins e greves de fome, que denunciam à sociedade a situação caótica das prisões (AMARAL, 2012). Se essas condições se mostram inadequadas a promover a regeneração de um adulto em conflito com a lei, tanto mais serão insuscetíveis de recuperar um adolescente, que, por estar em fase desenvolvimento, sofre maior influência de fatores externos. Inserido em um ambiente nocivo, que instiga o menor a ser ainda mais agressivo, o adolescente, que já se encontrava descontente e revoltado pela exclusão social que sofria, encontrará em grupos violentos formados dentro da prisão a oportunidade de se autoafirmar e extravasar toda a sua insatisfação perante a sociedade que o encarcerou. Estevão (2007) reforça essa ideia, ao lembrar que os dois grupos que mais atemorizam a sociedade – “PCC” e “Comando Vermelho” – surgiram dentro de cadeias. O mesmo autor questiona: que resultados obteríamos da convivência de menores de 18 anos com integrantes de grupos desse tipo? Conjuntamente, importa assinalar que o menor, por estar em fase de formação, deve receber medidas com caráter pedagógico e reeducativo, o que vai de encontro à natureza punitiva prisional, uma vez que o sistema penitenciário não se preocupa com a reintegração, mas busca apenas a retribuição vingativa e penalizante ao indivíduo que infringe a lei (LOCHE e 266

LEITE apud BARBATO, 2004). A função de ressocialização perdeu-se no tempo, transformando o presídio em um mero exílio forçado de criminosos, com o único objetivo de conferir à sociedade a proteção que ela deseja (BITTENCOURT apud AMARAL, 2012). Desde o momento em que ingressa na penitenciária, o sujeito inicia um processo de despersonificação que mudará substancialmente o conceito que tem de si mesmo (AMARAL, 2012). Assim como a FEBEM não é uma instituição adequada para satisfazer sua finalidade, as prisões também se configuram como meio que desumaniza o indivíduo e reproduz a prática criminosa (BARBATO, 2004). Com o fito de entender as influências da pena em vidas de ex-detentos, foram feitas pesquisas com os mesmos, as quais evidenciaram diversas dificuldades que encontraram para serem socialmente aceitos e desligarem-se do período em que estiveram presos (CRUCES, 2010). Entrevistas feitas com egressos desse sistema demonstraram que eles enfrentam muita dificuldade para conseguir emprego, já que quase todas as empresas em que comparecem solicitam a Certidão de Antecedentes Criminais (AMARAL, 2012). Isso valida o fato de a infração cometida por menor não gerar antecedentes criminais para depois da maioridade, cujo propósito é não estigmatizar o indivíduo, facilitando a sua reinserção na sociedade. Tendo conhecimento desses dados, pondera-se que colocar os adolescentes no sistema carcerário sacia a revolta da população, enquanto, em contrapartida, alimenta a revolta do menor e dificulta o seu afastamento da vida delituosa. O que importa mais: aplacar a sede de vingança da sociedade, e transformar o jovem infrator em um criminoso contumaz, ou tentar impedir o progresso da sua criminalidade e capacitá-lo a conviver com essa sociedade, antes de recorrer à exclusão? 4. DISCUSSÕES EM TORNO DO ECRIAD 4.1. Evolução e conjuntura internacional Outro argumento dos defensores da redução é que o ECRIAD não seguiu a nova conjuntura social, sendo uma legislação atrasada, antiquada e 267

obsoleta, visto que contraria o movimento do Direito, e que se encontra estática diante de um tema que demanda novas reflexões (CERQUEIRA e MARQUES, 2010). Para eles, é cabível a redução da maioridade penal, já que o progresso do mundo, com a globalização e o fácil acesso à informação, ocasionou o amadurecimento mais precoce das crianças, que possuem plena compreensão do caráter ilícito de seus atos, devendo a lei se adequar a esse novo cenário social (JORGE, 2002). Eles entendem que a maioridade penal de 18 anos, prevista pelo ECRIAD, foi estabelecida em uma época na qual as pessoas de 18 anos eram muito mais ingênuas, mais “crianças” do que atualmente (KAUFMAN, 2004). Para esse ponto de vista, nossa legislação também está atrasada no cenário global, em que muitos países, como Estados Unidos, China, Rússia, entre outros, estabeleceram uma idade de imputabilidade penal menor (BORRING apud CUNHA et al., 2009). Todavia, segundo Alves et al. (2009), o ECRIAD é um texto legal internacionalmente pioneiro no respeito aos direitos da criança e do adolescente. Diferentemente de muitas leis que surgem pelas mãos de uns poucos políticos, o ECRIAD é resultado de um trabalho coletivo, do qual participaram

pessoas

diretamente

envolvidas

com

as

crianças

e

adolescentes, e inclusive os próprios menores, por meio de atividades promovidas por associações e organizações (GRANDINO, 2007). Além disso, a legislação atual que trata da infância e da adolescência no Brasil está de acordo com o direito internacional, e qualquer alteração na maioridade penal que diminua os direitos desse grupo contrariará os acordos e convenções dos quais o Brasil é signatário (SILVA e OLIVEIRA, 2015). Outrossim, segundo Alves et al. (2009), não se pode analisar isoladamente a maioridade penal reduzida de países desenvolvidos, e alegar que essa seja a causa dos baixos índices de violência, como se fosse uma relação de causa e efeito. Para os autores, deve-se considerar também outros indicadores, como o acesso à educação, à segurança, ao emprego e à saúde, pois estes colaboram de forma considerável para a diminuição da violência, além de serem os indicadores responsáveis por esses países estarem na categoria de desenvolvidos. Ademais, entendemos que não se pode auferir a consciência meramente com base na compreensão de ser ilícito o fato. Deve268

se ponderar, juntamente, a consciência moral do indivíduo, ou seja, a compreensão de que sua ação é moralmente condenável. Ocorre que a maioria dos menores em conflito com a lei não receberam, em seu desenvolvimento, tanto do âmbito familiar quanto da comunidade em que vivem, os valores morais corretos. Ao encontro dessa ideia vêm Rodrigues e Humildes (2008), ao alertar que se deve abordar o adolescente infrator a partir da inserção do objeto de análise na realidade socioeconômica brasileira, tendo em vista que os países cuja maioridade penal se dá aos dezesseis ou quatorze anos cobram um comportamento condizente com aquilo que eles oferecem. Os autores entendem que, quando se oferecem as condições necessárias para que os jovens se insiram inteiramente na sociedade, nada mais razoável que seja demandado que eles se ajustem a elas. Entretanto, as condições no Brasil são extremamente diferentes, como já observamos no capítulo que trata do contexto social dos menores infratores. 4.2. Reincidência dos menores infratores No que tange à aduzida ineficiência do ECRIAD em prevenir a criminalidade e evitar a reincidência, faz-se imprescindível um olhar mais aprofundado sobre o tema. Em uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (BRASIL, 2012), observou-se uma média nacional de 54% de reincidência. Por outro lado, no que se refere ao sistema prisional, um estudo feito por Adorno e Boldrini (1989) demonstrou índices de reincidência de 46,03%. Outra pesquisa de campo, mais recente, realizada por Shikida et al. (2014), no Complexo de Penitenciárias de Piraquara (Paraná), apontou uma média de reincidência de 59,33%, enquanto que para os já reincidentes a média subiu para 78,90%, e para os não reincidentes a média caiu para 39,76%. Portanto, podemos observar que a reincidência vem aumentando nos últimos anos, e que, até entre os que não são reincidentes, a probabilidade é alta. Comparando os dois sistemas – unidades de internação e sistema prisional – percebemos que não há uma grande diferença no que diz respeito 269

à reincidência. Logo, se o ECRIAD é uma legislação compatível com o cenário atual, como se justifica que os dados mostrem uma reincidência tão elevada entre os que receberam medida de internação? Alves et al. (2009) advertem que isso se deve ao fato de que o Estatuto não é aplicado efetivamente com os fins para os quais foi concebido, e frisam que não se poderá julgar a sua improcedência enquanto o mesmo não for seguido à risca. Salientam os autores que o estatuto está longe de cumprir a sua função socioeducativa, devido a problemas também de infraestrutura, mas principalmente de ideologia, pois as instituições atuais visam à punição, e não à reinserção. 4.3. As unidades de internação Souza e Campos (2007) afirmam que as atuais instituições, que deveriam aplicar as medidas socioeducativas, encaminham os jovens no sentido oposto do que propõe o Estatuto, punindo, humilhando, violando os corpos dos adolescentes. Segundo a FEBEM (2006), 42% dos internos dizem receber pouco/nenhum respeito dos agentes de segurança, e 72% sentem que o tratamento que recebem é humilhante. Um exemplo do fulcro punitivo das instituições encontra-se em um estudo feito por Espíndula e Santos (2004), que constatou que os assistentes de desenvolvimento social de unidades de internação baseiam-se em princípios punitivos, como pôr os adolescentes de castigo nas celas, e proibi-los de exercer as atividades educativas, que deveriam ser asseguradas, já que fazem parte do regime de internação. Cabe destacar que esse método punitivo não contribui para o desenvolvimento do julgamento moral do indivíduo, mas simplesmente o treina para obedecer às ordens e encaixar-se naquele sistema. Deve-se observar se o adolescente julga a gravidade dos seus atos e das ações das outras pessoas a partir das intenções e motivação dos mesmos, e não somente com base em suas consequências, especialmente as materiais (MONTE et al., 2011). Senão, tão logo o sujeito estiver livre da vigilância repressiva,

voltará

à

conduta

delinquente,

pois

não

desenvolveu

o

discernimento de que aquilo é moralmente errado. Não obstante essa finalidade equivocada das unidades constitua um 270

óbice à efetivação do ECRIAD, também o é a estrutura da maior parte delas. Convém

lembrar

que

a

aplicação

de

medidas

socioeducativas

aos

adolescentes infratores deve seguir certas orientações, tais como a obrigatoriedade de escolarização e profissionalização, bem como a garantia de atendimento personalizado, respeitando a identidade e singularidade dos adolescentes (MONTE et al., 2011). As

estatísticas

a

respeito

das

instituições denunciam o evidente descumprimento dessas diretrizes: no quesito saúde, notou-se que 32% das estruturas não possuem enfermaria e 57% não dispõem de gabinete odontológico; 22% das unidades não possuem refeitório, ou seja, nestas instituições, os alimentos são consumidos em outros espaços sem destinação para esse fim; no aspecto educacional, 49% das unidades não possuem biblioteca, 69% não dispõem de sala com recursos audiovisuais e 42% não possuem sala de informática; destaca-se, ainda, o baixo percentual de instituições com área destinada à visita íntima – 3% (BRASIL, 2012). O estudo conclui que “dos dados apurados pode-se constatar grande déficit do Estado na aplicação de medidas socioeducativas e na aplicação de programas voltados à educação desses jovens.” (BRASIL, 2012). O Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP (Brasil, 2013), também no tocante à estrutura, revelou os seguintes dados: no quesito salubridade, mais da metade das unidades de internação situadas no Centro-Oeste (68%), Nordeste (54%) e Norte (50%) foram dadas como insalubres, ou seja, não possuem higiene, conservação, iluminação e ventilação adequadas em todos os espaços da unidade; no Sul, 40% das unidades foram reprovadas nesse quesito; apenas 1/3 das instituições do Brasil

possuem

salas

de

aulas

adequadas;

somente

1/4

oferecem

atendimento multidisciplinar; em pelo menos 15% das unidades há pessoas com transtornos graves (como psicopatia, por exemplo), o que requer tratamento adequado fora da unidade; 25,4% das unidades de internação visitadas não instauram procedimento administrativo antes da aplicação de sanção; no que se refere à capacidade, o estudo mostrou que diversas instituições encontram-se superlotadas, com índices em torno de 200% (Ceará e Paraíba), 324% (Alagoas), 350% (Mato Grosso do Sul), e até 458% 271

(Maranhão). Por óbvio, é impossível que se consiga prestar o devido atendimento, personalizado e individualizado, em locais cuja superlotação abrange o quádruplo do que a entidade é capaz de comportar. Entretanto, os dados mais alarmantes coletados pela pesquisa dizem respeito à separação dos internos. Como frisa o CNMP (Brasil, 2013), a determinação

de

separação

dos

adolescentes

que

estão

internados

provisoriamente dos que estão em internação definitiva, além de constar no ECRIAD, também integra as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade: “De todas as maneiras, os jovens detidos ou em espera de julgamento deverão estar separados dos declarados culpados”. Porém, os dados obtidos pelo Conselho indicam que, em média, 59% das unidades do Brasil não efetuam essa separação, sendo que no Centro-Oeste esse número chega a 72%. Também se constatou que 73% das unidades não separam os internos por idade, e somente 25% separam de acordo com a gravidade da infração (no Centro-Oeste esse índice cai para 8%), ou seja, adolescentes que foram internados por furto, ou tráfico, por exemplo, dividem espaço com aqueles que cometeram atos infracionais graves, como homicídio e estupro. Na semiliberdade, pode-se dizer que praticamente não há separação. Contudo, apesar de todos esses dados, 64% dos gestores estaduais consideraram as unidades ótimas ou boas. Dessarte, como se pode promover a reeducação e reintegração do menor infrator, sem garantir sua segurança e integridade perante outros internos, sua dignidade física e moral, seu aprendizado, educação, profissionalização e desenvolvimento psicológico, ao interná-lo em locais insalubres, com salas de aula impróprias, sem assistência à saúde adequada, em convívio com portadores de transtornos graves, em locais com mais de quatro vezes o número de internos que podem suportar? Se não se efetivam os princípios propostos pela legislação, como se pode arguir que ela é ineficaz? 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A redução da maioridade penal, por si só, é insuficiente para resolver o 272

problema da criminalidade juvenil, porquanto a causa desta não é a inimputabilidade penal dos menores de 18 anos. Há, inclusive, uma grande probabilidade de essa criminalidade aumentar se a redução for aprovada. As principais razões que contribuem para a delinquência entre menores são o contexto social em que estão inseridos, a situação das unidades de internação, e o artigo 121 do ECRIAD, que prevê que o menor ficará internado por, no máximo, 3 anos. O cometimento de uma infração grave por parte de um adolescente expõe a existência de várias falhas: nas políticas sociais básicas, na escola, no Estado e na sociedade (CASTRO, 2002). Pais e professores expressam o desânimo de não saber como impor limites e fazer com que os jovens se submetam às normas de convívio (GRANDINO, 2007). Assim, a redução da maioridade penal surge como uma válvula de escape da população para libertar-se do sentimento de insegurança, diante de um Estado incompetente para lidar com a criminalidade (CRITSINELIS, 2009). Mas não é admissível que, por causa da dificuldade, lavem-se as mãos (GRANDINO, 2007). Devese buscar um sistema punitivo que tenha caráter preventivo, e promova a ressocialização de forma eficaz; a mudança não deve ser voltada à busca de novas formas de punir, mas deve vir daquele que tem o dever de garantir a segurança: o Estado (GALVÃO e CAMINO, 2011). Não se pode cogitar a redução da maioridade penal enquanto se possui outras formas de atender esses jovens, quer pelas escolas, quer pelas instituições de assistência, pela família, pela melhor distribuição de riqueza, e pela aplicação efetiva do ECRIAD (SOUZA e CAMPOS, 2007). Propõe-se, como alternativa à redução, a remoção do prazo máximo de internação, devendo esta perdurar enquanto persistir a impossibilidade de reinserção do menor à sociedade, o que deve ser avaliado periodicamente por uma

junta

psiquiatras,

composta

de

psicanalistas,

profissionais e

assistentes

pertinentes, sociais

como

(AMARO,

psicólogos, 2004).

É

indispensável que isso ocorra dentro de um estabelecimento com condições adequadas, como programas de psico e socioterapia, atividades físicas e artísticas, prática de esportes (KAUFMAN, 2004), e atividades externas, uma vez que essas, ao contrário do que se pensa, diminuem os índices de evasão 273

(BRASIL, 2012), além de contribuírem para a reinserção do infrator. Cabe frisar, todavia, que nenhuma medida isolada tem o condão de resolver um problema desta complexidade. São fundamentais ações concomitantes, que tanto refreiem os fatores que causam a criminalidade entre os jovens, quanto promovam a reeducação daqueles que já estão envolvidos nela. O tráfico de drogas, por exemplo, é um elemento que contribui para essa criminalidade de duas formas: os menores que desenvolvem dependência recorrem ao crime para adquirir dinheiro a fim de sustentar seu vício, e os traficantes, por sua vez, aliciam menores, por sua inimputabilidade, para vender a droga, em troca de recompensas como dinheiro, armas, ou entorpecentes para consumo. Por isso, é imprescindível que se combata ativamente o tráfico, mediante operações efetivas e estratégicas. Contudo, é essencial que se adote, conjuntamente, várias outras medidas, tais como: prover as necessidades básicas das famílias vulneráveis; reduzir a desigualdade social; promover a segurança das comunidades carentes; prevenir a evasão escolar; incentivar a profissionalização e o trabalho; oferecer tratamento àqueles que apresentam transtornos psicológicos; reformular a ideologia das unidades de internação e corrigir suas falhas estruturais; construir novas instituições para sanar a superlotação; e efetivar a separação dos internos, quanto à idade, gravidade do delito, e provisoriedade ou não da internação. Merece atenção, ainda, o fato de que existem pessoas com transtornos graves de conduta insuscetíveis de recuperação, os quais não se beneficiam de medicamentos, nem apresentam grandes resultados em atividades de terapia (KAUFMAN, 2004). Quanto a estes, em vez de colocá-los em um estabelecimento prisional, deve-se efetuar sua separação da sociedade, mediante internação onde seja possível seu tratamento psiquiátrico, sem desrespeitar sua dignidade e seus direitos básicos. Tal medida deve ser aplicada apenas em casos extremos, nos quais restar comprovado que o transtorno pode não ser passível de recuperação, devendo tal questão ser avaliada periodicamente por uma equipe de profissionais. Convém lembrar, entretanto, que tais casos são a exceção, e que não se deve, por generalização, usar desta ferramenta toda vez que se encontrar dificuldades na recuperação de um infrator. 274

É compreensível que se sinta indignação quando crimes violentos são cometidos por inimputáveis, e que se anseie puni-los como uma forma de vingar a vítima e apaziguar a revolta dos que lhe eram próximos. Porém, em primeiro lugar, deve-se almejar que esse sujeito cesse a sua carreira no crime. Embora isso pareça ser alcançado através da reclusão, quando o indivíduo retornar à sociedade, seguirá sua conduta delituosa, mais experiente e perigoso. Portanto, antes de recorrer à exclusão, deve-se tentar promover a sua recuperação, pois, assim, evitar-se-ão futuras vítimas. REFERÊNCIAS ADORNO, Sérgio; BORDINI, Eliana. Reincidência e Reincidentes Penitenciários em São Paulo (1974 – 1985).Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: ANPOCS, fev. 1989. N° 9, vol. 3, p. 70 a 94. ALVES, C.; PEDROZA, R.; PINHO, A.; PRESOTTI, L. e SILVA, F. Adolescência e maioridade penal: reflexões a partir da psicologia e do direito. Rev. psicol. polít., São Paulo, v. 9, n. 17, jun. 2009. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519549X2009000100005&lng=pt&nrm=iso. AMARAL, M. A. do. A Reinserção Social do Apenado: Necessidade de Políticas Públicas Efetivas. Brasília, 2012. 142 p. Disponível em: http://portal3.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/2497034.PDF AMARO, Jorge Wohney Ferreira.O debate sobre a maioridade penal.Rev. psiquiatr. clín., São Paulo, v. 31, n. 3, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010160832004000300004&lng=en&nrm=iso. ANDRADE, Luís Fernando de. A impossibilidade da redução da maioridade penal no Brasil.Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 109, fev. 2013. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12825 BARBATO JÚNIOR, R. Redução da maioridade penal: entre o direito e a opinião pública. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 93, n. 822, p. 429443, abr. 2004. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/13005-13006-1PB.pdf BRASIL. Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Relatório - Situação do Sistema Prisional Brasileiro. Brasília, 2006. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes275

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279

CRIMES CONTRA A SEGURIDADE SOCIAL Ana Paula Schmidt Favarin1 1. INTRODUÇÃO O princípio da insignificância e a sua aplicação, como tudo o que se refere ao campo do direito, só podem ser compreendidos dentro de um contexto histórico social. Eis a justificativa para retroceder no tempo e registrar alguns momentos importantes da História do Direito que guardam relação com o tema. No entanto, enfatiza-se que a abordagem proposta, acerca dos antecedentes históricos representa, apenas e tão somente, o resultado de uma pesquisa panorâmica, uma vez que o foco principal do estudo está voltado para a busca de uma maior compreensão do princípio da insignificância,

a

partir

de

proposições

doutrinárias

fundadas

no

minimalismo penal, da delimitação de sua área de incidência e dos critérios de aplicabilidade recomendados, que à míngua de previsão expressa no direito brasileiro, salvo exceções do Código Penal Militar, vem sendo construídos

pela

jurisprudência

que

se

norteia

pelos

princípios

constitucionais orientadores do Direito Penal. Por conseguinte, através da análise de julgados que compõem o repertório de jurisprudência dos tribunais brasileiros, procura-se evidenciar a recepção do princípio da insignificância e os critérios de aplicabilidade nos chamados crimes previdenciários, tipificados nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal. 2. BREVE HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL O Marquês de Beccaria constitui um marco importante na História do Direito e seus reflexos são percebidos na construção do princípio da Graduada em Direito pela Universidade Luterana do Brasil e Mestranda (Bolsista UNIJUÍ) em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Advogada OAB/RS. E-mail: [email protected] 1

280

insignificância. Com Dos delitos e das penas, iniciou-se a definição dos limites entre a justiça divina e a justiça humana. Beccaria percebeu que na justiça dos homens uma relação estabelecida entre uma ação e o estado variável da sociedade, apresenta variações na medida em que a ação seja favorável

ao

grupo

social.

Indignado

com

o

tratamento

desumano,

dispensado àqueles que não rezavam pela cartilha da época, que culminava com a pena de morte e com a utilização da tortura como meio de prova, criticou duramente a crueldade das penas utilizadas e defendeu a sua proporcionalidade em relação ao dano social causado. Intitulado como o autor a quem coube a fortuna de lançar as bases do direito penal, posto que é em função de sua crítica que a legislação penal europeia penal contemporânea começa a limpar-se, um pouco, de seu banho constante de sangue e tortura. A violência da intromissão do Estado na vida do homem passou por abrandamento no decorrer do tempo, de tal modo que a voracidade punitiva dos primeiros momentos foi perdendo espaço. No entanto, o ideal de convivência social ainda não foi consolidado e a resposta estatal está longe de ser satisfatória. Atualmente, ainda não se pode contar com um modelo de Direito Penal consensual, cabendo ao julgador o grande desafio de dar solução justa aos conflitos; tarefa árdua ante o descompasso entre as transformações sociais e a produção legislativa. Não se pode negar que a dinâmica evolutiva da sociedade, que determina a seleção das condutas consideradas danosas num dado momento, torna-se cada vez mais célere, e as leis penais em grande número, não se ajustam na mesma velocidade. Diante disso, a validade das normas incriminatórias deve ser constantemente avaliada. Francisco de Assis Toledo (1991, p.19) relata que: É de se prever, porém, que, permanecendo as tendências da sociedade atual em profunda e rápida transformação, na qual encena-se, com grande gala, a tragédia da ascensão dos crimes violentos, o legislador penal, daqui e alhures, sofrendo influência das doutrinas que pregam, há algum tempo, a descriminalização de certos fatos ainda considerados criminosos, mas sem repercussão na consciência social de nosso tempo, marchará certamente, cedo ou tarde, para a

281

profunda reforma do direito penal legislado, revalorizando e recolocando no centro da construção do novo sistema a proteção dos bens jurídicos por forma e dentro dos limites que reflitam as reais necessidades do mundo em que vivemos. E de tal sorte que a justiça criminal, emperrada por uma enorme carga de delitos de pequena importância, possa afinal dedicarse aos fatos e delinquentes mais graves que, desafiadoramente, aí estão crescendo e se multiplicando diante de nossos olhos atônitos.

Portanto, a palavra de ordem é restringir a intervenção do Direito Penal, que deverá ocupar-se apenas de situações relevantes e que não possam ser solucionadas por outros meios ou outras áreas do direito. Isto significa que em qualquer situação conflitiva a solução punitiva do conflito é somente uma das soluções possíveis. A intervenção mínima do Direito penal ainda não foi alcançada e é certo que a crescente produção de leis com o objetivo de controlar a criminalidade redunda em valorização do sistema punitivo. 3. A POLÍTICA CRIMINAL DELINEADA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Variando do conceito de ciência, para uns, a apenas uma técnica ou método de observação e análise crítica do Direito Penal, para outros, segundo NUCCI (2012, p. 70) “parece-nos que política criminal é uma maneira de raciocinar e estudar o Direito Penal, fazendo-o de modo crítico, voltado ao direito posto, expondo seus defeitos, sugerindo reformas e aperfeiçoamentos, bem como com vistas à criação de novos institutos jurídicos que possam satisfazer as finalidades primordiais de controle social desse ramo do ordenamento”. A Constituição de 1988, conduziu a um grande salto rumo a um Direito Penal desejável, conferindo direitos e estabelecendo garantias e princípios. Antes, a Lei 7209/84 que reformulou a parte geral do Código Penal instituiu a humanização da sanções penais. No entanto, não se pode afirmar que tenham sido integralmente recepcionados pelo legislador e pelos aplicadores do Direito. O Estado democrático de direito reclamava um Direito Penal menos 282

expansionista, cuja intervenção na vida dos cidadãos fosse mínima e que só atuasse quando a paz social não pudesse ser concretizada por outros meios disponíveis. Entretanto, não ocorreu dessa forma. Alberto Silva Franco prefaciando obra de Zaffaroni registra suas impressões desse período: Na própria Constituição Federal, de 1988, o modelo garantístico e o princípio da intervenção penal mínima, que são, sem dúvida, dados caracterizadores do Estado Democrático de Direito, não o foram acolhidos em sua inteireza, admitindo nocivas interferências (1997, p. 270)

Constata-se que a

receita para a

construção de um

Estado

Constitucional e Humanitário de Direito, restringe a intervenção estatal através do Direito Penal aos limites definidos pelos princípios constitucionais que integram o movimento minimalista. 3.1 O princípio da intervenção mínima Uma vez que a sanção penal é dirigida a um dos direitos mais elementares do homem – a liberdade - o Direito Penal deve ser a ultima ratio da aplicação deste tipo de sanção. O Direito Penal mínimo que se almeja, só pode ser concretizado a partir da aproximação do direito com a realidade social. Ao que consta, a privação da liberdade, não tem apresentado nenhum resultado em benefício do condenado ou da própria sociedade. Talvez porque, embora a tendência atual é ter a pena um caráter ressocializador e não mais uma retribuição causado a outrem – como mero castigo, tal objetivo ainda não foi alcançado; pelo menos é isto que se infere quando se lê com olhos de ver o que acontece na sociedade atual. Nem sempre se justifica a intervenção do Direito Penal, que só deve ser admitida quando os outros meios de controle social não se mostrarem suficientemente aptos à proteção de um bem juridicamente relevante, de modo que sua aplicação só é aceitável quando evidenciada a gravidade do prejuízo causado. Para Lima (2000):

283

A intervenção do Direito Penal é requisitada apenas numa maior necessidade de proteger a coletividade, a pena deve estar reservada ao momento em que é o único meio de proteger a ordem social dos crimes e possui caráter excepcional. Além do mais, a sanção estabelecida para cada delito deve ser adequada a ele, na medida da necessidade para a reprovação e prevenção do crime. Não se admitem o excesso e o desnecessário de punição a um delito, a aplicação da pena exige sua proporcionalidade com o crime cometido. Além disso, a sua aplicação está condicionada à existência de lesões sensíveis aos bens jurídicos mais importantes.

O princípio da intervenção penal mínima, foi recepcionado pela Constituição através do § 2° do art. 5°: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” O princípio em análise tem a sua raiz no art. 8° da Declaração Dos Direitos do Homem e do Cidadão (Paris 1789), ao proclamar que a lei deve estabelecer “ penas estritas e evidentemente necessárias. Dias (2005), relata que: A compatibilização entre a letra e o espírito das leis fundamentais internas e as declarações internacionais constitui exigência de uma ordem jurídica universal. A Constituição de Portugal dispõe que “ os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados em harmonia com a declaração Universal dos Direitos do Homem” ( art. 16°, 2). A Carta Política espanhola também prescreve que as normas relativas aos direitos fundamentais e às liberdades reconhecidas constitucionalmente serão interpretadas em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os tratados e acordos internacionais sobre as mesmas matérias, ratificadas pela Espanha (art. 10,2).

Ainda que os preceitos constitucionais, e as recomendações contidas nos tratados internacionais e as orientações doutrinárias e jurisprudenciais focadas no movimento minimalista, a aplicação do princípio da intervenção mínima ainda não satisfaz plenamente os seus defensores. O Estado impotente em reduzir a criminalidade e agilizar a Justiça, lança mão da atividade legislativa (muito menos custosa), para incutir na sociedade um sentimento falacioso de segurança. Destarte

que

a

intervenção

mínima

se

estabelece

através

da 284

fragmentariedade e da subsidiariedade. A fragmentariedade, explica Luiz Flávio Gomes citando Muñoz Conde (2007, p. 281) “pretende que o Direito penal somente tenha intervenção diante de ataques especialmente graves a bens jurídicos que ostentem grande relevância social”. Do mesmo modo, Nucci esclarece o que se entende por fragmentariedade Fragmentariedade significa que nem todas as lesões a bens jurídicos protegidos devem ser tuteladas e punidas pelo direito penal que, por sua vez constitui somente parcela do ordenamento jurídico. Fragmento é apenas a parte de um todo, razão pela qual o direito penal deve ser visto, no campo dos atos ilícitos, como fragmentário, ou seja, deve ocupar-se das condutas mais graves, verdadeiramente lesivas à vida em sociedade, passíveis de causar distúrbios de monta à segurança pública e à liberdade individual. (NUCCI, 2012, p. 90)

No que concerne à subsidiariedade do Direito Penal, citando Maria da Conceição Cunha e Carlo Henrique Paliero, Luiz Flávio Gomes apresenta a seguinte definição: A subsidiariedade do Direito penal, por seu turno, significa sua posição de ultima ratio frente aos demais sistemas de controle social formal ou informal. Se outros setores do ordenamento jurídico se apresentam como suficientes e, portanto, como mais idôneos para a tutela de um determinado bem jurídico, não se deve utilizar o Direito penal para atender essa finalidade. A ideia de que o Estado possa e deva perseguir penalmente sem exceção toda e qualquer infração deriva do mito da “plenitude do ordenamento jurídico” e não encontra amparo no moderno pensamento filosófico e nem na realidade da práxis penal (2007, p. 449)

A premissa de que o Estado possa e deva perseguir penalmente sem exceção toda e qualquer infração deriva do mito da “plenitude do ordenamento jurídico” e não encontra amparo no moderno pensamento filosófico e nem na realidade da práxis penal. 3.2 Definindo a insignificância O princípio da insignificância foi cunhado pela primeira vez por Claus Roxin em 1964, que voltou a repeti-lo em sua obra Política Criminal y 285

Sistema del Derecho Penal, partindo do velho adágio latino mínima non curat praetor. Segundo Bitencourt (2012, p. 58) a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. O princípio da insignificância ou princípio de bagatela, considerado um instrumento de exclusão da tipicidade, vem tendo os seus contornos desenhados pela doutrina e pela jurisprudência por não contar com norma explícita no Direito Penal brasileiro. Para atrair a aplicação do princípio da insignificância há de se constatar um ataque ao bem jurídico de tal modo irrelevante que não justifique a intervenção do Direito Penal. O princípio da insignificância reclama, portanto, o que se denomina infração bagatelar própria àquela que já nasce sem nenhuma relevância penal. Há pois que se investigar que característica (ou características) deve apresentar um determinado fato, capaz (ou capazes) de torná-lo apto a atrair a incidência do princípio. A resposta a tal questionamento oferecida pelo STF está evidenciada na orientação do Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal materializada no HC84.412-SP, que elege os seguintes requisitos: a) ausência de periculosidade social da ação, b) a mínima ofensividade da conduta do agente, isto é: mínima idoneidade ofensiva da conduta, c) inexpressividade da lesão jurídica causada e d) falta de reprovabilidade da conduta. Esses são os vetores que tem norteado doutrina e jurisprudência; três referem-se à conduta e um ao resultado jurídico. A existência de duas espécies de infração bagatelar própria, que se definem pela insignificância da conduta e pela insignificância do resultado, e analisando a orientação do STF que se refere a vetores orientadores do princípio, sem mencionar se devem ser ou não considerados conjuntamente, Luiz Flávio Gomes, apresenta sua solução afirmando que o princípio da insignificância pode incidir nos casos em que se verifique puro desvalor da ação, puro desvalor do resultado ou ainda quando apresentar a combinação de ambos os requisitos, enfatizando que cada caso é um caso. E exemplifica as três situações: 286

1. Quem atira um pedaço de papel amassado contra um ônibus coletivo realiza uma conduta objetivamente não perigosa ou de periculosidade mínima (...). Logo, falta-lhe o desvalor da ação. Em outras palavras, não se trata da ação desvalorada que está prevista no tipo penal – CP, art. 264. Não há que se falar em desaprovação da conduta. 2. Quem subtrai uma cebola ( ou um palito de fósforo ) pratica uma conduta desvalorada (...), porém o resultado jurídico é absolutamente ínfimo (falta portanto o desvalor do resultado, falta um ataque intolerável ao bem jurídico). Aqui estamos diante de um caso em que só o desvalor do resultado jurídico é ínfimo. Mesmo assim, não há como deixar de aplicar o princípio da insignificância, apesar do desvalor da ação. 3. Num acidente de trânsito em que o agente atua com culpa levíssima e, ademais, gera uma totalmente insignificante, não há como afastar a incidência deste princípio. Neste caso temos a combinação de ambos os desvalores: da ação e do resultado. Nem a ação foi grave nem o resultado foi relevante. Neste terceiro grupo também não há como deixar de aplicar o princípio da insignificância.

Por outro lado, há registro de entendimento que defende a necessidade de se considerar conjuntamente o desvalor da ação e o desvalor do resultado para qualificar o fato como de bagatela. O princípio da insignificância foi bem aceito pela doutrina e vem sendo aplicado pelos julgadores aos casos concretos. Entretanto, há objeções por parte da doutrina. Odone Sanguiné (1990. P. 50) sintetiza muito bem os entendimentos contrários ao princípio da insignificância registrando as críticas de alguns doutrinadores: A principal crítica se baseia em que o princípio colide com as exigências de segurança jurídica. Há dificuldade em estabelecer índices e critérios precisos, ou seja, controláveis, para delimitar os casos insignificantes daqueles relevantes, não sendo admissível que a tarefa fique confiada à doutrina e à jurisprudência [...] outra objeção é a de que o princípio não poderia ser aceito nos casos em que o legislador incrimine expressamente contravenções de bagatela [...]. Também algum outro autor [...] afirma que em certos tipos legais é impossível uma interpretação restritiva por não conter uma característica que se possa pôr em relação com a escassa importância do bem jurídico, como é possível nos crimes patrimoniais. Finalmente, uma posição mais formalista julga-o inaplicável porque é um princípio “não incorporado ao ordenamento jurídico”[...] porque ainda não “adequadamente legislado.

Ainda assim, a doutrina e a jurisprudência, salvo alguns percalços naturais como acontece em qualquer tipo de construção, tem sabido 287

contornar

as

dificuldades

que

vão

surgindo

na

busca

de

maior

aprimoramento na aplicação do princípio, de modo que tais críticas são tidas por insubsistentes. 4. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES PREVIDENCIÁRIOS Incluídos no Código Penal pela Lei 9.983/2000, os crimes de apropriação indébita previdenciária (CP: art. 168-A) e de sonegação de contribuição previdenciária (CP: art. 337-A), anteriormente tratados em legislação separada, contam com a previsão do perdão judicial, estando facultado ao juiz deixar de aplicar a pena privativa de liberdade ou aplicar somente a pena de multa, diante de algumas situações descritas na lei ( art. 168 –A § 3°, I e II – art. 337-A, § 2°, II e § 3°) desde que presentes as condições de primariedade e bons antecedentes do agente. Em virtude do anteriormente mencionado, registra-se alguma crítica na aplicação do princípio da insignificância para tais tipos de delitos, sob o argumento de que a própria lei já cuidou de precisar o que considera insignificante sem dispensar a ação penal: Poder-se-á objetar essa interpretação dizendo que, se a insignificância prejudica a sua própria tipificação, até um determinado grau, sequer poderá haver ação penal, porque crime não existe. O argumento é válido sob o aspecto da coerência da teoria da insignificância. Mas, de qualquer sorte, ainda que assim se entenda, o certo é que esse “grau” até onde o fato seja considerado insignificante deve estar abaixo da linha estabelecida, pela lei, como máximo para o perdão judicial. Do contrário, estar-se-ia revogando a lei, que confere significância penal ao fato, exigindo a respectiva ação (porque, para que o Judiciário perdoe, o Ministério Público tem que processar), pela teoria, que preconiza a falta de justa causa para o processo (SANGUINÉ, 1990, p.50)

Entretanto, a crítica não subsiste, uma vez que o que se extrai dos julgados dos tribunais, muito menos que uma rejeição à teoria da insignificância, é a existência de uma desarmonia na fixação de um valor mínimo a ser considerado para a aplicação do princípio da insignificância, 288

mas não ensejam dúvidas sobre a possibilidade de ser aplicado aos crimes previdenciários. Confira-se: [...] I – Na persecução do crime de apropriação indébita de contribuições previdenciárias, deve ser tomado em consideração o mesmo patamar estabelecido na Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, para a extinção do crédito inscrito como Dívida Ativa da União. [...] Tendo o suposto prejuízo acarretado à Previdência Social valor superior a R$100,00 (cem reais) que o art. 18, § 1°, da Lei n° 10.522/2002 estabelece como teto para o cancelamento ou extinção dos débitos inscritos como Dívida Ativa da União- mas inferior a R$10.000,00 (dez mil reais) que o art. 20 do mesmo diploma legal prevê como o máximo para o arquivamento, sem baixa na distribuição dos autos de execução de débitos de execuções fiscais[...] III- O art. 20 da Lei n° 10.522/2002, refere-se ao ajuizamento da execução fiscal ou seu arquivamento sem baixa na distribuição, e não à extinção do crédito, de sorte que, em se tratando de valor superior a R$100,00 (cem reais) e inferior a R$10.000,000 (dez mil reais), o interesse fiscal, embora postergado, permanece íntegro.RCCR-RECURSO CRIMINAL200538000148200. Rel. Dês. Federal Tourinho Neto.Terceira Turma.

Neste caso, a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, defende o valor máximo de R$100,00 (cem reais), para fins de aplicação do princípio da insignificância por ser este o teto fixado para cancelamento ou extinção de débitos inscritos como Dívida Ativa da União ( Lei 10.522/2002, art. 18,§ 1°). Por outro lado a Primeira Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, entende que o valor a ser considerado deve ser igual ou inferior a R$1.000,00, previsto na Lei 9.441/97 para extinção do crédito: [...] Para fins de aplicação do princípio da insignificância, em crime de apropriação indébita previdenciária, deve ser utilizado, como patamar, o valor mínimo estabelecido pela Previdência Social para o ajuizamento de execução fiscal, previsto na Lei 9.441/97, a qual prevê a extinção do crédito quando o montante for igual ou inferior a mil reais. Precedentes [...]

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recente julgamento (25/05/09), também defendeu como parâmetro para aplicação do princípio da insignificância o valor de R$1.000,00: 289

[...] Consoante entendimento firmado por esta Corte, o parâmetro para a aplicação do princípio da insignificância, no crime de apropriação indébita de contribuições previdenciárias, é de R$1.000,00, a teor do disposto no artigo 1°, inciso I, da Lei 9.441/1997. 2. De acordo com o art. 4° da Portaria n° 4.910/1999 do Ministério da Previdência e Assistência Social – MPAS, não há extinção do crédito previdenciário quando o valor ultrapassar o limite de R$1.000,00, ficando apenas adiada a cobrança da dívida, via execução fiscal, até o montante alcançar a quantia de R$5.000,00, não havendo, assim, baixa na distribuição, permanecendo o interesse da Fazenda Pública em cobrar o débito tributário.

Para a Sétima Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o parâmetro é o valor de até R$5.000,00 (cinco mil reais): (...) Conforme entendimento da Quarta Seção, deve ser considerado, para fins de verificação e aplicação do princípio da insignificância no crime de omissão de recolhimento de contribuições previdenciárias (168-A do CP), o valor de até R$5.000,00 (cinco mil reais), que, por analogia, utiliza-se, também, para o delito de sonegação de contribuições previdenciárias (art. 337-Ado CP). No caso, sendo o valor sonegado inferior a esse limite, correto o reconhecimento do crime de bagatela.

Indiferentemente às divergências acerca do valor da apropriação indébita ou da sonegação a ser considerado como parâmetro para aplicação, o princípio da insignificância vem sendo reconhecido reiteradamente como instrumento de exclusão de tipicidade e aplicado também aos crimes previdenciários pelos tribunais brasileiros. O

Supremo

Tribunal

Federal

tem

aplicado

o

princípio

da

insignificância ao crime de descaminho quando a quantia sonegada não ultrapassar o valor de R$10.000,00 (dez mil reais) previsto no art. 20 da Lei n° 10.522/02, para arquivamento das execuções fiscais sem baixa a distribuição. Espera-se que este limite seja estendido também aos delitos previdenciários porque, com a Super Receita ficou com a Fazenda Nacional a responsabilidade pela arrecadação e fiscalização de todos os tributos e contribuições sociais, não havendo como distinguir o crédito tributário do previdenciário. Além disso, “se esse valor é irrelevante para ajuizamento da ação fiscal, com muito mais razão é irrelevante para fins penais.

290

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O princípio da insignificância, mesmo com algumas resistências, já integra o sistema jurídico brasileiro como mais um importante instrumento de exclusão de tipicidade, inobstante a ausência de expressa previsão legal, à exceção dos artigos 209, § 6° e 240, § 1°, do Código Penal Militar, corroborando a concepção de que “O Direito não se esgota na lei”. Acreditase que a descriminalização de condutas irrelevantes é um caminho válido para a concretização do Direito, cabendo ao Judiciário percorrê-lo quando o legislador descansa. O juiz deve estar atento às transformações do mundo moderno, porque, ao aplicar o Direito, não pode desconhecer os aspectos sociais, políticos e econômicos dos fatos que lhe são submetidos. A análise do caso concreto, imprescindível no Direito Penal, sob a ótica dos princípios constitucionais que informam o Estado Democrático de Direito, afasta a insegurança jurídica, de modo que, a falta de previsão no Direito legislado, não constitui empecilho à aplicação do princípio da insignificância. REFERÊNCIAS AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O princípio da insignificância e os crimes contra o sistema financeiro nacional. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n.255, 19 mar.2004. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5000. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal:Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. pp. 45-46. ______: Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. FALEIROS, José Luiz de Moura. Crimes ambientais. Curso de PósGraduação Latu Sensu Tele Virtual em Ciências Penais. UNIDERP-REDE LFG-IPAN. p. 20. GOMES, Luiz Flávio, MOLINA, Antonio Garcia Pablos de, BIANCHINI, Alice. Direito Penal Introdução e Princípios Fundamentais. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007. pp. 281-282 – 449, 451.

291

GOMES, Luiz Flávio, MOLINA, Antonio Garcia Pablos Penal:Parte Geral. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 315.

de.

Direito

GOMES, Luiz Flávio, BIANCHINI, Alice, OLIVEIRA, Willian Terra de. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade:v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. GOMES, Luiz Flávio. (2009) “Limites do “Ius Puniendi” e Bases principiológicas do Garantismo Penal”.Curso de Pós-Graduação Latu Sensu Tele Virtual em Ciências Penais. UNIDERP-REDE LFG-IPAN. pp. 1, 4. GUIMARÃES, Isaac Sabbá. A intervenção mínima para um direito penal ficaz. Jus Navegandi, Teresina, ano 6, n. 57, jul/2002. JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: v. 1, Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1999. KATTAH, Marina. 3.1 O princípio da insignificância e sua relação com o moderado direito penal do fato e com o funcionalismo teleológico de Claus Roxin. De jure. Número 8. Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Janeiro/junho de 2007.pp.243-248 LIMA, Marília Almeida Rodrigues. A exclusão da tipicidade penal: princípios da adequação social e da insignificância. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 46, out. 2000. MARQUES, Jader. Princípio da Insignificância. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. Ano VII, n°41, Dez-Jan 2007- Jurisprudência Comentada. pp209-215. MOURA, Zilan da Costa e Silva. (In)Significação: Panorâmica sobre o Princípio da Insignificância no Direito Penal.Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/site/artigos/_imprime.php?jur_id=8325. Acesso em 24/08/2015. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito penal. Parte Geral. 08 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012 PAIVA, Rangel Martino de Oliveira.Princípio da Insignificância e atipicidade penal.Revista Jurídica da Faminas, Muriaé-MG, volume 3, número 1, janjul 2007. PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhães.Considerações sobre o desafio da magistratura contemporânea na implementação dos direitos humanos fundamentais. Revista CEJ,Brasília, Ano XIII, 292

n.45,p.24,abr./jun.2009 ROCHA, Fernando A. N. Galvão. Política Criminal. Material da 1ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Ciências Penais – UNIDERP-REDE LFG-IPAN. p. 3 SANGUINÉ, Odone. Observações sobre o princípio da insignificância. Jurisprudência Anotada. Fascículos de Ciências Penais. Ano 3., vol. 3 , n.1, 1990. p. 50. SICA, Leonardo. Caráter simbólico da intervenção penal na ordem econômica. Disponível em htt://www.rfk.com.br/artigos/ordem_econômica.pdf. SIRVINKAS, Luís Paulo. O principio da insignificância no Direito penal brasileiro. Revista Jurídica. Ano XXXVII – N° 143 – Setembro de 1989. pp. 33-35. SOUZA, Fernando Antonio C. Alves de. Os vetores (critérios) estabelecidos pelo STF para a aplicação do princípio da insignificância na visão de Claus Roxin. http://www.ibccrim.org.br/site/artigos_imprime.php?jur_id=9613. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. Editora Saraiva, 4ª edição,1991. pp. 19-20. ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Revista 5 dos Tribunais, 1997. pp. 270-271.

293

O MILITARISMO UM SISTEMA PARA SER REVISTO Elmir Jorge Schneider1 1. INTRODUÇÃO Se buscarmos a função policial em sua origem, ela foi criada para proteger os moradores da cidade (pólis na Grécia antiga), e não com a missão de proteger o Estado (como o grande monstro “Leviatã“ de Thomas Hobbes). Assim, o problema que se constata na sociedade atual é a polícia militar como um mini exército a disposição dos governadores, sem cumprir muitas vezes, sua função de proteger e garantir os direitos dos cidadãos. A abordagem deste tema do militarismo, se justifica pelas recorrentes denúncias de violência sobre a polícia militar confome será apresentado no decorrer do texto, e por se julgar um sistema já ultrapassado para o periodo em que nossa sociedade se encontra. Numa cenário em que a atuação policial tem uma importância extremamente relevante, forçando a necessária reflexão sobre este assunto através de estudos bibliográficos e experiências vivenciadas. 2. O SISTEMA MILITAR NA POLÍCIA BRASILEIRA Ao observar a história da formação das policias no Brasil, se percebe que elas sempre tiveram uma relação bastante autoritária com a sociedade. E essas experiências institucionais do corpo policial no Brasil, acabaram se estruturando numa cultura de regimentos, de forma que não se explica apenas pelo interesse das corporações em manterem sua forma original, mas por uma tradição e uma relação com o Estado e a sociedade brasileira. No Brasil até pouco tempo, o perfil do policial era sinônimo de força física, sem ter a necessidade de grandes conhecimentos, onde o policial foi Policial Rodoviário Federal. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. E-mail: [email protected] 1

294

usado muitas vezes para atender a certos interesses. Com este objetivo, as “forças policiais desde os anos da Primeira República são instrumentos de manutenção dos interesses dos grupos dominantes do que da ordem pública“ (MIRANDA, 2013, p. 41). Militares e militarismo percorem desafios diferentes, enquanto os primeiros se destacam pela ética, disciplina e integridade; o militarismo caracteriza-se pelo autoritarismo, conservadorismo político, pessimismo em relação à pessoa humana, alarmismo e adesão à doutrina do Estado nacional (MIRANDA, 2013, p. 42).

Para se entender a forma de atuação dos nossos polícias militares, é necessário analisar a trajetória política passada pelo nosso país, na qual, tornaram-se reservas do Exército em 1934, sendo-lhe atribuída em 1946 a responsabilidade pela segurança interna e manutenção da ordem. Em 1967 foi lhe delegada a competência da realização do policiamento ostensivo fardado, definindo sua estrutura militarizada semelhante à do Exército. Com esta noção básica, se identifica ainda que a competência das polícias militares se estabeleceu quando o Brasil passava pelo período da ditadura sendo governado por oficiais do Exército. Após a Revoução Constitucionalista, de 1932, na qual a força pública de São Paulo lutou contra o Exército Nacional [...] ‘a ideia de que era necessário estabelecer um maior controle do poder central sobre as forças públicas‘, de modo que ‘em 1934, a nova Constituição Federal declarou as polícias militares reservas do Exército (art. 167, CF/34) e garantiu a competência privativa da União para legislar sobre organização, instrução justiça e garantias das forças policais dos estados e condições gerais da sua utilização em caso de mobilização ou de guerra (art. 5º, XIX, I, CF/34)‘ (CARVALHO, 2013, p. 184).

Como se verifica acima, o militarismo ganhou força no país quando a polícia tinha outras métas, e sua função era de garantir em primeiro lugar a governabilidade com disputas de poder além da eminência de poder ser utilizada em guerra externa, aonde podiam inclusive gozar das mesmas vantagens atribuídas ao efetivo do exército. E conforme já relatado acima, o Decreto-Lei Nº. 317/1967 reorganizou a polícia e os bombeiros militares, estabelecendo as competências conforme o artigo 2º que dentre outras atividades tinha a função de: executar o policiamento ostensivo fardado; 295

atuar de maneira preventiva para dissuadir a perturbação da ordem; atuar de maneira repressiva, contra perturbação da ordem e atender a convocação do governo federal, para atuar em caso de guerra externa ou na prevenção ou repressão de grave subversão da ordem, subordinando-se ao Comando Militar nas atribuições da guarda territorial. Ficando claro assim, a sua forte ligação com as atribuições relacionadas ao contexto político da época, definindo a estrutura das polícias militares muito semelhantes ao exército. Entretanto, a sociedade brasileira tem evoluido muito nos últimos anos e o enfoque principal da polícia já não deve mais ser o mesmo, mudando completamente a finalidade do seu trabalho, onde a força e a brutalidade policial devem abrir espaço para uma segurança pública voltada à proteção das pessoas. Pois não se vence a violência praticando a violência, e no militarismo muitas vezes se emprega a filosofia da violência para manter a ordem. De acordo com Abrantes (2014), para melhorar o sistema policial brasileiro, não basta apenas investir em quantidade de efetivo, mas principalmente na qualidade do policial com democracia, o que segundo ele, não existe no sistema militarista onde se identifica que o policial de baixa patente só obedece ordens e não tem liberdade de ação, ficando impedido de utilizar sua maior arma que é sua própria inteligência. Boa parte das regras e formas de atuação da polícia foram criadas durante a Ditadura Militar. Isso explica em grande parte o modelo policial no Brasil, com sua estrutura repressiva, difundida no governo militar e que ainda está de pé, não sendo alterada em absoluto e até aperfeiçoada em alguns casos específicos, com tropas de elite das policias militares durante o regime democrático. O que contradiz a ideia constitucional, onde o “polícia ideal aprende que o pobre não é sinônimo de bandido. Ela aprende a não cair no erro da aparência“ (ABRANTES, 2014, p. 62). 3. O INÍCIO DO FIM DO MILITARISMO COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Após a Constituição Federal de 1988, iniciou-se uma transição entre a 296

norma e a prática. Dando início às alterações relativas aos direitos das pessoas, construindo-se um processo contínuo com novo padrão de atendimento ao público, voltado ao policiamento comunitário e aos direitos humanos. Numa nova forma de fazer segurança pública, onde se tem o processo de democratização das polícias, de maneira que as funções polícias vão muito além de enfrentar o crime. Garantindo o bem-estar das pessoas e atendendo as necessidades básicas da população, tanto de forma reativa como também pró-ativamente através da prevenção. A partir deste período, os procedimentos policiais começaram a ser reformulados no sentido de tornar as ações menos agressivas, e melhorar a qualidade do atendimento ao cidadão. Introduzindo mudanças na estrutura das instituições policiais, com a intenção de aperfeiçoar o desempenho individual, no respeito às leis e aos princípios democráticos, amadurecendo a ação policial para que esta esteja pronta para deixar um sistema militarista, e optar para um sistema mais democrático. Essas mudanças partem de ações políticas, sendo consideradas decisões de governo para serem implementadas na atividade policial. O mundo em que nós vivemos não pode ter uma segurança pública em que seus trabalhadores não possuem liberdade. No Brasil em que sua democracia está em pleno amadurecimento, não se pode admitir que exista uma polícia onde não existe democracia. Pois é uma tremenda contradição, uma polícia que é antidemocrática fazer a segurança de uma sociedade democrática (ABRANTES, 2014, p. 66).

E para o sucesso destas alterações que se propõe, tem-se a necessidade do apoio da comunidade na solução do problema da segurança pública. Onde a polícia esta autorizada a utilizar a força, e ter o poder de decidir qual a força que poderá ser utilizada em cada ação no enfrentamento com a população, é preciso criar regras e procedimentos que estabeleçam parâmetros, com o objetivo de evitar práticas abusivas e corruptas por parte de policiais. A liberdade e a autonomia de tomada de decisões, por policiais que trabalham em um regime desmilitarizado sem tanta hierarquia, demonstram mais confiança e amadurecimento na tomada de decisões, apresentando um 297

trabalho mais eficiente, rápido e objetivo. Com esta transição que se iniciou na Constituição Federal de 1988, pode-se destacar ainda como a principal mudança sofrida pelas polícias militares, sendo como o controle que deixa de ser do Ministério do Exército e passa à ser dos Governadores dos Estados, Territórios e Distrito Federal. No entanto foram mantidas as demais regras do Decreto-Lei nº 667/69, mantendo assim, mesmo no regime democrático as regras do modelo de criação do regime militar. Não obstante, após a Constituição de 1988 ter se verificado inovações na área de formação policial, na polícia militar pouco alterações tiveram sucesso na sua implementação, e a forma de atuação predominantemente violenta continuou prevalecendo. Constatando-se, que estas ações de tornar a polícia mais cidadã torna-se um processo lento e complicado, ainda mais pela sua descentralização de unidade de comando, aonde cada Estado da federação tem sua própria estrutura de instituição militar. Reiteradamente volta-se a discussão sobre o fim do militarismo, o que ocorre geralmente após a divulgação de fatos de arbitrariedades cometidas pela polícia militar, em casos como o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza na Rocinha, aonde policiais militares foram acusados de terem torturado e desaparecido com o corpo, também com a morte de Cláudia da Silva Ferreira, que acabou ferida em tiroteio entre a polícia e moradores da comunidade, sendo ela socorrida pela própria polícia militar e no caminho caiu da viatura e veio a óbito. Com estes episódios de violência policial no Brasil, a imprensa tenta reproduzir, generalizando a imagem da polícia brasileira como extremamente violenta. O que dá força nas discussões do tema para acabar com o militarismo nas polícias brasileiras Seja pela forma autoritária que essa se porta com relação ao tratamento com o público, ou seja, pela hierarquia interna da corporação. Que impede um trabalho mais apurado com liberdade, iniciativas próprias, inteligência, investigação ou eficácia na antecipação de um crime. Constatando-se, que a forma de trabalho militarista está em plena decadência, por já não atender mais os anseios da sociedade de hoje. Alterar um modelo de polícia, sua estrutura, sistema e formas de trabalho para adequá-las às novas regras não militarizadas, certamente é 298

um trabalho complexo, e requer das instituições policiais um empenho extraordinário. Assim, precisa-se aos poucos corrigir as formas de trabalho e procedimentos operacionais, adequando-os as novas regras, e tentar formar o policial numa estratégia de respeito aos princípios constitucionais. Para que o policial seja preparado na sua área, e possa se tornar um perito em bem atender a população, pois “reformar a polícia pela extinção da característica militar, não garante melhor desempenho policial, nem tampouco presta maior contribuição ao desenvolvimento da democracia do país” (PINC, 2011, p. 70). No entanto, há que se concordar que a imagem da polícia militar está bastante desgastada diante da sociedade, apesar da simples desmilitarização não garantir a melhora na eficiência da polícia, ela poderá abrir um novo campo de visão com relação às formas de atuação da policial, reacendendo a confiança da sociedade, no trabalho da segurança pública. Assim, o que se observa é que a imagem da polícia militar brasileira ficou extremamente manchada em decorrência de inúmeros eventos trágicos ocorridos no Brasil. Onde se pode citar como exemplos, o que ocorreu na cidade de São Paulo em 1992 conhecidos como o Massacre do Carandiru, e a Chacina da Candelária ocorrida no centro da cidade do Rio de Janeiro em 1993. Estes passaram uma visão negativa da polícia militar brasileira, que foi identificada como transgressora dos direitos humanos. Porém cabe ressaltar, que estes são fatos ocorridos ainda em uma fase de transição, onde a polícia estava saindo de um sistema totalmente militarizado para um maior respeito aos direitos humanos. E deste período em diante, a polícia tem evoluído e vem se modernizado constantemente, melhorando

sua

estrutura,

sistemas,

métodos,

equipamentos,

procedimentos e técnicas, melhorando sua capacidade de se reinventar. Com o novo momento político, a polícia vem aperfeiçoando seu desempenho operacional em consonância com as regras mais democráticas. De forma que, aos poucos a forma de trabalho vai se desmilitarizando e se adequando a sociedade, por meio de um trabalho gradual, onde a preservação da ordem pública passa a ter inserida também a garantia dos direitos a todos os cidadãos, além do enfrentamento do crime e da violência. 299

Essas tarefas distintas exigem do policial, habilidades e uma qualificação cada vez maior. Motivo pelo qual constantemente tem-se procurado melhorar as formas de policiamento, e uma destas opções foi mesclar o trabalho tradicional com outros métodos de enfrentamento da violência, sem deixar de prestar um serviço coercitivo em situações que isso se faça necessário de forma reativa2. Tem-se destacado nesta linha o policiamento comunitário com ações mais preventivas3, a qual necessita da participação da comunidade, porém para atuar nesta frente o policial precisa estar ainda melhor preparado, pois irá tratar da prevenção da violência com a ajuda dos membros da comunidade usando métodos diferentes do método tradicional. Esta formação e qualificação do policial parece ser o maior impasse para o sucesso na implantação deste trabalho policial, porque exige do policial não apenas capacitação profissional, mas também equilíbrio emocional para lidar com os problemas das pessoas. De outra forma, tem-se uma grande dificuldade em mensurar os resultados da prevenção tornando o trabalho policial ainda mais complexo, ao invés de só apresentar números estatísticos sobre o trabalho, o policial também interage com a população resolvendo problemas sociais da própria comunidade. Neste ensejo, as formas de atuação da polícia devem ser constantemente revistas e aprimoradas, principalmente quando não atingem os resultados esperados. Assim, para se adequar políticas de segurança pública no Brasil, equilibrando

a

conduta

individual

do

policial

com

os

princípios

constitucionais, torna-se uma tarefa complexa, pois requer mudanças de comportamento do policial nas suas atividades de rotina. Sem contar, que desta inovação depende a sustentação das instituições policiais, que deve

Na forma de atuação reativa, o policial é treinado para agir identificando o infrator da lei, procurando sempre o suspeito da infração legal, abordando o cidadão com desconfiança onde dificilmente a ação policial é recebida com simpatia. 3 Ação preventiva é muito comum no policiamento comunitário, onde o trabalho policial está voltado mais na aproximação com o público antes mesmo que ocorram as ações de violência e os ilícitos, fazendo um trabalho com visitas, palestras e reuniões conscientizando a comunidade da importância do policiamento comunitário e da boa relação que deve existir entre a instituição policial e a população, sendo desta forma, fundamental a colaboração da comunidade no trabalho policial, para estabelecer uma relação de confiança mútua e desenvolver um trabalho em conjunto. 2

300

dar legitimidade nas ações da polícia. Apesar de o policial ter a capacidade de convidar qualquer pessoa a ser conduzida até a delegacia, esta situação não se aplica para todos os casos. Pois “a arbitrariedade é caracterizada por condutas que extrapolam o leque de escolhas disponíveis para cada um dos casos em concreto” (PINC, 2011, p. 195). Podendo a conduta policial ser considerada desviante, nas situações em que não se enquadra nos parâmetros legais, além da prática discricionária

fundamental

no

seu

trabalho

cotidiano

policial

ser

considerada discriminatória. O policial que trabalha diretamente com o público tem relativa autonomia para tomar suas decisões no enfrentamento das ocorrências. Dessa forma, mudar o conceito e a forma do trabalho da polícia, torna-se ainda mais difícil, o que não quer dizer que todas as formas de atuação da polícia praticadas até o momento estejam erradas, apenas algumas atitudes que rotineiramente foram consideradas como regras padrões, devem ser adequadas ao novo ordenamento jurídico. É muito importante que o policial saiba fazer uso da arma de fogo, mesmo que esta arma tenha pouca chance de ser utilizada. Entretanto, é determinante que o policial saiba fazer uso da comunicação verbal, em especial durante as abordagens. Quando o policial consegue controlar uma situação de intervenção por meio da verbalização, diminuem as chances do uso da arma de fogo (PINC, 2011, p. 77).

Aos poucos o Brasil terá maturidade suficiente para implementar as mudanças necessárias para melhora o trabalho policial. A importância do treinamento, como meio de difusão e padronização da ação policial é fundamental para a conduta individual do policial na rua. Contudo, a preparação e a qualificação de um policial demanda tempo, exigindo um trabalho intenso na democratização e desmilitarização do modelo de polícia para mudar a forma de tratamento diante ao cidadão. Ao analisar a constitucionalidade da desmilitarização, Carvalho (2013) avalia o texto legal da PEC nº 102/2011, e conclui que a mesma não se encontra apta para ir à votação no Congresso Nacional, por necessitar de diversos ajustes que se refera ao rol de cláusulas pétreas estabelecido na 301

Constituição, sob pena de vir a ter sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal. No entanto, a proposição alterando o artigo 144 da Constituição, que trata do regime adotado pelas polícias militares para o modelo civil através de emenda constitucional, seria juridicamente viável, tendo em vista, não ofender o rol de cláusulas pétreas previsto no artigo 60, §º4, da Constituição. Com esse entendimento, não ha óbice na mera unificação entre a polícia militar com a polícia civil, por estar diante de duas instituições estaduais que tem sua subordinação ao mesmo governo do Estado. Com a mera junção de atribuições de dois órgãos subordinados ao mesmo governo, não afeta a separação de poderes nem o pacto federativo. Um forte empecilho continua sendo o fato da polícia militar constar como força auxiliar e reserva do Exército, mantendo assim o vínculo com o Exército e sobrepondo o controle militar sobre o controle civil representando uma ameaça ao desenvolvimento democrático (CALDEIRA, 2000). Da mesma forma, na própria estrutura organizacional da polícia militar, não se encontra a designação de policial, mas sim de soldados, cabos, sargentos, tenentes, capitães, majores e coronéis. 4. NA BUSCA DE UM TRABALHO VOLTADO PARA O FIM SOCIAL Um passo importante na direção da desmilitarização é identificar nas próprias instituições policiais, os fatores que dificultam o relacionamento entre a população e a polícia. Tentando encontrar os problemas da falta de credibilidade da população diante da polícia, o que é claramente percebido pelos próprios policiais. Não é fácil encontrar a forma correta de se trabalhar, porém, torna-se necessário mudar a estrutura com o pensamento voltado a uma doutrina mais diferenciada que busca uma aproximação com a sociedade. Aonde se podem buscar alguns exemplos fora do Brasil como: Nas polícias norte-americanas e europeias, a organização policial possui estrutura de comando com achatamento da pirâmide, ciclo completo, não permitindo diferenciação entre polícia ostensiva e judiciária. No caso brasileiro, a organização policial é vinculada a estrutura militar do Exército brasileiro, no qual a hierarquia faz

302

parte da própria identidade corporativa (MIRANDA, 2013, p. 54).

Conforme Mirando (2013), o que se percebe da polícia brasileira basicamente a polícia militar, é o fato desta sempre ter sido resistente às mudanças, onde em pleno século XXI as instituições militares permanecem com a Doutrina de Segurança Nacional. Identificando-se também, que a tropa militar mantém atitudes de resistência à implantação de policiamentos que fogem do tradicional, especialmente quando estes vão de encontro aos interesses de manutenção da estrutura e organização hierárquica. O militarismo pode ser um sistema eficiente para vigiar e proteger teritorrialmente a nação. Porém a função de policiamento tem uma dimensão completamete diferente, onde a missão passa a ser a proteção e a segurança das pessoas. E em muitas situações do cotidiano em que a polícia é acionada, acaba demonstrando o seu total descontrole e despreparo diante de ações de servir e proteger a população. O ano de 2013 provou que a Polícia Militar não tem preparo para agir em manifestações populares. Desde junho do mesmo ano, a PM no Brasil inteiro agiu com truculência com a população brasileira. Suas ações ainda estão de acordo com a época da ditadura militar. Uma polícia arcaica em uma sociedade pós-moderna e democrática só pode acarretar o que aconteceu nas manifestações de 2013 (ABRANTES, 2014, p. 101).

Para mudar esta imagem negativa sobre a polícia brasileira, uma das medidas

pode

ser

o

aprimoramento

da

relação

entre

policiamento

comunitário e a desmilitarização, onde “é possível tendo em vista a hipótese de que o policiamento comunitário pode se constituir numa transição para um policiamento desmilitarizado” (MIRANDA, 2013, p. 55). Nesta seara, os princípios do militarismo se contrapõem ao policiamento de aproximação, da mesma forma que setores conservadores das polícias militares atuam na direção contrária do êxito do policiamento comunitário. A análise do policiamento comunitário a partir dos olhares dos próprios policiais nos leva a percebê-lo não apenas como alternativa ao modelo tradicional, mas na perspectiva de reconhecê-lo como parte do processo de desmilitarização das forças policiais brasileiras. A permanência do modelo tradicional afeta a qualidade dos serviços oferecidos à sociedade e, consequentemente o seu desenvolvimento

303

(MIRANDA, 2013, p. 55).

Numa sociedade moderna e democrática que se busca construir, é fundamental que se tenha uma sincronia e adequação de valores com garantia e manutenção da ordem pública, que passam a serem aspectos indispensáveis, na defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana. E é nesse enfoque, que se percebe uma carência e despreparo das instituições militares, como profissionais responsáveis da segurança pública deixando de proporcionar proteção e garantir cidadania a todos. Ora, este ethos repressivo e esta organização em segmentos excludentes da polícia têm sido reforçadas, no Brasil, seja pelos valores de nossa cultura judiciária, seja pelo ethos militar que tem definido a autuação das polícias militares, tradicionalmente organizados como exércitos, tanto antes de 1964, quanto depois desta data (LIMA, 2011, p. 85).

Permanece muito evidente, que a formação policial de hoje continua priorizando os padrões de policiamento tradicional, de modo que os direitos humanos não conseguem enraizar seus princípios na formação e nas resoluções policiais. Este fato tem dificultado o êxito de uma prática de policiamento desmilitarizado nas polícias militares do Brasil. Contudo, algumas instituições policiais têm avançado mais que outras, neste quesito onde cada instituição tem sua base curricular específica. Principalmente quando se trata de uma instituição militar para uma instituição não militar, de forma que algumas conservam mais as características militares que outras, no que se verifica: A predominância do ‘modelo policial tradicional’ no conteúdo do processo de formação profissional do futuro encontra-se consubstanciado em uma concepção do trabalho policial que enfatiza o comportamento legalista dos policiais em um arranjo burocráticomilitar que influencia a cultura, a filosofia de trabalho, a política administrativa, o treinamento, as operações, táticas e estratégias policiais (PONCIONI, 2005, p. 595).

Desta forma, se identifica grande resistência por parte dos próprios policias, motivo pelo qual, à transversalidade passou a ser discutida já nos cursos de formação policial, com o objetivo de difundir os direitos humanos 304

na atuação profissional. Assim, a educação das forças de segurança vem evoluindo na qualificação e na educação do policial, procurando alterar aos poucos

o

seu

pensamento

crítico,

na

busca

de

uma

melhor

profissionalização. As academias servem para moldar os futuros profissionais da segurança pública, ensinando-lhes valores e crenças referente a profissão, repassando a base de conhecimentos e cultura comum sobre o que é ser policial em um determinado

modelo

de

polícia

profissional.

De

acordo

com

este

entendimento, analisando o comportamento e formas de atuação da polícia no Estado do Rio de Janeiro. Verifica-se que a identificação com o militarismo pode ser encontrada mais acentuadamente no estilo de comportamento dos policiais militares, principalmente daqueles lotados nas unidades operacionais especiais da Corporação, como o Batalhão de Operações Especiais (BOPE), mas é também claramente identificável no estilo de comportamento dos policiais militares que fazem o policiamento ostensivo nas ruas, em luta na ‘guerra contra o crime’ (PONCIONI, 2005, p. 599).

Neste contexto, pode-se argumentar que é traçado um padrão de comportamento que valida simbolicamente o trabalho policial à vista de todos, afirmando a identidade do policial como um soldado guerreiro, que tem encorajado ações agressivas para fazer frente à missão que lhe foi designada. Nesta seara, de acordo com Soares (2013) a missão das polícias no Estado democrático de direito é inteiramente diferente daquela que cabe ao Exército. Segundo Soares a polícia precisa prover segurança aos cidadãos, garantindo o cumprimento da lei, protegendo os direitos e liberdades contra eventuais transgressões e violações legais. Para tanto, ressalta os propósitos do policiamento preventivo, que requer entre outros os seguintes atributos: Descentralização; valorização do trabalho na ponta; flexibilidade no processo decisório nos limites da legalidade, do respeito aos direitos humanos e dos princípios internacionalmente concertados que regem o uso comedido da força; plasticidade adaptativa às especificidades locais; capacidade de interlocução, liderança, mediação e diagnóstico; liberdade para adoção de iniciativas que mobilizem outros segmentos da corporação e intervenções governamentais

305

intersetoriais (SOARES, 2013, p. 5).

Como pode ser visto, o militarismo não permite este tipo de perfil policial, e de outro modo, a discricionariedade da verdadeira função policial conforme descrita por Soares, não tem tido sucesso na implementação e na estrutura do trabalho policial num estado democrático como o nosso. Com essa ideia, para melhorar a forma de trabalho policial tem-se alguns entendimentos de que a iniciativa deva partir dos próprios soldados. Melhorando assim, o trabalho da policial diante da sociedade (ABRANTES, 2014). De acordo com Poncioni (2005), que realizou um estudo sobre a formação profissional de algumas academias de polícia no Brasil, observou que os policiais continuam sendo treinados para as demandas diárias e preparados para dar respostas imediatas contra o crime, sendo estas formas de atuação baseados em um determinado modelo profissional de polícia já ultrapassado. Reforçando a identidade policial, com uma cultura de controle do crime associado a convicções, valores e práticas que remetem ao combate do infrator penal, renovando assim os velhos princípios básicos do trabalho policial. E contrastando ao novo profissionalismo difundido em grande parte do mundo ocidental, onde o serviço público a educação policial de alto nível e

a

busca

de

uma

aproximação

policial

com

a

comunidade,

são

comportamentos considerados fundamentais para a construção de uma nova identidade profissional do policial contemporâneo. A polícia precisa de profissionais qualificados e não de policiais com postura de heróis, essa ideia vem de encontro ao treinamento policial que serve exatamente para controlar reações espontâneas nos profissionais da área. Com este posicionamento é possível enfatizar, a importância que é a boa formação e a constante atualização dos policiais no decorrer das suas atividades. Pois a polícia “não é neutra nem imparcial, por definição: é a favor da lei e da ordem e contra aqueles que a querem infringir ou perturbar” (LIMA, 2011, p. 81). A inserção das disciplinas de humanidades é justificada devido à adequação da formação policial aos valores da sociedade

306

democrática. O paradoxo está numa sociedade que reconhece que a mudança de paradigma do padrão de policiamento é indispensável, mas sua polícia resiste à formação dos policiais para essa realidade (MIRANDA, 2013, p. 51).

Nesta mesma linha, (LIMA, 2011) esclarece que a polícia brasileira continua construída para a defesa do Estado e não para a defesa dos cidadãos. E o policiamento atual, mantém na hierarquia militar a estrita obediência e a negação da autonomia que se revela, como obstáculo na atuação policial, tanto no que diz respeito a sua necessária autonomia de decisão da prática de suas funções profissionais, como na avaliação de sua conduta e eficácia da mediação dos conflitos. Desta forma, o desempenho da atividade policial que se destina à administração dos conflitos na sociedade, tem como objetivo o combate e o extermínio do inimigo ou a inexorável punição dos transgressores. De acordo com (COMPARATO, 2014), o policial deve estar preparado para qualquer tipo de enfrentamento, sendo fundamental que o agente seja treinado para controlar suas emoções e saber resistir a provocações, ser tolerante e muitas vezes saber negociar os conflitos. O Brasil ainda está num processo de transição da ditadura e do militarismo para a democracia, e para agilizar os avanços nesta área torna-se necessário, que as autoridades policiais se mostrem mais sensíveis na questão que acena as novas ideias, promovendo uma reflexão ampla com a sociedade sobre um novo modelo de polícia. Para criar uma polícia desmilitarizada, já tem-se como exemplo no Brasil a Polícia Civil, Federal e Rodoviária Federal, as quais não tem o sistema militarista e nem por isso deixam de ter disciplina, hierarquia e organização. Sem abrir mão daquilo que se sabe, é necessário procurar aprender, e reproduzir nossas experiências acrescentando sempre novos conhecimentos. Comgenialogia e astúcia, aliada ao conhecimento técnico, “a tarefa é apontar-lhe outros caminhos e dependerá de engenho e arte a consecução de objetivos comuns, que permitem um melhor desempenho de nossa política e uma negociação mais justa de nossa segurança pública“ (LIMA, 2011, p. 91). 307

Por outro lado, não existem soluções fáceis, em um sistema tão complexo como é a segurança pública no Brasil, com interesses diversos e instituições que tem tido dificuldades para trabalhar de forma coesa no bem comum da sociedade. Se apresentam desafios conforme o conceito de Balestreri (1998), quando aborda o tema da desmilitarização, e a ideia de uma polícia única, afirmando que é um conceito que ainda precisa ser construído em nosso país, e não simplesmente acabar com a Polícia Militar, e passa-la às mãos da Polícia Civil. A importância do constante treinamento da atividade policial, reflete diretamente na imagem projetada pela sociedade com relação a atuação da polícia. Assim, o “procedimento não é uma ordem a ser seguida e sim uma conduta a ser introduzida como um comportamento reflexivo do policial, em seu trabalho cotidiano“ (PINC, 2011, p. 18). De modo que qualquer alteração na forma de atuação do trabalho policial, requer um longo período de adaptação e um constante treinamento. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Numa sociedade democrática como é o caso do Brasil, o trabalho da polícia é de uma importância extrema, por ter essa a função de garantir o correto cumprimento da Lei. Sendo para tal, lhe confiado um direito de fazer cumprir a lei, na qual deve ter a capacidade individual de fiscalizar e garantir os direitos, diante de situações onde o policial não consegue prever seu trabalho, competindo ao mesmo, estar preparado para enfrentar as mais diversas situações com autonomia, liberdade e responsabilidade. Com este cenário, cabe-nos pensar em primeiro lugar no respeito ao direito do policial como um ser cidadão, para que este tenha condições de repassar tranquilidade as pessoas. Quando um polícia militar tem um treinamento violento, ele acaba gerando uma reação violenta para com a sociedade, e é justamente o que acontece no militarismo numa lógica de treinar soldados para a guerra, tendo um inimigo a ser combatido. E certamente a desmilitarização irá trazer grandes alterações, e a principal delas será no próprio trabalho do policial, que é submetido à um Codigo 308

Penal Militar com um sistema diferenciado das demais pessoas, mais rigoroso e com crimes específicos. Tendo que estar sempre pronto para qualquer missão, trabalhando à qualquer hora em qualquer lugar, sem receber hora extra ou adicional noturno. Assim, apessar de toda dificuldade que se apresenta, ressalta-se a importância de debater este tema para encontrar a melhor forma de fazer segurança pública de qualidade. O que deve partir de uma polícia bem preparada, moderna, equipada e inteligente que trata o povo com cidadania e respeito. Aproveitando com mais eficiência, o recurso humando através do trabalho dos policiais que tem demonstrado competência e capacidade para realizar um excelênte serviço. REFERÊNCIAS ABRANTES, Darlan Menezes. Militarismo: um sistema arcaico de segurança pública. 3. ed. Fortaleza: Premius, 2014. BALESTRERI, Ricardo Brisola. Direitos Humanos: Coisa de Polícia. Passo Fundo: CAPEC, Paster Editora, 1998. CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. Tradução de Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo: Ed. 34; Edusp, 2000. CARVALHO, Daniel Pinheiro de. Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011, do Senado Federal, é Constitucional? Revista Debates em Direito Público, Belo Horizonte: Ano 12, n. 12, p. 181 - 206, out. 2013. COMPARATO, Bruno Konder.O que o policiamento das manifestações revela sobre a qualidade da nossa democracia. Faculdade de Direito da USP, São Paulo: 2014. LIMA, Roberto Kant de. Direitos civis, estado de direito e cultura policial: a formação policial em questão. Publicado em: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: p. 73 - 92, 2011. MIRANDA, José da Cruz Bispo de. Policiamento comunitário e desmilitarização: existe alguma correlação? Revista do laboratório de estudos da violência da UNESP, Marília, ed. 12, nov. 2013. PINC, Tânia Maria. Treinamento Policial: um meio de difusão de políticas públicas que incidem na conduta individual do policial de rua. (Tese de 309

doutorado) orientador Leandro Piquet Carneiro. São Paulo: 2011. PONCIONI, Paula. O modelo policial profissional e a formação profissional do futuro policial nas academias de polícia do Estado do Rio de Janeiro. Sociedade e estado. Brasília: v. 20, n. 3, p. 585 - 610, set./dez. 2005. SOARES, Luiz Eduardo. PEC-51: revolução na arquitetura institucional da segurança pública. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo: ano. 21, n. 252, nov. 2013.

310

PLURALISMO JURÍDICO, DIREITO INFORMAL E A CRIMINALIDADE Jeannine Tonetto de Aguiar1 1.INTRODUÇÃO A política hegemônica da globalização neoliberal marcada pela supremacia do mercado financeiro e os seus processos de desigualdades econômicas, culturais e sociais têm resultado em inúmeros desdobramentos à cultura jurídica brasileira e suas formas de legitimação. O atual direito moderno, de tradição jurídica burguês-capitalista, centralizado no Estado, identificado a partir de valores universais, monoculturais, liberais e individualistas, que consolidou uma cultura jurídica monista positivista vivencia um enorme esgotamento, que têm favorecido o surgimento de novos espaços para se repensarem outras formas de referência e legitimação, ensejando o surgimento de um novo fenômeno, a que se denominou de pluralismo jurídico. Com origem a partir da crise da modernidade, o pluralismo jurídico se insere num contexto mais amplo, como outra forma de direito e política. É um repensar o direito, interpretando-o como um produto da vida em sociedade, e não necessariamente aquele encontrado no direito positivo estatal, assim, o direito não mais se reduz tão-somente às normas jurídicasoficiais,

podendo

emergir

de

diversos

centros

de

produção

normativa. Este novo projeto social e político busca a redefinição do Estado e a efetivação de um sistema de regulamentação que traduz as necessidades e os valores de sujeitos sociais como outra fonte de legitimação, aspirando-se assim, à construção de novas formas jurídicas emergentes que se pautam na dignidade humana e na emancipação social, como outra forma de direito mais próxima da realidade das sociedades brasileiras. Graduada em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo. Pósgraduada em Direito e Processo Penal pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Bolsista do Programa CAPES/PROSUP. 1

311

Países periféricos como o Brasil tencionam solucionar alguns conflitos sociais de maneira alternativa de direito, uma vez que, por estarem em condição de exclusão de amparo legal e políticas públicas destinadas a necessidades básicas fundamentais, não podem contar com o Estado, preferindo dessa forma, submeter-se aos ditames socialmente emergidos pela própria população. Dessa forma, diante da deficiência e da ausência de recursos do Estado nessas sociedades, surgem procedimentos ilegais supostamente adequados a realizar justiça, capazes de solucionar problemas de origem social, no entanto, essa normatividade informal, apesar de, por vezes, mais rápida e eficaz e por tal razão obter amplo apoio da população, nem sempre se

organiza

de

maneira

positiva

e

baseada

nos

fundamentos

da

transformação social com objetivo de construir outro direito coletivo conforme propõe o pluralismo, isto, pois, têm se organizado através de grupos arbitrários, como o crime organizado que através do tráfico de drogas recorre à força e a violência como forma de legitimação de suas imposições, agindo, na maioria das vezes, na defesa de seus interesses próprios. Assim,

busca-se,

a

partir

da

constatação

da

ausência

e

da

insuficiência das atuais esferas jurídicas tradicionais, compreender a relação da criminalidade com as novas formas alternativas de direito, introduzindose um pluralismo jurídico através de um projeto comunitário-participativo, como instrumento de combate as mazelas da globalização neoliberal, e estratégia na busca pela justiça que o sistema formal não consegue garantir prontamente. 2. O MONISMO JURÍDICO A política hegemônica da globalização neoliberal marcada pela supremacia do mercado financeiro de lógica individualista e monocultural, e os seus processos de desigualdades econômicas, culturais e sociais, dominação e exclusão, têm resultado em inúmeros desdobramentos à cultura jurídica brasileira e suas formas de legitimação. Na América Latina, segundo Antonio Carlos Wolkmer (2013, p. 40), a 312

interpretação e a prática da ideologia neoliberal referem-se ao radicalismo do capitalismo que visa “absolutizar o mercado, até convertê-lo em meio, em método e fim de todo comportamento humano racional. Segundo essa concepção, ficam subordinados ao mercado a vida das pessoas, o comportamento da sociedade e a política dos governos”. A globalização neoliberal é resultado do modelo de desenvolvimento econômico e social desenvolvido a partir das crenças e interesses do indivíduo da classe social burguesa que buscava, enquanto classe dominadora, manter sua hegemonia. Durante o regime feudal vigia uma descentralização econômica, social e política, porém a burguesia com o propósito de garantir seu progresso material, e ter protegida a sua propriedade privada, buscava uma centralização através de um Estado mais forte. Criou-se então, o monismo jurídico como projeto centrado no Estado, reduzindo-se a legitimidade à legalidade, o que firmou o positivismo estatal como único ordenamento jurídico vigente na sociedade. (WOLKMER, 2012). Consolidado ao longo da modernidade e aplicado de maneira uniforme nos países ocidentais, o monismo jurídico propõe o Estado como único responsável pela criação das normas jurídicas e a sua legitimação, não havendo dessa forma, norma sem a presença do Estado, não reconhecendo outras formas de solução aos conflitos ou regulação social que não venham do Estado. No entanto, tal projeto de centralismo jurídico estatal criado para administrar conflitos de natureza individual e civil tem se tornado insuficiente na tentativa de resolução aos conflitos coletivos de dimensão social, na medida em que se vivenciam sociedades cada vez mais complexas e diversificadas. Este atual direito moderno vivencia um enorme esgotamento que, somado às tensões e às necessidades evidenciadas pela sociedade nos últimos tempos, têm favorecido o surgimento de novos espaços para se repensar outras formas de referência e legitimação de direitos. Assim, contrapondo ao monismo jurídico, nasce uma corrente de pensamento identificada a partir da redução da importância do Estado 313

enquanto único legitimador de direito, denominada de pluralismo jurídico, que, ao se insurgir contra a ideia da produção exclusiva do direito por parte do Estado, objetiva o reconhecendo de outras fontes de produção de normas. O pluralismo jurídico surge no Brasil como um novo paradigma, buscando a legitimação de novas práticas nascidas na sociedade, e não necessariamente no Estado. É um repensar o direito, interpretando-o como um produto da vida em sociedade e não apenas um conjunto de leis criadas pelo Estado, capaz de frear as consequências negativas propostas pelo desenvolvimento da sociedade reduzido ao desenvolvimento do capitalismo que inviabiliza formas democráticas de participação popular. 3. O PLURALISMO JURÍDICO COMO DIREITO INFORMAL Na década de 1970, Boaventura de Sousa Santos (1988) analisou a ocorrência de um sistema normativo existente a partir da organização social que diferia do modelo estatal oficial no Brasil, de membros moradores de uma comunidade periférica do Rio de Janeiro, a qual dá o nome de Pasárgada. A Comunidade de Pasárgada não era reconhecida pelo Estado como sujeito de direitos, pelo contrário, era excluída juridicamente e tida pelo direito estatal como ilegal, isto porque, tinha origem a partir de ocupações em terrenos particulares, onde os moradores de Pasárgada, com a ausência do direito estatal, se organizavam de forma a dar desenvolvimento para comunidade. Dessa forma, Santos (1988) apontava para o desenvolvimento de um direito não oficial estruturado pelos moradores de Pasárgada como mecanismo alternativo para a resolução de conflitos vivendo paralelamente ao direito estatal oficial. Pasárgada se tratava de uma alternativa emancipatória ao monismo jurídico positivista firmado pelo direito burguês, como outro direito, que emergia das sociedades marginalizadas, onde os grupos oprimidos representados pelas classes populares de Pasárgada eram capazes de produzir um novo direito com valores e normas distintas do direito oficial. Para Santos (2006), atualmente, se vive uma época de transição 314

paradigmática entre o paradigma da modernidade e o outro paradigma que está por vir, que deverá ser da emancipação social, de forma que, percebe-se a fundamental necessidade de não pensar o direito moderno, devendo ser este reinventado e adequado às necessidadesdos grupos sociais subalternos e das organizações que lutam contra as imposições do neoliberalismo, buscando-se o reconhecimento da pluralidade de sistemas jurídicos vigorando ao mesmo tempo e no mesmo espaço geopolítico. O pluralismo jurídico, segundo Wolkmer (2012, p.

238) é a

“multiplicidade de práticas existentes num mesmo espaço sociopolítico, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais”. Assim, a intenção do pluralismo jurídico não está em negar ou minimizar o direito estatal, segundo Wolkmer (2012, p. 240), mas em reconhecer que este é apenas uma das muitas formas jurídicas que podem existir na sociedade. [...] A pluralidade envolve coexistência de ordens jurídicas distintas que define ou não relações entre si. O pluralismo pode ter como meta práticas normativas autônomas e autênticas geradas por diferentes forças sociais ou manifestações legais plurais e contemplares, reconhecidas, incorporadas e controladas pelo Estado.

Parte de uma premissa de negação do Estado como única fonte de juridicidade, objetivando a juridicidade de variados grupos, reconhecendo-se então, uma produção normativa criada através de grupos organizados autônomos que compõem distintas forças sociais, e não necessariamente aqueles encontrados no direito positivo estatal. É nessa linha que Wolkmer (2012, p. 241) coloca uma dualidade entre “pluralismo jurídico estatal”permitido e controlado pelo próprio Estado e outro,

um

“pluralismo

jurídico

comunitário”

autônomo,

que

subsiste

independentemente do controle estatal. O pluralismo jurídico apesar de partir de um pressuposto comum que é a ideia de que não há apenas uma e sim diversas ordens jurídicas regulamentadoras de práticas sociais, não se manifesta apenas de uma maneira. Há que se destacar que não são todas as práticas de pluralismo 315

existentes que estão realmente a serviço do projeto da emancipação social, uma vez que, existem práticas que apesar de não estatais, reforçam e contribuem a reprodução do direito hegemônico.Por tal razão importa diferenciar o pluralismo jurídico que busca contribuir na redução das desigualdades sociais e nas relações de poder, do pluralismo que agrava ainda mais a desigualdade e exclusão social. Wolkmer (2012, p. 243) elenca então as diferenças entre o pluralismo jurídico como “projeto conservador”, servindo de alternativa para intentos neoliberais,

do

pluralismo

jurídico

como

“projeto

emancipatório”,

transformador, como alternativa contra-hegemônica de emancipação de estruturas sociais dependentes: O pluralismo de corte conservador opõe-se radicalmente ao pluralismo progressista e democrático. A diferença entre o primeiro e o segundo está, fundamentalmente, no fato de que o pluralismo conservador inviabiliza a organização das massas e mascara a verdadeira participação, enquanto que o pluralismo transformador como estratégia democrática de integração procura promover e estimular a participação múltipla dos segmentos populares e dos novos sujeitos coletivos de base.

Para um processo contra-hegemônico de rupturas em sociedades do capitalismo periférico, como a brasileira, é primeira condição, segundo Wolkmer (2012, p. 243), “a reconstrução democrática da sociedade civil, a redefinição das funções do Estado e a implementação de um sistema de regulamentação identificado com as carências e necessidades de novos sujeitos de sociabilidades”. 4. PLURALISMO JURÍDICO E A CRIMINALIDADE BRASILEIRA Eliane Botelho Junqueira e José Augusto de Souza Rodrigues (1992, p. 14), ao analisarem a comunidade de Pasárgada, vinte anos depois de Santos, constataram que ao lado da associação de moradores da comunidade do Rio de Janeiro havia surgido outro ator na resolução de conflitos por meio do crime organizado que, ao contrário da associação de moradores que visam um consenso a partir do diálogo, o crime organizado por meio da boca de 316

fumo recorre à violência como forma de legitimação de suas imposições, veja-se: O crime organizado é, portanto, um ator normativo, tanto nos conflitos de propriedade não resolúveis com o discurso retórico das Associações de Moradores, como – principalmente – nas questões de competência da polícia e da justiça penal, ao aplicar, na imposição da “ordem”, um código penal próprio, cujas penalidades variam da prisão domiciliatória, expulsão temporária, impedimento de circular em determinada área, tiro na mão, até para os casos mais graves, a “pena de morte”. Dessa forma, contrariando os que imaginam as favelas a partir de vínculos comunitários dialogais, estas práticas – [...] que poderiam ter sido resolvidos diretamente pelas partes, sem intervenção da boca-de-fumo – revelam que não existe uma intersubjetividade do acordo nessas localidades, mas sim o recurso a uma instancia superior que, dotada de poder coativo, é capaz de impor a ordem.

O direito informal, dessa forma, supre as ausências deixadas pelo direito oficial estatal, constatando-se assim, claramente, a existência de pluralismo jurídico nas comunidades afetadas pelo crime organizado. Os líderes dessas comunidades agem na disposição de todo o tipo de proteção e assistência àqueles que não dispõem de proteção estatal. O poder dos traficantes, baseado na lei do mais forte, pode ignorar princípios éticos e humanitários, sendo por vezes, mais injusto que o direito positivo estatal. Entretanto, apesar do tráfico utilizar da violência para proteger a ordem na comunidade, os moradores, diante da ausência de outros meios, recorrem a ele, firmando um pacto com os traficantes, na tentativa de terem seus conflitos resolvidos e a proteção do seu local territorial, e, posteriormente, como forma de agradecimento, acabam por garantir a segurança do crime organizado. Tal situação de proteção à comunidade, no entanto, não denota um “espírito comunitário” dos traficantes, conforme observa Alba Zaluar (apud JUNQUEIRA, 1992, p. 15), ao contrário, se trata de uma “ética de autopreservação”,

de

maneira

a

prevenir

seus

interesses

próprios,

eliminando quem os prejudica, e protegendo quem os defende. Junqueira e Rodrigues (1992, p. 16) prosseguem:

317

Dessa forma, a velha fórmula dos liberais, de construção de instâncias formais dotadas de poder de coação, não é velha nem de todo má, pois aqui e agora, ao contrário do que alguns intelectuais continuam a sonhar, a tese de auto-regulação da sociedade civil, em termos práticos, tem significado, a entrega das populações das favelas e das áreas periféricas ao poder de fato do crime organizado. Mesmo considerando-se que a realidade brasileira se modificou radicalmente neste últimos vinte anos, Pasárgada é mais fruto do imaginário sobre a América Latina construído durante a década de sessenta nos países centrais, do que situação típica das nossas favelas que se caracterizam não por laços comunitários, mas pela atomização que reflete a lógica de cada ator normativo, o que, por sinal, não escapou à observação de Boaventura de Sousa Santos, que estudou a “privatização possessiva” como uma das linhas de força presentes nos direitos de Pasárgada.

Importa destacar que Santos (1988, p. 14) também reconhece a contaminação pela ideologia dominante apontada por Oliveira como hipótese capaz de afetar esses fenômenos jurídicos plurais, quando afirma que “a intervenção da associação de moradores nesse domínio visa constituir como que um ersatz da proteção jurídica oficial de que carecem”. Para Lucas Borges de Carvalho (2013, p. 21-22) não se trata de negar a existência de um direito paralelo ao direito estatal, como alternativa de resolução de conflitos, vigorando no mesmo espaço, bem como, não se trata de crer nas instituições estatais como única alternativa para as demandas sociais e as novas exigências da contemporaneidade: É um grave equivoco – de ordem epistemológica e também política – rechaçar, por completo, o direito positivo em nome de um “outro direito”, supostamente legítimo, porque fruto do agir dos oprimidos. [...] é difícil situar o direito paralelo em um lugar completamente distinto do oficial, como se um nada tivesse a ver com o outro ou como se cada um operasse com lógicas e valores distintos. Pelo contrário, o direito das periferias é um subproduto do direito capitalista oficial, contaminado pelos mesmos valores que o regem. Significativo, a respeito, é o fato de que o objetivo dos moradores das periferias, tal como demonstram as pesquisas, não é o de construir uma outra legalidade, mas ser incorporado ao sistema jurídico estatal, o que é bastante compreensível em um país no qual os direitos humanos básicos ainda não foram assegurados.

Roberto Barbato Jr. (2013) analisa uma nova situação de pluralismo jurídico nas comunidades brasileiras, que é a tentativa de substituição da 318

liderança dos traficantes pelas milícias paralelas que buscam assumir um controle social orientador nas comunidades. Ocorre que, esgotadas as possibilidades de solução pacífica, assim como os traficantes, a milícia também na tentativa de impor sua regra de conduta, usa da força e da violência, ainda que com objetivos diversos aos do tráfico, não elide assim, mesmo que composta por policiais, sua essência criminosa. Segundo o autor (2013, p. 231): Em suma, as milícias em nada se diferem dos narcotraficantes no que diz respeito ao modo como impõem regras de conduta nas favelas. Tal como os antigos líderes, são capazes de impor o terror, exigir tributos e definir o destino das pessoas. [...] A tentativa de atribuir alguma moralidade às suas ações, pautadas na recusa à produção e ao consumo de entorpecentes, não afere a elas nenhum sentido ético. Longe disso, elas procuram apoio numa pretensa aura de salvacionismo, mas acabam por incorrer em inequívoca tirania.

Destaca-se que, assim como os traficantes, a existência da milícia nas favelas se justifica pela ausência estatal no atendimento às demandas sociais exigidas pela população, que possibilita o surgimento de novas formas alternativas de normatividade. Nessa linha, se questiona se seriam as milícias ou os grupos criminosos, através de suas próprias leis e julgamentos, expressões legítimas de normatividade. Norberto Bobbio (2005, p. 31) ao afirmar que “[...] até uma associação de delinquentes, desde que seja organizada com a finalidade de manter a ordem entre seus membros, é um ordenamento jurídico”, reconhece legitimidade aos grupos criminosos e a procedimentos não reconhecidos pelo direito oficial estatal. Preocupado com a questão da legitimidade enquanto pressuposto fundamental para a construção de uma cultura jurídica informal, Wolkmer (2001, p. 324) reconhece que nem todo grupo social autêntico é justo e legítimo, por tal razão é essencial, ter em conta determinados “critérioslimites”,

que

determinados

devem institutos

ser

considerados

jurídicos,

quando

devendo

se

na

legitimação

distinguir

os

de

“grupos

comprometidos com as causas do “justo”, do “ético” e do “bem comum” de 319

grande parcela da comunidade daqueles grupos sociais identificados com a manutenção dos privilégios, a dominação e a oposição a qualquer mudança”, isto,

pois,

“o

conteúdo

valorativo

de

uma

manifestação

normativa

informalizada e não-oficial é muito relativo, podendo ser moralmente correto ou não. O fato de uma prática ser “extra-estatal” ou “não-oficial” não é condição para sua legitimidade”. A legitimidade não estaria associada à ideia de chancela estatal, e sim a ideia de justo comunitário, sendo considerado como direito legítimo quando associado a valores éticos e de justiça que respeitem a vida humana. Dessa forma, para Barbato Jr. (2013), tanto as milícias quanto as organizações criminosas não podem ser consideradas legítimas, apesar de terem o apoio dos grupos sociais em meio a tais organizações, não deve, tão somente, essa conduta de apoio justificar ações que se pautem, entre outros, no terror, na tortura e no extermínio. 5. PLURALISMO JURÍDICO COMUNITÁRIO-PARTICIPATIVO Wolkmer (2012, p. 244) propõe o reconhecimento de outra cultura jurídica, comprometida com a emancipação social e os movimentos sociais, que luta contra a democracia neoliberal hegemônica, aduzindo a um novo direito, produzido através da comunidade e não somente pelo Estado. A proposta de um novo pluralismo jurídico de teor comunitário-participativo deriva, pois, das práticas sociais insurgentes, criadas para a satisfação das necessidades fundamentais e afirmação dos direitos humanos a partir da perspectiva da interculturalidade, pressupondo a) a legitimidade de novos sujeitos sociais; b) fundamentação na justa satisfação de necessidades humanas; c) a democratização e descentralização de um espaço público participativo; d) a defesa pedagógica de uma ética da alteridade; e) a consolidação de processos conducente a uma racionalidade emancipatória.

Novos sujeitos sociais são aqueles pensados em termos de identidades humanas (enquanto identidade coletiva caracteriza-se na pluralidade de sujeitos através dos movimentos sociais); de dignidade; autodeterminação e 320

participação, contrapondo-se aos tradicionais sujeitos individuais. É através desses novos sujeitos coletivos de direito, segundo Wolkmer (2012, p. 263), que se “tornam fontes de legitimação de “um novo senso comum solidário e participativo” capaz de efetivar a justiça concreta e outra maneira mais autêntica de constituir direitos”. Os sujeitos sociais, segundo Wolkmer (2012, p. 261), “apesar de, por vezes, oprimidos e “inseridos na condição de ‘ilegalidade’ para as diversas esferas do sistema oficial, definem uma forma plural e emancipadora de legitimação”. Assim, o Direito não se refere mais unicamente ao Direito estatal, emergindo de diversas formas de produção normativa, inserido nos novos movimentos sociais de onde origina. A partir desses novos sujeitos coletivos se justifica o sistema de necessidades humanas, que podem

se referir, a

valores, vontades,

ausências, entre outros, variando conforme cada sociedade ou cultura, que no caso da sociedade latino-americana, segundo Wolkmer (2012, p. 245), o capitalismo favorece a interpretação das necessidades como “produto de carências primárias, de lutas e conflitos engendrados pela divisão social do trabalho e por exigência de bens e serviços vinculados a vida produtiva”. Busca-se

ainda,

a

ampliação

da

esfera

política

através

da

implementação de uma política democrática, para a produção de espaços comunitários descentralizados e participativos, no desenvolvimento da ética da alteridade, contrário a cultura individualista moderna, bem como, a elaboração de uma racionalidade de caráter emancipatório, através do cotidiano da vida concreta. Tais condições são essenciais para fundamentar um novo paradigma de juridicidade e indicam o caminho da construção de uma nova cultura do direito, resultado da interação entre a prática e a teoria, plural e participativa, onde se presenciam valores como identidade, autonomia, satisfação das necessidades fundamentais, entre outros, caracterizadores pelos novos sujeitos coletivos.Segundo Wolkmer (2012, p. 248): Trata-se da produção e aplicação de direitos advindos das lutas e das práticas sociais comunitárias, independentes da chancelados órgãos ou agências do Estado. A prova desta realidade, por demais

321

inovadora, que não mais de centraliza no Judiciário, nas Assembléias Legislativas ou nas Escolas de Direito, mas no seio da própria Comunidade, são os novos sujeitos sociais. Com isso, aflora toda uma “nova” lógica e uma “nova” justiça que nasce das práticas sociais e que passa, dialeticamente, a orientar a ação libertadora de agentes sociais excluídos.

O pluralismo jurídico, como projeto emancipatório, legitimado nas práticas sociais, insurgentes e participativas dos novos sujeitos coletivos de direito, objetiva a satisfação das necessidades humanas fundamentais e a redução das relações desiguais de poder, agindo como um verdadeiro sujeito produtor de direito, no desenvolvimento de uma prática denominada de alternativa, colocada segundo Wolkmer (2012, p. 248), “não como “uso alternativo do Direito”, mas como um processo de construção de outras formas jurídicas”. Isto quer dizer que, não se trata da substituição de um direito proveniente do Estado injusto por outro mais favorável, e sim, outra forma de direito, criada através dos grupos sociais menos favorecidos, a partir de suas necessidades. Como refere Junqueira (1996, p. 4), a “exclusão da grande maioria da população de direitos sociais básicos, entre os quais o direito à moradia e à saúde” é pressuposto para a análise de “novos movimentos sociais e suas demandas por direitos coletivos e difusos”. A insuficiência do direito formal estatal brasileiro, segundo Wolkmer (2001, p. 99), que não conseguiu “acompanhar o ritmo das transformações sociais e a especifidade cotidiana dos novos conflitos coletivos”, foi determinante para o surgimento do direito informal, bem como, trata-se de uma instância de decisão não só submissa e dependente da estrutura de poder dominante, como, sobretudo, de um órgão burocrático do Estado, desatualizado e inerte, de perfil fortemente conservador e de pouca eficácia na solução rápida e global de questões emergenciais vinculadas, quer às reivindicações dos múltiplos movimentos sociais, quer aos interesses das maiorias carentes de justiça e da população privada de seus direitos.

Assim, através do surgimento de práticas alternativas e um pluralismo jurídico organizado pelos novos sujeitos coletivos em âmbito não estatal, correspondem

então,

ao

ideal

do

pluralismo

jurídico

comunitário322

participativo utilizado por Wolkmer para a superação do monismo jurídico. Entretanto, este pluralismo jurídico de teor comunitário-participativo também é objeto de críticas por autores como Lédio Rosa de Andrade que, segundo Carvalho (2013) dá ênfase as situações de controle social e manipulação do crime organizado que utiliza suas próprias leis e ordens para a resolução dos conflitos da comunidade, demonstrando assim, que nem

tudo

que

emerge

dos

grupos

sociais

é

sempre

emancipador,

questionando quais teorias seriam capazes de diferenciar o direito paralelo do direito criminoso e, ainda, criticando a legitimidade dos valores impostos por Wolkmer para qualificar o direito comunitário como o justo e ético e o direito criminoso como o injusto e antiético, e se teria o intelectual algum privilégio nesse sentido. Para Carvalho (2013, p. 31) os critérios apontados por Wolkmer devem ser objeto de questionamentos e debates, no entanto, é errado afirmar que eles não possam ser propostos, pelo contrário ele esta cumprindo com o seu “papel político de demonstrar com argumentos racionais que determinadas concepções de justiça ou de pluralismo jurídico são melhores ou mais legítimas do que outras, fornecendo, assim, critérios para uma análise crítica da realidade”. Ainda, acerca dos critérios e sua definição, para Carvalho (2013, p. 3233): Em suma, pensar fundamentos morais para um pluralismo comunitário não implica, em momento algum, ditar regras para toda a sociedade, nem muitos menos demanda um acesso privilegiado à verdade. Nem o juiz, nem o filósofo ou outro intelectual qualquer têm melhores condições de sustentar proposições valorativas do que os demais cidadãos. Todos, sem exceção, dispõem dos mesmos recursos: argumentos.

Nesse contexto de críticas, Wolkmer (2001, p. 227) menciona que Miguel

Reale

acredita

que

a

variedade

de

pluralismos

e

de

seus

representantes torna difícil sua apuração e sistematização. Para tal doutrinador o erro do pluralismo jurídico está no fato de que “certas funções (...) não podem ser exercidas por indivíduos ou por associações particulares 323

sem grave perigo para a ordem social e sem o aniquilamento do próprio Estado”, colocando em perigo assim, a unidade do direito. De igual forma, segundo Wolkmer (2001, p. 228), Norberto Bobbio questiona as bases do pluralismo jurídico que pode “ocultar tanto uma ideologia revolucionária inserida em ordenamentos que contribuem para a “progressiva libertação dos indivíduos e dos grupos oprimidos pelo poder do Estado”, quanto uma ideologia reacionária interpretada como “episódio da desagregação ou da substituição do Estado e, portanto, como sintoma de uma iminente e incompatível anarquia”. Wolkmer (2001, p. 230) constata certas limitações ao pluralismo jurídico tradicional o que o inviabiliza e torna inadequado para “estruturas de privilégios, desigualdades e injustiças como a brasileira”, no entanto, esse pluralismo jurídico hegemônico não impede o repensar de novas formas de organização da vida social, que favoreçam “a imperiosidade de outro projeto de pluralidade de caráter “ampliado” e “aberto”, identificado plena e autenticamente com as condições objetivas de mudança e emancipação de sociedades de cultura liberal-individualista como a nossa”. A crítica ao direito dominante, realizada por Wolkmer, se refere ao modo como este direito é interpretado, compreendido e aplicado, sendo entendido como formal, hegemônico, e atuando sem considerar o contexto social, econômico e cultural em que se encontra a maioria da população. Por tal razão, propõe o pluralismo jurídico contra-hegemônico como uma prática mais comprometida com a realidade social de países periféricos, como é o caso brasileiro, transgredindo ao direito moderno, buscando a efetivação de um sistema de regulamentação que traduz as necessidades e os valores de sujeitos sociais como outra fonte de legitimação, aspirando-se assim, à construção de novas formas jurídicas emergentes que se pautam na dignidade humana e na emancipação social. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A busca de formas alternativas de solução de conflitos no Brasil, por vezes, está relacionada a procedimentos ilegais, que resolvem as tensões 324

sociais através de métodos violentos. Tal situação propaga a capacidade dos grupos criminosos de ampliar sua atuação e cada vez mais encarar sem medo as normas estatais. Com vistas na ausência e na insuficiência do atual modelo de juridicidade pautado no Estado como único responsável pela solução das mazelas da população, o pluralismo jurídico comunitário-participativo se insere num contexto mais amplo, como outra forma de direito e política, que propõe aos cidadãos, através de uma nova cultura do direito, o poder de resgate dos seus direitos. Trata-se de um projeto que consideraa emergência de novos sujeitos coletivos e esferas de juridicidade, a partir da reflexão acerca de instrumentos capazes de propiciar a democratização no direito, através da construção de um modelo de direito mais descentralizado e que favoreça a participação dos cidadãos, a partir do desenvolvimento da ética da alteridade e da racionalidade emancipatória capazes de concretizar um sistema de satisfação das necessidades humanas, com vistas à transformação do direito, e o resgate ao pluralismo das relações sociais e aos anseios da sociedade, aproximando o direito da realidade que se apresenta. REFERÊNCIAS ANDRADE, Lédio Rosa de. Introdução ao direito alternativo brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. ARRUDA JR. Edmundo Lima de. Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1992. BARBATO JR., Roberto. Pluralismo jurídico e criminalidade brasileira. In: Pluralismo Jurídico. Os novos caminhos da contemporaneidade. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. 3ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1994. ________. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. ________. Teoria da Norma Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Edipro, 2005. CARVALHO, Lucas Borges de. Caminhos (e descaminhos) do pluralismo 325

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327

PROPOSTA DE REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: UMA ABORDAGEM À LUZ DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA Dieison Felipe Zanfra Marques1 Tatiane Sartori Bagolin2 1. INTRODUÇÃO No Brasil a concentração da riqueza é desordenada, as cidades estão degradadas e as condições de habitação são péssimas, não há acesso a lazer, cultura, saúde, educação, etc. e a prestação de serviços públicos são precários e de pouca qualidade. Visivelmente, os direitos do cidadão há tempos deixaram de ser assegurados pelo Estado, provocando a insatisfação do povo brasileiro com a atual conjuntura político-social do país. Tudo isso é de conhecimento público há longa data, porém, atualmente, existe mais um fator preponderante sobre a questão: os meios de comunicação de massa. Ou seja, há uma acentuada influência dos meios de comunicação que incentivam o consumismo, ditando as regras do jogo e os padrões da vida social. Devido aos problemas econômicos e sociais, contudo, a maioria da sociedade não consegue enquadrar-se neste “padrão” estabelecido pela mídia e é a partir dessa realidade que se inicia a problemática da violência - foco do presente trabalho. A partir do momento em que o indivíduo não se enquadra no padrão indicado ele tem sua autoestima reduzida e passa a se sentir inferiorizado e solitário. A partir disso passa a construir uma estratégia de vida própria e comportar-se de um modo único. Nesse viés entra toda a problemática em relação à criminalidade, destacando-se que essa influência incisiva e constante da mídia provoca a exclusão social, afetando, principalmente, a criança e o adolescente. Os meios de comunicação estão diariamente retratando a realidade brasileira, em matéria de violência, e cada vez mais a presença do jovem

1Acadêmico

do 8º semestre do curso Estado do Rio Grande do Sul. E-mail: 2Acadêmica do 9º semestre do curso Estado do Rio Grande do Sul. E-mail:

de Direito pela Universidade Regional do Noroeste do [email protected] de Direito pela Universidade Regional do Noroeste do [email protected]

328

ganha destaque. A mídia consegue fazer sensacionalismo e transformar determinados acontecimentos em grandes espetáculos e o os envolvidos que se destacam, são os mais vulneráveis, isto é, a criança e o adolescente. Não se pode deixar de mencionar que recentes episódios de crimes cometidos por menores fizeram com que o tema ‘violência juvenil’ voltasse ao centro das discussões do povo brasileiro e também dos legisladores (grifo nosso). Neste cenário, o tema da redução da maioridade penal ressurgiu no Congresso Nacional e deu luz à aprovação, em segundo turno, da PEC 171/93 na Câmara dos Deputados e seguindo os trâmites do procedimento legislativo, segue para o Senado Federal. Nota-se que os discursos em defesa da redução penal estão surtindo efeito, tanto que conforme pesquisa do Datafolha (2015), 87% da população brasileira são a favor de tornar maiores de 16 anos imputáveis penalmente. É com preocupação com estes números e com a influência que a mídia tem sobre a população brasileira, bloqueando seu senso crítico, que o presente trabalho se desenvolve. Surgindo nesse momento em que se discutem propostas de endurecimento da legislação relativa a delitos infanto-juvenis e redução da imputabilidade penal, com a pretensão de informar, refletir e demonstrar alguns mitos sobre o tema, abordando o assunto a partir do viés constitucional e humano. 2. ASPECTOS SOBRE A PROPOSTA DE REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL Na última semana, a mídia veiculou incessantemente a notícia da aprovação de uma proposta de emenda à constituição, em segundo turno de votação na Câmara dos Deputados, que reduz a maioridade penal de dezoito para dezesseis anos para casos de crimes hediondos. Trata-se da PEC nº 171 de agosto de 1993 de autoria do ex-deputado Benedito Domingos que prevê a alteração do art. 228 da Constituição Federal reduzindo a imputabilidade penal de dezoito para dezesseis anos. Como revela a o ex-deputado na justificativa da PEC (1993), seu objetivo é responsabilizar criminalmente os jovens maiores de dezesseis anos, pois pela 329

legislação penal brasileira, o menor de dezoito anos não está sujeito à sanção alguma, mas somente às chamadas medidas socioeducativas. Atualmente, “a liberdade de imprensa, a ausência de censura prévia, a liberação sexual, a emancipação e independência dos filhos cada vez mais prematura, a consciência política que impregna a cabeça dos adolescentes, a televisão...” (BRASIL, 1993, p.10) constituíram-se ao longo dos anos, em auxiliar no processo de amadurecimento do jovem brasileiro, contribuindo para que se torne entendedor dos seus atos, diferentemente dos jovens de quarenta ou cinquenta anos atrás. Na realidade, a análise que é efetuada pelo legislador leva em consideração a evolução do desenvolvimento psicossocial e mental do jovem ao longo dos anos, não se compatibiliza mais com o desenvolvimento daquele menor de meados de1940, tornando insuficiente o tratamento somente com medidas socioeducativas. A justificativa da PEC (1993) revela que no ordenamento jurídico pátrio, o indivíduo se torna capaz para o casamento aos dezesseis anos somente tendo como critério o caráter biológico, não havendo preocupação com os aspectos psicológicos ou morais; para os atos da vida civil em geral dezoito anos, o que constitui somente a presunção da lei de pleno desenvolvimento mental para o exercício; para os direitos eleitorais se exige dezesseis anos (mesmo sendo irresponsável em caso de crimes eleitorais); para que se possa trabalhar se exige quatorze anos (mesmo sem poder distratar por conta própria;) e “o mais grave, indubitavelmente, é o encontrado na esfera penal: para que alguém possa ser apenado pela prática de ato delituoso, de ação típica, antijurídica, culpável e punível, é preciso que, concretizados os elementos do crime, tenha o agente atingido a idade de 18 anos!”. (BRASIL, 1993, p. 11). Com tais alegações, percebe-se que o legislador de 1993 acreditava fielmente que as mudanças tecnológicas trouxeram consigo o poder de interferir na formação da criança e do adolescente fazendo com que pudesse, a partir de então, autodeterminar-se e fazer escolhas sozinho tendo “indiscutivelmente

um

suficiente

desenvolvimento

psíquico

e

plena

possibilidade de entendimento” (BRASIL, 1993, p.11). 330

As alegações vão ainda mais a fundo a ponto do legislador dizer que os jovens têm: um amplo conhecimento e condições de discernir sobre o caráter de licitude e ilicitude dos atos que praticam e de determinar-se de acordo com esse entendimento, ou seja: hoje, um menor de dezesseis ou dezessete anos sabe perfeitamente que matar, lesionar, roubar, furtar, estuprar, etc. são fatos que contrariam o ordenamento jurídico; são fatos contrários à lei, em síntese, entendem que praticando tais atos são delinquentes (BRASIL, 1993, p.11).

Conforme a PEC (1993) a maioria dos crimes envolvendo violência é praticada por menores de dezoito anos, quase sempre, aliciados por adultos. O entendimento é que os jovens são utilizados para movimentar o crime organizado e se a lei permanecer no seu estado atual não haverá forma de controlar estes delinquentes juvenis, pois nem a polícia tem condições de enfrentá-los, já que a lei impede que medidas mais severas sejam tomadas. Com isto se crê que o que ocorre é o aumento da criminalidade juvenil que diante da falta de aparatos estatais para controle de tal situação e de “institutos adequados para o seu recolhimento para reeducação ou correção de

comportamento,

estabelecimentos

após

um

reformatórios,

afastamento voltam

do

meio

inevitavelmente

social às

em

práticas

criminosas”. (BRASIL, 1993, p. 11). Conforme a justificativa da PEC, portanto, a finalidade é dar ao adolescente consciência de sua participação social, da importância e da necessidade de cumprimento da lei como forma de obter a cidadania. O que se pretende “é dar ao menor, direitos e responsabilidade e não apenas mandá-los para a cadeia” (BRASIL, 1993, p. 11). A proposta em análise esteve inerte na Câmara por anos e nas últimas votações recebeu emendas propondo a redução da maioridade de dezoito para dezesseis anos nos casos de crimes hediondos, conforme emenda dos deputados Rogério Rosso e André Moura, que prevê ainda a regra de cumprimento de pena em estabelecimento separado dos destinados a maiores

de

dezoito

anos

e

dos

menores

de

dezesseis

anos,

cuja

responsabilidade de criação seria concorrente entre os entes federados. Para os deputados favoráveis à PEC, tal medida está amparada ao 331

clamor público em relação à proposta, baseados em uma pesquisa do Datafolha (2015) que indica que 87% da população brasileira são a favor da redução da maioridade penal. A PEC 171/93 seguiu no último dia 21 de agosto para avaliação do Senado Federal com a seguinte redação: Altera a redação do art. 228 da Constituição Federal. AS MESAS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS E DO SENADO FEDERAL, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional: Art. 1º O art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial, ressalvados os maiores de dezesseis anos, observando-se o cumprimento da pena em estabelecimento separado dos maiores de dezoito anos e dos menores inimputáveis, em casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. (NR). Art. 2º A União, os Estados e o Distrito Federal criarão os estabelecimentos a que se refere o art. 1º desta Emenda à Constituição. Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

Observa-se, assim, que a redução da maioridade penal faz parte da agenda política e social e, apresenta resposta ao clamor da sociedade que não quer nem saber se há violação dos direitos fundamentais da criança e adolescente. 3. ASPECTOS CONSTITUCIONAIS EM RELAÇÃO À IMPUTABILIDADE A imputabilidade penal é a capacidade intelectual que o indivíduo possui para determinar sua conduta e ter a compreensão da ilicitude de seus atos, e em consequência disso, agir de acordo com tal entendimento. A questão da imputabilidade se faz marco inicial da responsabilidade penal e sua fixação: A imputabilidade pode ser definida como a aptidão do indivíduo para praticar determinados atos com discernimento, que tem como equivalente a capacidade penal. Em suma, é a condição pessoal de maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se segundo este entendimento (PONTE, 2001, p. 26).

332

Em contrapartida, a inimputabilidade é causa de exclusão de culpabilidade, isto é, mesmo sendo o fato típico e antijurídico, não é culpável, eis que não há elemento que comprove a capacidade psíquica do indivíduo para compreender a reprovabilidade de sua conduta, não podendo ocorrer imposição de pena ao infrator. O ordenamento jurídico brasileiro apresenta a seguinte previsão legal para distinguir o inimputável do imputável no art. 26 do Código Penal, in verbis: Art. 26: É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

São casos em que o indivíduo pode ser considerado inimputável: doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, embriaguez completa, decorrente de fortuito ou força maior, dependência de substância entorpecente e menoridade. A Constituição Federal de 1988 passa a tratar a inimputabilidade do menor como um direito fundamental, visando a maior proteção da criança e do adolescente, sendo assim, neste contexto, deu maior proteção à inimputabilidade do menor de dezoito anos, conforme expresso em seu art. 228 tornando menores de 18 anos, penalmente inimputáveis, sujeitos às normas da legislação especial, ou seja, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069/90). Nota-se, consideração

por o

meio

critério

deste

dispositivo,

puramente

que

biológico

o

Brasil

para

a

levou

em

fixação

da

imputabilidade, levando em conta a idade do indivíduo e não seu nível de discernimento psicológico para responder pelos seus atos. Diante disso, se verifica que não importa se o indivíduo tem ou não consciência da ilicitude de seus atos, pois ele só passará a responder criminalmente quando tiver 18 anos completos, caso contrário, fica sujeito à legislação especial, tendo de cumprir medidas socioeducativas. O Estatuto da Criança e Adolescente - ECA, Lei 8069/90, também 333

busca estabelecer orientações que priorizem tais indivíduos e a situação em que eles se encontram. Referida legislação prevê em seu art. 103 e seguintes, a questão da prática de atos infracionais e as medidas socioeducativas aplicáveis. Já as medidas de proteção, elencadas nos art. 99 a 101 ditam que estes instrumentos de forma alguma deverão ser entendidos como castigo ou pena, muito menos para aliviar a responsabilidade jurídica dos indivíduos causadores de danos à criança e ao adolescente. Substancialmente, através do analisado sobre a legislação vigente, se pode dizer, sem sombra de dúvida, que o menor de dezoito anos que pratica uma conduta tipificada como crime não permanece impune, pois o ECA prevê medidas que serão impostas ao infrator, as medidas socioeducativas, que na realidade, apenas possuem denominação diferente de “pena”. O principal parâmetro da inimputabilidade tem relação com proteção do indivíduo, atribuindo-lhe um tratamento alusivo à sua característica de pessoa em desenvolvimento, e inegavelmente percebe-se que há uma ligação entre a norma que institui a inimputabilidade em razão da idade do indivíduo com o princípio da proteção à dignidade da pessoa humana. Na verdade, ao realizar a análise sobre a imputabilidade penal, observa-se que pode ser considerada imutável perante a Constituição. Constata-se, assim, que ela pode ser considerada, indiretamente, cláusula pétrea, insuscetível de Emenda Constitucional, conforme revela Andrade (2013). Desta forma, como já sabido, os direitos e garantias fundamentais, por se tratarem de cláusulas pétreas, não podem ser abolidos. Ou seja, não se pode deixar de enfatizar que o art. 228, não pode ser objeto de emenda constitucional, pois está coberto pela garantia de imutabilidade, consoante disposto no art. 60, § 4º, IV da Constituição Federal: Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: ... IV - os direitos e garantias individuais.

No entendimento de alguns juristas, a exemplo de Dotti (2015), esse 334

dispositivo constitucional, leva em consideração a incidência de direitos fundamentais externos ao artigo 5º da Constituição Federal e em razão disso, preveem a impossibilidade de modificação haja vista a imutabilidade do art. 228 da Constituição Federal por considerar-se cláusula pétrea. Importante verificar a posição do STF sobre a questão: Assim, o artigo 228 da Constituição Federal encerraria a hipótese de garantia individual prevista fora do rol exemplificativo do art.5º, cuja possibilidade já foi declarada pelo STF em relação ao artigo 150, III, b (Adin 939-7 DF) e consequentemente, autentica cláusula pétrea prevista no artigo 60, § 4.º, IV. (...) Essa verdadeira cláusula de irresponsabilidade penal do menor de 18 anos enquanto garantia positiva de liberdade, igualmente transforma-se em garantia negativa em relação ao Estado, impedindo a persecução penal em Juízo (MORAES, 2005, p. 2176).

Em observância aos artigos expostos, se pode perceber que direitos fundamentais não estão apenas descritos no art. 5º da Constituição Federal, mas sim todos aqueles decorrentes da dignidade e liberdade da pessoa humana, ressalvando-se o direito da inimputabilidade penal. O artigo 228 da Constituição Federal está respaldado pela proteção de imutabilidade por se tratar de cláusula pétrea, portanto, insuscetível de alteração por emenda constitucional como pretende, por exemplo, a PEC 171/93. 4. DESCONSTITUINDO ALGUNS MITOS SOBRE A REDUÇÃO A partir do que foi exposto até agora já se pode formar uma opinião sobre o tema da redução da maioridade penal. Já foi possível analisar a proposta tendente a alterar a Carta Maior e já foram demonstrados alguns dos direitos e garantias assegurados aos destinatários da presente proposta de alteração, mas ainda existem argumentos - contrários à redução - que podem ser mencionados a fim de desconstituir alguns mitos criados socialmente acerca do que se debate aqui. O que se verifica é que nos últimos anos alguns dos crimes cometidos por adolescentes ganharam ênfase nos meios de comunicação em massa e provocaram discursos exaltados em defesa de práticas mais rígidas nas medidas socioeducativas ou mesmo da redução da maioridade penal. 335

O argumento, por parte de setores da sociedade e da mídia que defendem o endurecimento penal a este público específico, seria o protagonismo dos adolescentes no cometimento de crimes graves, por presumirem que o ECA trataria com medidas brandas esses adolescentes, culminando no aumento da criminalidade. Pois

bem,

conforme

o

ECA,

os

adolescentes

infratores

são

responsabilizados por seus atos infracionais, inclusive, sendo passíveis de sanções por parte do Estado – medidas socioeducativas – que podem ser, conforme art. 112 do ECA: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade, internação em estabelecimento educacional, dentre outras. Sublinha-se que em alguns casos o tratamento dedicado a um adolescente pode ser imposto com maior rigor do que aquele oferecido pela lei penal a um adulto, conforme destaca Murillo José Digiácomo, Promotor de Justiça do Estado do Paraná e integrante do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná: “De acordo com o previsto no próprio Estatuto, a privação da liberdade do adolescente pode se estender por até 06 (seis) anos, sendo 03 (três) anos em regime de internação e outros 03 (três) anos em semiliberdade.” (DIGIÁCOMO, Murillo José. Redução da idade penal: solução ou ilusão? Mitos e verdades sobre o tema.

Ao contrário do que muitos pensam, esta é uma “pena” severa levando em consideração que a medida correta a ser tomada deve estar permeada pelo princípio da Proteção Integral da Criança, ou seja, deve promover a recuperação do jovem através de atividades que possibilitem que este reveja e compreenda o teor dos seus atos e que possa voltar ao caminho correto e conviver em sociedade sendo um cidadão produtivo para ela. Em relação ao aumento da criminalidade devido à violência praticada por jovens, os dados estatísticos obtidos do Mapa do Encarceramento – Jovens do Brasil de 2014, revelam que a taxa nacional de adolescentes cumprindo medidas restritivas de liberdade era “de 95 por 100 mil habitantes em 2011 (19.595 adolescentes), e passa para 100 adolescentes por 100 mil habitantes em 2012 (20.532)” (BRASIL, 2014, p. 63) - lembrando 336

que o número de pessoas maiores de 18 anos em medidas restritivas de liberdade em 2014, conforme relatório do Infopen- junho (2014) é de mais de 600.000. Ainda falando de estatísticas, outro dado obtido diz respeito aos atos infracionais mais recorrentes no país: Nacionalmente, em 2012 o roubo representou 39% dos atos infracionais cometidos no país, seguido pelo tráfico de drogas (27%). Em terceiro lugar, com porcentagem menor, ficaram os homicídios (9%), seguidos pelos furtos (4%). Os demais atos infracionais: porte de arma de fogo, tentativa de homicídio, latrocínio, estupro e sua tentativa variaram de 3% a 4%... (Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil/ Secretaria-Geral da Presidência da República. Brasília. 2014).

A partir destes dados é possível inferir que no Brasil apenas 11% dos adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas cometeram atos infracionais considerados graves e mediante violência, a exemplo do homicídio e latrocínio. Este dado é relevante, pois a PEC, que ora se estuda, busca justamente o recrudescimento das medidas punitivas dirigidas a prevenir este tipo de delito. A conclusão deste discurso é que a redução na maioridade penal para 16 anos seria a saída para se combater à impunidade sobre este grupo populacional e para se reduzir a criminalidade. No entanto, com os dados trazidos por esta pesquisa, constata-se que é pequena a parcela das sentenças a adolescentes em razão do cometimento de crimes graves, como homicídio e latrocínio. Assim, apesar dos discursos exaltados em favor da redução da maioridade penal, constata-se que os delitos graves são a minoria entre os delitos dos adolescentes processados. Outro fator que merece destaque é o desejo de recrudescimento das medidas socioeducativas impostas aos adolescentes sob o pretexto de terem perfeita condição de discernir entre o certo e o errado. Um adolescente pode, realmente, distinguir entre o certo e o errado, mas a redução penal não pode levar em consideração somente este fato e sim que existem inúmeras comprovações técnicas e científicas que comprovam que a adolescência é uma fase de transição entre a infância e a idade adulta em que a pessoa 337

passa por uma fase de grandes transformações psicológicas, morfológicas e sociais que podem torná-las mais propensa a atos antissociais. Por isso, destaca-se a importância de um acompanhamento compromissado com os adolescentes e é isto que há previsto no ECA, por exemplo, a partir da proteção deste público. Também se discute a imposição da redução da maioridade penal, considerando o direito constitucional de voto aos dezesseis anos. Tal argumento não merece prosperar, visto que não concede os direitos universais de ser votado, bem como o voto aos menores é facultativo. Além do mais, o critério utilizado para a maioridade penal é o biológico, como já explicado neste trabalho, e é um critério objetivo para assegurar a segurança jurídica em nosso país. Sobre o encarceramento de menores, é relevante mencionar sobre o assunto, que encarcerando adolescentes aumentaria a lotação de presídios, e como demonstra a pesquisa da Infopen (2014), o déficit carcerário aumenta a cada dia, não conseguindo atender a demanda que a Justiça requer. O Estado ainda não é capaz de cumprir o papel descrito na Constituição Federal, Código Penal, Lei de Execução Penal e muito menos ainda o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Neste sentido, esclarece Luiz Flávio Gomes: se os presídios são reconhecidamente faculdades do crime, a colocação dos adolescentes neles (em companhia dos criminosos adultos) teria como consequência inevitável a sua mais rápida integração nas organizações criminosas. Recorde-se que os dois grupos que mais amedrontam hoje o Rio de Janeiro e São Paulo (Comando Vermelho e PCC) nasceram justamente dentro dos presídios (GOMES, 2015).

Mas e quanto à utilização de adolescentes para a prática de crimes? Esta é outra das inúmeras questões que a exaltação social traz à tona. Embora ocorra de alguma forma o recrutamento de adolescente para a prática de crimes, reduzir a maioridade não seria obstáculo para que isso continuasse a ocorrer. Se a lógica é ter uma lei para punir possíveis infratores que sejam menores e se associem ao crime, aquele que recruta, sabedor da lei que torna os menores imputáveis, passaria a recrutar jovens 338

com cada vez menos idade. Apesar de óbvio ainda há, no meio social, ideias que apelam para o discurso que este seria o caminho a seguir. Seria interessante então criar medidas de recrudescimento da repressão penal aos adultos que utilizam adolescentes e crianças para a prática de crimes. Para a criança e o adolescente só há um caminho: a educação. Somente investindo em medidas que garantam a proteção da vida, saúde, que lhe garantam cultura, lazer e educação

por

meio

de

políticas

públicas

fortes

que

permitam

o

desenvolvimento sadio e, principalmente, digno destes que são o futuro da nação. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em suma, através do presente trabalho se buscou desconstituir alguns mitos e pré-conceitos que permeiam nossa sociedade e fazem crer que a aprovação da PEC 171/93 será a melhor solução para o fim da criminalidade. Porém, não é encarcerando jovens infratores que será possível melhorar a sociedade. Muito tem se falado no Brasil que os presídios são verdadeiras escolas do crime e que os presos saem muito pior do que entraram. Então como podemos pensar em mandar adolescentes para esse tipo de instituição? Ao adolescente, os efeitos serão ainda mais danosos, uma vez que ele não possui o mesmo poder de discernimento de um adulto, por se constituir pessoa em desenvolvimento físico e mental. A diminuição nos índices da criminalidade envolvendo menores infratores só ocorrerá com a eficaz implantação das políticas que promovam a valorização do indivíduo como um verdadeiro cidadão, garantido os direitos previstos na Constituição. Só assim haverá uma esperança de futuro para crianças e adolescentes provenientes de comunidades marginalizadas. Embora a alteração pela PEC talvez ocorra, tal fato representaria um retrocesso aos direitos já adquiridos pelas crianças e adolescentes.Com a constitucionalização e a legalização de violações flagrantes dos direitos fundamentais destes seres em formação, que precisam não da punição 339

propriamente dita, no sentido de castigo ou vingança pelo crime cometido, mas sim de ressocialização, por meio da aprendizagem de valores socialmente relevantes e de oportunidades para o afastamento do crime. Pois, as consequências se tornarão ainda piores se permanecerem as violações de direitosfundamentais e o prévio ingresso dos jovens na criminalidade e, por consequência, no sistema carcerário. REFERÊNCIAS ANDRADE, Luís Fernando. A impossibilidade da redução da maioridade penal no Brasil. Disponível em: . Acesso em 20 de agosto de 2015. BRASIL. Proposta de emenda à Constituição nº 171 de agosto de 1993. Altera a redação do art. 228 da Constituição Federal. Disponível em: . Acesso em 26 de agosto de 2015. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Lex: Saraiva São Paulo, 14ed, p. 507 –593 2015. BRASIL. Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lex: Saraiva, São Paulo, 14 ed., p. 947-979, 2015. BRASIL. Secretaria-Geral da Presidência da República. Encarceramento: os jovens do Brasil. Brasília. 2014, 84 p.

Mapa

do

BRASIL. Ministério da Justiça. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: INFOPEN – Junho de 2014. 2014, 148 p. DATAFOLHA. Maioridade penal. Instituto de Pesquisa Datafolha. São Paulo, abr. de 2015. Disponível em: . Acesso em 25 de agosto de 2015. DIGIACOMO, Murillo José. Redução da idade penal: solução ou ilusão? Mitos e verdades sobre o tema. Disponível em:. Acesso em 20 de agosto de 2015; 340

DOTTI, René. A redução da maioridade penal. Disponível em: >. Acessado em 28 de agosto de 2015. GOMES, Luiz Flávio. Menoridade em: .

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 18ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014, 1455 p. MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e legislação constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 2176. MARTINS, Tayanne Virturiano. A falácia da redução da maioridade penal como solução para a problemática da criminalidade. Disponível em: .Acess o em 20 de agosto de 2015; PONTE, Antônio Carlos da. Inimputabilidade e processo penal. São Paulo: Atlas, 2001, p. 26.

341

RACISMO: DA LEI ÁUREA À CRIMININALIZAÇÃO. UM ESTUDO ACERCA DA EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Fagner Cuozzo Pias1 1.INTRODUÇÃO A sociedade brasileira com fim da escravidão no Brasil, conforme menciona Silva e Silva (2012), a qual obedeceu

um processo lento,

influenciou fatores internos e externos, especialmente a pressão, interna, exercida pelos abolicionistas. Contudo, antes da lei Áurea, outras tentativas paliativas foram criadas como tentativa de abolição da escravidão. Contudo, o avanço legislativo, calcado pelas marcas deixadas pela escravidão,

bem

como

pelo

comportamento

da

sociedade

brasileira,

instaurado com a abolição, trouxe uma sociedade racista, preconceituosa, onde apenas as elites, comandadas pelos brancos coordenavam e ditavam as regras para convivência em sociedade. O negro, após o fim da escravidão, viu-se à própria sorte, numa sociedade, até então desconhecida, e que não se preocupava em sequer manter qualquer política com intuito de inserir socialmente o negro, o qual era oriundo da África. Isto porque, logo após o fim da escravidão, os próprios abolicionistas não conseguiram desvirtuar o principal foco/problema surgido que era a “mão de obra barata” não mais mantida pelas elites. Assim, a evolução da sociedade fez com que os negros nelas se inserissem, muito embora as inúmeras insurgências do restante da sociedade, que tratava o negro com extremo preconceito. Neste viés, a legislação brasileira avança, no sentido de coibir práticas de discriminação racistas, sendo que torna criminalizada a conduta, perpassando por diversos momentos históricos.

Mestre em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social (UNICRUZ). Pós-Graduado em Direito Civil e Processual Civil (UNICRUZ). Pós-Graduado em Direito Previdenciário (UNIVERSIDADE DE ANHANGUERA). Pós-Graduando em Direito Penal e Processo Penal (VERBO JURÍDICO). Graduado em Direito (UNICRUZ). Docente do Curso de Direito da UNICRUZ, ministrando Disciplinas de Direito Penal. Advogado. E-mail: [email protected] 1

342

2. DESENVOLVIMENTO A Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, conforme comenta Silveira (2006) compadecia com a desnaturação da personalidade jurídica do negro, muito embora o artigo 179, inciso XIII dispusesse que a lei seria igual para todos. Complementa Silveira (2006) que a mais duradoura das constituições brasileiras, outorgada pelo Imperador D. Pedro I, não fazia nenhuma referência à escravidão. A lei nº 581 de 04 de Setembro de 1850, denominada Eusébio de Queirós, em seu preâmbulo objetivando estabelecer medidas para repressão do tráfico de africanos no império, extinguiu a importação de escravos pelo Brasil, realizada estritamente via mar, proibindo a entrada de novos escravos em território brasileiro, ao estabelecer em seu artigo 1º que as embarcações brasileiras encontradas em qualquer lugar, e as estrangeiras encontradas nos portos, enseadas, ancoradouros, ou mares territoriais do Brasil, tendo a seu bordo escravos, seriam apreendidas pelas Autoridades, ou pelos Navios de guerra brasileiros, e consideradas importadoras de escravos.Aquelas embarcações que não tiverem escravos a bordo, nem os houverem proximamente desembarcado, porém que se encontrassem com os sinais de se empregarem no tráfico de escravos, seriam igualmente apreendidas, e consideradas em tentativa de importação de escravos. A lei supracitada considerada autores do crime de importação, ou de tentativa da importação o dono, conforme artigo 3º, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação, e o sobrecarga. Eram considerados cúmplices a equipagem, e os que coadjuvarem o desembarque de escravos no

território

brasileiro,

ou

que

concorressem

para

os

ocultar

ao

conhecimento da Autoridade, ou para os subtrair a apreensão no mar, ou em ato de desembarque, sendo perseguido. Os artigos 4º ao 9º da lei mencionada regulamentavam como deveria ocorrer o controle e o cumprimento mandamental, assim dispondo: Art. 4º A importação de escravos no territorio do Imperio fica nelle considerada como pirataria, e será punida pelos seus Tribunaes com as penas declaradas no Artigo segundo da Lei de sete de Novembro

343

de mil oitocentos trinta e hum. A tentativa e a complicidade serão punidas segundo as regras dos Artigos trinta e quatro e trinta e cinco do Codigo Criminal. Art. 5º As embarcações de que tratão os Artigos primeiro e segundo e todos os barcos empregados no desembarque, occultação, ou extravio de escravos, serão vendidos com toda a carga encontrada a bordo, e o seu producto pertencerá aos apresadores, deduzindo-se hum quarto para o denunciante, se o houver. E o Governo, verificado o julgamento de boa presa, retribuirá a tripolação da embarcação com á somma de quarenta mil réis por cada hum africano apprehendido, que era distribuido conforme as Leis á respeito. Art. 6º Todos os escravos que forem apprehendidos serão reexportados por conta ........ para os portos donde tiverem vindo, ou para qualquer outro ponto fóra do Imperio, que mais conveniente parecer ao Governo; e em quanto essa reexportação se não verificar, serão empregados em trabalho debaixo da tutela do Governo, não sendo em caso algum concedidos os seus serviços a particulares. Art. 7º Não se darão passaportes aos navios mercantes para os portos da Costa da Africa sem que seus donos, capitães ou mestres tenhão assignado termo de não receberem á bordo delles escravo algum; prestando o dono fiança de huma quantia igual ao valor do navio, e carga, a qual fiança só será levantada se dentro de dezoito mezes provar que foi exactamente cumprido aquillo a que se obrigou no termo. Art. 8º Todos os apresamentos de embarcações, de que tratão os Artigos primeiro e segundo, assim como a liberdade dos escravos apprehendidos no alto mar, ou na costa antes do desembarque, no acto delle, ou immediatamente depois em armazens, e depositos sitos nas costas e portos, serão processados e julgados em primeira instancia pela Auditoria de Marinha, e em segunda pelo Conselho d'Estado. O Governo marcará em Regulamento a fórma do processo em primeira e segunda instancia, e poderá crear Auditores de Marinha nos portos onde convenha, devendo servir de Auditores os Juizes de Direito das respectivas Comarcas, que para isso forem designados. Art. 9º Os Auditores de Marinha serão igualmente competentes para processar e julgar os réos mencionados no Artigo terceiro. De suas decisões haverá para as Relações os mesmos recursos e apellações que nos processos de responsabilidade. Os comprehendidos no Artigo terceiro da Lei de sete de Novembro de mil oitocentos trinta e hum, que não estão designados no Artigo terceiro desta Lei, continuarão a ser processados, e julgados no foro commum. (Lei nº 581/1850, arts. 4º a 9º)

Contudo, conforme Silva e Silva (2012) leciona, a mencionada lei não impediu comércio interno ilegal de negros, em razão da supervalorização dos que

aqui

se

encontravam,

em

razão

do

fim

das

importações

e

consequentemente a redução das ofertas. Já no entender de Moura (1994) a lei teve uma influência ainda mais negativa, haja vista que “atingiu de forma definitiva o escravismo pleno”, produzindo pânico entre os traficantes e aqueles interessados no comércio de escravos. 344

Posteriormente, a lei nº 2.040/1871, intitulada Lei do Ventre Livre, assinada pela Princesa Isabel, concedeu liberdade a todos os filhos que nasciam de mulheres escravas, a contar de 28 de setembro de 1871, além de declarar libertos os escravos da nação e outros. A legislação oportunizou, conforme artigo 1º, § 1º ao § 7º, duas possibilidades as crianças, ou seriam criadas pelos senhores de suas mães até os oito anos de idade, e a partir dessa faixa etária os senhores poderiam optar em utilizar dos seus serviços até os 21 anos de idade, ou entregá-los aos cuidados do governo monarquista mediante indenização pecuniária. Para Nabuco (1999) tal legislação foi “o primeiro ato de legislação humanitária da nossa História”. Com base no ensino de Silva e Silva (2012), a lei 3.270, de 28 de setembro de 1885, conhecida como Lei dos Sexagenários, garantiu liberdade a todos os escravos que contassem àquela data com 60 anos de vida e a todos os demais que futuramente completassem a idade. Tal legislação beneficiava, apenas, os escravos idosos, com pouco força física, acometidos por enfermidades diversas, sendo menos valorizados e não mais úteis. Ao comentar acerca da lei dos sexagenários, Mendonça (1999) que a defesa obstinada da imprescindibilidade da indenização dos senhores cujos escravos

sexagenários

fossem

libertados

mostrou-se

intimamente

relacionada à defesa da escravidão como instituição legalmente reconhecida. Não apressar a “solução” da questão servil – este era um dos grandes lemas defendidos no Parlamento durante a passagem dos projetos dos quais resultou a lei de 1885. Tanto nas discussões que cercaram a passagem da lei pelo Parlamento quanto por dispositivos por ela fixados, buscou-se preservar, dentro dos limites das possibilidades, a vigência da escravidão por esse tempo visto como necessário. (MENDONÇA, 1999, p. 137)

Denota-se que as legislações até então mencionadas, não passaram de ensaios para a Lei Áurea, que viria posteriormente para conceder liberdade total aos escravos. As legislações até então existentes não foram perspicazes para conceder a liberdade aos escravos, mas foram salutares para a edição da lei áurea que visou a libertação, total, dos escravos. Nabuco (1999) denunciava a omissão dos legisladores como receio de 345

macular as leis civis com disposições vergonhosas. Afirmava que o escravo era propriedade como qualquer outra, da qual o senhor dispõe como de um cavalo ou de um móvel, escapando, nas cidades, em contato com diversas influências civilizadoras ele escaparia de alguma forma da condição, mas no campo, isolado no mundo, longe da proteção do Estado, poderia, inclusive, ser fechado num calabouço durante meses. Assim, no dia 13 de maio de 1888, foi sancionada a lei 3.353, conhecida como Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, a qual concedeu liberdade a todos os escravos viventes no Brasil, país que tornou-se o último país do continente americano a libertar seus escravos. A lei histórica, assim estabeleceu: A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte: Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil. Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário. Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém. O secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comercio e Obras Publicas e interino dos Negócios Estrangeiros, Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de sua Majestade o Imperador, o faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888, 67º da Independência e do Império. Princeza Imperial Regente.

A Lei Áurea, conforme explana Silveira (2006) veio como resultado de um processo longo e gradual, tendo sido editadas diversas leis anteriores como ensaio para a edição da lei áurea. Para Silveira (2006) não houve tergiversações, sendo declarada extinta a escravidão sem contrapartidas indenizatórias, estando destruído o maior regime escravocrata remanescente na América. Com a desagregação do regime escrovata, o liberto se viu “convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma econômica 346

competitiva” (FERNANDES, 2008, p. 29). Como expediente para manter os escravos no trabalho, dissemina-se entre os senhores na década de 1880 e, de maneira exacerbada, a partir do momento em que as fugas em massa dos escravos se tornam incontroláveis. Com a Abolição pura e simples, porém, a atenção dos senhores se volta especialmente para os seus próprios interesses. Os problemas políticos que os absorviam diziam respeito a indenizações e aos auxílios para amparar a “crise da lavoura”. A posição do negro no sistema de trabalho e sua integração à ordem social deixam de ser matéria política. Era fatal que isso sucedesse. (FERNANDES, 2008, p. 30)

Logo, considerando tal desiquilíbrio, imprimiu-se à abolição o caráter de uma espoliação “extrema e cruel”, onde conforme Fernandes (2008) a preocupação pelo destino do escravo se mantivera em foco enquanto se ligou a ele o futuro da lavoura, o que é demonstrado pela transição do trabalho escravo para o trabalho livre, desde 1823 até a assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888. Para Fernandes (2008) as humilhações, ressentimentos

e os ódios,

acumulados pelo escravo e liberto sob a escravidão e exacerbados de forma terrível pelas desilusões recentes, lavraram destrutivamente o ânimo de negros e mulatos. Com a abolição, pura e simples, da escravidão houve, conforme Fernandes (2008) uma atenção dos senhores para seus próprios interesses, onde os problemas políticos que os absorviam diziam respeito a indenizações e aos auxílios para amparar a “crise da lavoura”, ao revés que a posição do negro no sistema de trabalho e sua integração social deixam de ser matéria política. De um lado, a revolução abolicionista, apenas de seu sentido e conteúdo humanitários, fermentou, amadureceu e eclodiu como um processo histórico de condenação do “antigo regime” em termos de interesses econômicos, valores sociais e ideais políticos da “raça” dominante. A participação do negro no processo revolucionário chegou a ser atuante, intensa e decisiva, principalmente a partir da fase em que a luta contra a escravidão assumiu feição especificamente abolicionista. Mas, pela própria natureza da sua condição, não passava de uma espécie de aríete, usado como massa de percussão pelos brancos que combatiam o “antigo regime”. Mesmo os abolicionistas mais íntegros e tenazes não puderam ser seus porta-vozes válidos [...]

347

De outro lado, a estrutura e a dinâmica da economia brasileira não impunham às camadas dominantes outra orientação. Nas zonas onde a prosperidade econômica desaparecera, os senhores já se haviam desfeito do excesso de força de trabalho escravo, negociandoa com os fazendeiros do leste e do sul. Para eles, a abolição era uma dádiva: livraram-se de obrigações onerosas ou incômodas, que os prendiam aos remanescentes da escravidão. Nas zonas onde a prosperidade era garantida pela exploração do café, existiam dois caminhos para corrigir a crise gerada pela transformação da organização do trabalho. Onde a produção se encontrava em níveis baixos, os quadros da ordem tradicionalista se mantinham intocáveis: como os antigos libertos, os ex-escravos tinham de optar, na quase totalidade, entre a reabsorção no sistema de produção, em condições substancialmente análogas às anteriores, e a degradação de sua situação econômica, incorporando-se à massa de desocupados e de semiocupados da economia de subsistência do lugar ou de outra região [...] Em suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de se reeducar e de se transformar para corresponder aos novos padrões e ideais de ser humano, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo. (FERNANDES, 2006, p. 30-31, 35-36)

Neste sentido, Silva e Silva (2012) relata que os negros continuaram presos ao preconceito social da época, muito embora a abolição da escravatura, ante a ausência de políticas públicas pós-abolição pois não se criaram leis nem projetos sociais visando a inclusão no negro na sociedade, sendo

estes

lançados

desprovidos

de

dinheiro,

sem

condições

de

estabelecer0se, tendo que trabalhar por míseras compensações pecuniárias, incapazes de suprir suas necessidades, em total desigualdade com os brancos, permanecendo marginalizados, vistos como inferiores, longe de ocuparem as mesmas posições sociais que os brancos, acarretando em inferioridade econômica com reflexos atuais. Em 1951 foi criada a lei 1.390/51, a qual foi intitulada Lei Afonso Arinos, definiu, em seu artigo 1º, como contravenção penal, a recusa por parte de estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito de raça ou de cor. A lei supracitada ainda, responsabilizava, pelo mesmo crime, o diretor, gerente ou responsável pelo estabelecimento onde o delito fosse cometido. A lei Afonso Arinos, relata Silva e Silva (2012) representou um rompimento com o vácuo legislativo de repressão às práticas raciais, 348

introduzindo ineditamente no ordenamento jurídico brasileiro um diploma legal com tal proposição. Contudo, há crítica que se faz a legislação que, mesmo com suas deficiências técnicas e aspectos históricos, foi a parcimônia em que a lei passou a ser aplicada, não podendo ser compreendida como instrumento efetivo de combate à anomalia, mas símbolo de avanços necessários, lentos e ascendentes. Seguindo tal linha de pensamento, Silveira (2006) menciona as críticas a legislação supracitada, tanto pela falta de rigor nas sanções previstas, pois em nenhum caso ultrapassavam o limite máximo de um ano de prisão simples, como pela técnica cauística de detalhar situações particularíssimas, fazendo excluir a incidência de comportamentos impregnados de racismo. Além disto, Silveira (2006) relata que a Lei Afonso de Arinos nunca esteve entre os instrumentos legais mais eficazes, pois, como contravenções penais são infrações de menor potencial ofensivo. Muito embora tais constatações, a lei fulgurou por mais de trinta anos como principal instrumento de reação ao racismo, sendo revogada em 1985, com advento da lei 7.437/85, a qual incluiu entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceito de raça, cor, sexo ou estado civil, mantendo a natureza contravencional das infrações de cunho racista. O artigo 1º estabeleceu: “Constitui contravenção, punida nos termos desta lei, a prática de atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil” (BRASIL, 1985, art. 1º). A lei 7.437/85 continua, atualmente, em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, tendo revogado apenas os casos envolvendo o preconceito contra a raça e a cor, definidos pela lei 7.716/89. Já em 1967 a denominada lei de imprensa (Lei Federal nº 5.250/67) previu como crime (no artigo 14) “fazer propaganda de guerra, de processos para subversão da ordem política e social ou de preconceito de raça ou classe”. A Constituição Federal de 1967, abordou o tema do preconceito racial, de forma explicitamente repressiva, para Silveira (2006). O artigo 150, § 1º e § 8º, assim dispunham: 349

Art. 150. [...] § 1º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei. § 8º É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica e a prestação de informação sem sujeição à censura, salvo quanto a espetáculos de diversões públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos independe de licença da autoridade. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe. (BRASIL, 1967, § 1º e § 2º art. 150)

Em 1988, perante a Assembleia Nacional Constituinte, o então Deputado Carlos Alberto Caó, apresentou proposta constitucional para tornar a prática de racismo como crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão. Assim, o deputado justifcou-se: Passados praticamente cem anos da data da abolição, ainda não se completou a revolução política deflagrada e iniciada em 1888. Pois impera no País diferentes formas de discriminação racial, velada ou ostensiva, que afetam mais da metade da população brasileira constituída de negros ou descendentes de negros, privados do exercício da cidadania em sua plenitude. Como prática do racismo equivale à decretação da morte civil, urge transformá-lo em crime. (CAÓ, 1988, p. 250)

Desta forma, com o advento da Constituição Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988, denominada como cidadã, conforme denomina Silva e Silva (2012), o combate aos crimes contra o preconceito racial ganhou nova tutela estatal ao se inserir em seu artigo 5º, o inciso XLII: “ a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei”. Para Telles (2003) a Constituição Brasileira de 1988 revolucionou as bases legais da defesa dos direitos humanos no país e também reconheceu os princípios da tolerância, do multiculturalismo e da dignidade individual. O estado brasileiro, ainda, como forma de coibir a incidência do preconceito racial, estabeleceu no artigo 1º da Constituição Federal da República o princípio da dignidade humana, idealizada pela rubrica de um Estado Democrático de Direito. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união

350

indissolúvel dos Estados, e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos. III – a dignidade da pessoa humana. (BRASIL, 1988)

A Constituição Federal de 1988, condicionou a penalização do racismo a uma lei infraconstitucional, a qual foi editada sob nº 7.716/89, cujo artigo 1º, com redação dada pela lei nº 9.459/97, estabelece que “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. A lei acima mencionada definiu ainda os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor, estabelecendo pena a quem trate de forma preconceituosa alguma pessoa, em razão de sua cor, instituindo penas que variam entre reclusão de 01 (um) a 05 (cinco) anos de prisão, além de multa, tudo em conformidade com a gravidade da conduta do agente. A lei supracitada, conhecida também como lei Antirracismo, definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor e, em seu artigo 1º demonstra, conforme Silva

e Silva (2012) que o intuito da lei é punir o

indivíduo inescrupuloso que exerce o seu preconceito contra aqueles grupos sociais considerados vulneráveis em virtude de sua cor, raça, etnia, religião e de sua procedência nacional, transformando tais ofensas em crimes. A

lei

9.459/97

descreve

condutas,

de

forma

particularizada,

consideradas racistas. O artigo 20 da lei estabelece: “ Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” a pena cominada pelo artigo é de um a três anos de reclusão e multa. Já o artigo 140 determina “ injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro” caso a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem (§ 3º), a pena será de reclusão de um a três anos e multa. Visando à criação de políticas públicas em prol da população declaradamente preta e parda, nos termos mencionados por Silva e Silva (2012), foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro várias leis no âmbito dos Estados, criando ações afirmativas de inclusão social, e no plano federal a lei 10.558/02, com a finalidade de implementar e avaliar 351

estratégias para promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros. A lei 10.558/02, dispõem: Art. 1º Fica criado o Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros. Art. 2º O Programa Diversidade na Universidade será executado mediante a transferência de recursos da União a entidades de direito público ou de direito privado, sem fins lucrativos, que atuem na área de educação e que venham a desenvolver projetos inovadores para atender a finalidade do Programa. Parágrafo único. A transferência de recursos para entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que atendam aos requisitos do caput, será realizada por meio da celebração de convênio ou de outro instrumento autorizado por lei. Art. 3º Revogado. Art. 4º Fica autorizada a concessão de bolsas de manutenção e de prêmios, em dinheiro, aos alunos das entidades a que se refere o parágrafo único do art. 2o. Art. 5º Os critérios e as condições para a concessão de bolsas de manutenção e de prêmios serão estabelecidos por decreto (BRASIL, 2002, art. 1º e 2º)

Para Silva e Silva (2012) o sistema de cotas é uma forma de o Estado compensar

a

raça

negra

pelos

prejuízos

trazidos

pela

escravidão,

principalmente os socioeconômicos, reservando aos seus integrantes vagas em concursos públicos e nas instituições de ensino superior da rede pública. A lei 12.288 de 2010, por sua vez, dada a necessidade de findar com as distinções raciais, instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, considerandose, para efeitos legais, discriminação racial ou étnico-racial toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada. O estatuto da igualdade racial prevê ainda no artigo 2º, que é dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o 352

direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais. 3.CONSIDERAÇÕES FINAIS Além dos preceitos mencionados, o estatuto da igualdade racial prevê uma gama de direitos a serem concedidos às pessoas negras e pardas, dos quais visam dirimir as diferenças raciais existentes dentro da sociedade brasileira. Daí a importância de se verificar a problemática levantada, eis que há práticas (ainda que genéricas) instituídas visando a inserção social de negros na sociedade, garantindo-lhes, de alguma forma, acesso igualitários em relação aos brancos, o que, ainda assim, torna o mito da democracia racial evidente, pois acaba por transmitir uma impressão de que a sociedade brasileira é totalmente justa e igualitária, sem quaisquer tipos de preconceitos. A sociedade por diversas vezes, distingue o negro do branco, submetendo-o a condições desumanas e de inferioridade perante o convívio social. Neste viés, o Estado intervém, através do Direito Penal, para resolução do preconceito racial existente no país, a fim de conscientizar a sociedade acerca da problemática, em que pese a interferência do direito penal, de indagar se realmente a função estatal punitiva encontra a eficácia almejada como forma de coibir os casos de preconceito racial pois, há que se ter em mente que o direito penal não pode ser visto como a solução dos problemas culturais e educacionais da sociedade. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição Federal da República. Brasília-DF, 1988. ________. Constituição Federal. Brasília-DF, 1967. ________. Lei 581/50. Brasília-DF, 1850. ________. Lei Federal 1.390/51. Brasília-DF, 1951. 353

________. Lei Federal 2.040/71. Brasília-DF, 1871. ________. Lei Federal 3.353/88. Brasília-DF, 1888. ________. Lei Federal 5.250/67. Brasília-DF, 1967. ________. Lei Federal 7.437/85. Brasília-DF, 1985. ________. Lei Federal 7.716/89. Brasília-DF, 1989. ________. Lei Federal 9.459/97. Brasília-DF, 1997. ________. Lei Federal 10.558/02. Brasília-DF, 2002. ________. Lei Federal 12.288/10. Brasília-DF, 2010. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: (O legado da “raça branca”), vol. 1. 5 ed. São Paulo: Globo, 2008. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: (no limiar de uma nova era), vol. 2, São Paulo: Globo, 2008. MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Anita, 1994. NABUCO, Joaquim. O abolicionista. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a Lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. São Paulo: Unicamp, 1999. SILVA, Amaury; SILVA, Artur Carlos. Crimes de racismo. São Paulo. Mizuno, 2012. SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da criminalização do racismo. Aspectos jurídicos e sociocriminológicos. Belo Horizonte: DelRey, 2006. TELLES. Edward. Racismo à Brasileira. Uma sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

nova

perspectiva

354

A APLICABILIDADE DA LEI DO FEMINICÍDIO ÀS TRAVESTIS E TRANSEXUAIS Ana Patrícia Racki Wisniewski1 Camila Paese Fedrigo2 1. INTRODUÇÃO Este artigo deveria chamar-se “A aplicabilidade da lei do feminicídio a todas as mulheres”, todavia por estarmos inseridos em uma sociedade cisnormativa e que ainda produz um direito, eminentemente, cisgênero precisamos nominá-lo da forma como apresentado a fim de que seus propósitos basilares tenham sucesso. O questionamento preliminar que devemos realizar para a adequada compreensão da possibilidade de aplicarmos a lei do feminicídio, ou de qualquer outra que se preste à proteção das mulheres, também às mulheres trans é o seguinte: “por que temos, obrigatoriamente de distinguir mulheres transgênero de travestis e, estas, por sua vez, das demais mulheres?”. A resposta é relativamente simples. O direito, infelizmente, ainda diferencia mulheres trans de mulheres cis porque significativa parcela da sociedade tradicional insiste em albergar no conceito de mulher apenas aquelas pessoas que tenha sido contempladas quando do seu nascimento com o órgão genital que, biologicamente, é nominado como vagina. É essa a linha limítrofe que separa mulheres transexuais e travestis de mulheres cisgênero e permite que somente às últimas sejam assegurados direitos. Um genital define hoje, no Brasil, se determinado ser humano poderá, ou não, ter idênticos direitos que seu/sua semelhante possui, ainda que a Constituição Federal assegure igualdade de condições e tratamento a Professora visitante da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Ex-Advogada do Escritório Maria Berenice Dias. Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos/RS. Membro-revisora da Revista Eletrônica Refletindo o Direito (ISSN 23182091). 2Advogada do Escritório Serra, Serra e Serra Advogados, Consultores e Assessores. Pósgraduanda em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito. Pós graduanda em Direito do Trabalho pela Escola Paulista de Direito. Membro-criadora e idealizadora da Revista Eletrônica Refletindo o Direito (ISSN 2318-2091). E-mail: [email protected] 1

355

todos, sem distinções de qualquer natureza. Isso ocorre quando falamos de direito ao nome civil, ao uso de banheiros adequados ao gênero em determinados

espaços

públicos;

ocorre

também

quando

falamos

de

atendimento especializado à saúde, direito à dignidade, direito ao trabalho... mas, igualmente, quando falamos de Direito Penal. Não bastasse toda a gama de violações que as pessoas transexuais sofrem na busca dos mais básicos de seus direitos, se veem desamparadas também no âmbito criminal. Violações de direitos de transexuais privados de liberdade são recorrentes. O caso Vanessa Bolina trouxe a tona uma realidade ainda não conhecida, porém já esperada frente ao caos do sistema prisional

brasileiro:

não

estamos

preparados

para

o

atendimento

humanizado das pessoas trans onde quer que seja. Isso porque violações desse nível não ocorrem apenas a nível carcerário, mas de forma institucionalizada em todos os setores de atendimento público e também no âmbito da segurança pública no Brasil. Muitas polícias não detêm o preparo técnico necessário para, em uma abordagem, prisão ou revista, fazer valer o respeito ao nome social, á dignidade e ao gênero da pessoa que está sendo submetida, naquele momento, ao controle repressivo estatal. No Judiciário, significativo número de magistrados não possui suficiente formação e conhecimento técnico acerca das realidades trans que lhes permita realizar, de modo adequado aos direitos mínimos destas pessoas, a prestação jurisdicional que lhes é exigida. O mesmo se aplica, também, a muitos membros do Ministério Público que, em análises rasas e a partir de conceitos ultrapassados seguem endossando preconceitos ao invés de promover direitos. Aliado a tudo isso, temos a falta de uma legislação específica sobre gênero que segue sustentando a recorrente violação e negação dos direitos das pessoas transexuais em nosso país sendo comum que - orientadas pela analogia, costumes e os princípios gerais de direito - decisões contrárias ao primado da dignidade humana, da liberdade e da inviolabilidade da vida privada, sejam maioria. Entretanto, há casos em que, mesmo com a existência de leis, elaboradas para a proteção da vida e da integridade física da mulher, e que, claramente contemplam seu objeto de proteção, nos vemos 356

diante de situações em que sua aplicabilidade é mitigada quando se trata conferir direitos às mulheres não cisgênero. A segregação entre mulheres que nasceram com ou sem vagina parece não importar ao direito penal, ou, ao menos, não deveria. Todavia, o que vemos, na prática é que determinados conceitos desta esfera do direito têm sido contaminados por elementos de ordem moral que tentam desvirtuar seu foco como meio de reafirmar noções próprias de seus sistemas no seio dos mecanismos de controle estatal, o que, definitivamente, não se pode admitir. Os mais diversos ramos do Direito têm sido vítimas de interesses escusos de bancadas legislativas religiosas e conservadoras. E com o Direito Penal, isso não ocorre de forma diferente. A lei do feminicídio que o diga. Já na tramitação de seu projeto junto ao Congresso Nacional teve o termo "gênero" (constante da proposta original) substituído pela palavra "sexo" com o claro intuito de não permitir uma interpretação extensiva do dispositivo às mulheres transexuais e travestis. Outrossim, como se verificará, mesmo com essa

manobra

pseudo-política

não

se

mostrará

possível

afastar

a

aplicabilidade do referido artigo legal a todas as mulheres. 2 DESENVOLVIMENTO Quando falamos de direitos protetivos às mulheres a primeira referência legislativa que nos surge é a Lei Maria da Penha, criada em 2006. Marco de combate à violência doméstica e familiar, a lei 11.340/2006 é aplicada a favor de mulheres transexuais e travestis de diferentes formas pelo Judiciário brasileiro a partir da interpretação do julgador. O texto legal faz referência expressa aos termos "mulher" e "gênero", qualificando como violência doméstica ou familiar qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause à mulher morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. As referências aos termos "mulher" e "gênero" sem qualquer ordem de limitação e o claro interesse de proteção á parte hipossuficiente da relação familiar, norteiam a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais, inclusive para aquelas que ainda não tenham retificado seus 357

dados registrais3. Todavia, frente à divergência jurisprudencial que se firmou sobre o tema, como meio de uniformização de sua aplicabilidade em todo o território nacional, desde outubro de 2014, a Câmara dos Deputados analisa o Projeto de Lei 8.032/14, da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que estende, expressamente, às pessoas transexuais e transgêneros, que se identifiquem como mulheres, a proteção da referida lei. A alteração objetiva incluir um parágrafo único ao artigo 5º da lei4, a fim de que não paire mais qualquer dúvida acerca de sua aplicabilidade a todas as mulheres. Em sentido oposto, e já antevendo a possibilidade de que, ao utilizarse do termo "gênero" a lei 13.104/2015 fosse aplicada também às mulheres trans, o inciso VI da proposta original foi modificado por exigência da ala conservadora do Congresso Nacional. O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual -, repudiou publicamente a manobra, afirmando que a mesma teve origem na pressão da “Bancada Evangélica/Fundamentalista” do Congresso Nacional que, ao exigir a substituição do termo “gênero” pelo termo “sexo” no projeto, claramente tenta excluir de sua abrangência o feminicídio transfóbico. Abaixo o comparativo entre a proposta original e a aprovada pelos parlamentares: Redação do projeto original Feminicídio VI - contra a mulher por razões de gênero feminino. Pena - reclusão, de doze a trinta anos. § 2º-A Considera-se que há razões de gênero feminino quando o crime envolve: [...] Redação convertida em lei Feminicídio VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Pena - reclusão, de doze a trinta anos. § 2º-A Considera-se que há razões da condição de sexo feminino quando o crime envolve: [...]

3A

esse respeito há decisão do Tribunal de Justiça de Goiás, disponível no link . 4 Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas nesteartigo independem de orientação sexual e se aplicam àspessoas transexuais e transgêneros que seidentifiquem como mulheres.

358

Com a aprovação, na forma do substitutivo, e diante da clara manobra que objetivou excluir as mulheres trans da proteção albergada pela lei do feminicídio, a dúvida que surge é uma só: haverá, ainda, a possibilidade de estendermos sua proteção também a elas? A resposta a este questionamento perpassa duas questões fundamentais. A primeira, e a mais complexa, diz respeito a noção do intérprete da lei ao conceito de mulher (a quem a lei protege). E a segunda, ao objetivo primário da alteração (o que a lei protege). Devemos partir do pressuposto de que a violência normalizada se transmite e se reproduz socialmente nas ideias, valores e práticas sociais. Ditas manifestações alcançam todos os âmbitos da vida – tanto das mulheres cis quanto das mulheres trans – e, claramente, intervém nos distintos espaços da vida destas pessoas e, também, nas instituições do Estado. É verdade também que, nos últimos tempos, são recorrentes as notícias nos jornais e demais meios de comunicação sobre o assassinato de mulheres pelo marido ou namorado, ex ou atual. Na verdade, são crimes de violência contra a mulher, que denotam a desigualdade de gênero, mas que, geralmente, se vêm noticiados como crimes “passionais”. Descritos como uma ocorrência policial “comum”, tem sua verdade apagada. Poucos se dão conta, mas o que está por trás desta realidade é o assassinato misógino de mulheres cometido por homens, geralmente, cisgêneros e envolvido em algum tipo de relacionamento com a vítima. Aqui começamos a compreender a que a lei do feminicídio protege. Rogério Sanches destaca a existência de duas correntes sobre o tema no Direito Penal as quais são divididas em conservadora e moderna. Para a primeira, parte-se do pressuposto de que a pessoa trans feminina, geneticamente, não é mulher, o que, portanto, descarta a hipótese de proteção especial. Já para a segunda corrente, desde que a pessoa transexual tenha transmutado suas características sexuais (por cirurgia e de modo irreversível), deve ser encarada de acordo com sua nova realidade morfológica, e, a par disso, ser compreendida como mulher (CUNHA, 2015). Greco (2015 [?], p. 530 apud CUNHA, 2015), por sua vez, refere - em uma posição que pode muito entender de leis em matéria penal, mas pouco ou 359

quase nada de vivências transexuais - que se existe alguma dúvida sobre a possibilidade de o legislador transformar um homem em uma mulher, isso não acontece quando estamos diante de uma decisão transitada em julgado. Se o Poder Judiciário, depois de cumprido o devido processo legal, determinar a modificação da condição sexual de alguém, tal fato deverá repercutir em todos os âmbitos de sua vida, inclusive o penal.

Ou seja, para o penalista citado, após a retificação judicial de dados, inexiste qualquer óbice à aplicação da Lei do Feminicídio às mulheres transexuais cujos dados registrais tenham sido retificados judicialmente. Aqui, objetivamente, os penalistas avaliam a quem a lei protege. Em verdade, poucas são as discussões que se propõem a analisar os objetivos protetivos da lei quando falamos de sua aplicabilidade às mulheres trans. As análises rasas limitam-se a afirmar que a lei tem por objeto a proteção da mulher e, a partir daí, discutir se travestis e transexuais podem, ou não, ser enquadradas nesse conceito. Com isso inicia-se uma discussão que foge totalmente aos objetivos do direito penal: a definição de quem pode, ou não, ser considerada mulher. E que, na maioria das vezes, não consegue se desprender dos ideais cisgênero que permeiam sua definição tradicional e ultrapassada. Em uma análise objetiva, não há qualquer dúvida de que o sujeito passivo da lei do feminicídio seja a mulher vítima de homicídio motivado “por razões da condição de sexo feminino”. Todavia, é preciso ter em mente que a restrição da proteção desta lei somente às mulheres, longe de considerar genitais, cromossomos ou nome civil, volta-se contra a prática de crimes que são consumados em circunstâncias específicas de violência em função do gênero, as quais não vitimizam, de forma tão contundente, a população masculina. Em termos práticos, podemos pensar no caso de um namorado, marido ou companheiro que mata sua parceira em decorrência de uma traição. O fato de esta parceira ser mulher cisgênero, travesti ou transexual, não afasta a motivação do crime. O homicídio, nesse caso, se deu em razão da condição que a pessoa assassinada ocupava na relação. Ao assassino não 360

importa a definição jurídica do termo “mulher” que o delegado que o irá prender, o juiz ou o promotor que atuarão no seu caso compartilham. Ele matou a mulher que o traiu. Não há quem possa lhe dizer o contrário. Os liames subjetivos que envolvem o tipo de delito supra são os mesmos para todas as mulheres. A vulnerabilidade que as torna passíveis de proteção especial perante a lei é a mesma para mulheres trans e cisgênero. A existência de uma relação de poder estabelecida no âmbito doméstico em que estas violências ocorrem é inegável, assim como o é o fato de que o pólo mais fraco dessa relação será a vítima dessa violência. Para a promotora de Justiça Valeria Scarance (2015): [...] nenhum homem agride ou humilha a mulher no primeiro encontro. A dominação do homem se estabelece aos poucos. Inicialmente há a conquista e sedução. Depois, sob o manto do cuidado, tem início o controle, o isolamento da mulher dos amigos e familiares. Seguem-se ofensas, rebaixamento moral e agressão física. Estabelecem-se regras: chegar cedo, não fazer barulho, não usar roupas provocantes, não falar com outros homens e cozinhar. O descumprimento dessas regras naturalizadas na relação, justifica para o homem ato violento e faz que a vítima seja culpada pela violência.

Inobstante a nefasta tentativa de excluir as mulheres transexuais, travestis e demais pessoas trans que possam se identificar com o gênero feminino da proteção da lei do feminicídio, a par da teoria objetiva da interpretação, a qual é aparentemente majoritária em nossa doutrina jurídica, tem-se a lei é mais sábia que o legislador, considerando-se, ainda, que a “vontade do legislador”, não positivada no texto normativo, não pode ser determinante na interpretação respectiva. Ou seja, ainda que o termo gênero tenha sido suprimido do texto que se tornou lei, inevitavelmente, não há como dissociá-lo da análise interpretativa da referida norma, sobretudo quando consideramos a situação específica sob tutela. A partir de então, sendo a identidade de gênero uma identidade de autorreconhecimento soberano, em que apenas a pessoa é capaz de afirmar com propriedade e legitimidade a qual gênero pertence, consoante ilustram os Princípios de Yogyakarta, os quais dizem respeito à interpretação e concretização da legislação internacional das pessoas LGBT, não há como se 361

negar sua proteção também às mulheres transexuais. De outra parte, ainda que se repudie a recepção do termo gênero na interpretação da lei do feminicídio frente ao claro intuito do legislador de suprimi-lo do texto legal, igualmente, a proteção extensiva a todas as mulheres não desaparece. Isso porque, quando pensamos no sujeito de proteção da lei 13.104/2015, precisamos ter em mente que o termo “sexo”, assim como a categorização das pessoas em “dois sexos” denota uma construção social tão cultural e artificialquanto a categorização das pessoas em “dois gêneros”. Noções que, definitivamente, não se encontram vinculadas à natureza ou à biologia, o que nos permite a compreensão de que pessoas transexuais que se identificam com o gênero feminino são, nesse sentido, pessoas do sexo feminino, compreendendo-se o termo sexo como uma construção biopolíticasocial. Lenio Streck (1999) comenta que a sociedade em que vivemos e construímos, infelizmente, nos faz acreditar que existe uma ordem de verdade, em que cada um apenas “assume” seu lugar, inclusive de oprimido e opressor. E essa ordem de verdade segue afirmando quem pode ou não ser digno de direitos. A estrutura misógina de poder se encarrega de designar que mulheres trans são “menos mulheres” e, por isso, menos humanas do que aquelas consideradas “verdadeiras” ou “originais”. Quem não é humano não têm o direito de ter direitos e as escalas de humanidade são comuns nos juízos valorativos do senso comum. A vida da vítima que reage e mata o assaltante tem mais valor do que a do bandido morto. Já a vida de um estuprador, costuma valer menos do que a daqueles que praticam crimes patrimoniais. Para travestis e transexuais a verdade popular em nada se altera. Sua vida costuma valer menos do que a pertencente às pessoas ditas “normais”, ou, simplesmente, a das pessoas cisgênero. Nessa linha, em recente artigo sobre o tema, Alice Bianchini e Luiz Flávio Gomes (2015) referem que na qualificadora do feminicídio, somente pode figurar como sujeito passivo a mulher. Complementando que, nesta disposição legal, não se pode admitir qualquer analogia contra o réu, desse modo “mulher se traduz num dado objetivo da natureza” cuja comprovação 362

mostra-se “empírica e sensorial”. Ou seja, em clara restrição da proteção legislativa às mulheres que nasceram com vagina, os doutrinadores apontam a impossibilidade que uma transexual não operada, ou uma travesti, vítimas de feminicídio, sejam protegidas pela Lei 13.104/2015. Nesse caso, para os citados penalistas, pouco importará se a pessoa vítima da violência, que em que pese possuísse um órgão genital tipicamente denominado

como

masculino,

vivenciava

uma

identidade

de

gênero

feminino, tenha sido morta em virtude de violência doméstica e familiar, menosprezo

ou

discriminação

a

essa

condição.

Se

não

puder

ser

objetivamente identificada, empírica e sensorialmente, como mulher (leia-se aqui, se não possuir uma vagina), não fará jus à proteção da lei. Ou seja, se ouvida um contexto de violência em virtude da condição (seja de sexo ou de gênero) feminina e, para uma interpretação que não prejudique

o

réu,

desconsidera-se,

sumariamente,

as

razões

que

fundamentam a existência da lei. O crime de feminicídio não se presta à proteção exclusiva de mulheres que tenham nascido com vagina, seu objetivo é, em muito, mais amplo. Não se trata de proteger uma determinada vítima, mas sim de coibir uma forma específica de violência. A quem a lei protege e a que a lei protege são perguntas que têm sua resposta interligada por um termo comum: feminino. Longe de proteger seres humanos vítimas de violência que, ao nascer, tenham sido biologicamente qualificados como mulheres a partir da superficial análise de seu órgão genital, a lei do feminicídio protege a vida em desvantagem. E quando a vida está em desvantagem? Quando, pela influência de padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação, alguns pensam ser senhores soberanos da existência de outros. A violência misógina não advém da diferenciação morfológica e sexuada

dos

corpos.

Não

são

pênis,

vaginas

ou

cromossomos

os

responsáveis pelas mortes de milhares de mulheres vítimas de violência domésticae familiar, menosprezo ou discriminação a sua condição enquanto pessoa pertencente ao gênero feminino. Mas sim, relações de poder alicerçadas em ideais machistas de dominação, posse e pertencimento. E é 363

contra isso que a legislação protetiva se coloca, ou deve se colocar, motivo pelo qual, não há dúvida de que a lei do feminicídio abarca, de toda e qualquer forma, à qualificação de crime hediondo o tipo penal do assassinato contra mulheres, sejam elas cis ou transgêneros. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A admissão de apenas dois modelos como biologicamente naturais pela medicina (homem com testículos e mulher com ovários), e, por conseguinte, pela sociedade como um todo, torna primeiro diferentes e, na sequência, marginais e anormais todas as outras formas de existência humana. A diferenciação dos corpos entre aqueles que têm sua composição anatômica adequada à identidade de gênero que ostentam (cisgênero) e os que carregam órgãos sexuais titulados como pertencentes ao sexo oposto (transgênero), acrescentando a estes últimos o diagnóstico de doença; é, sem dúvidas, a maior responsável pela violação de direitos destas pessoas. O outro só é reconhecido por nós como idêntico sujeito de direitos quando conseguimos ver nele um igual, quando percebemos a existência de uma responsabilidade ética para com o mesmo. Entretanto, no caso das pessoas transexuais, essa identificação não ocorre. A partir daí, no campo jurídico, o que temos então, são direitos já apropriados e garantidos às pessoas cisgênero que deixam de ser atribuídos às pessoas transgênero em função dos critérios de normalidade e adequação social sustentados pela maioria política. Como juristas, devemos trabalhar em prol de estratégias que, efetivamente, permitam às pessoas transexuais ocupar uma posição de igualdade de direitos frente aos demais. Todavia, mais relevante ainda se mostram as discussões teóricas que permitam a compreensão das manifestações identitárias humanas para além do que a maioria política dominante identifica como natural a partir dos parâmetros que regem o conjunto em que ela mesma se insere. Isso significa dizer que, para além da obrigação que temos como operadores do direito, emerge também a necessidade de que, conhecedores dessa realidade, passemos a agir como multiplicadores sociais dessa 364

construção que ressignifica a formação do próprio sujeito, e cujo papel é o de permitir ver nas pessoas transexuais não mais a diferença, mas a similaridade de um processo que nos constitui singular e objetivamente. Um processo que se opera de igual maneira sobre todos os indivíduos, e que, por isso, os coloca em um patamar de igualdade em que a única diferença - se é que pode ser assim chamada - reside na suposta sorte ou coincidência consistente no fato de que, indivíduos cisgênero, nasceram com genitais adequados à identidade de gênero que expressam. A alteração legislativa que incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos, penalizando de forma diversa o assassinato de mulheres é recente, de modo que, ainda não se tem notícias de decisões que tenham aplicado ou deixado de aplicar a qualificadora no caso de vítima travesti ou transexual. Somente com o surgimento dos casos se mostrará possível a consolidação de entendimentos, não havendo, como demonstrado, quaisquer dúvidas acerca da possibilidade de sua aplicação a estas mulheres, quando presentes os requisitos legais. Caberá a cada um de nós, a par dos questionamentos e reflexões que ora se fazem possíveis, defender a aplicação de um direito que, efetivamente, mostra-se preocupado com as transformações sociais que se dispõe a regular ou que limita-se a análise superficial do texto legal, restando alheio à realidade que o constitui. REFERÊNCIAS BENTO, Berenice. Brasil: país do transfeminicídio. Centro latino americano de sexualidade e direitos humanos. [s.l], [2015?]. Disponível em BIANCHINNI; Alice. GOMES; Luiz Flávio. Feminicídio: entenda as questões controvertidas da Lei 13.104/2015. JusBrasil, 2015. Disponível em: . Acesso em 26 ago. 2015. CUNHA; Rogério Sanches. Lei do Feminicídio: breves comentários. JusBrasil, 2015. Disponível em: . Acesso em 26 ago. 2015. FEDRIGO, Camila Paese. BÓS E SILVA, Débora. Justiça restaurativa e violência de gênero: possibilidade ou utopia do resgate da convivência pacífica no ambiente afetado pela violência? In:Anais do Seminário Internacional de Mediação de Conflitos e Justiça Restaurativa. Santa Cruz do Sul: UNISC, 2012. SCARANCE, Vania. Feminicídio: Uma lei necessária? Disponível em STRECK, Lênio Luiz. O senso comum teórico e a violência contra a mulher: desvelando a razão cínica do direito em terra brasilis. In: Revista Brasileira de Direito de Família, v. 1, n.1, 1999, editora Síntese.

366

A SELETIVIDADE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DA ATUAÇÃO DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO COMO INSTRUMENTO DE LEGITIMAÇÃO E REPRODUÇÃO DA ORDEM SOCIAL EXCLUDENTE: uma análise a partir do perfil da população carcerária contemporânea Luana Rambo Assis1 Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth2 1. INTRODUÇÃO Segundo lição de Muñoz Conde (2005), enquanto existir Direito Penal – e nas atuais condições deve-se ponderar que ele existirá por muito tempo – deve existir também sempre alguém disposto a estudá-lo e analisá-lo racionalmente, de forma a convertê-lo em instrumento de mudança e progresso rumo a uma sociedade mais justa e igualitária, denunciando, para tanto, além das contradições que lhes são ínsitas, as contradições do sistema econômico que o condiciona. Partindo desse pressuposto, a presente pesquisa tem por objetivo analisar o viés seletivo do sistema punitivo brasileiro, tanto no que se refere ao seu aspecto quantitativo quanto ao seu aspecto qualitativo. Para tanto, a partir de recentes dados acerca da população carcerária do país, procura-se evidenciar a utilização do Direito Penal como instrumento de gestão e controle social das camadas subalternizadas da sociedade, revelando, assim, seu caráter desumano, particularmente em um país de modernidade tardia, onde ainda não foram superadas as violências representadas pela falta de segurança e liberdade, pela desigualdade política e pela pobreza. Quer dizer, onde as promessas da modernidade jamais se cumpriram. Para a concretização da pesquisa, a metodologia de abordagem utilizada foi afenomenologia hermenêutica, a partir da qual se compreende que a determinação do Direito, ao invés de mero ato passivo de subsunção, é 1Assistente

Social. Graduada em Serviço Social pela URI São Luiz Gonzaga. Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul(UNIJUI). Bolsista Integral da CAPES. E-mail: [email protected] 2Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) e do Curso de Graduação em Direito da UNISINOS. E-mail: [email protected]

367

um ato criativo que implica o próprio sujeito. Este horizonte compreensivo foi o que se mostrou suficientemente fértil e adequado para a discussão da temática objeto desta investigação. 2. O PAPEL DO DIREITO PENAL NO PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO E REPRODUÇÃO DA ORDEM HEGEMÔNICA: pensando o direito em uma conjuntura social e política marcada pela luta de classes e desigualdade social Viver em sociedade não é uma tarefa fácil. Em um contexto demulticulturalismo e diversidade é comum que ocorram conflitos devido à convivência com seres humanos que pensam e agem de forma diversa, enfim, vive-se um pluralismo de ideias, opiniões, concepções de mundo e de sociedade que não raras vezes divergem entre si. Todo esse processo de contraponto de visões é natural, afinal, o que seria da sociedade se não houvesse conflitos?A divergência é algo constitutivo e inerente da/à convivência humana. No entanto, a convivência dos seres humanos em um determinado contexto social necessita para o bem estar da coletividade de um conjunto de regras/normas que tem como finalidade organizar a vida humana no sentido de evitar a desordem e a barbárie. O padrão normativo serve como mecanismo de controle social, ou seja, adota-se um conjunto de procedimentos com vistas a disciplinar e organizar as relações humanas de modo a manter a ordem social, econômica, política e cultural. Nesse sentido, Correia (2005, p.66) explica que a expressão controle social tem origem na sociologia. De forma geral é empregada para designar os mecanismos que estabelecem a ordem social disciplinando a sociedade e submetendo os indivíduos a determinados padrões sociais e princípios morais. Assim sendo assegura a conformidade de comportamento dos indivíduos a um conjunto de regras e princípios prescritos e sancionados.

O

controle

social,

portanto,constitui-se

em

um

conjunto

de

instrumentos e procedimentos adotados por uma estrutura de poder com vistas a disciplinar as relações humanas.Por meio desse disciplinamento a conduta e o comportamento humano serão executados dentro dos moldes e 368

padrões impostos pelo sistema de poder em vigência. No caso da sociedade brasileira, o sistema econômico predominante é o capitalista neoliberal, que prevê um modelo de desenvolvimento pautado no lucro e na acumulação de riquezas, ou seja, um Estado máximo para o capital e mínimo para o social. Segundo a análise de Muñoz Conde (2005, p.22), o “controle social é condição básica da vida social”. Com ele asseguram-se o cumprimento das expectativas de conduta e o interesse das normas que regem a convivência, conformando-os e estabilizando-os contrafaticamente, em caso de frustração ou descumprimento com a respectiva sanção imposta por uma determinada forma ou procedimento. O controle social, desta forma, determina os limites da liberdade humana na sociedade, constituindo-se, ao mesmo tempo, enquantoum instrumento de socialização de seus membros. Nesse sentido, cumpre salientar, mesmo que de forma incipiente, as facetas que o controle social adquire nas relações sociais, tendo em vista que este está presente em todas as instâncias da vida humana. Sobre o tema, Molina e Gomes (2002, p. 133-134) refletem que há duas classes de instâncias: as formais e as informais. As instâncias (agentes) informais são a família, a escola, a profissão, a opinião pública, dentre outras. As instâncias (agentes) formais são a polícia, a justiça, a administração penitenciária, etc. Os agentes de controle social informal encarregam- se de condicionar o indivíduo, de discipliná-lo, através de um longo processo que começa pela família, escola, profissão. É o processo de socialização. Entretanto, quando essas esferas de controle informais fracassam, entram em cena as instâncias formais, que atuam de forma coercitiva e impõem sanções distintas daquelas sociais: são as sanções estigmatizantes atribuídas ao infrator.

Pode-se aferir que o controle social assume duas faces: informal e formal. O controle informal é incutido desde a mais tenra idade e vai aprimorando-se durante o processo de socialização do sujeito que inicia pela família, seguindo pela escola, grupos de amigos, espaços de lazer e entretenimento. Ou seja: em todas as nuances da vida o controle informal está presente e reveste-se de mecanismos que tem como finalidade disciplinar e incutir nas relações humanas o padrão normativo vigente. O controle informal é interiorizado de maneira não coercitiva. O processo de assimilação desses princípios dá-se de forma descontraída ao 369

longo da trajetória da vida.No entanto, quando essas instâncias falharem o controle

social

formal

será

acionado,

a

partir

de

uma

lógica

punitiva/coercitiva. O controle formal serve para sancionar e punir aqueles que em um determinado estágio da vida infligiram o conjunto de regras estabelecidas pela tessitura social. O controle social formal – ou institucionalizado –, nesse sentido, é o que se dá de forma explícita, e pode ser exercido de forma não punitiva – a exemplo do que ocorre com as normas de direito privado, que regulamentam as relações entre pessoas ou entre pessoas e coisas (bens jurídicos) sem o estabelecimento de sanções – ou punitiva – que opera a partir da imposição de sanções no caso de transgressão da norma reguladora. Há que diferenciar, no entanto, no que tange a esta segunda classificação, entre o controle social institucionalizado punitivo que opera a partir de um discurso não punitivo e o que opera a partir de um discurso punitivo (PIERANGELI; ZAFFARONI, 2002). Neste ínterim, pode-se afirmar que o Direito Penal se revela enquantouma instância de controle social formal, no momento em que impõe um conjunto de sanções para aqueles indivíduos que ultrapassaram as regras impostas e, desta maneira, não seencaixam nos moldes tidos como “normais” e valorizados. O Direito Penal, enquanto instância de controle formal trata de disciplinar e corrigir o comportamento dos sujeitos considerados “desviados”, portanto. Em relação ao exposto,MuñozConde (2005) enfatiza que o Direito Penal é a superestrutura repressiva de uma determinada estrutura econômica e de um determinado sistema de controle social pensado para a defesa desta estrutura. Sendo assim, o Direito Penal, nas palavras do autor, é o “braço armado da classe dominante”, uma vez que reproduz– na aplicação das leis – o caráter conservador e ideológico que lhe deu origem. De acordo com a célebre lição de Foucault (1987, p. 27), as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos ‘negativos’ que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir; mas que elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar (e nesse sentido, se os castigos legais são feitos para sancionar as infrações, pode-se dizer que a definição das

370

infrações e sua repressão são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e suas funções).

Isso fica muito evidente a partir da análise de como se estruturam as instituições e as práticas punitivas no Brasil.O arcabouço jurídico-penal, desde os primeiros códigos, serviu como um importante instrumento de legitimação do poder hegemônico.As elites conservadores sempre contaram com a leveza e a suavidade das leis, ao passo queos segmentos pauperizados e vulnerabilizadosse afiguram, historicamente, como os principais alvos do sistema repressivo – que sobre eles recaisem nenhum resquício de humanidade.Estabelece-se, assim, a seguinte equação: afirmação dos direitos de liberdade para as classes dominantes versus manutenção da opressão sobre os setores subalternos. Uma análise dosCódigos Penais brasileiros de 1830, 1890 e o atual, de 1940, reforçam a premissa acima no que diz respeito à seletividade e a abrangência da punição. No que se refere aos dois primeiros textos legais,evidencia-se que os escravos e ex-escravos – considerados “vadios” e“ociosos” – desde já perturbavam a ordem e o sossego da elite burguesa e, como meio de manter os interesses do segmento elitizado intactos, estabelecem penas com vistas a conter o comportamento dos setores “desviantes”. Neste sentido, ao analisar as raízes históricas de constituição do sistema punitivo, Flauzina (2008, p. 96) salienta que a “atuação do viés truculento adotado pelo aparato de controle foi fundamental durante o processo histórico para garantir a estrutura social assimétrica no país nos termos pautados pelas elites”. O cotejo entre o Código Penal republicano de 1890 e a Constituição de 1891 evidencia essa dinâmica: enquanto o primeiro foi marcado por traços eminentemente repressivos, em especial no que diz respeito aos chamados “Crimes contra a liberdade de Trabalho”3, a segunda foi informada por princípios liberais, o que resta claro a partir da leitura dos dispositivos referentes à declaração dos direitos dos cidadãos. Quer dizer, à inclusão da cidadania por meio da Carta Constitucional correspondia a exclusão por 3Arts.

204 e 207 do Código Penal de 1890 e art. 72, parágrafos 1º e 31 da Constituição Federal de 1891.

371

meio do Código Penal sempre que estivesse ameaçada a “liberdade de trabalho” (NEDER, 1995). Além disso, o surgimento de um Código Penal em momento anterior à Constituição republicana representa um indício de que “o fim do regime de trabalhos forçados reclamou prioritariamente um instrumento de repressão, deixando para segundo plano uma carta de declaração de direitos e princípios que regulamentasse a vida em sociedade.” (FLAUZINA, 2008, p. 82). Verifica-se, então, que as medidas repressivas da época voltavam-se, por um lado, para a imposição da ideologia burguesa do trabalho, e, por outro, para o controle e a disciplina da população ex-escrava. Na verdade, o primeiro objetivo servia como instrumento de encobrimento ideológico do segundo. Uma breve análise sobre a estrutura do atual Código Penal brasileiro também permite afirmar que a intenção, na elaboração deste arcabouço jurídico, era manter os interesses da ordem burguesa preservados, fenômeno este que pode ser percebido na medida em que o Código dispensa uma atenção especial na proteção do patrimônio e da propriedade privada em detrimento dos direitos da pessoa humana. Este interesse patrimonialista do legislador penal de 1940 também faz com que se perceba, que o Código Penal em vigor traz consigo, por trás da máscara de “neutralidade” do tecnicismo jurídico, toda a carga de preconceito racial ínsita à sociedade brasileira escravocrata, o que se revela precipuamente com a seletividade criminalizante do sistema punitivo que a partir dele se estrutura. Neste viés, Streck (2009, p. 92-93) menciona que, inspirado no modelo fascista, o Código Penalbrasileirosegue apontando para o “andar de baixo”da sociedade, com especial preocupação para com os crimes contra o Estado, o livre desenvolvimento do trabalho, a proteção dos costumes, mas sempre dando ênfase à propriedade privada. O referido autor enumera alguns exemplos que ilustram a forma seletiva e desigual a partir da qual o Direito Penal pauta sua atuação: no presente código o furto qualificado recebe maior punição e coerção do que abandonar um recém nascido ou praticar lesão corporal grave; furtar galinhas é mais grave do que exportar 372

pele de animal; os direitos do consumidor ficam relegados quando se trata de crime de furto ou roubo. A sonegação de tributos, por exemplo, não é alvo de alarde social e campanhas midiáticas visando à sua proscrição; já o furto e o roubo despertam uma atenção especial da sociedade e dos meios de comunicação com incessante apelo pela responsabilização e criminalização dos culpados. Pode-se indagar, então: o que está por trás da seletividade? Porque o sonegador é o bom delinquente e o sujeito que pratica furto é o mau delinquente? Que interesses estão encobertos? Quem são os controladores? Quem são os controlados? A resposta a estas indagações exigiriam um espaço mais amplo de discussão,mas é possível aferir que o sistema penal, enquanto instância de controle social formalatua com vistas a preservar os interesses cultivados e valorados pela ordem burguesa. Neste sentido, fica fácil compreender porque o sonegador de tributos possui o direito de extinguir a punição caso parcele a dívida gerada e o sujeito que comete furto, mesmo reparando a vítima, não tem a mesma “regalia” de extinguir a punição. Os delinquentes do “andar de cima” não são atingidos pelas sanções penais, já os delinquentes do “andar de baixo” são seus principais alvos. Neste ínterim, dado o caráter seletivo com que se dá a atuação das agências que integram o sistema penal, pode-se afirmar que o seu exercício de poder visa, antes do combate à criminalidade, à contenção de determinados grupos humanos que, diante da configuração socioeconômica, se traduzem em inconvenientes sociais (WERMUTH, 2011). Diante desse cenário de produção e reprodução de seres humanos inservíveis para o convívio social, resta a indagação: o que fazer com esses inconvenientes que são considerados empecilhos para o desenvolvimento econômico,

social,

político

e

cultural?

A

prisão

e

as

medidas

de

endurecimento penal são as principais alternativas adotadas por um modelo de produção que continua tratando a questão social como caso de polícia. Ao invés de buscar os fatores desencadeantes da criminalidade, acabam por adotar uma política de segurança pública pautada no eficientismo penal. No que concerne ao modelo de segurança pública pautada no 373

eficientismo penal, Dornelles (2008, p. 42) analisa que a política criminal é inflada ocupando os espaços normalmente destinados as outras políticas disciplinares de controle social. Há uma substituição das políticas disciplinares inclusivas e integradoras por práticas de exclusão e segregação baseadas quase que unicamente nas medidas penais.

Pode-se aferir frente ao exposto que o modelo de segurança pautado no eficientismo penal não prioriza a análise acerca dos fatores causais do crime. Prevalece a lógica da tolerância zero e a política do “pé na porta” enfim, é um modelo que busca a segregação dos segmentos hipossuficientes da sociedade, contribuindo com a limpeza e a higienização dos espaços sociais, de modo a satisfazer os desejos de uma elite burguesa que não consegue conviver com os dejetos que ela mesma produz. A prisão, neste contexto, serve como depósito do lixo humano considerado irrelevante e desnecessário para o modelo econômico vigente, discussão que será abordada no tópico abaixo que segue. 3.A SELETIVIDADE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DO SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO: uma análise a partir da realidade carcerária Conforme abordado no tópico precedente,o Direito Penal brasileiro historicamente foi erigido com vistas a manter os interesses e privilégios do setor elitizado inalterados.Para isso, seleciona e segrega nos muros da prisão aqueles sujeitos que não se “encaixam” no padrão normativo vigente, ou seja, os desviados, pervertidos, as classes consideradas perigosas. Essa afirmação encontra eco no perfil dos sujeitos que superlotam as prisões brasileiras. Esse cenário indica, segundo Batista (2007), que o sistema prisional brasileiro cumpre com o papel de legitimação da ordem estabelecida, no momento em que seleciona e segrega em meio ao seu universo setores da sociedade que são considerados pela lógica neoliberal desnecessários e irrelevantes.

Essas

pessoas

precisam

ficar

afastadas

da

sociedade

extramuros, que somente possui espaço para aqueles sujeitos que atendem 374

aos padrões vigentes, ou seja, pessoas com poder aquisitivo e status condizente com a lógica hegemônica. Recentemente o Conselho Nacional de Justiça lançou um relatório acerca do perfil da massa carceráriabrasileira intitulado: “Mapa do Encarceramento: Os Jovens do Brasil”. O documento revela alguns dados referentes ao universo prisional mencionando que a população carcerária do ano de 2005 a 2012 deu um salto de 74%, agravando a superlotaçãodas penitenciárias do país. De acordo com o documento o Estado de São Paulo é o que detém a maior concentração de pessoas privadas de liberdade (BRASIL, 2015). Em relação ao total de reclusos, 40% são presos provisórios que estão aguardando julgamento, 60% engloba sujeitos condenados, em sua grande maioria, ao regime fechado. No que concerne ao gênero, a presença de homens prevalece.No entanto ocorreu nas últimas décadas um crescimento significativo do percentual de mulheres cumprindo pena privativa de liberdade no Brasil(BRASIL, 2015). Os níveis de escolarização são chocantes:enorme parcela de reclusos nem sequer completou o ensino médio, revelando desse modo a precariedade e a fragilidade política/intelectual da massa carcerária. Referente à faixa etária é possível aferir que a população carcerária é extremamente jovem: 54% da massa possui idade entre 18 a 24 anos (BRASIL, 2015). Em relação à cor da pele, o estudo aponta que 60% do universo prisional é composto por pessoas negras. O documento revela que a população branca do Brasilé nove vezes maior que a negra. No entanto, os negros abarrotam as prisões brasileiras com percentuais expressivos. A negritude vem acompanhada de situações de privação econômica e vulnerabilidade social, ou seja, o fato de ser negro e pobre desperta a atenção das agências incumbidas de manter a ordem. Neste ínterim, concorda-se com a reflexão de Frade (2008) quando menciona que estamos habituados

a

considerar

“marginais”



no

sentido

pejorativo

de

“delinquentes” - principalmente os pobres. O relatório elenca ainda os principais tipos de crimes cometidos, sendo que 49% são crimes contra o patrimônio, 25% envolvendo tráfico de 375

drogas e 11,9% crimes contra a pessoa (BRASIL, 2015). Percebe-se, portanto, que as prisõesdo país, ao contrário do que é disseminado no imaginário

social,

não

estão

lotadas

de

seres

com

alto

grau

de

periculosidade,pois se assim fosse os crimes contra as pessoas seriam mais expressivos. A construção social da figura do criminoso carrega uma visão deturpada do fenômeno da criminalidade. Para o público é bem mais fácil perceber como crime o assalto na padaria ou o furto de uma carteira na calada da noite do que uma fraude de instituições financeiras à luz do dia, envolvendo milhares de reais. Como também é mais fácil identificar o “Zé Mané” (ou seja, o negro, mal vestido...), como um perigoso criminoso do que uma figura limpa, cheirosa, de terno e gravata, bem falante e com o carro do ano (DORNELLES, 1998). Em razão disso, pode-se asseverar, de acordo com Andrade (1997), que a tipificação da conduta delituosa não se exaure no momento normativo, nem tampouco a aplicação da norma ao caso concreto constitui um exercício de mera lógica formal; pelo contrário, a lei penal configura um marco abstrato de decisão dentro do qual as agências do sistema penal gozam de uma ampla margem de discricionariedade. Destarte, trata-se de suposição errônea aquela propalada pelo discurso jurídico-penal segundo a qual a prática da infração penal enseja a aplicação automática da pena, isto porque “entre a seleção abstrata, potencial e provisória operada pela lei penal e a seleção efetiva e definitiva operada pelas instâncias de criminalização secundária [polícia, Ministério Público, Poder Judiciário, etc], medeia um complexo e dinâmico processo de refração.” (ANDRADE, 1997, p. 260). Esta seleção quantitativa levada a cabo pelo sistema penal foi revelada principalmente a partir do novo papel relegado ao estudo das estatísticas criminais pela Criminologia Crítica, em especial no que tange à questão da criminalidade de colarinho branco e da cifra oculta da criminalidade. As estatísticas criminais sempre serviram como ponto de apoio das investigações criminológicas, uma vez que revelam a atividade da polícia, do Ministério Público, dos Tribunais e das instituições penitenciárias no “combate à criminalidade”. No entanto, com a revelação da criminalidade de colarinho branco e da cifra oculta, passou-se a duvidar do valor de 376

verdade das estatísticas criminais no que pertine à quantificação da criminalidade “real”, afinal, constatou-se que “nem todo delito cometido é perseguido; nem todo delito perseguido é registrado; nem todo delito registrado é averiguado pela polícia; nem todo delito averiguado é denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo recebimento termina em condenação.” (ANDRADE, 1997, p. 262-263). Assim, antes de se apresentarem como fonte de estudo da criminalidade em si, as estatísticas criminais transformaram-se em um hábil instrumento para a investigação da lógica do controle social levado a cabo pelo sistema penal, uma vez que, a partir da constatação de que elas representam a criminalidade – em especial aquela praticada por pessoas de alto prestígio social – de um modo muito inferior à sua cifra oculta, foi possível demonstrar que as sobreditas estatísticas acabam por distorcer a distribuição da criminalidade nos grupos sociais. Em função disso, cria-se uma falsa impressão de que ela é um atributo exclusivo das classes menos privilegiadas, legitimando, consequentemente, a atuação do sistema penal sobre tais estratos sociais (ANDRADE, 1997). Infere-se disso que o que ocorre é que a criminalização é, com regularidade, desigual ou seletivamente distribuída pelo sistema penal. Desta forma, os pobres não têm uma maior tendência a delinquir, mas sim a serem criminalizados. De modo que à minoria criminal da Criminologia positivista opõe-se a equação maioria criminal x minoria pobre regularmente criminalizada.” (ANDRADE, 1997, p. 265).

Ademais, ao revelar que a criminalidade real é infinitamente superior àquela apontada pelas estatísticas criminais, o estudo da sua cifra oculta permitiu chegar-se à conclusão fundamental de que a imunidade e não a criminalização é a regra no funcionamento do sistema penal e que todos os princípios ou valores sobre os quais o sistema se apoia (a igualdade dos cidadãos, a segurança, o direito à justiça, etc) são radicalmente deturpados, na medida em que só se aplicam àquele número ínfimo de situações que são os casos registrados, razão pela qual estes argumentos passaram a ser largamente utilizados pelas correntes abolicionistas, para as quais um sistema que rege apenas casos esporádicos é absolutamente desnecessário 377

(HULSMAN, 1993). Além da seletividade quantitativa do sistema penal, pode-se falar também

em

uma

seletividade

qualitativa,

ou

seja,

pautada

pela

“especificidade da infração e as conotações sociais dos autores (e vítimas), isto é, das pessoas envolvidas.” (ANDRADE, 1997, p. 266).Na realidade do sistema penitenciário brasileiro atual, tendo como base os dados lançados pelo Mapa do Encarceramento, pode-se aferir que o Direito Penal, por intermédio do sistema prisional brasileiro, mais do que nunca revela seu caráter seletivo e deflagra a opção por um modelo de sociedade que prima pela proteção dos privilégios do segmento elitizado. A prisão serve como mecanismo de inocuização e incapacitação seletiva de todos os setores indesejados do seio social. Com efeito, o fato de a clientela do sistema penal brasileiro ser composta quase que exclusivamente por pessoas pertencentes aos estratos sociais economicamente hipossuficientes – o que leva Flauzina (2008) a falar na monotonia cromática das massas encarceradas e dos corpos caídos no rastro da intervenção do sistema punitivo – demonstra que existe não um processo de seleção de condutas criminosas, mas sim de pessoas que receberão o rótulo de “delinquentes”. Tal seletividade qualitativa deve-se ao fato de que, em sociedades desiguais, os grupos detentores da maior parcela do poder possuem a capacidade de impor ao sistema uma impunidade praticamente absoluta das suas próprias condutas criminosas, visto que “os tipos penais têm uma relação direta com os bens jurídicos que as camadas dominantes da sociedade pretendem preservar.” (STRECK, 1998, p. 37). Diante

de

tais

constatações,

refere

Andrade

(1997)

que

a

criminalidade é imputada aos estratos economicamente hipossuficientes da sociedade mediante juízos atributivos que são realizados a partir dos processos de criminalização primária e secundária, ou seja, através da definição dos bens jurídicos a serem protegidos e dos comportamentos ofensivos a estes bens – os quais são predominantemente relacionados às formas de desvio típicas das classes desfavorecidas, em detrimento daqueles que dizem respeito a bens e valores como a vida, a saúde, etc –, bem como da seleção dos indivíduos que serão criminalizados dentre todos aqueles que 378

praticarem tais comportamentos, quais sejam, os oriundos dos níveis mais baixos da escala social, como consequência lógica da criminalização primária. Destarte, o etiquetamento do indivíduo enquanto delinquente está intrinsecamente relacionado à posição social por ele ocupada, de forma que, segundo a clássica lição de Baratta (2000, p. 32), las personas vulnerables y sinningún poder social que sufren lesiones de sus derechos económicos y sociales (derechos ‘débiles’, como señalalateoría de losderechosfundamentales), por parte del Estado o de la sociedade, se convierten de tal modo enpotencialesagresores de losderechosfuertes (integridad física, derecho de propiedad) de lossujetos socialmente más protegidos.

Com efeito, há no Brasil um modelo de ordenamento social no qual à delinquência levada a cabo pelas classes perigosas é atribuído o papel de criação de medo e insegurança e “isto significa construir um consenso social através do medo e da insegurança visando à adoção de políticas repressivas e opressoras contra as classes populares e segmentos não-privilegiados.” (DORNELLES, 2008, p. 37-38). É necessário, nesse sentido, impor o medo do Direito Penal, uma vez que a partir do momento em que o Estado se exime de suas tarefas de agente social do bem-estar, abre-se a necessidade de novas iniciativas do seu aparato repressivo em relação àquelas condutas transgressoras da “ordem” perpetradas pelos grupos que a ameaçam. Outrossim, impõem-se iniciativas por parte do Estado que respondam às demandas das classes que se integram à esta “ordem” no sentido de se sentirem mais seguras em tal contexto (DORNELLES, 2008). Corroborando com o estudo, Wacquant (2007, p.21) refere que a “penalização serve aqui como uma técnica para a invisibilização dos problemas sociais que o Estado enquanto alavanca burocrática da vontade coletiva, não pode ou não se preocupa em tratar de forma profunda, e a prisão neste sentido, serve de lata de lixo judiciária em que são lançados os dejetos da sociedade de mercado.Em outras palavras: a seletividade ínsita ao sistema carcerário brasileiro revela de modo cada vez mais nítido, a violência estrutural que subjaz à formação de nossa sociedade.

379

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerando o arcabouço teórico analisado no decorrer da exposição do presente estudo, pode-se aferir que o sistema prisional brasileiro operacionaliza a política de execução penal por um viés totalmente desigual e seletivo. A premissa de um Direito Penal igualitário, justo e neutro não passa de uma falácia, o que pode ser constatado no perfil da massa carcerária brasileira que superlota as prisões. O Mapa do Encarceramento – relatório produzido pelo Conselho Nacional de Justiça – evidencia que as prisões brasileiras estão repletas de homens, negros, jovens, analfabetos ou semi-analfabetos provenientes de segmentos pauperizados, enfim, os seres humanos que de alguma forma não contemplam os padrões impostos pela “ditadura de consumo” propostas pela ideologia burguesa são removidos do contexto social, econômico, político e cultural, de modo a evitar a “contaminação” com os setores saudáveis e produtivos. A prisão, neste ínterim, serve como local de remoção e despejo dos seres humanos refugados, ou seja, os consumidores falhos carecedores de poder aquisitivo e influência política, características estas largamente valorizadas pelo sistema capitalista neoliberal. O Direito Penal neste contexto serve como mecanismo de controle social altamente seletivo: desde os primeiros Códigos Penais brasileiros é possível perceber o desigual no processo de implantação e efetivação do arcabouço jurídico penal. Os crimes de cunho patrimonial recebem atenção diferenciada em relação aos crimes contra a pessoa humana. Por ser o Direito Penal um instrumento de controle e legitimação da ordem capitalista neoliberal a proteção da propriedade privada deve ser prioridade. A seletividade materializada no perfil da massa carcerária brasileira evidencia-se que a seletividade é um fator presente no sistema prisional do país e continuará sendo, afinal, o segmento elitizado repudia o convívio com sujeitos que não ostentam os mesmos padrões de consumo. Deste modo, a prisão é um componente fundamental de limpeza e higienização social da raça “degenerada” e “desviada”. 380

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382

A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA DECISÃO JUDICIAL QUE DECRETA A PRISÃO PREVENTIVA Bruno Silveira Rigon1 Felipe Lazzari da Silveira2 1. INTRODUÇÃO Mesmo que a Lei nº 12.403/11 tenha estabelecido um novo regime de medidas cautelares, colocando a prisão preventiva definitivamente na condição de ultima ratio, o encarceramento preventivo segue sendo utilizado em

larga

escala

no

Brasil.

Os

dados

publicados

pela

Comissão

Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2012 e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2014 demonstram que, mesmo após a reforma do Código de Processo Penal (CPP), a constrição cautear da liberdade foi uma medida que seguiu sendo utilizada de modo banalizado. Se os presos provisórios no Brasil somavam 37,6% do total da população carcerária em 2012,3

a

quantidade

de

presos

provisórios

subiu

para

41%

(se

considerarmos as prisões domiciliares o índice cai para 32%, mas ainda assim configura uma quantidade de presos provisórios demasiadamente elevada) em 2014,4 o que indica que a Nova Lei de Medidas Cautelates não conseguiu alterar significativamente o quadro da prisão preventiva. Paralelamente ao aumento do número de encarceramentos, os índices referentes à quantidade de delitos praticados também são crescentes, situação que demonstra claramente a ineficiência do modo como o problema da criminalidade vem sendo tratado. Contudo, nossa sociedade segue Graduado em Direito, Especialista em Ciências Penais e Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS. Advogado, atualmente licenciado para o exercício do cargo de Assessor no Ministério Público do Rio Grande do Sul – MP/RS. 2Graduado em Direito pela UNISINOS; Pós-graduado em Derechos Fundamentales y Garantías Constitucionales en el Derecho Penal y Procesal Penal pela UCLM e em Direito Penal e Direito Processual Penal pela UNIRITTER; Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS. Advogado criminalista. 3 Dados publicados pela Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH) no Informe sobre el uso de la prisión preventiva en las Américas. 2013. p. 21. 4 Dados publicados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil. Brasilia: CNJ, 2014. Disponível em: , Acesso em 18 abr.2015. 1

383

clamando pelo recrudescimento do controle penal nos mesmos moldes. No presente trabalho, partimos do pressuposto de que a prisão preventiva é um locus privilegiado para se identificar os principais fatores que culminam no recrudescimento do controle penal e que a mídia, diante da grande influência que exerce sobre as pessoas no contexto contemporâneo, possui papel fundamental nessa dinâmica. Assim,

considerando

que

os

mass

media

atualmente

são

determinantes para o estabelecimento do comportamento dos indivíduos nos mais diversos âmbitos da vida, bem como são responsáveis pela construção da realidade, inclusive da “imagem” do criminoso, no presente artigo buscaremos demonstrar o modo como a mídia dissemina o medo e a insegurança no seio social, identificando sua influência no fenômeno do recrudescimento do controle do crime, mais precisamente nas decisões judiciais que banalizam o decreto da prisão preventiva, análise que será procedida através do cotejo de dados e de uma revisão bibliográfica sobre o tema. 2. O PAPEL DA MÍDIA PARA A PRODUÇÃO DE CONSENSO SOBRE A QUESTÃO CRIMINAL Vivemos em uma sociedade demasiadamente complexa, caracterizada pelo modo de vida direcionado ao consumo e pela velocidade que move os seus mais diversos âmbitos. Em nosso tempo, o que realmente interessa é o aqui e o agora, pois todos têm pressa e desejam experimentar o maior número de sensações positivas possíveis dentre as prometidas pela religião do capital.5 Como consequência a felicidade hoje parece estar atrelada ao poder de consumo e o acesso a constante troca de informações. As transformações verificadas ao longo do tempo em nossa sociedade podem ser compreendidas através do trabalho de Deleuze que, dando Em seus escritos, Walter Benjamin comparou o capitalismo a uma religião, na medida em que satisfaz as preocupações, os tormentos e os desassossegos a que antes as chamadas religiões davam resposta. Ver: BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. In: BARRETO, João (org.). Walter Benjamin: O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. p. 35-38. 5

384

sequência aos estudos de Foucault,6 demonstrou como se deu a transição da sociedade disciplinar para a sociedade de controle. Conforme explicou Deleuze, na sociedade disciplinar o indivíduo era moldado, adequado a vida em sociedade, enquanto transitava de um lugar fechado para outro, um processo que iniciava no seio familiar e era complementado por outras instituições como a escola, a caserna, a fábrica, às vezes pelo hospital, e quando “necessário” pela prisão. Na concepção do autor, mesmo que tenha “evoluído”, o modelo imposto pela sociedade disciplinar entrou em crise na metade do século XX, mais precisamente após a Segunda Guerra Mundial, momento marcado por profundas alterações no meio social, sendo substituído

pela

sociedade

de

controle

e,

consequentemente,

pela

substancial modificação das referidas instituições que restaram direcionadas a outros fins, uma vez que os indivíduos passaram a ser moldados constantemente por formas ultrarrápidas de controle que agem ao ar livre, em espaços abertos (DELEUZE, 2013:223-224). Em relação ao tema proposto pelo presente artigo, é de suma importância destacar que os meios de comunicação consistem em poderosos meios de controle, na medida em que desempenham papel fundamental para o estabelecimento do modo de vida e de padrões comportamentais na sociedade contemporânea. Os teóricos da comunicação sempre apontaram para o papel de articulação social desempenhado pela mídia, bem como para os efeitos desta prática. Lippman, por exemplo, defendeu que os meios de comunicação são responsáveis pela articulação de diferentes partes da sociedade, mas que nem sempre essa articulação tem efeitos positivos, já que também pode ensejar reflexos indesejados e imprevisíveis no seio social (LIPPMAN, 2008:16-20). Lasswell, por sua vez, atribuiu diversas funções à mídia, descrevendo-a não apenas como responsável pela articulação dos diversos seguimentos da sociedade, mas também como um mecanismo de vigilância sobre o meio social e garantidora da democracia através da Para Foucault, as mudanças sociais ocorridas no séc. XVIII e XIX levaram a alterações do jogo do poder, que foi sendo gradativamente substituído pelo que denominou de sociedades disciplinares, as quais atingiram o seu apogeu no séc. XX. A passagem de uma forma de dominação a outra ocorreu quando a economia do poder percebeu ser mais eficaz e rentável “vigiar” do que “punir”. Ver: FOUCAULT, Michel.Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2004. 6

385

comunicação política. Para o autor, a mídia também tem como função garantir a continuidade do sistema vigente através da transmissão da herança cultural e dos valores de uma geração para a outra (LASSWELL, 1972). Diante do papel que desempenha, na medida em que acaba impondo um modo de vida, um modelo de indivíduo adequado ao regime vigente, determinando como as pessoas irão se comportar, como deverão pensar, como deverão se vestir para estar na moda e, inclusive, como se posicionar politicamente, resta evidente que exerce papel decisivo na formação do senso comum, o que acaba lhe colocando na condição de um poderoso instrumento de controle. O “senso comum é o repositório de saberes acumulados

tradicionalmente

por

um

povo,

onde

se

misturam

conhecimentos científicos, tradições, crendices, mitos e a aprendizagem formal, escolar, bem como as informações trazidas pela mídia” (MARTINO, 2014:74). Segundo o Germano, o senso comum tem como característica apresentar-se como uma verdade tão evidente, que qualquer tipo de questionamento a seu respeito poderia ser considerado absurdo, uma afronta ao “bom senso”, e, por isso, pode tornar-se um instrumento de dominação. Aqui, é oportuno alertar para o fato de que a “opinião pública” é sempre reflexo do que paira no senso comum sobre determinado tema, uma espécie de manifestação anônima gerada e instrumentalizada através de discursos produzidos por políticos, professores, cientistas, jornalistas e demais profissionais que exercem o poder de convencimento na sociedade atual, atores sociais que podemos chamar de “formadores de opinião” (GERMANO, 2012:31). Por esta razão Maffesoli sustenta que, em nossa época, a opinião pública confunde-se com a opinião publicada (MAFFESOLI, 2010:10-11). Conforme Merton e Lazarsfeld, os mass media contém um poderoso instrumental que pode ser utilizado para diversos fins, para o bem ou para o mal, sendo que, na ausência de um controle adequado, certamente será destinado para a segunda hipótese, sobretudo para assegurar interesses particulares em detrimento do bem comum. Os autores também chamam a 386

atenção para o fato de que, no que diz respeito ao controle social, a mídia de massa atua promovendo a coerção da coletividade através de programas de rádio e anúncios institucionalizados que substituem com eficácia qualquer modo violento de coerção. Nesse diapasão, o que muitos chamam de “poder de imprensa” estaria vinculado à função exercida pela mídia de reforçar as normas sociais, promovendo ações sociais organizadas contra situações que em

tese

estariam

em

desacordo

com

a

moral

pública

(MERTON;

LAZARSFELD, 2000:109-116), o que pode ser constatado no caso da forte pressão que a mídia introduz cotidianamente no campo criminal. A força da mídia pode ser verificada no exemplo da televisão, considerando o seu poder de alcance e de convencimento exercido através da imagem. Bordieu chamou a atenção para o fato de que o acesso a esse instrumento tem como contrapartida o que denominou de “formidável censura”, ou seja, a perda de autonomia na relação comunicativa, já que o tema do programa exibido é imposto, as condições da comunicação são impostas e que a limitação de tempo nas discussões apresentadas impõe enormes restrições aos discursos, impedindo que os assuntos sejam tratados com profundidade. O autor sustentou ainda que a censura não é direcionada somente ao público, mas também em desfavor dos próprios jornalistas e convidados, já que existe um grande controle exercido pelo mercado, tendo em vista que as empresas de comunicação necessitam se manter em posição privilegiada para enfrentar a concorrência, o que impõe pressão e desafios diários aos profissionais da comunicação, que são obrigados a conseguir “furos”, informações exclusivas para que garantam sua reputação e seu emprego (BORDIEU,1997:19-58). É o que Ramonet denominou de “censura democrática” (RAMONET, 2010:28-29). O interesse no caráter apelativo que o crime carrega fez com que a mídia se tornasse a grande responsável pela construção da imagem da criminalidade, interligando-a ao campo do sistema penal. É que exibição excessiva

de

notícias

sensacionalista,

acaba

sobre

o

crime,

estabelecendo

os

quase

sempre

estereótipos

sob dos

um

viés

indivíduos

criminosos, bem como quais os locais da cidade que são ocupados pelos mesmos e devem ser evitados pela população. A relação entre mídia e crime 387

segue a seguinte dinâmica: primeiro os meios de comunicação ajudam a criar um cenário de insegurança no seio social através da veiculação excessiva de informações sobre o mundo do crime para, depois, com o apoio da população amedrontada, pressionar o poder público para que solucione o problema da criminalidade, o que normalmente é procedido através de campanhas por mais leis penais, por decisões judiciais mais duras e pela expansão do uso da prisão, sobretudo a preventiva. Outra questão que precisa ser enfrentada é que, ao mesmo tempo em que lucra com essa dinâmica, a mídia legitima um sistema penal que destrói milhares de pessoas e é ineficaz para resolver o problema da criminalidade (BUDÓ, 2013:23). Na grade de programação da televisão brasileira, por exemplo, não são raros os programas alarmistas produzidos em um formato onde um apresentador que mais parece um justiceiro, comanda ao vivo a transmissão do trabalho da polícia no atendimento de ocorrências envolvendo crimes graves como roubos, sequestros e latrocínios, exibindo sem nenhum pudor imagens repletas de violência, sangue e desespero, para depois proferir um discurso raso sobre segurança pública, incentivando o público na busca por vingança contra a criminalidade, seja pelas próprias mãos ou através do recrudescimento do sistema penal. Na verdade, programas desse tipo servem como embriões dos movimentos de lei e ordem que cada vez mais ganham as ruas com suas demandas vazias, desconsiderando completamente a complexidade do fenômeno criminal, mas que acabam sendo encampadas nas plataformas de alguns políticos interessados nos votos dos cidadãos inseguros. Tendo ciência de que os meios de comunicação influenciam no processo de significação do mundo, ou seja, na construção social da realidade, e que assim determinam o comportamento dos indivíduos nos processos de interação social, é importante compreender também o funcionamento desse processo cognitivo. Aqui é necessário alertar para o fato de que os meios de comunicação não possuem capacidade de produzir efeitos diretos no que as pessoas irão pensar e como irão agir, mas sim sobre os assuntos que elas entenderão como importantes e deverão se colocados em suas pautas de discussão, sobre os quais deverá haver um consenso 388

(BUDÓ, 2013:82-83). Tal processo é claramente explicado pela teoria do agenda-setting, que desvela os meandros da relação entre os meios de comunicação de massa e as relações sociais, ou melhor, demonstra que a agenda midiática é quem definirá os assuntos discutidos pelas pessoas e, consequentemente, pautados na agenda pública (MARTINO, 2014:207). Assim, com o impulso proporcionado pelo seu agendamento diário na mídia, o tema criminalidade ganha às ruas a cada novo delito e, com o auxílio dos formadores de opinião, acaba ganhando espaço no senso comum onde magicamente as soluções para os problemas da criminalidade parecem estar prontas, ironicamente esperando apenas um homem público honesto e de boa vontade para colocá-las em prática. O grande problema é que as percepções

sobre

a

criminalidade

que

pairam

no

imaginário

social

encontram-se vinculadas ao legado deixado pela criminologia positivista,7 ou seja, em uma concepção determinista que reduz a complexidade do fenômeno crime e se apóia principalmente na figura do criminoso nato que, evidentemente, recebe o status de inimigo. O modo como os mass media tratam o tema da criminalidade, sobretudo no que diz respeito à exposição dos acusados, é inadmissível em um Estado Democrático de Direito, pois acaba desrespeitando diversos direitos e garantias como, por exemplo, a presunção de inocência, considerando que afirma abusivamente a culpa dos suspeitos antes mesmo de que uma sentença sobre o caso tenha sido proferida. No que tange aos graves prejuízos causados pelos meios de comunicação aos indivíduos suspeitos, Budó referiu que: “A pena instituída pelos meios de comunicação é a execração pública do suspeito ou acusado, a violação de sua imagem, honra, estado de inocência, sua estigmatização, de forma irrecuperável.”(BUDÓ, 2013:116). Em suma, é possível afirmar que em nosso tempo a mídia dissemina medo e insegurança no tecido social, o que produz reflexos extremamentes negativos, uma vez que, em pânico, a sociedade amedrontada acaba 7A

Escola Positiva surgiu no contexto de um acelerado desenvolvimento das ciências sociais (Antropologia, Psiquiatria, Psicologia, Sociologia, estatística etc), determinando uma nova orientação nos estudos criminológicos, aderindo a uma concepção determinista da criminalidade, objetivando defender mais enfaticamente o corpo social contra a ação do criminoso, priorizando os interesses sociais em relação aos indivíduos que, segundo essa corrente, teriam tendência a delinquir.

389

clamando por uma reação violenta por parte do Estado em relação a criminalidade, o que camufla completamente as origens do problema e acaba dificultando sua solução. Dias explicou que o medo pode ser definido como um sentimento de inquietação e preocupação diante da possibilidade de ocorrência de um evento que é considerado desagradável, algo que gera grande sofrimento aos indivíduos. Segundo o autor, tudo que é considerado estranho pode se tornar uma fonte de medo, inclusive pessoas, já que grande parte dos indivíduos demonstra medo de seus semelhantes quando estes são portadores de deficiências físicas, deficientes mentais, dependentes químicos ou condenados pela justiça, realidade que facilita sobremaneira a criação de bodes expiatórios. O medo se aloja nas camadas afetivas e emocionais de cada indivíduo, assentando-se em pressupostos e raciocínios de natureza sociológica, dando origem a um sentimento de necessidade de vigilância permanente que se alastra no seio social, proporcionando o surgimento do que Dias denominou de “idolatria do vigilante”, o que indica a adoração de uma espécie de ente supremo que teria a responsabilidade de reger a vida dos indivíduos e da comunidade, posição normalmente ocupada pelo Estado ou seus agentes (DIAS, 2007:13-49-57-152). Não é a toa que temos assistido inúmeros eposódios de linchamentos e que grande parte da população apoia as execuções de suspeitos cometidas pela polícia. Diante das considerações apontadas, concluímos que o principal reflexo da disseminação do medo no tecido social e da criação de uma imagem distorcida da criminalidade, é a criação da figura de um inimigo no imaginário da população que, por estar atemorizada, passa a eleger algumas classes como sendo perigosas, tratando seus membros (pobres, condenados, viciados, prostitutas e etc.) como inimigos em potencial (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010:190-191), gerando uma realidade determinante para a manutenção do processo que tem como consequência o recrudescimento do controle exercido através do sistema penal, conforme podemos observar no caso da prisão preventiva, objeto do presente trabalho, já que seguidamente grande parte da população clama pela prisão imediata de suspeitos sem qualquer tipo de preocupação com os verdadeiros propósitos dessa medida processual. 390

3. MÍDIA E RECUDESCIMENTO PENAL: a espetacularização midiática do crime a banalização da prisão preventiva Como vimos, o modo como a mídia trata o problema da criminalidade possibilita a criação de uma pseudo realidade onde as pessoas “de bem” convivem com seus iguais, sempre distantes de uma massa de criminosos, estes normalmente identificados em estereótipos vinculados a criminalidade, indivíduos que são vistos como diferentes e maus (ZAFFARONI, 2013:197198). Diante da segregação e da ausência de alteridade, a sociedade “de bem”

acaba

propondo

uma

guerra

para

resolver

o

problema

da

criminalidade, mesmo que isso acarrete uma série de violações contra os indivíduos colocados na posição de inimigos. É que dentro da lógica da guerra contra o crime as vidas dessas pessoas podem ser destruídas em nome do bem comum, uma vez que, ao romperem o contrato social para cometer delitos, deixaram de ser merecedores de direitos e garantias. É por isso que para muitos dos que defendem o trato da criminalidade em formato de guerra, os direitos humanos, as garantias processuais e os juízes que respeitam o devido processo legal acusatório não passam de indesejáveis obstáculos que impedem o desenrolar da guerra contra o crime, sendo que muitos políticos atemorizados e oportunistas, também influenciados pela “criminologia midiática” (BOLDT, 2013; ZAFFARONI, 2012:303-346), aderem a

esse

posicionamento

e

aprovam

leis

desnecessárias

que

apenas

contribuem para o recrudescimento do controle penal. Em suma, diante desse

panorama,

independente

dos

danos

causados

aos

indivíduos

absorvidos por suas malhas, o sistema punitivo atual acaba sendo visto como o único modo de resolver o problema da criminalidade, em oposição a qualquer tentativa de construção do Estado Social (ZAFFARONI, 2013:2032011). É importante referir que tal realidade é apoiada no fato de que a maioria das pessoas acredita cegamente em certas crenças jurídicas, como a de que existe um legislador produzindo um sistema jurídico coerente, que o juiz é axiologicamente neutro quando decide, que o ordenamento jurídico é sempre justo e protege os interesses de todos os cidadãos. Contudo, faz-se 391

necessária a crítica no sentido de que a ordem jurídica resulta de uma atividade humana e está radicada em uma sociedade complexa e hierarquizada, onde quem dita às leis é a classe que ocupa o poder, o que faz com que o sistema punitivo, em todas as fases (policial, judicial e execução da pena), reproduza a realidade social (THOMPSON, 1998:45-47). Na esteira do que foi explicitado, é possível concluir que o resultado da administração publicitária da criminalidade e do medo por parte da mídia, sempre articulando as impressões e vivencias dos envolvidos nos fatos criminosos noticiados, cria um bisonho empirismo que acaba servindo de base para o discurso punitivista que paira no senso comum (BATISTA, 1990:15). Conforme explica Carvalho, a vontade de punir é o principal sintoma do novo quadro político-econômico e social, um sentimento que dá ensejo ao populismo punitivo fomentado pelos movimentos de lei e ordem e contribui para o enfraquecimento da democracia, na medida em que tenta suprimir

os

direitos

e

as

garantias

de

indivíduos

pertencentes

a

determinados grupos sobre o pretexto de se estar assegurando o bem comum. Em resumo, o medo disseminado pela mídia no seio social faz com que os adeptos

dos movimentos encarceradores, mesmo diante da

impossibilidade de comprovação empírica de fatores com sensação de insegurança e de impunidade, utilizem tais argumentos para exigir o recrudescimento do controle exercido pelo sistema penal, uma vez que, no senso comum, a contenção da criminalidade está vinculada as demandas por mais punições (CARVALHO, 2010:8-10). No mesmo sentido, Hassemer (1994:163) se posicionou salientando que o controle da criminalidade tornou-se uma espécie de mecanismo destinado a regular o sentimento de insegurança da população, propiciando o surgimento de estratégias populistas de combate ao crime, medidas que são ineficazes e apenas demonstram a incapacidade do Estado para solucionar o problema da violência urbana. Em relação ao tema tratado no presente trabalho, que tem como foco a relação entre a mídia e o recrudescimento do controle penal, os esclarecimentos propostos pelo autor são de grande valia: 392

(…) Não é a ameaça real da criminalidade e da violência que constitui o fator decisivo para a política de segurança pública, e sim a percepção de tal ameaça pela coletividade. Estes sentimentos de ameaça dominam a população, são canalizados para reivindicações de imediato arrocho nos meios coercitivos e tornam o relaxamento dos direitos fundamentais bem como a sua corrosão pelo Estado não só toleráveis como objeto de exigência da população. (...)

Diante de tal realidade, mesmo em um contexto democrático, o modo de tratar a criminalidade na sociedade contemporânea apenas tem fortalecido uma cultura bélica e violenta onde o poder punitivo é exercido em formato de guerra, de modo semelhante ao que ocorreu nos períodos autoritários, quando a concepção de segurança pública encontrava-se atrelada com ideia de segurança nacional. Semelhantemente ao que ocorreu entre as décadas de 1960 e 1980, período em que as ditaduras campearam pelo continente latino-americano, no contexto contemporâneo a estética da guerra encontra-se presente no controle da criminalidade, tendo como efeito a supressão dos direitos e garantias dos suspeitos, uma vez que pela lógica da exceção e da emergência imposta pela guerra, se o inimigo não joga limpo, o estado também estaria autorizado a ultrapassar limites no exercício do poder punitivo (ZAFFARONI; BATISTA, 2011:41-42). Segundo Baratta, com o avanço do tempo a ideologia da defesa social passou a integrar a filosofia dominante nas ciências jurídicas e a influenciar opiniões, sendo absorvida não apenas pelos representantes do aparato penal penitenciário, mas também pelo público em geral, dando ensejo a um discurso comum sobre criminalidade, baseado no que o autor denominou de “Every Day Theories”. Para Baratta, o conceito de defesa social serve muito mais como um elemento justificante e racionalizante do sistema penal, do que um elemento técnico do sistema legislativo ou dogmático, contudo, serve de base para diversas teorias legitimadoras desse sistema nefasto (BARATTA, 2011:41-42). O estado atual da prisão preventiva no Brasil demonstra muito bem essa dinâmica! A Lei nº 12.403/11 alterou drasticamente o sistema das prisões cautelares. Como principais modificações, podemos destacar a perda da autonomia da prisão em flagrante e a adoção de um novo regime em relação à prisão preventiva que, após a vigência da referida lei, teve sua decretação 393

condicionada à observância de inúmeros fatores, tornando-se de uma vez por todas a última medida cautelar a ser aplicada nos feitos criminais. O texto legal dispõe claramente que a prisão preventiva poderá ser decretada somente nos casos em que as medidas cautelares menos gravosas do que prisão se mostrem insuficientes,8 procedimento que deverá ser aplicado também em relação aos procedimentos que apurem crimes hediondos (CRUZ, 2011). No novo regime das cautelares, a prisão preventiva tornou-se a ultima ratio não apenas sob o argumento utilizado anteriormente, fundamentado na leitura constitucional do processo penal a partir do princípio da presunção de inocência, mas pelo que dispõe o próprio CPP alterado. Conforme o artigo 282, a aplicação das medidas cautelares, incluindo a prisão preventiva, deverá respeitar as necessidades de cada situação, bem como estar destinada a assegurar a instrução processual, a aplicação da lei penal ou a evitar a reiteração criminosa. Além disso, o texto legal determina que a medida seja adequada ao caso concreto, devendo ser considerada a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do imputado.9 Após as inúmeras exigências para sua aplicação, a prisão preventiva resta consagrada como medida excepcional no parágrafo 6º, inciso II, que preceitua: “A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319).” A natureza cautelar da prisão preventiva não restou alterada após a alteração do CPP. Pelo contrário: restou reforçada, uma vez que a constrição restou consagrada como uma medida de exceção e de caráter instrumental, com aplicação permitida somente em casos extremos, quando não existirem outras formas de assegurar o trâmite e a conclusão do processo, em hipótese podendo servir a outros fins (GOMES FILHO, 2011). Artigo 310, II da Lei 12.403/11: “Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: [...] ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; [...]”. 9 Artigo 282, I e II da Lei 12.403/11: “As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.[...]”. 8

394

Nesse sentido, Giacomolli (2013:67) explicou que: Com a Lei nº 12.403/11, a prisão preventiva deixou de ser a medida cautelar pessoal por excelência, bem como a regra em termos de medidas constritivas criminais. Situa-se, como já afirmado, na ultima ratio do sistema cautelar criminal. Além disso, sua função é eminentemente processual e não de antecipação de pena, ou seja, destina-se a tutelar o processo (fuga do suspeito ou do imputado; assegurar a presença no processo; garantir a incidência da potestate punitiva, em caso de eventual condenação; assegurar o normal desenvolvimento da atividade das partes e dos sujeitos processuais – depoimento de vítimas, testemunhas, peritos, por exemplo).

Entretanto, mesmo que a Nova Lei de Medidas Cautelares tenha adequado o ordenamento jurídico brasileiro ao que dispõe os diplomas internacionais de proteção aos direitos humanos, tornando mais do que nunca a prisão cautelar uma medida de exceção, a situação da prisão preventiva no Brasil segue extremamente grave, já que a quantidade de presos provisorios é enorme e as condições em que essas pessoas estão segregadas é desumana. Lopes Jr. explicou que, dentre outros fatores, isso ocorre pelo fato de que a prisão preventiva encontra-se inserida na dinâmica da urgência característica da sociedade contemporânea, sendo utilizada muitas vezes para iludir a opinião pública cada vez mais sedenta por segurança. Na concepção do processualista, a imagem da prisão imediata do suspeito, muitas vezes algemado e levado ao cárcere sob o foco das câmeras dos programas de televisão sensacionalistas, provoca uma falsa sensação de justiça instantânea, proporcionando a construção de uma imagem distorcida do sistema repressivo no imaginário social, realidade que contribui sobremaneira para o desvirtuamento e aplicação inadequada da prisão preventiva que, ao invés de ser utilizada como ultima ratio, acaba se tornando regra (2013:44). A continuidade do uso banalizado da prisão preventiva após o advento da Lei 12.403/11 demonstra claramente que o problema não é apenas legislativo, mas cultural, o que indica que a mídia, pelo modo que trata do problema da criminalidade, desepenha papel fundamental para a manutenção desse cenário.

395

4. O INFLUÊNCIA DA MÍDIA NAS DECISÕES JUDICIAS QUE DECRETAM A PRISÃO PREVENTIVA De acordo com Zizek, a variedade predominante da política atual pode ser definida como “biopolítica pós-política”, isto é, uma nova forma de governar que deixa de lado os velhos combates ideológicos para centrar na administração e na gestão especializada de determinados âmbitos da vida. Diante da ausência dos combates de ideologias, o fator que acabou introduzindo paixão e criando um elo entre os indivíduos e o Estado foi o medo, um elemento constituinte fundamental da subjetividade de nossa época. O autor define a “biopolítica pós-política” como uma política do medo baseada na insegurança diante dos mais variados fatores, como, por exemplo, a criminalidade, o terrorismo, os imigrantes, a elevação da carga tributária, as catástrofes ecológicas, entre outros, incluindo a questão do assédio que, de acordo Zizek, é um dos fatores mais interessantes, pois traz à tona uma espécie de novo direito humano central na sociedade capitalista, que consiste no fato de que os indivíduos devem permanecer a uma “distância segura” um dos outros (respeitando a individualidade alheia), o que demonstra o elevado grau de individualismo na sociedade atual (2009:43-44). Além de demonstrar o individualismo do contexto atual, a distância entre indivíduos mencionada por Zizek ilustra muito bem o que ocorre na prática em relação ao trato da criminalidade por parte da sociedade. O indivíduo estigmatizado como criminoso é sempre visto como o “outro” que deve ser mantido distante e, se possível, destruído, seja pela polícia ou pelo seu confinamento em um estabelecimento penal. Ao nosso juízo, a prisão preventiva no Brasil tem justamente servido a esse fim, sendo utilizada pelos magistrados como um instrumento de segurança pública, e não como ultima ratio das medidas cautelares, compreensão que é usualmente fomentada pelos meios de comunicação. A violência nas notícias diárias desinseridas de explicação ou contexto induzem, segundo Dias, sentimentos de insegurança nos indivíduos. O 396

agendamento midiático que alguns jornalistas conferem a determinado caso “(...) são de imediato e facilmente promovidos à categoria de escândalo nacional, introduzindo-se desta forma o medo no quotidiano das pessoas” (2007:41). Contudo, Garland adverte que é equivocado presumir que os eleitores sejam facilmente convencidos e infinitamente maleáveis ao apoio maciço às políticas criminais de lei e ordem, assim como que a mídia possa sustentar ou criar audiência para histórias de crimes sem condições sociais e psicológicas preexistentes (2008:321). Essa é a visão de Lipovetsky (2005:174) que, embora tenha analisado a realidade francesa, se assemelha muito com as nossas peculiaridades sociais. (...) a sensação de insegurança cresce, alimenta-se das menores ocorrências criminais, e isso independentemente das campanhas de intoxicação. A insegurança atual não é uma ideologia, é o correlato inevitável de um indivíduo desestabilizado e desarmado amplificando todos os riscos, obcecado por seus problemas pessoais, exasperado por um sistema repressivo julgado inativo ou clemente “demais”, habituado a ser protegido e traumatizado por uma violência da qual ignora tudo: a insegurança cotidiana resume sob uma forma angustiada a dessubstancialização pós-moderna. O narcisismo, inseparável de um medo endêmico, não se constitui a não ser estabelecendo um “lá fora” exageradamente ameaçador, o que, por sua vez, aumenta a gama dos reflexos individualistas: atos de autodefesa, indiferença para com o outro, aprisionamento na própria casa; enquanto um número considerável de habitantes das grandes metrópoles já se abriga por trás de uma porta blindada e desiste de sair à noite, apenas 6% dos parisienses interfeririam se ouvissem pedidos de socorro à noite.

O individualismo contemporâneo e o sentimento de insegurança social possuem uma relação muito mais próxima do que podemos imaginar. O medo, nesse cenário, desempenha um papel fundamental na produção dessa sensação de insegurança em relação à criminalidade (MÍGUEZ; ISLA, 2010). Já diria Bauman que “(...) a insegurança moderna, em suas variáveis manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos” (2009:16). É esse medo social que faz que vejamos no desconhecido um potencial inimigo a ser evitado ou abatido (DIAS, 2007:10). Os criminosos, sobretudo os traficantes, são vistos como inimigos da sociedade. Em nossa realidade “(...) o medo tem sido utilizado como uma estratégia eficiente de controle, criminalização e brutalização dos pobres, capaz de ampliar e 397

legitimar demandas cada vez maiores por segurança” (BOLDT, 2013:1998). São essas emoções que conferem legitimidade ao processo de governo através da criminalização da pobreza presente em nosso meio social, que possui seu local privilegiado nos decretos de prisão preventiva. Como a dinâmica do medo perpassa todo o meio social, também é possível auferir que essa emoção atinge a percepção de muitos magistrado sobre o crime e a criminalidade. Por esta razão, o constante agendamento de histórias sobre a questão criminal pelos meios de comunicação acaba influenciando, no mínimo inconscientemente, os juízes em suas decisões judiciais. Pode-se notar isso na rotineira utilização de fundamentos que remetem à ordem pública, como a argumentação com base no “clamor social”, na “paz pública”, na “reiteração delitiva”, “na preservação das instituições”, na “credibilidade da justiça”, entre outros (WEDY, 2013). Tratam-se de argumentos fundados em uma retórica vazia que se presta simplesmente a justificar o decisionismo judicial (STRECK, 2011) que pretende assumir as funções típicas dos agentes de segurança pública. A sensação de insegurança faz que vejamos no outro todas as causas dos males sociais e os magistrados não se excluem desta lógica. Sob o domínio do medo e da pressão midiática os juízes buscam dar uma resposta à sociedade sob os problemas da criminalidade e acabam banalizando a utilização da prisão preventiva, que deveria ser a ultima ratio das medidas cautelares, e atuando como se fizesse parte do aparato da segurança pública, ignorando seu papel constitucional de garantidor dos direitos fundamentais. O imaginário coletivo que crê cegamente nos discursos vazios da impunidade, de que ninguém vai preso no país, clama por punições imediatas e não consegue compreender a necessidade da realização do processo para comprovação da culpabilidade do réu, com o devido respeito ao due process of law. A prisão preventiva, nesse cenário, acaba servindo como um dispositivo jurídico-político que antecipa a penalidade e joga apressadamente os acusados nos espaços de exceção que são nossos presídios.

398

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O fenômeno do recrudescimento do sistema penal torna-se cada vez mais evidente através do aumento do número de pessoas encarceradas e sua ineficácia está implícita no fato de que os índices referentes à criminalidade seguem crescendo. Entretanto, a mídia segue influenciando a sociedade brasileira, fazendo com que continue imersa na cultura do medo e exigindo cotidianamente do poder publico uma resposta mais contundente, ou seja, mais policiais nas ruas e mais prisões imediatas. Em suma, a cultura atual baseia-se na utilização do medo social da violência para legitimar políticas autoritárias que enfraquecem a participação cidadã e incentivam cada vez mais o preconceito, a desconfiança e a intolerância que caracterizam a precária sociabilidade das sociedades democráticas atuais (PASTANA, 2009:55). Diante do exposto, concluímos no sentido de que ao fomentar o recrudescimento do controle penal a mídia induz ou mantêm a sociedade, sobretudo os magistrados, a um erro histórico, pois a manutenção ou o recrudescimento do modelo de resolução dos conflitos vigente é incapaz de resolver o problema da criminalidade ou promover a justiça, já que, além das violações de direitos humanos que causa e da criminalidade que faz proliferar, também exclui as vítimas de seus procedimentos. REFERÊNCIAS BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011. BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990. BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. In: BARRETO, João (org.). Walter Benjamin: O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. p. 35-38. 399

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ZIZEK, Slavoj. Violência. Trad: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D'Água, 2009.

402

O DIRETO FUNDAMENTAL À SAÚDE E A REALIDADE NA OBTENÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO Janaína Machado Sturza¹ Luís Fernando Pretto Corrêa² 1. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como interesse principal a exploração acerca da temática sobre o acesso ao Direito à Saúde no sistema prisional, partindo da premissa de que é primordial que se pense no espaço local a partir de uma discussão global, na tentativa de articular e elaborar ações que resolvam ou amenizem situações caóticas vigentes em nossa sociedade. Assim, o Direito à Saúde no Brasil, como aponta a nossa Constituição Federal de 1988, é um direito de todos e um dever do Estado, calcado no art. 196 da Constituição e garantido mediante políticas sociais e econômicas que visam à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Através deste dispositivo legal o termo saúde se constituiu como um direito reconhecido igualmente a todo o povo, além de ser um meio de preservação e de qualidade de vida, sendo este o bem máximo da humanidade. Desta forma, a saúde representa uma preocupação constante na vida de cada cidadão, enquanto elemento fundamental para as necessidades de segurança em vários aspectos do bem viver em comunidade. A complexidade dos aparatos necessários para dar uma resposta a tal preocupação é acrescida com a articulação dos Estados Modernos, muitas vezes de forma desviante em relação ao objetivo originário. A solução para o acesso Doutora em Direito pela Escola Internacional de Doutorado em Direito e Economia Tullio Ascarelli, da Universidade de Roma Tre/Itália. Mestre em Direito, Especialista em Demandas Sociais e Políticas Públicas e Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Professora da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, lecionando na graduação em Direito e no Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos - Mestrado. Professora na graduação em Direito da Faculdade Dom Alberto/Santa Cruz do Sul. Advogada. Contato: [email protected]. ² Acadêmico do curso de Direito pela UNIJUI, Bolsista CNPQ pelo projeto de pesquisa, O direito fundamental à saúde e o princípio da dignidade humana: limites e possibilidades de acesso às políticas públicas de saúde no município de Ijuí/RS, coordenado pela Profª Drª Janaína Machado Sturza. Contato: [email protected]. ¹

403

igualitário ao Direito à Saúde, em parte, é atribuída a setores da política econômica e social de cada país, aliando a isto o esforço conjunto de toda a coletividade representada pela sociedade. Aqui destacam-se as discussões globais em torno de ações locais. Hoje, a saúde é um fundamental direito humano, além de ser também um investimento social. Na medida em que os governos têm o objetivo de melhorar as condições de saúde de todos os cidadãos, é necessário que invistam recursos em políticas públicas de saúde, capazes de garantirem programas efetivos para a sua promoção. Todavia, garantir o acesso igualitário a condições de vida saudável e satisfatória a cada ser humano constitui um princípio fundamental de justiça social e, portanto, exige também uma grande produtividade complexa por parte da sociedade e do Estado, sendo necessária a intensificação dos esforços para coordenar as intervenções econômicas, sociais e sanitárias através de uma ação integrada. Desta forma, para o pleno desenvolvimento de cada pessoa, enquanto membro ativo de uma sociedade democrática e igualitária, é exigido não somente a garantia do acesso universal ao Direito à Saúde, mas também o seu efetivo cumprimento e satisfação, através da ativa intervenção do Estado, na intenção de remover obstáculos e de promover a saúde para todos os seus cidadãos, pois Direito à Saúde é direito à vida, sendo está o bem máximo de cada ser humano. 2. O DIREITO FUNDAMENTAL CONTEMPORÂNEO: direito à saúde Na sociedade contemporânea, a saúde deve ser considerada como um bem de todos, como um direito social necessário à manutenção da vida. Entretanto, o reconhecimento de sua eficácia é um forte argumento colocado em discussão nos dias atuais, principalmente em relação aos “direitos sociais e as externalidades que não podem ser internalizadas na avaliação da saúde enquanto bem econômico”. (DALLARI – 1987. p15) Assim, na tentativa de conceituar o termo saúde, não podemos nos furtar, obrigatoriamente, de usar como ponto de partida o Preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), erigido em 26 de 404

julho de 1946, no qual fica estabelecido que a “Saúde é o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças ou outros agravos.” Neste sentido, em uma visão bastante avançada para a sua época de construção, a OMS expandiu o conceito de saúde historicamente atrelado à prevenção e principalmente à cura, abarcando, essencialmente, a promoção da saúde. Todavia, o tema do Direito à Saúde não era de todo estranho ao nosso Direito Constitucional anterior a 1988, o qual delegava competência à União para legislar sobre defesa e proteção da saúde. Porém, isso tinha sentido de organização administrativa de combate às endemias e epidemias, sendo isto modificado na atual conjuntura, pois com a promulgação da Constituição Cidadã a saúde passou a ser um direito do homem, (SILVA – 2002) assumindo status de grande relevância em nosso ordenamento jurídico. Notadamente, a atual Carta Magna também submete esse direito ao conceito de seguridade social, cujas ações e meios se destinam a assegurar e tornar eficaz o direito à saúde. (SILVA – 2002) Em nosso país, portanto, a saúde foi realmente reconhecida como direito em 1988, com a promulgação da nossa Constituição Federal. Esta Carta proclama a existência do Direito à Saúde como um dos direitos fundamentais da pessoa humana, além de estabelecer a saúde como direito de todos e dever do Estado, organizando a forma e os aspectos do atendimento a ser dado através da criação de um Sistema Único de Saúde (art. 200). (SOBRINHO – 2003) Desta forma, a evolução conduziu à concepção da nossa Constituição Federal de 1988, onde em seu Art. 196 estabelece que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL – 1988). No

Brasil,

o

acesso

ao

Direito

à

Saúde

passou

por

grandes

transformações e, a despeito de muitos obstáculos, opostos por setores sociais privilegiados e retrógrados, tem havido muitos avanços na luta pelo estabelecimento de melhores condições de vida para todos os brasileiros, 405

dentre elas a saúde. Nesta área é possível perceber o evidente progresso, podendo-se considerar superada a concepção estreita e individualista que limitava a saúde exclusivamente ao oferecimento de serviços médico – hospitalares, dos quais somente os mais ricos teriam acesso, sendo que aos pobres restariam a precariedade e ainda como um favor do Estado. (CARVALHO, SANTOS – 1995) Através do princípio de que o direito à saúde é igual à vida de todos os seres humanos, significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais. (SILVA – 2002) Como ocorre com os direitos sociais em geral, o direito à saúde comporta duas vertentes, uma de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado que se abstenha de qualquer ato que prejudique a saúde; outra, de natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas (SILVA – 2002).O Direito à Saúde, a partir do artigo 196, utilizando-se do artigo 197, ambos da Carta Magna, retratam a relevância pública das ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle. Assim, sua execução deve ser feita diretamente ou então através de terceiros, ou ainda, por pessoa física ou jurídica de direito privado. (MORAES – 2001) Na conformidade do artigo 196, o Direito à Saúde, respaldado em tal dispositivo legal, trata-se de um programa a ser atendido pelo Estado, mediante norma de conteúdo programático, através da qual fixam-se vetores maiores que apontam para direções e objetivos a serem atingidos pela ação estatal. (RAMOS – 1995) Sendo assim, o Direito à Saúde trata de um direito positivo, que exige prestações do Estado e que impõe aos entes públicos a realização de determinadas tarefas, de cujo cumprimento depende a própria realização do direito (SILVA – 2002). Nesta esfera decorre um especial direito subjetivo de conteúdo duplo, por um lado, pelo não cumprimento das tarefas estatais para sua efetivação, dá cabimento à ação de inconstitucionalidade por 406

omissão (arts. 102, I, a e 103, § 2º) e, por outro lado, o seu não atendimento, inconcreto, por falta de regulamentação¹, pode abrir pressupostos para a impetração do mandado de injunção (art. 5º, LXXI). A saúde, em nível constitucional e da legislação ordinária, é um bem jurídico tutelado, extensivo a todas as pessoas que estejam sujeitas à ordem jurídica brasileira. É, portanto, intolerável que uma pessoa ou toda a coletividade possa ser ferida nesse direito, sem que as leis brasileiras lhe deem a devida proteção (DIAS – 2001). Assim, é possível reforçar a menção anterior descrevendo que desde o seu preâmbulo a Constituição indica um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e abrangendo, assim, o Direito à Saúde. (PODVAL – 2003) É possível visualizarmos, desta forma, a consciência de cidadania expressa na Constituição, a qual elencou um rol quase exaustivo de direitos e garantias individuais, além, é claro, dos direitos sociais. É neste patamar que se encontra o Direito à Saúde, ou seja, um direito fundamental social de segunda geração (VARGAS – 1997). E, para ratificar tal exposição, podemos citar Dallari, quando diz que “[...] o direito à saúde deve ser assegurado a todas as pessoas de maneira igual [...]”. (1985, p47-60) Portanto, este direito acena como um dos importantes elementos da cidadania, como um direito à promoção da vida das pessoas, pois Direito à Saúde é direito à vida (MORAIS – 1996). Partindo desta análise, a questão do Direito à Saúde é universal, assim como a do acesso igualitário às ações de saúde, estando assegurado constitucionalmente tanto na seção específica

¹Cf.

a Lei 8.080, de 19.09.1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, e regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado, e reafirma que a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado promover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Cf. também a Lei 8.142, de 28.12.1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde – SUS. CARVALHO, Guido Ivan de; SANTOS, Lenir. Sistema único de saúde. Comentários à Lei Orgânica da Saúde 8.080 de 1990 e 8.142 de 1990. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1995.

407

como nas disposições gerais sobre a Seguridade Social. (NETO – 2003) 3.

REFELXÕES

E

APONTAMENTOS

ACERCA

DA

POPULAÇÃO

CARCERÁRIA Discorrendo acerca da historicidade do sistema carcerário brasileiro, na Antiguidade Clássica, temos que daquele que cometesse um crime, era tolhida sua vida. Já na Idade Média, período de verdadeiro poder religioso, as heresias eram punidas com a tortura do infrator. Com o advento do capitalismo, o tempo como mercadoria de que todos dispunham igualmente, passa a ser a base da pena e o cárcere, que até então servia apenas de custódia daqueles que esperavam serem torturados, passa a identificar-se com a própria pena, pois privando o indivíduo de sua liberdade este não poderia dispor de seu tempo. (ALMEIDA, KUBOTA – 2003) Nesta perspectiva, Almeida e Kubotaafirmam que o sistema carcerário vigente corresponde a uma síntese histórica do sistema de penas. O indivíduo quando condenado à prisão, desde logo tem proferida sua sentença de morte social, o que significa, embora não nos moldes das penas draconianas, o sujeito não deixa de ser privado de sua vida. Afora isto, ao ser retirado de seu ambiente social, e inserido numa realidade isolada, com uma cultura própria, qual seja, de violência, maus-tratos, desrespeito, condições precárias de higiene e saúde; tem o indivíduo não somente seu corpo, como também sua mente marcados pela tortura a que é submetido; desta vez, tortura velada, que não está aos olhos do público. (2003, p. 42)

O

fracasso

histórico

do

cárcere

é

inevitavelmente

reconhecido,

principalmente para fins de controle da criminalidade e de reinserção do preso na sociedade, adotando como alternativa a abolição da instituição carcerária e de sua população. (MELLO – 2002) Retomando ainda fatos históricos, a primeira cadeia remonta à época do descobrimento do Brasil, estando esta localizada na praia que leva o mesmo nome, qual seja, Descobrimento. Quanto a sua estrutura, suas paredes possuem um metro e treze centímetros de espessura, as grades que guarnecem as janelas são protegidas por madeira de pau brasil, revestida com barras de ferro. Ainda hoje ela pode ser visitada e está localizada na 408

cidade

baiana

de

Porto

Seguro,

no

Estado

da

Bahia,

posto

que,

naturalmente, não guarda mais população carcerária. (OLIVEIRA – 2001) Nesta conjectura, é indispensável que se faça de cada condenado alguém que esteja em condições de viver tanto quanto possível como se fosse uma pessoa livre. As antigas e atormentadas classificações dos criminosos perdem a importância que se lhes emprestava, pois em última análise, prevalecerá (ou não) o cárcere efetivo, constituído por obstáculos ao exercício da liberdade. (ALEIXO – 2003) É importante, neste momento, que se caracterize o preso, o qual, com base no Direito Penitenciário, é o sujeito de uma relação jurídica com o Estado, que é o outro sujeito. É uma complexa relação jurídica em que há recíprocos direitos e deveres. Entre os direitos e deveres do preso, compondo seu status jurídico de condenado, há os que permanecem, apesar da condenação, e há os que surgem dela. Neste entremeio, deve haver direitos humanos e direitos adquiridos. (MIOTTO – 2001) Perante tal interação, ainda é possível revelar que dos direitos e deveres do Estado e do condenado pode ocorrer descumprimento dos deveres pelo Estado e pelo condenado. A necessidade de certeza do cumprimento do direito exige a atenta observação do princípio da legalidade, o que, por sua vez, subentende a interveniência judicial. (MIOTTO – 2001) Ainda

na

caracterização

do

preso,

as

populações

carcerárias

apresentam-se como resultado final de um processo que implica em perdas nas várias etapas de funcionamento do sistema de Justiça Criminal e, por conseguinte, não se pode, com base no perfil dos prisioneiros, traçar características dos mesmos nesta ou naquela sociedade. (LAMGRUBER – 2001) Através da perspectiva traçada até aqui, a população carcerária, desde os tempos mais remotos, nunca teve direito de espécie alguma. Eram tratados sem dó e sem misericórdia. A partir do final do século XIX e início do século XX começou a surgir uma nova concepção na execução penal e o preso passou a ser encarado como ser que é. (TEIXEIRA – 1992)

409

4. A GRANDE RELEVÂNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE NO SISTEMA PRISIONAL O Direito à Saúde, enquanto típico direito social, implica em prestações positivas do Estado, sendo indiscutível o relevo que a questão assume na execução da pena de prisão, face às graves carências sanitárias que a população carcerária tradicionalmente apresenta. Já na perspectiva dos direitos do recluso, o conteúdo deste direito traduz-se em não ser excluído de prestações estaduais, em virtude da reclusão. (RODRIGUES – 2000) Entretanto, de um outro prisma, a defesa e a promoção da saúde inserem-se na área específica da socialização, justificando a criação de programas especiais que dêem corpo a um dever especial do Estado para com o cidadão encarcerado (RODRIGUES – 2000). Logo, Dallaricontribui neste sentido quando diz que: A saúde é antes de tudo um fim, um objetivo a ser alcançado. Uma “imagem-horizonte” da qual tentamos nos aproximar. É uma busca constante do estado de bem-estar. A saúde seria a possibilidade de a pessoa ter os meios indispensáveis para a sua efetivação enquanto cidadão de direito. (1998, p.59)

Ratificando tal exposição, podemos dizer que as pessoas encarceradas mantêm seu direito fundamental de gozar de boa saúde, tanto física quanto mental, bem como o direito a um padrão de atendimento médico que seja pelo menos equivalente ao prestado na comunidade em geral. Dentro desta esfera, podemos citar o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o qual estabelece no seu artigo 12: “[...] o direito de toda pessoa de desfrutar do mais elevado padrão de saúde física e mental possível [...]”. (COYLE – 2002) Neste sentido, é possível complementar citando o fato de as pessoas encarceradas possuírem, além desses direitos fundamentais de todas as pessoas humanas, salvaguardas adicionais em decorrência de sua condição. Quando um Estado priva as pessoas de sua liberdade, ele assume a responsabilidade de cuidar de sua saúde, tanto em termos das condições nas quais as detêm, quanto em termos do tratamento individual que pode 410

ser necessário devido as circunstâncias. (COYLE – 2000) Hodiernamente não poderíamos deixar de mencionar, dentro do contexto acima, a Lei de Execução Penal, 7.210 de 11 de junho de 1984, a qual representa, uma construção dogmática distanciada da realidade do seu tempo, capaz de humanizar o sistema carcerário. Além disto, ela foi estabelecida rigorosamente nas linhas mestras traçadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), a qual estabelece recomendações para o tratamento dos encarcerados. (TEIXEIRA – 1998) Seguindo este eixo, a Lei 7.210/84 não poderia deixar de abordar o Direito à Saúde do encarcerado, salientando que no cárcere a assistência à saúde é complicada e, na maioria das vezes, é insuficiente. Todavia, saúde é um direito e sendo assim, se o presídio não tiver condições de oferecer esta assistência,

deverá

providenciar

para

oferecimento

das

condições

adequadas, ou, no mínimo, para que o condenado a receba em outro local, devendo ser autorizada sua saída do presídio, a fim de que o mesmo obtenha o tratamento adequado. (JUNIOR – 2003) Respaldando legalmente tal enunciado, existem alguns dispositivos legais da Lei de Execução Penal, como art. 11 e 14.2Neste sentido, podemos dizer que o preso, como qualquer pessoa, é suscetível de contrair doença. Pode ocorrer que, ao ser recolhido ao estabelecimento penal, já apresente perturbação da saúde ou doença física ou mental. É possível, também, que uma doença esteja latente e venha a manifestar-se após a prisão, seja por sua natural evolução, seja porque o ambiente do estabelecimento penal influi, no todo ou em parte, para sua eclosão ou desencadeamento. Entre elas há que se mencionar um possível trauma psicológico provocado pelo primeiro contato com o ambiente prisional, capaz de desencadear doença latente ou provocar estados de perturbação que, evoluindo, venham a transformar o preso em doente mental (MIRABETE – 2002) 2BRASIL.

Lei de Execução Penal n. 7.210, promulgada em 11 de julho de 1984. Art. 11 “A assistência será: I – material; II – à saúde; III – jurídica; III – educacional; IV – social; V – religiosa.” Art. 14 “A assistência à saúde do preso e do internado, de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico. § 1º (vetado). § 2º Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento. ”

411

Existem doenças que podem ser provocadas ou desencadeadas pelas más condições de higiene, alimentação, vestuários, etc, como, por exemplo, as decorrentes de alimentação inadequada qualitativa ou quantitativamente, da falta de atividade física, da subnutrição ou desnutrição. Por fim, existe a possibilidade de doenças cujas causas são independentes das condições carcerárias e as lesões provocadas por acidentes do trabalho prisional ou comuns e pelas agressões sofridas pelo preso dentro do sistema prisional. (MIRABETE – 2002) Não há dúvida de que é fundamental para a vida de uma instituição prisional a existência de serviço médico eficiente e adequadamente equipado para fazer frente às necessidades quotidianas desta população. As Regras Mínimas da ONU preconizam que cada estabelecimento penitenciário deve dispor dos serviços de, pelo menos, um médico, com conhecimento de psiquiatria

e

que

os

serviços

médicos

devem

ter

sua

organização

estreitamente relacionada com a administração geral dos serviços de saúde da comunidade ou da nação, devendo todo o preso poder valer-se dos cuidados de um dentista devidamente habilitado. (MIRABETE – 2002) Nesta abordagem, observamos que existe uma obrigação absoluta por parte do Estado de preservar e, se necessário, restaurar a saúde das pessoas pelas quais ele assume responsabilidade ao priva-las de liberdade. As condições em que as pessoas encarceradas são mantidas terão um grande impacto sobre sua saúde e seu bem-estar. No intuito de cumprir suas responsabilidades,

as

administrações

penitenciárias

devem,

portanto,

assegurar padrões apropriados em todas as áreas que podem afetar a saúde e a higiene dos presos, contribuindo, desta forma, para que as pessoas que não se encontram bem de saúde possam se recuperar, além de prevenir a propagação de infecções às saudáveis. (COYLE – 2002) Hoje, constitui necessidade indeclinável a Administração manter a saúde dos presos e internados e atendê-los em caso de enfermidade, procurando

um

adequado

regime

sanitário

nos

estabelecimentos

penitenciários. A assistência médica compreende dois aspectos, o preventivo e o curativo. O primeiro relaciona-se com as medidas profiláticas, que se traduzem no exame médico a ser efetuado em todo aquele que ingressa no 412

estabelecimento, na inspeção da higiene dos locais, na inspeção da dieta alimentícia e no controle dos presos submetidos a medidas disciplinares. (MIRABETE – 2002) Já o segundo aspecto refere-se à assistência médica diária para o diagnóstico e tratamento dos enfermos da prisão. Dispõem as Regras Mínimas da ONU que o médico deve examinar cada preso, logo após seu recolhimento, quanto antes possível, e que, posteriormente, deverá fazê-lo sempre que seja necessário, tendo principalmente em vista descobrir a possível existência de doença física ou mental e tomar as medidas que se impuserem. Além disso, deve também assegurar a separação dos presos que sejam suspeitos de ser portadores de doenças infecciosas ou contagiosas, revelar as deficiências físicas ou mentais que poderiam ser obstáculo ao reajustamento e determinar a capacidade física de cada preso para o trabalho. (MIRABETE – 2002) Assim, um bom estado de saúde é importante para todos. Isso afeta o modo como as pessoas se comportam e sua capacidade de funcionarem como membros da comunidade. A boa saúde é de particular relevância na comunidade fechada de um presídio. Por sua natureza, a condição de estar preso pode ter um efeito prejudicial para o bem-estar tanto físico quanto mental das pessoas presas. Este, por sua vez, não devem sair do presídio em uma condição pior do que quando entraram, valendo isso também para todos os aspectos da vida na prisão, mas especialmente ao serviço de atendimento à saúde. (COYLE – 2002) Muitas vezes os presos chegam à prisão com problemas de saúde préexistentes que podem ter sido causados por negligência, maus tratos ou pelo estilo de vida pregresso da pessoa. Os presos muitas vezes provêm dos segmentos mais pobres da sociedade e seus problemas de saúde refletirão esse fato. Eles trarão consigo doenças não tratadas, vícios, bem como problemas de saúde mental. Esses presos precisarão de apoio específico, da mesma forma que muitos outros cuja saúde mental pode ser significativa ou adversamente afetada pelo fato de estarem presos. (COYLE – 2002) Sempre que possível, as pessoas presas devem ter pleno acesso aos recursos médicos que estão disponíveis ao público em geral. Na maioria das 413

jurisdições, esse acesso é limitado ao atendimento especializado, enquanto o atendimento médico geral é prestado dentro da unidade prisional individual ou em instalações médico-penitenciárias específicas. Qualquer tratamento médico ou serviço de enfermaria prestado pela administração penitenciária deve ser pelo menos comparável àquele disponível na comunidade externa. (COYLE – 2002) Um importante princípio do atendimento à saúde no contexto penitenciário é que todo atendimento e tratamento médico necessário deve ser prestado gratuitamente. Esse princípio pode exigir atenção especial nas jurisdições onde a prestação gratuita do serviço médico na sociedade civil é limitada. Também pode ser um problema onde há números crescentes de presos cumprindo penas longas e que necessitam de tratamentos caros para doenças complexas ou terminais. (COYLE – 2002) Em 2003, o Ministério da Saúde e o Ministério da Justiça iniciaram a liberação e repasse de recursos do Fundo Nacional de Saúde às unidades federadas que deram início ao processo de implantação de ações e serviços de saúde em unidades prisionais, tendo como base o Plano Nacional de 3

Saúde no Sistema Penitenciário. Todas as unidades federadas com número significativo de presos receberam recursos, por terem dado início à adequação com o padrão federal.

4

Os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Paraná foram contemplados com recursos federais. O Rio Grande do Sul, tradicionalmente deficiente em dotações orçamentárias destinadas a ações de saúde no sistema prisional, deixou de receber importantes recursos federais em função do atraso no início da implantação dos programas e atividades relacionadas à saúde prisional.

5

Desta forma, as pessoas presas, qualquer que seja a natureza de sua transgressão, mantêm todos os direitos fundamentais a que têm direito todas as pessoas humanas, inclusive o direito de gozar dos mais elevados 3O

Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, apesar de ter sido revogado, ainda hoje serve de referência para ações no âmbito da saúde prisional. 4Relatório Azul – Garantias e Violações dos Direitos Humanos, 2002/2003, da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. 5 Idem.

414

padrões de saúde física e mental. (COYLE, 2002) 5. A GLOBALIZAÇÃO E A IMPORTÂNCIA DAS INICIATIVAS LOCAIS O Espaço Local é um processo maior de comunicação e controle social, que surge após avaliações, discussões e articulações em âmbito global. Essa redefinição do espaço local enquanto esfera de menor complexidade contribui para retornar a centralidade ao cidadão, muitas vezes contraposto ao distanciamento da globalização-excludente. Espaço local é um meio de concretização dos princípios constitucionais, porém também com limitações e restrições constitucionais, uma vez que o fortalecimento do poder local pode ser contraditório, mas é, sem dúvida alguma, estratégia de cidadania, manutenção do controle social sobre decisões públicas e concretização da CF. Entretanto, inicialmente, pode-se dizer que o conceito de espaço no nosso desenvolvimento atual está gerando interesse crescente, mas também crescente confusão. Afinal, para onde vão as macrotendências: globalização, blocos, poder local? Entre o "Small is Beautiful" e a "aldeia global", há razões de sobra para discutir-se de forma mais aprofundada ou mais sistematizada o conceito de espaço e a importância que assume no cotidiano da sociedade contemporânea. Nesse sentido: Referimo-nos aqui aos espaços da reprodução social. Na realidade, a simples reprodução do capital, ou reprodução econômica, já não é suficientemente abrangente para refletir os problemas que vivemos, inclusive para entender a própria reprodução do capital. Na linha imprimida pelos sucessivos relatórios sobre Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, o objetivo central do desenvolvimento é o homem, a economia é apenas um meio. Ninguém mais se impressiona com o simples crescimento do PIB, e tornou-se cada vez mais difícil identificar bem-estar humano com o bem-estar das empresas. (DOWBOR – 1995)

O processo de globalização e a informatização dos processos de produção, distribuição e gestão, modificam profundamente a estrutura espacial e social dos espaços locais em todo o planeta. Este é o sentido mais direto da articulação entre o global e o local. Os efeitos sócio espaciais desta 415

articulação variam segundo níveis de desenvolvimento dos países, sua história urbana, sua cultura e suas instituições. (BORJA, CASTELLS – 1997) Nesta abordagem, a globalização traz uma visão simplificada de abertura e unificação dos espaços da reprodução social. Ocorre uma nova hierarquização dos espaços, segundo as diferentes atividades, envolvendo tanto globalização como formação de blocos, fragilização do Estado-nação e surgimento de espaços subnacionais fracionados de diversas formas. A globalização constitui ao mesmo tempo uma tendência dominante neste fim de século, além de uma dinâmica diferenciada na articulação para solucionar problemas contemporâneos. (DOWBOR – 1995) Na formulação de Milton Santos, "o que globaliza separa; é o local que permite a união". Assim, em uma dimensão extremamente prática deste processo, o exemplo cotidiano do dilema da solidariedade é o mais comum na sociedade contemporânea. Não que o ser humano seja menos solidário na atualidade, mas a humanização do desenvolvimento, ou a sua rehumanização, passa pela reconstituição dos espaços comunitários. A própria recuperação

dos

valores

e

a

reconstituição

da

dimensão

ética

do

desenvolvimento exigem que para o ser humano o outro volte a ser um ser humano, um indivíduo, uma pessoa com os seus sorrisos e suas lágrimas. Este processo de reconhecimento do outro não se dá no anonimato e o anonimato se ultrapassa no circuito de conhecidos, na comunidade, no espaço local. (DOWBOR – 1995) Contudo, não é suficiente o alargamento das competências do poder local para que se construa um direito social que permita uma nova e qualificada relação entre o Poder Público e a sociedade. É preciso uma modificação estrutural nas próprias estratégias de gestão do espaço local, a fim de que uma nova interpretação da repartição de competências esteja agregada a um processo de democratização das decisões públicas, evitandose, com isso, que o espaço local seja apenas a repetição, em escala menor, dos processos de legitimação próprios da sociedade de massas, cujas críticas devem ser consideradas nesta (re)ordenação do espaço público. (HERMANY – 2007) Os espaços locais podem abrir uma grande oportunidade para a 416

sociedade retomar as rédeas do seu próprio desenvolvimento. Todavia, não somente as iniciativas locais são suficientes, pois sem sólidas estruturas locais participativas e democratizadas, não há financiamentos externos ou de instituições centrais que produzam resultados. De certa forma, o espaço local está recuperando gradualmente um espaço de decisão direta sobre a "polis",

recuperando

a

dimensão

mais

expressiva

da política

e

da

democracia. (DOWBOR – 1995) Ultrapassando a tradicional dicotomia entre o Estado e a empresa, o público e o privado, surge assim com força o espaço público comunitário, enriquecendo as opções de resolução de problemas. Em outros termos, o espaço local aparece hoje como foco de uma profunda reformulação política no sentido mais amplo, já que o nível local de organização política não substitui transformações nas formas de gestão política que têm de ser levadas a efeito nos níveis do Estado-nação e mundial, mas comunidades fortemente estruturadas podem constituir um lastro de sociedade organizada capaz de viabilizar as transformações necessárias nos níveis mais amplos. (DOWBOR – 1995).Nesta conjuntura: A abordagem do poder local, como espaço privilegiado para a articulação dos atores sociais, também deve ser inserida no contexto da globalização, no qual se devem destacar as questões inerentes à potencialidade do espaço local no exercício do controle social sobre a dinâmica das relações socioeconômicas. (HERMANY – 2007. p. 262)

Ao mesmo tempo em que os problemas locais são decorrentes da estrutura da modernidade do espaço global, devem também integrar-se a estruturas em suas sociedades locais. Nesse sentido, o local e o global se complementam e não são antagônicos. Essa integração social requer mecanismos

políticos

democratizados,

baseados

na

descentralização

administrativa e na participação cidadã. Em verdade, o espaço local pode ser considerado como um importante elemento de garantia da atuação da sociedade civil no contexto de crise do Estado Nacional e de construção de uma economia globalizada capaz de impulsionar ações capazes de sanar dificuldades na resolução dos problemas decorrentes da complexidade e da contemporaneidade da 417

sociedade. Diante disto, o poder local torna-se fundamental para que o novo contexto global coexista com instrumentos de controle social, uma vez que amplia as garantias sociais no paradigma transnacional. Logo, cabe destacar que: São justamente os governos locais os responsáveis pela execução de políticas públicas adequadas para o fortalecimento da qualidade de vida, seja em função da (re) definição de competências constitucionais, seja em virtude da crise de financiamento do Estado Nacional, que o incapacita de atender com efetividade às demandas da população. Tais razões justificam a importância, até paradoxal, do poder local para o desenvolvimento econômico na sociedade globalizada, vinculado ao conceito de qualidade de vida como fator de produtividade e, por conseguinte, de eficiência do sistema produtivo. (HERMANY – 2007. p.263)

Portanto, é necessário que os governos locais assumam seu poder e sejam capazes de firmar sua comunidade e seus interesses acima de suas diferenças de partidos e ideologias. Devem ser capazes de defender seus interesses específicos em relação aos seus respectivos estados nacionais, sem separatismos destrutivos, mas aceitando a necessidade de conflito negociado como forma normal de existência política em um sistema institucional plural. (BORJA, CASTELLS – 1997) 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Não pretendemos, aqui, concluir efetivamente este estudo, mas apenas apresentar algumas considerações acerca de questões observadas ao longo da realização deste artigo, uma vez que a pesquisa é assim, não um estudo definitivo, mas sim uma forma de proporcionar questionamentos, reflexões e alternativas para produzir conhecimento sobre assuntos de direta e fundamental importância para o processo de construção e consolidação de um país fundado no princípio do Estado Democrático de Direito. Desta

forma,

complexidade,

a

sociedade

contingência

e

contemporânea, principalmente

caracterizada

pela

pela

paradoxalidade,

proporciona oportunidades ao indivíduo, porém o limita também. Nunca, em 418

uma sociedade hodierna, houve tantas possibilidades de inclusão, e, consequentemente, nunca se teve tanto “direito a ter direitos”. Todavia, o acesso permanente a estes mecanismos inclusivos, na maioria das vezes, acontece justamente pela exclusão, ou então, pelo não acesso. (VIAL – 2005) É a partir desta perspectiva que podemos pautar nosso estudo, o qual objetivou delinear o acesso ao Direito à Saúde conferido à população prisional, pontuando a importância do espaço global para a resolução de problemas locais. É, pois, de fundamental relevância que se comece a pensar nestas questões, mais especificamente em políticas públicas locais que sejam capazes de proporcionar alternativas e promover mecanismos que realmente, de fato e de direito, possibilitem o acesso ao direito à saúde. Assim, ainda nos dias atuais, o status que o sistema prisional assume na sociedade é o de caráter exclusivamente punitivo, esquecendo que antes de tudo o sistema deve preparar para o “retorno a vida livre”, de forma que este indivíduo possa passar a integrar novamente a sociedade na qualidade de cidadão. Contudo, não buscamos aqui julgar os detentos e seus crimes, tão pouco a falência do sistema carcerário, mas sim conhecer os mecanismos que proporcionam o acesso ao Direito à Saúde, o qual está intimamente ligado à vida. Neste sentido, é justamente no espaço local que a sociedade hodierna irá encontrar alternativas e possibilidades para a atuação em direção à busca de mecanismos de controle social que permitam a “compatibilidade da sociedade de fluxos com a concretização do princípio da cidadania e da dignidade da pessoa humana. ” (HERMANY – 2007) Nos dias de hoje, falar em “acesso ao direito à saúde” é sinônimo de um pensamento que nos remete à ideia de implementação e busca da consolidação dos direitos das pessoas enquanto seres humanos, dignos de exercerem seus direitos e também de cumprirem seus deveres. Nesta conjuntura está o detento, o qual é visto por grande parte da sociedade como “não sujeito de direito” e, portanto, sem direito ao acesso a determinados serviços, como a saúde. Temos, assim, uma sociedade que inclui todos somente porque também é capaz, ao mesmo tempo, de excluir os ditos incluídos. Logo, a diferença 419

entre inclusão e exclusão se refere ao modo pelo qual uma sociedade consente aos indivíduos serem pessoas humanas ou, de uma outra forma, de participarem do sistema universal de comunicação e consequentemente da sociedade, o que significa que o binômio inclusão/exclusão assumem formas diversas nas diferentes etapas evolutivas,(VIAL, CAON, MIETTO – 2004) calcançando também as articulações existentes no espaço local enquanto proposta de ampliação do espaço de controle da sociedade sobre as decisões públicas, ressaltando aqui a concretização dos princípios constitucionais. Finalizando, podemos dizer que o acesso ao Direito à Saúde, no que tange a população prisional, representa não só um desafio, mas também uma perspectiva no direito sanitário enquanto instrumento para políticas públicas de inclusão social no espaço local. Logo, podemos dizer que as questões que envolvem esta população têm dimensões globais, uma vez que abarcam problemas que acometem inúmeros países. Entretanto, a busca de alternativas e mecanismos que solucionem não só a carência de articulações em direção ao acesso ao direito à saúde, mas também toda a problemática do sistema prisional na sociedade contemporânea, está justamente na esfera local, a qual é capaz de construir e desenvolver estratégias de acordo com sua

realidade,

ampliando

a

concretização

dos

direitos

sociais,

essencialmente do princípio da dignidade da pessoa humana. REFERÊNCIAS ALEIXO, Pedro. Sistema penitenciário brasileiro. Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 9, p. 289-299, 2003. ALMEIDA, L. M. de; KUBOTA, P. T. A teoria sistêmica no sistema penitenciário contemporâneo: novas perspectivas de um projeto técnicocorretivo ressocializador. Cadernos do Ministério Público do Paraná, Curitiba, n. 2, p. 41-47, abr./jun. 2003. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Lei de Execução Penal n. 7.210, promulgada em 11 de julho de 1984. 420

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422

A TUTELA DO DIREITO À SAÚDE NO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO Juliana Oliveira Santos1 Marcelo Dias Jaques2 1. INTRODUÇÃO A presente pesquisa possui como tema central a análise do direito fundamental

à

saúde

no

que

concerne,

especialmente,

ao

cenário

atualmente encontrado no sistema prisional brasileiro – observada a legislação específica acerca do assunto –, tendo como pano de fundo o papel do Estado como responsável pela tutela dessa garantia constitucional. Neste contexto, além de se falar em direitos sociais, torna-se importante trazer à luz o fato de que, mesmo privados de liberdade, os cidadãos aprisionados, ou seja, que cumprem pena de detenção, não podem ter cerceados os direitos relativos à sua dignidade previstos na Constituição Federal (CF) de 1988. É o que destaca Schwartz (2003, p. 43) ao mencionar que para efeitos de aplicação do art. 196 da CF/88, a saúde pode ser conceituada como: “um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças”, ao mesmo tempo em que tem por objetivo a melhor qualidade de vida possível, a partir da “aferição da realidade de cada indivíduo”, tendo como “pressuposto de efetivação a possibilidade de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar”. Nesse sentido, ressalta-se a questão da dignidade da pessoa humana, caracterizada por Moraes (2013) como um valor referente à pessoa e que se manifesta individualmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida, além do respeito por parte dos demais. Esse direito deve ser

Bacharel em Direito pela Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ, aluna especial do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. 2 Doutorando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Mestre em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Especialista em Direito Público pela Verbo Jurídico. Bacharel em Direito pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. Bolsista PROSUP/CAPES. 1

423

assegurado de forma efetiva, ainda que a realidade fática apresente limitações, porém sempre resguardando a necessária estima e respeito que todas as pessoas – ainda que em estado de privação de liberdade – merecem enquanto seres humanos. Diante do exposto, através da pesquisa dedutiva e bibliográfica, este artigo visa a analisar a efetividade da atuação do Estado, frente ao Sistema Prisional, na aplicação das leis e Portarias Interministeriais que serão estudadas. Além do que determina a Carta Magna de 1988, busca-se, aqui, o estudo das leis que garantem o acesso à saúde no sistema penitenciário brasileiro, ou seja, a Lei de Execução Penal (n.º 7. 210, de 11 de julho de 1984 – LEP), a Lei Orgânica da Saúde (n.º 8.080 de 19 de setembro de 1990, que contempla o Sistema Único de Saúde – SUS), bem como as Portarias Interministeriais n.º 1.777, de 09 de setembro de 2003, e n.º 1, de 02 de janeiro de 2014. É fato público e notório que o dever de prestação da garantia constitucional de acesso à saúde por todos os indivíduos tem se mostrado uma tarefa hercúlea ao Estado brasileiro, encontrando ainda maiores obstáculos no que tange ao sistema prisional. Para desenvolver este trabalho propôs-se o seguinte problema: Existem políticas públicas implementadas pelo Estado para a garantia do direito de acesso à saúde no âmbito prisional e se são suficientes para cumprir seu mister? Como hipóteses prováveis se apresenta uma assertiva positiva, no sentido de que há políticas estatais empregadas na tutela do direito à saúde realmente efetivas em seu desiderato; entretanto, agora sob o viés negativo, apesar de terem sido editados dispositivos legais em favor da manutenção das condições mínimas de saúde para os indivíduos privados de liberdade, como se verá no decorrer do estudo, as mesmas não apresentam resultados mínimos para satisfazer esse direito fundamental. Por meio deste trabalho acadêmico, espera-se abordar uma temática de relevante importância no cenário brasileiro atual, bem como destacar a importância de ações que garantam o direito à saúde dos apenados e estimular a criação de novas práticas, visando à consolidação do acesso à saúde no sistema penitenciário no Brasil. 424

Assim,

a

partir

da

problemática

apresentada

pelo

Sistema

Penitenciário Brasileiro e da legislação referente ao acesso à saúde no âmbito prisional, bem como a atuação do Estado como garantidor desse direito - fundamento do presente trabalho –, torna-se imprescindível um breve estudo da situação atual do referido sistema. 2.

ABORDAGEM

HISTÓRICA

SOBRE

O

SISTEMA

PRISIONAL

BRAISLEIRO A pena consiste em uma sanção penal de caráter aflitivo, que resulta na restrição ou privação de um direito ao indivíduo considerado culpado pela prática de um ato considerado como infração penal. É aplicada pelo Estado na execução de uma sentença e tem como finalidade a aplicação de uma retribuição punitiva, promover a readaptação social e prevenir novas transgressões através da intimidação dirigida à coletividade3 (CAPEZ, 2014, p. 379-380). O sistema penal, de acordo com o exposto por Zaffaroni e Pierangeli (2002, p. 70) é o que pode ser chamado de “controle social punitivo institucionalizado”. Na prática, isso quer dizer que o mesmo sistema abrange tanto o que se constata como o que se “suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação”. Portanto, pode-se resumir a ideia geral de “sistema penal”, mesmo que em um sentido limitado, compreendendo, além disso, a “atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes, promotores e funcionários e da execução penal” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2002, p. 70). O poder punitivo, ou seja, o poder de aplicar sanções emana do Estado. Assim, o juiz, que representa a figura do Estado, está agindo em nome da sociedade quando aplica a pena em relação a um ilícito penal, São três as teorias que explicam as finalidades da pena: a) a Teoria absoluta ou da retribuição; b) a teoria relativa ou da prevenção; c) a Teoria mista. O Direito Penal brasileiro adota essa terceira teoria, abarcando a dupla função de punir aquele que cometeu o ato ilícito, bem como reeducá-lo e intimidar a coletividade (MASSON, 2014). 3

425

delito este devidamente tipificado no Código Penal brasileiro. De acordo com Mirabete (2013, p. 235), a pena de prisão originou-se nos mosteiros da Idade Média, “como punição imposta aos monges ou clérigos faltosos, fazendo com que se recolhessem as suas celas para se dedicarem, em silêncio, à meditação e se arrependessem da falta cometida, reconciliando-se assim com Deus”. Para o autor, a primeira abordagem prisional tinha como intenção fazer com que o faltoso fosse recolhido para que meditasse sobre os atos cometidos, podendo se reconciliar então com Deus. O mesmo autor relata que no Brasil, no início da colonização as leis que vigoravam eram baseadas nas Ordenações Afonsinas as quais oprimiam de maneira violenta e cruel os crimes cometidos. Mais tarde, vigoraram as Ordenações Manuelinas, porém poucas modificações ocorreram no que diz respeito aos tratamentos cruéis. O sistema jurídico que vigorou durante todo o período do BrasilColônia foi o mesmo que existia em Portugal, ou seja, as Ordenações Reais, compostas pelas Ordenações Afonsinas (1446), Ordenações Manuelinas (1521) e, por último, fruto da união das Ordenações Manuelinas com as leis extravagantes em vigência, as Ordenações Filipinas, que surgiram como resultado do domínio castelhano (PEDROSO, 2004). Conforme Teles (2006), as Ordenações Filipinas foram aplicadas efetivamente no Brasil, sob a administração direta do Reino, com vigência a partir de 1603, findando em 1830 com o advento do Código do Império. A matéria penal estava contida no Livro 5, denominado o “Famigerado” e as penas fundavam-se na crueldade e no terror, distinguindo-se pela dureza das punições. A pena de morte era aplicada com frequência e sua execução realizava-se com a morte pelo fogo até ser reduzido a pó e a morte cruel marcada por tormentos, mutilações, marca de fogo, açoites, penas infamantes, degredos e confiscações. Em 1830 foi promulgado um novo Código Criminal do Império reconhecendo a prisão como forma de punição no Brasil, elaborado a partir das ideias Iluministas da época, com influência da obra “Dos Delitos e das Penas”,

de

Beccaria.

Neste

código

foi

consagrado

o

princípio

da 426

humanização, que resultou na abolição dos açoites, torturas, marca de ferro quente, porém manteve-se a pena capital (CARVALHO FILHO, 2002, p. 38). Segundo o mesmo autor, existia naquela época a pena de prisão com trabalho, pena de prisão simples e pena de prisão celular. Tais espécies eram consideradas desumanas, pois em todas elas o elemento comum era o castigo. A primeira casa prisional no Brasil surgiu em 1830, tendo sido denominada Casa de Correção do Rio de Janeiro e visava representar os avanços em relação às técnicas punitivas que predominavam na época. No entanto, o que veio a ocorrer com o passar do tempo, foi o início de um evidente problema social, sendo que perdura na contemporaneidade, como o aumento da população, a superlotação e a falta de estrutura carcerária (PEDROSO, 2004). Em 1940, foi elaborado o Código Penal e a partir daí, surgiram as penas privativas de liberdade, restritivas de direitos e multa, dando um tratamento individualizado e compatível com o crime ou contravenção cometida, uma vez que o ser humano passou a ter maior proteção jurídica e valorização enquanto pessoa humana, se comparado com outrora. Carvalho (2003) ressalta a relevância de ser tratada a questão carcerária na sociedade brasileira, descrevendo que a realidade dos presídios em todo país é o retrato fiel de uma sociedade desigual e da ausência de uma política setorial séria e estruturada que enfrente a ineficácia do sistema penitenciário. O autor acrescenta que o quadro do sistema penitenciário é caótico, revelando uma “desassistência” generalizada nos presídios, reflexo da ausência de uma política que rompa com o estado de degradação em que se encontram milhares de homens e mulheres presos. Em 1984, com o objetivo de “efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condiçõespara a harmônica integração social docondenado e do internado”surgiu a Lei 7.210, conhecida como Lei de Execuções Penais. Tal lei, juntamente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, trouxe mudanças substanciais quanto à proteção da pessoa humana. Entre 1995 e 2005, a população carcerária do Brasil saltou de pouco 427

mais de 148 mil presos para 361.402, o que representou um crescimento de 143,91% em uma década. A taxa anual de crescimento oscilava entre 10 e 12%4. Segundo dados consolidados pelo Sistema Nacional de Informação Penitenciária, a partir de 2005, já com padrões de indicadores e informatização do processo de coleta de informações, a taxa de crescimento anual caiu para cerca de 5 a 7% ao ano. Entre dezembro de 2005 e dezembro de 2009, a população carcerária aumentou de 361.402 para 473.626, o que representou um crescimento, em quatro anos, de 31,05%, deixando claro através destes dados apontados a deficiência de vagas, juntamente com a problemática da superlotação das casas prisionais. Ocorre que a realidade cada vez mais se distancia da teoria, provocando um abismo vertiginoso entre o plano do dever ser e o plano do ser5. Contendo a quarta maior população carcerária do mundo – apenas atrás dos Estados Unidos, China e Rússia –, atualmente o Brasil possui mais de 607 mil pessoas reclusas a um sistema prisional em estado de superlotação que apresenta déficit superior a 231 mil vagas. São os dados divulgados pelo Ministério da Justiça em 23 de junho de 2015, constantes no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN)6. O encarceramento em celas superlotadas e em condições degradantes e desumanas desvirtua a finalidade da pena – que como foi visto, excede a esfera da mera punição –, sendo manifesto que a realidade atual não permite ao apenado alcançar a ressocialização. Agrava a situação o fato de que a superpopulação e a precariedade das condições dos presídios consistem em Neste período, as informações ainda eram consolidadas de forma lenta, já que não havia um mecanismo padrão para consolidação dos dados, que eram recebidos via fax, ofício ou telefone. 5 Aqui se utiliza a distinção entre o plano do ser e do dever ser proposta por Hans Kelsen em sua obra Teoria pura do direito na qual a conduta humana, o ser, somente assume significação jurídica quando coincide com uma previsão normativa válida, o dever ser. Ao passo que a conduta humana pode se conformar ou contrariar uma norma – o que permite uma valoração da mesma como positiva ou negativa – as normas, por sua vez, são estabelecidas através de atos de vontade humana, possuindo, portanto, valores arbitrários e relativos (KENSEN, 2006). 6 Tal relatório INFOPEN é o documento oficial que contém os dados mais atualizados sobre a matéria. Tomando como data-base o mês de junho de 2014, oferece informações completas para subsidiar administração do Sistema Penitenciário Nacional, sintetizando os dados dos estabelecimentos penais dos estados com o objetivo de contribuir para um diagnóstico da situação prisional do país (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015). 4

428

problemas estruturais e sistêmicos que evidenciam a situação de deficiência crônica do sistema prisional brasileiro, fato que não é exceção, pois está presente em todo o país. Com relação a essas violações, Carvalho (2002, p. 212) ressalta que o fenômeno da inobservância dos direitos da pessoa presa, por parte da administração pública, é uma das realidades mais notórias no país, sendo que inúmeros estudos empíricos demonstram o afirmado. Para Viana (2012), o maior de todos os problemas enfrentados pelo sistema carcerário brasileiro, refere-se à questão da superlotação e que não apresenta uma solução em curto prazo, pois o que existe são várias discussões com vistas a tentar elucidar este problema. Desta forma, pode-se perceber que a prisão torna-se um espaço de punição excessiva, e a exclusão surge através da condição a que os apenados são submetidos. Devido à superlotação das celas e das instalações insalubres, os apenados estão mais predispostos ao contágio de doenças, haja vista não haver um amparo firme acerca deste direito. Schmidt (2003, p. 278) refere que, de modo geral, o preso se encontra em “situação social e jurídica bem mais grave do que qualquer pessoa que viva em liberdade”. Além disso, a restrição da liberdade impede o preso de “satisfazer, pelas próprias possibilidades, as suas necessidades vitais, como a proteção à saúde, de sua segurança”, entre outros aspectos. Como explica Bitencourt (2002), a essência do regime prisional é o fato de possibilitar ao recluso reincorporar-se à sociedade antes do término da condenação. A meta do sistema tem dupla vertente: de um lado pretende constituir um estímulo à boa conduta e à adesão do recluso ao regime aplicado e, de outro, pretende que este regime, em razão da boa disposição anímica do interno, consiga paulatinamente sua reforma moral e a preparação para a futura vida em sociedade. Para Schmidt (2003, p. 280), o ambiente mais “dessocializador possível é o próprio cárcere, já que boa parte das casas prisionais brasileiras não possui condições mínimas de salubridade”. Outro aspecto a ressaltar, segundo o autor, é o índice de doenças como a AIDS, o qual é elevadíssimo, chegando, em alguns locais, a atingir quase 20% dos apenados, além da 429

superlotação que é evidente. Nessa tendência, cabe mencionar de forma mais detalhada a falta de estrutura física, ou seja, as más condições das celas a que os apenados são obrigados a manterem-se durante o cumprimento de suas respectivas penas. Está na Constituição Federal, assim como nas demais leis, que é dever do Estado garantir condições higiênicas, salubres de habitação para os apenados, bem como assegurar que os detentos tenham alimentação e vestuário. Quanto às condições da cela, Schmidt (2003, p. 292) descreve que: [...] o anseio da cela ou do alojamento é um dever imposto muito mais ao Estado do que, propriamente, ao preso. Trata-se da obrigação de assistência material que, segundo dispõe o art. 16 da LEP, consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas. Portanto, antes mesmo de o Estado - e, como tal, também a administração prisional – exigir de apenados os devidos cuidados em relação ao local onde estejam recolhidos, deverá, a bem de verdade, proporcionar condições dignas para que estes mesmos apenados possam, com humanidade, cumprir a reprimenda estatal imposta. Uma vez cumprida tal prestação positiva, aí sim poderá ser exigido do preso que mantenha em boas condições a cela ou alojamento.

Importante, nesse sentido, acrescentar a visão de Mirabette (2002, p. 39) para o qual o Estado tem o direito de executar a pena e os limites desse direito de execução “são traçados pelos termos da sentença condenatória, devendo o sentenciado submeter-se a ela”. Porém, o mesmo autor acrescenta que a esse dever corresponde o direito do condenado de não sofrer, ou seja, de não ter de cumprir outra pena, e que, “eliminados alguns direitos e deveres do preso nos limites exatos dos termos da condenação”, a pena privativa de liberdade de locomoção deve ser executada somente quantos aos aspectos “inerentes a essa liberdade, permanecendo intactos outros tantos direitos”. A inobservância desses direitos significaria a imposição de uma pena suplementar não prevista em lei. Hoje é sabido que a maioria dos delitos praticados traz, em si, não só a responsabilidade de seu autor, como, também, uma responsabilidade social, ou seja, o fato de que a sociedade e o Estado tem uma parcela de culpa pelo crime praticado (CARVALHO, 2002). Diante do exposto e com base na visão dos autores, verifica-se a 430

negligência do Estado brasileiro frente ao Sistema Prisional, mostrando um Sistema falido, que impossibilita a reabilitação de seus custodiados, negando-lhes até mesmo os direitos constitucionais, especialmente os definidos pelo Sistema Único de Saúde, que será destacado a seguir. 3. O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL A saúde no Brasil é um direito constitucional, ou seja, está previsto na Constituição Federal de 1988 em seus artigos 6.º, caput, 196º, caput, bem como no artigo 5.º, caput, quando se lê “direito à vida”. Diante destes dispositivos, torna-se notória a ligação estreita de saúde e direito, ou seja, são dois sistemas inteiramente ligados. De acordo com Sarlet (2010, p. 259), “a existência de normas que se restringem a estabelecer programas, finalidades e tarefas mais ou menos concretas a serem implementadas pelos órgãos estatais e que reclamam uma mediação legislativa (normas programáticas)” correspondem a uma exigência do Estado Social de Direito. O mesmo autor ressalta que a Constituinte de 1988 consagrou uma série de direitos fundamentais sociais e, também, considerou todos os direitos fundamentais como “normas de aplicabilidade imediata”. Alguns direitos fundamentais sociais se enquadram, pela sua estrutura normativa e por sua função, “no grupo dos direitos de defesa, razão pela qual inexistem maiores problemas em considerá-los normas autoaplicáveis” (SARLET, 2010, p. 260). Por sua vez, a Emenda Constitucional n° 20/98 estabeleceu que a lei definirá os critérios de transferência de recursos para o SUS e ações de assistência social da União para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, como também dos Estados para os Municípios, observada a respectiva contrapartida de recursos (CF, 1988, art. 195, §10). A Emenda Constitucional nº. 29 e agora a Lei Complementar nº 141/2012, provocaram alterações relevantes em relação aos gastos das três esferas de governo com a saúde. Teve a intenção de que a participação dos estados e municípios no financiamento da saúde crescesse e que em 431

contrapartida a participação da União caísse (GUIMARÃES, 2012). No caput do artigo 195 da Constituição Federal de 1988 encontram-se implícitos os seguintes princípios: a saúde como direito de todos e dever do Estado; a regionalização e a hierarquização das ações e serviços de saúde; e a unicidade do sistema de saúde. Tais princípios foram desenvolvidos e explicitados na Lei Orgânica da Saúde – LOS. A

Lei

Orgânica

da

Saúde

prevê

que,

além

das

diretrizes

constitucionais, as ações e serviços de saúde, públicos e privados, devem obedecer aos princípios da universalidade de acesso, da integralidade de assistência, da preservação da autonomia das pessoas, da igualdade, do direito à informação, da divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário, da utilização da epidemiologia para o planejamento das ações e da participação da comunidade, conforme previsto no artigo 7º do referido diploma legal. A saúde faz parte do “sistema social sobre o qual nos encontramos, e, se quisermos ir mais adiante, faz parte do sistema da vida – que também é um sistema social. Ela (a saúde) é um sistema dentro de um sistema maior (a vida), e com tal sistema interage” (SCHWARTZ, 2003, p. 37). A Constituição não trata a saúde apenas como a ausência de doenças nos seres humanos, mas sim na ótica da proteção, prevenção e promoção da saúde, preocupando-se não só em tratar os males que podem acometer a população, deixando clara a intenção do Estado em proporcionar digna qualidade de vida aos seus cidadãos, sem distinção. De acordo com Sarlet (2009, p. 325) o direito à saúde é uma “exigência inarredável de qualquer Estado (social ou não) que inclua nos seus valores essenciais a humanidade e a justiça”, ainda que as mesmas sejam limitadas ao estritamente necessário para a proteção humana. Conforme afirma Schwartz (2003, p.160) não resta dúvida que o objetivo maior de nossa sociedade é o respeito à dignidade humana, em que a saúde ocupa lugar de destaque, já que é um princípio fundamental, topograficamente – não por acaso – localizado em posição de privilégio no texto constitucional. Para Sarlet (2010, p. 70), pode-se entender por dignidade da pessoa 432

humana a qualidade que é própria e “distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade”. Esse sentido implica em um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato com sentido degradante e desumano, como contra aqueles que venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável. Ao estabelecer a saúde como direito de todos e dever do Estado (art.196), a Constituição Federal de 1988 inovou, indicando que tipo de saúde deve ser possibilitada aos cidadãos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país. Esse é o sentido das expressões “redução do risco de doenças”, “promoção”, “proteção” e “recuperação”, contidas no dispositivo constitucional anteriormente referido. Quando fala em “recuperação”, a CF/88 está conectada ao que se convencionou chamar de saúde “curativa”; os termos “redução do risco de doença” e “proteção” estão claramente ligados à saúde “preventiva”; e a “promoção” é a qualidade de vida, posteriormente explicada pelo art. 225 da Constituição (DALLARI, 1995 apud SCHWARTZ, 2003, p. 27). Como salienta Sarlet (2010, p. 56-57), a dimensão positiva é o que distingue esses direitos pelo fato de que se cuida não mais de evitar a intervenção do Estado na esfera da liberdade individual, mas sim propiciar um direito de participar do bem-estar social. Não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado. Conforme Sarlet (2010, p. 70), os direitos fundamentais, ao menos de “forma geral, podem ser considerados concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana. O significado último das cláusulas de imutabilidade está em prevenir um processo de erosão da Constituição”. Enfim, são os direitos que propiciam e promovem a participação ativa e co-responsável de cada ser nos destinos da própria existência e da vida com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. Portanto, cabe ressaltar que os apenados ou condenados não perdem 433

seus direitos assegurados pela Constituição Federal e, com isso, o direito ao acesso a uma saúde de qualidade ultrapassa os muros das penitenciárias. 4. A SAÚDE PRISIONAL COMO DEVER DO ESTADO A disciplina constitucional do direito à saúde, perante o modelo federativo de Estado, estabelece ser de competência de todas as pessoas políticas dispor sobre saúde. A saúde no Brasil é dever do Estado e está expressamente prevista no artigo 6.º, caput, da Constituição, bem como no artigo 196, caput, aparecendo ainda no caput, dos artigos 197, 198, 199 e 200, os quais estabelecem políticas públicas referentes à promoção da saúde no Brasil, bem como sua estruturação. Quanto à obrigatoriedade do Estado como garantidor da saúde, Sarlet et al. (2012, p. 77) explica que, consagrado no art.6.º de nossa Constituição, é no art. 196 e seguintes que o direito à saúde encontra sua maior concretização significativa

ao e

nível

normativo-constitucional,

abrangente

regulamentação

para

além

normativa

na

de

uma esfera

infraconstitucional, com destaque para as leis que dispões sobre a organização e benefícios do SUS e o fornecimento de medicamentos. Sarlet (2010) ressalta que os dispositivos relacionados, ou seja, os artigos 196 a 200, no que diz respeito à forma de positivação quanto a uma norma definidora do direito à saúde como direito subjetivo, portanto o mesmo é de titularidade universal. Além disso, o direito à saúde também é previsto em diplomas internacionais, ratificados pelo Brasil: Declaração Universal da ONU, de 1948, no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na Convenção de Direitos da Criança e na Convenção Americana de Direitos Humanos. Assim, ainda que não fosse albergada no texto constitucional brasileiro, em razão da abertura do catálogo dos direitos fundamentais, por força do artigo 5º, § 2º do texto constitucional, este direito já estaria protegido. Nesse sentido, também é relevante o entendimento de Moraes (2013, p. 844) o qual ressalta que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do 434

risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário a ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação, forte no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, sendo de relevância pública as ações e serviços de saúde. Cabe ao Poder Público, nos termos do artigo 197 da Carta Magna, dispor nos termos da lei, sobre a sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou por meio de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Ao ressaltar a relatividade dos direitos e garantias individuais e coletivos, Moraes (2014) afirma que os direitos fundamentais nascem para reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela Constituição, sem, contudo, desconhecerem a subordinação do indivíduo ao Estado, como garantia de que eles operem dentro dos limites impostos pelo direito. Além disso, também há a questão das normas de característica impositiva de deveres e tarefas, já que o art. 196 enuncia que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, além de impor aos poderes públicos uma série de tarefas, tais como a de promover políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, além de estabelecer o acesso universal e igualitário às ações e prestações neste campo (SARLET et al., 2012). De acordo com Sarlet et al. (2012), num segundo momento, a Constituição remete a regulamentação das ações e serviços de saúde ao legislador (art. 197), além de criar e fixar as diretrizes do Sistema Único de Saúde (art. 198), oportunizando a participação (em nível complementar) da iniciativa privada na prestação da assistência à saúde (art. 199), bem como estabelecendo,

conforme

o

art.

200,

em

caráter

exemplificativo,

as

atribuições (nos termos da lei) que competem ao Sistema Único de Saúde. Assim, como está definido na Constituição Federal de 1988 e demais leis relacionadas, o acesso à saúde dentro das penitenciárias brasileiras é de responsabilidade do Estado, tendo em vista que a saúde é entendida como direito de todos, sem distinção, e dever do Estado a sua promoção. Portanto, cabe ao Estado concretizar o direito à vida, especialmente no que diz respeito ao oferecimento de saúde, pois isto parte do próprio texto constitucional e de sua conexão com diversas normas de direitos, uma vez 435

que a forma como a questão foi tratada na Constituição, destinando um capítulo próprio à saúde, demonstra o cuidado com esse bem jurídico. Com efeito, o direito à saúde, por estar intimamente relacionado ao direito à vida, manifesta a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana e também é tratado na Lei de Execução Penal que se aborda na sequência. 5. PORTARIAS INTERMINISTERIAIS ACERCA DA SAÚDE PRISIONAL NO BRASIL Algumas portarias completam a legislação já existente quanto à garantia do acesso à saúde, destacando-se neste artigo a Portaria Interministerial n.º 1.777 de 09 de Setembro de 2003 que aprovou o Plano Nacional de Saúde no Sistema Prisional (PNSSP), constatando-se através dessa portaria, a preocupação do Estado em definir as ações e diretrizes do SUS, no que se refere à necessidade de prover a saúde junto ao sistema carcerário brasileiro. Nesse sentido, a Portaria Interministerial nº 1.777/03 (BRASIL, 2014) no art. 1º, caput, assim estabelece: “Art. 1º- Aprovar o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário [...] destinado a prover a atenção integral à saúde da população prisional confinada em unidades masculinas e femininas, bem como nas psiquiátricas”. Nos parágrafos do mesmo artigo, a Portarianº 1.777/03 define que as ações e serviços decorrentes desse Plano terão por finalidade promover a saúde dessa população e contribuir para o controle e/ou redução dos agravos mais frequentes que a acometem, bem como estabelecer como prioridades para o alcance dessa finalidade. Quanto ao financiamento das ações de saúde no sistema prisional a Portaria Interministerial n.º 1.777 de 09 de Setembro de 2003 prevê no “Art. 4º - Determinar que o financiamento das ações de saúde, no âmbito do Sistema Penitenciário, deverá ser compartilhado entre os órgãos gestores da saúde e da justiça das esferas de governo”. A referida Portaria também ressalta a atuação do Ministério da Justiça como responsável na alocação de recursos para financiamento e aquisição 436

de equipamentos para prover a saúde prisional como se pode verificar no texto contido nos artigos 6º e 7º. Portanto, a partir da análise da Portaria n.º 1.777, observa-se que através da mesma o Estado procurou determinar quais os melhores caminhos para imprimir ações de atendimento à saúde e dignidade dos presos, além de mostrar um caminho que retrata as imensas falhas institucionais existentes no sistema penitenciário brasileiro. Com relação ao tema proposto, também se destaca neste artigo a implementação da Portaria n.º 1, de 02 de janeiro de 2014 que, em linhas gerais, institui a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do SUS, entendendo por pessoas privadas de liberdade no sistema prisional aquelas com idade superior a dezoito anos e que estejam sob a custódia do Estado em caráter provisório ou sentenciados para cumprimento de pena privativa de liberdade ou medida de segurança. Conforme Viana (2012), essa nova tentativa de direcionamento do sistema penitenciário, resulta na confirmação de que um longo caminho ainda necessita ser percorrido. Isso porque, atentar para a realidade de que apenas atualmente ocorreu a preocupação para uma melhor proteção a esse universo, pesa como um atraso em termos de legislação. Portanto, a situação que existe decorre de um sistema ainda falho e que precisa de maneira urgente de maior atenção e cuidados. Outro aspecto a acrescentar é que a adesão dos municípios é facultativa como determina o art. 14 da Portaria n.º 1 de 2014 desde que observados os requisitos elencados no mesmo dispositivo. Em 2003, foi criado o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), com o objetivo de levar aos cárceres o que apenas estava previsto na lei: as ações e serviços de saúde (KOLLING; SILVA e SÁ, 2013). Para os mesmos autores, ainda que antes do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário houvesse ações de saúde nos estabelecimentos penais, o plano nacional promoveu o acesso efetivo, por meio de incentivo financeiro para custeio, e medicamentos de atenção básica, com recursos do 437

Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça, o qual deveria assumir a reforma e a adequação dos espaços físicos de estabelecimentos penais e equipamentos. Os autores também destacam que a dinâmica da atenção à saúde nas unidades prisionais tem sido essencialmente curativa e um pouco preventiva. Predominam, ainda, as consultas e imunizações. Ainda há muito investimento a ser feito para consolidar uma lógica de atenção básica para promoção e preservação da saúde, com orientações acerca de doenças infectocontagiosas. Na tentativa de enfrentamento desse problema, algumas ações do Estado ganharam espaço no cenário, dentre as quais o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. O plano se refere às questões que até então a LEP não enfrentou. A formulação do plano considerou a relevância da caracterização da população penitenciária, diretrizes e estratégias para a consolidação da política de saúde no sistema prisional, regulamentou as questões de financiamento, de recursos humanos, de informação em saúde e as formas de gestão. A portaria que instituiu o plano prevê mecanismos para a plena extensão dos serviços do SUS aos presídios, enfatizando a “atenção básica”, mediante o estabelecimento de ações a serem conduzidas pelos vários níveis de gestão, com a respectiva divisão de responsabilidades. A lógica adotada está fundamentada na ideia de que presídios com mais de 100 presos devem ter permanentemente uma equipe de saúde vinculada ao SUS, trabalhando por 20 horas semanais e destinando-se ao atendimento de 500 presos. Logo, se um presídio tem lotação de 1000 presos, serão necessárias duas equipes naquele mesmo nível de dedicação (BRASIL, 2003). Conforme Kolling; Silva e Sá (2013), dentro da lógica do Plano Nacional de Saúde, no Sistema Penitenciário pode-se destacar que a promoção da cidadania por meio da efetivação do direito à saúde, trata-se de uma política pública intersetorial instituída pela Portaria Interministerial n. 1.777/2003, editada pelos Ministérios da Saúde e da Justiça, com a finalidade de “levar” cidadania para os que estão atrás do “muro”, ou seja, essa política mostra-se como uma ponte e não como mais um muro de isolamento. Ao enfrentar o problema com uma política pública específica, o Estado 438

como garantidor do direito considerou as peculiaridades e necessidades dos que estão submetidos ao Sistema Prisional, dando o primeiro passo para inserir a expectativa de ver o direito à saúde concretizado “do lado de dentro dos muros”. Portanto,

a

partir das

várias

leis e

portarias,

foram

criados

mecanismos para neutralizar ou até eliminar a negligência do Estado quanto aos direitos dos apenados, ou seja, concretizando as necessidades desse segmento social. 6. CONSIDERÇÕES FINAIS Conforme destacado no decorrer da presente pesquisa, a saúde é um direito constitucional que necessita de regulamentação e proteção. Além disso, no ordenamento jurídico brasileiro existem leis que asseguram de forma clara o direito à saúde para todos, mas se verifica que isso não é garantido pelo Estado, como determina a Constituição. Desse modo, ao pensar em saúde sob o olhar jurídico, constata-se uma relevante complexidade, pois apesar de existirem inúmeras legislações que asseguram o direito à saúde no Brasil, a realidade do Sistema prisional não proporciona a efetividade desse direito. . A partir do direito à saúde, este trabalho definiu como objetivo um olhar acerca do acesso à saúde no Sistema Prisional Brasileiro, tendo em vista que mesmo sob os “muros” do Estado, os presos possuem direitos. Porém, esses direitos vêm sendo deturpados, pois, conforme destacado no decorrer deste trabalho, há um desrespeito quanto à aplicação dos artigos da Constituição Federal, que é a lei maior do país, bem como em relação às demais legislações que garantem o direito à saúde, isto é a Lei Orgânica do SUS e Lei de Execução Penal, além de Portarias. Sabe-se que as ações de saúde também no âmbito prisional dependem da ação positiva do Estado, e os recursos disponíveis são insuficientes para atender esta população, já que nem sempre os gastos com os direitos sociais são a prioridade quando é feita a escolha das demandas para custear o acesso à saúde dentro das penitenciárias brasileiras. 439

É fundamental e urgente apresentar soluções a esta problemática para efetivar o direito à saúde do apenado, ou seja, não apenas para amenizar, mas para garantir esse direito a todos e, especialmente, àqueles que se encontram privados de seus direitos básicos. Diante disso, como primeira ação para diminuir a problemática do acesso à saúde no âmbito prisional é necessário concretizar as políticas públicas de saúde, visando efetivar verdadeiramente o disposto na legislação, principalmente o que prevê a Constituição Federal e a implementação do Sistema Único de Saúde. Enfim, diante da problemática generalizada quanto ao Sistema Prisional brasileiro, é preciso pensar em ressocialização e recuperação, proporcionando a garantia à saúde dos apenados, isto é, oferecendo condições salubres, cuidados preventivos, boa alimentação e a promoção efetiva da saúde. REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2002. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: 1988. 23. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2004. _____. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Disponível em: http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1990/8080.htm. Acesso em: maio. 2015. _____. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Sistema Prisional. Disponível em: http://portal.mj.gov. br/main.asp? viewid=%7bd574e9ce-3c7d-437a-a5b622166ad2e896%7d& params=itemid= %7 b364ac56a-de92-4046-b46c6b9cc447b586%7d;&uipartuid=%7b2868ba3c-1c72-4347-be11a26f70f4cb26%7d.Acesso em: 14 de junho de 2015. _____. Lei 7.210 de 1984. Lei de Execuções Penais, 1984. _____. Portaria Interministerial n.º 1.777 de 09 de Setembro de 2003. _____. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. 2014. _____. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL; MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009. Disponível em: 440

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442

ANÁLISE BIOPSCICOSSOCIAL DO USO DE ALGEMAS: CONFLITO ENTRE A LEI E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Fernanda Licéli Lowe1 1. INTRODUÇÃO O presente artigo traz como tema principal a análise biopsicossocial do uso de algemas em conflito com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Devido à agressividade acerca da utilização do objeto, que historicamente foi criado no século XVI, e que hoje, apesar de utilizado mundialmente pelas polícias, no Brasil ainda carece de legislação própria. A partir de aspectos históricos é possível conhecer as particularidades do uso de algemas e do objeto em si, compreender suas características e limitações, bem como o regramento esparso na Constituição Federal de 1988, Código Penal, Código de Processo Penal e Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal. A problemática do uso de algemas calcada estána falta de legislação. A

utilização

do

objeto

entra

em

conflito

com

os

princípios

constitucionais da dignidade da pessoa humana, da integridade física, da presunção de inocência, da legalidade e da proporcionalidade. Na medida em que tem relevante função social, o cumpridor da norma não poderá desfigurar o sentido acerca da gravidade da situação, ignorando direitos ou ultrapassando os limites que a Constituição confere. São estes direitos de defesa que originam a perspectiva clássica de que o Estado é um adversário da população, por falta de qualidade na segurança pública, os cidadãos não observam a face do Estado no sentido de guardião dos direitos públicos. Ainda,atinge-se a esfera do poder de polícia transmitido pelo Estado, envolvendo questões pertinentes ao constrangimento ilegal, uso, abuso e contenção mecânica. Caracterizar o uso de algemas de maneira excepcional, somente para Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Pós Graduanda em Direito Penal e Criminologia pelo Centro Universitário Internacional - UNINTER. Aluna especial do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. 1

443

casos onde há fundado risco e perigo à sociedade, é primordial para garantir a efetividade humanística do princípioda dignidade da pessoa humana. Todavia, a partir de interpretações quanto à aplicabilidade da Carta Magna (subjetivadas no conceito de ser humano e dignidade humana) procura-se superar a inflexibilidade vinculada aodireito penal. Relacionando a subjetividade psicológica e o meio social em que está inserido o indivíduo, aborda-se a utilização do uso de algemas nos aspectos onde o coletivo prepondera sobre o interesse individual. Por outro lado, analisa-se a aplicabilidade do objeto como afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana e os possíveis danos psicológicos oriundos da inserção do autor do delito no sistema criminal. Contudo, o próprio Estado, como garantir da proteção de todos, não pode ser o violador do garantido princípio da dignidade da pessoa humana, devendo o objeto ser utilizado somente quando a necessidade se fizer – na supremacia do interesse público sobre o particular. 2. DESENVOLVIMENTO De acordo com Pitombo (1985, p. 275) “as algemas eram utilizadas para tolher pelos pulsos, ou dedos e polegares, e os grilhões serviam para jungir pelos tornozelos os presos”. Conforme conceitua Maria Helena Diniz (1998, p. 182), “algema é uma pulseira metálica, dotada de fechadura, empregada para prender os braços de uma pessoa pelos punhos, na frente ou atrás do corpo”. Apesar das mudanças de valores, das revoluções que norteiam a História mundial e dos avanços tecnológicos, tradicionalmente, o método de algemar significa punir, castigar e instigar o medo nas civilizações. Há divergência quanto à época do surgimento e utilização de algemas, Fernanda Herbella revela a origem mesopotâmica: A prática de se limitar os movimentos de alguém através da contenção de suas mãos e de seus pés perde-se nas brumas do tempo. Relevos mesopotâmicos já mostravam, 4.000 anos atrás, prisioneiros com mãos atadas. (HERBELLA,2008.p.23)

444

Contudo, a algema traduz na totalidade o bloqueio no agir resumidamente,

é

um

instrumento

persecutório

de

limitação

dos

movimentos físicos. Após períodos sombrios onde a humanidade provou dissabores e atrocidades acerca de punições e métodos de tortura, surge o Iluminismo, comandado por filósofos como Immanuel Kant, Rosseau, Voltaire e John Locke. A ideia é renascentista, transformar radicalmente os ideais, separando a razão e a fé, excluindo conceitos inquisitórios de que Deus é o centro do Universo, abrangendo caráter humanista e individual. Esta caracterização mais humanística consagra o Direito Penal à época, onde o cerne do movimento foi identificar o direito propriamente dito, ou seja, o poder foi transferido da Igreja para o Estado, para que este exercesse o direito através da Lei. De acordo com PITOMBO (1985, p.276), o caráter da prisão e o contexto do uso ilimitado de algemas é difundido para o “uso de necessidade extrema”. Desta forma, novos parâmetros de Lei e direitos do homem consagram este período renovador. Mundialmente o uso de algemas tomou forma “extraordinária”, utilizado somente para casos extremos de periculosidade. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, presume a inocência do indivíduo e o caráter abusivo do uso desenfreado das algemas. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 - Artigo 9ºTodo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei. 2

No Brasil, somente em 1832 há manifestos acerca do tema, fixado em lei com a entrância do Código de Processo Criminal de Primeira Instância do Império do Brasil (BRASIL. Decreto de 23 de maio de 1821). Tal Código dispunha em seu capítulo VI, artigo 180, que “caso o réu não obedecesse e procurasse evadir-se, o executor teria direito de empregar o grau da força necessária para efetuar a prisão; se obedecesse, porém, o uso da força 2www.direitoshumanos.usp.br/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.Acesso

em 30/08/2015.

445

estaria proibido”. Nesta perspectiva, a Lei de 26 de dezembro de 1841, reformadora do Código de Processo Penal, deixou intocado o artigo 180, oriundo do Código de 1832. Somente em 1871 foi promulgada a Lei nº 2033 que veda expressamente “o deslocamento do preso com ferros, algemas ou cordas, salvo em caso de extrema segurança, que deveria ser justificada pelo condutor, sob pena de multa”. A doutrina de MIRABETE (2004. P.834) narra que ainda no período Imperial, quando vigoravam as ordenações filipinas e leis avulsas, o Decreto nº 4.824 de 22-11-1871, consignava expressamente o apenamento daquele representante estatal que utilizasse desnecessariamente, na condução do preso, instrumentos como cordas, algemas ou ferros. Ainda, caracterizando o uso de coerção física a época, ACOSTA (1955.p.93) demonstra que era vedado o emprego de força na efetivação da prisão, salvo o indispensável para conjurar a resistência ou a tentativa de fuga do preso. A Lei n° 7.210 (11 de julho de 1984), que instituiu a Lei de Execução Penal (LEP) no sistema brasileiro, em seu artigo 199 prevê que “o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”. Ou seja, depende de regulamentação complementar para disciplinar seu uso no âmbito nacional. Com efeito, as algemas representam para o Direito Penal, além de um instrumento de força, uma forma de repressão e coerção do Estado, tornando-se, muitas vezes, o símbolo maior de humilhação do homem. Importante ressaltar as sábias lições de NUCCI a respeito do uso da força e algemas: A prisão deve realizar-se sem violência, exceto quando o preso resistir ou tentar fugir. Logo, parece-nos injustificável, ilegal se tratar de presos cuja periculosidade é mínima ou inexistente. Tem-se assistido a autênticos espetáculos de violência (no mínimo moral), por ocasião da realização de prisões de pessoas em geral, disseminando-se o uso das algemas como se esta fosse a regra e não a exceção. Algemar alguém é nítido emprego de força, o que o artigo 284 veda, como regra, para a efetivação da prisão. Enquanto não houver uma disciplina legal a respeito do uso de algemas, deve-se seguir a lei, valendo-se dos grilhões quando o réu, realmente apresentar periculosidade. (NUCCI, 2004. p.47)

446

Acerca da matéria envolvendo o uso de algemas e suas limitações, a legislação brasileira destaca-se nos seguintes embasamentos: 1)Súmula Vinculante nº 11/ Supremo Tribunal Federal (STF) Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. 2) Art. 284 do Código de Processo Penal Brasileiro Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso. 3) Art. 292 do Código de Processo Penal Brasileiro Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas. 4) Art. 234 do Código de Processo Penal Militar O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas. § 1º - O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o artigo 242. § 2º - O recurso ao uso de armas só se justifica quando absolutamente necessário para vencer a resistência ou proteger a incolumidade do executor da prisão ou a de auxiliar seu. 3

Ao interpretar o artigo 284 do Código de Processo Penal, Guilherme de Souza Nucci (2004.p.47) esclarece que o Código de Processo Penal (CPP) impõe “que a prisão seja feita sem violência gratuita e desnecessária, especialmente

quando



aquiescência

do

procurado”.

Entretanto,

especifica, expressamente, que a força pode ser utilizada, no caso de haver resistência ou tentativa de fuga. Assim, após o advento da Súmula nº11, a prática comum de utilização de algemas em ações policiais e judiciais “transmudou-se

para

exceção”,

passando

a

necessitar

de

prévia

fundamentação e/ou justificação expressa. 3www.planalto.gov.br.

Acesso em 30/08/2015.

447

Fernanda Herbella caracteriza a situação conflituosa justificando o uso de algema em algumas situações: De fato, a dignidade não pode ser alvitada pelo poder estatal, quando se enfatiza, em nível mundial, o respeito aos direitos da pessoa humana, tornando inaceitável a conduta abusiva fundada no aspecto negativo do poder de mando. O uso de algemas, contudo, se justifica em alguns casos. O simples ato de algemar, por si só, desde que necessário, justificado e moderado, decorrendo de uma prisão legalmente imposta, nenhum abuso perfaz. (HERBELLA, 2008. p.19)

Considerando

que

a

Constituição

Federal

Brasileira

é

a

lei

fundamental e de maior relevância hierárquica, temos a interpretação dos conceitos do direito penal a partir dos princípios insculpidos na Carta Magna.O equilíbrio deverá ser atingido entre os princípios constitucionais e a aplicação da lei, consubstanciada nos parâmetros de aplicabilidade da função social. Reafirma Fernando Capez a regularidade do sistema penal quando instrumentalizado de acordo com a Constituição Federal de 1988. 1. O Direito Penal brasileiro somente pode ser concebido à luz do perfil constitucional do Estado Democrático de Direito, devendo, portanto, ser um direito penal democrático. 2. Do Estado Democrático de Direito parte um gigantesco tentáculo, a regular todo o sistema penal, que é o princípio da dignidade humana, de modo que toda incriminação contrária ao mesmo é substancialmente inconstitucional. 3. Da dignidade da pessoa humana derivam princípios constitucionais do Direito Penal, cuja função é estabelecer limites à liberdade de seleção típica do legislador, buscando, com isso, uma definição material do crime. 4. Esses contornos tornam o tipo legal uma estrutura bem distinta da concepção meramente descritiva do início do século passado, de modo que o processo de adequação de um fato passa a submeter-se à rígida apreciação axiológica. 5. O legislador no momento de escolher os interesses que merecerão a tutela penal, bem como o operador do direito, no instante em que vai proceder a adequação típica, devem, forçosamente, verificar se o conteúdo do material daquela conduta atenta contra a dignidade da pessoa humana ou os princípios que dela derivam. Em caso positivo, estará manifestada a inconstitucionalidade substancial da norma ou daquele enquadramento, devendo ser exercitada o controle técnico, incompatibilidade vertical com o Texto Magno. 6. A criação do tipo e a adequação concreta da conduta ao tipo devem operar-se em consonância com os princípios constitucionais do Direito Penal,os quais derivam da dignidade humana que, por sua vez, encontra fundamento no Estado Democrático de Direito. (CAPEZ, 2004. p. 013)

Na medida em que tem relevante função social, o cumpridor da 448

norma não poderá desfigurar o sentido acerca da gravidade da situação, ignorando direitos ou ultrapassando os limites que a Constituição confere. São estes direitos de defesa que originam a perspectiva clássica de que o Estado é um adversário da população – pela falta de qualidade na segurança pública os cidadãos não observam a face do Estado no sentido de guardião dos direitos públicos. Neste aspecto, TEPEDINO caracteriza o ser humano e as relações sociais como a alavanca da atividade estatal. A dignidade da pessoa humana torna-se o objetivo central da República, funcionalizando em sua direção a atividade econômica privada, a empresa, a propriedade, as relações de consumo. Trata-se não mais do individualismo do século XVIII, marcado pela supremacia da liberdade individual, mas de um solidarismo inteiramente diverso, em que a autonomia privada e o direito subjetivo são remodelados em função dos objetivos sociais definidos pela Constituição e que, em última análise, voltam-se para o desenvolvimento da personalidade e para a emancipação do homem. (TEPEDINO, 2001. p.500)

No tocante aos direitos humanos, Eurico Bitencourt Neto (2010.p.117) afirma que “situações de fato podem ameaçar a dignidade humana, pelo que o Direito de um Estado fundado na dignidade da pessoa humana deve fornecer meios para que tais situações sejam evitadas e combatidas”. José Almir Pereira da Silva(2008) sobrepõe as garantias fundamentais de dignidade humana e integridade física valorando-as como o topo dos direitos individuais. É cediço que estamos diante de um Estado Democrático de Direito que tutela os direitos e garantias individuais, notadamente a dignidade da pessoa humana, mas não podemos olvidar que o Estado muitas vezes limita temporariamente e moderadamente direitos individuais com escopo de preservar a vida e a integridade da pessoa, sendo que esta limitação temporária de direito individual também visa o direito da coletividade e jamais pode ser considerada como afronta à dignidade da pessoa humana. Ademais, sopesando os direitos tutelados não resta dúvida que a preservação da vida, da integridade física e do bem comum se sobrepõe a todos os outros direitos individuais mencionados alhures. 4

Seguindo a mesma linha, MENDES, COELHO e BRANCO reafirmam o caráter social e positivista da norma jurídica diante do princípio da SILVA, José Almir Pereira. www.academiadedireitomilitar.com 4

Academia

de

Direito

Militar.

Disponível

em:

449

proporcionalidade. Utilizado de ordinário, para aferir a legitimidade das restrições de direitos muito embora possa aplicar-se, também, para dizer do equilíbrio na concessão de poderes, privilégios ou benefícios – o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito,serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico. (MENDES,COELHO,BRANCO,2008. p.120-121)

A presunção de inocência impõe ao Poder Público um dever de tratamento que não pode ser desrespeitado por seus agentes e autoridades, enfatizado pelo Supremo Tribunal Federal: O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL. A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime indigitado como grave, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível - por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) - presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes consequências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.5

Ainda, a proporcionalidade exige a adequação como medida restritiva, a ser invocada de acordo com os fins invocados pela lei. É uma necessidade estar em consonância com o meio para atingir o fim. HERBELLA(2008.p.129) caracteriza que “o objetivo da colocação das algemas não deve ser o de patrocinar constrangimentos e situações vexatórias”. A simples condução de preso algemado não configura crime ou 5

Supremo Tribunal Federal, julgamento HC 95.886/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – STF.

450

abuso, pois não existe o dolo específico de expor ou humilhar. Não resta dúvida de que o agente de autoridade, independentemente de sua natureza, quando procede ao ato de algemar, está exercendo o poder de polícia a ele conferido. Todavia, não se admite a utilização da força além da necessária para efetivar a prisão ou conduzir o detento, sendo que “não se concebe, por exemplo, que, em caso de resistência passiva, o soldado faça uso do cassetete. O que passar do indispensável sujeita o infrator as penas da lei”. O Código de Processo Penal em seu artigo 292 narra que, se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas. Neste sentido completa HERBELLA (2008.p.143) ao solidificar que o “uso

nocivo

das

algemas

provoca

o

estrangulamento

dos

pulsos,

ocasionando enormes danos à saúde(...)”. Julio Fabbrini Mirabete assevera que estão proibidos os maus-tratos e castigos que, por sua crueldade ou conteúdo desumano, degradante, vexatório e humilhante, atentam contra a dignidade da pessoa, sua vida, sua integridade física e moral. Ainda que seja difícil desligar esses direitos dos demais, pois dada sua natureza eles se encontram compreendidos entre os restantes, é possível admiti-los isoladamente, estabelecendo, como faz a lei, as condições para que não sejam afetados. Em todas as dependências penitenciárias, e em todos os momentos e situações, devem ser satisfeitas as necessidades de higiene e segurança de ordem material, bem como as relativas ao tratamento digno da pessoa humana que é o preso.(MIRABETE,2007.p.119)

Posteriormente a Súmula de nº 11/STF é sabido que o ato algemar somente será lícito quando a necessidade se fizer, diante do interesse público sobressaltado à conduta do indivíduo, não observando desvio ou abuso de poder. Destaca HERBELLA (2008.p.122) que, atualmente, “o uso de algemas para o preso deixou de ser regra e passou a ser exceção”. Considerando

que

o

fator

biológico

é

aquele

relacionado

ao

comportamento, o psicológico interligado está com a mente, e, que o meio 451

social refere-se ao ambiente, a Psicologia jurídica designa a utilização de linhas metodológicas e explicativas, objetivadas na compreensão (objetiva e subjetiva) de questões judiciais, envolvendo circunstâncias relacionadas ao sujeito e a Lei. OLIVEIRA (1992.p.31) destaca que a criminologia surge no cenário das ciências humanas, tendo como campo de pesquisa as causas (fatores determinantes) da criminalidade, bem como a personalidade e a conduta do delinquente e a maneira de ressocializá-lo. Segundo Mira y Lopez (2008,p.42), os fatores gerais responsáveis pela relação pessoal em um determinado momento podem ser herdados, mistos ou adquiridos. Os herdados são aqueles que influenciam no comportamento da pessoa, sendo constituição corporal, temperamento e inteligência. Nesta linha, o caráter é considerado de forma mista (corporal e adquirido), pois é tido como um fator morfológico originário na pessoa a partir de um obscuro sentimento de superioridade ou inferioridade física em frente às situações, o que influencia na determinação do seu modo de reagir. Já os últimos são aqueles propriamente adquiridos (referente à nomenclatura) ao longo da vida,

determinados

em

prévia

experiência

de

situações

análogas,

constelação, situação externa atual, tipo médio de reação social (coletiva) e modo de percepção da situação. Desta forma, o comportamento individual reflete os aspectos da conduta social - há em todo momento uma influência recíproca entre o sujeito e seu meio social. A partir do século XX, com as novas adaptações humanísticas do sistema penal, o criminoso passou a ser analisado física e psiquicamente, ou seja, como um ser biopsicológico, que necessita de tratamento. Segundo Bauman (1999,p.130), “a imobilidade forçada, a proibição do movimento é um símbolo poderosíssimo de impotência, de incapacidade e de dor”. SILVA

(2007,p.06-07)

destaca

que

a

frustração

da

sociedade

ocasionada pela não aceitação do indivíduo que busca a construção de uma identidade, pode gerar transtornos mentais graves.Ainda, coloca que a Psicologia Judicial contribui de forma essencial nas decisões dos Tribunais, “trazendo aos autos uma realidade psicológica dos agentes envolvidos que 452

ultrapassa a literalidade da lei, e que de outra forma não chegaria ao conhecimento do julgador”, isto por se tratar de um trabalho que vai além da mera exposição dos fatos, pois é feita uma “análise aprofundada do contexto, incluindo “aspectos conscientes e inconscientes, verbais e não-verbais, autênticos e não-autênticos, individualizados e grupais, que mobilizam os indivíduos às condutas humanas”. Entretanto, acerca da existência da efetividade buscada no direito Penal, nota-se que a perspectiva dos recursos disponíveis para garantir a segurança e a aplicação da norma jurídica são extremamente ilusórios no campo penal. Neste patamar, QUEIROZ atenta sobre a realidade social do direito Penal. Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade, e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade, de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor da necessidade, foi proclamado como a mais alta inspiração do homem comum (...) como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações. (QUEIROZ,2004.p.112)

Diante deste contexto, busca-se por um meio-termo no direito penal

constitucional, entre o uso de algemas e a garantia da segurança pública. O uso de algemas é permitido quando visa prevenir e evitar qualquer situação que leve a um confronto, ao custodiado, seus condutores ou pessoas circundantes. Aqui, olvida guarida também o interesse social, sobressaltado em relação ao individual (no caso de garantia individual constitucional). Com o uso “limitado” de algemas, teoricamente, evita-se uso excessivo e/ou abuso, restringindo os movimentos daquele indivíduo (considerando que só se algemam pessoas que estão indo ou voltando ao cárcere), que represente risco eminente à sociedade. Nesta linha, a prisão aparece como um “mecanismo natural” de defesa. A própria evolução da vida em sociedade, em que os indivíduos se agrupam e fixam tarefas entre si, acabou por dar forma a este sistema de reação contra comportamento “anti-natura”.Considerando que o sistema é responsável pela proteção, segurança e bem-estar de todos os presos, o Estado é o 453

garantidor e responde pelas consequências.A Constituição Federal, em seu artigo

37,§

6º,

faz

referência

aos princípios

constitucionais

que

a

Administração Pública de qualquer um dos poderes deverá obedecer princípio da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. A responsabilidade civil do Estado é objetiva, portanto, os prestadores de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa. O uso de algemas acarreta em choque - entra em conflito com a formação moral inicial, a negação do agir, a punição do ato transforma-se em

repugna,

reprimindo

o

sentimento

em

trauma

psíquico.

As

consequências psicológicas pela separação da família e de outras fontes de sustentação social, a ansiedade pela situação de estar privado de sua liberdade, e o desespero pelo desconhecimento do futuro são alguns dos fatores de vulnerabilidade. Estes fatores também podem ser condições desencadeadoras de doenças mentais e de comportamento suicida. A partir desta indecisão pendular no que tange ao controle de disciplina das classes populares x elites burguesas, onde há preexistente o fato de alguns cidadãos “apresentar conduta mais suspeita” do que outro, pelo simples fato de fazer parte de “classes perigosas e pobres”, há um Estado Democrático alicerçado nos padrões coloniais da escravatura.

GOFFMAN (1992,p.10) faz uma análise da perspectiva do indivíduo, quando da sua inserção nessa microssociedade. Descrevendo todo o processo doloroso que o sujeito sofre, de forma a poder adaptar-se ao novo mundo em que se vê inserido. Em alguns estabelecimentos prisionais, os presos passam por um processo intenso de despojamento do eu, logo no momento da sua entrada. Exemplificando: no ritual de banho; mudança de roupa; raspagem do cabelo; afastamento de seus objetos materiais; distribuição de um número identificador. Todos estes “processos de admissão”

parecem

pensados

para

despir

o

indivíduo

do

seu

eu

identificador.A cultura imposta no país possui ainda características coloniais, da realeza e escravidão, onde o direito social-penal é apenas um “pano de fundo” para o pouco exercício democrático da lei.Sobre o sistema 454

penal e a prevista função social (des)igualitária, enfatiza o autor Nilo Batista: [...] o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade o seu funcionamento é seletivo, atingindo determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas. [...] O sistema penal é também apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade, quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais, legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a dignidade da pessoa humana, quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela.

No meio social, kuntamente à família o indivíduo vai sendo regrado, na infância e na fase adolescente, consolidando seu caráter embasado nos princípios básicos que regem toda a formação estrutural da moral e ética do meio em que vive. É evidente que o coexistir implica em conflitos, na interação e nas relações decorrentes da convivência em sociedade há bloqueios e atritos entre as pessoas. A partir destes conflitos, fala-se em um tripé de suporte do controle social, um sistema institucionalizado que freia os comportamentos do indivíduo, preservando a tutela e ordem social, de maneira adequada, porém, muitas vezes enérgica. Neste âmbito, salienta Altoé sobre questões tratadas sobre outro prisma, envolvendo a Psicologia e o Direito, exigindo maior sensibilidade para captar as sensações e intenções do indivíduo. As questões humanas tratadas no âmbito do Direito e do judiciário são das mais complexas. (...) E o que está em questão é como as leis que regem o convívio dos homens e das mulheres de uma dada sociedade podem facilitar a resolução de conflitos. Aqueles que têm alguma experiência na área se dão conta que as questões não são meramente burocráticas ou processuais. Elas revelam situações delicadas, difíceis e dolorosas. A título de exemplo vejamos alguns dos motivos pelos quais as pessoas recorrem ao judiciário: pais que disputam a guarda de seus filhos ou que reivindicam direito de visitação, pois não conseguem fazer um acordo amigável com o pai ou a mãe de seu filho; maus-tratos e violência sexual contra criança, praticado por um dos pais ou pelo(a) companheiro(a) deste; casais que anseiam adotar uma criança por terem dificuldades de gerar filhos; pais que adotam e não ficam satisfeitos com o comportamento da criança e a devolvem ao Juizado; jovens que se envolvem com drogas/tráfico, ou, passam a ter outros comportamentos que

455

transgridem a lei, e seus pais não sabem como fazer para ajudá-los uma vez que não contam com o apoio de outras instituições do Estado (de educação e de saúde, por exemplo).A subjetividade é a síntese singular e individual que cada um de nós vai construindo conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando as experiências da vida social e cultural; é uma síntese que nos identifica, de um lado, por ser única, e nos iguala, de outro lado na medida em que os elementos que a constituem são experienciados no campo comum da objetividade social. Esta síntese – a subjetividade - é o mundo de ideias, significados e emoções construído internamente pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais" (BOCK; FURTADO e TEIXEIRA, 1999, p. 23)

Diante deste raciocínio, o uso de algemas está coadunado ao psicológico

individual

e

cabe

aos

Tribunais

utilizar-se

da

técnica

psicojurídica de forma auxiliadora na tomada de decisões. Calcando as decisões jurisprudenciais de forma humanitária, a partir de uma aplicação mais digna e segura do jus puniendi, cumprindo a função penal social estabelecida pela Constituição brasileira e pactos/tratados internacionais. Assim, o sistema penal é uma espécie de controle social. Neste patamar, a interpretação das sensações humanas está dimensionada na busca da verdade real, tão requisitada pelos Tribunais. Baseado no agir e nas emoções pessoais atinge-se o potencial juridicamente calcado na efetividade da decisão jurisdicional. José Almir Pereira da Silva (2014) aponta que é impossível saber a priori a reação do indivíduo que está sendo algemado. [...] não somos capazes de mensurar a possibilidade de reação daquele que se encontra em situação de aprisionamento, pois aquele que se sente acuado, prestes a ser conduzidos à prisão pode abruptamente oferecer resistência, por mais pacífico que seja ou se encontrem visto que a reação humana é imprevisível. [...] Sabemos que não existe mais possibilidade de mensurar o que é “bom ou mau”, “pacífico ou agressor”, o dito “normal e o psicopata”. A aparência física, o poder econômico e a crença religiosa não mais podem ser utilizadas como limitadores de ação ou reação, todos são passíveis de esboçar uma inopinada reação diante de uma prisão legal ou não.

Analisando profundamente a conduta de maneira psíquica, busca-se o fato gerador da causa do delito prescrito em lei. Uma vez afastados tanto excessos quanto déficits de proteção,

456

atingimos a finalidade do sistema de proteção dos direitos fundamentais: uma proteção eficiente (enquanto não suficiente e não excessiva). Logicamente, entre esses pontos extremos (limites máximo de intervenção e mínimo de proteção) existe um elevado espaço de liberdade de configuração do legislador, dentro do qual a solução não é constitucionalmente pré-determinada, e cujo preenchimento, por essa razão, é deixado ao plano da legislação. (FELDENS,2012.p.168)

Como antítese ao exposto anteriormente, a alternativa analisada por BECCARIA idealiza buscar meios de prevenção ao crime. É preferível prevenir os delitos a ter de puni-los; e todo legislador sábio deve antes procurar impedir o mal que recuperá-lo, pois uma boa legislação não é mais do que a arte de proporcionar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência. Contudo, os processos até hoje utilizados são geralmente insuficientes e contrários à finalidade que se propõem. (BECCARIA, 2007.p.49)

Desta forma, GRECO (2006,p.720) caracteriza que a conduta em desconformidade com a norma deve ser esperada em seus aspectos fundamentais, implicando que “cada pessoa terá consciência de que os demais

se

comportarão

de

acordo

com

a

norma,

sem

infringi-la,

principalmente, porque a norma precisa de certa confirmação cognitiva para converter-se em real”. Isso demonstra que, a norma em si é promessa vazia, pois na realidade, já não oferece a segurança social necessária. Neste cenário, a constituição deve continuar a ser a “reserva de justiça” para os sistemas políticos e jurisdicionais, onde a legitimidade do constituinte não é mera posse de poder, mas a conformidade do julgamento do ato através das “ideias de justiça” radicadas na sociedade. FIGUEIREDO (2006.p.564-565) preceitua que “é preciso valorizar o caráter normativo da Constituição, assegurando aos seus preceitos de eficácia jurídica e social. (...) Para o futuro do mundo econômico e social parece indispensável combinar o conceito de Estado constitucional com a solidariedade”. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme se demonstrou ao longo do estudo, não há normatização própria acerca do uso de algemas, especificidades ou limitações. O 457

cumpridor da norma baseia-se no Código de Direito Processual Penal, na Súmula Vinculante nº11 do Supremo Tribunal Federal e nos princípios calcificados na Constituição Federal Brasileira. Entretanto, há um misto diversificado de situações que não são abordadas nestas legislações, o que ocasiona a falha no sistema garantidor. São estas “falhas de segurança” por parte do Estado que originam a perspectiva clássica de que este é um adversário da população, por falta de qualidade ao atuar no papel de guardião de direitos públicos. Tanto o acusado (individual) quanto os cidadãos (coletivo) mostram-se insatisfeitos com o funcionamento do sistema penal. Essa insatisfação é derivada das vicissitudes do sistema, que não raras vezes, falha nas prestações positivas em relação à criminalidade. O medo propaga-se muito além do alcance garantidor de segurança do Estado, resultando em incertezas e preconceitos sociais, apontando classes e raças como causadoras da criminalidade. No âmbito psicossocial, além do acusado, o ambiente familiar também é atingido. Os traços psicológicos e características pessoais são modificados após a inserção do autor do delito no sistema criminal. Outrossim, o objetivo de salvaguardar a liberdade individual entra em conflito com o ato antijurídico,

pois

aquele

que

sofre

a

aplicabilidade

da

lei,

é

discriminatoriamente banalizado na sociedade, designado de forma distinta e personalizado na figura do criminoso. Relativamente a estas variações, analisa-se que o sistema penal constitucional não atende a perspectiva inicial da função social, que é o caráter humanitário. Diante do contexto punitivo do objeto, SILVA resume a finalidade (correta) do uso de algemas quando destaca que “estamos diante de um Estado Democrático de Direito que tutela os direitos e garantias individuais, notadamente a dignidade da pessoa humana”. Salienta ainda, que o Estado poderá limitar temporariamente e moderadamente os direitos individuais sem afrontar a dignidade da pessoa humana, em casos excepcionais onde há o escopo de preservar a vida e a integridade da pessoa (indivíduo ou coletivo). Desta forma, a “preservação da vida, da integridade física e do bem comum se sobrepõe a todos os outros direitos individuais mencionados 458

alhures”. REFERÊNCIAS ACOSTA, Walter. O processo penal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1955. p. 93. BECCARIA, Cesare. Dei Delitti e Delle Pene.1764. Traduzido pela editora Martn Claret. São Paulo: 2007. BITENCOURT, César Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2002. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2004. DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, v. 1, 1998. FELDENS, Luciano. Direito Fundamentais e Direito Penal, a Constituição Penal. 2ª edição, livraria do advogado. 2012. GRECO, Alessandra Orcesi Pedro e outros. Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais: Visão luso-brasileira. São Paulo. Editora Quartier Latin do Brasil. 1ª edição. 2006. HERBELLA, Fernanda. Algemas e a dignidade da pessoa humana: fundamentos jurídicos do uso de algemas. São Paulo: Lex, 2008. MARCELO FIGUEIREDO e outros. Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais: Visão luso-brasileira. São Paulo. Editora Quartier Latin do Brasil. 1ª edição. 2006. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2007. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: comentários à Lei nº 7.210, de 11-07-1984. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. MIRA Y LOPEZ, E. Manual de Psicologia Jurídica. 2. ed. São Paulo: MIRA Y LOPEZ, E. Manual de Psicologia Jurídica. 2. ed. São Paulo: Impactus, 2008. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 3ª. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. NETO, Eurico Bitencourt. O direito ao mínimo para uma existência digna. 459

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. OLIVEIRA, F. A. de. Manual de Criminologia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1992. PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Emprego de algemas - notas em prol de sua regulamentação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 592, fev. 1985. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. SILVA, Denise Maria Perissini da. Psicologia Jurídica, uma ciência em expansão. Psique Especial Ciência & Vida, São Paulo, ano I, no. 5.  Sites: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1002.htm http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=12 20 SILVA, José Almir Pereira da. O uso de algema: Estado Democrático de Direito ou Estado de politicagem. Academia de Direito Militar. Disponível em: . Acesso em: 30/08/2015. http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores%C3%A0 cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5esat%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html

460

O PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO E O PODER JUDICIAL DE VALORAÇÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO1 Gabriel Maçalai2 Patrícia Borges Moura 3 1. INTRODUÇÃO A questão da laicidade do Estado não é nova. No entanto, a simples menção ao Estado atual, “divorciado” de uma religião oficial, precisa nos guiar para a análise de sua origem e motivos. Remete-nos para o período Medieval, quando a falência da estrutura estatal anterior deu lugar para a Igreja, que serviu de estrutura para a sociedade. Tão logo, a Igreja passou a controlar e influenciar o Estado, em todas as suas esferas. Tal evento fez com que o Estado se torna cristão, e como o Direito acompanha a sociedade em suas mudanças, tornou-se canônico também. Assim, nesta esfera o Direito Penal passa ser dominado pelas práticas inquisitórias, pelos crimes religiosos (pecados) e pela infringência do que hoje tratamos como Direitos Humanos. Nesse contexto, o presente artigo visa a entender a dimensão do princípio de secularização (abandono da religião) na seara penal, e como tal princípio tem se manifestado em nosso ordenamento jurídico. Para tal, através do método hipotético-dedutivo, analisamos os sistemas processuais inquisitivo

e

acusatório,

numa

breve

digressão

histórica,

para

a

compreensão do processo de secularização propriamente dito e sua relação com o poder judicial de valoração da prova no Brasil.

Pesquisa livre realizada durante o Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUI. 2 Bacharel em Teologia (UNICESUMAR), Bacharelando em Direito (UNIJUI) e Licenciando em Filosofia (FAERPI). Pós-graduando lato sensu dos cursos de especialização em Ciências da Religião, Direito Eleitoral e Direito Tributário (FAVENI). E-mail: [email protected] ou [email protected]. 3 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (UFSM). Especialista em Direito Público (UNIJUÍ). Mestre em Direito (UNISINOS). Professora do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ. Email: [email protected]. 1

461

2. DO SISTEMA INQUISITIVO AO ACUSATÓRIO: breve resgate histórico A História deixa evidentes as transformações pelas quais a sociedade passou, com especial destaque à transição do Estado moderno ao contemporâneo. O destaque especial se deve ao fato de que, para o recorte do tema a ser enfrentado, importa a compreensão da organização política da sociedade civil ocidental, com as diversas nuances de Estado, até culminar no Estado democrático de direito, como aconteceu em muitos países, cujos sistemas jurídicos foram bastante influenciados por países da Europa continental. Juntamente com cada mudança que os povos enfrentaram em sua construção, o Direito se modificou, com a intenção de se adequar às novas situações que se apresentaram. Neste sentido, é possível verificar que o Direito Penal, a Criminologia e as políticas criminais igualmente se alteraram, ainda que não necessariamente em um mesmo ritmo ou sintonia. Desde sempre, a sistematização das normas na seara penal foi-se moldando às respostas esperadas pela sociedade à criminalidade em cada época, com períodos

de

maior

repressão,

dosados,

eventualmente,

com

uma

preocupação mais humanista da punição. Nesse contexto, é importante compreender o papel do processo penal, cujas normas e princípios são estabelecidos a partir da resposta esperada, frente “às exigências do Direito Penal e do Estado” em cada época (LOPES JR., 2008, p. 55). Isto, considerando-se o viés prático do Direito Processual Penal, pois que permite que o direito material torne-se concreto (LOPES JR., 2010), a estabelecer “o modo de resolver as questões penais”. (PRADO, 2006, p. 65). E mais que isto, principalmente pensando o processo penal, na contemporaneidade,

em

especial

nas

sociedades

democráticas,

que

consagraram o princípio da necessidade do processo em relação à pena, e a partir dele incorporaram em seu texto constitucional uma série de princípios garantidores do direito à liberdade individual, pois é natural que haja uma afinidade entre as normas penais e processuais penais, bem como entre elas e a Constituição, já que tanto o Direito Penal como o Direito Processual são instrumentos do poder de penar do Estado, “empregados como forma de 462

controle social”. (THUMS, 2006, p. 175). Portanto, na História do Direito, assim como a luta pela liberdade é uma constante e um marco na assunção de novos modelos, mais ou menos repressivos, a ideia de sistematizar “as regras do jogo” na esfera penal, o que significa identificar o método aplicável para a solução dos casos penais, merece ser contextualizada no espaço e no tempo. Ou seja, o modelo é variável, de acordo com a “opção” de cada nação. (PRADO, 2006, p. 65). Em vários períodos, o processo penal alternou-se pelos diversos sistemas criminais existentes. Em um primeiro momento, seguia-se o sistema acusatório, surgido na Alta República romana, e que perdurou em boa parte da Europa Ocidental até meados do Séc. XII (THUMS, 2006), num momento em que o Direito não fazia diferenciação entre ilícitos penais e civis, mas sim entre crimes públicos (contra o Estado) e crimes privados, o que fazia o processo penal ter um caráter igualmente privado (DI GESU, 2010). O processo, neste sistema, era marcado pela passividade do julgador. A iniciativa do processo cabia às partes, a acusação então era feita por um “órgão distinto do juiz, não pertencente ao Estado, senão a um representante voluntário da coletividade (accusator)” (LOPES JR., 2010, p. 153), adotandose o princípio do ne procedat iudex ex officio (o juiz não pode agir de ofício, sem provocação), sendo vedada a acusação anônima ou sem acusador legítimo. Era o momento, também, para aqueles que queriam se destacar na sociedade, e lutar por cargos políticos, visto que o processo era o meio para apresentações orais e publicidade dos que ali se expressavam. Estava, no entanto, a acusação restrita a “falar” a verdade, sob pena de enquadramento no crime de denunciação caluniosa, o que, geraria um processo e posterior condenação. A produção das provas não podia ser originada da vontade ou discricionariedade do juiz, estando ele restrito à produção precária ou às provas defeituosas ou insuficientes que se lhe fossem apresentadas durante a instrução processual. E a sentença era marcada pela oralidade, em sua manifestação pelo juiz (DI GESU, 2010). No entanto, com o surgimento do Império Romano por volta de 27 a. 463

C. (UFCG, 2015), o processo acusatório tornou-se insuficiente para repreender os novos delitos que se mostravam e, também, a produção de provas estava condicionada ao sentimento de vingança da parte que a produzisse provas que não condiziam com a verdade, mas tendenciosas. Assim, muitos juízes passaram a intervir cada vez mais na produção das provas, de forma que concentravam em si mesmos as funções de persecução criminal com a de julgador, passando a agir de ofício, sem uma acusação formal. Tal situação, por fim, fez com que a publicidade dos atos processuais que imperava no início, fosse substituída, gradativamente, por atos secretos. As sentenças, lidas em público anteriormente em grandes tribunais, passaram a ser escritas e lidas apenas em audiências restritas. Essas características apontam, conforme Lopes Jr. (2010), para o princípio do sistema inquisitório. Nesse contexto, o modelo inquisitorial foi substituindo o acusatório aos poucos, a partir do século XII, na França, em razão do poderio da Igreja Católica, e imperou por mais de seis séculos em toda a Europa continental, tendo sido derrotado por movimentos sociais e políticos, inspirados pelos ideais iluministas, ao que parte da doutrina reconhece na Revolução Francesa de 1789 um marco importante para essa ruptura. (THUMS, 2006). O sistema inquisitivo distingue-se do acusatório em especial pelo acúmulo de funções do juiz, que atua na obtenção produção de provas e no julgamento do processo. Mais que isso, o processo no sistema inquisitorial é plenamente enquadrado posteriormente nos Estados absolutistas, em que todos os poderes estão concentrados na figura do soberano. Neste modelo, portanto, não importam os meios a serem utilizados para a obtenção da prova. Importa que ela seja obtida. Na verdade, a prova não servia para convencer o juiz, mas sim para fundamentar a decisão já previamente tomada pelo julgador/inquisidor. Neste sentido, Thums (2006, p.202) explica que a posição do acusado é reduzida a um “mero objeto”, não gozando de garantias ou direitos, pois “a prova pode ser obtida por qualquer meio, ainda que cruel. A ideia é de repressão máxima a quem infringiu a lei, por isso a ação penal é desencadeada pelo próprio julgador”. E prossegue dizendo que “o objetivo é a 464

busca da verdade a qualquer custo”. Aí, tem-se a origem do mito da busca da verdade real e completa pelo processo penal. Essa é uma característica importante do modelo em análise, porque a partir dela identifica-se o quanto a imparcialidade do julgador é afetada, pois o modo de gestão da prova, conduzido por um juiz inquisidor, que investiga e acusa, para então julgar, que dá maior importância aos fins do que aos meios, e que busca a verdade “a qualquer custo”, reduz o acusado a mero objeto no processo, negando sua condição de sujeito de direitos, como referido. Tanto é assim que uma das provas mais importantes nesse sistema era a confissão. Uma vez fosse o réu confesso, em alguns casos punha-se fim ao processo, pois “o resto eram os modos de se confirmar aquilo que a razão já havia projetado” (COUTINHO, 2010, p. 4). E, para tanto, a tortura, inclusive física, era um meio legítimo para a obtenção de prova nos Tribunais da Santa Inquisição. Nesse particular, a doutrina tece uma crítica importante ao processo inquisitório, em especial no uso da tortura para obtenção da confissão, a qual se tornou a “rainha das provas”. Ora, se a figura do julgador se confunde antes com a do acusador, significa que o juiz já parte de uma “verdade” detida pelo réu, tido como um “pecador”, e o que precisa é tão somente dele “extraí-la”. Nessa condição, o objeto da investigação não se resume mais apenas ao crime, mas antes ao réu. (COUTINHO, 2010, p. 4; MARQUES, 1980). Referido sistema foi, então, aprimorado pelo Direito Romano, para servir aos interesses do Direito Canônico no século XIII. Neste período, a Igreja Católica expande sua influência, tornando-se a religião estatal em muitas nações. (THUMS, 2006). O domínio da Igreja Romana à época fazia com que o direito secular fosse o mesmo que o direito canônico, visto que os delitos eram os mesmos, os procedimentos processuais também. Na verdade, neste período, com a queda do Império Romano, a sociedade precisou de uma estrutura para se organizar e a estrutura capaz e disponível era a Igreja Católica, a única cristã. Tão logo, a Igreja serviu de base e sustentáculo para a sociedade, porém, passou a se exceder em suas funções, dominando questões que, 465

noutros tempos, não eram e não vieram a ser suas. (BEDIN, 2013). Assim, o processo penal passou a ser “cristão”, e os crimes religiosos passaram a ganhar punições estatais. Neste sentido, Thums (2006, p.202) afirma que A evolução do sistema inquisitorial no direito canônico, que se tornou regra das justiças eclesiásticas, afeta diretamente as justiças seculares. Essa situação decorre da promiscuidade entre o direito comum e o canônico, na medida em que grande parte dos delitos comuns também é delito religioso e também porque não há separação entre deito e pecado. Assim, o direito canônico vale-se dos princípios do sistema inquisitivo e aprimora os procedimentos processuais adequados à época aos tipos ilícitos que busca punir.

Segue o autor, dizendo que no modelo inquisitorial os direitos e garantias referentes à defesa do acusado não eram observados. Tal fato é acentuado, quando se percebe o poderio que a Igreja Romana detinha durante a Santa Inquisição ou Inquisição do Santo Oficio, que se desenvolveu de forma paralela à Justiça da época, em um período que ficou conhecido como “Idade das Trevas”, o medievo, já que o sistema inquisitivo teve início naquele momento da História e perdurou até o final da Idade Moderna. A Idade Média, embebecida pela fé cristã com dogmática dominada pelo Catolicismo, foi um dos períodos mais críticos da História humana. A Inquisição foi criada como um “terrível sistema concebido pela igreja católica para implantar o catolicismo no mundo ocidental, principalmente na Europa, e que perdurou por mais de seis séculos como forma eficaz de controle social” (THUMS, 2006, p. 2014) Thums (2006, p. 2015) afirma que a inquisição “surgiu como necessidade para a defesa do dogma da fé, porque grande parte da comunidade está sendo afetada pela influência dos hereges”. A concepção de hereges se multiplica com a Reforma Protestante, quando então a Igreja Católica precisou lutar contra pagãos e também contra outros cristãos, reformados e protestantes, que surgiram como hereges, que se permitiram a leitura da Bíblia e sua popularização, o que era um delito ou pecado mortal. Assim, heresia era entendida como “tudo aquilo que vai contra as tradições, 466

dogmas, rituais, ensinamento dos sacramentos e crenças católicas” (THUMS, 2006, p. 215). Ademais, as penas mais graves eram destinadas aos opositores e hereges, que poderiam ameaçar o sistema, enquanto que assassinos, ladrões e outros delinquentes poderiam até obter perdão. Já os hereges estavam sujeitos à pena de morte, banimento, confisco de bens (que deveriam migrar para o patrimônio eclesiástico), dentre outras. A pena corporal, a infligir dor e sofrimento, era largamente utilizada. Blasfemadores, adivinhos e videntes estavam sujeitos à mesma punição. Corforme Thums (2006), a Inquisição já era comum no meio católico, porém, com éditos de perseguição aos hereges no império romano, proferidos por Frederico II, inaugurou-se o “Santo Tribunal” no meio secular que, como dito, não diferenciava delitos de pecados. Tanto é que num primeiro momento os nomes dos hereges eram lançados em editais, para que se apresentassem de maneira voluntária. Com o arrependimento, seriam excomungados e logo entregues às autoridades reais, que eram as autoridades seculares, as quais aplicariam a pena, como a queima nas fogueiras, dentre outras. Todavia, aqueles que não se entregavam, eram capturados e torturados para que confessassem o crime de heresia do qual eram acusados, para então sofrerem as condenações devidas. Assim, fica evidenciada a aplicação da prática do sistema inquisitorial, em que as provas são colhidas desde o início do procedimento, e as funções de investigar, acusar e julgar estão concentradas numa única pessoa que, na época, tendo em vista o caráter transcendental que se atribuía ao julgamento, gastava mais tempo com cerimoniais do que com o julgamento específico. Aos

poucos,

novamente,

a

sociedade

muda.

Mudança

esta

impulsionada pela Reforma Protestante e pelos ideais do Iluminismo, abandonando-se, paulatinamente, a dominação religiosa da Idade Média. Desta forma, passa-se a falar novamente no processo acusatório, buscando garantir a observância dos direitos humanos, do contraditório e da ampla defesa, ou mesmo em sistemas mistos (também tidos como acusatórios formais), os quais perduram até hoje em alguns países, a exemplo, a França e a Espanha: 467

De efeito, à época da edição do Código de Napoleão - Code d’Instruction Criminelle (1808), como forma de aplainar as arbitrariedades e desumanidades do Sistema Inquisitorial até então adotado, entrou em vigor na França uma estrutura processual do tipo misto - inquisitivo e acusatório, reforçada com o Códe de Procédure Pénale (1959), realizando-se o processo em três fases: a da Polícia Judiciária, a da Instrução e a do Julgamento. Os princípios do sistema inquisitivo eram aplicados na fase de instrução preparatória, em que o Magistrado desenvolvia, por escrito, secretamente, sem contraditório e sem defesa, as investigações processuais. Na fase de Julgamento, o processo assumia princípios e regras do sistema acusatório, primando pela oralidade, publicidade e contraditório. (LAGO, 2015, p. 12).

Ao final do século XIX, apesar de ter sido praticamente abolido do sistema processual penal francês o caráter inquisitivo da instrução preliminar, a qual deixou de ser secreta e passou a admitir o contraditório, em meados do século XX houve um retorno ao modelo inquisitivo na fase preliminar, perdurando até os dias atuais (LAGO, 2015). Evidentemente que não com as arbitrariedades e atrocidades que eram próprias do medievo, nem tampouco com o desrespeito à dignidade humana, mas sem oportunizar um procedimento dialético, numa negação ao contraditório. Os ideais iluministas acarretaram, portanto, o retorno ao sistema acusatório na maioria dos países da Europa continental, muitos dos quais influenciaram sistemas processuais da maioria dos países latino-americanos que, pós-governos ditatoriais, já no século XX, promulgaram textos constitucionais, sob a alegoria de um pacto social, a exporem um modelo acusatório e garantista. 3. O PROCESSO PENAL PÓS SECULARIZAÇÃO Com a libertação da sociedade das “garras” da religião, passa-se então a falar na secularização do direito penal e, por consequência, do processo penal. Secularização é um conceito amplamente cristão. Ou pelo menos não haveria sentido em utilizá-lo, senão num conceito ou em referência a alguma questão religiosa. Alves (1984) aponta para esta mudança social, dizendo que num período anterior ao que vivemos não ter uma religião era sinônimo de “anomalia”. Hoje não o é. Porém, é impossível negarmos a existência da 468

religião. Ela continua existindo, mas possui um locus de atuação próprio, deixando assim os dogmas e a fé ocuparem um espaço próprio, enquanto o Estado possui outro. Esta

separação

Religião-Estado

é

o

que

entendemos

como

secularização. MARRAMAO (1994, p. 19) aponta que [...] os neologismos séculariser (1586) e sécularization (1567) estiveram relacionados ao lento e tormentoso processo de afirmação de uma jurisdição secular - isto é laica, estatal - sobre amplos setores da vida social até então sobre o controle da Igreja.

Neste sentido, secularização (ou laicização) é definida no Novíssimo Aulete Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa (AULETE, 2011, p. 1.244)como “conversão dos bens do clero em bens nacionais”. Noutro conceito para o verbete, o mesmo dicionário cita que a secularização é o processo de “conversão de crenças, determinadas ações e instituições religiosas em doutrinas filosóficas, ações e instituições seculares”. Na História do Direito, O processo de laicização, cisão entre ciência e religião, teve início com a obra de Nicolau de Cusa, De Docta Ignorantia, de 1440, passando por Kant e sua Crítica da razão pura, e alcançando o ápice com a "morte de deus", nas obras de Feuerbach e Nietzsche, no século XIX. (MOURA, 2011).

Esta conversão do religioso em secular, no âmbito do processo penal, seguiu os mesmos rumos dos demais ramos do Direito: com a influência do Iluminismo e da Reforma Protestante, abdicando da fé como fonte suprema de respostas e de mandamento legal, abriu espaço para a igualdade, a fraternidade e demais pontos da ideologia Iluminista. Nesta etapa, começa-se a construir a ideia da Idade Média como “Idade das Trevas”, como referido, já que fez com que todo o avanço e conhecimento praticamente parassem. O Direito então se volta para o ser humano, se torna humanista, abandonando a teocracia que antes imperava. Os governos, graças à Reforma Protestante, passaram a decidir a religião de cada país, ainda não importando qual era a opção de cada indivíduo, constituindo assim, as Religiões nacionais. Com o passar do tempo, no entanto, as religiões cristãs 469

deixaram de ser unicamente Católica, Reformada, Anglicana e Protestante, passou-se a criar novas e diversas religiões, entrando na fase da “História da Igreja” que se denominou de “denominacionalismo” (BOSCH, 2002). Neste período, com grande base no Iluminismo, surgem os ideais sociais de igualdade, fraternidade e liberdade. Neste caso, igualdade referese à “inexistência de desvios ou incongruências sob determinado ponto de vista” (D’OLIVEIRA, 2015, p. 7). Numa concepção política, diz respeito à ausência de diferenças entre direitos e deveres com relação aos membros de uma mesma sociedade. Juridicamente, é entendida como “uma norma que impõe tratar todos da mesma maneira os que estejam na mesma situação de igualdade e desigualmente os que se encontrem em situações diferentes”. (D’OLIVEIRA, 2015, p. 7). Fraternidade carrega consigo a ideologia de irmandade, fortalecendo ainda o conceito de igualdade, no sentido de que entre irmãos não há possibilidade discriminação, por serem descendentes e semelhantes, ou melhor, iguais. A liberdade, portanto, é concebida em relação à dignidade de direitos. (D’OLIVEIRA, 2015). Logo, não era mais possível condenar aqueles que tinham uma fé diferente por crimes religiosos, visto que estavam abarcados pela mesma crença, e as crenças não vinculavam mais o indivíduo como antes. Assim, para uma condenação justa, seria preciso permitir que todos tivessem a mesma oportunidade de fala e expressão e direito ao contraditório, impedindo a vigência dos tribunais de exceção. Assim, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu primeiro artigo sintetiza o que já pontuava a História, in verbis, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. Ou seja, são direitos básicos de todo ser humano: a liberdade e a igualdade, expandindo-os para os processos judiciais (D’OLIVEIRA, 2015). Nesse aspecto, Almeida (2015) afirma que: A Declaração Universal de 1948 representa a culminação de um

470

processo ético que, iniciado com a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os valores, independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição, como se diz em seu artigo II. E esse reconhecimento universal da igualdade humana só foi possível quando, ao término da mais desumanizadora guerra de toda a História, percebeu-se que a ideia de superioridade de uma raça, de uma classe social, de uma cultura ou de uma religião, sobre todas as demais, põe em risco a própria sobrevivência da humanidade.

No entanto, a influência de características próprias do modelo inquisitório ainda é um tanto notória até mesmo na contemporaneidade, a exemplo, a legislação processual penal infraconstitucional brasileira. Isso

porque

os

atuais

modelos

acusatórios

não

podem

ser

considerados nos mesmos moldes que foram construídos na Antiguidade Greco-Romana, e não são poucos os doutrinadores a afirmar que já não existem mais sistemas puros. O que temos são os chamados modelos (neo)inquisitórios, pois carregam traços do sistema anterior, não merecendo receber a denominação de pós-inquisitorial (DI GESU, 2010). O importante é que seja possível identificar a preponderância de características que mais se amoldam ou ao princípio inquisitório, ou ao acusatório. A propósito, pensando-se na realidade do sistema processual penal pátrio, Lopes Jr. (2010, p. 170), numa contundente alusão crítica, chega a afirmar que “fica fácil perceber que o processo penal brasileiro é inquisitório, do início ao fim, e que isso deve ser severamente combatido”. Se atentarmos para o fato de que o atual Código de Processo Penal tem seu texto original datado de 1941, e que as alterações mais recentes e significativas ocorreram em 2003 (pela Lei n.º 10.792), em 2008 (com a promulgação das Leis n.º 11.689, 11. 690 e 11.719) e em 2011 (pela Lei n.º 12.403), não é difícil reconhecer o quanto esteve distanciado do modelo acusatório e garantista assente no texto constitucional de 1988. Ainda assim, no que tange à primeira fase da persecução penal, que corresponde ao procedimento investigatório, e considerando que, no Brasil, o inquérito policial é o procedimento investigatório por excelência, o Código de Processo Penal permanece quase que intocado nesse particular, carecendo de uma 471

leitura constitucional, pois que orientado pelo princípio do inquisitivo preponderantemente. A par tudo isso, e não negligenciando o quanto os sistemas penais contemporâneos e democráticos incorporaram a orientação ético-filosófica dos ideais iluministas e passaram a conceber a figura do acusado como um sujeito de direitos, além de absorver a ruptura com a moral eclesiástica, na determinação das condutas desviantes, com foco na tutela de bens jurídicos, o processo de secularização (laicização) ainda permanece inacabado. Não raras as vezes nos deparamos com “aspectos da moral sendo valorados pelos legisladores e pelos juízes” (BONHO, 2005), ainda que no campo da punição e da execução da pena, o princípio da secularização vede a imposição de sanções penais de fins morais. (MOURA, 2011). No processo penal, tal compreensão é sobremaneira relevante, pois a atividade judicial de valoração da prova, por vezes, revela um decisionismo cuja subjetividade do julgador a lei não tem como abolir, apenas limitar. Nesse aspecto, é importante mencionar que, por mais que a legislação processual penal brasileira tenha evoluído, a ponto de ser orientada por um modelo acusatório e garantista, a partir da Constituição de 1988, ainda há um vácuo entre o “dever ser” e o “ser” no processo penal pátrio, principalmente no que se refere à principal característica que permite identificar se um sistema é acusatório ou inquisitivo, qual seja, o modo de gestão da prova. Quanto mais poderes instrutórios são atribuídos ao julgador, permitindo-se que se substitua às partes na atividade de produção probatória, por exemplo, menos imparcial, mais persecutório e de perfil inquisidor terá o magistrado, e mais se distanciará do modelo acusatório.4

A exemplo, o previsto no art. 156, do CPP que, mesmo pós-reforma de 2008, cuja pretensão difundida seria uma adequação da legislação infraconstitucional ao modelo acusatório e garantista, ainda atribui ao juiz a possibilidade de determinar a produção antecipada de provas na fase investigatória, ou mesmo ordenar, de ofício, no curso da instrução, diligências probatórias. 4

472

4. O PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO E O PODER JUDICIAL DE VALORAÇÃO DA PROVA: o modelo brasileiro A

compreensão

contemporaneidade,

do

sistema

necessariamente,

processual parte

penal do

brasileiro

modelo

na

previsto

constitucionalmente e que, inquestionavelmente, é acusatório e garantista. A consolidação desse modelo está umbilicalmente ligada a uma matriz teórica que somente pode conceber a legitimidade do poder de julgar do Estado, se exercido discricionária, porém, limitadamente. Nesse viés, o processo, sem o qual não há de se conceber a existência de um fato delitivo, com a consequente imposição da pena, antes de ser um instrumento a serviço do exercício do poder punitivo do Estado, está a assegurar a máxima eficácia aos direitos constitucionais do acusado. Daí a se falar na “instrumentalidade garantista” do processo penal contemporâneo (LOPES, 2010), a respeito da qual a persecução penal se justifica não pelo seu fim, que pode culminar (ou não), na punição, mas sim na averiguação da suposta prática de um ilícito penal, e na identificação da autoria delitiva, para que só então, caso aferida a responsabilidade criminal, a pena possa ser concretizada. O princípio do nullum crime, nulla poena sine judicio, nesse contexto, assume uma real importância para aquilo que a teoria do garantismo penal reconhece como sendo a estrita jurisdicionariedade (FERRAJOLI, 2002), a garantir uma esfera intangível do direito à liberdade individual, mesmo para o Estado. Para a epistemologia garantista, o desenrolar da instrução criminal deve proporcionar condições de verificabilidade e de refutabilidade da hipótese acusatória, a possibilitar, por meio do processo, um “controle empírico”, de modo a ser convalidada tão somente se “apoiada em provas e contraprovas, segundo a máxima do nullum judicium sine probatione”. À medida que a sentença seja resultado de uma atividade cognitiva dos fatos, vinculada ao reconhecimento e à aplicação da lei (a pressupor o desvio punível, fruto de um comportamento determinado juridicamente como delito “e não por uma imoralidade intrínseca ou por anormalidade”), a condenação 473

de alguém comprovadamente responsável igualmente não será “fruto de um juízo moral ou de um diagnóstico sobre a natureza anormal ou patológica do reú”, e “somente assim a justificação da jurisdição via secularização se faz presente”. (FERRAJOLI, 2002, p. 32-33; MOURA, 2011). Nesse contexto, resgata-se a ideia do paradigma secularizador como princípio fundante do Estado democrático de direito, a preconizar um modelo acusatório, em oposição ao modelo inquisitivo que, “estruturado na negação do contraditório e na junção laboral de acusação e julgamento, desenvolve [...] um primado das hipóteses sobre os fatos”. (CARVALHO, 2001, p. 31; MOURA, 2011). No processo penal brasileiro, em que o texto constitucional de 1988 prevê a necessidade de motivação das decisões judiciais (art. 93, XI), é inegável seu caráter de norma-garantia, a limitar o poder judicial de valoração da prova. Num sistema acusatório e garantista como o nosso, não poderia ser diferente: por mais que o juiz seja livre para formar seu convencimento, sem ter de se ater às amarras da legislação nesse sentido, não pode fazê-lo arbitrariamente, devendo restringir-se às provas dos autos, obtidas e produzidas licitamente, em respeito ao contraditório judicial. Partindo-se da premissa de que a expressão “sentença” deriva do vocábulo em latim sentire, que significa “sentimento”, “intuição” (SILVA, 2013), não há como negar o caráter de subjetivismo que acompanha a decisão do juiz. E somente por meio da necessidade de exposição das razões de decidir é que se pode minimizar o caráter meramente decisionista da sentença, bem como reduzir (posto que eliminar seria uma utopia) o subjetivismo judicial quando da análise e valoração dos elementos probatórios. Trata-se, em outro sentido, da sentença como resultante da “verdade processual” (FERRAJOLI, 2002), aquela que emana dos autos, mas que também representa a “verdade do julgador”, obtida a partir de sua leitura ou interpretação das alegações e provas, mas que não seja fruto de um juízo de valor meramente moral. A verdade evidenciada na sentença nada mais é do que a verdade que os autos demonstraram (por meio das alegações das partes e das provas por elas produzidas), a partir do olhar do julgador, o que a torna ainda mais relativa. 474

Daí a importância dos ideais iluministas que, associados a uma concepção organicista da sociedade, “composta ‘artificialmente’ por um pacto simbólico e fundante” (CARVALHO, 2001, p. 54), acarretaram a ruptura com a moral eclesiástica do medievo, e influenciaram, séculos mais tarde, na seara penal, o surgimento das propostas minimalistas, como reação à ideologia de defesa social e ao maximalismo penal, numa tentativa de desconstrução (ou de relegitimação) dos sistemas penais existentes. Dentre essas propostas, o destaque aqui para o garantismo penal e processual penal. O Direito Penal é assim. Constantemente envolto em um ciclo no mínimo curioso, para não dizer “círculo vicioso”, em que se avança um passo, na mesma medida em que se retrocedem dois, como diriam os criminólogos críticos da contemporaneidade. Sobrevive às barbáries do medievo, entra em um processo de humanização, resgata o reconhecimento do homem como centro do universo, atribui uma série de garantias ao direito a uma vida mais digna a todos, independente de sua condição de homem livre ou não, de vítima ou acusado, e leva o Estado a uma redução de seu caráter intervencionista e repressivo. Porém, de repente, na mesma medida em que permite que se questione a legitimidade da pena, que se critique seu caráter meramente retributivo,

o

pensamento

penalista

tradicional

ressurge

impiedoso.

Reconhece a condição de falível e (de falido) do sistema punitivo e, lá pelas tantas, movido por um discurso perverso e alienante, que reconhece o indivíduo transgressor, ou um grupo deles, como “inimigos” da sociedade, faz ressurgir um Estado penal altamente repressivo, policialesco, movido pela concepção tradicional de que se combate uma crescente onda de violência e de criminalidade com políticas de segurança que se resumam “à luta contra a impunidade”, ressaltando o caráter protagonista (e ilusório) do Direito Penal nessa tarefa. E, por trás desse discurso por vezes velado, paradoxal e contraditório, a

desigualdade

socioeconômica

e

cultural

se

perpetua

nos

países

capitalistas, e o sistema penal abriga apenas os “excluídos”, aqueles que são privados de acesso aos bens tutelados jurídica e penalmente pelo Estado. 475

Felizmente, os movimentos minimalistas e a Criminologia Crítica contemporânea sobrevivem a essa lógica, margeiam e procuram enfraquecer, paulatinamente, e para muitos, até de modo imperceptível, despercebido, o discurso dominante, num constante exercício de resistência à intolerância. Na contemporaneidade, vivemos a realidade de um penalismo (ao menos nos países latino-americanos) em que parecem ter sido esquecidos os ideais iluministas, e o ciclo precisa ser retomado. Mas enquanto isso não acontece, enquanto se nega o caráter de cláusula pétrea à norma constitucional que prevê a menoridade penal aos dezoito anos, como é o caso do Brasil no cenário jurídico e político atual, que não se permita o mesmo retrocesso no processo penal, capaz de permitir aos Tribunais, pela análise dos casos penais, um controle de constitucionalidade, com os olhos voltados para a estrita legalidade, segundo a matriz teórica garantista. Já que temos como legado iluminista, entre outros, a compreensão do crime como fruto de uma conduta comissiva ou omissiva, resultante de uma transgressão livre e consciente da norma jurídica, e não como uma transgressão à moral eclesiástica. Já que ao Estado-Juiz importa “a prática do fato correspondente à lei”, pois que o homem é livre para pensar, sentir, se emocionar. Já que, numa alusão à teoria contratualista, a “liberdade pactuada não corresponde à liberdade de pensamento, ao foro íntimo”, a garantir que haja uma parcela do direito à liberdade que permaneça inatingível, até mesmo para o Estado (FERRAJOLI, 2003; CARVALHO, 2001, p. 47), que ao menos não percamos a noção da importância de um processo que se desenvolva de forma dialética. Que não se renegue o modelo constitucional acusatório, que não se vislumbre o processo como mero instrumento de controle social por parte do Estado, e que, por fim, não mais se confundam seus fins com os da pena. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O dinamismo do Direito Processual Penal fez com que surgissem modelos, teorias e visões que o fizeram acompanhar a sociedade, em suas necessidades. O modelo acusatório, em sua origem, era dotado de momentos 476

políticos e ficava restrito à precariedade das provas então produzidas. Essa condição

propiciou,

entre

outras

coisas,

o

nascedouro

do

modelo

inquisitorial, que concentrou poderes de persecução e julgamento, em especial à Igreja Cristã (Católica). Graças ao Iluminismo e à Reforma Protestante, fruto dos movimentos políticos e sociais que se rebelaram contra as atrocidades do modelo inquisitorial e dos Estados Absolutistas do início da Era Moderna, provocando a ruptura entre o poder estatal e a religião para a tomada de decisões, culminando no rompimento entre o Direito e a moral, sobretudo, a moral elesiástica. Nesse viés, iniciou-se a secularização do Direito, impondo, na seara penal, uma racionalidade fundada numa teorização do crime e da pena, a possibilitar respostas ao “por que proibir?” e ao “por que punir”, com base em um sistema acusatório e garantista, cujos axiomas, em uma sociedade democrática, conferem legitimidade ao poder punitivo estatal, que não mais poderia ser exercido ilimitadamente. Necessário, então, se fez adaptar-se o Direito Processual Penal a um novo modelo, em que as provas não sirvam apenas para fundamentar a decisão do julgador, mas antes para que, a partir delas, obtidas e produzidas de

forma

a

não

atentar

contra

o

sistema

de

garantias

previsto

constitucionalmente, o julgador pudesse conhecer a realidade fática em que supostamente estaria fundada a necessidade da persecução penal, a permitir uma sentença emanada o mais próximo possível da verdade dos fatos. Ou seja, resultante de uma racionalidade cognitiva, a explorar eventual materialidade a autoria delitivas, reduzindo-se o espaço para juízos de valor meramente morais. Uma persecução penal, resultante de um processo dialético, a refutar ou acolher a(s) hipótese(s) acusatória(s) inicialmente

sustentada(s)

e,

sobretudo,

de

respeito

aos

direitos

fundamentais do acusado. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Bruno Rotta. Entre Desprezos E Disfunções: Os Direitos Humanos E O Direito Penal. Disponível em: . Acesso 477

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479

OS REFLEXOS DA MÍDIA NO PROCESSO PENAL INQUISITORIAL BRASILEIRO Damiani Costa e Silva1 Eduardo Vieira Hilário2 1.INTRODUÇÃO O direito, e principalmente, o processo penal, sofreram significativas mudanças através dos tempos. A Europa Medieval, com seu sistema penal inquisitorial, onde a tortura e a barbárie reinavam, era a transfiguração de um Estado autoritário, onde o poder era centralizado nas mãos de poucos, e onde as luzes da razão não conseguiam vencer as densas nuvens deste período de escuridão. Entretanto, ainda que muitos entendam a inquisição como algo desiginado exclusivamente à era medieval, este trabalho busca tensionar as práticas inquisitoriais de forma contemporânea, relacionando-as diretamente ao ápice do sensacionalismo midiático que vive a sociedade brasileira. Atualmente, o Brasil está revisitando, em larga escala, questões como o direito à informação, a democracia e a política criminal. Se de um lado temos a mídia e a garantia constitucional da liberdade de impresa e liberdade de expressão, do outro temos o cidadão moderno, curioso por natureza, necessitado de informações pertinentes ao que ocorre ao seu redor. Inegavelmente, no universo da informação, o maior interesse do receptor é no saber do crime. Como não poderia deixar de ser em uma sociedade capitalista, o repector precisa ser atraído para gerar lucro e isso é feito através da venda da criminalidade. O excesso de dramatização do crime acaba fortalecendo estereótipos, razão pela deparamos-nos, então, com um Acadêmica do 9º semestre do curso de Direito da UNICRUZ. Pesquisadora do GPJUR da UNICRUZ. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), “Neoinquisitorialismo e Interacionismo Simbólico na Sociedade Contemporânea”. E-mail: [email protected] 2 Acadêmico do 10º semestre do Curso de Direito da Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Pesquisador voluntário no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), “Neoinquisitorialismo e Interacionismo Simbólico na Sociedade Contemporânea”. E-mail: [email protected] 1

480

vilão – o criminoso, que deve ser detido, combatido e erradicado pelo Juiz Penal. Este raciocínio, em toda sua simplicidade, levanta questionamentos mais profundos acerca da natureza do nosso ordenamento jurídico e o procedimento processual penal adotado. O caminho que o criminoso percorre, das telas da televisão até à cadeia, precisa ser investigado. Não obstante, é preciso levar em conta o que acontece com o dito criminoso após sua inclusão no cárcere e quais as consequencias a serem enfrentadas, então, pela sociedade. 2. O SISTEMA INQUISITORIAL A fase inquisitorial se iniciou com os Concílios de Verona em 1184 e se transformou no sistema penal regente no continente europeu com as Bulas Papais de Gregório IX e Inocêncio, em 1232 e 1252 D.C., respectivamente. Foram várias as normativas que sustentaram e deram ares de legalidade a inquisição, dentre as quais pode se destacar a Bula Ad Extirpanda (1252), a Directorium Inquisitorum (1376) e Malleus Maleficarum (1489). Tais manuais instrumentalizaram os procedimentos penais da época, baseados em denúncias anônimas e sem substância, instrução probatória baseada na confissão do acusado e busca da verdade pela tortura. Trata-se de Códigos baseados nas tradições da Igreja e dos homens, que grande parte da Europa elegeu ao posto de Leis, e que sustentaram durante séculos o aparelho inquisitorial. Neste sentido, Beccaria (1997), já no século XVIII, afirmava: Abramos a história, veremos que as leis, que deveriam ser convenções feitas livremente entre homens livres, não foram, o mais das vezes, senão o instrumento das paixões da minoria, ou o produto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana, que tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade com este único fim: todo o bem-estar possível para a maioria (BECCARIA, 1997, p. 21).

O sistema inquisitorial ressurge como modelo nas práticas judiciárias 481

medievais com o redescobrimento e revitalização no século XII pela Universidade de Bolonha, do Corpus Iuris Civilis, também conhecido por Código de Justiniano, que se trata de um conjunto de compilações jurídicas, publicado entre os anos de 529 e 534 D.C por ordens do imperador bizantino Justiniano I, o qual servia de base ao Direito Romano. Beccaria (1997), discorrendo sobre o Corpus Iuris Civilis, afirma que estas leis, por assim dizer, não passavam de uma compilação repleta de comentários obscuros e opiniões relativas a uma Europa antiga e desatualizada. O clero, se aproveitando do Corpus Iuris Civilis, nele escorou sua organização com vistas a desenvolver sua teocracia radical. Salo de Carvalho (2005) destaca algumas características encontradas neste novo método inquisitorial, sejam elas: (a) o caráter público das denúncias, não mais restritas à vítima ou aos seus familiares, aliada (b) ao sigilo da identidade do delator; (c) a inexistência de separação entre as figuras de acusador e julgador, sendo lícito a este realizar a imputação, produzir a prova e julgar o acusado; (d) o sistema tarifado de provas e sua graduação na escala da culpabilidade, recebendo a confissão o máximo valor (regina probatio); e (e) a autorização irrestrita da tortura como mecanismo idôneo para obtenção de confissões. (CARVALHO, 2005, p. 234).

A tortura passou a ser o principal instrumento do qual se valia o sistema inquisitorial para extração da confissão, a qual, na maioria das vezes era alcançada com sucesso. Isto acontecia, pois, o torturado sendo culpado ou não, confessava o delito a fim de ser ver livre do martírio a que era submetido – ainda que fosse inocente das acusações (BECCARIA, 1997). De outro lado, com a expansão do sistema inquisitório, houve a utilização deste modelo para julgar os crimes espirituais. Surgiram, então, três jurisdições penais: a central, a local e a eclesiástica (GONZAGA, 1993). A primeira era exercida por juízes ligados diretamente ao monarca regente; A segunda, por sua vez, poderia ser referente, além de um terminado local, à cidades, regiões, ou até mesmo países; Finalmente, a terceira, era restrita às questões que diziam respeito à Igreja (GONZAGA, 1993). Em suma, o sistema processual inquisitorial era caracterizado pela ausência de contraditório e ampla defesa, além da não separação entre a figura do acusador e do julgador, na medida em que quem acusava e 482

aplicava dos mais bárbaros métodos para colher as provas era o mesmo que depois sentenciava. Nesse sistema medieval, a insuficiência de provas não gerava absolvição. Pelo contrário, levava a um juízo de semiculpabilidade. 2.1 Superação do sistema inquisitório e primeiras luzes em matéria processual penal O avanço da ciência foi um duro golpe à teocracia estatal, e por consequência, no sistema inquisitorial. Quando Nicolau Copérnico afirma que a Terra não é o centro do universo, coloca em dúvida vários dogmas ensinados durante séculos pela Igreja. Além disso, com o avanço da medicina, se descobriu que várias das possessões demoníacas ou bruxarias – as quais eram passíveis de imputação de crime de heresia – não passavam de enfermidades curáveis. Todavia, apenas a partir de 1640, depois de diversos anos torturando e matando em nome da justiça, a feitiçaria se dissocia da ideia de delito (CARVALHO, 2005). As edições das Ordonnance Criminelle, por Luís XIV, trouxeram dispositivos que criaram barreiras ao uso da tortura. Como exemplo, no artigo 7º, Título XIX, aponta-se que as decisões que permitiam o uso da tortura não poderiam ser executadas a não ser quando confirmadas pelo Tribunal de Paris. Além disso, criou–se o recurso obrigatório, nos casos em que fosse aplicada pena corporal por juiz local. Isto significa que deveriam ser enviados ao Tribunal de Pariso acusado e seu processo, para que uma reanálise do caso fosse feita (CARVALHO, 2005). No entanto, somente com o florescimento do humanismo e do racionalismo

que

a

Europa

se

dissocia

gradativamente

do

sistema

inquisitorial. Dentre os autores que contribuíram para tal, citamos o alemão Christian Thomasius, os italianos Pietro e Alessandro Verri, Cesare Beccaria, e o francês Voltaire. Atravésdo Code d'Instruction Criminelle, de 1808, de Napoleão Bonaparte, é que nasce o processo misto, o qual se dividia em duas partes: a primeira, nos moldes do sistema inquisitorial, se tinha a instrução probatória, através do juiz de instrução; na segunda, se teria o debate 483

público entre defesa e acusação, onde se permitia o contraditório (PRADO, 2006). Após a Revolução Francesa, o processo misto unificou as virtudes existentes no inquisitório e no contraditório, dividindo o processo em duas grandes fases: a instrução preliminar, com os elementos do sistema inquisitivo, e a fase de julgamento, com a predominância do sistema acusatório. Num primeiro estágio, há o procedimento secreto, escrito e sem contraditório, enquanto no segundo, presentes se fazem a oralidade, a publicidade, o contraditório, a concentração dos atos processuais, a intervenção de juízes populares e a livre apreciação das provas (NUCCI, 2010). 3. A LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA NO TEMPO O sistema processual penal inquisitivo se fez vigente no Brasil até 1830, por meio das Ordenações Filipinas, código legal português promulgado em 1603 por Filipe I, rei de Portugal. Em seu Livro V, estas ordenações regulamentavam o direito e o processo criminal. Com a morte de D. Henrique, que viera a falecer sem deixar herdeiros, o trono de Portugal passou às mãos do rei da Espanha, D. Filipe II. Houve nessa época a união de duas coroas, e assim as Ordenações Filipinas passaram a vigorar em todo o reino, inclusive no Brasil (MACHADO, 2010). Em 1832, foi publicado o primeiro Código de Processo Penal no Brasil, o qual já abarcou o sistema acusatório. Tal Código, ainda assim, reunia características do modelo inquisitivo, como a possibilidade do Juiz recolher provas da materialidade do delito e, de ofício, dar início a ação penal, além de ouvir testemunhas sem a presença do réu. Porém, trouxe grandes avanços coadunados ao modelo acusatório, como a incumbência do Ministério Público em conduzir a ação penal pública, bem como executar sentenças (NUCCI, 2010). A partir de 1841, com a Lei nº 261, num movimento mais amplo em direção ao modelo acusatório, se separou a função do Juiz da do Delegado de Polícia, que culminou no ano de 1871 com a criação da Lei 2.033, a qual 484

disciplinou o Inquérito Policial, incumbindo ao Delegado a função de investigação e coleta de provas, função esta retirada da esfera judicial (OLIVEIRA, 2008). Mas o grande salto ainda estava por vir quando em 1941, foi promulgado o Código de Processo Penal, ainda vigente. Porém, foi exclusivamente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual trouxe consigo uma série de garantias individuais garantidas também ao réu e/ou ao preso, que vários paradigmas existentes anteriormente no processo penal brasileiro foram rompidos. Logo, quando comparamos a Carta Magna de 1988 e seu moderno corpo constitucional que trouxe uma série de garantias, percebemos que o Código Penal e de Processo Penal são arcaicos e obsoletos. Essa afirmação ganha força quando se leva em conta que o mencionado Código foi baseado na legislação processual penal italiana dos anos de 1930, época em que vigorava no país o regime autoritário e fascista de Benito Mussolini, características que nosso Código absorveu, tendo o excesso de autoridade e a presunção de culpabilidade como características básicas. Nesse sentido, Eugênio Pacelli Oliveira (2008), muito bem coloca: “(...) o fato da existência de uma acusação implicava juízo de antecipação de culpa, presunção de culpa, portanto, já que ninguém acusa quem é inocente! Vindo de uma cultura de poder fascista e autoritário, como aquela do regime italiano da década de 1930, nada há de se estranhar. Mas a lamentar há muito. Sobretudo no Brasil, onde a onda policialesca do CPP produziu uma geração de juristas e de aplicadores do direito que, ainda hoje, mostram alguma dificuldade em se desvencilhar das antigas amarras” (OLIVEIRA, 2008, p. 06).

De fato, resquícios de autoritarismo que se refletem diretamente na inquisição, não faltam em nosso Código de Processo Penal! Como exemplos, podemos apontar a chamada mutatio libeli e imendattio libeli, dos artigos 383 e 384, as quais possibilitam ao magistrado alterar a acusação, dando-lhe definição jurídica diversa; ou mesmo a possibilidade de o juiz requisitar provas, de ofício (art. 156); instaurar incidente de falsidade e de insanidade mental do réu, de ofício (art. 149); além de o magistrado ainda ter de decidir 485

sobre o arquivamento do inquérito policial – do qual não é coator. Aury Lopes Jr. (2012) levantou alguns pontos da investigação no processo penal que precisam ser revisitados e redefinidos. O autor afirma que, acima de tudo, é preciso determinar a função e esfera de atuação do juiz na parte investigativa, sempre o mantendo longe de qualquer iniciativa investigatória: o juiz deve sempre atuar como garantidor da máxima eficácia dos direitos fundamentais do imputado, razão pela qual não pode, jamais, ser o investigador – o que é concebido no processo penal inquisitório. Essas críticas ao Direito e ao Processo Penal são ponderadas na ótica do Neoinquisitorialismo, campo de estudo que procura discutir não só o procedimento penal, como a mentalidade e a cultura inquisitória instalada na sociedade contemporânea. Logo, a fim de aventar o fenômeno da criminalidade e o modo usado pelo processo penal para reprimi-lo, importante que se comece pela definição do modelo processual vigente. Embora seja aceito por grande parte dos doutrinadores que o sistema processual penal brasileiro é misto, ainda há divergência entre os estudiosos. NUCCI (2010) entende que o sistema processual penal brasileiro é misto, na medida em que seus principais focos são constitucional e processual. Ou seja, margeados pelo que dispõe a Constituição Federal de 1988, estamos diante de um sistema acusatório, haja vista os princípios abarcados na Carta Magna. Por outro lado, os procedimentos existentes no Código de Processo Penal são elaborados sob uma ótica claramente inquisitiva. Entretanto, MIRABETE (2005) considera que o modelo processual penal brasileiro é exclusivamente acusatório, uma vez que este é assegurado pela Constituição Federal, a qual estabelece o contraditório e a ampla defesa através de seus determinados recursos. Certos

doutrinadores

contemporâneos



com

os

quais

nos

posicionamos, apontam que a diferenciação destes dois sistemas processuais é determinada pelo critério de gestão da prova. Ora, se a principal finalidade do processo é reconstituir crime pretérito a fim de que se monte instrução probatória, é na gestão da prova que se pode identificar o princípio 486

unificador – dispositivo ou inquisitivo (COUTINHO, 2010). Aury Lopes Jr. (2012), por exemplo, considera que, embora importantes, as funções do julgador são secundárias e insuficientes para que se dite, ou se adeque, determinado modelo acusatório. Esta discussão é de extrema relevância, pois, em que pese seja consenso de que o sistema penal acusatório sustentando pela Constituição Federal deva ser adotado, os legisladores continuam legislando ao revés, sem aterem-se aos princípios constitucionais, e pior, tentam mudar a Carta Magna, inclusive no que tange às cláusulas pétreas, como demonstram as recentes propostas de emenda à constituição que propunham reduzir a maioridade penal. Salo de Carvalho (2005) afirma que o Direito Penal e Processual Penal passou por um processo de laicização, principal diferença no sistema inquisitorial medieval, o qual era completamente fundado e regulamentado por preceitos religiosos. O autor questiona, todavia, se isto foi suficiente para superar a lógica inquisitorial medieval, incrustrada na cultura da sociedade. Já no ano de criação da nossa Carta Magna, o então Ministro do Tribunal Federal de Recursos, Francisco de Assis Toledo (1988) fez apontamentos inteligentes e de extrema relevância quanto às falhas existentes no Código Penal Brasileiro: O Código Penal de 1940, com o que dele ainda permanece, feito e editado no clímax do Estado Novo, foge aos padrões desejáveis. Foi, para a época, um estatuto avançado, incorporando o que havia de consenso na doutrina então dominante. Essa doutrina, porém, tem um grave pecado: remonta ao primeiro quartel do século XX e se estrutura sobre a crença da necessidade e suficiência da pena de prisão para o controle do crime. A política criminal que a inspira é marcadamente parcial e repressiva (TOLEDO, 1988, p.249).

O ministro segue seu raciocínio e elucida que a sociedade é tomada por uma falsa noção de que a cadeia é a solução para a criminalidade, ignorando problemas como a superlotação das instituições carcerárias e a rotulação que os apenados adquirem, marginalizando-os ainda mais (TOLEDO, 1988). Ou seja, nossa legislação penal vigente foi criada dentro da atuação 487

de regimes totalitários de direita, cujas principais formas de expressão eram o fascismo italiano e o nazismo alemão. Aliando-se estas diretrizes ao caráter inquisitivo processual herdado pela era medieval, não é de se estranhar que a política criminal trazida por essas leis tenham absorvido o caráter repressivo e intervencionista vivido na época, consolidando na população o desejo de repressão acima de qualquer prevenção. 4. OS REFLEXOS DA MÍDIA NO PROCESSO PENAL Ainda que o Direito Penal e Processual Penal tenham conseguido se libertar das garras seculares da definição de pecado, a sociedade, em sua maioria, parece estar fortemente influenciada por conceitos morais religiosos que confundem a definição de crime com a definição de pecado. Não é novidade que a sociedade em geral é relevantemente influenciada pela mídia. Essa influência, ao contrário do que possa parecer, reflete de maneira direta no ordenamento jurídico, nas políticas públicas e, claro, no processo penal brasileiro. Isso porque, vivemos o um momento dominado

pelo

sensacionalismo

midiático,

que

se

escalona

proporcionalmente ao fenômeno da globalização (ZAFFARONI, 2012). Através do meio televisivo de comunicação, a imprensa constrói um modelo informativo que dissolve os limites do real e do imaginário. Logo, o receptor passa a interagir com a informação, em virtude do caráter emocional de que a mesma é dotada, abandonando sua figura de telespectador e transformando em um integrante da realidade que lhe é apresentada (VIEIRA, 2003). Incapaz de construir barreiras entre o racional e o sentimental, o receptor das informações acaba sentindo-se diretamente afetado. Assim como o jornalismo sensacionalista, a internet também tem contribuído para a supervalorização da violência urbana, ampliando o interesse popular pela justiça penal e pelo crime através do uso de uma linguagem discursiva, ágil e coloquial (VIEIRA, 2003). Portanto, sustenta-se a hipótese de que a população esteja vivendo um estado de medo criado pela criminalidade extrema a que é exposta. 488

Assim, Bauman (2008) define o medo como uma incerteza inerente ao ser humano, é um sentimento que ignora as causas do perigo e o que deve ser feito. Neste sentido, bem ensina o jurista Raphael Boldt (2013): Tema central do século XXI, o medo se tornou base de aceitação popular de medidas repressivas penais inconstitucionais, uma vez que a sensação do medo possibilita a justificação de práticas contrárias aos direitos e liberdades individuais, desde que mitiguem as causas do próprio medo (BOLDT, 2013, p. 96).

Neste contexto a mídia pode ser concebida como uma ferramenta de proliferação do medo na sociedade, uma vez que se rompeu a relação do sentimento de medo com contos e mitos – instancia dominadora na era medieval. A sensação de medo passou, então, a ser transmitida diariamente através de imagens e informações que adentram a rotina e a realidade concreta do receptor. Bauman (2008) apresenta o medo líquido como uma espécie de irrealidade na qual a sociedade está absorvida. O autor explica que, o homem vive constantemente ansioso e dominado por temores diversos, ao passo que passa a se deixar influenciar pela informação a que é exposto sem questionar a veracidade dos fatos. Doravante, analisando os ensinamentos de Bauman (2008), pode-se afirmar que a insegurança não deriva tanto da carência de proteção, mas, sobretudo, da falta de clareza dos fatos. Shecaira (2012) ainda define a mídia como uma fábrica de ideologias, capaz de condicionar o receptor, eis que altera a realidade dos fatos com facilidade

e

cria,

então,

um

processo

permanente

de

indução

à

criminalidade. Deste modo, os meios de comunicação possuem o poder de desvirtuar o senso comum através da manipulação popular. Apavorada, a população clama pela intervenção estatal e a repressão da criminalidade que tanto teme, condicionando o legislador a criar normas penais para a solução do problema. Este processo faz com o que Direito Penal

perca

sua

característica

de

instrumento

garantidor

de

bens

juridicamente protegidos, lhe dando nova função: abarcar e confrontar a realidade aos medos sociais (WACQUANT, 2001). Como expõe Loïc Wacquant (2001) – e aqui está a questão enervante – esta instalação do terror favorece aos políticos modernos a exploração do 489

crime violento através do medo que este causa, entoando discursos medievos, intervencionistas e brutalmente repressivos de combate à criminalidade, os quais se difundem e conquistam a simpatia da população. O próprio candidato escolhido, então, perpetua a cultura inquisitória em que nos encontramos, além da ira e do desejo por vingança. Em que pese o Direito e o Processo Penal tenham sido revisitados e rediscutidos incansavelmente ao longo dos anos, acompanhados de denúncias totalitárias e inquisitórias, parece faltar, nestes estudos, uma abordagem criminológica e sociológica contemporânea, que leve em consideração a cultura e os anseios do cidadão. A sociedade que vive submersa na vitimização pelo risco da criminalidade, no tocante às hipotéticas situações quanto à violência urbana, busca por respostas advindas da política criminal eficientista, que não se preocupa apenas com a efetividade da lei penal, mas, também, em passar uma falsa mensagem de segurança e controle sobre a criminalidade e de custo-benefício ao Estado. Essa nova estrutura legal claramente exprime a conjugação de uma perspectiva simbólica e instrumental. 5.CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim, a sociedade fica a mercê do que lhe é transmitido pela mídia, agarrando-se a esperança de um futuro melhor e menos violento. Estagnado, o processo penal fica a acompanhar uma população vivendo em completa divisão social, enquanto os anos e as oportunidades de avanço seguem passando. A elite escolhe para si quem é o inimigo, estereotipando ainda mais as camadas mais pobres que, marginalizadas, agarram-se aos seus poucos recursos e perpetuam o que lhes foi predestinado: fracasso no sistema. Percebe-se de forma cristalina que a população deixou de se perguntar diante da comprovação de que o outro pode ser bárbaro. A solução encontrada foi, portanto, levantar muros que separem o criminoso estereotipado (o pobre, o negro), do cidadão de bem. Logo, a brutalidade medieval transcende a caça às bruxas instituída 490

pelo Malleus Maleficarum. Essa violência é gerada no seio da sociedade e reafirmada pela informação deliberada e carente de ética. Sem maiores dificuldades, pode-se resumir que nos regimes autoritários houve sempre uma constante: a necessidade de transformar o processo penal em um instrumento de segurança pública. Essa ótica reduz o processo penal à mera ferramenta para eliminar pessoas indesejadas, deixando de se preocupar com os meios para que isso ocorra, tampouco os resultados que essa ação trará.O que nos resta é um instrumento de repressão e controle social encontrado no processo penal e exercido pelo juiz criminal – sobre quem recai todo o poder inerente à segurança pública. O processo penal brasileiro, em seu atual momento, tem rompido com os limites do poder punitivo, bem como vem enfraquecendo as garantias processuais constitucionais. Os avanços suscitados nos procedimentos penais estão amarrados ao capitalismo e à exploração da ignorância. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Tradução, Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Ed. 2008. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lúci Guidicini, Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BOLDT, Raphael. Criminologia midiática: Do discurso punitivo à corrosão simbólica do Garantismo. Curitiba: Juruá, 2013. BRASIL. Código de processo penal (1941). Código de processo penal. In: ANGHER, Anne Joyce. Vade mecum universitário de direito RIDEEL. 8. ed. p. 351-395. São Paulo: RIDEEL, 2010. CARVALHO, Salo de. Revisita à desconstrução do modelo jurídico inquisitorial. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. Brasil, vol. 2, n. 2, p. 211-252 –jan./jun. de 2005. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios do Direito Processual Penal brasileiro. Separata ITEC, a. 1, n. 4 – jan./fev./mar. de 2000. GONZAGA, João Bernardino. A inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993. LOPES

JR,

Aury.

Direito

processual

penal

e

sua

conformidade 491

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492

DIGNIDADE E DIREITOS HUMANOS PARA APENADOS – DIMENSÕES DA ECONOMIA SOLIDÁRIA Enio Waldir da Silva1 1. INTRODUÇÃO A economia solidária é compreendida por nós em três dimensões: a) como uma pratica econômica,

por onde parcela da população busca

garantir renda e trabalho de um modo alternativo; b) como um movimento social, que luta em defesa do associativismo, cooperativismo popular e desenvolvimento sustentável frente ao Estado e c) uma proposta de vida social que contém uma filosofia e uma sociologia que defende uma organização social

permeada pela solidariedade, dignidade humana,

sustentabilidade e justiça igualitária. Como tal, possui diversos discursos ligados aos atores que a integram e apoiam. Mapeamos parte destes discursos e estudamos até que ponto a pratica da economia solidária poderia ser fonte para concretização dos direitos humanos. Foi um estudo com orientação teórica da sociologia jurídica crítica que enfatiza as relações sociais inovadoras de sociabilidades. Neste sentido segue a tradicional abordagem de Emille Durkheim que aponta que a cultura social sobre o crime e a penalização vem de um sentimento coletivo ferido, mas que a razão para a existência de expressiva condição criminológica é da própria sociedade que não foi capaz de manter uma forte consciência coletiva enraizadas em suas normas e valores e por não assegurar os laços religiosos

e

familiares

que

protegem

os

indivíduos

das

tendências

dessocializantes. No entanto, as soluções para esta patologia – o crime – não virão destas soluções da solidariedade mecânica, do qual está inserido o direito penal. Estaria sim, na solidariedade orgânica que abriga o direito restitutivo que progride com as sociedades complexas e segue a abordagem da necessária ressocialização de indivíduos em situação de pena carcerária. Neste sentido, devolver o indivíduo socializado é coisa que o sistema Texto é fruto de Projeto de Pesquisa institucional. Professor Doutor em Sociologia, Atua no Mestrado em Direitos Humanos e na graduação da UNIJUI. 1

493

penitenciário não faz, de sorte que o que pode cumprir esta função, é para o autor, reconstituir a moral de trabalho para o preso, qualificar ele, fortalecer sua personalidade individual com base em uma função especializada da economia solidária e numa nova visão de vida diante da família, do trabalho e da espiritualidade –esperança- e fé em viver em comunidade. Defendemos que, com base na essencialidade da proposta de Divisão do Trabalho de Durkheim é possível fundamentar a ação socializadora da economia solidária para o apenado (DURKHEIM, 1986). Uma abordagem bem diferente, mas que nos ampara a pensar nesta saída é a de Habermas. Ele defende a necessidade de uma reestruturação do sistema de direitos como condição sine qua non para se evitar a tecnificação do mundo da vida pelos subsistemas do dinheiro e do poder administrativo e,

conseqüentemente,

realizar

os

direitos

humanos

como

direitos

econômicos, políticos e socioculturais de forma inclusiva de todos os seres humanos, concretizando, assim, os ideais de liberdade, igualdade e justiça. Se atualmente muitos não podem elaborar as normas para viverem, querem que ao menos sejam escutados e entendidos pelos normatizadores da sociedade democrática, pois esta precisam considerar os interesses mais universal possível: o direito ao trabalho e renda digna. Este é um principio moral que vai além da responsabilidade pessoal do preso. Por isso o Estado de Direito deve oferecer potenciais a estes excluídos de forma que a moral busque universalização no âmbito público, devendo ser realizada por todos, já crimes e violências não podem ser imputados somente a indivíduo que sofre a pena. Para que a formação política da opinião e da vontade racionalmente motivadora o Estado deve apresentar soluções, pois está amparado na discursividade legal dos direitos humanos (HABERMAS, 1997, v. I, p. 145 – 147). O direito, compreendido como um todo, abrange também os direitos fundamentais e estes têm como base o acesso ao trabalho e a renda. O direito é sistema de saber e, ao mesmo tempo, sistema de ação. (...) No direito, os motivos e orientações axiológicas estão interligados entre si num sistema de ação, por isso as proposições jurídicas tem

494

eficácia imediata para a ação, o mesmo não acontecendo com os juízos morais enquanto tais. De outro lado, as instituições jurídicas distinguem-se das ordens institucionais naturais através do seu elevado grau de racionalidade, pois nelas se cristaliza um sistema de saber sólido, configurado dogmaticamente e conectado a uma moral dirigida por princípios. E, como o direito está estabelecido simultaneamente nos níveis da cultura e da sociedade, ele pode compensar as fraquezas de uma moral racional que se atualiza primariamente na forma de um saber. (HABERMAS, 1997, v. I, p. 150).

Percebemos que esta reflexão nos ampara para falarmos de uma relação do saber do direito e do saber das práticas de economia solidária que pode ser canalizados para este público encarcerado. Verificamos, então, que a luta pela concretização dos direitos dos direitos humanos encontra ressonância nas práticas destes grupos organizados pela economia solidária, especialmente quando estas associações e cooperativas conseguem garantir trabalho e renda mais constante para todos os seus membros. A consolidação da autonomia destes grupos expressa também poderes para fortalecimento

da

democracia

participativa,

dos

saberes

emergentes,

decentes, urgentes e prudentes, pois são frutos de atores sociais munidos de liberdades substantivas (trabalho e renda). As experiências da economia solidária traduzem os muitos potenciais em que ela pode ser usada para assegurar vida digna a muitos indivíduos. No tocante ao público alvo deste estudo, os apenados, verificamos o enorme potencial educativo, formativo, organizativo e de ação concreta que a economia solidária proporciona a estes que fazem parte dos excluídos sociais 2. DESENVOLVIMENTO Percebemos, inicialmente, que as muitas experiências da economia solidária com apenados somente puderam acontecer com sujeitos que cumprem penas no regime “semi-aberto”, “aberto” e em “Livramento Condicional” e quando o judiciário apoiou as iniciativas dentro de estratégias de aplicação de penas alternativas, de cumprimento das prerrogativas constitucionais de ressocialização e, também, para concretizar designações 495

de efetivações dos direitos humanos. As políticas públicas têm apoiado experiências de organização de trabalho solidário que geram renda e agregam valores a indivíduos excluídos do sistema social, mas ainda carece de uma disposição institucional, legal e de saberes pertinentes para aplicar objetivamente a economia solidária nestes indivíduos em encarceramento. Esta pesquisa contribuiu para ampliar estes saberes que podem orientar a emergência de políticas públicas voltadas para este setor e sensibilizar as autoridades dedicadas a ofertar trabalho para apenados, cumprindo os preceitos legais e os princípios dos direitos humanos. 2.1.A solidariedade e a economia solidária Milhares de rede de economia solidária que vão se organizando pelo mundo

a

fora,

tornam-se

poderosos

atratores,

capazes

de

irradiar

desenvolvimento sustentável nos territórios que alcançam, na medida em que integrem estrategicamente seus fluxos de meios econômicos (bens tangíveis e intangíveis) e seus fluxos de valores econômicos (MANCE, 2008; 192). Esta expressão indica as imaginações que estão sendo criadas em torno das praticas de economia solidária como alternativas sistêmica ao capitalismo e noticiam sobre a amplitude sua como contraposto ao sistema de vida concorrencial do mercado atual. Numa missão de promover o bemviver das pessoas e a paz entre os povos pela pratica de uma consciência que já está nas pessoas a economia solidária teria o germe de uma revolução pacífica. Esta consciência seria revelada pela pratica de trabalho solidário, pela distribuição equitativa das rendas e riquezas produzidas. Ou seja, não há indivíduo que seja contra a um justo trabalho, a uma justa renda e a uma vida de paz e bem-viver. Esta força é interna e está a lógica humana que exige integração de um Eu a um Outro para juntos viverem. A lógica do sistema da vida humana é visualizada na lógica de uma proposta sistêmica de vida social, que não ameaça a lógica sistêmica do planeta. É aqui que devemos pensar a solidariedade da vida humana com a solidariedade do sistema planetário. Perceptível como participação de pessoas que consomem 496

ar, água, terra e energia e seus frutos. Não se pode destruir a fonte do que nos sustentam (TOURAINE, 1998). Então, a solidariedade envolve relações como a natureza e o meio ambiente, relações sociais, ideias e o bom uso do conhecimento. Como não somos todos iguais, procuramos fazer ações junto com o outro de modo a não desprezá-los e nem sermos tratados degradadamente por ele, ou, ainda, por sermos seres humanos iguais, a solidariedade significa aquele aspecto de nossa existência que entende que precisa do outro e que o outro precisa de mim. Se nascemos com a força solidária em nossa natureza (dependemos da mãe, do pai...), ao nos inserirmos na sociedade a solidariedade vai enfrentando muitos obstáculos para naturalmente se manifestar e se tornar social e, como tal, sofre os vícios de toda a socialização por dependência. A solidariedade faz parte de uma cultura de reconhecimento e pertencimento a um mundo que precisa convivência e complementaridade, sustentabilidade e respeitabilidade. Quanto maior a cultura de solidariedade, maior a possibilidade de alcançarmos uma vida moral coletiva, de modo a entender a dor e a humilhação do Outro, propondo a inclusão do “diferente” no nosso grupo social, aumentando os nossos acordos intersubjetivos e a referência a um nós. Ações solidárias não são linguagens apenas de contingência onde exigem apenas gentilezas, mas um permanente diálogo que desconstrói os ambientes de humilhação dos outros, favorecendo, assim, uma cultura de convivência dos diferentes. Entender a solidariedade é ver os agrupamentos de sujeitos livres que compartilham compromissos e ações coletivas, unidos através do sentimento de pertencimento coletivo, do compartilhamento dos interesses, da cidadania, de reconhecimento de sujeitos de direito. Neste sentido a solidariedade instaura a liberdade. Certamente,

em

uma

sociedade

esfacelada

como

a

nossa

a

solidariedade é também força e objetivo de lutas individuais e coletivas. Significa que a solidariedade não brota de sujeitos munidos de misantropias e atravessados por necessidades substanciais. É necessário uma via de mão dupla a responsabilidade de gerar renda digna que instaure a concretude de uma vida em que as necessidades genuínas estejam superadas (SEN,2010). 497

A renda auferida de modo coletivo, fruto da autogestão e carregado dos metabolismos humanos dos que se unem para ter vivencias dignas é uma das maiores fontes educadoras que existe e seus efeitos são percebidos como ressocializantes, não para a mesma sociedade que tem lógica excludente, mas para outra sociabilidade. 2.2. Renda digna A dignidade tem uma concretude de onde ela brota: a qualidade de vida, ou seja, quando sujeito não passa fome, quando consegue manter sua saúde ou recuperá-la casa adoeça, quando tem casa para morar, quando tem acesso a educação científica, quando consegue viver sua afetividade, quando consegue falar e ser ouvido e, especialmente, quando consegue trabalhar e auferir renda digna. Há lugares em que grupos produzem riquezas para poderem melhor aproveitar suas vidas, torná-las prazerosas, tornar as trocas uma forma de relação social. Alguns descobriram que a vida podia ser de outro modo longe da competição e da concorrência e criaram alternativas que davam sentido ao direito de viver segundo a natureza social dos sujeitos. Se sofremos quando o outro sofre e lutamos para diminuir o sofrimento dele, nos dedicamos ao Outro como nos dedicamos a um Nós isto quer dizer que somos solidários e não competidores. Trata-se de refletir em escala planetária, adotando a "identidade terrena" de que fala Edgar Morin (2008). Pensar a longo prazo, levar em conta as gerações que ainda não nasceram, mas que sofrerão as consequências de nossas escolhas atuais. Inserir-se em uma visão ecológicas e privilegiar o desenvolvimento duradouro, não separando a espécie humana dos outros componentes da natureza. Muitos buscam no outro os elementos de igualdade, como a amizade, a compreensão, a solidariedade e, quando encontram as diferenças, respeitam-nas e buscam formas de saber tratá-las, conviver com elas. Em

muitos

lugares

se

percebem

sabedorias

subjacentes,

não

colonizadas e nem colonizadoras. Assim, se os laços vivos da liberdade 498

persistem contra a lógica perversa do aprisionamento do lucro imediato, não há por que, como diz Habermas (1997), nos desesperarmos com o poder, a razão e o Estado. Estamos vivos, pensantes e capazes de linguagem, na universidade, na rua, na associação, na comunidade, então tudo pode ser criado. Para Boaventura de Sousa Santos(2009), estas experiências de vidas emancipadas espalhadas por aí, necessitando de serem unidas em uma nova alternativa de vida, em uma nova epistemologia e na utopia da igualdade, que continua viva. Essas práticas solidárias estão ao alcance de qualquer pessoa, pois falam a gramática do social, já que os homens não agem somente porque estão presos a uma situação tornada insuportável, mas também porque estão ligados a certas visões do possível. E a renda é um substrato fundamental que concretiza e motiva as vidas. Ela garante a sua liberdade substantiva como alimento, trabalho, educação e saúde, e permite que sejam aproveitadas as oportunidades econômicas,

a

liberdade

de

escolhas,

as

facilidades

sociais,

as

transparências e a segurança. Por isso não ha “sujeito desespero” e o fundamento da dignidade da humanidade da vida está em qualquer pessoa. Não se trata de fazer imaginar um super-homem capaz de resolver todos os problemas que a afetam, mas de entender os problemas e criar esforços para resolvê-los. Contudo, as liberdades substantivas de que desfrutamos para exercer

nossas

responsabilidades

são

extremamente

dependentes

circunstâncias políticas, culturais, sociais, econômicas e ambientais. A economia solidária congrega estas dimensões. Surge das antigas formas de trabalho familiar; transformou-se em uma alternativa de renda dos desempregados; se fortalece com as associações de catadores nas grandes cidades; se expande com o fortalecimento da agricultura familiar e do artesanato; se consolida com a criação de estudos de sua realidade, com o apoio das universidades incubadoras e com as politicas públicas; se globaliza como sendo uma forma de fazer empreendimentos produtor de renda constante diante das oscilações do mercado. Hoje está buscando maior reconhecimento, melhor organização e mais tecnologias para implementar seus fins de trabalho solidário e autonomia. 499

Responde

por

10%

do

PIB

brasileiro.

Isso

apenas

das

atividades

formalizadas, pois o conjunto de atividades informais que garante trabalho e renda para milhões de famílias é infinitamente maior.Suas atividades estão 35 % organizadas em forma de cooperativas e 32% são associações. Existem 11 leis estaduais sobre economia solidária e está presente em mais de 3 mil municípios.A economia solidária recebe apoio de diferentes ministérios. A Senaes – secretaria nacional de economia solidária, fazendo esforços para que esta pulverização de recursos sejam reunidas em um setor e garanta-se uma estrutura mais permanente de capacidade de fazer frente a várias demandas de exclusão social: ministérios - da agricultura, desenvolvimento social, saúde, justiça, ciência e tecnologia...Sua heterogeneidade advém também das emergências de novos ramos econômicos e da crise da onda neoliberal. É um caminho que a nova Europa vem adotando para proteger seus trabalhadores das oscilações econômicas. Criaram recentemente a Academia Européia dee Economia Solidária. A própria OIT recomenda que a economia solidária, com suas prerrogativas de autogestão e cooperação seja a alternativa para mudar o mundo a favor dos trabalhadores em geral. 2.3. Direito ao trabalho na prisão O pressuposto de que existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente nos leva a pensar que a natureza humana pode ser inserida em uma realidade organizada que a contemple. Não se trata de impor esta organização, mas de participar dela e assumi-la como uma das formas de contemplar nossa diversidade. Provavelmente se tivéssemos com acesso a aquilo que nos torna digno teríamos mais força para enfrentar as vulnerabilidades da violência e da estupidez. Minha qualidade de vida baseada saúde física, intelectual, mental e espiritual produziria menos estranhamento (ZOLL, 2007). Por isso o sonho dos direitos humanos concretizados é o sonho da sociedade ideal pensada por muitos lutadores sociais.Trata-se de criar uma cultura do nós e não remeter o outro para fora da humanidade. Assim, em todos os espaços é possível de serem criada esta cultura. O apenado pode 500

nunca

ter

ouvido

falar

desta

oportunidade.

Pelo

trabalho,

têm

a

possibilidade de orientar suas compreensões para outra vida possível. O trabalho é um direito universal. Quando uma pessoa é presa, ela não perde este direito, na verdade, de acordo com a Lei de Execuções Penais, o trabalho é tanto um direito quanto um dever daqueles que foram condenados e se encontram nos estabelecimentos prisionais. No entanto, estas atividades não devem se assemelhar a trabalhos forçados, cruéis ou degradantes. O objetivo do trabalho destinado aos presos não é aplicar uma segunda punição àquele que já tem a liberdade cerceada mas, pelo contrário, reabilitar e ressocializar o preso, auxiliando sua recuperação e preparando-o para a reinserção na vida em sociedade. Aí está um dos papeis dos direitos humanos: garantir as condições de uma comunicação franca, honesta e autônoma por onde as opiniões e a vontade podem ser entendidas e refinadas ao ponto de se institucionalizarem para ser vividas. Embora estejam formalmente escritos os direitos sociais e humanos não estão sendo efetivados em sua plenitude. Os estudos sobre a ressocialização mostram que os indivíduos que comentem agressões ao ordenamento jurídico são julgados mediante o devido processo legal e penalmente condenado com base nos indícios suficientes de autoria e materialidade (SALLA, 2011). O indivíduo, durante o cumprimento de sua pena, deve ter acesso aos meios que possibilitem a sua reeducação, garantindo assim a sua readaptação ao convívio social ao final da sua condenação. O cárcere possui um ambiente, em razão de sua antítese com a comunidade livre, converte-se em meio artificial, antinatural, que não permite realizar muito pouco de um trabalho reabilitador sobre o recluso. O sistema carcerário não reabilita o preso, sendo assim a pena privativa de liberdade perde o seu caráter ressocializador. Isto porque, nas prisões os presos são humilhados e violentados, sua dignidade e os seus direitos não são preservados, e, consequentemente aquele preso que deveria ser reeducado acaba voltando para a delinquência (BITENCOURT, 2001, p. 154-155). . 501

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, a Economia Solidária permite aos apenados e aos egressos das prisões uma alternativa de geração de renda lícita, uma vez que o peso do estigma de ser um ex-presidiário os impedem de conseguir um emprego, agravando ainda mais a situação da criminalidade e da exclusão social. A Economia Solidária, por sua forma organizativa e prospectiva é um grande antídoto da violência, uma forma ampla de inclusão social pelo trabalho e renda e se encaixa perfeitamente na estratégia de promoção dos direitos humanos, da justiça e das promoções de atividades ressocializantes de pessoas que sofrem a violência do aprisionamento. Os relatos de atores atuantes nos presídios mostram a forma possível é pela Educação: “ideia de que a associação do trabalho com a educação são os pilares para a emancipação humana dos detentos, pois essas duas concepções partem do princípio de que os saberes e significados construídos pelos próprios envolvidos (apenados), e não de um saber e conhecimento já pronto e formulado que, muitas vezes, não é significativo para o grupo” (SILVA, 2012). Todos reconhecem que o trabalho dos presos tem um papel muito importante em vários sentidos. Tanto no sentido de proporcionar uma ocupação, mas também representa uma oportunidade de ganhos e de qualificação profissional. Além, é claro, de colaborar com a manutenção da ordem interna nas prisões. O trabalho contribui para abrir perspectivas de vida para o preso. Há também a questão da autoestima. Enfim, há vários aspectos que são bastante positivos em relação ao trabalho. O grande desafio para os gestores públicos é que essa atividade acaba convivendo com outras preocupações inerentes ao contexto de uma unidade prisional, especialmente na área de segurança. O trabalho é, inquestionavelmente, uma atividade fundamental, sobretudo nessa perspectiva de criar oportunidades para que os presos possam experimentar perspectivas novas de vida. São muitos os problemas enfrentados pelo sistema prisional. Entre eles é do que sua crise se insere na crise dos controles sociais em si, que foram montados para enfrentar os 502

efeitos da má socialização e não os processos que levam os sujeitos a criminalização.

Efeito

da

lógica

perversa

de

exclusão

da

sociedade

capitalista, os sistemas prisionais são a síntese da cultura de desrespeito a dignidade da vida.... A Economia Solidária poderia melhor cumprir suas perspectivas se estiver acoplada a um programa sistêmico do Estado e de Direitos Humanos. Se não possuir um amplo programa políticas públicas de ressocialização, os efeitos da Economia Solidária no atual sistema prisional serão muito residuais. É a lógica perversa de exclusão da sociedade capitalista que torna os sistemas prisionais ainda mais uma síntese da cultura de desrespeito a dignidade da vida. Por outro lado, ficou claro que a apresentação de meios alternativos de vida e amplia as possibilidades de ressocialização dessas pessoas. Se apresentarmos a Economia Solidária como um meio de fazer com que estas pessoas possam ter uma ocupação e uma fonte de renda justa é possível reverter a situação de muitos sujeitos presentes nas realidades prisionais. Não por que ela foi feita para esta situação, mas por que a Economia Solidária traz o germe de uma nova civilização e suas dimensões práticas desafiam os poderes públicos e a sociedade civil e mobilizar esforços de combate às misantropias humanas. O Estado e seus representantes julgadores e aplicadores da pena estão de mãos atadas diante dos comprometimentos

funcionais.

Arremedam

algumas

alternativas,

mas

sabem da pouca ressonância de um trabalho isolado, fora de um contexto transformativo mais amplo que proponha perspectivas de vida digna, justa e pacífica. REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2. ed São Paulo: Saraiva, 2001. DURKHEIM , Emile. A Divisão do trabalho social. Vl 1. Lisboa, Editora Presença, 1986. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2v. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1997. 503

MANCE, Euclides André. A revolução das Redes: a colaboração solidária como uma alternativa pós-capitalista à globalização atual. Petrópolis, RJ: Vozes. 1999. MORIN, Edgar. O Metodo 6. Ética. Porto Alegre: Sulina 2008. TOURAINE, Alan. Podemos viver juntos? Iguais e Diferentes. Petrópolis (RJ): Vozes.1998. SALLA, F-FUNAP. Carpediem – Atenção ao indivíduo e Respeito a sociedade ( projeto de ressocialização de presos da Secretaria de Administração Penitenciária do município de Sorocaba -São Paulo, 2011). SILVA, Enio Waldir da. Sociologia Juridica. Ijuí/RS: Unijuí. 2012. SOUSA SANTOS, Boaventura de. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: Sociologia jurídica critica. Madrid: Trota; Bogotá: Ilsa.2009. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. ZOLL, I. O que é solidariedade hoje. Ijui/RS: Editora Unijui, 2007.

504

O ASPECTO INTERNACIONAL E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA INTERAMERICANO A PARTIR DO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA André Giovane de Castro1 Marcelo Loeblein dos Santos2 1. INTRODUÇÃO A necessidade de proclamar a dignidade da pessoa humana deu ensejo à criação de direitos e garantias em nível internacional. O período iluminista, vivenciado no século XVIII, abriu um espaço de discussões para a promoção de ordenamentos jurídicos que viessem ao encontro da efetivação de uma vida digna. O século XX, porém, em razão da violência contra o ser humano e dos milhares de mortos durante a Segunda Guerra Mundial, tornou-se um marco ao fortalecimento dos tratados internacionais sobre a temática dos direitos humanos. Com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, o assunto ganhou repercussão e, em 1948, instituiu-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, enquanto texto de cunho internacional a respeito da matéria. O debate sobre a inserção do ser humano como sujeito do Direito Internacional, a partir de então, foi incluído na pauta de consolidação e garantia dos direitos do homem. Enquanto o Estado apresenta-se como principal sujeito, o indivíduo busca também alcançar este título, uma vez que as prerrogativas seriam maiores perante os tribunais internacionais. Apenas elaborar textos que satisfaçam aos interesses da comunidade internacional, porém, não resulta significativamente na garantia dos respectivos direitos. Para tanto, a partir da segunda metade do século passado, foram criados sistemas regionais com o intuito, entre outros, de dar sanção aos países que violarem os direitos humanos. Destacam-se, entre Aluno do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). [email protected] 2 Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Professor do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). [email protected] 1

505

os mais fortalecidos, os sistemas da África, América e Europa. Neste trabalho, portanto, apresentamos com mais ênfase o Pacto de São José da Costa Rica, ou Convenção Americana de Direitos Humanos, datado de 1969. Este texto estabeleceu a constituição da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujo objetivo se encontra na consolidação do princípio máster da dignidade da pessoa humana. 2. A RAZÃO EXISTENCIAL DOS DIREITOS HUMANOS A sociedade contemporânea utiliza de maneira intensa o discurso acerca

dos

direitos

humanos.

Com

o

fortalecimento

dos

sistemas

democráticos, deu-se abertura para a consolidação de direitos e garantias aos cidadãos, uma vez que se constituem enquanto sujeitos e protagonistas da história. Após a Segunda Guerra Mundial, surgiu a necessidade de se instituir mecanismos internacionais que viessem de encontro às barbáries cometidas durante o respectivo evento de guerra. Ao compreender o homem em sua personalidade, percebeu-se a importância de zelar pela sua dignidade, o que corrobora os denominados direitos humanos. O

Direito

Internacional,

assim,

dedicou-se

a

estudar

os

acontecimentos liderados pelo ditador alemão Adolfo Hitler. Nesse tocante, conforme ensina Guerra (2013, p. 470), acerca dos desafios após 1945: [...] o moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra e seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte dessas violações poderia ter sido prevenida se um efetivo sistema de proteção internacional dos direitos humanos já existisse, o que motivou o surgimento da Organização das Nações Unidas, em 1945.

Em razão das atrocidades cometidas no decorrer da Segunda Guerra Mundial, de acordo com Braun (2002, p. 105), “houve a necessidade de reconstrução do valor dos direitos humanos como um paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional”. A partir do momento em que o ser humano se tornou o centro do debate, entendeu-se o direito 506

humano como “[...] um direito moral universal, algo que todos os homens em toda a parte, em todos os tempos, devem ter algo do qual ninguém pode ser privado, sem uma grave ofensa à justiça, algo que é devido a todo o ser humano simplesmente porque é um ser humano” (Cranston, apud GORCZEVISKI, 2005, p. 22). Nesse raciocínio, Vieira (2015, p. 102-103) contribui ao afirmar que: Os direitos humanos, enquanto fruto dos reclames democráticos de um conjunto de movimentos de construção histórica em favor do pleno desenvolvimento do ser humano, referem-se, contemporaneamente, à institucionalização e à promoção de um mínimo ético universal, pela garantia de direitos básicos, sejam estes civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, a serem considerados e realizados de forma integrada e indivisível, a todos os seres humanos no planeta Terra, indistintamente, universalmente.

Os

direitos

genericamente

humanos,

enquanto

um

portanto, conjunto

podem de

normas

ser que

conceituados compõe

o

ordenamento jurídico, entendidos como direitos inerentes ao ser humano. Eles se constituem na representação das condições elementares da natureza humana, compondo o conceito de indivíduo nas dimensões da matéria, do espírito e do social, para que o homem possa exercer com plenitude as liberdades da vida, na condição de membro de uma sociedade de direitos. 2.1 A origem dos direitos do homem Os direitos individuais remontam ao Egito e à Mesopotâmia, onde já poderiam ser encontrados sistemas jurídicos que preconizavam a essência do ser humano. Porém, conforme ensina Guerra (2013, p. 460): É no período chamado do Direito Cuneiforme que começam a surgir os “códigos”, a exemplo do Código de Hamurabi (1690 a.C.), que talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, provendo a supremacia das leis em relação aos seus governantes.

Trata-se de direitos incorporados na sociedade desde a Idade Antiga. Contudo, a aplicabilidade ainda era restrita, ou quase nula. Foi a partir do 507

século XVIII, com o advento do Iluminismo, que surgiram ideias tendo como cerne o ser humano e, de tal feita, instituiu-se o Século das Declarações em virtude da fundamentação baseada na racionalidade, num direito natural que transcende os demais e se aplica do mesmo modo a todos. Os direitos ficaram expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, publicada em 1789 na Assembleia Nacional Francesa. Este acontecimento pode ser definido como um marco na história da valorização humana, pois para Bobbio (1992, p. 85) foi “um daqueles momentos decisivos, pelo menos simbolicamente, que assinalam o fim de uma época e o início de outra, e, portanto, indicam uma virada na história do gênero humano”. Nele, consagram-se, entre outros, os princípios da igualdade, da liberdade, da legalidade, da presunção de inocência e da livre manifestação de pensamento (GUERRA, 2013). A compreensão é de que, não obstante os direitos humanos sejam inerentes à própria natureza humana, seu reconhecimento e sua proteção são decorrentes de um processo histórico lento e gradual, com alguns avanços e retrocessos, tendo sido afirmados de acordo com as lutas das gerações que movimentam a sociedade. O conjunto de direitos fundamentais na sociedade contemporânea, de acordo com Schafer (2005, p. 12), “assume vital importância em uma sociedade complexa e marcadamente difusa”. Os direitos de primeira geração compreendem os civis e políticos. O Estado só pode agir nos limites traçados pela lei. Os direitos à vida, à liberdade e à propriedade são doravante protegidos pela lei. Os de segunda geração referem-se aos econômicos, sociais e culturais objetivando a igualdade, tendo o Estado a função promocional. Nesta dimensão, os direitos são individuais e coletivos e o Estado possui uma concepção política. As garantias fundamentais de terceira geração materializam-se pelos direitos coletivos, que possuem como destinatários toda a coletividade e as formações sociais, com acepção difusa e se consagram no princípio da solidariedade. Os direitos de quarta geração, segundo Bonavides (2000, p. 27), estão relacionados com “a democracia, o direito à informação, o pluralismo, a efetivação dos direitos humanos, direitos que exigem uma 508

democracia direta”. A partir de toda essa trajetória, Bobbio (1992, p. 26) afirma que: A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade.

Datada de 1948, a Declaração Universal significa que todos os cidadãos compartilham de valores comuns. É a partir dela, portanto, que se inicia um novo processo de efetivação dos direitos humanos, baseado na internacionalização, cujo objetivo é unir os Estados em prol da garantia eficaz dos direitos do homem. 2.2 A internacionalização dos direitos do homem A partir da Organização das Nações Unidas (ONU), uma série de textos normativos é elaborada, cujo foco se baseia na promoção de dignidade ao ser humano. Entre eles, merece salientar a Declaração Universal dos Direitos Humanos; o Pacto de Direitos Civis e Políticos; o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção Sobre Discriminação Racial; a Convenção Sobre os Direitos da Mulher; a Convenção Sobre a Tortura; e a Convenção Sobre os Direitos da Criança. O marco que registra o processo de internacionalização dos direitos humanos foi o ano de 1946, quando o Conselho Econômico e Social instituiu a Comissão de Direitos Humanos em conformidade com o disposto no artigo 68 da Carta das Nações Unidas. Esta Comissão, após três anos de trabalho, apresentou o projeto da Declaração Universal dos Direitos Humanos para a Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1948. Apesar de ter sofrido inúmeras criticas ideológicas, culturais, religiosas, morais, sociais e filosóficas, em virtude de suas diferentes concepções, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece a igualdade essencial de todo o ser humano em sua dignidade de pessoa, enquanto fonte de todos os valores. Assim, assevera Silva (1999, p. 169) que 509

“[...] a condição de pessoa humana é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos”. Após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, foram realizados Pactos, Convenções e Protocolos Internacionais para convencionar com os Estados as obrigações e providências a serem tomadas tanto por esforço próprio, quanto pela cooperação de outros Estados, permitindo o gozo dos direitos reconhecidos através das declarações de intenções. 3.

A

PESSOA

HUMANA

ENQUANTO

SUJEITO

DO

DIREITO

INTERNACIONAL O título de sujeito do Direito Internacional para o ser humano continua dividindo entendimentos. Conforme Guerra (2013, p. 477), “[...] a pessoa humana era relegada sempre a um plano inferior e, no pós-Segunda Guerra Mundial, uma profunda alteração se deu, em razão de os direitos humanos terem sido internacionalizados, a começar pela criação da ONU”. Apesar de ser ele o protagonista e destinatário dos direitos assegurados em textos normativos de âmbito universal, ainda não há consenso quanto à sua definição como sujeito. Em posição favorável, defende Bobbio (1992, p. 103): [...] Os direitos do homem, que tinham sido e continuam a ser afirmados nas Constituições dos Estados particulares, são hoje reconhecidos e solenemente proclamados no âmbito da comunidade internacional, com uma consequência que abalou literalmente a doutrina e a prática do direito internacional: todo indivíduo foi elevado a sujeito potencial da comunidade internacional, cujos sujeitos até agora considerados eram, eminentemente, os Estados soberanos.

Do mesmo aspecto, contribui Vieira (2015, p. 127): Com a assimilação axiológica dos direitos humanos na ordem política global, a pessoa individual passa a sustentar cada vez mais o status de pessoa jurídica de Direito Internacional. Ora, se o ser humano individualmente tem direitos reconhecidos universalmente, nada mais lógico do que ostentar capacidade como personalidade internacional.

510

É necessário compreender que a evolução do ser humano ao nível de sujeito do Direito Internacional garante a consolidação dos direitos do homem, uma vez que a participação nos organismos representativos em âmbito universal será mais intensa, o que possibilitará que as violações aos direitos sejam mais ágil e eficazmente resolvidas. Em sendo sujeito do Direito

Internacional,

o

ser

humano

avança

substancialmente

sua

participação em tais órgãos, destacando, conforme Vieira (2015, p. 127), a ampliação da “[...] capacidade de peticionar e denunciar em caso de violação, seja para a ONU ou para os sistemas de proteção regionais”. Enquanto a corrente mais conservadora da doutrina entende que o indivíduo não detém personalidade jurídica de Direito Internacional, o presente Direito Internacional dos Direitos Humanos discorda ao definir o ser humano como sujeito, pois possui personalidade e capacidade jurídica nas esferas interna e externa. Assim, enfatiza Cançado Trindade (2006, p. 17-18): O ser humano passa a ocupar, em nossos dias, a posição central que lhe corresponde, como sujeito do direito tanto interno como internacional, em meio ao processo de humanização do Direito Internacional, o qual passa a se ocupar mais diretamente da identificação e realização de valores e metas comuns superiores.

O ser humano, à vista disso, constitui uma história em busca do protagonismo perante o Direito Internacional. Conforme enfatiza Guerra (2013, p. 468), “embora já se possa admitir a pessoa humana como sujeito de direito internacional e reconhecendo os avanços da matéria, impende assinalar que muito ainda deve ser feito”. Antes, portanto, somente o Estado era entendido como sujeito, o que criava uma espécie de relação interestatal de Direito Internacional. Pela existência de instituições internacionais e regionais que visam a regular a aplicabilidade dos direitos humanos, cabe entender o indivíduo como sujeito. 4. OS SISTEMAS REGIONAIS DE DIREITOS HUMANOS A intenção de elaborar mecanismos consistentes para a garantia dos 511

direitos humanos, visando à responsabilização do Estado que os violar, resultou na criação de sistemas regionais. Os principais, ora vigentes, são os da África, da América e da Europa. A internacionalização dos direitos humanos, de acordo com Guerra (2013, p. 483), fez com que estes deixassem “de pertencer à jurisdição doméstica ou ao domínio reservado dos Estados”. Assim, buscando aproximar os organismos dos Estados, constituíramse planos regionais, dos quais se destaca a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, que estabeleceu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana, constituindo, assim, o sistema interamericano. Já o europeu resultou da Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1950, que instituiu de forma inicial a Comissão e a Corte Europeia de Direitos Humanos, cujas instituições foram fundidas com o Protocolo nº 11, de 1998. E o sistema africano, com base na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981, conta com a Comissão Africana de Direitos Humanos e, através de Protocolo à Carta datado de 1998, criouse a Corte Africana de Direitos Humanos. Entre os objetivos desse modelo, alicerçado no debate internacional de efetivação dos direitos humanos, Vieira (2015, p. 113) afirma: Os sistemas regionais têm o condão de reforçar ou mesmo mediar a linguagem por meio de tratados internacionais, estabelecendo instituições próprias, mais próximas dos Estados e de seus povos, geográfica e simbolicamente, produzindo inovações consideráveis nos meios de instituição e responsabilização internacional dos Estados por violação dos direitos humanos, com destaque à jurisdicionalização internacional.

Percebe-se, diante desse cenário, que os organismos internacionais, almejando

construir

instrumentos

que

satisfaçam

aos

clamores

da

população que sofre com a violação dos direitos humanos, encontraram nos sistemas regionais uma forma de aproximar a jurisdição dos problemas sociais, de modo a garantir com mais ênfase a promoção da dignidade da pessoa humana, enquanto princípio máster da Declaração Universal dos Direitos Humanos e outros textos de âmbito internacional que versam sobre a respectiva temática. 512

Assim,

conforme

Christof

Heyns

e

Frans

Viljoe

(1999,

apud

PIOVESAN, 2012, p. 318): Enquanto o sistema global de proteção dos direitos humanos geralmente sofre com a ausência de uma capacidade sancionatória que têm os sistemas nacionais, os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos apresentam vantagens comparativamente ao sistema da ONU: podem refletir com maior autenticidade as peculiaridades e os valores históricos de povos de uma determinada região, resultando em uma aceitação mais espontânea e, devido à aproximação geográfica dos Estados envolvidos, os sistemas regionais têm a potencialidade de exercer fortes pressões em face de Estados vizinhos, em caso de violações.

As peculiaridades encontradas em cada Estado e a agilidade em favor do aspecto sancionatório e, principalmente, o cumprimento das sentenças são os fatores que impulsionam e enfatizam o resultado benéfico dos sistemas regionais, constatados na África, América e Europa. A partir dessas considerações, verifica-se o compromisso internacional, com apoio dos respectivos continentes, com a consolidação dos direitos humanos. 4.1. Africano A Carta Africana de Direitos do Homem e dos Povos, de 1981, representa para o continente africano o documento marcante para o processo de efetivação dos direitos humanos. A proteção do indivíduo, em uma das regiões mais pobres do mundo, ganha um novo olhar com a instituição de mecanismos que visam a promover a dignidade. Essa afirmação é corroborada por Delgado (2001, apud FERNANDES, 2014, p. 1), ao enaltecer que o “tratado apresenta características peculiares, em razão do próprio contexto sociopolítico no qual se insere a maioria dos países signatários, enfatizando, por isso, a eliminação de quaisquer formas de opressão e colonialismo, como o direito ao desenvolvimento dos povos”. Os documentos que consagram o sistema africano, diferentemente dos presentes na América e Europa, enfatizam a proteção acerca de direitos dos povos, como a autodeterminação dos povos, a paz, o desenvolvimento econômico, social e cultural. Ainda, salienta-se a preocupação dos textos 513

com deveres de cada indivíduo diante de sua família, sociedade e Estado. De acordo com Fernandes (2014, p. 1), “inspirados nas suas tradições históricas e nos valores da civilização africana, reconheceram que os direitos fundamentais do ser humano se baseiam nos atributos da pessoa humana, o que justifica a sua proteção internacional”. Apesar de o sistema africano ser significativamente válido no que tange ao respeito e à busca pela dignidade na vida de cada indivíduo, ele ainda sofre com problemas estruturais, muito em razão da situação econômica e política dos Estados que integram o continente. Nesse sentido, Vieira (2015, p. 116) assevera que “o maior freio a seu desenvolvimento efetivo tem sido a fragilidade institucional persistente tanto nos Estados quanto no sistema interestatal posto”. Ao abordar os possíveis motivos que ainda causam a fragilidade do respectivo sistema, Guerra (2013, p. 533) menciona os seguintes aspectos: [...] I) falta de recursos financeiros; II) falta de interesse político por alguns Estados; III) falta de maturidade política; IV) falta de unidade; V) falta do desenvolvimento de maior cultura dos direitos humanos; VI) falta de desenvolvimento; VII) outros fatores que comprometem o alcance de bons resultados nesse mister.

Merece salientar, no entanto, o compromisso assumido por alguns dos Estados

africanos

com

a

bandeira

defendida

pelo

recente

Direito

Internacional dos Direitos Humanos. As dificuldades históricas da região, porém, não retiram a legitimidade do tratado que visa, em conjunto com os sistemas da América e da Europa, fortalecer o indivíduo como possuidor de direitos e, como tal, ser respeitado. 4.2. Americano Aprovadas em 1948, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e a Carta Internacional Americana de Garantias Sociais representam textos que iniciaram no continente americano o debate sobre os direitos fundamentais do homem, hoje consagrados em diversas Constituições dos Estados. A Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida 514

como Pacto de São José da Costa Rica, datada de 1969, constituiu dois órgãos destinados à proteção de tal matéria, quais sejam, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Salienta-se, ainda, com relação a textos que corroboram a mesma temática, o Protocolo Adicional da Convenção Americana de Direitos Humanos na área de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ou somente Protocolo de São Salvador, de 1988. O Pacto entrou em vigência em 1978, mas somente em 1992 o Brasil aderiu. Já em 1998 o Estado brasileiro reconheceu, por intermédio do Decreto Legislativo nº 89, de 3 de dezembro de 1998, a competência jurisdicional da Corte e, através do Decreto nº 4.463, de 8 de novembro de 2002, promulgou a Declaração de Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana em todos os casos concernentes à interpretação ou aplicação dos dispositivos elencados na Convenção Americana de Direitos Humanos. Com relação ao Estado brasileiro, Ramina (2006, p. 87) observa que: [...] o artigo 5º, § 2º, não deixa dúvidas acerca da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos. Partindo-se dessa perspectiva, diante de um conflito entre dispositivo constitucional e tratado de direitos humanos, aplicar-se-ia o tratado, em virtude de a própria Constituição dar primazia aos direitos e garantias individuais nela previstos, não excluindo outros estabelecidos em tratados ratificados pelo Brasil e, assim, de observância compulsória na ordem interna, inclusive pelo Judiciário.

Percebe-se, assim, o desejo do Estado brasileiro em proteger os direitos inerentes ao próprio indivíduo. Nesse aspecto, os constituintes de 1988, após o término da ditadura militar e início do processo de redemocratização, atentaram-se a esse fato e inseriram no texto um extenso rol de direitos e garantias dos seres humanos. Diante desse cenário, Braun (2002, p. 101) assevera que “a institucionalização das liberdades fundamentais na Constituição de 1988 contribuiu para que a política brasileira de direitos humanos mudasse significativamente, em especial, no reconhecimento das obrigações internacionais sobre a matéria”.

515

4.3. Europeu O continente europeu foi o palco do maior evento de guerra do mundo. Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial e das atrocidades cometidas contra os seres humanos, principalmente em virtude da ideologia nazista, liderada por Hitler, surgiu a necessidade de reparar e, de modo enfático, constituir organismos em prol da proteção dos direitos humanos. O início desse processo ocorreu com a instituição do Conselho Europeu, consolidado em 1950 pela sua Convenção. Os direitos civis e políticos integraram, inicialmente, a Convenção Europeia de 1950. O documento, ainda, contribuiu significativamente em razão de criar órgãos que fiscalizassem e julgassem os casos de violação aos referidos direitos. Nesse tocante, afirma Comparato (1999, apudGUERRA, 2013, p. 511) que “a existência de órgãos incumbidos de fiscalizar o respeito aos direitos humanos e julgar as suas eventuais violações, dentro de cada Estado, é uma questão crucial para o progresso do sistema internacional de proteção da pessoa humana”. No ano de 1992, com o Tratado de Maastricht, constituiu-se a União Europeia, de modo a reiterar o compromisso com os direitos fundamentais determinados na Convenção Europeia de Direitos Humanos. Já em 2000, com a adoção da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ocorre mais um avanço importante na temática em voga, pois elenca direitos sociais e econômicos como necessários de proteção na sociedade. É mister assinalar, ainda, que o sistema regional, adotado na Europa, segundo Guerra (2013, p. 515), “é extremamente avançado, haja vista que defere condição para a pessoa humana litigar diretamente no Tribunal Europeu, sem que haja intervenção de terceiros, por violação aos direitos humanos”. Trata-se, pois, de uma garantia ao indivíduo de buscar a proteção ao direito que fora transgredido, o que corrobora o anseio de ter o ser humano enquanto efetivo sujeito do Direito Internacional.

516

5. A CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA Os direitos humanos, apesar de diversos textos os regulamentarem, sofrem de um problema, que é a efetivação de tais garantias aos seus destinatários, ou seja, os próprios seres humanos. Assinala, nesse tocante, Bobbio (1992, p. 25): Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual era sua natureza ou fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.

A partir desse embate e com o intuito de garantir que os tratados não sejam apenas letras mortas, o Tratado de São José da Costa Rica consolidou organismos em vista à promoção dos direitos fundamentais do ser humano. Assim, tornou-se um documento que agrega aos anseios determinados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com o almejo de proteger e observar a aplicação dos respectivos direitos da temática supramencionada, busca encaminhar recomendações aos Estados-partes, de forma a apresentar medidas a serem adotadas pelo governo estatal na garantia da dignidade da pessoa humana; constituir análises e relatórios, caso

necessários,

para

a

observância

dos

índices

de

efetivação

e

aplicabilidade dos direitos humanos; e, ainda, entre outras atribuições, incumbe-lhe enviar à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos um relatório anual. Denúncias de violação dos direitos humanos, encaminhadas por indivíduo ou grupo, são remetidas à Comissão, cuja responsabilidade é a de examinar as solicitações. Salienta Pantoni (2011, p. 1) que, “além destas petições individuais, a Comissão pode receber petições interestatais contendo violações a direitos humanos”. Assim, ao receber a denúncia, os membros analisam a sua admissibilidade e, em seguida, requerem informações ao Estado denunciado, uma vez que se preza pelo princípio do 517

contraditório. Em sendo confirmada a existência de violação de direito, a Comissão buscará com as partes uma solução amistosa. Caso não seja possível, cabe à Comissão redigir um relatório com recomendações ao Estado-parte, o qual possui o prazo de três meses para solucionar o problema ou, caso não o faça, pode ser remetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja competência abrange os aspectos consultivo e contencioso, é o órgão jurisdicional do sistema americano de proteção aos direitos humanos. Quanto à área consultiva, cabe a ela interpretar a própria Convenção que lhe instituiu, bem como

outros

tratados

que

versem

sobre

essa

matéria.

E,

agindo

contenciosamente, tem a incumbência de julgar casos que envolvam os Estados-partes, isto é, que reconhecem a respectiva jurisdição, como, no caso, o Brasil. Na hipótese de constatar que houve violação de direito assegurado pela Convenção, a Corte determina que o Estado restaure o direito violado e, ainda, se preciso, que faça a compensação pecuniária à vítima. Portanto, conforme Buergenthal (1984, apudPIOVESAN, 2012, p. 326), “os Estados têm, consequentemente, deveres positivos e negativos, ou seja, eles têm a obrigação de não violar os direitos garantidos pela Convenção e têm o dever de adotar as medidas necessárias e razoáveis para assegurar o pleno exercício destes direitos”. A partir do exposto e de acordo com Piovesan (2012 p. 354), “[...] o sistema interamericano está se consolidando como importante e eficaz estratégia de proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais se mostram omissas ou falhas”. Porém, há uma preocupação acerca do cumprimento das sentenças, que não deve se ater exclusivamente ao aspecto pecuniário, mas, sim, com a execução de investigação e adoção de medidas para coibir a prática violadora dos direitos humanos. Afirma, ainda, Cançado Trindade (2006, p. 115) que há o debate sobre a necessidade de se “[...] assegurar a maior participação possível dos indivíduos, das supostas vítimas, no procedimento perante a Corte Interamericana, sem a intermediação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos”. 518

No

atual

contexto,

portanto,

ganha

relevância

a

proposta

de

democratização do acesso à Corte pelos indivíduos, hoje somente possível pelos Estados-partes e pela Comissão. Assim, a participação do ser humano e de entidades tornar-se-ia mais relevante e assídua, o que resultaria beneficamente na luta pela promoção de dignidade à pessoa humana. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os

direitos

humanos

tornaram-se

instrumentos

de

alcance

internacional com o objetivo de garantir o mínimo de dignidade ao indivíduo. Mesmo que presentes desde a Antiguidade nas sociedades do Egito e Mesopotâmia, foi somente a partir da Segunda Guerra Mundial e com a criação da Organização das Nações Unidos, no final da primeira metade do século XX, que eles ganharam repercussão internacional. A partir da compreensão de que, segundo Dallari (2004, p. 14), “os direitos humanos fundamentais são os mesmos para todos os seres humanos”, diversos tratados e convenções foram elaborados com o intuito de normatizá-los. Em 1946 houve o marco de internacionalização dos direitos humanos, quando o Conselho Econômico e Social instituiu a Comissão de Direitos Humanos para apresentar o projeto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada em 1948. O debate, a partir de então, focou-se na definição do indivíduo enquanto sujeito do Direito Internacional. Apesar de dividir opiniões, prevalece a concepção de que ele merece ser protagonista desse cenário mundial. Em recebendo esse título, propiciar-lhe-á a participação nos organismos representativos em âmbito universal. Não obstante sejam inerentes à natureza humana, o reconhecimento e a efetivação de tais direitos apresentam-se como um processo lento e gradual. Por isso, visando à responsabilização do Estado que os violar, houve a criação de sistemas regionais, sendo os da África, resultante da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos; da América, a partir da Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, de 1969; e da Europa, com base na Convenção 519

Europeia de Direitos Humanos, de 1950. Diante dessa estrutura internacional e com o apoio dos Estados, afirma-se o interesse de construir instrumentos que satisfaçam aos clamores da população que sofre com a violação dos direitos humanos. Os sistemas regionais servem, portanto, como uma forma de aproximar a jurisdição dos problemas sociais, de modo a garantir com mais ênfase a promoção da dignidade da pessoa humana. No âmbito do sistema interamericano, verifica-se a existência da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, fundadas no intuito de proteger e observar a aplicação das sanções. As denúncias, encaminhados por indivíduo ou grupo, são remetidas à Comissão, que detém a responsabilidade de examinar as solicitações e, posteriormente, requerer informações ao Estado denunciado. Ao ser confirmada a existência de violação, o órgão buscará com as partes uma solução amistosa e, não sendo possível, redigirá um relatório com recomendações ao Estado-parte, o qual possui o prazo de três meses para solucionar o problema ou, caso não o faça, pode ser remetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte possui competência consultiva e contenciosa. Portanto, cabe aos seus membros interpretarem a própria Convenção que lhe instituiu, bem como

outros

tratados

que

versem

sobre

essa

matéria.

E,

agindo

contenciosamente, tem a incumbência de julgar casos que envolvam os Estados-partes, isto é, que reconhecem a respectiva jurisdição, como, no caso, o Brasil. Na hipótese de constatar que houve violação de direito assegurado pela Convenção, a Corte determina que o Estado restaure o direito violado e, ainda, se preciso, que faça a compensação pecuniária à vítima. Há desafios a serem enfrentados, como o cumprimento das sentenças e a democratização do acesso dos indivíduos aos órgãos regionais. Mas, conforme Bicudo (1997, p. 10), nota-se que os direitos em discussão chegam “[...] como uma imposição da comunidade dos homens, traduzida em tratados e convenções internacionais, ingressando, por último, na legislação ordinária dos Estados, configurando todo o processo que serve de fundamento

maior

à

própria

democracia

[...]”.

Percebe-se

que

a 520

internacionalização e a criação de sistemas regionais, com aprofundamento neste

trabalho

ao

interamericano,

resultaram

em

um

processo

de

consolidação dos direitos humanos. A proteção ao indivíduo encontra-se, à vista disso, como bandeira importante no âmbito universal. REFERÊNCIAS BICUDO, Hélio. Direitos humanos e sua proteção. 1ª ed. Coleção juristas da atualidade. São Paulo: FTD, 1997. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 17ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. BRAUN, Helenice. O Brasil e os direitos humanos: a incorporação dos tratados em questão. 1ª ed. Ijuí/RS: Unijuí, 2001. DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2ª ed. reform. São Paulo: Moderna, 2004. FERNANDES, David Augusto. Direitos humanos e o Direito Internacional do Desenvolvimento. Jus Navigandi, Teresina, dezembro de 2014. Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2015. GORCZEVSKI, Clovis. Direitos Humanos: dos primórdios da Humanidade ao Brasil de Hoje. 1ª ed. Porto Alegre/RS: Imprensa Livre, 2005. GUERRA, Sidney. Curso de Direito Internacional Público. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. PANTONI, Roberta Alessandra. A justicialização dos direitos humanos no sistema global e interamericano: o direito humano ao desenvolvimento. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2750, 11 jan. 2011. Disponível em: . Acesso em: 21 ago. 2015. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Internacional. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

Direito

Constitucional

RAMINA, Larissa. Direito Internacional Convencional: tratados em geral, tratados em matéria tributária e tratados de direitos humanos. 1ª ed. Ijuí/RS: Unijuí, 2006. SCHAFER, Jairo. Classificação dos Direitos Fundamentais. Do Sistema Geracional ao Sistema Unitário – uma proposta de compreensão. Porto 521

Alegre/RS: Livraria do Advogado, 2005. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A humanização internacional. 1ª ed. Belo Horizonte/MG: Del Rey, 2006.

do

direito

VIEIRA, Gustavo Oliveira. Constitucionalismo na mundialização: desafios e perspectivas da democracia e dos direitos humanos. 1ª ed. Ijuí/RS: Unijuí, 2015.

522

O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: (IN)APLICABILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL Juliana Bedin Grando1 Renata Maciel2 1. INTRODUÇÃO A conquista dos direitos humanos tem principal destaque o século XX, pois o encerramento da Segunda Guerra Mundial no ano de 1945, e, em especial, a criação da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 inauguram um novo patamar dos direitos humanos, pois consagra-se a sua universalidade e indivisbilidade. Incorporando-se tal disposição, a Constituição Federal de 1988 brasileira assegura uma ampla gama de direitos humanos que são elevados ao patamar de fundamentais e sociais. Tendo-se, dessa forma, assegurado o princípio formador da República: a dignidade da pessoa humana. Um destes direitos previstos tanto na declaração de 1948, quanto na Consituição de 1988 é o direito à saúde. Falando-se em especial da Constituição de 1988, esta assegura que o direito à saúde, é um direito fundamental e social universal, fato que não demonstra interesse do legislador em restringir o acesso a este direito. No entanto, um instituto criado na jurisprudência alemã tem levado à discussão a universalidade do direito à saúde: a reserva do possível. Nessa senda, o presente ensaio, por meio da pesquisa bibliográfica, destina-se a discutir em um primeiro momento o direito à saúde enquanto um direito humano e fundamental reconhecido pela lesgislação; na sequência, analisarse-á o instituto da reserva do possível; e, por fim, a possibilidade de aplicação da resreva do possível nas decisões que versem acerca do direito à saúde no Brasil. Graduada em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Mestranda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Email: [email protected]. 2Mestranda em Direitos Humanos pela UNIJUI, vinculada a Linha de Pesquisa Direitos Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos. Bolsista FAPERGS. Bacharel em Direito pela UNIJUI. E-mail: [email protected]. 1

523

2. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SOCIAIS: o direito à saúde A construção histórica dos direitos humanos é de extensa data, mas tem seu principal documento na Declaração Universal de Direitos Humanos de

1948.

Documento

este

que

surgiu

do

anseio

mundial

pelo

estabelecimento de paz do período pós segunda guerra mundial, que havia se encerrado em 1945. De fronte a tal cenário de completa dizimação de direitos

humanos,

a

Declaração

firma-se

como

a

garantia

do

estabelecimento de preceitos mínimos existenciais, tendo como princípios a universabilidade e indivisibilidade dos direitos. Nessa senda, Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento marco na história dos direitos humanos. Elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, a Declaração foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos. (DUDH, 2015).

Desse modo,a universalidade dos direitos humanos, pode-se dizer, encontra-se consagrada como inerente à discussão. No entanto, uma das críticas mais elaboradas à temática diz respeito ao fato de a Declaração não ter nascido universal, tendo em vista que apenas cinquenta e seis países ocidentais participaram de sua elaboração, ensejando assim uma declaração “ocidental” dos direitos humanos (ALVES, 1999). Embora existente esta crítica, para os países ocidentais, a Declaração é o documento mais importante da temática dos direitos humanos no século XX, pois consagra em seu texto uma ampla gama de direitos que buscam assegurar uma vida dignificante. Neste mesmo século, porém no ano de 1988, a Constituição Federal que entra em vigor no Brasil, traz em seu contexto a como um de seus fundamentos o princípio da dignidade da pessoa humana em consenso com o estipulado na Declaração. Nesse contexto, um dos principais diferenciais 524

desta constituição consta na elevação ao patamar de direitos fundamentais e sociais os princípio básicos asseguratórios de uma vida digna, pois tem como fundamento “[...] criar e manter as condições elementares para assegurar uma vida em liberdade e a dignidade da pessoa humana” (HESSE, 2009, p. 33). Dessarte, um dos direitos elevados ao status de fundamental e social é o direito saúde. Um dos direitos humanos mais importantes, se é que se pode falar em um direito mais importante que os demais, o direito à saúde consagra a preocupação com as condições sanitárias de que o ser humano necessita para viver. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia editado em 1946 que se entende por saúde é completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças. Nesse sentido, Mariana Filchtiner Figueiredo (2007, p. 82), assegura que o conceito proposto pela Organização Mundial de Saúde alargou a noção do conceito de saúde existente até então, uma vez que, ao superar o enfoque negativo da saúde (que é baseado tão somente na ideia de ausência de enfermidades) e propugnar o aspecto positivo da “obtenção do estado de completo bem-estar físico, psíquico e social”, a Organização Mundial de Saúde retomou a ideia de qualidade de vida. Incorporando tal conceito, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu artigo 6º que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Ademais, a seção II do título VIII, trata especificamente do tema da saúde, tendo como principal referência o artigo 196 que dispõe que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Desse modo, o direito à saúde é amplamente positivado pela Constituição Federal de 1988. No entanto, a problemática cinge-se na sua efetivação, pois o que se tem demonstrado no cenário atual é a quase completa ineficácia do Estado em garantir que o direito à saúde, reconhecido 525

como essencial para a formação da cidadania, seja de fato alcançado a todos. Igualmente, quando fala-se nas políticas públicas relativas ao tema, que são uma das principais formas de se alcançar tal direito, estas são quase

inexistentes

e/ou

praticamente

ineficazes,

acarretando,

por

conseguinte, em diversos problemas sociais. Ainda, deve-se ressaltar que o direito à saúde somente será efetivado no momento em que o Estado responsabilizar-se pela prestação de todas as atividades consideradas como o mínimo que deve ser oferecido ao povo, entre as quais se encontra a promoção da saúde(DALLARI, 1990). Ademais, “saúde é um típico direito da Cidadania Brasileira, porquanto direito de todos e dever do Estado, malgrado na prática ainda deixe muito a desejar, cabendo a todos colaborar e cobrar melhoria dos serviços” (PINTO apud CARVALHO; PINTO, 2011, p. 19). Assim sendo deve-se ter em consideração que “O direito à saúde é claro, deverá ser sempre que possível atendido” (SCHWARTZ; GLOECKNER, 2003, p. 158), pois além do fato de constar na Declaração Universal de 1948 como um direito humano universal, ou seja, que todos tem acesso, a carta constitucional de 1988 reafirmou a sua universalidade ao afirmar ser um direito de todos e, portanto, a sua efetividade deve ser alcançada pelo Estado a todos os cidadãos. Outrossim, Schwartz (2001, p. 43) defende ainda que, para efeitos de aplicação do artigo art. 196 da CF/88, a saúde: (...) pode ser conceituada como: um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças, ao mesmo tempo que visa a melhor qualidade de vida possível, tendo como instrumento de aferição a realidade de cada indivíduo e pressuposto de efetivação a possibilidade de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar.

Desse modo, o Estado deve trabalhar para assegurar que o direito à saúde possa ser efetivado no seu mais amplo aspecto, garantindo-se o completo bem-estar físico e psíquico constante no conceito da OMS. Ainda, quando se fala em infligência do direito à saúde se está desvalorizando os fundamentos do Estado, pois se está deixando de assegurar o mínimo 526

dignificante e deixando-se de se observar os propósitos do Estado. Muitos são os empeçilhos encontrados para assegurar a efetividade do direito à saúde, entre os quais pode-se falar na criação na Alemanha da reserva do possível, com vistas a diminuir e limitar a universalidade do direito. Para entender-se melhor a sua aplicação, o próximo tópico preocupar-se-á em analisar a reserva do possível, para após verificar-se sua (in)aplicabilidade ao direito à saúde. 3. BREVE ANÁLISE SOBRE O INSTITUTO DA RESERVA DO POSSÍVEL O instituto da reserva do possível é recente e sua aplicação ocorreu pela primeira vez na década de 70, do século passado, na Alemanha, mais precisamente no caso BVerfGE 33, 303, de 1973, no qual se procurava solucionar

a

restrição

quanto

ao

número

de

vagas

em

algumas

Universidades alemãs. No caso em comento foi decidido que, como foi verificado ao longo do processo que o Estado Alemão estava fazendo todo o possível para tornar o acesso ao nível superior mais facilitado, fugia do razoável que fosse exigido ainda mais daquele Estado, sob a possível consequência que outros direitos sociais fossem negligenciados. O argumento utilizado no referido caso pela Corte Constitucional Alemã foi que “na medida em que os direitos de tomar parte são limitados e não existentes a priori, encontram-se sob e reserva do possível, no sentido daquilo que o individuo pode racionalmente esperar da sociedade” (SGARBOSSA, 2010, p. 36). Assim, é perceptível que de acordo com o princípio da reserva do possível se faz necessário que exista racionalidade por parte dos indivíduos em relação às suas expectativas na concretização dos direitos fundamentais e sociais. Ademais, antes mesmo de o Tribunal Constitucional da Alemanha proferir a decisão sobre a reserva do possível, o autor Häberle já havia traçado os primeiros contornos sobre o tema. Na concepção de Häberle era importante saber se os direitos fundamentais devem ser satisfeitos na medida da capacidade econômica prestacional do Estado ou se o Estado prestacional deveria existir para 527

efetivar direitos fundamentais. (KELBERT, 2011, p. 70). Assim, o artor exprimiu a ideia de que os direitos sociais a prestações materiais estariam sob a reserva das prestações financeiras do Estado, uma vez que, se consistem em direitos a prestações financiadas pelos cofres públicos (FIGUEIREDO, 2007). Sarlet e Figueiredo (2007, p. 189) destacam que é possível delimitar uma dimensão tríplice da reserva do possível, que abrange:

a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas; entre outras, e que, alem disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade, e, nesta quadra, também a sua razoabilidade.

Assim, de acordo com interpretações a reserva do possível começou a ser compreendida de várias maneiras. Luis Fernando Sgarbossa (2010) entende que ora tal princípio é compreendido como limitação fática aos direitos fundamentais, especificando, como a limitação que se baseia em escassez real ou econômica imposta ao exercício dos direitos sociais. Destaca, ainda, uma limitação jurídica, ou seja, como a limitação imposta ao exercício dos direitos sociais com base na escassez ficta, ou legal. Ademais, é possível que a reserva do possível seja entendida como uma limitação imposta ao exercício dos direitos sociais com base na ausência de razoabilidade ou proporcionalidade da pretensão, e, por fim, como todos esses aspectos em conjunto ou alguns deles combinados entre si. Já, Daniel Wei Liang Wang (2007) defende que existem teóricos que entendem que existe um limite fático à exigibilidade judicial dos direitos sociais (que é a sua dependência da capacidade econômica do Estado ou, em outras palavras, de cobertura financeira e orçamentária) e que não pode ser 528

ignorada pelas decisões judiciais. Tal limite fático seria expresso em alguns trabalhos e decisões judiciais pelo termo “reserva do possível”. Sabe-se que os direitos fundamentais são os direitos sociais em sentido amplo, ou seja, decorrem do desenvolvimento do Estado Social de Direito. Conforme já demonstrado, a Constituição Federal de 1988 inclui os direitos sociais dentre os direitos fundamentais. Esses direitos são, geralmente, caracterizados como prestações positivas do Estado, todos os entes estatais devem atender e promover tais direitos. Assim, nao é possível que os direitos fundamentais sejam ineficazes com fundamento na reserva do possível (FIGUEIREDO, 2007). Isto porque, a promoção dos direitos fundamentais, nos quais se incluem os direitos sociais, encontra fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana (KELBERT, 2011). Daí a importância do Estado promover tais direitos, pois, inerentes à própria essência das pessoas. A arrecadação tributária é o meio pelo qual o Estado dispõe para promover e financiar os direitos fundamentais. Ocorre que, muito embora exista verba prevista para a efetivação dos projetos sociais, os valores, por vezes,

não

são

suficientes

para

a

promoção

de

todos

os

direitos

constitucionalmente previstos, considerando a quantidade de direitos fundamentais elencados na CF/88. Outra concreta que ocorre é que as verbas acabam não sendo aplicadas às finalidades previstas, ou seja, o Poder Executivo deixa de estabelecer e implementar políticas públicas que poderiam se não solucionar, ao menos, amenizar a situação da efetivação dos direitos fundamentais. É perceptível quea concretização dos direitos fundamentais depende de fatores econômicos bem como da existência de verbas disponíveis, nesse sentido, “a escassez de recursos pode figurar como limite à efetivação dos direitos fundamentais, especialmente os de cunho prestacional” (KELBERT, 2011, p. 76). No entanto, com a inserção dos direitos sociais no rol dos direitos fundamentais,

o

constituinte

brasileiro

assume

o

compromisso

de

concretizar tais direitos. Assim, as vinculações orçamentárias previstas na Constituição Federal não podem ser violadas, devem ser respeitadas e 529

cumpridas fielmente. É dever do Estadose planejar com o objetivo de realizar esses direitos. Todos os direitos têm custos, tanto os de prestação positiva, em geral os direitos sociais; e até mesmo os de prestação negativa, a exemplo de os valores despendidos para a manutenção de instituições permanentes providas pelo Estado. Ocorre que, a simples constatação de que todos os direitos possuem custos não é por si só uma questão problemática. De acordo com Kerbelt (2011), quando se admite a escassez de recursos estatais para a promoção dos direitos fundamentais, os problemas começam a surgir. Assim, para que seja possível a efetivação dos direitos fundamentais é preciso que escolhas sejam feitas. A mesma autora aprofunda a discussão ao referir que“A necessária eleição de valores e bens a serem protegidos, as já referidas escolhas, engloba, ainda, outro aspecto, que diz respeito à relativização dos direitos protegidos”. Será sempre necessário que exista um critério de escolha a ser adotado para que se delimite quais os direitos que serão primordialmente atendidos e efetivados, este critério é decorrente da finitude dos recursos. No entanto, é importante considerar que a aplicação de recursos em determinado setor sempre causará conseqüências negativas em outro setor que deixará de ser atendido. Assim, o Estado deve promover políticas públicas que prevejam a exata aplicação de recursos para a efetivação de todos os tipos de direitos, sejam os decorrentes de prestações positivas ou negativas, uma vez que é inviável pensar em concretização de direitos sociais sem pensar no custo desses direitos, isto porque diretamente “os custos dos direitos podem figurar como uma limitação à plena realização dos direitos sociais” (KERBET, 2011, p. 68). Quanto à previsão legal da reserva do possível, não existe no Brasil tal texto legal, a Constituição Federal vigente apenas estabelece que o valor proveniente da arrecadação dos tributos deve ser destinado a determinadas atividades, como, por exemplo, saúde, educação. No entanto, a reserva do possível foi recepcionada pelo STF em diversas decisões. Na maioria dos julgamentos a recepção consistiu apenas 530

no reconhecimento de eventual cabimento da alegação do princípio, em tese, sendo que, no caso concreto sub judice, foi negado o acolhimento à mesma. (SGARBOSSA, 2010). Sendo amplamente conhecida, debatia e utilizada nos tribunais brasileiro, é necessário que se faça uma análise breve sobre como a reserva do possível vem sendo empregado pelas partes e recepcionada pelos órgãos jurisdicionais. Sgarbossa (2010) desta que o princípio se aplica essencialmente nas ações em que se discute o acesso aos direitos sociais, ou seja, em casos que comumente tratam de acesso à educação, à saúde, entre outras políticas públicas de cunho social. Assim, nos casos em que a vida do requerente encontra-se em risco direto em decorrência de não cumprimento de prestação por parte do Estado, ações que demandem direitos à saúde ou educação, o Supremo Tribunal Federal tem aplicado a reserva do possível apenas a título argumentativo ao referir que a prestação é restrita à condição financeira do Estado, no entanto, não deixa de conceder a prestação, especificando que o direito não pode ser negado, ou seja, que a reserva do possível não é cabível como argumento para a não realização do direito. Para finalizar, é possível assegurar que a discussão sobre a reserva do possível não foi ainda devidamente tratada pelo Supremo Tribunal Federal, o qual, na maioria das manifestações, refere que tal princípio se limita à escassez de recursos financeiros do Estado. 2. A (in)aplicabilidade da reserva do possível no direito à saúde brasileiro Sabe-se que o direito à saúde, enquanto direito fundamental, pode ser oponível contra o Estado e deve ser preservado. Assim, seria possível afirmar que a existência do direito à saúde como um direito público subjetivo oponível contra o Estado, no qual se estaria obrigando o Estado à determinada prestação, independentemente de previsão em legislação ordinária e, portanto, passível de reclamação pelo titular do direito via judicial e/ou administrativa. A partir de tal constatação o presente artigo se propõe a responder se existe ou não a possibilidade de aplicação da reserva 531

do possível às demandas relacionadas ao direito à saúde no âmbito brasileiro. Entende-se que o Estado brasileiro, conforme preceitua o artigo 196, da CF/88, tem a obrigação de promover o direito à saúde a todas as pessoas, uma vez que, a saúde é caracterizada por ser um direito público subjetivo com característica inegavelmente individual. Assim, como é sabido que as garantias individuais relacionadas aos direitos fundamentais são legítimas, a busca pela efetivação do direito à saúde mediante a oposição de um vínculo obrigacional entre cidadão-credor e o Estado-devedor é perfeitamente possível (SCHWARTZ, 2001). Uma vez que o direito à saúde foi recepcionado no ordenamento brasileiro como direito fundamental de natureza constitucional, oponível contra o Estado, ele se caracteriza como uma conquista da sociedade como um todo. Nesse sentido, é preciso que o Estado se movimente como agente promotor e provedor de tal direito, por meio das políticas públicas de responsabilidade do Poder Executivo, com o objetivo de implementação da saúde no mundo dos fatos, bem como na promoção da questão sanitária, a fim de que “o Brasil seja exemplo de sociedade de justiça social, de respeito aos valores democráticos, e principalmente demonstrar que o país tem na dignidade da pessoa humana seu grande objetivo” (SCHWARTZ, 2001, p. 160). É claro que a adoção de políticas públicas relacionadas aos direitos sociais são condicionadas por circunstâncias econômicas. No entanto, não é autorizado que tais condições constituam um empecilho insolúvel para limitar

a

realização

prática

desses

direitos

constitucionalmente

estabelecidos, especialmente por se tratarem de direitos que, levados a sério, buscam superar exatamente as condições econômicas (FIGUEIREDO, 2007). São muitas as formas que podem ser utilizadas pelo Estado para dar efetividade a esse direito, entre as quais é possível citar, por exemplo, a utilização das políticas públicas, que se constituem como “o Estado em ação” (GOBERT; MULLER apud HÖFLING, 2001, p. 02). Assim, quando o Estado deixa de fornecer as condições aos seus cidadãos para que alcancem o direito à saúde, está negando os propósitos de qualquer Estado democrático. 532

Quanto à (in)aplicabilidade da reserva do possível ao direito à saúde brasileiro, opta-se por tal posicionamento uma vez que, conforme preceitua Schwartz (2001, p. 160): A saúde é um dever do Estado a respeito do qual os governos estão obrigados a assumir e realizar, não importando quais os elementos necessários para a consecução da tarefa, visto que a Constituição Brasileira é vinculativa e de caráter dirigente também aos Poderes Públicos.

Ou seja, mesmo que sabido que a saúde necessita de meios materiais para a sua efetivação, a Constituição Federal, em momento algum, desobriga o Estado de promover tal direito, em qualquer circunstância, muito pelo contrário, em diversos artigos determina que os poderes públicos têm responsabilidade na área da saúde, e que não é autorizado aos entes federados que compõem a República Brasileira a possibilidade de eximir-se de tal obrigação. Ainda, Sarlet e Figueiredo (2007) defendem que não lhes parece correta a aplicação da reserva do possível como elemento integrante dos direitos fundamentais, nem como parte de seu núcleo essencial, nem mesmo enquadrada no âmbito dos limites imanentes aos direitos fundamentais. Destacam, ainda, que a reserva do possível se constitui, sim, em uma espécie delimite jurídico e fático dos direitos fundamentais, quando, em circunstâncias específicas, a exemplo da hipótese de conflito entre direitos, é que poderá ser invocada a reserva do possível. No entanto, ainda nesta hipótese, devem ser observados os princípios da proporcionalidade e mínimo existencial em relação a todos os direitos fundamentais, ou seja, a indisponibilidade de recursos deve ser considerada somente com o intuito de salvaguardar outro direito fundamental. Por todo o exposto, julga-se possível que o direito à saúde seja levado à apreciação do Poder Judiciário, no caso de não ser efetivado pelo Poder Executivo, uma vez que a tarefa essencial do Poder Judiciário no constitucionalismo

contemporâneo

é

“garantir

a

observância

e

o

cumprimento dos direitos fundamentais do homem” (SCHWARTZ, 2001, p. 163). 533

Quanto a possibilidade de discussão da chamada ditadura do Poder Judiciário, entende-se que tal premissa não é verdadeira, visto que tal poder possui a obrigação de primar pela observância do princípio da supremacia da Constituição, em especial ao que se refere à preservação das decisões do poder constituinte originário, ou seja, cabe ao intérprete da lei o esforço para que seja resguardada a unidade do sistema instituído, com a finalidade de que as normas constitucionais sejam efetivadas (FIGUEIREDO, 2007). O número de ações judiciais existentes que reivindicam o direito à saúde pode ser justificado mais pelas deficiências do sistema vigente do que pelo objetivo originário de realização da saúde, “até porque ao indivíduo interessa é a manutenção da própria saúde, ou o acesso aos meios para obtê-la e preservá-la, e não o fundamento constitucional ou legal da ação proposta” (FIGUEIREDO, 2007, p. 91). Nesse sentido, é dever do Poder Judiciário a proteção do direito à saúde, por se tratar de um direito intrinsecamente ligado à proteção aos direitos à cidadania e à vida, os quais pressupõem que todos os direitos fundamentais do homem sejam protegidos e efetivados para que sejam concretizados. Ainda, é dever do Estado promover o direito à saúde através das políticas públicas implementadas pelo Poder Executivo. Não pode o Estado eximir-se dessa obrigação com fundamento no princípio da reserva do possível, devido a saúde ser um direito humano fundamental que deve ser assegurado a todas as pessoas, conforme preceitua a Constituição Federal, lei maior do Estado brasileiro. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelo exposto, pode-se concluir que o conceito de direito à saúde conforme reconhecido na atualidade é recente, e que em âmbito brasileiro somente foi recepcionado como direito humano após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Ainda conforme previsão constitucional o Estado é quem deve prover e promover o direito à saúde. Nesse sentido, cabe ao Estado a garantia dos direitos fundamentais e sociais constitucionalmente previstos e que, muito embora todos os direitos 534

possuam custos, o Estado possui a previsão de arrecadação tributária que se destina, entre outras aplicações, à concretização de tais direitos. É possível destacar que a simples argumentação de inexistência de recursos para aplicação na efetivação dos direitos sociais não basta como fator que desobrigue o Estado dessas prestações. Ademais, o Estado tem meios plenamente eficazes para a promoção dos direitos sociais, em especial o direito à saúde, considerando que tal direito possui orçamento próprio, além de ser plenamente possível a implementação de políticas públicas na busca pela proteção de promoção da saúde. Destarte, apesar de o STF já ter reconhecido e, por vezes, aplicado a reserva do possível no âmbito brasileiro, ainda há muito que se buscar. É preciso que o Poder Judiciário seja incisivo para que os direitos sociais, amparados pela legislação, especialmente constitucional, sejam efetivamente cumpridos. REFERÊNCIAS ALVES, José Augusto Lindgren. A declaração dos direitos humanos na pós-modernidade. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo: IMESP. v. 51. n. 52. p. 52-71, 1999. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2015. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2014. CARVALHO, Humberto do Nascimento; PINTO, Márcio Alexandre da Silva. A evolução do Direito à saúde pública da Cidadania Brasileira. Horizonte Científico, v. 4, n. 2, 2011. Disponível em. Acesso em 11 jun. 2014. DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JÚNIOR, sanitário.São Paulo: Editora Verbatim, 2010.

Vidal

Serrano.

Direito

DALLARI, Sueli Gandolfi. A saúde do brasileiro. São Paulo: Moderna, 1987. FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e afetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. 535

HESSE, Konrad. Temas fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. HÖFLING, Eloísa de Mattos. Estado e políticas (públicas) sociais. Cadernos Cedes, v. 21, n. 55, p. 30-41, 2001. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ccedes /v21n55/5539.pdf>. Acesso em: 17.jun.2015. KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do possível e a efetivação dos direitos sociais no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. ONU. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2015. SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Direitos fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 171-213, 2007. Disponível em: . Acesso em 17.jun.2015. SCHWARTZ, Germano; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. A tutela antecipada no direito à saúde: aplicabilidade da teoria sistêmica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003. SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica.Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001. SGARBOSSA, Luis Fernando. Crítica à teoria dos custos dos direitos: Volume I, Reverva do Possível.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010. WANG, Daniel Wei Liang. Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva do possível na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Berkeley Program in Law & Economics, 2007. Disponível em . Acesso em: 17.jun.2015.

536

O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS SOB A ÓTICA DA LEI MARIA DA PENHA Eliete Vanessa Schneider1 Bruna Katiane Boeno2 1. INTRODUÇÃO O

movimento

de

internacionalização

dos

direitos

humanos

desenvolveu-se extraordinariamente depois da segunda guerra mundial, em resposta às atrocidades cometidas ao longo do Nazismo (GOMES, 2000). O convívio dos Estados em uma comunidade juridicamente organizada e a intensificação das relações entre os povos deu vida a um ordenamento jurídico internacional preocupado com os direitos da pessoa humana (REZEK, 2010). Ademais, atualmente é um dos aspectos jurídicos que mais se desenvolve, trazendo influência sobre os mais variados aspectos da vida humana. Nesse sentido, propõe-se o presente trabalho a analisar o sistema regional de proteção aos Direitos Humanos no qual o Brasil está inserido, qual seja, o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, na medida em que descreve um caso paradigmático ocorrido e que tornou-se um marco quanto à proteção internacional e à influência do sistema nas jurisdições nacionais dos países que ratificaram seu principal documento legal, qual seja, a Convenção Americana de Direitos Humanos. Trata-se do caso da vítima de violência doméstica, Sra. Maria da Penha, que inclusive culminou com a criação de lei brasileira que leva seu nome. 2. DESENVOLVIMENTO De acordo com Accioly (2010, p.32), “todo o estudo há de ser iniciado

Bacharel em Direito e Mestre em Direitos Humanos e atualmente professora do Curso de Direito pela UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, advogada; 2 Bacharel em Direito pela UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul, advogada. 1

537

pela definição de seu objeto”. Dessa forma, entende-se necessário passar pela abordagem do conceito de Direito Internacional, e também pela definição dos direitos humanos. Ainda de acordo com o mesmo autor, pode se definir o Direito internacional como o conjunto de normas jurídicas que rege a comunidade internacional, determina direitos e obrigações dos sujeitos, especialmente nas relações mútuas dos estados, e subsidiariamente, das demais pessoas internacionais, como determinadas organizações, bem como dos indivíduos. (ACIOLLY, 2010, p. 32).

Como exposto, para se chegar ao objetivo ao qual se propõe o presente trabalho, é necessário também entender o conceito de Direitos Humanos. Segundo Dallari (2008, p. 12) A compreensão do verdadeiro sentido da expressão Direitos Humanos é necessária para superar preconceitos e evitar desvirtuamentos. As pessoas humanas, titulares dos direitos humanos, são todas iguais em valor, direitos e dignidade. Por isso é necessário respeitar as diferenças devidas a fatores culturais e agir com espírito de solidariedade.

A expressão direitos humanos é uma forma de abreviar a menção dos direitos

fundamentais

pela

pessoa

humana.

Esses

direitos



os

fundamentais – são assim chamados por que sem eles a pessoa humana não consegue se desenvolver, nem participar plenamente da vida. Toda a pessoa, ao nascer, deve ter garantidas as condições mínimas que proporcionem o seu desenvolvimento, e a sua participação ativa na sociedade em que vive, bem como o direito a receber os benefícios que essa vida em sociedade pode proporcionar. Assim sendo, nas palavras de Dallari (2008), pode – se dizer que os direitos humanos “correspondem a necessidades essenciais da pessoa humana”. E quando se fala em igualdade, deve-se ter muito clara a ideia de que uma pessoa não vale mais, ou menos que outra. No entanto, essa afirmação de igualdade não quer dizer igualdade física, intelectual ou psicológica. Cada pessoa humana tem sua individualidade, personalidade, seu modo próprio de ver e sentir as coisas. E da mesma forma, os grupos sociais têm a sua cultura própria, que é o resultado de condições naturais e sociais. (DALLARI, 2008). Nesse sentido, as pessoas têm as suas diferenças, mas continuam 538

sendo iguais como seres humanos, tendo as mesmas necessidades e faculdades essenciais. Dallari (2008, p 15), defende que O respeito pela dignidade da pessoa humana deve existir sempre, em todos os lugares e de maneira igual para todos. O crescimento econômico e o progresso material de um povo têm valor negativo se forem conseguidos à custa de ofensas à dignidade dos seres humanos. O sucesso político ou militar de uma pessoa ou de um povo, bem como o prestígio social ou a conquista de riquezas, nada disso é merecedor de respeito se for conseguido mediante ofensas à dignidade e aos direitos fundamentais dos seres humanos.

Os principais direitos humanos são o direito à vida, o direito de ser pessoa, o direito à liberdade real, o direito à igualdade de direitos e oportunidades, o direito à moradia e à terra, o direito ao trabalho em condições justas, o direito de participar das riquezas, o direito à educação, o direito à saúde, o direito ao meio ambiente sadio, direito de participar do governo, direito de receber os serviços púbicos, e o direito à proteção dos direitos. Quanto ao direito à proteção dos direitos, afirma-se que um direito só existe quando pode ser usado. Afirma Dallari (2008, p. 13), que Não basta afirmar, formalmente, a existência dos direitos, sem que as pessoas possam gozar desses direitos na prática. A par disso, é indispensável também a existência de instrumentos de garantia, para que os direitos não possam ser ofendidos ou anulados por ações arbitrárias de quem detiver o poder econômico, político ou militar.

E como medida de garantia da efetivação dos Direitos Humanos, tratando-se do plano externo, ou seja, internacional, é que surgem alguns instrumentos ao longo dos anos, tendo como marco inicial, como já afirmado no início deste trabalho, o período pós guerra. Em 1.948, surge a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Até a fundação das Nações Unidas, em 1945, não se tinha segurança para afirmar que houvesse, em direito internacional público, preocupação consciente sobre o tema dos Direitos Humanos. De longa data alguns tratados avulsos cuidaram de proteger certas minorias dentro do contexto da sucessão de Estados. (REZEK, 2010, 539

p. 225). Como ensina Flávia Piovesan, (2007, p. 118): A Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós guerra deveria significar a reconstrução desses direitos. Sob esse prisma, a violação dos direitos humanos não pode ser concebida como questão doméstica do Estado, e sim como problema de relevância internacional como legítima preocupação da comunidade internacional.

A criação da sistemática internacional de proteção aos direitos humanos surge em decorrência dessa universalização dos direitos, que passou a ocorrer após a Segunda Guerra Mundial, uma vez que para ser possível a concretização dos direitos presentes na declaração, era preciso um mecanismo de monitoramento e controle das atividades estatais. O Sistema Internacional de direitos humanos passou assim a atuar de forma a proteger os direitos de qualquer ser humano, quando o Estado torna-se negligente e omisso no amparo deles. (PIOVESAN, 2007). Esses “mecanismos” foram sendo implantados através dos tratados e convenções internacionais, uma vez que, para realizar o controle necessário frente aos direitos humanos, não se poderia contar apenas com instituições internas do Estado. Quanto aos tratados e convenções internacionais, há uma importante colocação a ser feita. No plano interno, todos somos “jurisdicionáveis”. Quando existe alguma ação demandada contra nós, não possuímos o condão de aceitar ou não tal demanda. Já quando se trata dos Estados, a questão se torna diversa. Segundo Rezek, (2010, p. 2) O Estado, no plano internacional, não é originalmente jurisdicionável perante corte alguma. Sua aquiescência, e só ela, convalida a autoridade de um foro judiciário ou arbitral, de modo que a sentença resulte obrigatória e que seu eventual descumprimento configure ato ilícito.

O instrumento de maior importância do sistema interamericano é a Convenção Americana de Direitos Humanos. Convenção esta que foi assinada em San José, Costa Rica, no ano de 1969, entrando em vigor, no entanto em 1.978. Somente os Estados Membros da OEA (Organização dos Estados Americanos) teriam o direito de aderir à convenção. Neste universo, 540

os Estados Unidos da América não ratificaram a convenção, e o Brasil foi um dos países que mais tardiamente o fez, o que ocorreu apenas em setembro de 1992 (GOMES, 2000). Ainda de acordo com o mesmo autor, (2000, p 30), dentre os direitos civis e políticos reconhecidos e assegurados pela Convenção destacam-se: O direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito de não ser submetido à escravidão, o direito à liberdade, o direito a um julgamento justo, o direito à compensação em caso de erro judiciário, o direito à privacidade, p direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e de expressão, o direito à resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome, o direito à nacionalidade, o direito à liberdade de movimento e residência, o direito de participar do governo, o direito á igualdade perante a lei e o direito à proteção judicial.

Pode-se dizer que os dois primeiros artigos constituem a base da convenção. Enquanto o primeiro artigo institui a obrigação dos Estados – partes de respeitar os direitos e as liberdades garantidas reconhecidas pela convenção e assegurar o livre e pleno exercício destes direitos e liberdades sem qualquer discriminação de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social, o segundo artigo afirma o comprometimento dos Estados-partes para que, na hipótese do exercício dos direitos referidos não estarem assegurados por previsões legislativas de âmbito doméstico, a adotar tais medidas legislativas ou outras que sejam necessárias para conferir efeitos a estes direitos (CONVENÇÃO). Além da convenção americana de Direitos Humanos, outra questão que não se pode deixar de abordar em se tratando do Sistema Internacional de proteção aos Direitos humanos, é a da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A competência da referida comissão, alcança todos os Estados-partes da Convenção Americana, em relação a todos os direitos nela previstos. Além disso, também alcança todos os estados participantes da OEA (Organização do Estados Americanos), em relação aos direitos presentes na Declaração universal dos Direitos Humanos de 1948. Quanto a sua composição, trabalha Gomes (2000, p. 33) que 541

É integrada por sete membros “de alta autoridade moral e reconhecida versação em matéria de direitos humanos”, que podem ser nacionais ou de qualquer Estado-Membro da Organização dos Estados Americanos. Os membros da Comissão são eleitos, a título pessoal, pela Assembleia Geral por um período de 4 anos, podendo ser reeleitos por uma vez.

A principal função da Comissão Interamericana de Direitos Humanos é promover a observância e a proteção dos direitos humanos na América. Para que isso seja concretizado, cabe à comissão fazer recomendações aos governos dos Estados – partes prevendo a adoção de medidas por eles adotadas. Além disso, a comissão deve apresentar anualmente um relatório à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, e também, diga-se de passagem, uma das funções mais importantes da Comissão, segundo o artigo 44 é examinar as petições encaminhadas por indivíduos ou grupos de indivíduos, ou ainda alguma entidade não –governamental, que contenham denúncia de violação a algum dos direitos consagrados na convenção americana de direitos humanos (GOMES, 2000). Alem de todas essas funções, o art 41 da Convenção interamericana de direitos Humanos, consagra expressamente algumas funções da Comissão: Estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América; Preparar os estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções; Solicitar aos governos dos Estados membros que lhe proporcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos; Atender às consultas que, por meio da Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, lhe formularem os Estados membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que eles lhe solicitarem; Atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, de conformidade com o disposto no art 44 e 51 da Convenção (CONVENÇÃO).

Sobre a petição inicial, deve responder a certos requisitos de admissibilidade, entre eles, o principal é o prévio esgotamento das vias internas, salvo injustificada demora processual, ou no caso de a legislação interna de algum Estado não prover o devido processo legal. Depois da admissibilidade, o primeiro passo que a comissão irá tomar, é a tentativa de resolução amistosa do conflito (GOMES, 2000). Caso isso não seja possível, a comissão elaborará um relatório sobre os fatos ocorridos, as conclusões as 542

quais se chegou, e, caso sejam pertinentes, as recomendações que forem feitas aos Estados. Sobre o relatório, colocação importante é feita por Thomas Burgenthal (APUD GOMES, 2000, p 40): É importante notar que o relatório elaborado pela Comissão, na terceira fase do procedimento, é mandatório, e deve conter as conclusões da Comissão, indicando se o Estado referido violou ou não a Convenção Americana. Este relatório é encaminhado ao Estado-parte, que tem o prazo de três meses para conferir cumprimento às recomendações feitas.

Por último, deve-se estudar a Corte interamericana de Direitos Humanos, a qual inclusive poderá ser acionada no caso do estado membro não cumprir alguma recomendação que tenha recebido da Comissão, no prazo de três meses. A Corte interamericana de direitos é órgão jurisdicional do sistema regional, que é composta por sete juízes nacionais de EstadosMembros da OEA, eleitos a título pessoal pelos Estados- Partes da Convenção. Ela apresenta competência consultiva e contenciosa. No plano contencioso, a competência da Corte é limitada aos Estados-partes da convenção que a reconheçam expressamente, é importante ressaltar que somente a Comissão Interamericana e os Estados-parte podem submeter um caso à corte. No caso brasileiro, a aceitação da competência da Corte Interamericana ocorreu recentemente, (GOMES, 2000). Ensina Luiz Flávio Gomes em sua obra (2000, p. 45) que A corte tem jurisdição para examinar casos que envolvam a denúncia de que um Estado-parte violou direito protegido pela Convenção. Se reconhecer que efetivamente ocorreu a violação à Convenção, determinará a adoção de medidas que se façam necessárias à restauração do direito então violado. A corte pode ainda condenar o Estado a pagar uma justa compensação à vítima. A decisão da corte tem força jurídica vinculante e obrigatória. Se a corte fixar uma compensação à vítima, a decisão valerá como título executivo, em conformidade com os procedimentos internos relativos à execução de sentença desfavorável ao Estado.

Frente a esses mecanismos de proteção aos Direitos Humanos, que são

a

Comissão

Interamericana

de

Direitos

Humanos

e

a

Corte

Interamericana de Direitos, é que se propõe neste trabalho, realizar uma abordagem de um caso ocorrido no país. Trata-se de uma violação contra os 543

direitos humanos. Uma violação contra um direito humano que possui um gênero especial: a mulher. Para o estudo do caso em específico, faz-se necessária uma abordagem prévia dos direitos humanos das mulheres, que em relação ao cenário internacional, ganharam visibilidade nos últimos anos, sendo pauta constante de reuniões dentro do sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Em 1993, durante a Conferência Mundial de Direitos Humanos, sediada em Viena, as mulheres levantaram uma campanha, apresentando como tema “os direitos das mulheres também são direitos humanos”. Nesse passo, a violência doméstica e familiar foi inserida como forma de violação aos direitos humanos das mulheres (ABREU, 2010). Antes disso, o Brasil já havia ratificado a Convenção para Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW – Convention on the Elimination of all Discrimination against Womwn), em 1984. Esse documento internacional, em seu artigo 1º, conceituou a discriminação contra a mulher como “toda distinção, exclusão ou restrição fundada no sexo e que tenha por objetivo ou conseqüência prejudicar ou destruir o reconhecimento, gozo ou exercício pelas mulheres, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade dos homens e das mulheres, dos direitos

humanos

e

liberdades

fundamentais

nos

campos

político,

econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo (PASINATO, 2008). Além da Convenção para eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, o Brasil também ratificou no ano de 1995 a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, também chamada de Convenção de Belém do Pará. Esta convenção foi adotada pelos países da OEA (Organização dos Estados Americanos). Esta convenção teve o propósito de discutir a violência doméstica contra a mulher. Conceituou em seu art 1º a violência contra a mulher sendo “qualquer ação ou conduta baseada, no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico contra a mulher, tanto no âmbito público como no privado” (SOUZA, 2009). Porém, um dos maiores marcos no que diz respeito aos direitos 544

humanos das mulheres, ocorreu em 2006, com criação da Lei 11.340/2006, conhecida como a Lei Maria da Penha, que traz por finalidade criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Apesar da lei ser recente, o fato que marcou sua origem ocorreu há vários anos. Trata-se do caso da cearense Maria da Penha Maia Fernandes. Ela foi vítima de violência doméstica, como várias mulheres que têm seus direitos violados todos os dias. As agressões e ameaças partiam de seu esposo, Marco Antonio Heredia Viveiros, professor universitário. Em 1983, ocorreu a primeira tentativa de homicício. Maria da Penha levou um tiro de espingarda enquanto dormia, o que a deixou paraplégica. Alguns dias depois, houve mais uma tentativa, quando Heredia tentou eletrocutar Maria da Penha, enquanto esta tomava banho. Após as tentativas, Maria da Penha separouse, sendo que procurou ajuda judicial. Em setembro de 1984, o Ministério Público faz a acusação, e em 1991, o professor vai a Júri e é condenado a 10 anos de prisão. A defesa recorreu e o Júri foi anulado. Novo júri ocorreu somente em 1996, sendo que novamente houve condenação, desta vez em 10 anos e seis meses. Novamente a defesa recorreu e o réu respondeu em liberdade (SOUZA, 2009). Apenas 19 anos depois de cometido o crime contra Maria da Penha, é que Marco Antônio foi preso, sendo que cumpriu apenas dois anos da pena imposta. Diante de tanta injustiça, no ano de 2001 Maria da Penha formalizou sua insatisfação judicial perante o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL), e perante o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), sendo que a partir daí a denúncia foi encaminhada à Comissão Internacional de Direitos Humanos (ABREU, 2010, p. 6). A denúncia culminou no relatório 54/01, o qual concluiu ter sido o Brasil omisso de uma forma geral em relação à violência doméstica contra as mulheres, e especificamente no que diz respeito a repressões que deveriam ter sido tomadas contra o agressor no caso Maria da Penha. Recomendou que fossem tomadas medidas que garantissem a efetividade dos direitos já reconhecidos na Convenção Americana e na Convenção de 545

Belém do Pará. Segundo disposição do relatório, este considerou Que o Estado violou os direitos e o cumprimento de seus deveres segundo o art. 7 da Convenção de Belém do Pará em prejuízo da Senhora Fernandes, bem como em conexão aos arts. 8 e 25 da Convenção Americana e sua relação com o art. 1 da Convenção, por seus próprios atos omissivos e tolerantes da violação infligida (SOUZA, 2009, p. 24).

Finalmente, no ano de 2002, portanto 19 anos e seis meses depois de cometer o crime, e seis meses antes de prescrever o crime, Marco Antonio Heredia Viveiros foi preso. Além disso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Estado do Ceará (estado onde ocorreu o crime), pagasse à Maria da Penha o valor de R$ 20.000,00 a título de indenização pela morosidade judicial (MACEDO, 2010). Como forma de tratar com mais rigorosidade os crimes cometidos contra as mulheres, em 7 de agosto de 2006 foi sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Lei de 11.340, sob o Título Lei Maria da Penha. Referida lei, em seu artigo 1° define que Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8° do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de todos os tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. (SOUZA, 2009, p. 21).

A referida lei tornou as penas aos agressores mais graves, uma vez que antes, as penas eram brandas, e na maioria das vezes, consistiam no pagamento de cestas básicas ou multas, em função da Lei 9.099. Agora, os crimes praticados em regime de violência doméstica contra as mulheres, não permitem mais o pagamento de cestas básicas ou multa, e as penas agora podem chegar a 3 anos de prisão, com a possibilidade de prisão em flagrante ou prisão preventiva decretada quando houver riscos de integridade física ou psicológica da vítima (MACEDO, 2010). 546

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O desfecho desta história é considerado de imensa relevância, uma vez que ao longo da história brasileira, e de muitos outros países, a mulher era vista como sexo frágil, submissa ao homem e proibida de exercer seus direitos civis, como votar por exemplo. Isso exigiu muita determinação, muita luta, com muita garra deste “sexo frágil” para que fosse possível, pelo menos parcialmente, a reversão do cenário preconceituoso e paternalista a que eram submetidas. A constituição brasileira de 1988, em certa medida, legitimou esta luta, com o art. 5°, Inc I, a promover a “igualdade de deveres e obrigações entre homens e mulheres”.

Hoje, se vê mulheres ocupando

cargos altos, votando, opinando em grandes causas. Além de exemplo de perseverança e de luta da mulher brasileira para fazer valer os seus direitos, através da elucidação do caso mencionado, ocorrido no Brasil, que este trabalho se propõe a deixar em evidência a importância e a grandeza do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. Mostrar que, em havendo a morosidade judicial, ou o descaso da legislação pátria dos Estados, ainda existe uma alternativa. É uma segurança do cidadão de que ele não conta apenas com sua justiça nacional, pois se esta for falha, ele possui uma segunda opção. A opção de fazer valer sim os seus direitos perante um segundo nível de Proteção, através da Comissão e a Corte Interamericana de Proteção aos Direitos Humanos, como o fez e provou que é possível Maria da Penha. REFERÊNCIAS ABREU, Ludmila Moura de. A Lei Maria da Penha à luz da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Disponível em. Acesso em 12 nov. 2010. ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2010. 547

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 29.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: . Acesso em 23 nov. 2010. DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Editora Moderna, 2008. GOMES, Luiz Flávio. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. MACEDO, Larissa. Caso Maria da Penha. Disponível em: . Acesso em 12 nov.2010. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Internacional. 8 ed. São Paulo: Max Limonad, 2007

Constitucional

REZEK, Francisco. Direito Público Internacional. São Paulo: Saraiva, 2010. SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de Combate à Violência contra a Mulher. Curitiba: Juruá Editora, 2009.

548

A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DEMOCRÁTICA COMO PREMISSA À UMA SOCIEDADE IGUALITÁRIA Janaína Soares Schorr1 Alfredo Copetti Neto2 1. INTRODUÇÃO A organização do mundo em sociedades cria, por si só, hábitos e modelos próprios de cada uma destas coletividades. Este modo de viver desenvolvido pelo homem acarreta nele hábitos e costumes próprios do seu grupo, e, muitas vezes, diverso dos demais. Em um Estado Democrático de Direito, constituído por princípios que consagram a liberdade do indivíduo, a igualdade entre todos, a cidadania e o reconhecimento do outro como um ser portador de direitos, deveres e desejos, se faz necessário que ocorra o reconhecimento, igualmente, desta cultura pertencente a cada grupo, a cada coletividade. Contudo, o que se apresenta em inúmeras ocasiões é exatamente o inverso,

qual

seja,

a

inobservância

das

premissas

de

um

Estado

Democrático, e, por via reflexa, a não aceitação da cultura do outro, como algo normal, correto ou aceitável. E daí advém, por óbvio, as crises verificadas diuturnamente em nosso país e no mundo globalizado. O presente estudo, em uma tentativa inicial de análise do tema, objetiva a discussão da construção de uma cultura democrática como um dos pilares a constituírem uma sociedade que seja mais igualitária e fraterna. A democracia deve tornar o indivíduo realmente um cidadão, pertencente a um todo, mas que seja, ao mesmo tempo, livre para viver em plenitude e parte integrante de uma coletividade em termos culturais e econômicos. A democracia não foi algo criado de um dia para o outro, e sim, é um Mestranda em Direitos Humanos na UNIJUÍ. Bolsista UNIJUÍ. Membro do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade”. Advogada e orientadora educacional profissional do Senac, unidade Santo Ângelo/RS. 2 Doutorado em Teoria do Direito e da Democracia pela Università degli Studi Roma Tre (UNIROMATRE, 2010 Revalidado UFPR) e Estágio Pós-Doutoral na UNISINOS/PDJ-CNPQ, 2014. Mestrado em Direito Público (Filosofia do Direito) pela UNISINOS, 2006. Professor na UNIJUÍ, UNIOESTE e Univel. Advogado OAB-RS. 1

549

processo construído a cada dia, e que está apenas dando seus primeiros passos, cabendo aos indivíduos auxiliar no melhor andamento desta caminhada, para que os efeitos daí surgidos sejam por si só cada vez mais produtivos e enriquecedores ao conjunto envolvido. Dividido em três partes, o artigo traz, em sua parte inicial, um estudo introdutório a respeito da cultura e do ser humano como alguém que decorre do meio cultural em que está inserido. Através da comunicação oral e escrita é que ele se diferencia dos demais seres vivos e, por decorrência, se torna um ser culturalmente integrado ao ambiente. Em seguida, é tratado a respeito deste esforço que combina a unidade e a diversidade, a liberdade e a integração, ou seja, a cultura democrática. A partir do momento em que a comunidade optou pela democracia, é necessário aliá-la à cultura existente neste aglomerado, permitindo que se haja e viva de forma livre, mas respeitando também a liberdade do outro. E, por fim, o estudo a respeito da necessidade da construção efetiva de uma cultura que seja democrática e que respeite os direitos de todos, sejam eles minoria ou maioria. Somente será possível construir um mundo democrático, quando o homem souber respeitar a diferença e os povos que possuam costumes diversos. Uma cultura que esteja aliada à democracia, uma sociedade em que o indivíduo tenha respeitada a sua cultura, mas também respeite os hábitos e costumes dos demais. Em que o debate ocorra para o aprendizado e melhoramento de todos e não apenas como tentativa de mudança do modo de viver daquele que pensa e age diferentemente. Um mundo onde ocorra o diálogo social como meio de fortalecimento da democracia. É sabido que o tema, por sua importância, deve ser cada vez mais aprofundado, vez que se trata da história de um e de todos, havendo a necessidade premente da aceitação de cada ser humano como um ser único, dotado especialmente da sua individualidade e de particularidades que devem ser respeitadas, para a efetivação de um mundo plural e onde floresça concretamente a almejada paz social e a igualdade idealizada em um Estado Democrático. 550

2. A CULTURA COMO ESTRUTURA DE UMA SOCIEDADE O ser humano é o único ser passível de desenvolver-se culturalmente. Isto pode ser facilmente observado se partirmos da premissa de que ele é o único dos animais que pode comunicar-se de forma escrita e fabricar instrumentos que facilitam sua vida diária. Já na era da Antiguidade existiam as mais diversas tentativas de explicar as diferenças existentes entre os homens, a partir do ambiente físico que habitavam, como resultado de uma endoculturação, vez que o comportamento individual depende de um aprendizado, e em razão de que a comparação de povos diferentes leva a descoberta de costumes igualmente diferentes (LARAIA, 2009). Para Zeferino Rocha, Na passagem do mundo exterior das coisas materiais – o mundo da natureza — para a realidade significada que é o mundo da cultura, abre-se o espaço, no qual vão se inscrever as normas, os ideais e o tesouro de inúmeras formas simbólicas, tais como: o saber, a arte, a religião, a ciência, a técnica, formas simbólicas estas que tornam o mundo-morada do homem um mundo habitável. Resumindo, o homem é o único animal que cria seu mundo-morada como um universo simbólico de normas e de ideais, e isto é justamente o que eu entendo por cultura (2007, p. 120).

E complementa que [...] quando as coisas da natureza transformam-se em obras humanas, a Natureza se faz Cultura, da qual o homem é, ao mesmo tempo, a causa e o efeito. Causa porque é ele quem transforma a Natureza em Cultura, e, ao mesmo tempo, efeito, porque todo homem é homem de seu tempo e traz as marcas da cultura em que se insere e da qual recebe as influências. (2007, p. 120)

Ao contrário, se aos homens faltar a cultura, eles não passarão de “monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos

reconhecíveis

e

nenhum

intelecto:

verdadeiros

casos

psiquiátricos” (GEERTZ, 1989, p. 35). O sistema nervoso central do homem cresceu, em sua maior parte, exatamente com a cultura, sendo ele incapaz de dirigir o comportamento humano sem os símbolos significantes fornecidos 551

por ela. Geertz explica que Nossa idéias, nossos valores, nossos atos, até mesmo nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais – na verdade, produtos manufaturados a partir de tendências, capacidades e disposições com as quais nascemos, e, não obstante, manufaturados. Chartres é feita de pedra e vidro, mas não é apenas pedra e vidro, é uma catedral, e não somente uma catedral, mas uma catedral particular, construída num tempo particular por certos membros de uma sociedade particular. Para compreender o que isso significa, para perceber o que isso é exatamente, você precisa conhecer mais do que as propriedades genéricas da pedra e do vidro e bem mais do que é comum a todas as catedrais. Você precisa compreender também – e, em minha opinião, da forma mais crítica – os conceitos específicos das relações entre Deus, o homem e a arquitetura que ela incorpora, uma vez que foram eles que governaram a sua criação. Não é diferente com os homens, eles também, até o último deles, são artefatos culturais. (1989, p. 36-37)

Edward Tylor foi o primeiro a definir o termo Cultura, oriundo do vocábulo inglês Culture, significando para ele, em seu amplo sentido etnográfico, “este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (LARAIA, 2009, p. 25). A cultura é um estilo de vida, um espaço de vida, encarnando nele uma visão do mundo e do homem, que tem na importância característica da linguagem o mais fundamental de seus sistemas simbólicos, onde constam os conceitos éticos e onde se une a universalidade pertencente aos costumes e a singularidade relacionada à práxis. Por isso, não se pode conceber a cultura separada da ética, pois que as consequências desta separação acabam sendo funestas para a civilização (MENESES, 1991). Modernamente, o conceito de cultura se reconstruiu, admitindo-se que é um sistema que adapta a comunidade ao seu embasamento biológico, em que cada sociedade possuirá uma cultura própria, influenciada pelas próprias características sociais e locais, “o modo de ver o mundo, as apreciações de origem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura” 552

(LARAIA, 2009, p. 68). Disso decorre o fato de que indivíduos que pertencem a culturas diversas são facilmente reconhecidos pelo seu modo de agir, vestir, ou mesmo, pelo seu modo de comunicar-se. Se analisarmos o cotidiano de cada cultura, veremos que, o que é tradicional em uma, pode não o ser em outra. Por exemplo, a forma de reação de um povo à morte: enquanto uns a saúdam, como algo que liberta, outros a tem como algo triste, desolador e irreversível. Outro exemplo é o motivo pelo qual as pessoas riem. Em algumas culturas o riso é algo ligado ao cotidiano, enquanto em outras é uma questão de etiqueta, acarretando situações consideradas desagradáveis. Deste modo, se verifica que o riso acaba sendo condicionado aos padrões culturais estabelecidos, mesmo que seja, de origem, algo fisiológico. Laraia traz ainda o exemplo da diversidade cultural em termos gastronômicos: Frequentemente, esta diversidade é utilizada para classificações depreciativas; assim, no início do século os americanos denominavam os franceses de “comedores de rãs”. Os índios Kaapor discriminam os Timbira chamando os pejorativamente de “comedores de cobra”. E a palavra potiguara pode significar realmente “comedores de camarão”, mas resta uma dúvida linguística desde que em Tupi ela soa muito próximo da palavra que significa “comedores de fezes” (2009, p. 71).

O que demonstra, ainda mais, que o mundo visto pelo homem a partir da sua cultura, e isto dita seu modo de agir e de viver, muitas vezes conduzindo o entendimento de que o seu é o melhor, mais correto e mais natural modus vivendi, originando daí o etnocentrismo, causa de numerosos conflitos ocorridos na sociedade através dos tempos. Além disso, muitas vezes, é gerado um verdadeiro espanto na maioria das pessoas que não conseguem conviver e aceitar estes costumes diversos dos seus, em razão da rica diversidade existente de sociedades e, portanto, de culturas. Incrivelmente a compreensão humana, que deveria fazer com que se aceitasse as diferenças e o diferente, acaba, ao contrário, afastando e gerando um sentimento de repulsa pelo outro que não éigual. 553

Conforme Meneses, é que neste caso, o Outro é outro sujeito, para quem eu sou também um Outro, que me conhece como tal, como eu a ele; que pode aceitar-me, mas que sobretudo e antes de tudo pode repelir-me, como eu também faço com ele; de modo que o reconhecimento nunca é imediato, mas passa por uma reconciliação (1993, p. 454).

Com a globalização surge a tendência de uma homogeneização da cultura em termos mundiais, numa tentativa de que a diversidade cultural se transformasse em uma cultura transnacional. Porém, na prática, ela ainda não foi conquistada, devendo ser construída. Argumenta Montero, A particularidade do debate atual sobre a globalização reside na aceitação do fato de que a expansão planetária dos modelos culturais é vista como sendo capaz de realizar-se sem a existência de um centro específico exportador (ou impositor) de idéias, ideologias ou comportamentos paradigmáticos. [...] a produção cultural nesta modernidade-mundial é desterritorializada, isto é, ao ser absorvida por outras culturas, não leva mais a marca de sua origem (ocidental/americana) específica (1996, p. 92-93).

Hoje as relações ocorrem em circuitos cada vez mais alargados e as tradições e costumes estão presentes não apenas na sociedade que primariamente a tinham, como em outras em virtude da maior comunicação existente entre os povos, das mudanças no mundo como um todo, e no entrelaçamento que caracteriza a nossa atualidade. Mas isto não retira a necessidade, independente da cultura em que se esteja inserida, de que as relações sejam movidas pelo princípio ontológico da prática ética, que caracteriza a cultura verdadeiramente humana e que, abrindo mão dos “valores particulares regidos unicamente pelos caprichos e interesses dos indivíduos” assuma o valor de princípios universais, constituindo o sujeito ético que “embora seja particular na medida em que é inserido em uma cultura particular, nem por isso deixa de ser um sujeito de direitos e de deveres universais” (ROCHA, 2007, p. 122). A cultura, portanto, éalgo inerente ao homem e relacionado ao meio em que se estáinserido, com usos e costumes determinados pelos hábitos do grupo, e que, no mais das vezes, acaba por determinar suas atitudes 554

cotidianas e suas práticas em relação ao outro. A globalização, ao aproximar diferentes realidades e comunidades, fez com que os povos acabassem incorporando hábitos novos aos seus. 3. CULTURA DEMOCRÁTICA A democracia, como já dito, é um processo é construído a cada dia, sendo hoje, conforme Norberto Bobbio, um “termo com conotação fortemente positiva. Não há regime, até mesmo o mais autoritário, que não queira denominar-se democrático” (2003, p. 246). Além disso, o processo de democratização do sistema internacional, que é o caminho obrigatório para a busca do ideal da “paz perpétua”, no sentido kantiano da expressão, não pode avançar sem uma gradativa ampliação do reconhecimento e da proteção dos direitos do homem, acima de cada Estado. Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo (BOBBIO, 2004, p. 7).

Nas palavras de Kelsen, A democracia julga da mesma maneira a vontade política de cada um, assim como respeita igualmente cada credo político, cada opinião política, cuja expressão, é a vontade política. Por isso a democracia dá a cada convicção política a mesma possibilidade de exprimir-se e de buscar conquistar o ânimo dos homens através da livre concorrência. [...] O domínio da maioria, característico da democracia, distingue-se de qualquer outro tipo de domínio não só porque, segundo a sua essência mais íntima, pressupõe por definição uma oposição – a minoria – mas também porque reconhece politicamente tal oposição e a protege com os direitos e liberdades fundamentais (2000, p. 105-106).

A democracia busca, portanto, combinar o pensamento racional que faz parte do ser humano, com a sua liberdade pessoal e a identidade cultural. O indivíduo é um sujeito, guiado “por seus interesses, pela 555

satisfação de suas necessidades, ou até mesmo pela recusa de modelos centrais de conduta” (TOURAINE, 1996, p. 28). Assim, muitas vezes, ele não é portador de uma cultura democrática, nem mesmo defende a sociedade democrática em que vive, querendo, por outro lado, salvaguardar os seus bens e seus próprios interesses, em detrimento dos demais. Sendo o regime democrático reconhecedor do direito das minorias, pela maioria, deve ele buscar o desenvolvimento de uma cultura que seja igualmente

democrática,

e

que

possua,

como

objetivo

principal,

a

combinação da liberdade dos indivíduos e das coletividades, com a unidade da atividade econômica e igualmente das regras jurídicas (TOURAINE, 1996). O desenvolvimento de uma cultura democrática que seja aberta, pluralista e principalmente voltada aos direitos humanos, devendo ser desenvolvida e construída em todos os lugares, nas escolas, nas igrejas, nos meios de comunicação. Necessário se faz o esforço coletivo para que a sua edificação se efetive e, com isto, se possa consolidar a democracia em todas as suas acepções. A definição de cultura democrática decorre da democracia, na medida em que esta é o regime que reconhece os indivíduos e as coletividades como sujeitos, isto é, os protege e encoraja em sua vontade de “viver sua vida” e dar unidade e sentido à sua experiência vivida. Nesse caso, o que limita o poder não é somente um conjunto de procedimentos, mas a vontade positiva de aumentar a liberdade de cada um. A democracia é a subordinação da organização social e, em particular, do poder político, a um objetivo que não é social, mas moral: a libertação de cada um (TOURAINE, 1996, p. 254).

Ela éa oposição às forças de dominação social e de controle da sociedade, incentivando a participação ativa de cada integrante dela, concedendo a cada indivíduo o direito de reconhecer o direito do outro, e assim ter reconhecidos os seus. Portanto, a partir do respeito à individualidade pertencente ao outro, sem a abolição das diferenças culturais existentes, e sim, por outro lado, aumentando a diversidade interna existente na sociedade, na medida em que elas se complementam, aceitando o diálogo dos indivíduos e das 556

culturas, é que se poderá efetivamente construir uma cultura democrática. 4. A CULTURA DEMOCRÁTICA COMO PILAR DE CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE IGUALITÁRIA O mundo globalizado e suas consequências a nível econômico, civil e político, acabam por acarretar a desconfiança na democracia como a melhor forma de governo. Aliado a isto, tem-se o consumismo como algo presente na sociedade atual e que prejudica, como um todo, o desenvolvimento de um modo de vida que seja mais sustentável, não só a nível de ambiente, como a nível de relações interpessoais e entre culturas distintas. Isto gera a necessidade de desenvolvimento de algumas estratégias que possam auxiliar na concretização de um Estado democrático que englobe, efetivamente, todas as suas premissas. Uma delas, e, quiçá, a mais importante, seja a realização de um diálogo social que envolva todos os atores da sociedade. Assim, Prescindimos de uma democracia que, ao mesmo tempo, seja capaz de ampliar a participação da sociedade em geral com o diálogo sistemático com os cidadãos, com grupos sociais que querem melhorar suas condições de vida e de direitos, ou que querem um padrão sustentável de desenvolvimento e consumo (DIÁLOGO SOCIAL, 2009).

Touraine, igualmente, traz a questão da necessidade do diálogo entre as culturas, que deve advir da política. Ele ressalta que, O essencial é reconhecer que o papel da política, o que a torna democrática, é tornar possível o diálogo entre as culturas. Para uns, este diálogo não precisa mais que liberdade; para outros, entre os quais me encontro, supõe de início que cada indivíduo se constitua desde logo como ator e como sujeito, articulando suas práticas e seus valores; e, no que diz respeito a todos, trata-se de estender, de aprofundar e de generalizar o que foi o espírito da democracia industrial, ou seja, a defesa, em situações sociais concretas, do direito de cada indivíduo e da coletividade de agir em conformidade com sua própria liberdade e no respeito à liberdade dos outros (1998, p. 64-65).

É o reconhecimento do indivíduo que está em voga, o seu direito de 557

articular as suas experiências, seja na vida pessoal ou em termos coletivos, além da participação no mundo através da sua identidade cultural particular. Necessário reconhecer não a inspiração universalista de uma cultura, mas “a vontade de individuação de todos os que procuram reunificar

o

que

o

nosso

mundo,

economicamente

globalizado

e

culturalmente fragmentado, tende sempre mais fortemente a separar” (TOURAINE, 1998, p. 65). A necessidade de que cada um seja visto como um indivíduo separado, isolado, e, portanto, que deve ser considerado como um igual, mas igualmente como um diferente. Assim, A diversidade de atores definidos não somente pelo lugar que ocupam na sociedade, mas também cada vez mais por sua identidade pessoal e por sua herança cultural, combina-se com sua igualdade que tem como referência comum um princípio não social, a liberdade humana, ao passo que se tente substituir a igualdade e a diferença no interior do mesmo conjunto social institucionalizado, chega-se a contradições insuperáveis (TOURAINE, 1998, p. 95-96).

Cada vez mais urge que se reconheça essa multiculturalidade, esta diferença presente no mundo, O reconhecimento de que vivemos em sociedades multiculturais, compostas de uma pluralidade de identidades, instiga a reflexão a respeito das dificuldades de sustentar a ideia de cidadania e de identidades comuns, sem o devido reconhecimento das culturas excluídas ou esquecidas, não reconhecidas, desde o projeto moderno. São demandas de direito às diferenças e à diversidade (BERTASO, 2013, p. 27-28).

Sendo um Estado de Direito pautado pela Justiça, em que estão presentes um Estado de liberdade e de igualdade, logicamente, por via reflexa, também deve estar ele amparado pela diferença, quase como uma consequência do princípio da isonomia, por incluir cidadãos que pensam e agem de formas não iguais (BEDIN, 2009). Atualmente, encontramos um Estado Democrático para as zonas ditas civilizadas do contrato social, e um fascista para as zonas excluídas socialmente, devendo a igualdade ser ampliada para os domínios econômico e social. A solidariedade, desse modo, deve ser praticada na diferença, e não 558

apenas entre iguais. É necessário que se reivindique igualdade quando a diferença

inferioriza

e

o

direito

à

diferença

quando

a

igualdade

descaracteriza (VIEIRA, 2014). É paradoxal e, ao mesmo tempo, compreensível, que se discuta o reconhecimento da diferença na contemporaneidade e a tentativa de desenvolvimento de uma cultura democrática, vez que o mundo tem se mostrado cada vez mais frágil, no que tange a simbolização das experiências. Talvez seja exatamente por isso que este assunto esteja tão em voga. Falar, juridicamente, de reconhecimento da alteridade, justifica-se nesse mundo onde a capacidade simbólica está quase “em frangalhos”. Necessário se faz, cada vez mais, que a busca por um mundo efetivamente democrático seja uma busca coletiva, e não isolada. O homem é um ser cultural, como já visto, e, para viver plenamente a democracia, devese aceitar e até mesmo “cultuar” esta multiculturalidade presente na nossa sociedade. Os direitos humanos possuem papel fundamental neste processo, pois, além de viabilizarem as liberdades, são estratégicos no sentido de auxiliarem o funcionamento da sociedade política, e

são eles que

“institucionalizaram a ética da alteridade e o dever de respeitar a existência singular e única do Outro” (DOUZINAS, 2009, p. 362). Como bem argumenta o Doglas Cesar Lucas, [...] os direitos humanos devem funcionar como o mediador entre as igualdades e as diferenças, como limite ético para o reconhecimento das particularidades e para a afirmação que não homogeneízem e não sufoquem a humanidade presente de cada homem isoladamente considerado (LUCAS, 2013, p. 286).

O ser humano não existe, e sim, coexiste com outros. A relação entre todos não deve ser uma relação de domínio de um sobre o outro, e sim, deve ser uma relação de con-vivência. Não deverá ocorrer a intervenção, e sim a inter-ação e a comunhão (BOFF, 1999). De acordo com Touraine, [...] este individualismo tem também uma dimensão totalmente

559

diferente: (...) nós procuramos salvar nossa existência individual, singular. Desdobramento criador, porque faz nascer ao lado do ser empírico um ser de direitos, que procura se constituir como ator livre através da luta por seus direitos (2006, p. 240) [grifo no original].

As conquistas da atualidade, dentre elas a consagração do direito humano à diferença, vem apenas afirmar que será através de uma cultura democrática que a sociedade humana poderá se concretizar em uma sociedade efetivamente mais igualitária, justa e fraterna. Quando se respeita o outro, como um ser igual, mas, ao mesmo tempo, um ser diferente, e, portador de uma cultura própria, advinda de hábitos e costumes já arraigados, temos o pontapé inicial do desenvolvimento de uma coletividade que, seguindo os preceitos da democracia, realmente se configure como um Estado dos cidadãos, como defendido por Bobbio. Por isso a importância cada vez mais crescente dos trabalhos que envolvem o desenvolvimento da autoestima e da consciência de identidade. Após

gerações

e

gerações

de

povos

oprimidos,

de

pessoas

sendo

consideradas coisas, de ausência de direitos, natural que se tenha que reaprender a viver como um indivíduo único, e realmente se possa ser uma unidade pertencente a um todo. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O homem é um ser cultural, e, inclusive, o único dentro da cadeia de seres vivos que assim pode ser considerado. É produto do meio em que está inserido, e, por isso, seus atos, hábitos e costumes são a ele vinculados. Porém, por outro lado, igualmente é um homem mundial, e, em tempos globalizados, não pertence mais a apenas um meio, e sim, ao todo, tendo, por este motivo, hábitos adquiridos de outras culturas. Assim, o primeiro ponto trazido neste estudo foi exatamente a explicação quanto ao indivíduo como um ser cultural, que, vivendo em um mundo onde imperam sociedades democráticas, deve ser conduzido à aceitação do outro como um ser igualmente portador de direitos, deveres e desejos. 560

A partir desta aceitação e da consagração da alteridade é que se poderá crescer em termos de mundo e em termos de evolução. Apenas a partir

da

construção

e

efetivação

de

uma

cultura

eminentemente

democrática, que aceite as demais culturas, que a elas se interligue, e que aceite as diferenças é que se poderá construir um mundo fraterno e justo. A sociedade sofreu inúmeras mudanças em termos de direitos nos últimos dois séculos e, cada vez mais estámudando, sendo necessário que todos possam aprender e discutir sobre os caminhos que levaram a nossa atualidade, a construção histórica e a evolução sofrida em termos mundiais. Somos diferentes, isto éum fato! E na busca pela extinção das desigualdades, pela confirmação de que todos somos iguais, perante a lei e a sociedade, muitas vezes nos esquecemos de que não somos totalmente iguais, e sim, como bem disse Boaventura de Sousa Santos, todos possuímos o direito de ser diferentes e iguais. Isto não retira, obviamente, a necessidade do alcance, por todo e qualquer indivíduo, dos direitos fundamentais e das garantias constantes nas normas constitucionais, dentre elas, o direito a ver-se inserido democraticamente em razão da sua cultura, para o alcance maior do fim a que se destina o Estado. A era dos direitos estásendo vivida pela humanidade, e um dos mais importantes direitos a ser defendido e protegido por cada indivíduo é, exatamente, o direito de ser uma individualidade e de, pertencendo a um todo, conviver com os demais, em um mundo onde haja mais respeito e alteridade, onde uma cultura democrática realmente se efetive, e, com ela, se desenvolva, realmente, uma sociedade mais igualitária. REFERÊNCIAS BEDIN, Gilmar Antonio (Org.). Cidadania, direitos humanos e equidade. Ijuí: Unijuí. 2012. _____. Estado de direito, jurisdição universal e terrorismo: levando o direito internacional a sério. Ijuí: Unijuí, 2009. BERTASO, João Martins; SANTOS, André Leonardo Copetti. Cidadania e direitos culturais: a tutela judicial das minorias e hipossuficientes no 561

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563

ANÁLISE COMPARADA: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA ARGENTINA E NO BRASIL Carla Dóro de Oliveira1 Doglas Cesar Lucas2 1. INTRODUÇÃO Entre a década de 1970 e 1980, países latino-americanos como o Brasil, a Argentina, o Chile e o Uruguai passaram por um período de forte repressão estatal contra a população civil. Foram “anos de chumbo”, de regimes autoritários que governavam pelo uso da força. Nessa época, a violação de direitos humanos era prática costumeira, pessoas eram detidas arbitrariamente

e

torturadas,

e

muitas

delas

acabavam

“sumindo”

misteriosamente, um crime que ficou conhecido como “desaparecimento forçado”. Embora a história desses países seja semelhante em muitos aspectos, é interessante averiguar qual o caminho escolhido por um ou outro país para deixar para traz esse período de violação de direitos e começar a reconstrução de sua democracia. Para tanto, o presente estudo se dedicou a analisar os casos brasileiro e argentino, traçando um paralelo entre os dois, a fim de entender quais os possíveis reflexos dessas escolhas para o futuro de suas democracias. 2. A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL A justiça de transição traz em seu próprio nome o seu cerne, uma vez que se dedica a conduzir um país à construção de uma democracia após um período de restrição de direitos individuais, trazendo consigo uma gama de medidas aptas a possibilitarem tal mudança. Nesse sentido, de acordo com 1 2

Acadêmica do 10º período do Curso de Direito do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo – IESA/CNEC. Email: [email protected]. Pós-Doutor em Direito pela Università Degli Studi di Roma Tre (2012). Professor dos Cursos de Graduação e de Mestrado em Direito na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - Unijuí e no Curso de Direito do Instituto Cenecista de Ensino Superior Santo Ângelo –IESA/CNEC.

564

Paul van Zyl, “pode-se definir a justiça transicional como o esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos” (2011, p. 47). Para que se torne completo, estudiosos do tema, dentre eles Paulo Abrão e Marcelo D. Torelly, apontam que o processo transicional deve passar por quatro etapas distintas, cada qual desempenha relevante e indispensável papel na construção da democracia, são elas: (i) a reparação, (ii) o fornecimento da verdade e a construção da memória, (iii) a regularização da justiça e o restabelecimento da igualdade perante à lei e (iv) a reforma das instituições perpetradoras de violações contra os direitos humanos (2011, p. 215).

A reparação, primeira dimensão da justiça transicional, diz respeito tanto à indenização pelos danos materiais causados às vítimas das violações de

direitos

humanos,

quanto

a

“assistência

psicológica

(p.ex.

aconselhamento para lidar com o trauma) e medidas simbólicas (p.ex. monumentos, memoriais e dias de comemoração nacionais)” (ZYL, 2011, p. 52). Um aspecto dessa transição deve ser trabalhado paralelamente ao outro e não de forma excludente. No entanto, no Brasil houve, até pouco tempo, inegável preferência pelo modelo pecuniário de reparação. Dessa visão compartilha Roberta Camineiro Baggio, segundo a qual o uso exclusivo desse modelo acarreta um [...] menosprezo pelos avanços transicionais arduamente conquistados até aqui e o desrespeito em relação aos perseguidos políticos que passam a ser vistos, de um modo geral, principalmente pela mídia, como “caçadores de tesouros” às custas do dinheiro público (2011, p. 254).

A autora procede à minuciosa análise do tema, defendendo que, quanto ao aspecto reparatório, a justiça de transição tem como desafio, permitir o reconhecimento das vítimas do regime autoritário, dessa pessoa no seu modo de vida e de suas convicções, pois, desse modo, estaria se permitindo “aos sujeitos outrora desrespeitados a (re)construção de uma imagem positiva de si mesmos” (BAGGIO, 2011, p. 258). Dita circunstância se faz crucial em face de um regime que 565

classificou como “terroristas” aqueles que se opuseram ao Governo, os quais, em larga maioria – segundo dados da obra “Brasil: Nunca Mais”– foram presos por crimes como militância em organização partidária proibida e que, até hoje, são vistos por parcela da população como criminosos. É também esse o entendimento do eminente jurista francês Antoine Garapon, para quem o crime contra a humanidade inaugurou uma nova prática, até então inédita e inimaginável, a do crime sistematicamente organizado pelo Estado contra a população civil, muitas vezes, nacional do próprio país violador de direitos. Por essa razão que o reconhecimento adquire um espaço tão importante na justiça de transição, posto que, em decorrência crime contra a humanidade, o direito da vítima de pertencer à própria comunidade da qual faz parte lhe é violentamente negado. Nada mais justo, nesse sentido, que esse Estado que suprimiu esse direito seja o mesmo que, uma vez cessadas tais violações, venha a admitir seu erro, reconhecendo a vítima enquanto sujeito de direitos, parte dessa sociedade. Nas palavras do autor, “as vítimas não esperam apenas da justiça aquilo que lhes cabe – a restituição dos seus direitos, a indemnização dos danos sofridos, a punição dos culpados –, mas também, e em primeiro lugar, serem reconhecidas” (2002, p. 135). Isso porque, [...] é o registro da identidade, por estar ligado ao plano político, que é afectado. A vítima, violentamente expulsa da sua cidade, vê-se condenada a uma solidão moral que se agrava com o tempo. Se um prejuízo é reparado, já uma identidade negada exige ser reconstruída, reiterada por um acto de justiça, inédito aos olhos de muitos, o reconhecimento (GARAPON, 2002, p. 135).

Essa

situação

tem

apresentado

melhoras

em

nosso

país,

principalmente após a Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. Chamada por muitos de nova Lei de Anistia, esse dispositivo regulamentou o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), estabelecendo outras medidas de reparação às vítimas do regime ditatorial, além da pecuniária, e instituindo a Comissão de Anistia no âmbito do Ministério da Justiça. A partir do trabalho da mencionada Comissão foram implantadas as Caravanas da Anistia, projeto pelo qual, conforme explica José Carlos 566

Moreira da Silva Filho, a Comissão de Anistia se desloca pelos mais diversos Estados brasileiros “para julgar requerimentos de anistia emblemáticos nos locais onde as perseguições aconteceram, realizando as apreciações em ambientes educativos como Universidades, espaços públicos e comunitários” (2015, p. 200). O trabalho das Caravanas da Anistia é fundamental para a reconstrução da memória e da verdade, mas, principalmente, para a valorização e o reconhecimento da vítima, pessoa que teve sua dignidade violada no mais alto grau. É de extrema importância ressaltar que uma das medidas adotadas pela sessão de julgamento das Caravanas é o pedido oficial de desculpas por parte do Presidente da sessão ao anistiado. Entendese que esse ato [c]orrigiu-se, dentro das balizas legais existentes, o desvirtuamento interpretativo que dava ao texto legal uma leitura economicista, uma vez que a anistia não poderia ser vista como a imposição da amnésia ou como ato de esquecimento ou de suposto e ilógico perdão do Estado a quem ele mesmo perseguiu e estigmatizou como subversivo ou criminoso (ABRÃO; TORELLY, 2011, p. 222).

Esse trabalho realizado pela Comissão de Anistia através das Caravanas é amplamente elogiado pelos estudiosos do tema, que defendem se tratar de efetiva prática de reparação moral, baseada na valorização do anistiado, por meio do reconhecimento. Nas palavras de Baggio, o pedido de desculpas oficial é [...] uma estratégia concreta de valorização do papel daqueles que exerceram com legitimidade seu direito de resistência contra o Estado autoritário, reconhecendo sua importância histórica e contrapondo frontalmente o processo de desvalorização desse grupo na sociedade brasileira. Nesse ato, há uma ressignificação semântica da concepção de anistia, caracterizando tal iniciativa como uma divergência real em relação à ideia de anistia como esquecimento (2011, p. 267).

Aliás, importante frisar que, em se tratando do número de requerimentos de anistia julgados pela Comissão até 2010, “[...] cerca de 34% foram indeferidos. Além disso, 41,33% de todos os requerimentos apreciados pela Comissão até Dezembro de 2010 foram deferidos mas sem a concessão de qualquer reparação econômica” (SILVA FILHO, 2015, p. 171). Tais dados comprovam que, além de nem todos os pedidos de anistia 567

serem deferidos, dentre os que o são, nem todos recebem benefícios pecuniários – ao contrário do que fazem crer algumas informações divulgada pela mídia. O que se deve ter em mente, afinal, é que medidas como essa dão força ao processo transicional no país, credibilizam a imagem do anistiado político e, fator muito relevante, rompem o silêncio imposto pela Lei de Anistia, trazendo ao debate a questão das violações aos direitos humanos cometidas durante o regime militar. Ademais, um modelo reparatório que vai além da reparação pecuniária ajuda a desconstruir a ideia de que os anistiados políticos estão em busca, tão somente, daquilo que a mídia chama pejorativamente de “bolsa ditadura”, uma vez que a própria Lei nº 10.559/02 prevê outras formas de reparação, que não a material, as quais precisam ser cada vez mais adotadas. Outro aspecto que torna ainda mais significativo o trabalho das Caravanas da Anistia é o fato de que, durante as sessões, o anistiando tem a oportunidade de dar seu testemunho sobre os horrores vividos durante a repressão. Isso, num país onde até o ano de 2011 ainda não se tinha instaurado uma Comissão da Verdade no âmbito do Executivo, é um acontecimento que merece destaque. Aliás, levando-se em consideração que o fornecimento da verdade e a reconstrução da memória é uma das dimensões da justiça transicional, defende Silva Filho que, “ao abrir o espaço público para essas narrativas a Comissão contribui para recolocar politicamente no cenário público aqueles que foram expulsos da comunidade política, violados, agredidos e desumanizados” (2015, p. 177). Cumpre salientar que, em nosso país, somente com a Lei nº 12.528 de 18 de novembro de 2011 – transcorridos mais de vinte anos desde a Constituição de 1988 – é que foi criada, no âmbito do Poder Executivo, a Comissão Nacional da Verdade (CNV). A finalidade da CNV é examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período ditatorial, de modo a efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. Antes disso, o Estado brasileiro promoveu outras ações, mas nenhuma com a magnitude da CNV, que conseguiu alçar o tema da busca pela memória e pela verdade ao centro do debate nos principais veículos midiáticos do país. 568

A importância da CNV reside no fato de que somente com o reconhecimento dos fatos ocorridos, com o esclarecimento da verdade e da memória e com o reconhecimento da vítima enquanto agente político relevante na luta contra um regime injusto e opressor é que se pode superar esse triste capítulo da história brasileira, quando, aí sim, o esquecimento servirá, finalmente, enquanto aliado no processo de luto – mas jamais para que se apague de nossas memórias as graves violações aos direitos humanos aqui cometidas. Outros autores também seguem o mesmo raciocínio, a exemplo de Garapon, segundo o qual O ritual da justiça possibilita a separação definitiva do mundo dos vivos do mundo dos mortos. É necessário poder assistir simbolicamente à morte de um ente próximo para que este se torne, enfim, um antepassado. Mas é igualmente necessário que o sobrevivente readquira uma vida normal para parar de ameaçar a ordem do mundo, apaziguar o seu ressentimento e conseguir viver (GARAPON, 2002, p. 214-5).

A respeito do tema, não se pode deixar de lado os estudos levados a cabo por Tricia D. Olsen, Leigh A. Payne e Andrew G. Reiter. Os pesquisadores analisaram números da Base de Dados da Justiça de Transição (TJDB), que inclui “dados de cinco mecanismos de justiça de transição — julgamento, comissões de verdade, anistias, reparações e depuração – para todos os países do mundo, de 1970-2007” (2011, p. 553). A partir disso, concluíram que as anistias, ao contrário do que se imaginava, não desempenham um papel de todo negativo na justiça transicional, desde que combinadas com outras medidas transicionais, e que, ademais, o sucesso da adoção das Comissões da Verdade “depende da combinação das comissões de verdade com os julgamentos e as anistias” (2011, p. 561). Tais dados reforçam a ideia de que uma justiça de transição lastreada apenas num sistema reparatório que privilegia a reparação pecuniária e em Comissões da Verdade – tardiamente instauradas – não é suficiente para o avanço dos direitos humanos e o fortalecimento da democracia. Diante disso, os autores advogam que os dados coletados durante sua pesquisas comprovam que [...] as anistias não são necessariamente perigosas para a democracia e os direitos humanos como a abordagem contestadora argumenta.

569

Tampouco mostram, porém, que os julgamentos são perigosos para os direitos humanos e a democracia, como a abordagem proponente poderia argumentar. Apenas as comissões de verdade tendem a resultados negativos, mas apenas quando os Estados a utilizam em benefício próprio (2011, p. 561).

Isso significa que “as anistias poderão vir antes e serem depois afastadas para que ocorram os julgamentos (como no caso argentino), ou que as anistias convivam com a realização de alguns julgamentos (como no caso chileno e uruguaio)” (SILVA FILHO, 2015, p. 66). Portanto, frisa-se primeiramente, conforme o estudo, em dado momento histórico, as anistias podem ser benéficas quando, por exemplo, surgem como a única forma de um governo ditatorial “deixar” o poder; ademais, que isso não pode servir de obstáculo, no entanto, para que essas anistias não sejam nunca contestadas – no caso Argentino, por exemplo, a Lei de Autoanistia foi julgada inconstitucional pela própria Suprema Corte do país, com base na jurisprudência internacional sobre a proteção dos direitos humanos –; por fim, que nem sempre uma lei de anistia precisa ser revogada ou anulada pelo Judiciário a fim de que a responsabilização dos agentes públicos que cometeram crimes de lesa-humanidade possa acontecer, uma vez que, como no caso uruguaio, pode-se optar pela responsabilização não de todos os agentes envolvidos na violação sistemática aos direitos humanos – o que não se pode permitir é a absoluta negativa, por parte do Estado, dessa dimensão da justiça transicional. A respeito do assunto, Paul van Zyl traz importantes contribuições, argumentando que “os julgamentos podem servir para evitar futuros crimes, dar consolo às vítimas, pensar um novo grupo de normas e dar impulso ao processo de reformar as instituições governamentais, agregando-lhes confiança” (2011, p. 49-50). Zyl complementa, trazendo como exemplo o julgamento de Nuremberg para aduzir que, não obstante nem todos os perpetradores de graves violações aos direitos humanos terem sido levados a julgamento, tal aspecto não retira a extrema relevância desse caso para a efetiva proteção aos direitos humanos (2011, p. 50-1). Nas palavras de Garapon: O julgamento não evacua factos passados, mas fixa-os na

570

memória colectiva dando-lhes uma versão oficial e definitiva. [...] Enquanto uma acção tida como criminosa não for julgada, existe o risco de a injustiça ser consagrada pelo tempo (2002, p. 208).

Pode-se pensar o processo como uma etapa, uma fase importante para que os fatos sejam revividos, discutidos, elucidados e, enfim, encerrados. É um “palco” necessário para o reencontro da vítima e do seu carrasco, que agora se encontram em posições invertidas, de modo a possibilitar, finalmente, que a vítima conte sua história e seja, de fato, ouvida. É o local de reconhecimento e de entendimento, e o primeiro passo para que o perdão se torne viável. Aliás, como a dimensão da justiça tem por objetivo a reconstrução e a reconciliação, Garapon advoga que “em vez de uma pena que exclui da humanidade, a justiça deve visar não a expulsão, não o recalcamento, mas a reintegração da experiência central da violência e do crime na vida pública” (2002, p. 156). Por fim, o que se deve considerar é que essa é somente uma das dimensões da justiça transicional, devendo vir sempre aliada dos demais âmbitos do processo de transição. Quanto ao fortalecimento das instituições, Silva Filho defende que constitui o dever de “reforma das instituições públicas que, durante o regime de exceção, permitiram e se amoldaram à prática sistemática de crimes contra a humanidade, especialmente as instituições relacionadas à Justiça e à Segurança Pública” (2011, p. 282). A estagnação das instituições públicas desde a ditadura militar é fator que contribui, e muito, para a continuidade na perpetração de violências contra os direitos individuais. O que se nota é que, até hoje, nosso Poder Judiciário é muitíssimo conservador, o Exército brasileiro ainda não reconhece a violação sistemática aos direitos humanos cometidas durante o regime militar e, por fim, a violência permanece sendo o modus operandi das instituições de Segurança Pública no país. Nesse sentido, a reforma das instituições pode trabalhar como aliada da responsabilização dos agentes públicos, conforme visto acima, contribuindo “para estabelecer a responsabilidade não penal por violações dos direitos humanos, particularmente em contextos nos quais resulta impossível processar todos os responsáveis” (ZYL, 2011, p. 54). Em se tratando do Poder Judiciário, seu conservadorismo pode ser 571

observado por diferentes enfoques. No entanto, urge dar destaque a dois aspectos. Primeiramente, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, em sua maioria, os Ministros do STF sequer mencionam o direito internacional para analisar a questão, apesar de o assunto versar sobre direitos humanos, matéria amplamente amparada por tratados e convenções de direito internacional. Quanto ao Exército, até hoje se espera um pedido oficial de desculpas pelos crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar, posto que Trazer oficialmente à memória uma injustiça praticada pelo Estado, admitir uma responsabilidade, acaba por ser sinônimo de emitir um juízo moral, jurar fidelidade a um sistema de valores que transcende os interesses do Estado. Lamentar um crime é assumir o compromisso implícito de que nunca mais irá cometê-lo (GARAPON, 2002, p. 181).

É justamente por ser um ato político de reconhecimento que vincula o Estado a esse sistema de valores transcendente a seus interesses que é tão importante que esse pedido oficial de desculpas aconteça. Entretanto, por esse mesmo motivo é extremamente improvável que isso, de fato, ocorra. Ademais,

é

consabido

que,

até

2010,

as

Forças

Armadas

comemoravam o dia do golpe que deu início ao regime militar – 31 de março de 19643. Além do que, em 2010 o Jornal Folha de São Paulo denunciou, por meio da reportagem de Angela Pinho, a adoção, nos Colégios Militares, de um livro didático de história que ensinava os estudantes a “louvar a ditadura”, segundo o qual o golpe de 1964 foi uma “revolução democrática”. A obra ainda silenciava quanto à prática da tortura e desaparecimentos forçados de pessoas, dando amplo destaque à ação dos grupos de oposição ao regime4. Para demonstrar os efeitos da falta da reforma das instituições públicas no Brasil, imperioso revelar os dados colhidos pela organização não 3

4

Reportagem de Bruno Góes veiculada pelo jornal O Globo em 31 de março de 2011 dá conta que o Exército finalmente decidiu abolir as comemorações ao golpe de 64. Disponível em: . Acesso em 11 jun. 2015. Reportagem de Angela Pinho publicada em 13 de junho de 2010. Disponível em: . Acesso em 11 jun. 2015.

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governamental (ONG) Anistia Internacional (AI) nos Informes 2014/2015 que dispõe sobre “O estado dos direitos humanos no mundo”. Na pesquisa, a AI traz informações relativas à violação dos direitos humanos, segurança pública, impunidade, tortura, condições prisionais, entre outros, nos mais diversos países onde atua. O informe é dividido por país, sendo que, em se tratando da segurança pública no Brasil, a AI demonstrou preocupação, registrando que Segundo estatísticas oficiais, 424 pessoas foram mortas pela polícia durante operações de segurança no estado do Rio de Janeiro em 2013. No primeiro semestre de 2014, houve um aumento do número de mortes nessas circunstâncias, quando a polícia matou 285 pessoas, 37% a mais que no mesmo período de 2013 (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015, p. 73).

Esses números reforçam a tese de que a impunidade e a falta de uma reforma nas instituições públicas brasileiras após o período ditatorial contribuem para uma cultura de violência. Os órgãos da segurança pública, em vez de fazer cessar a violência com que tratavam os presos políticos na ditadura militar, apenas mudaram de foco. Agora, o “inimigo estatal” é o pobre, o negro e, porque não incluir na lista, o manifestante, o “insubordinado”. De acordo com Silva Filho, a falta de uma transição adequada “se reflete na continuidade da extrema violência empregada pelas forças de segurança pública no país, e em especial da tortura como método de investigação criminal” (2011, p. 282). Aliás, quanto ao uso da tortura como método de investigação criminal, a Anistia Internacional conduziu um estudo chamado “Actitudes respecto a la tortura” pelo qual entrevistou 21.221 (vinte e uma mil duzentas e vinte e uma) pessoas de vinte e um países diferentes. A pertinência do estudo frente ao trabalho ora realizado refere-se à primeira questão da pesquisa. No caso, diante da seguinte afirmação: “se as autoridades de meu país me colocassem sob custódia, tenho confiança de que estaria a salvo da tortura”,

perguntava-se

ao

entrevistado

se:

concordava

totalmente;

concordava parcialmente; discordava em parte; ou, discordava totalmente. O resultado da pesquisa indicou que 80% dos brasileiros discordam total ou parcialmente dessa afirmação; 18% respondeu que concordava (total 573

ou parcialmente), enquanto 2% não soube responder ou não quis responder. O Brasil foi o país onde o medo da tortura foi o mais alto. Em outros países latino-americanos que passaram por ditaduras militares, mas que, no entanto, apresentam um processo transicional mais avançado que o brasileiro, como na Argentina, por exemplo, 49% dos entrevistados discordaram da afirmação, enquanto 34% concordaram; já no Chile, 30% dos entrevistados discordaram da afirmação, enquanto 45% concordaram. Tais dados demonstram um índice muito maior de confiança nas instituições de segurança pública por parte dos vizinhos que implementaram a justiça transicional de forma mais completa5. Abrão e Torelly reconhecem que muito já se fez no sentido de fortalecer as instituições democráticas no país, contudo, argumentam que ainda “restam reformas a serem cumpridas especialmente nas Forças Armadas e nos sistemas de Segurança Pública” (2011, p. 224). Como já foi dito, a justiça de transição se faz de diferentes aspectos e é quando essas dimensões são trabalhadas em conjunto que se aumentam as chances de se obter avanços significativos na valorização dos direitos humanos e no fortalecimento da democracia. Desse modo, é imperioso lutar para que o processo transicional se complete no país, de modo que se efetive a reparação – não apenas pecuniária, mas também moral das vítimas de violações aos direitos humanos –, a busca por verdade e memória (como tem sido feito pela CNV, embora com a relutância das Forças Armadas), a tentativa de responsabilização dos agentes públicos (dentro dos limites possíveis), paralelamente à reforma (para o fortalecimento) das instituições democráticas. 3. UM PARALELO ENTRE A DITADURA BRASILEIRA E O CASO ARGENTINO O Brasil não foi o único país que passou por um regime de exceção.

5

Pesquisa completa disponível em: . Acesso em 11 jun. 2015.

574

Nesse contexto, basta olharmos as nações vizinhas para encontrarmos histórias muito similares às vividas por nós, brasileiros, durante a ditadura. Por conseguinte, é interessante avaliarmos o tratamento que países que passaram por situações análogas a nossa deram a tais fatos, pois a forma com que um Estado responde a tais violações muito diz sobre a própria sociedade que o forma. É interessante destacar que as histórias argentina e brasileira se aproximam e se afastam em diversos pontos. Nas palavras de Guilhermo J. Yacobucci “La historia política del Siglo XX en la Argentina estuvo signada no solo por los grandes cambios sociales también por la violencia que encontró, en los recurrentes golpes de Estado, uno de los aspectos más destacados” (2011, p. 22). Dita característica não destoa da experiência vivida pelo Brasil, que também passou – não somente uma vez – por golpes de Estado. Ao explicar de que forma se dava a repressão na ditadura Argentina, o suprarreferido autor relata que o uso da violência era contínuo e que logo o governo começou a fazer uso da prática do “desaparecimento forçado”: Dentro de esos mecanismos que se desarrollaron en el periodo democrático se incluyeron formaciones especiales que enfrentaban de manera violenta a los grupos subversivos. Había eliminación física, atentados y actos de terrorismo. Sin embargo, también comenzó una modalidad que luego se desenvolvería de manera extensa y sistemática durante la dictadura militar. Se trata de la detención ilegal de personas que además de ser secuestradas y torturadas dentro del ámbito de las propias fuerzas de seguridad, terminaban “desapareciendo” (2011, p, 23).

Os métodos utilizados pelo governo argentino para reprimir os opositores eram tão parecidos com os utilizados pelo governo ditatorial brasileiro que os relatos de Yacobucci sobre as práticas lá utilizadas, poderiam facilmente ser encarados como acontecimentos relativos ao Brasil. Nesse sentido explica José Maria Gomes que todos os regimes ditatoriais [...] convergiam no objetivo estratégico último de eliminar as ameaças subversivas à ordem social estabelecida e redefinir os termos de inserção dos capitalismos periféricos na economia mundial, num processo de “modernização conservadora” capaz de garantir a nova versão militarizada da equação “Segurança e Desenvolvimento” (2008, p. 105).

575

Quanto aos perseguidos pelo regime, cumpre destacar que, assim como ocorreu no Brasil, o governo ditatorial argentino também se preocupou em silenciar todos que considerava inconvenientes. Desde guerrilheiros, até professores e mesmo clérigos. Dita situação não difere muito da ocorrida em nosso país, no entanto, no caso argentino, os números da repressão é que causam espanto. Conforme expõe Claudia C. Tomazi Peixoto, aponta-se que “a ditadura argentina (1976-83) resultou em 30 mil mortos e desaparecidos, segundo a Associação das Mães da Praça de Maio, e em torno de 18 mil segundo dados oficiais [...]. No Brasil (1964-85) a ditadura teria deixado o saldo de mais de 300 mortos e desaparecidos” (2011, p. 18). Dito isso, vê-se que, apesar de os regimes brasileiro e argentino terem suas similitudes, também se distinguiam em alguns pontos. Enquanto na Argentina, o desparecimento forçado era o tratamento dispensado, via de regra, aos indivíduos que o governo considerava “subversivos”; no Brasil, o método preferido era a aplicação da tortura aos presos políticos, o desaparecimento forçado era menos recorrente em comparação com o país vizinho. Dita distinção, por sua vez, teve relevante impacto sobre o número total de mortos e desaparecidos durante o regime ditatorial em cada país, o que acabou influenciando o modo com que cada Estado tratou da sua justiça de transição. Assim como no Brasil, o governo ditatorial da Argentina também editou uma lei de anistia antes de deixar o poder, a Lei nº 22.924, de 22 de setembro de 1983, visando à impunidade dos crimes perpetrados pelos seus agentes durante o regime. Conforme explica Pablo F. Parenti, a norma levou o nome de [...] “Lei de Pacificação Nacional”, denominada comumente como “Lei de autoanistia”, mediante a qual foram declaradas extinguidas “as ações penais emergentes dos delitos cometidos com motivação ou finalidade terrorista ou subversiva, desde 25 de maio de 1973 até 17 de junho de 1982” e “todos os fatos de natureza penal realizados na ocasião ou com motivo do desenvolvimento de ações dirigidas a prevenir, conjurar ou por fim às referidas atividades terroristas ou subversivas, qualquer tivesse sido sua natureza ou o bem jurídico lesionado” (2011, p. 42).

A partir de então as semelhanças entre a experiência argentina e 576

brasileira começam a rarear, dado que já no governo democrático de Raúl Alfonsín, na Argentina, o presidente promoveu diversas medidas tendentes a garantir a devida justiça de transição em seu país – bem diferente, por sinal, do ocorrido no Brasil. Para Gomes, o governo de Alfonsín foi o que: [...] foi mais longe na proposta de “solução”: revogou a lei de autoanistia, criou uma comissão de investigação para apurar a verdade do acontecido com os desaparecidos (a Comisión Nacional sobre la Desaparición de las Personas – CONADEP -, presidida pelo escritor Ernesto Sábato) e submeteu as três juntas militares da ditadura ao julgamento penal na justiça civil, junto com a cúpula das organizações guerrilheiras, além de outras medidas de reparação e promoção dos direitos humanos (ratificação de tratados internacionais, educação formal em escolas colégios e universidades, etc.) (2008, p. 110).

Nesse sentido, afirma Parenti que “o Congresso sancionou, em 22 de dezembro de 1983, a lei 23.040, que revogou por inconstitucionalidade e declarou irremediavelmente nula a lei de fato 22.924” (2011, p. 43). Seguindo no caminho da investigação e do esclarecimento das graves violações aos direitos humanos ocorridas na Argentina durante a ditadura militar, o Judiciário argentino ratificou a decisão do Legislativo, conforme explica Yacobucci, “la Corte Suprema de Justicia argentina (CSJN) legitimó la anulación de esa norma de facto, restándole entonces toda eficacia a sus actos de manera retroactiva” (2011, p. 26). No entanto, a punição dos responsáveis pelos crimes de lesahumanidade cometidos durante a ditadura argentina enfrentou dificuldades e resistência por parte dos integrantes das Forças Armadas. Diante da imposição de algumas condenações pelos crimes cometidos por militares durante do regime ditatorial, o Governo, pressionado, decidiu impedir a continuação da persecução penal. Para tanto “el Congreso democrático dictó las denominadas leyes de ‘punto final’ (23.492) y ‘obediencia debida’ (23.521)” (YACOBBUCI, 2011, p. 27). A edição das referidas leis marcou o encerramento dos julgamentos penais dos crimes ocorridos durantes a ditadura militar na Argentina. Cumpre frisar que os dispositivos legais foram editados durante um governo democrático e que “A lei de obediência devida foi convalidada poucos dias depois pela Corte Suprema de Justiça da Nação” (PARENTI, 2011, p. 44), a 577

mesma corte que, pouco tempo antes, havia se manifestado favorável à invalidação da lei de anistia argentina. Entretanto,

uma

mudança

na

legislação

permitiu

uma

nova

interpretação do caso. O artigo 75, inciso 22, da nova Constituição argentina determinou a incorporação de tratados internacionais ao direito interno do país, dentre eles, a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), indicando ainda que “esa integración era en las condiciones de vigencia de los instrumentos internacionales” (YACOBBUCI, 2011, p. 29). Referida ressalva significava que, ao aplicar os tratados e convenções internacionais, o ordenamento jurídico argentino ficava sujeito à interpretação que lhes conferia a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Nesse sentido, refere Yacobucci: [...] la interpretación de esos tratados quedaba sujeita a lo que dijeran los órganos de aplicación correspondientes – de naturaleza internacional – y no a lo que evaluaran las autoridades judiciales argentinas. Esto significó una cambio de paradigma en cuanto a la comprensión del orden jurídico de la Argentina, brindó un gran impulso a la tranformación de su cultura legal, posibilitó un instrumento axiológico, comunicativo y político para considerar las obligaciones del Estado Argentino frente a las graves violaciones de los derechos humanos y, en definitiva, abrió un canal de revisión respecto del status quo a que había llevado las sucesivas leyes, amnistías e indultos concretados en el período democrático posterior a la dictadura militar (2011, p. 29).

Tendo reconhecido a competência da CIDH, bem como assinalado que tal reconhecimento levava, necessariamente, a uma interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos e do direito internacional dos direitos humanos conforme o sistema interamericano de direitos humanos, ou seja, de forma interrelacionada com o sistema de proteção no qual a nação signatária da Convenção se inseria, a Corte Suprema argentina tomou como precedente, conforme expõe Pádua Fernandes, “o caso Barrios Altos, contra o Peru, em que a Corte considerou violadoras da Convenção as leis de autoanistia peruanas” (2010, p. 1677). No julgamento desse caso a Corte IDH estabeleceu [...] que las disposiciones de amnistía, prescripción y excluyentes de responsabilidad que pretendan impedir la investigación y sanción de los responsables de las violaciones graves de los derechos humanos tales como la tortura, las ejecuciones sumarias, extralegales o

578

arbitrarias y las desapariciones forzadas contravienen derechos inderogables reconocidos por el Derecho Internacional de los Derechos Humanos. En consecuencia carecen de efectos jurídicos y no pueden seguir representanto un obstáculo para la investigación de los hechos, la identificación y el castigo de los responsables (Caso “Barrios Altos”, sentencia del 14 de marzo de 2011, Serie C n. 75) (YACOBUCCI, 2011, p. 32).

Com base nisso, ao julgar o Caso “Simon”, a Corte Suprema argentina (CSJN) analisou as leis de “obediência devida” e de “ponto final”. Até então era predominante o entendimento de que tais leis legitimavam-se por buscarem a pacificação social. Seus defensores alegavam o uso da ponderação, sustentando que a anistia era a única forma de manter a harmonia política. No entanto, a própria CSJN, mesmo após ter considerado válidas as referidas leis, entendeu que elas não podiam mais prosperar, tendo em vista as inegáveis mudanças pelas quais o direito argentino tinha passado. De acordo com a Corte Suprema argentina, por impedirem a persecução das violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura, os referidos dispositivos contrariavam a Convenção Americana de Diretos Humanos e não tinham, portanto, validade. Nesse sentido, válido trazer a citação de trecho da decisão da Suprema Corte argentina compilada por Yacobucci: [...] el derecho argentino há sufrido modificaciones fundamentales que imponen la revisión de lo resuelto en esa ocasión. Así, la progresiva evolución del derecho internacional de los derechos humanos – con el rango establecido por el art. 75, inc. 22 de la Constitución Nacional – ya no autoriza al Estado a tomar decisiones sobre la base de ponderaciones de esas características, cuya consecuencia sea la renuncia a la persecución penal de delitos de lesa humanidad, en pos de una convivencia social pacífica apoyada en el olvido de hechos de esa naturaleza (...) en efecto, a partir de la modificación de la Constitución Nacional en 1994, el Estado argentino ha asumido frente al derecho internacional y en especial, frente al orden jurídico interamericano, una serie de deberes, de jerarquía constitucional, que se han ido consolidando y precisando en cuanto a sus alcances y contenido en una evolución claramente limitada de las potestades del derecho interno de condonar u omitir la persecución de hechos como los del sub lite (2011, p 33-4).

Com a declaração, pelo Judiciário argentino, da invalidade das leis de “ponto final” e “obediência devida”, foi possível a retomada do julgamento dos crimes cometidos durante a ditadura naquele país. Além disso, para encerrar de vez a questão, o Poder Legislativo também privilegiou o respeito 579

aos direitos humanos e “em agosto de 2003, o Congresso sancionou a lei 25.779, mediante a qual ‘declarou’ a ‘nulidade insanável’ das leis de ponto final e de obediência devida” (PARENTI, 2011, p. 47). Em face disso, cumpre apresentar os dados trazidos por Peixoto sobre os julgamentos dos crimes cometidos durante a ditadura militar argentina, segundo a qual, até o mês de maio de 2011, “807 pessoas foram/estavam sendo julgadas, das quais 212 foram condenadas” (PEIXOTO, 2011, p. 16). Por óbvio, a reabertura dos processos pelos crimes cometidos durante o período ditatorial na Argentina é tarefa árdua, que exige – e exigirá – muito esforço por parte de todas as autoridades envolvidas. No entanto, tal argumento não pode servir de entrave à investigação e ao julgamento dos casos. Yacobucci destaca que, tendo sido essa a escolha argentina, escrevese um caminho sem volta, portanto, “deberán crearse medios, ajustarse esquemas de trabajo y limitar la carga ideológica en el desenvolvimiento de los juicios para alcanzar el verdadero significado de la tragedia vivida por nuestro país” (2011, p. 44). Por outro lado, a persecução penal das graves violações aos direitos humanos perpetradas durante a ditadura militar não deve, de modo algum, ser vista como uma forma de “revanchismo”. Pelo contrário, a busca da verdade permitirá a superação do assunto e o enfrentamento das questões traumáticas. Observando-se a história recente dos países vizinhos, vê-se que, enquanto na Argentina “uma das primeiras medidas do governo pósditadura foi a criação de uma comissão no âmbito do Poder Executivo para obter informação sobre o destino que tiveram aquelas pessoas que tinham sido vítimas do sistema de repressão ilegal” (PARENTI, 2011, p. 51) – trata-se da CONADEP (Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas), criada no governo do presidente Raúl Alfonsín – em nosso país, o único relatório que buscou investigar a verdade ocorrida durante a repressão militar logo após o fim do regime foi o projeto “Brasil: Nunca Mais”, da Arquidiocese de São Paulo. A Comissão Nacional da Verdade no âmbito do Poder Executivo, por sua vez, só foi criada pela Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, enquanto seu relatório foi divulgado apenas em 10 de 580

dezembro de 2014, cinquenta anos após o golpe que instaurou a ditadura militar brasileira. Frisa-se ainda que, enquanto a Argentina acatou a decisão da Corte IDH, dando cumprimento aos dispositivos internacionais de proteção aos direitos humanos e invalidando sua lei de anistia, a Suprema Corte brasileira, tendo a oportunidade de declarar a inconstitucionalidade da Lei de Anistia, preferiu abster-se desse feito, alegando que essa tarefa cabia ao Poder Legislativo. Ademais, o Estado brasileiro, mesmo depois de ter sido condenado pela Corte, continuou a desrespeitar tal decisão, em total desacordo com o que preconiza o direito internacional dos direitos humanos. Isso tudo revela que o Brasil ainda tem muito a aprender em sede de direitos humanos com a nação vizinha. De todo o exposto, é inegável que os caminhos escolhidos pelo Brasil e pela Argentina foram opostos. Embora os defensores da anistia ampla e irrestrita defendam que o regime ditatorial vivido em nosso país foi mais brando do que o dos outros países latinos, em razão do número final de mortos e desaparecidos, isso não pode, jamais, servir de argumento para a ocultação e o esquecimento de fatos tão importantes e de tamanha magnitude para a construção e elucidação de nossa própria história. O que se deve ter em mente é que a violação dos direitos de um indivíduo, além de ser um crime, é uma ameaça constante a todos os demais integrantes de uma sociedade e que aceitar que violações tão graves quanto as aqui vividas caiam no esquecimento é permitir que as essas violações venham a se repetir no futuro. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Construir uma democracia bem consolidada, fundada em bases seguras,

formar

uma

sociedade

consciente

de

seus

direitos

e,

principalmente, ciente da sua história, não é tarefa fácil, no entanto, certamente é um desafio que precisa ser enfrentado. O presente estudo dedicou-se a estudar, justamente, um meio para que isso seja possível, analisando especialmente os caminhos indicados por 581

estudiosos da justiça de transição e, ademais, aqueles já trilhados por nosso país vizinho, a Argentina. Busca-se, com isso, servir de aliado na luta pela consolidação e pelo fortalecimento da democracia e pelo respeito aos direitos humanos em nosso país, para que histórias como as aqui contadas não venham jamais a se repetir. REFERÊNCIAS ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. As dimensões da justiça de transição no Brasil, a eficácia da Lei de Anistia e as alternativas para a verdade e a justiça. In: PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford University, Latin American Centre, 2011. Disponível em: . Acesso em 17 maio. 2015. p. 212-248. ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2014/2015: O estado dos direitos humanos no undo. Rio de Janeiro: AI, 2015. BAGGIO, Roberta Camineiro. Anistia e reconhecimento: o processo de (des)integração social da transição política brasileira. In: PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford University, Latin American Centre, 2011. Disponível em: . Acesso em 17 maio. 2015. p. 250-277. FERNANDES, Pádua. Ditadura Militar na América Latina e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos: (in)justiça de transição no Brasil e Argentina. In: XIV Encuentro de Latinoamericanistas Españoles: congreso internacional. Universidade de Santiago de Compostela, Centro Interdisciplinario de Estudios Americanistas Gumersindo Busto; Consejo Español de Estudios Iberoamericanos, 2010. Disponível em: . Acesso em 05 abril. 2015. GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar: para uma justiça internacional. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. GOMES, José Maria. Globalização dos direitos humanos, legado das ditaduras no Cone Sul Latino-Americano e justiça transicional. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, RJ, 2008, n. 33, p. 85-130, jul./dez. 2008. Disponível em: . Acesso em 05 582

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583

OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO: AVANÇO OU RETROCESSO? Daniela da Rosa Molinari1 Marcele Scapin Rogério2

1. INTRODUÇÃO A globalização é um fenômeno de mudanças que ocorre em escala global, um processo de integração econômica, social, cultural, política e ambiental com implicações diretas sobre o homem e sobre a sociedade. Esse processo trouxe avanços tecnológicos e científicos, favorecendo para quem detém condições de acesso, o que não ocorre com os excluídos da lógica do desenvolvimento, principalmente em pese a efetivação dos direitos humanos. Daí por que não falar em retrocesso dos direitos humanos? Os direitos humanos são frutos de conquistas ao longo da história, surgem como garantias de uma vida digna aos indivíduos, merecedores de condições que satisfaçam as condições mínimas existencial, de respeito e igualdade independente de raça, sexo e cor. Como ficam os direitos humanos com a globalização? A globalização pode tanto promover o homem, assim como aprisioná-lo, negando-lhe à condição humana e de um ser portador de direitos. Seria função do Estado, proteger os direitos de seus cidadãos contra qualquer interferência externa e garantir um espaço de liberdade para que, dentro dele, cada indivíduo pudesse usufruir das condições mínimas para uma vida com dignidade e atingir seus objetivos e desejos. A partir da globalização, ocorre o enfraquecimento deste Estado pelo poder econômico instaurado, que deixa de promover o bem-estar geral e de remover os obstáculos que impedem os indivíduos de alcançarem o bem-estar 1Formada

em Direito pela UNICRUZ – Universidade de Cruz Alta, mestranda em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul- UNIJUÍ. Bolsista UNIJUÍ. Email: [email protected] 2Formada em Direito pela UNICRUZ- Universidade de Cruz Alta e mestranda em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul- UNIJUÍ.Bolsista FAPERGS.Email: [email protected]

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individual. Sendo assim, esta abordagem busca refletir os reflexos da globalização na sociedade atual, esse modelo de desenvolvimento que ainda divide entre os avanços e as melhorias na qualidade de vida, a exclusão social, a pobreza, a fome e os problemas ambientais. 2. DESENVOLVIMENTO O ser humano encontra-se no centro dos direitos humanos e constitui não só o fundamento, como o fim de todos os direitos. Vale dizer que o direito não apenas é feito pelo homem, mas para o homem, que constitui o destinatário final de valor mais alto de toda norma jurídica. A dignidade é atributo ou qualidade inerente a todos os homens, decorrente da própria condição humana. O indivíduo, pelo só fato de integrar o gênero humano, já é detentor de dignidade, que o torna credor de igual consideração e respeito por parte de seus semelhantes. Sarlet (2001, p.60) define a dignidade da pessoa humana como a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Os direitos humanos não são estáticos, acompanham o processo histórico. A partir dessa idéia, Bobbio (2004) pondera que os direitos humanos nascem quando podem nascer, portanto, compõe um construído axiológico, fruto da nossa história, de nosso passado, de nosso presente, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. Os direitos humanos são aplicados a todos os homens e servem como princípios e valores que afirmam e protegem a condição humana. São de valor universal, pois devem ser reconhecidos e respeitados por todos, em 585

todas as sociedades, em qualquer tempo. São esses direitos que tornam os homens iguais, independente de raça, sexo, classe social ou crenças morais e religiosas e que conjugam forças visando o objetivo máximo: a existência digna do homem. Na evolução histórica dos direitos, consideram-se três gerações de direitos humanos. As gerações não são categorias que se excluem, mas que se completam. A chamada primeira geração de direitos humanos centrou força na liberdade, lema da Revolução Francesa (1789) que tinha como os principais valores defendidos a liberdade e a igualdade, mas, sobretudo, a liberdade: de ir e vir, de pensamento e expressão, de culto religioso, de associação. Esta geração visou proteger os indivíduos dos abusos de regimes absolutistas ou autoritários, garantindo espaços mais democráticos de tomadas de decisão.3 Uma vez conquistados os direitos de primeira geração, o homem passou a lutar pelos direitos de segunda geração, inspirados pela Revolução Industrial (meados do século XVIII), ante as péssimas condições de trabalho impostas aos operários. Esta geração dos direitos humanos é desencadeada pela ideia de igualdade, que visa garantir uma maior igualdade de oportunidade na sociedade, garantindo bens e serviços básicos a todos, tais como: saúde, educação, moradia, alimentação, dentre outros.4 Dessa forma, o direito fundamental à vida se constitui, então, no direito de todo ser humano não ser privado de sua vida e o direito de dispor dos meios apropriados de subsistência e de um padrão digno de vida. (TRINDADE, 1993, p.72) Ao lado dos direitos sociais, emergiram os chamados direitos de terceira geração, que surgiram após a Segunda Guerra Mundial (1945) pelos conflitos de interesses econômicos e de uma nova convergência de direitos, voltados à essência do ser humano, na proteção dos grupos humanos (família, povo, nação), na sua razão de existir e o principal, destino da 3Por

sua ênfase na proteção dos indivíduos, o que passou a ser chamados de direitos individuais, contendo o Estado frente à pessoa humana, cabendo tão somente ser o guardião das liberdades, sem interferência no relacionamento social. 4Daí a denominação de direitos sociais, econômicos e culturais, que exigem do Estado o dever de agir, no sentido de se buscar a superação das carências individuais e sociais.

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humanidade. A idéia desta geração trata o ser humano como gênero, não limitado ao indivíduo ou a determinada coletividade,5 está ligada ao valor da fraternidade ou solidariedade, direitos relacionados ao desenvolvimento ou progresso, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como ao direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e ao direito de comunicação. São direitos transindividuais, em rol exemplificativo, destinados à proteção do gênero humano (NOVELLINO. 2009). Existem alguns doutrinadores que defendem a existência dos direitos de quarta e quinta geração, apesar de ainda não haver consenso na doutrina.

Para Bobbio (2004), trata-se de direitos ligados à vida como

elemento político: a proteção do patrimônio genético, a preocupação com a bioética, dentre outros engenharia genética e, defende a existência desses direitos de quarta geração, com aspecto introduzido pela globalização política, relacionados à democracia, à informação e ao pluralismo. Já existem autores defendendo a existência dos direitos de quinta geração que seguem a corrente de Bonavides (2008), que faz referência ainda a uma quinta geração de direitos. Nessa categoria, desenvolve-se a concepção da paz, afirmando que, embora tenha sido ela incluída inicialmente no âmbito dos direitos de terceira geração, tal direito foi esquecido, talvez pela superficialidade com que tem sido trabalhado entre os direitos de fraternidade. Segundo o autor, a dignidade jurídica da paz deriva do reconhecimento universal que se lhe deve enquanto pressuposto qualitativo da convivência humana, elemento de conservação da espécie, reino de segurança dos direitos. Os liames existentes entre o meio ambiente e os direitos humanos são percebíveis, seja porque em seu conteúdo se identificam prescrições de direitos fundamentais básicos, seja pelo simples fato de que a degradação ambiental gera violações aos direitos humanos. O que enseja afirmar que o direito a um meio ambiente equilibrado é condição para uma vida saudável e para o pleno gozo do direito à vida, à saúde e ao desenvolvimento. Não há

5Direitos

de titularidade coletiva ou difusa.

587

vida sem um ambiente saudável onde a pessoa possa se desenvolver com dignidade e qualidade. Por sua vez, os direitos humanos são direitos positivados nos tratados ou costumes internacionais, que asseguram a toda e qualquer pessoa, independentemente de sua cor, sexo, religião, idade, nacionalidade ou qualquer outro requisito, a qualidade de detentora de direitos humanos, bastando, então, apenas a sua simples existência. Ou seja, são aqueles direitos que já ascenderam ao patamar do Direito Internacional Público. (MAZZUOLI, 2006) Porém, é preciso destacar que muitos desses direitos embora positivados e garantidos em esfera internacional, deixam de ser efetivados na prática. A globalização viola a idéia de cidadania e fere cada vez mais a efetivação dos direitos humanos. Atualmente quando se fala em globalização, questiona-se até que ponto os direitos humanos são respeitados? Sendo assim, a globalização pode tanto promover o homem, como torná-lo vitima dela. Falar de globalização remete ao conjunto de transformações sociais, políticas, econômicas, culturais e ambientais que se fazem perceber do local ao global, geralmente relacionadas às inovações tecnológicas e científicas e ao incremento no fluxo comercial mundial, pela velocidade que estas ocorrem no mundo. Para Bauman (1999) a “globalização” está na ordem do dia, é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. É um misto de felicidade e

infelicidade alheia. A globalização tanto divide como une, divide enquanto une.” (BAUMAN, 1999, p. 8) Esse processo de transformação significa “que ninguém pode evadirse dos efeitos da globalização, pelos quais todos nós somos atingidos, em menor ou maior grau, mediante um conjunto de acontecimentos que afetam indistinta e dialeticamente o âmbito local e global.” Nesse novo panorama social “nada é tão longe que não possa mais interessar ao local e nem tão localizado que não possa influenciar outros lugares” (LUCAS, 2009, p.43). E como bem observa Santos (2001, p. 40) “nenhuma fração do planeta escapa 588

a essa influência”. O que se pode observar com a globalização é que as grandes potências mundiais restringem a entrada de países em desenvolvimento no jogo do mercado. A barreira imposta tem justamente a finalidade de causar a dependência econômica, social e cultural desses países. Um exemplo bem típico é o dos medicamentos, onde os grandes laboratórios detêm a cura de doenças

e

mantém

este

vínculo

de

supremacia

com

países

em

desenvolvimento. Segundo Ferrajoli (2011, p. 79) “muitos desses medicamentos, como as vacinas contra as doenças infecciosas, não custam quase nada, mas não são distribuídos e em alguns casos nem mesmo produzidos por falta de demanda nos países ricos”. Também destaca, que cerca de 15%, entre os quais os medicamentos da contra a AIDS e meningite, estes são patenteados, o que resulta grande custo para as nações pobres. “O resultado dessa gigantesca omissão de socorro são mais de 15 milhões de mortos por ano, vítimas portanto, mais do que de doenças, das leis do mercado, claramente incompatível com o direito à saúde.” O uso da tecnologia não ficou restrito à atividade industrial. Os avanços

tecnológicos

atingiram

também

os

meios

de

comunicação,

informação e transporte. Através destas inovações tornou-se possível a difusão

de

informações

entre

empresas,

instituições

financeiras

e

investidores, ligando os mercados do mundo, graças à implantação da telefonia fixa e móvel, televisão, fax, internet, entre outros. As mudanças ocorridas principalmente nos meios de transportes e nas telecomunicações, fez com que o mundo “encurtasse” as distâncias, o que conseqüentemente modificou a noção de tempo/espaço. Palavras como “perto” e “longe” perderam o sentido que carregavam antigamente como indicação de localização e ganharam outra dimensão. Como complemento, Morin (2000, p. 67) argumenta: “O mundo torna-se cada vez mais um todo. Cada parte do mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como um todo, está cada vez mais em cada uma de suas partes. Isto se verifica não apenas para nações e povos, mas para os indivíduos. Assim, como cada ponto de um holograma contém a informação do todo do qual

589

faz parte, também, doravante, cada indivíduo recebe ou consome informações e substâncias oriundas de todo o universo.”

Além das mudanças no cenário produtivo e econômico, a globalização forçou o enfraquecimento dos Estados- nação. Com o avanço do capitalismo, esses, por sua vez, tiveram que reorganizar seu sistema e sua forma de atuação, ao fato de se tornarem vítimas dessa nova organização mundial, que de acordo com Lucas (2009, p. 41) “se tornam reféns de um conjunto de políticas econômicas, fixadas externamente, impostas pelo mercado como necessárias para viabilizar a inserção estatal no cenário mundial”, o que corroem a autonomia interna dos países. É certo que a globalização produziu uma janela de oportunidades para que mais países pudessem ingressar nas principais correntes da economia mundial. Os problemas sociais surgem ao mesmo tempo em que leva uma economia ser competitiva, que por conseqüência, “gera um sentimento de exclusão e mal estar na sociedade”, a formação de “buracos negro que concentram em seu interior toda a energia destrutiva que afeta a humanidade e se comunicam entre si, por exemplo, por meio da economia do crime apresentada pelas drogas e prostituição” como assim define Castells (1999, p.192). Por sua vez, no que pese aos impactos sociais da globalização, é cada vez mais visível a precarização e a exclusão social em que se encontram milhões de pessoas nos quatro cantos do planeta, fruto das profundas transformações econômicas e tecnológicas que afetaram a produção de bens e serviços em escala mundial. Para Bauman (1999), as conseqüências humanas da globalização, traduzidas no desenraizamento de populações inteiras de suas comunidades e países, na crescente pobreza material, na destruição ambiental, nos conflitos étnicos e na migração sul-norte, entre outros fenômenos, contribuem para colocar em cheque os decantados benefícios do fenômeno, quando avaliado por uma lógica distinta àquela do êxito econômico. Outros fenômenos, como o narcotráfico e o crime organizado em escala mundial, estimulados pelas facilidades do comércio internacional, também podem ser 590

colocados na categoria dos impactos sociais negativos propiciados pela globalização. O planeta encontra-se numa teia que se interliga internamente em diversos pontos, sistemicamente. Conforme Capra (1996, p.23), quanto mais estudamos os principais problemas da nossa época, mais somos levados a perceber que eles não podem ser entendidos isoladamente. São problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes. Complementando o acima, Bauman (1999, p. 79) destaca: A globalização deu mais oportunidades aos extremamente ricos de ganhar dinheiro mais rápido. Esses indivíduos utilizam a mais recente tecnologia para movimentar largas somas de dinheiro mundo afora com extrema rapidez e especular com eficiência cada vez maior. Infelizmente, a tecnologia não causa impacto nas vidas dos pobres do mundo. De fato a globalização é um paradoxo: é muito benéfica para muito poucos, mas deixa de fora e marginaliza dois terços da população mundial.

A

cidade

sofre

diretamente

as

conseqüências

da

expansão

populacional presenciada, muitas transformações ocorreram em nível de estruturação de seu espaço. A área principal da cidade tornou-se centro e ao seu redor uma nova delimitação foi formada, a periferia, como bem caracteriza Alves (1992, p.19) “verdadeiros formigueiros humanos.” A urbanização vem crescendo rapidamente, atingindo proporções em torno de 80% da população total do país (PHILIPPI JR, 2002). Um fato incontestável é que as cidades estão inchando e na sua maioria não disponibilizam infraestrutura adequada à população urbana e quem sofre mais com essa ausência é uma camada com pouco ou quase nada de condições econômicas, que na maioria das vezes residem em favelas e zonas desprivilegiadas, longe da qualidade dos serviços prestados em regiões mais centrais das cidades. O território urbano torna-se um campo de batalha de uma contínua guerra espacial. “As elites escolheram o isolamento6 e pagam por ele prodigamente e de boa vontade. O resto da população se vê afastado e forçado a pagar o pesado preço cultural, psicológico e político do seu novo 6Baumam

(1999, p. 81-82) fala dos condomínios, caracterizados pelo “isolamento” que cria, que nada mais é que a separação dos que detém poderes econômicos daqueles considerados socialmente inferiores.

591

isolamento”. (BAUMAN, 1999, p.29, 31) Davis (2006, p.121) denomina esses espaços de “zonas totalmente protegidas”, verdadeiras “aldeias de segurança”. As casas transformam-se praticamente em fortalezas, cercadas de muros altos, com cacos de vidro, arame farpado e pesadas barras de ferro em todas as janelas, cercas elétricas, numa “arquitetura do medo”. No terceiro mundo urbano, os pobres temem eventos internacionais de alto nível: conferências, eventos esportivos, concursos de beleza, festivais internacionais – que levam as autoridades a iniciar cruzadas de limpeza da cidade: os favelados sabem que são as “sujeiras” ou a “praga” que seus governos preferem que o mundo não veja (Davis, 2006, p.111). “Embora todos os que vivem na cidade sejam tratados como citadinos, nem todos são considerados e tratados como cidadãos” (ALVES, 1992, p. 41) Alves (1992, p. 51-52) ainda destaca que o cidadão sem teto é empurrado cada vez mais para áreas distantes do centro, regiões insalubres e proibidas para loteamentos, formando ali verdadeiros cinturões de miséria das grandes cidades. Por causa das chuvas, as enchentes e inundações arrastam barracos e crianças, estragam móveis e pertence e espalham a hepatite e a leptospirose entre os moradores. Os moradores em situação irregular são os mais prejudicados, pelo fato de estarem fora dos padrões exigidos, acabam não contando também, com os serviços urbanos essenciais e são obrigados a conviver com a sujeira dos esgotos correndo a céu aberto, dos seus próprios lixos que não são recolhidos e, muitas vezes, os da cidade toda, que em sua vizinhança são depositados. Além de todos estes impactos socioambientais citados, outro chama a atenção, por ser considerado um dos maiores problemas de nosso tempo: a aceleração demográfica. A esse respeito Saavedra (2014, p.81) destaca: A cada segundo e meio – a cada batida do pulso humano normal - a população mundial é aumentada em uma pessoa. Para estar bem alimentada cada uma dessas pessoas deve ter cerca de uma tonelada de alimento por ano. Deve ter roupas e moradia. Se irá participar do mundo democrático, deverá ter pelo menos um mínimo de educação (...). Todas essas coisas são custosas e implicam que o homem viva em um meio ambiente suficientemente propício para provê-las. Se este meio ambiente é muito pobre – como no deserto de Saara, ou se, como na China e na Coréia, há tantos que é impossível encontrar

592

comida, água, árvores, etc., para satisfazer suas necessidades básicas, viverá em uma miséria esmagadora. E pode se tornar um perigo não apenas para os seus pares, mas para o mundo inteiro. É por isso que todo mundo deveria se preocupar pelo que está acontecendo com o número de crianças nascidas a cada ano. É por isso que o que está acontecendo com os recursos em qualquer lugar deve ser incumbência pessoal de cada um de nós (...). a propagação do consumismo, engendrada na ignorância do povo ( ignorância que tem as suas raízes profundas na superpopulação e da destruição da Terra) é importante para cada um de nós. Resta-nos pouco tempo, mas está se acabando rapidamente.

O último Relatório do Desenvolvimento Humano divulgado em 2014, pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), alerta que a vulnerabilidade persistente ameaça o desenvolvimento humano. E se não for combatida sistematicamente por políticas e normas sociais, o progresso não será nem equitativo nem sustentável. De acordo com as medidas de pobreza com base na renda, 1,2 bilhão de pessoas vivem com 1,25 dólares ou menos por dia, ou seja, quase 1,5 bilhão de pessoas em 91 países em desenvolvimento estão vivendo na pobreza, com a sobreposição de privações em saúde, educação e padrão de vida. Embora a pobreza esteja diminuindo em geral, quase 800 milhões de pessoas estão sob o risco de voltar à pobreza caso ocorram contratempos.7 Bauman aponta para um novo mundo proposto, onde a fome, a pobreza e a miséria absoluta leva ao processo de degradação social que nega as condições mínimas de vida humana. O primeiro requisito de uma vida digna é ter o que comer. Mas o planeta ainda está longe de alcançar o objetivo do milênio que é a redução da fome no mundo. A pobreza e a fome, derivam

outros

fatores

que

enfraquecem

as

relações

sociais

e,

consequentemente, os laços afetivos e familiares. Para Ferrajolli (2011, p.7576) são três as grandes, terríveis emergênciais globais provocando dezenas de milhões de mortos cada ano e tornam necessária e urgente a qualificação destes bens como fundamentais: a fome, a sede e as doenças curáveis mas não curadas. A primeira emergência dramática é aquela do acesso à água, objeto daquele colorário do direito à vida que é precisamente o direito à 7Dados

disponíveis em: http://www.onu.org.br/especial/pobreza/

593

subsistência. A água potável não é mais um bem natural, nem muito menos um bem comum a todos. Mais de um bilhão de pessoas não tem a possibilidade de aceder a ela; e por esta impossibilidade, milhoes de pessoas morem todo ano. A água tornou-se um bem escasso por dois motivos: pelas agressões ao patrimônio florestal, que provocam todo ano a devastação de milhões de hectares, muitos dos quais viram deserto; pela poluição das nascentes, dos rios e dos aquíferos, provocadaos pelas atividades insdustriais desrreguladas; e pela massiva privatização, enfim dos recursos hídricos que paradoxalmente são reduzidos a bens patrimoniais. Calcula-se por causa da fome e da desnutrição, 28% das crianças em desenvolvimento está abaixo do peso ou sofre de nanismo e, que cerca 10 milhões de crianças morrem todos o ano antes de completar cinco anos.95% dos mortos por AIDS são provenientes dos países pobres e 79% apenas na Africa sub-daariana, onde ocorrem tambem 90% das mortes por malária. A África , onde é maior o número de mortes por doenças não tratadas, absorve apenas 1,1% das vendas globais de medicamentos.

O mundo passa a ser classificado com outras formas. Os países são designados como desenvolvidos, em desenvolvimento e subdesenvolvidos. A classificação considera as condições econômicas, industriais e sociais que configuram o cenário de cada país. Os primeiros estão geralmente associados à idéia de progresso, riqueza, melhores condições de vida; os segundos abraçam o projeto de desenvolvimento com a esperança de chegarem, um dia, a ser desenvolvidos e os demais, sofrem à exclusão, marginalização, miséria. É certo que a globalização produziu uma janela de oportunidades para que mais países pudessem ingressar nas principais correntes da economia mundial. Nesse contexto, podemos citar os Tigres Asiáticos e o Japão, que souberam aproveitar as oportunidades desencadeadas pela economia mundial, implantando ações políticas como o desenvolvimento de uma mão-de-obra treinada e qualificada, a adoção de modelos voltados a exportação e a competição com base em maiores níveis de produtividade, maior produção por unidade de trabalho. Os problemas sociais surgem ao mesmo tempo em que leva uma economia ser competitiva, que por conseqüência, gera um sentimento de exclusão e mal estar na sociedade, como assim define Castells (1999). Nesse

sentido,

a

globalização

contribui

para

o

aumento

da

desigualdade social e econômica entre países e pessoas.De acordo com o 594

relatório "Credit Suisse 2013 Wealth Report", um dos mapeamentos mais completos sobre a desigualdade social, 0,7% da população concentra 41% da riqueza mundial. A lógica regente é a de maior concentração de riqueza e de poder por parte dos países desenvolvidos, independente dos resultados que isso provoca para parcela considerável da população mundial.8 Essa conseqüência é destacada por Oliveira (2001, p. 76) do seguinte modo: A sociedade capitalista produziu um abismo profundo entre ricos e pobres. Grande parte da desgraça dos pobres de hoje, sobretudo no Terceiro Mundo, é conseqüência do processo ilimitado de acumulação do capital, hoje feito sistema mundial de produção, que tem significado nesses países a marginalização da grande maioria do povo e cooptado a consciência por força da propaganda ideológica.

Apesar das críticas e argumentos negativos, existem aspectos positivos relacionados à globalização mundial. Não há como negar que a ciência e a tecnologia promovem inúmeros avanços e benefícios à humanidade,

assim

como

os

sistemas

de

comunicação,

transporte.

Considerando essa evolução, muitos direitos humanos foram efetivados a partir dessas mudanças, como frutos do processo social e cultural, que apontam para o bem estar e para a dignidade do ser humano em todo o mundo, como para a mudança na conscientização e no comportamento social acerca de diversas questões, como podemos citar os direitos da criança e adolescente, da mulher, do idoso, dos deficientes físicos, do meio ambiente. Gadotti (2000, p. 78) desenvolve o seguinte comentário sobre as duas formas de conceber a globalização: A globalização em si não é problemática, pois representa um processo de avanço sem precedentes na história da humanidade. O que é problemática é a globalização competitiva onde os interesses do mercado se sobrepõem aos interesses humanos, onde os interesses dos povos se subordinam aos interesses corporativos das grandes empresas transnacionais. Assim, pode-se distinguir uma globalização competitiva de uma possível globalização cooperativa e solidária. A primeira está subordinada apenas às leis do mercado, e a segunda subordina-se aos valores éticos e à espiritualidade humanos.

8Relatório

elaborado pelo banco Credit Suisse, Global Wealth ReportDisponivel em: http://www.brasildefato.com.br/node/26343: Acesso em 20 ago 2015.

595

A primeira forma de globalização declina sobre o modelo de dominação econômica e política sob as bases do modo de produção capitalista, de um modelo social e cultural desigual e excludente. A segunda é a propiciada pelos avanços tecnológicos, capaz de proporcionar condições para uma cidadania global, criando novas organizações e movimentos sociais, políticos e culturais de aceitação e valorização das diferenças. Nesse sentido, as próprias instâncias internacionais, como a ONU e suas organizações, como a UNESCO, a OMS e a OMT, têm lançado planos, projetos, numa reivindicação política de respeito à vida, uma ação democrática da manutenção de cultura, do equilíbrio ecológico e da paz. Além disso, surgiram também muitas organizações

não

governamentais

(ONGs)

e

também

empresas

transnacionais. “Estas novas entidades foram, aos poucos, se firmando como novos atores internacionais importantes, fazendo com que as relações internacionais se intensificassem, os temas da agenda se ampliassem e novos fluxos fossem estabelecidos em toda parte do mundo” (BEDIN, 2009, p.31). A força da comunicação global é um aspecto positivo do ponto de vista dos direitos humanos, pois atua como um despertador da consciência cívica e política internacional. Graças às denúncias, muitos dos casos de violação dos direitos humanos , são hoje resolvidos. . A comunicação social tem aqui um lugar de relevo ,pode ser o factor de maior pressão a nível governamental na tentativa de correção ou intervenção em situações de ameaça desses mesmos direitos A globalização do capital tem levado também a uma globalização dos problemas sociambientais, causados pelo processo econômico e industrial desenfreado, como a poluição, as mudanças climáticas, o desmatamento, a destruição da camada de ozônio, aquecimento global, vazamentos nucleares, degradação de recursos

hídricos, entre outros, que assumem dimensões

planetárias. O crescimento econômico é com certeza necessário, assinala Sachs (1992, p.117-130), mas não suficiente para garantir o desenvolvimento. Na verdade, o que deve haver para que o desenvolvimento real – e não o mau 596

desenvolvimento – seja viabilizado é uma conformação entre eficácia econômica,

igualdade

social

e

prudência

ambiental.

O

modelo

de

desenvolvimento proposto pela modernidade, entretanto, perdeu de vista essa amplitude e, assim sendo, cumpriu apenas parcialmente os seus desígnios. Com base nessa compreensão, Leff (2004, p. 352) menciona que “os impactos sociais e ecológicos, evidenciados pela desigualdade social, pelo aumento da pobreza e pela degradação dos recursos naturais, resultantes dos dominantes padrões de produção e consumo, deflagram uma crise ambiental planetária”. . A crise ambiental possui proporção maior do que inicialmente pensava-se. Nas palavras de Morin e Kern (2003, p. 91), “o mito do progresso hoje desmorona, o desenvolvimento está enfermo; todas as ameaças para o conjunto da humanidade têm pelo menos uma de suas causas no desenvolvimento das ciências e técnicas”. Apesar disso, o homem continua a investir na sua força de dominação e treinar a sua capacidade de transformar, reproduzir e recriar, sem impor qualquer limitação à sua pretensão de tudo conhecer. Por esse motivo, o termo sustentabilidade foi adicionado ao conceito de desenvolvimento, apresentando-se como um modelo que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades. No entendimento de Leff (2004, p.9): A degradação ambiental, o risco do colapso e o avanço da desigualdade e da pobreza são sinais eloqüentes da crise do mundo globalizado. A sustentabilidade é o significante de uma falha fundamental na história da humanidade; crise da civilização que alcança seu momento culminante na modernidade, mas cujas origens remetem à concepção do mundo que serve de base à civilização ocidental. A sustentabilidade é do nosso tempo, do final do século XX e da passagem para o terceiro milênio, da transição da modernidade truncada e inacabada para a pós-modernidade incerta, marcada pela diferença, pela diversidade, pela democracia e pela autonomia.

Para isso, exige-se a conscientização da nossa hodierna e real 597

situação a fim de que essa ação ética seja responsável e promova vida, dignidade e harmonia de modo universal, tanto para o presente como para o futuro, pois os problemas fundamentais do nosso tempo afetam toda a humanidade, local e global, daí a necessidade de uma responsabilidade moral comum com vistas ao futuro. Oliveira (2001, p. 167-168) afirma a necessidade ao dizer: Tal situação leva os seres humanos, as nações e as culturas, pela primeira vez na história mundial, a se sentirem interpelados diante dos perigos comuns, a assumirem uma responsabilidade moral comum em face da questão da articulação de seu futuro, ou seja, perante as questões fundamentais relacionadas aos grandes objetivos de uma sociedade que se faz planetária.

Morais (2010, p. 132) de modo reduzido afirma, que os direitos humanos, como conjunto de valores históricos básicos e fundamentais, que dizem respeito à vida digna, tanto daqueles do presente quanto daqueles do porvir, surgem sempre como condição fundante da vida, impondo aos agentes político-jurídico-econômico-sociais a tarefa de agirem no sentido de permitir e viabilizar que a todos seja consignada a possibilidade de usufruílos em benefício próprio e comum ao mesmo tempo. O

desenvolvimento

sustentável

vem

com

um

espírito

de

responsabilidade comum com a efetivação dos direitos humanos, os modelos produtivos são levados a sentidos harmoniosos, o que os torna não mais destrutivos, mas sim, construtivos, como ferramenta de manutenção da qualidade de vida das gerações atuais e futuras. Dessa forma, pode-se perceber que o modelo de desenvolvimento atualmente proposto não condena o desenvolvimento econômico, muito pelo contrário, atribui a ele um importante papel social e ambiental, a fim de que a efetivação dos direitos humanos prevaleça. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A globalização não pára e os efeitos desse processo são sentidos no nosso dia-a-dia. Se por um lado, ficamos maravilhados com as conquistas e descobertas que facilitam a vida e mostram a genialidade do ser humano, 598

por outro, contemplamos inúmeras tragédias e ameaças, as quais colocam em risco a qualidade e inclusive a continuidade da vida humana na Terra. Por esse conforto e facilidade, fica evidente que este processo é irreversível. É certo que o homem não vai regredir. Novas necessidades vão surgindo e estas tende ser satisfeitas. Na globalização está presente a interação de diversos fatores econômicos,

políticos,

sociais,

culturais

e

ambientais,

tendo

como

referências os interesses que fortalecem a lógica do capitalismo e a maximização do lucro acima de outras prioridades. O grande desafio da humanidade é adotar uma modelo de desenvolvimento que garanta a expansão, sem esquecer a promoção dos direitos humanos, o que significa dizer que a princípio da dignidade humana deve ser observado e que todo ser humano deve dispor de um mínimo de meios apropriados de subsistência e de um padrão digno de vida.

O modo

de vida planetário precisa ser alterado porque as conseqüências futuras não são tranqüilizadoras, caso perpetuem-se as ações vigentes. No decorrer do trabalho, foi possível perceber os aspectos positivos e negativos da globalização. O que se questiona, é que mesmo com tanto “progresso”, temos tamanha desigualdade social, pessoas morrendo de fome, o grande desemprego, a miséria crescente, pessoas que não tem acesso à água e aos medicamentos, desmatamento que cessa, poluição a todo vapor, destruição

da

camada

de

ozônio,

enfim

tantos

outros

problemas

socioambientais que são notícias diárias,e por fazerem parte da nossa rotina, nem sequer nos comovemos. Portanto, diante das preocupações e das constatações extraídas do atual contexto de globalização, a educação, na perspectiva da ética planetária, pode e deve dar sua contribuição ao enfatizar uma formação correspondente ao desenvolvimento sustentável e às relações solidárias, de respeito, de preservação e de cuidado de tal forma que caracterize a dignidade das pessoas e do meio ambiente. Nesse mesmo sentido, pode chamar a atenção para a responsabilidade humana e enfatizar princípios que apontam para a integridade em favor da vida. Dessa forma, precisamos de uma mudança urgente nos paradigmas e 599

princípio que determinam a concepção e visão de mundo atual. As conseqüências que temos presenciado desse modelo de desenvolvimento se configuram por meio de um mundo violento, injusto, desigual e ameaçador. Por isso, esses paradigmas e princípios devem ser correspondentes à perspectiva da ética planetária, pois favorecem a construção de um mundo melhor, mais harmônico e digno de se viver e que garanta a sobrevivência das futuras gerações. REFERÊNCIAS ALVES, Júlia Falivene. Paulo: Moderna, 1992.

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601

OS NOVOS DIREITOS E A INFLUÊNCIA DAS NOVAS TECNOLOGIAS NOS DIREITOS HUMANOS: A INTERNET (IN) FORMANDO CIDADÃOS Danielli Regina Scarantti1 1. INTRODUÇÃO O paradigma emergente revela uma sociedade multicultural marcada por intensos fluxos de comunicações. Nesse contexto, a internet surge como um instrumento importante em razão de dois aspectos principais: ela nasceu como um meio de informação e se desenvolve ao longo do século XXI como um meio que abarca uma série de elementos úteis e necessários para a formação dos indivíduos no que tange ao exercício democrático da cidadania. Esse aprimoramento de funções descrito é possível, primeiramente, em razão da possibilidade de novos direitos serem acrescentados à ordem jurídica na medida em que os indivíduos sentem novas necessidades para regular a convivência em sociedade – sendo exatamente esse contexto que inaugura a parte inicial do trabalho, o qual está dividido em duas partes. A primeira parte do trabalho se dedica ao resgate da trajetória expansiva dos direitos humanos e versa sobre a inserção de novos direitos, especialmente sobre o reconhecimento do acesso à internet como direito humano, quando a Organização das Nações Unidas, ONU, se pronunciou e destacou a internet como meio de comunicação essencial para a circulação de informações indispensáveis às relações humanas. Na sequencia, a segunda parte do trabalho aborda o papel da internet no século XXI. Nesse tópico serão delineadas as principais vantagens do mundo digital. Para isso, o texto revela que o direito de acesso à internet não se constitui em um simples direito fim, mas sim, em um direito mediador fundamental para a execução de outros direitos civis, socioeconômicos, políticos e de solidariedade internacional.

Graduada em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ, e Mestranda (Bolsista CAPES) na mesma Universidade. E-mail: [email protected]. 1

602

Assim, a importância da internet resta comprovada. Todavia, torna-se possível observar que a maior parte da população brasileira não possui acesso às redes, o que evidencia um cenário de exclusão digital que vai de encontro com a consolidação de direitos humanos. Por isso, o trabalho serve de alerta à sociedade sobre a violação de um direito humano ainda pouco invocado pelas vítimas desse sistema, ao mesmo tempo em que sugere aos gestores públicos a fomentação de políticas públicas de inclusão digital. 2. NOVOS DIREITOS E O RECONHECIMENTO DO ACESSO À INTERNET COMO DIREITO HUMANO A trajetória expansiva dos direitos humanos teve início na idade moderna - mais especificamente no decorrer dos séculos XVII e XVIII - a partir da premissa de que todos os homens deveriam ter direitos que protegessem os valores humanos fundamentais. Assim, constituíram-se numa ruptura com o passado, por meio de lutas contra a opressão e de desavenças contra o Estado. Tais fatos originaram transformações políticas, bem como a colocação do indivíduo no centro do mundo através do novo pensamento que admitia o poder como originário da própria nação. Então, ainda que alguns autores tenham denominado os direitos do homem como direitos naturais2, Darcísio Corrêa (2002) defende que eles são direitos históricos. Isso porque são direitos incorporados de maneira evolutiva ao ordenamento jurídico de acordo com as necessidades sentidas pelos seres humanos. Ou seja, trata-se de “[...] um ciclo perpétuo, ao qual é possível

acrescentar-se

periodicamente

novo

conjunto

de

direitos”

(SPENGLER; BEDIN; LUCAS, 2013, p. 12). Devido a essa possibilidade de acrescentar novos direitos no ordenamento

de

acordo

com

as

necessidades

da

época

vivida,

o

Nesse sentido, Joaquín Herrera Flores (2009, p. 2) defende os direitos humanos como “um produto cultural surgido em um contexto concreto e preciso de relações que começam a expandir-se por todo o globo – desde o século XV até estes incertos inícios do século XXI – sob o nome de modernidade ocidental capitalista”. 2

603

desenvolvimento

dos

direitos

do

homem

admite

uma

classificação

acadêmica, de modo que Gilmar Antônio Bedin (1998, p. 99) afirma a existência de quatro principais gerações de direitos, as quais [...] surgiram, no século XVIII, como direitos civis, ampliaram-se, no século XIX, como direitos políticos, desenvolveram-se, no início do presente século, como direitos econômicos e sociais e consolidaramse, no final da primeira metade do presente século, como direitos de solidariedade ou direitos do homem no âmbito internacional.

Ressalta dizer que todas as gerações de direitos humanos estão estritamente ligadas entre si e uma se soma a outra com o objetivo de complementariedade, nunca de substituição. Nesta perspectiva, “Os direitos civis e políticos são importantes, mas sua conquista deve representar o impulso para a concretização dos direitos socioeconômicos, assim como dos novos direitos” (COLPANI, 2004, p. 199). Visto isso, o presente trabalho se concentra na quarta geração de direitos. Chamada

também

de

geração

dos

direitos

de

solidariedade,

compreende um conjunto de direitos pensados em escala internacional. Ou melhor, trata-se de uma era que vem progredindo há aproximadamente 67 anos e cuida de normatizar os direitos sobre o Estado, bem como “[...] sinalizam para os limites territoriais do Estado moderno e para o enfraquecimento do conceito de soberania [...]” (SPENGLER; BEDIN; LUCAS, 2002, p. 37), pois de acordo com os mesmos autores esses direitos se apresentam como garantias de relevância global com urgência de expansão para todos os espaços do mundo no século XXI. Nesta fase a soberania ultrapassa fronteiras e cada país se direcionará sob duas perspectivas. De acordo com Gilmar Antônio Bedin (1998, p. 73), por um lado se indica promover ações articuladas e orientadas para estruturar grandes blocos econômicos, sociais e políticos. E por outro lado se indica possibilitar aos indivíduos direitos e capacidade processual para agirem em graus mundiais. Darcísio Corrêa (2010, p. 441) complementa que esses direitos, hoje postos como condição de sobrevivência planetária

604

e cuja titularidade não é mais constituída apenas pela singularidade dos indivíduos, podem ser exemplificados pelos direitos à autodeterminação dos povos, à paz internacional, ao desenvolvimento (por um diálogo Norte/Sul), a um meio ambiente equilibrado e saudável, à comunicação, além dos direitos das coletividades regionais ou étnicas culturalmente diferenciadas.

Embora existam outros entendimentos em relação à classificação acadêmica de gerações de direitos, uma opinião é consensual entre todos os autores. Novos direitos podem ser acrescentados à ordem de proteção jurídica: Não é preciso muita imaginação para prever que o desenvolvimento da técnica, a transformação das condições econômicas e sociais, a ampliação dos conhecimentos e a intensificação dos meios de comunicação poderão produzir tais mudanças na organização da vida humana e das relações sociais que se criem ocasiões favoráveis para o nascimento de novos carecimentos e, portanto, para novas demandas de liberdade e de poderes. (BOBBIO, 1992, p. 33).

Hannah Arendt (1989) vai ao encontro dessa abordagem sobre o conjunto de transições referido e explica que os direitos humanos fazem parte de uma invenção humana, a qual está em permanente processo de construção e reconstrução. Da mesma forma, Bobbio (1992, p. 32) complementa “os direitos ditos humanos são o produto não da natureza, mas da civilização humana; enquanto direitos históricos, eles são mutáveis, ou seja, suscetíveis de transformação e de ampliação”. Logo, ressalta dizer que os direitos humanos são uma construção social e por tal característica, não estanque. Um produto social que acompanha o desenvolvimento individual e coletivo dos sujeitos que vivem em sociedade. O jurista brasileiro, atual membro do Tribunal Internacional de Justiça, Antonio Augusto Cançado Trindade (1999), acrescenta que a proteção dos direitos humanos ocupa uma posição central na agenda internacional da passagem do século XX para a atualidade. Portanto, depreende-se que os direitos humanos cada vez mais conquistam extrema importância para a coletividade, pois se desenvolvem de acordo com as necessidades globais de proteger a dignidade humana. Exatamente nesse sentido, em maio de 2011, a ONU declara o acesso 605

à internet como direito humano, em razão de ter reconhecido que com o advento da era digital, o mundo sofreu transformações em suas mais diversas áreas, fazendo que o indivíduo encontre boa parte das informações necessárias ao toque de um mouse: Em 2011, a Organização das Nações Unidas (ONU), reconhecendo a importância do fluxo de informação e comunicação gerado pela internet, relatório que analisa as tendências e desafios através da internet decretou “ser direito de todos os indivíduos procurar, receber e transmitir informações e ideias de todos os tipos através da Internet. A ONU destaca ainda a natureza única e transformadora da Internet não só para permitir aos cidadãos exercer o seu direito à liberdade de opinião e expressão, mas também uma gama de outros direitos humanos, além de promover o progresso da sociedade como um todo. (CONCEIÇÃO, 2012, p. 5).

No Brasil, esse direito foi consagrado no ordenamento jurídico interno em 2014, pelo Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965. A referida legislação garantiu os direitos humanos como fundamento do uso da internet, bem como certificou o acesso à internet como instrumento essencial para o exercício da cidadania, a qual passou a ter uma nova dimensão em razão do contato das novas tecnologias com novos conhecimentos e sociedades multiculturais. Então, se há liberdade de expressão, liberdade política, cultural, econômica e social e se essas liberdades são para as pessoas que vivem em sociedade,

natural

que

o

exercício

desses

direitos

sejam,

também,

externados no mundo virtual, enquanto este se apresenta como um reflexo da sociedade pós-moderna. Pois, “El número de personas que se incorporan a la sociedade mundial de la información no deja de aumentar y las redes de comunicaciones infraestructura

de

alta

velocidad

indispensable”

se

están

(UNIÓN

convirtiendo

en

INTERNACIONAL

una DE

TELECOMUNICACIONES, 2013). A celeridade e transparência para transferir informação por meio da internet é um fato que não pode retroceder, pois as tecnologias oferecidas pelo mundo digital são importantes ferramentas, principalmente, para fomentar a democracia participativa que se apresenta como fator essencial para a defesa da dignidade humana e o exercício da cidadania, além de 606

garantir a efetivação de direitos civis, socioeconômicos, políticos e de solidariedade, bem como o “desenvolvimento e o crescimento econômico, a equidade social, o intercâmbio cultural, a pesquisa e a melhoria educacional da população.” (HELOU; LENZI; ABREU; SAISS; SANTOS, 2011, p. 2). Sendo assim, o próximo item analisará os benefícios gerados pela internet na pós-modernidade, na medida em que o mundo digital está superando as barreiras de informar e construindo plataformas digitais dotadas de elementos importantes na formação cidadãos. 3. O PAPEL DA INTERNET NO SÉCULO XXI: ENTRE FORMAR E INFORMAR CIDADÃOS A ascensão da internet é um dos elementos basilares da revolução tecnológica que perpassa o mundo contemporâneo. Ela se constitui no “instrumento básico para a construção desse novo cenário de organizações e comunicações virtuais” (JAMIL; NEVES, 2010, p. 9) que ensejaram uma série de transformações na sociedade, tanto em sua esfera pública, quanto em sua esfera privada. Percebe-se que as funções da internet evoluíram em grande escala no último século. Criada com o principal propósito de comunicar, hoje ela se apresenta como uma ferramenta de múltiplas utilidades – na vida particular, no trabalho, no comércio de bens, produtos e serviços, nas atividades governamentais, nos serviços sociais, enfim, nos mais variados segmentos da sociedade. Foram diversos avanços tecnológicos que impactaram a coletividade. Como refere Manuel Castells (2003, p. 34) “a cultura dos produtores da Internet moldou o meio” e hoje, viver desconectado do mundo digital é um desafio, haja vista que o mundo digital se tornou uma verdadeira extensão do mundo real no sentido de que muitas tarefas atualmente só podem ser desenvolvidas de maneira on-line, como é o caso da declaração de imposto de renda. Foi-se o tempo em que o conhecimento ficava engessado nas

607

prateleiras dos escritórios e bibliotecas. Hoje, tudo transita pelas linhas da internet, sabendo-se que quem não tentar acompanhar as evoluções tecnológicas estará fadado ao fracasso. Como já mencionado, estamos na era do conhecimento; da informação automática, da informática. (MOREIRA, 2012, p. 1).

Ressalta-se que nessa era o digital está cada vez mais presente e imprescindível na vida cotidiana em todos os seus aspectos. Mais do que comunicar, a internet está revelando uma face promotora da formação do homem enquanto cidadão munido de direitos e deveres. Como destaca Dominique Wolton (2010, p. 87) “a informação e a comunicação são inseparáveis da história da emancipação do homem”, por isso vejamos a partir de agora de forma específica a influência que a web causa na vida dos indivíduos. De imediato, é importante frisar que a internet é muito mais do que um direito fim, ela é um verdadeiro direito meio no sentido de que atua como mediadora para a efetivação de vários outros direitos – sejam eles, civis, socioeconômicos, políticos e de solidariedade internacional. Victor Gentilli (2005, p. 129) entende que o direito à informação é “a porta de acesso aos outros direitos” e nesse sentido, a internet se apresenta como um importante meio veiculador dessas informações necessárias para a vida do homem em sociedade. No que tange aos direitos civis, o direito de acesso à internet vai atuar como mediador, principalmente, na efetivação da liberdade de expressão e manifestação, na medida em que oferece informações úteis e diversas e a partir disso, autonomia para os cidadãos se manifestarem e “defender uma sociedade mais justa e igualitária” (RADDATZ, 2012, p. 298). Um indivíduo bem informado, por exemplo, poderá lutar consciente pela proteção de suas garantias, bem como reivindicar pelos seus interesses e ideais, como foi o caso das manifestações e protestos ocorridos no Brasil em julho de 2013. “[...] quando associamos a idéia do exercício do direito civil a uma circunstância de amplo acesso à informação, fica claro o entendimento da relação de causa e efeito entre, por um lado, a idéia de direitos que geram direitos, e por outro, o fato de que os direitos civis são direitos que assumem outra qualidade quando efetivamente universais.” (GENTILLI, 2005, p. 134)

608

A veiculação de informações de cunho social promovida pela internet vai revelar o acesso ao mundo digital como um verdadeiro direito mediador na efetivação dos direitos socioeconômicos, ou seja, a disponibilização de informações por meio da internet se constitui em elemento necessário e útil “para a manutenção da vida humana em sua dignidade mínima” (GENTILLI, 2005, p. 131). Nesse contexto percebe-se que a internet concede uma série de informativos relacionados à saúde com propagandas diversas sobre as campanhas de vacinação e prevenção do mosquito da dengue, por exemplo. Já em relação ao direito social de educação, as redes também se apresentam como ferramentas importantíssimas, segundo Néstor García Canclini (2005, p. 219): Nas ciências exatas, o uso de modems tem possibilitado o desenvolvimento de fluidas comunicações internacionais, permitindo que pesquisadores maduros e jovens tenham acesso a novas teorias, com baixos custos, frequentemente pagos por suas instituições.

Ademais, o direito de acesso à internet como meio veiculador de informações se apresenta também como um suporte para a efetivação dos direitos políticos. Por exemplo, os Portais da Transparência criados pelos governos municipais, estaduais e federal são ótimas ferramentas de controle que o cidadão pode manusear, além disso, “[...] para o exercício pleno e consciente do direito de voto. Se o cidadão não tiver acesso às informações necessárias sobre os partidos em disputas, suas propostas, suas opiniões, etc. ele não poderá votar consciente” (GENTILLI, 2005, p. 135). O acesso à internet possui um papel de suprema importância e já possibilita falarmos em tele-democracia. Pode-se verificar claramente os benefícios gerados através dos sistemas computadorizados de voto, onde o resultado das eleições pode ser conhecido em poucas horas em todas as regiões do país. Só não há, ainda, a possibilidade de votar pelo computador de casa porque este acesso não está ao alcance de todos os indivíduos e por ainda não se considerar o processo seguro o bastante para isentar oportunidades de cerceamento da liberdade de escolha do eleitor, pois em 609

termos práticos de tecnologia seria possível criar um sistema de voto on-line. (HARTMANN, 2007). Outrossim, quanto ao governo eletrônico, Elisabeth Gomes, quando assessora da Presidência da Anatel em 2002 (p. 6), referiu: São diversos os serviços oferecidos aos cidadãos, como por exemplo, a obtenção de certidões e inscrições de concursos via Internet, requerimento de benefícios previdenciários, cartão bancário para recebimento de benefícios capilarizando a rede de pagamentos e suprimindo as filas, pagamento eletrônico de impostos, taxas e contribuições, consultas públicas sobre propostas de leis, decretos e atos normativos, o cartão do Sistema Único de Saúde que condensará a memória da vida médica do usuário dos serviços, enfim, um vasto elenco de iniciativas e programas de governo eletrônico.

Ou seja, torna-se possível discutir questões centradas na teleadministração, em virtude de que a internet pode propiciar a interação do cidadão

de

maneira

ágil,

eficiente

e

transparente

nos

processos

participativos do Estado. Exemplificando isso, denota-se que os atos administrativos eletrônicos poderiam ser programados pelo servidor público, e após este processo seria automático seu preenchimento pelo cidadão, assim, evitando que o agente permaneça por diversas vezes acompanhando o procedimento burocrático. Diante de um atendimento on-line reduzirá as diferenças de tratamento e o cidadão poderá acompanhar virtualmente, minuto a minuto, o andamento dado ao seu processo, dentre muitas outras possibilidades. (HARTMANN, 2007). Hartmann (2007, p. 20) aponta que o acesso do cidadão brasileiro à internet é um requisito para a eficiência da Administração. Ele também reforça a ideia de que o mundo virtual é pressuposto necessário para a concretização de direitos a prestações fáticas como o direito a saúde, a educação e a seguridade social. Como direito-meio na efetivação dos direitos políticos, o direito de acesso à internet para conferir informação é um propulsor do exercício da cidadania, é “combustível para o aprofundamento democrático” (GENTILLI, 2005, p. 146), pois é através dos mecanismos facilitados por ele, que o cidadão passa a conhecer, saber e utilizar as informações úteis ao 610

fortalecimento da vida em sociedade, o que lhe dará sustentação para delinear sua opinião crítica e assim, como indivíduo ativo, contribuir no exercício democrático da cidadania, porque esta “[...] não pode ser exercida na ausência do direito à informação” (RADDATZ, 2012, p. 302). Ademais, o direito de acesso à internet para obter informação também se revela como um meio fundamental para efetivar os atuais direitos de solidariedade internacional, como o direito ao desenvolvimento, ao meio ambiente sadio, à paz e à autodeterminação dos povos, haja vista que foram ultrapassados os limites de fronteira entre os países através da comunicação mundial tão presente na sociedade pós-moderna. Atualmente, todos os projetos elaborados por uma nação, querendo ou não, terão influência internacional. Enfim, todas essas razões explicam o porquê que “o direito à informação nesse modelo de sociedade é requisito para compreender não só um momento histórico, mas uma nova cultura, em que os indivíduos são cidadãos do mundo” (RADDATZ, 2012, p. 297). Tais fatos se devem ao fenômeno da globalização. Hodiernamente, todas as nações estão conectadas e interligadas por meio de objetivos em comum. As relações estão cada vez mais acentuadas entre os países. Nesta senda, Armando Cuesta Santos (2001, p. 1) complementa que essa era do conhecimento é, igualmente, a era da maior produtividade do trabalho, e quem não assimilar tal fato não poderá competir, o que equivale a dizer que não sobreviverá no início deste século XXI. Neste sentido, aponta-se: Vemos que a Internet e o processo de Globalização permitem colocar à disposição de qualquer cidadão do mundo diversas informações e facilidades, porém este cidadão necessita ter conhecimentos (para saber fazer uso deste instrumento) e recursos (financeiros) disponíveis para fazer uso desta tecnologia, podemos constatar assim, que nos dias atuais, quem tem acesso à Internet tem um grande poder em suas mãos, pois pode se considerar parte da “sociedade em rede”. (PORTAL EDUCAÇÃO, 2013).

Isto configura exatamente a afirmação de Angela Maria Barreto (2005, p. 5), a qual não tem dúvidas que a sociedade da informação desencadeou “transformações tecnológicas, organizacionais, geopolíticas, comercias e 611

financeiras, institucionais, culturais e sociais” na vida do homem moderno. Desse modo, nota-se que todos os segmentos da sociedade, de uma forma ou outra, foram atingidos pelas utilidades ofertadas pela internet. É notório que grande parte dos serviços disponibilizados hoje, tanto pelo órgão privado quanto pelo órgão público, são informatizados e exigem pelo menos um mínimo de habilidades na área da informática. Já pensou como seria passar 1 mês sem celular e sem acesso à internet? Você conseguiria? Estas perguntas, quando refletidas criticamente, mostram a importância que o acesso às informações automáticas ganhou na época em que vivemos. De fato, a informática mudou substancialmente todos os ambientes da esfera social, as formas de se relacionarmos, trabalharmos, enfim, toda a nossa forma de viver. (MOREIRA, 2012, p.1).

A partir dessas considerações é possível compreender que a internet está cumprindo, hoje, não só um papel de informar, mas também de formar cidadãos. O mundo digital oferece cada vez mais aparatos para os indivíduos exercer os seus compromissos com a cidadania, a internet está ampliando aquela ideia de múltipla ferramenta. Ela está se configurando em um espaço social e público com novos contornos no paradigma emergente da sociedade, nesta senda: O desenvolvimento do ciberespaço não vai “mudar a vida” milagrosamente nem resolver os problemas econômicos e sociais contemporâneos. Abre, contudo, novos planos de existência: - nos modos de relação: comunicação interativa e comunitária de todos com todos no centro de espaços informacionais coletivamente e continuamente reconstruídos; - nos modos de conhecimento, de aprendizagem e de pensamento: simulações, navegações transversais em espaços de informação abertos, inteligência coletiva; - nos gêneros literários e artísticos: hiperdocumentos, obras interativas, ambientes virtuais, criação coletiva distribuída. Nem os dispositivos de comunicação, nem os modos de conhecimentos, nem os gêneros caracteríscticos da cibercultura irão pura e simplesmente substituir os modos e gêneros anteriores. (LÉVY, 1999, p. 218).

Ou seja, estamos verificando a ascensão de uma sociedade em rede, onde a internet deixou apenas de informar os cidadãos, e agora também está revelando uma face de formação dos indivíduos na medida em que oferece um aparato de informações úteis e necessárias para o exercício democrático da cidadania. O grande problema é que ainda existem muitas pessoas que 612

vivem às margens dessas plataformas digitais. De acordo com o Comitê Gestor da Internet no Brasil (2014, p. 164), cerca de 51% da população brasileira está excluída digitalmente. Em números absolutos, a pesquisa estima que 30,6 milhões de domicílios brasileiros possuam computador em casa. Isso evidencia que: Apesar de ser causadora de diversos benefícios para a sociedade, essa informática e a internet trouxeram pontos positivos e pontos negativos. Se por um lado tais tecnologias promoveram quantidade e, dependendo, qualidade de acesso a informações; por outro lado, a informática e, principalmente a internet, podem ser fatores cruciais no aumento da exclusão social. (CONCEIÇÃO, 2012, p. 2).

Cicilia M. Krohling Peruzzo (2011) também concorda com esta constatação que apesar do aumento progressivo do acesso à internet, grandes contingentes populacionais na América Latina ainda estão à margem

dos

benefícios

desse

ambiente

comunicacional

que

vem

contribuindo para mudanças culturais, bem como no modo de gerar e difundir informações. Indubitavelmente, hoje a internet é meio de comunicação essencial, assim como o rádio e a televisão foram no século passado. O grande problema é que o acesso ao ambiente digital não atinge a maior parte da população em razão do custo e do manuseio que exige alguns conhecimentos específicos, e esses fatores impulsionam ainda mais o desenvolvimento de desigualdades sociais. Assim, conforme Conceição (2012, p. 14) “o desafio, portanto, é evitar que a internet seja mais um fator para aumentar a desigualdade e a exclusão social”. Logo, isso demonstra a necessidade de fomentar políticas públicas de inclusão digital, haja vista que a sociedade clama por “respostas às demandas sociais que emergem” (SILVA, 2012, p. 232) desse novo paradigma emergente que abarca as transformações de uma verdadeira (r)evolução tecnológica.

613

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O desenvolvimento – civil, socioeconômico, político, cultural – da sociedade contemporânea e a nova dimensão de cidadania é uma realidade inegável da era digital. Nesse contexto, o direito de acesso à internet para a busca e troca de informações é, indubitavelmente, um direito que ocupa papel fundamental na vida dos indivíduos, pois se constitui num direito intermediário para a efetivação de outros direitos humanos. Sendo assim, deve ser garantido a todas as pessoas. Porém, visto que cerca de 51% dos domicílios brasileiros não possui acesso à internet, o trabalho alerta que na prática está ocorrendo a violação de um direito humano importante não só pela sua função de veicular informações, mas também por constituir um espaço dotado de elementos que garantem suporte para o exercício democrático da cidadania. Ou seja, hoje a internet informa e, ao mesmo tempo, contribui na formação do cidadão. Desse modo, ao final do presente trabalho se sugere aos gestores a fomentação de políticas públicas de inclusão digital, como são os casos dos telecentros que oferecem a máquina conectada à internet, acompanhada de cursos preparatórios de informática que preparam as pessoas para que sejam indivíduos ativos - informados, críticos e participativos - no exercício democrático da cidadania também no ambiente digital. Pois, investimentos nessa escala tendem a contribuir para o fortalecimento de cidadãos comprometidos com deveres e direitos e, em decorrência, o progresso da sociedade. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BARRETO, Angela Maria. Informação e conhecimento na era digital. Disponível em: . Acesso em 12 jun. 2015. BEDIN, Gilmar Antônio. Os direitos do homem e o neoliberalismo. 2. ed. 614

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617

POR UMA CULTURA PLANETÁRIA DOS DIREITOS HUMANOS: APONTAMENTOS A PARTIR DO PENSAMENTO DECOLONIAL1 Carolina Menegon2 1.INTRODUÇÃO Historicamente,

pode-se

verificar

que

as

culturas

hegemônicas

tentaram fechar-se sobre si mesmas e apresentar o outro como o bárbaro, o selvagem, o incivilizado e, como consequência, suscetível de ser colonizado pelo que se autodenomina civilização. Nesse sentido, a produção do conhecimento, especialmente no campo dos direitos humanos se deu como produto da cultura e do esforço político do Ocidente e, portanto, nada ou pouco tem a ver com a história dos povos não ocidentais. Dessa forma, a teoria dominante dos direitos humanos conta a história dos direitos conferidos a uma parte muito pequena da humanidade em um determinado lugar e tempo: o Ocidente moderno capitalista, razão pela qual se tornou o signo da superioridade de uma cultura – a ocidental – sobre todas as demais. No entanto, em movimento contrário, a partir da década de 1990 na América Latina, vêm ganhando força os estudos decoloniais ou descoloniais, os quais assumem uma perspectiva de crítica ao colonialismo a partir da própria América Latina. Entre os autores (com distintos posicionamentos e orientações teóricas) que vêm trabalhado e/ou trabalharam a questão decolonial, pode-se citar o antropólogo e teórico literário e cultural argentino Walter Mignolo, o sociólogo peruano Aníbal Quijano, o filósofo argentino Enrique Dussel, o filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez, o sociólogo porto-riquenho RamónGrosfoguel, o antropólogo colombiano Arturo Escobar, Trabalho desenvolvido a partir dos estudos realizados pela autora para a elaboração do primeiro capítulo da sua dissertação de mestrado intitulada “A COLONIALIDADE E O PENSAMENTO FEMINISTA LATINO-AMERICANO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS DOS FEMINISMOS NAS NAÇÕES “PERIFÉRICAS”.” 2 Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ); vinculação à Linha de Pesquisa “Fundamentos e Concretização dos Direitos Humanos”; bolsista de Extensão no País do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Nível C, vinculada à Incubadora de Economia Solidária da UNIJUÍ. Graduada em Direito pela mesma universidade. E-mail: [email protected] 1

618

osociólogo venezuelano Edgardo Lander, o filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado Torres, a linguista estadunidenseCatherine Walsh (a qual trabalha com movimentos indígenas no Equador), entre vários outros. As reflexões dos autoresacima citados se dão a partir das heranças coloniais doImpério espanhol e português na América durante os séculosXVI ao XX. Abordam as heranças de larga duração que seinscrevem sobre o corpo social deste continente no século XVIcom a conquista da América e que perduram, embora se transformando,introduzidas naquilo que a teoria social contemporânea denomina como “modernidade” (INSTITUTO DE ESTUDIOS SOCIALES CONTEMPORÁNEOS, p. 4, 2007). Um dos objetivos dos estudos decoloniais é estabelecer uma noção ampliada de colonialismo: a colonialidade. Além disso, buscam traçaruma genealogia

da

decolonialidade

e

desenvolver

um

acervoconceitual

decolonial.Trata-se de uma perspectiva de estudos heterogêneaque prioriza os estudos transdisciplinares, isto é, estudos queutilizam conhecimentos provindos de várias áreas para a análisede um objeto particular. Significa, portanto não a exclusão, masa inclusão de distintos saberes em cada investigação. Os estudos decoloniais utilizam um amplo número defontes, entre elas, as teorias europeias e norte-americanas críticas da modernidade,os estudos chamados propriamente de pós-coloniais,a teoria feminista chicana, a filosofia africana... Aprincipal força orientadora dos estudos decoloniais é, entretanto,uma

reflexão

políticalatino-americana,

continuada sendo

sobre

a

realidade

influenciados

cultural

decisivamente

e

pelo

pensamentofilosófico e político desenvolvido no nosso continente. Partindo-se

dessas

premissas,

o

presente

trabalho

objetiva,

inicialmente, apresentar um posicionamento crítico quanto ao paradigma universalista/eurocêntrico dos direitos humanos e a sua perspectiva colonizadora para, na sequência, abordar a decolonialidade – em seus aspectos conceituais mais relevantes – como corrente contra hegemônica. Com a finalidade de cumprir, portanto, o objetivo proposto, o percurso teórico nesta investigação foi elaborado sob a base lógica do método dedutivo, com uma coleta de dados, sobretudo, bibliográficos. 619

2. CRÍTICA AO PARADIGMA UNIVERSALISTA/EUROCÊNTRICO DOS DIREITOS HUMANOS Segundo Bragato (2013, p. 314), estudar Direito no Brasil e, particularmente, direitos humanos, implica, no mais das vezes, duas précompreensões raramente contestadas. A primeira delas dá conta de que os sistemas jurídicos – incluindo o conteúdo das leis e o formato dos institutos – de diversos países no mundo hoje, notadamente as ex-colônias, como é o caso brasileiro, em particular, e latino-americano, em geral, foram historicamente construídos como cópias do modelo europeu e que, por essa razão, pertencem ou à família da Common Law (no caso da América do Norte) ou à da Civil Law (no caso da América Latina). A segunda pré-compreensão – e a que mais interessa para o presente trabalho – é de que a origem e a afirmação dos direitos humanos nos mais diversos sistemas jurídicos (nacionais, regionais e internacionais) ocorreram graças à moderna sociedade europeia, sob cujos auspícios se iniciaram a era do Iluminismo e da emergência do sujeito livre e racional. Nesse sentido, os direitos que hoje figuram no cenário latino-americano de proteção dos direitos humanos, seja no nível internacional (como, por exemplo, no âmbito da Organização dos Estados Americanos – OEA), seja nas legislações domésticas dos países latino-americanos (o Brasil mostra-se um exemplo clássico), são considerados como mais um produto europeu importado e adotado nessas terras (BRAGATO, 2013). De fato, não se pode ignorar a contribuição e, até mesmo, o protagonismoocidental em diversas áreas do conhecimento e também na afirmação dos direitoshumanos. Porém, essa contribuição não é absoluta, mas limitada e pontual. Nestesentido, explica Chandra Muzaffar (1999, p. 26) que: Enquanto a Europa construía o edifício dos direitos individuais dentro de suas próprias fronteiras, destruía a pessoa humana em outras terras. Enquanto os direitos humanos expandiam-se em outras terras. Enquanto os direitos humanos expandiam-se entre os povos brancos, o império europeu infligiu horríveis sofrimentos sobre

620

os habitantes de cor do Planeta. A eliminação das populações nativas das Américas e da Australásia e a escravização de milhões de africanos durante o comércio escravo europeu foram duas das maiores tragédias da época colonial. De fato, a supressão de milhões de asiáticos em quase todas as partes do continente durante os longos séculos de dominação colonial foi também outra colossal calamidade para os direitos humanos. O colonialismo ocidental na Ásia, na Australásia, na África e na América Latina representa a mais massiva e sistemática violação dos direitos humanos jamais vista na história.

As brutalidades e os horrores do colonialismo, representados nas figuras dogenocídio indígena, da escravidão africana, do saque das riquezas dos continentescolonizados e, especialmente, da ideologia do racismo e da intolerância,reproduzida no século XX dentro da própria Europa e responsável por duasguerras de dimensões globais, descortinam a realidade de que a concepção geo-históricadominante dos direitos humanos é uma contradição em si mesma. Cumpre salientar, no entanto, que adotar essa visão crítica não implica negar que os direitos humanossejam um fenômeno moderno. Mas, precisamente por serem modernos, seusfundamentos geo-históricos não podem ignorar a colonialidade, que é o ladoobscuro da modernidade. Reconhecer esta dimensão é o primeiro passo para redefinir os termosdo discurso dos direitos humanos e que deve partir do questionamento básicoacerca do papel hegemônico da Europa moderna. Segundo Bragato (2013, p. 316), o discurso fortemente persuasivo da teoria universalista dos direitos humanos esconde o fato de que o Ocidente construiu um projeto de expansão e colonização calcado no desprezo, na inferiorização e no desrespeito das culturas alheias. Neste sentido, o arcabouço filosófico fundado na modernidade que subjaz às conquistas internas

do

Ocidente

está

fortemente

comprometido

com

o

ideário

individualista que não dá conta de justificar as razões para o respeito universal dos direitos humanos. Tanto nas Declarações Americanas, quanto na Declaração Francesa, o protótipo da natureza humana não era apenas masculino, mas também branco e ocidental, porque somente os seres humanos com essas características adequavam-se à ideia de racionalidade. Os outros – 621

mulheres, estrangeiros, colonizados e negros – estavam excluídos da humanidade em função de seu padrão inferior de racionalidade (BRAGATO, 2013). Mignolo (2008, p. 15) refere que esse fenômeno guarda estreita relação com o incremento do contato dos europeus com outros povos justamente no momento

em

que

se

processavam

as

revoluções

modernas

que

determinaram a posição central do Ocidente. Isso porque o encontro com os índios, a simultânea expulsão dos muçulmanos e dos judeus da península ibérica no fim do século XV e a submissão dos negros africanos à escravidão levaram a uma específica classificação e gradação da humanidade. Taylor (2001, p. 101), esclarece que os obstáculos com os quais se depara um possível consenso entre os defensores de diferentes linhas de pensamento em torno dos direitos humanos residem justamente no fato de o discurso dos direitos ter suas raízes no sistema de valores da cultura ocidental. Não apenas isso constitui um obstáculo, mas também a filosofia que subjaz a esse reconhecimento e que pressupõe a primazia do indivíduo, desafiando noções comunitárias de mundo que dão mais ênfase à forma como esses indivíduos se relacionam e se posicionam na sociedade. Taylor ressalta que na Europa os direitos nasceram como poderes do indivíduo que se sobrepõe à sociedade. Daí, ao invés de falarmos que é errado matar alguém, dizemos que temos direito à vida. O discurso ocidental dos direitos envolve, de um lado, um conjunto de formas legais, pelas quais a imunidade e as liberdades são inscritas como direitos com certas consequências para a possibilidade de renúncia e para as formas nas quais eles podem ser assegurados; e, por outro, uma filosofia da pessoa e da sociedade que atribui enorme importância ao indivíduo, com significativa atenção ao seu poder de consentimento. Para a maioria das culturas nãoocidentais, sobretudo, isso não funciona. A filosofia ocidental supõe indivíduos possuidores de direitos e encorajados a agir e a defendê-los agressivamente contra a sociedade e os outros, enquanto aquelas culturas dão mais ênfase à responsabilidade que esse indivíduo deve ter diante deles. A concepção individualista ocidental é vista aos olhos de muitos povos como criadora de homens autossuficientes, que leva à atrofia do senso de 622

pertencimento e a um grau maior de conflito social, enfraquecendo a solidariedade social e aumentando a ameaça de violência (TAYLOR, 2001, p. 103). Nesse

sentido,a

racionalidade,

como

critério

de

pertença

à

humanidade, não levou ao reconhecimento da igualdade entre os seres humanos, porque, antes, funcionou como critério de diferenciação e exclusão. Por isso, nos tempos modernos, a racionalidade que abordava e explicava o indivíduo, suas relações sociais e a justiça daí emergente tornouse um importante fator de exclusão daqueles seres humanos fora do padrão cultural dominante, que, em última análise, encarnou a figura do europeu, branco,

do

sexo

masculino,

cristão,

conservador,

heterossexual

e

proprietário. Ao mesmo tempo em que a modernidade assentou a máxima segundo a qual todo ser humano é pessoa, negou a mais da metade deles a condição de humano. As mulheres latino-americanas, por exemplo, se inserem nessa parcela a quem os direitos humanos foram negados. Problematizando-se

o

conceito

de

racionalidade,

procura-se

demonstrar que, por trás de uma aparente neutralidade, subjaz um projeto de invisibilidade e opressão humana, reforçado pela ideia de raça e pelo exercício de um poder de matriz colonial. Este trabalho consiste em um exercício de crítica à concepção dominante dos direitos humanos, cujos limites não permitem a proposição de novos discursos, mas tão-somente a sinalização de caminhos que propiciem a reconstrução de discursos outros que levem em conta histórias silenciadas, povos esquecidos e culturas oprimidas. (BRAGATTO, 2014, p. 206). Como os direitos naturais derivam da hipótese de um estado pré-social ou de natureza, a sua concepção antropológica fundante é a de indivíduo que existe e subsiste sozinho e onde a sociedade não é o momento de realização do humano. O outro, portanto, não é o que possibilita a existência do sujeito, mas o limite para o exercício da liberdade, direito natural por excelência, tal como expresso no art. 4º da Declaração Francesa. Por isso, as Declarações modernas não objetivavam exatamente a concessão de uma vida digna para todos os seres humanos, mas garantir o exercício da liberdade para aqueles que, por suas próprias forças, fossem capazes de exercê-la 623

(BRAGATTO, 2014, p. 210). Assim, o colonialismo produziu a chamada inferioridade do colonizado que, uma vez derrotado e dominado, acaba por aceitar e internalizar essa ideia. O colonizador se sustenta no racismo para estruturar a colonização e justificar sua intervenção, pois, através da difusão ideológica da suposta superioridade do colonizador, sua ação é vista como benefício, e não como violência, o que resultou na alienação colonial, na construção mítica do colonizador e do colonizado, o primeiro retratado como herdeiro legítimo de valores civilizatórios universalistas e o segundo, como selvagem e primitivo, despossuído de legado merecedor de ser transmitido (FANON, 2008). 3. O PENSAMENTO DECOLONIAL E SUA PERSPECTIVA PLANETÁRIA O pensamento decolonial é um projeto epistemológico fundado no reconhecimento da existência de um conhecimento hegemônico, mas, sobretudo, na possibilidade de contestá-lo a partir de suas próprias inconsistências

e

na

consideração

de

conhecimentos,

histórias

e

racionalidades tornadas invisíveis pela lógica da colonialidade moderna (BRAGATTO, 2014, p. 205).O pensamento descolonial insere-se, portanto, na trilha das formas de pensamento contra-hegemônicas da modernidade e inspira-se nos movimentos sociais de resistência gerados no contexto colonial. Momentos estes que foram veladospela retórica da modernidade, que provocou o ocultamento da colonialidade e,em consequência, a invisibilidade do pensamento decolonial em desenvolvimento. Categorias como colonialidade, modernidade, decolonialidade,sistemamundo moderno/colonial, matriz colonial depoder (colonialidade do poder), colonialidade do saber, diferençacolonial, ocidentalismo, eurocentrismo, locus de enunciaçãoprivilegiado e a noção de imaginário do “ponto zero”, sãograndes contribuições dos estudos decoloniais para se pensar aquestão colonial (COLAÇO; DAMAZIO, 2012). Colonialidade é um conceito utilizado inicialmente porQuijano (1991). A palavra colonialidade (e não colonialismo) é utilizadapara chamar atenção sobre as continuidades históricas entre ostempos coloniais e o tempo 624

presente e também para assinalarque as relações coloniais de poder estão atravessadas

peladimensão

epistêmica.

Colonialidade

é

um

conceito

complexo(atua em vários níveis). Em um primeiro momento busca tornar visível olado obscuro da modernidade. A retórica da modernidadevem sempre acompanhada pela lógica da colonialidade, demodo que não pode haver modernidade sem colonialidade.Sob

a

retórica

da

universais(cristianização,

modernidade

e

seus

civilização,

desenvolvimento,democracia, colonialidade(dominação,

mercado

controle,

etc.)

projetos

modernização,

perpetua-se

exploração,

a

lógica

dispensabilidade

da de

vidashumanas, subalternização do saberes dos povos colonizadosetc.) (MIGNOLO, 2008, p. 293). Além disso, colonialidade também é uma expressão abreviadade matriz de poder colonial que Quijano (1991) batizou com onome “padrão de poder colonial” ou “colonialidade do poder”.Em terceiro lugar, colonialidade designa histórias,subjetividades, formas de vida, saberes pluriversais esubjetividades colonizadas a partir dos quais surgem respostasdecoloniais. Se por um lado a colonialidade é a cara invisívelde modernidade é também, por outro lado, a energia que gera adecolonialidade (MIGNOLO, 2008b, p. 910). Deste modo, quando falamos em “decolonialidade”,estamos nos remetendo

necessariamente

a

uma

tríade

“modernidade/colonialidade/decolonialidade”.A

“/”

deconceitos,

(barra)

que

une

a as

categorias “modernidade/colonialidade/decolonialidade” e ao mesmo tempo as separa significa, porum lado, que uma não pode ser pensada sem as outras

e

que,historicamente,

surgem

conjuntamente

no

mesmo

processohistórico. Cada uma delas é constitutiva das outras duas.O último conceito da tríade, a “decolonialidade”,significa um tipo de atividade (pensamento, giro, opção)de enfrentamento à retórica da modernidade e à lógica dacolonialidade (GROSFOGUEL; MIGNOLO, 2008, p. 34). Já o colonialismo, segundo Mignolo (2007, p. 33), refere-se aperíodos históricos específicos e a lugares de domínio imperial(português, espanhol, britânico

e

desde

o

início

do

século

XX,estadunidense).

O

termo 625

colonialidade diz respeito a umaestrutura lógica de domínio colonial (independente de suamanifestação histórica, por exemplo, o colonialismo espanhol,português) que impõe o controle, a dominação e a exploração eproduz certa classificação racial da humanidade. No imaginário moderno tudo deve principiar pela Grécia.Entretanto, os estudos decoloniais se direcionam temporalmentepara o século XVI, a partir do

surgimento

marcos

da

e

consolidação

macronarrativa

do

dosistema-mundo

moderno/colonial.Os

sistema-mundomoderno/colonial

não

possuem, deste modo, suas origensna Grécia, mas no século XVI e na produção das diferençascoloniais. Ou seja, na vitória final do cristianismo sobre o Islã em1492, na conversão dos indígenas ao cristianismo após a vitóriade Hernán Cortés sobre o “imperador” asteca Moctezuma, nachegada de Vasco da Gama na Índia em 1498 e dos jesuítas naChina em 1580, no contingente enorme de escravos africanos trazidos para as Américas (COLAÇO; DAMAZIO, 2012). Para os estudosdecoloniais a modernidade nasce junto com a colonialidade;ambas constituem-se um só processo, são dois lados da mesmamoeda. Embora usualmente entendamos a modernidadecomo um projeto definido por seu espírito libertador e porsua retórica salvacionista, os autores decoloniais assinalam seu“lado oculto”, que é a colonialidade. Nesse sentido, trabalha-secom a noção de sistema mundo moderno/colonial paraenfatizar como a colonialidade é constitutiva da modernidade ecomo ambas devem ser pensadas a partir de uma perspectiva desistema-mundo. O sistema-mundo moderno/colonial tem sua origem,conforme explica Mignolo (2005, p. 73-75), no “circuitocomercial do Atlântico” quer dizer, na articulação dos mercadosregionais da Europa e Ásia com os mercados regionais deAnahuac e Tawantinsuyu.Esta articulação permite a emergência do capitalismomundial com base em centros e periferias. A relação básica entreos centros e as periferias foi o saque e a exploração, tanto damão de obra, indígena e

posteriormente africana, como tambémde recursos

naturais. Até a “invenção” da América, a Europa tinha um papelmarginal nos grandes circuitos mercantis que tinham emConstantinopla um dos seus 626

lugares centrais. A tomada dessacidade pelos turcos, em 1453, engendrou a busca

de

caminhosalternativos,

negociantesgenoveses

que

sobretudo

encontraram

por apoio

parte

dos

político

grandes

entre

as

monarquiasibéricas e na Igreja Católica Romana (COLAÇO; DAMAZIO, 2012). Mignolo (2005, p. 73) diz que a emergência do circuitocomercial do Atlântico possibilitou uma confluência entreo controle econômico na expansão do Ocidente e tambémo controle epistêmico ou do pensamento. Esta é a principalexplicação ao fato de que uma casualidade se transformou noparadigma dominante até hoje. Ou seja, aí está o início de umahistória na qual

uma

perspectiva

conhecimento

“local”

universal.

É

de

saber

neste

começa

cenário

ainstaurar-se

quepodemos

como

localizar

historicamente o começo da construção deum saber jurídico pretensamente universal, exemplificado comFrancisco de Vitória e no debate de Valladollid entre Las Casase Sepúlveda. A partir deste momento não é possível conceber amodernidade sem a colonialidade, o lado silenciado pelaimagem reflexiva que a modernidade (por exemplo, osintelectuais, o discurso oficial do estado) construiu de si mesma(MIGNOLO, emmodernidade

2005,

também

p. é

75).

Desta

necessário

maneira,

considerar

a

para

se

falar

colonialidade

ea

decolonialidade como categorias interdependentes no interiordo sistemamundo moderno/colonial. A perspectiva eurocêntrica, segundo Quijano (2002,p. 4-5), foi “imposta e admitida nos séculos seguintes, como aúnica racionalidade legítima. Em todo caso, como a racionalidadehegemônica, o modo dominante de produção de conhecimento”. Para o que interessa aqui, entre seus elementos principais é pertinentedestacar, sobretudo, o dualismo radical entre “razão” e “corpo” eentre “sujeito” e “objeto” na produção do conhecimento; tal dualismoradical está associado à propensão reducionista e homogeneizantede seu modo de definir e identificar, sobretudo na percepção daexperiência social, seja em sua versão a-histórica, que percebeisolados ou separados os fenômenos ou os objetos e não requer porconsequência nenhuma ideia de totalidade, seja 627

na que admite umaideia de totalidade evolucionista, orgânica ou sistêmica, inclusivea que pressupõe um macrossujeito histórico. Essa perspectiva deconhecimento está atualmente em um de seus mais abertos períodosde crise, como o está toda a versão eurocêntrica da modernidade.(QUIJANO, 2002, p. 4-5). Dussel (1993; 2005) propõe um modelo alternativoà visão tradicional e eurocêntrica de modernidade, o quechama de “paradigma planetário”. Afirma

que

a

modernidadeé

um

fenômeno

do

sistema-mundo

moderno/colonial.A modernidade não é fruto de uma Europa independente, masde uma Europa concebida como centro. Essa centralidade daEuropa no sistema-mundo não é fruto de uma superioridadeinterna acumulada, mas é um efeito do descobrimento, conquistae colonização da América. Esse fato vai lhe dar vantagem frenteao mundo otomano-islâmico, Índia e China. A modernidadeé

o

resultado

desses

eventos.

Não

há,

portanto,

modernidadesem colonialidade. Deste modo, fica evidente como modernidade e colonialidadeestão necessariamente relacionadas uma com a outra.Não é com os pressupostos da modernidade que a colonialidadeserá superada, pois é precisamente a modernidade quenecessita e produz a colonialidade.Pode se dizer, deste modo, que o primeiro passo parase pensar decolonialmente é partir da premissa de que amodernidade não existe sem a colonialidade. No âmbito dos direitos humanos, não é possível pensar o “direito moderno” sem analisarsua face em relação com a colonialidade. 4.CONSIDERAÇÕES FINAIS Entre o discurso dominante sobre a fundamentação históricogeográfica e filosófico-antropológica dos direitos humanos e a sua atual configuração, observam-se profundas falhas e incoerências. A teoria dominante supõe que os direitos humanos são o produto do esforço histórico e teórico do Ocidente Moderno. Por outro lado, os direitos humanos abrangem tão variados bens e exigem a proteção para tão variadas formas de vida humana, que é difícil 628

traçar uma linha contínua que os ligue aos chamados direitos naturais do homem moderno. Todavia, essa teoria é dominante porque é produzida por quem tem legitimidade epistêmica para produzir conhecimento válido. Além disso, o arcabouço teórico da modernidade ignora completamente sua dimensão colonial. Por isso o discurso dominante é eurocêntrico e justamente por isso é dominante. Ocorre que, sendo eurocêntrico, é um discurso localizado e parcial. Pensa os direitos humanos como um fenômeno situado apenas em um dos lados da linha abissal: no contexto das sociedades colonizadoras. Para muitos teóricos da modernidade todas as culturase sociedades do mundo são reduzidas a uma manifestaçãoda história e cultura europeia. Entretanto, para os autoresdecoloniais as histórias são “outras”. Enquanto que para osrepresentantes da história universal a modernidade tem uma sóface, para os estudos decoloniais latino-americanos, tem duas.O chamado progresso da modernidade é construído a partir daviolência da colonialidade. Além disso, tais estudos se constituem em uma alternativa que se contrapõe às grandes narrativas universalistas e assim representam uma nova perspectiva de pensamento não apenas para a América Latina, mas para o mundo das ciências sociais e humanas como um todo. Isso não significa que o trabalho deste grupo é apenas de interesse para as supostamente universais ciências sociais e humanas, mas que o grupo pretende intervir de forma decisiva nos discursos da ciência moderna para criar outro espaço para a produção de conhecimento, uma forma distinta de pensamento, “um paradigma outro”, a própria possibilidade de falar sobre “mundos e conhecimentos de outra maneira” (ESCOBAR, 2003, p. 51).

Os

estudos

decoloniais

possibilitam,

portanto,

compreender

os

discursos jurídicos pretensamente universais como construções que surgem e perduram a partir das relações coloniais. Trata-se, desta maneira, de uma perspectiva diferente de se entender o direito, pois permite que este seja pensado a partir de diferentes categorias e formas de conhecimento, inimagináveis para o direito ocidental.

629

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631

AS CONTRIBUIÇÕES DO GIRO DECOLONIAL PARA UMA PERSPECTIVA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS Tamiris A. Gervasoni1 Felipe da Veiga Dias2 1. INTRODUÇÃO A origem histórica dos direitos humanos é atribuída a um processo de reconhecimento destes direitos a partir da sociedade ocidental. A Revolução Francesa passa a ser compreendida como relevante marco histórico de profunda influência nos direitos humanos, tendo sido muitas ideias propagadas na época, bem como há ainda a influência de célebres autores que orbitam até os dias atuais o pensamento político moderno, constituindo a base de documentos internacionais que procuram afirmar os direitos humanos. Além da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto San Jose da Costa Rica, entre outros, que procuram assegurar e reconhecer os direitos humanos no plano internacional, é que o primeiro item do trabalho propõese a desenvolver. Através de uma investigação histórica, apresenta-se em um primeiro

momento

a

influência

e

contextualização

de

importantes

documentos internacionais no trato dos direitos humanos. Em segundo momento, não obstante a relevância dos documentos internacionais

referidos

na

esfera

dos

direitos

humanos

intenta-se

demonstrar a necessidade de não resumir tais direitos a uma ideia oficializada e burocratizada, até mesmo no que tange aos seus aspectos interpretativos. Fundamental também ampliar os horizontes a partir dos Mestranda com Bolsa Capes Prosup em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Graduada pela mesma instituição. Integrante do Grupo de Pesquisa “Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, coordenado pela Professora Pós-Doutora em Direito Marli Marlene Moraes da Costa. Email: [email protected]. 2 Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Bolsista CAPES (nº 12333/13-1) - Doutorado Sanduíche na Universidad de Sevilla (Espanha). Professor da Faculdade Metodista de Santa Maria (FAMES). Coordenador da Cátedra de Direitos Humanos (FAMES). Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens do Núcleo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social (GRUPECA/UNISC). Advogado – [email protected]. 1

632

quais fala-se historicamente em direitos humanos para, justamente, considerar que apesar de sua origem histórico-teórica realizar-se em contexto ocidental, outras regiões do mundo, da mesma maneira ou de maneira distinta, já lutavam por tais direitos e sobretudo, já tinham tais direitos violados. Neste sentido, a partir de uma perspectiva crítica dos direitos humanos, com aporte em autores que defendem tal percepção, é que procura-se aliá-la ao movimento do giro decolonial, com o objetivo de rejeição a um consenso sobre direitos humanos historicamente imposto, desconectado das singularidades locais e que não contempla seu caráter emancipador, visto que, tais elementos são primordiais para a construção de uma realidade superação de um pensamento simplificador da realidade e reducionistas dos direitos humanos. 2. O PROCESSO HISTÓRICO DE ORIGEM (OCIDENTAL) DOS DIREITOS HUMANOS Os primeiros processos de reconhecimento dos direitos humanos são inicialmente observados e estudados na – e partir da – sociedade moderna ocidental (WOLKMER, 2010, p. 14), sendo que a influência do pensamento político moderno, com Maquiavel, Hobbes, Locke e Rosseau, é notável no quadro de conquistas dos direitos dos humanos, e tem nos períodos revolucionários, em especial o francês, o caráter de universalidade do pensamento político que propagará através dos ideais do liberalismo na defesa de direitos do homem reconhecendo sua condição de cidadania formal, excluindo todo o restante da população, fundamentando-se no pensamento

jusnaturalista

conservador,

mas

garantindo

algumas

prerrogativas de resistência contra a vontade de império dos soberanos3. A manifestação que representou os ideais revolucionários ficou “A obra de Rousseau serviu de luzeiro para Revolução Francesa e exerceu profunda influência no liberalismo político. A tese difundida pelo filósofo teve antecessores jusnaturalistas que já haviam tentado arrancar da penumbra as medidas pactícias que explicavam o advento do Estado a partir do respeito correlato aos direitos da pessoa como criatura social”. (CARVALHO, 1998, p. 35). 3

633

conhecida como a Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão, sendo um marco na luta por direitos humanos e que afirmava no seu artigo 1º as concepções de igualdade e liberdade entre todos os homens4. Neste documento ocorre a exaltação das concepções jusnaturalistas e iluministas, mas ao mesmo tempo representa o primeiro passo no reconhecimento dos direitos humanos, já que a irradiação dos efeitos desta era um objetivo dos revolucionários. Além de tal declaração, outros registros referentes aos direitos humanos, já no início do século XVIII, tiveram relevância no cenário europeu ocidental como a Convenção de 11 de agosto de 1792 que proibiu o tráfico de escravos nas colônias, a Constituição Francesa de 1848 que pela primeira vez na história aboliu a pena de morte; a Convenção de Genebra de 1864; o Ato Geral da Conferência de Bruxelas de 1890 sobre repressão ao tráfico de escravos africanos e a significativa importância para o reconhecimento de direitos sociais previstos nas Constituições Mexicana de 1917 e de Weimar de 1919. A Constituição de Weimar terá real importância como influência para evolução das instituições políticas ocidentais. Na opinião de Comparato (1999, p. 184) encontra-se nesta carta constituinte o fundamento de um perfil de Estado galgado na democracia social e ao mesmo tempo inspirado por ideais proclamados no período revolucionário francês elevam a dignidade humana a matriz jurídico-axiológica do direito moderno. Aponta o autor referido que aquelas constituições (mexicana e alemã) traçaram os parâmetros posteriormente seguidos, os quais tiveram sua implementação difundida com certo atraso devido ao período nazifascista, o qual marcou um retrocesso no caminho dos direitos humanos. Seguindo as situações mais importantes na linha histórica de conquistas dos direitos humanos, cita-se a Convenção de Genebra de 1926 (sobre a escravatura), Convenção Relativa ao Tratamento de Prisioneiros de Guerra de 1929 e a Carta das Nações Unidas de 1945 (CARVALHO, 1998, p. 56). Esta última de magnitude singular, pois dentro de uma ideia global de 4Artigo.1º.Os

homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.

634

paz (e conquista de direitos humanos) o papel da ONU foi e continua sendo muito relevante. Em 1948 sob a influência do período pós-segunda guerra mundial foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, embora concebida inicialmente como uma fase procedimental dentro do planejamento da Comissão de Direitos Humanos, é fato pacífico na órbita jurídica de que direitos humanos independem de formalismos legais como, por exemplo, a positivação. Em um contexto sintético a doutrina (na linha positivista) tipifica esses direitos constitucionalmente garantidos como fundamentais, dentro de uma ordem jurídica interna, já os direitos humanos englobariam uma ordem jurídica internacional, desta maneira não estando vinculados às definições básicas da lei. (SARLET, 2009, p. 29). Este

documento

resgata

princípios

emergentes

na

Revolução

Francesa, e na Declaração de Direitos do Homem e Cidadão, como liberdade, fraternidade e igualdade, contudo, salienta-se que a declaração de 1948 foi realizada como uma fase de um procedimento, no qual se deu seguimento em 1966 com o Pacto sobre Direito Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CARVALHO, 1998, p. 59). Outrossim, até os dias atuais ocorreram mais acordos no âmbito internacional com o objetivo de reconhecer e assegurar direitos humanos, como por exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969 que reiterou muitas das disposições no Pacto de 1966, menciona-se ainda a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos de 1981 e a Convenção sobre a Diversidade Biológica de 1992 assinada no Rio de Janeiro. Nota-se que desde a Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão, progrediu-se muito no reconhecimento dos direitos humanos, sendo que tal documento serviu e permanecerá como uma referência no caminho traçado até os dias atuais. Não obstante, um de seus efeitos foi à condução ao prisma da dignidade da pessoa humana, o qual pauta não somente Estados e suas respectivas políticas públicas, mas também os direitos humanos nas modernas Cortes internacionais. Não obstante a importância e influência de todos os documentos 635

referidos sobre direitos humanos, que os reconhecem internacionalmente e almejam sua garantia, é preciso compreender que os direitos humanos não se resumem a tais documentos, seja no seu reconhecimento ou na própria interpretação que lhes é conferida. Em geral, a maioria destes documentos prega uma única visão de mundo, a ocidentalizada, não contemplando as peculiaridades e necessidades locais de outras regiões do mundo. É neste sentido, portanto, que insere-se a teoria crítica dos direitos ao apontar às nuances das concepções já estabelecidas sobre direitos humanos (em especial no campo dogmático e positivo), com o condão de rompimento e ao mesmo tempo de contextualização a um novo pensamento, realizando o que entende Alfaro como uma inversão ideológica no plano dos diretos humanos (2010, p. 33-34). Esta transformação deve aproximar e interconectar os componentes apartados pela racionalidade moderna, tendo como base as demandas dos sujeitos concretos (2010, p. 35), ou ao menos entender a sociedade civil como fundamento desses direitos. A partir desta perspectiva os direitos humanos são compreendidos à luz da possibilidade de que todos possam expressar “suas plurais e diferenciadas formas de levar adiante a sua existência” (FLORES, 2009, p. 41-42). A teoria crítica dos direitos humanos objetiva a libertação do sujeito que se vê historicamente discriminado e excluído do mundo da vida com dignidade (FLORES, 2009, p. 12). Ressalta-se que, via de regra, os direitos humanos remetem à ideia de “direito” enquanto norma jurídica, de direitos previstos em “lei” e garantidos pelo Estado, fundamentados em valores (como a liberdade, a igualdade e a solidariedade) e na própria condição de ser humano (RUBIO, 2010, p. 13). Os direitos humanos não podem ser considerados como um produto cultural que surgiu em um contexto específico, limitando-se àquela realidade. Tais direitos devem transcender a órbita das relações impostas pelo capital desde o século XVI, vislumbrando-se nas diversas percepções sobre o mundo de modo natural e que são/foram construídas historicamente (FLORES, 2009, p. 18/32). Amarrar-se a um “pensamento único só nos oferece como armas de luta um conjunto de propostas normativas universalistas – os direitos humanos – absolutamente abstraídas de nossa 636

realidade concreta” (FLORES, 2009, p. 22). É a partir desta perspectiva, que o item subsequente propõe-se a analisar a teoria crítica dos direitos humanos como possibilidade para a superação de um pensamento unívoco e simplificador da realidade. 3. A TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS E A SUPERAÇÃO DO PENSAMENTO SIMPLIFICADOR DA REALIDADE A delimitação dos direitos humanos enquanto direitos e garantias previstos a todo e qualquer indivíduo, mas atrelado ao panorama jurídico de aplicação internacional, enquanto que no plano interno estes seriam direitos fundamentais, é a construção usual da doutrina positivista do tema. Essa proteção contumaz pode ser concebida de forma dupla (SARLET, 2009, p. 29), ou seja, contando com uma repetição por parte dos Estados na previsão desses direitos. Diante da inconformidade com a limitação disposta na usual compreensão

desses

direitos,

ainda

arraigado

em

um

pensamento

simplificador da realidade, é que se insere a teoria crítica dos direitos humanos; a fim de impedir a legitimação no distanciamento entre o discurso e a prática em matéria de direitos humanos. Assim o entendimento acerca da necessidade de adição da teoria crítica dá-se também pelo atual contexto científico, onde as formas de construção do conhecimento não são mais capazes de responder as indagações hodiernas, especialmente por resistir em utilizar a lógica cartesiana no tocante a questões complexas. Esse raciocínio simplificador consolida um princípio (MORIN, 1994, p. 28 ou MORIN; LE MOIGNE, 1999, p. 33) que norteia o pensamento humano moderno, e acaba por ignorar o elemento

da

complexidade

como

inerente

as

atuais

problemáticas

enfrentadas. Desse modo, a adoção de uma visão meramente formal ou que aceite o distanciamento entre teoria e prática funciona na manutenção de um pensamento limitado, do ponto de vista da complexidade científica (galgado nos parâmetros de segmentação e especialização para o conhecimento), hermenêutica (STRECK, 2011) (reproduzindo uma limitação interpretativa, 637

mas também na direção da não superação da teoria jurídica positivista) e humana, ao mesmo tempo em que premia uma lógica de permanente lesão aos direitos humanos, haja vista a impossibilidade de aproximação entre esses dois aspectos “naturaliza” o processo de violação. Por isso, a indicação de que o abismo existente entre o discurso e as ações de direitos humanos não podem ser desarticulados por resoluções singelas, parece acertado ao dispor que tal fato está ligado a nuances estruturais de organização e estruturação das sociedades modernas (GALLARDO, 2008, p. 50), as quais são altamente complexas. Desse modo apregoa-se na manutenção da simplificação do raciocínio (estabelecendo sempre relações de causa e efeito) próprio da modernidade, a dificuldade em lidar com as demandas dos novos tempos (SANTOS, 2007, p. 19), fator este que acaba por intensificar as regulações, juntamente com a redução da emancipação do ser humano, emergindo assim a face estatal da dominação e da coerção (RUBIO, 2011, p. 63-64). Sem olvidar que a formação científica do conhecimento possui ligação direta com a estrutura do mercado e das relações de trabalho (RUBIO, 2011, p. 67). Contudo, há ainda outros componentes que necessitam ser superados, juntamente ao paradigma científico, no caminho da teoria crítica dos direitos humanos, o que indica a inclusão de fatores como: (a) racionalidade e ética (em prol da vida e contrária ao sofrimento humano); (b) a inserção do pluralismo

jurídico;

(c)

e

a

incorporação

da

“pluriversalidade

e

interculturalidade do mundo nos estudos jurídicos” (RUBIO; FRUTOS, 2013, p. 17-18) (em sentido semelhante mas com outras proposições encontra-se a visão de Herrera Flores) (2000, p. 27). Esses contornos conduzem à densidade inerente à discussão hodierna dos direitos humanos, já que essa se introduz em um contexto globalizado e que se depara com linhas de crise dos mais variados campos, os quais se interligam ao seio jurídico, relativizando bases do Estado e suas instituições ou da própria estrutura da sociedade capitalista moderna. Porém, enfatizase que a inserção de componentes de densidade e modificação social, tal qual a globalização, não significa algo necessariamente negativo, ou seja, apesar de efeitos deletérios se vislumbram alternativas alinhadas aos 638

direitos humanos, conforme prelecionam as ideias de Santos, ao apresentar um ideal de globalização contra-hegemônica (focada na luta contra exclusão social) (SANTOS, 2005, p. 29). Na busca pelo rompimento com esta espécie de cadeia de passividade se apresenta a teoria crítica dos direitos humanos, sendo que a negação de características culturais e ideológicas, por exemplo, no que concernem os direitos humanos, parece ser o primeiro equívoco por parte do pensador jurídico-político contemporâneo (FLORES, 2000, p. 23), visto que tal atitude resulta na incompreensão de algumas questões hodiernas (limitação interpretativa da realidade). Tais fatores estão ligados diretamente à matriz de fundamentação desses direitos, as quais são arraigadas nas instituições e formações

sociais

modernas

(própria

da

sociedade

civil

emergente)

(GALLARDO, 2008, p. 47). Tais considerações

conduzem a uma compreensão de direitos

humanos mais ampla e complexa, ao mesmo tempo em que se nega a manter a cegueira da ineficácia dogmática frente a permanentes ofensas a esses direitos, por meio da simples alusão a não conexão entre o marco teórico e as situações fáticas nas quais eles devem ser observados. Diante disto partilha-se do pensamento de Flores quanto a uma (possível) determinação sobre os direitos humanos, não como uma verdade ou um conceito fechado (demonstrando um alinhamento aos progressos alcançados pelos estudos hermenêuticos), mas sim como uma delimitação no horizonte utópico. Portanto, se queremos definir os direitos humanos, ou o que é o mesmo, delimitá-los dos interesses dos poderosos e trazê-los as reivindicações, anseios e valores dos indivíduos, grupos e culturas subordinadas, devemos entende-los dentro dessa concepção contextualizada de direito: conjunto de processos dinâmicos de confrontação de interesses que lutam por ver reconhecidas as suas propostas partindo de diferentes posições de poder. Desde aqui os direitos humanos devem ser definidos como isso, como sistemas de objetos (valores, normas, instituições) e sistema de ações (práticas sociais) que possibilitam a abertura e a consolidação de espaços de luta pela dignidade humana. É dizer, marcos de relação que possibilitam alternativas e tendem a garantizar possibilidades de ação amplas no tempo e no espaço a fim de alcançar os valores da vida, da liberdade e da igualdade. (FLORES, 2000, p. 52-53)

Com fulcro nessa percepção vislumbram-se caracteres já citados no 639

sentido de superação moderna da racionalidade juntamente com a inclusão das demandas concretas dos seres humanos como parâmetro de debate e formação de interesses em um determinado espaço e tempo. Isso indica que o conflito é visto sob a perspectiva contributiva de construção do conhecimento, bem como dos direitos humanos, abandonando o atual modelo simplista de consenso, o qual além de insatisfatório, ainda não inclui os fatores de complexidade, racionalidade ética e de pluralidade do direito (RUBIO; FRUTOS, 2013, p. 22-33). A concepção de direitos humanos alicerçada na dignidade humana e no sujeito como centro teórico conduz ao modelo idealizado por Flores e Rubio, denominado de interculturalismo crítico ou de resistência, servindo de base as suas propostas críticas aos direitos humanos. Nesse modelo os autores

apostam

pela

“fecundação

mútua

de

culturas

e

diversas

modalidades de saber e conhecer, considerando que todas as culturas, que são incompletas, se constroem” por meio de embates de “signos, saberes e significações, onde permanentemente se transformam as relações sociais, culturais e institucionais, e essas relações é onde se edificam os significados” (RUBIO; FRUTOS, 2013, p. 35). A

determinação

aditiva

do

conflito

e

das

múltiplas

culturas

transparece a busca e o próprio desenvolvimento dos direitos humanos pautada por uma noção de igualdade e diferença conforme o pensamento de Santos em sua delimitação de que “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos direito a ser diferentes quando a igualdade nos

descaracteriza”

imprescindível

à

(SANTOS,

combinação

2010, de

p.

matrizes

147).

Esse

posteriores,

componente bem

como

é a

consideração de que os embates que compõem os direitos humanos são dispostos pelos indivíduos em diferentes posições de poder, algo valioso nas leituras da intervenção coercitiva estatal. 4. AS CONSTRIBUIÇÕES DO GIRO DECOLONIAL PARA A TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS A compreensão do mundo, em se tratando de direitos humanos, não 640

deve resumir-se à compreensão ocidental do mundo, ou a nenhuma outra perspectiva reducionista e centralizadora. É neste sentido, portanto, que insere-se a proposta do pensamento decolonial, calcado na premissa de desobediência

epistêmica,

trazendo

a

urgência

e

a

necessidade

de

descolonizar o conhecimento (BRAGATO, 2014, p. 2011). Colonialidade é um conceito que busca refletir a dependência existente entre centro e periferia não restrito à ideia de economia e política, mas alcançando também a produção do conhecimento, que é suscetível à colonização. “A colonialidade é uma característica do poder exercido nas relações de dominação colonial da modernidade e nisso se diferencia do colonialismo em si, que é um processo de poder”. (BRAGATO, 2014, p. 212). A necessidade do olhar decolonial torna-se evidente no momento em que se percebe que os direitos humanos não se efetivam como direitos humanos em várias regiões do mundo, em especial no que tange aos países do sul global e para perceber isto basta que “consultemos unicamente os informes anuais promovidos pelas Nações Unidas e constataremos o abismo cada vez maior que existe entre o proclamado na declaração e as realidades concretas nas quais vivem quatro quintos partes da humanidade”. (FLORES, 2009, p. 20). Aquilo que vem se denominando como “giro decolonial” “basicamente significa

o

movimento

de

resistência

teórico

e

prático

político

e

epistemológico, a lógica da modernidade/colonialidade”. (BALLESTRIN, 2013, p.105), demonstrando a necessidade de olhar para os direitos humanos com uma visão limpa, não influenciada por um conhecimento produzido de forma desconcertada com a realidade, acolhendo-se o que se constrói

e

que

se

coaduna

com

as

culturas

e

localidades

não

ocidentais/europeias. Enquanto a forma de perceber a cultura e os comportamentos regionais

passar pelo

filtro

europeu

de

produção

e dominação

do

conhecimento, não há como se pensar em teoria crítica dos direitos humanos, pois “a diferença colonial epistêmica é cúmplice do universalismo, sexismo e racismo”. (BALLESTRIN, 2013, p.104). A colonialidade é um conceito que se refere a um amplo domínio da experiência humana 641

conforme:

the logic of coloniality can be understood as working through four wide domains of human experience: (1) the economic: appropriation of land, exploitation of labor, and control of finance; (2) the political: control of authority; (3) the civic: control of gender and sexuality; (4) the epistemic and the subjective/personal: control of knowledge and subjectivity. (MIGNOLO, 2005, p. 11).

A colonização, enquanto processo fático de imposição e presença física de outro Estado soberano impondo em outro suas regras e cultura, ainda que não se dê sempre de tal forma, é um processo que persiste e ocorre de múltiplas formas, seja na produção do conhecimento ou na organização político-jurídica, e muitas vezes, efetua-se até mesmo de modo camuflado. Ideologicamente muitas realidades foram usurpadas a partir da “ideologiamundo” e, por isso, “necessitamos lutar com as mesmas armas que eles utilizam a ideologia. É preciso, pois, lutar ideologicamente para recuperar o mundo. É nesse terreno, o da ideologia, que colocamos em jogo nossa própria possibilidade de resistência real”. (FLORES, 2009, p. 22). É fundamental que o olhar seja um olhar decolonial, que resgate o que realmente se relaciona e é inerente aos povos em suas peculiaridades, que tal olhar aliado à perspectiva da teoria crítica dos direitos humanos rejeite o senso comum, demonstrando que os direitos humanos só serão realidade se construídos cotidianamente com respeito e de acordo com as singularidades de cada cultura, considerando sempre o respeito ao próximo e a dignidade humana, primando-se pelo caráter emancipador de tais direitos. Os direitos humanos “são práticas que se desenvolvem diariamente, em todo tempo e em todo lugar e não se reduzem a uma única dimensão normativa, filosófica ou institucional, tampouco a um único momento histórico que lhe dê origem” (RUBIO, 2010, p. 18-19). Os direitos humanos são construídos a todo o tempo, seja nas relações mais simples ocorridas no cotidiano até as mais complexas, são realizados em atos de respeito e consideração com o próximo, não apenas por leis a atos jurídicos. Do mesmo modo, são também violados não apenas pelo Estado ao não concretizar 642

direitos básicos garantidos pela Constituição e/ou pela Declaração Universal dos Direito Humanos, mas em comportamentos simples que discriminam e violam a dignidade humana, que não compreendem o outro pelo modo de ser e se reconhecer, pela forma como reage e interage com o mundo. No decorrer da história, os direitos humanos estiveram conectados às ideias e aos dizeres de alguns filósofos e pensadores5, porém, a celeuma não reside nas respectivas considerações destes, mas sim, no momento em que se desconsidera que os direitos humanos são (também) produções sóciohistóricas e não apenas produções teórico-filosóficas (RUBIO, 2010, p. 14). Eminentemente que as reflexões e obras acerca dos direitos humanos exerceram e exercem papel importante, além de ampla influência, na construção e consolidação dos direitos humanos, todavia, há de se ponderar que tais reflexões restringem-se ao intelecto de seleto grupo de pensadores europeus, que inicialmente no século XVII, iniciaram suas indagações e meditações sobre tal tema. No contexto o moderno, o problema reside em que foi somente o imaginário burguês que se impôs aos demais imaginários (operário, feminista, étnico, ambiental...) estabelecendo um padrão que todos deveriam seguir e moldando uma figura à qual todos deviam adaptar-se, impedindo a possibilidade de construir novos padrões e novas figuras (RUBIO, 2010, p. 17-18).

Logo, é de se pensar que os anseios e as necessidades dos muitos grupos que não correspondiam aos ideais burgueses da Revolução Francesa foram desconsiderados na construção das premissas que irão embasar a concepção (inicial) de direitos humanos. Não obstante, tais ideais foram erigidos sob a égide do mundo ocidental, no contexto europeu, no qual figurava o homem branco, heterossexual e cristão como sinônimo de estereótipo ideal da sociedade, desta forma, mulheres, crianças, negros, índios, deficientes, entre tantas outras possibilidades, não eram detentores de direitos (humanos) àquela época. A própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, oriunda dos preceitos da Revolução Francesa, Neste sentido, Sanchez Rubio em sua obra elenca alguns pensadores e filósofos como John Locke, Francisco de Vitória, Rousseau, Hobbes, Kant, Norberto Bobbio, Ferrajoli, Habermas. (2010, p. 14). 5

643

“reconhecia direitos a um protótipo bem específico da natureza humana: o homem (sexo masculino), branco e, de preferência, dono de propriedades”. (DIAS; COSTA, 2013, p. 32). Sob este prisma, percebe-se que não há teoria crítica de direitos humanos sem olhar decolonial, pois, os direitos humanos concebidos na modernidade ocidental desde o início não albergavam outras culturas que não a europeia. Ao revés, as culturas hegemônicas encasulavam-se sobre si mesmas e visualizam o restante que não se enquadrava “como bárbaro, o selvagem, o incivilizado e, como consequência, suscetível de ser colonizado pelo que se autodenomina civilização”. (FLORES, 2009, p. 18). Neste

contexto,

os

direitos

humanos

foram

transportados

e

instaurados em outras partes do mundo como “um projeto moral, jurídico e político criado na Modernidade Ocidental” (BRAGATO, 2014, p. 205), entretanto, como resultado de tal dominação europeia e imposição de seus valores, tais direitos estavam (e estão) desconectados com a realidade e mentalidade de outros povos e culturas. Assim, a despeito da independência de vários povos colonizados isto não representou “a ruptura com esta teoria da história. Em boa parte, prosseguiram-na e é por isso que a zona de contacto continuou a ser uma zona colonial, apesar de ter terminado o colonialismo político”. (SANTOS, 2007, p. 32). Persiste hodiernamente, ainda no século XXI, ideias produzidas pelos pensadores europeus dos séculos em contextos diferentes dos quais se tenta efetivá-las e é preciso quebrar este vínculo, pois tais ideias não representam as necessidades e peculiaridades de outras realidades que são vividas fora do contexto europeu, não alcança as carências das mulheres, dos índios, dos negros, das crianças e de qualquer outro que não seja homem, branco, heterossexual e cristão. Desta forma, é indispensável que no trato de todas as questões relacionadas aos direitos humanos em sua perspectiva crítica seja ultrapassada a visão engessada e minimalista que reduz os direitos humanos a uma ideia “oficial” àquilo que está previsto em documentos internacionais, amparando-se “as nossas próprias produções culturais, políticas,

étnicas,

sexuais,

econômicas

e

jurídicas,

com

autonomia,

responsabilidade e autoestima em todos aqueles espaços e lugares sociais 644

onde se forjam as relações humanas”. (RUBIO, 2010, p. 11). A partir de uma mirada decolonial e crítica dos direitos humanos será possível

(re)afirmar

as

diferenças,

reconhecê-las

e

preservá-las,

concretizando-se o reconhecimento de múltiplas identidades e percepções diferenciadas sobre o mundo, redefinindo o contexto a partir de uma construção

que

atenda

às

necessidades

e

peculiaridades

locais,

assegurando-se o caráter emancipador dos direitos humanos. A união da perspectiva decolonial com a teoria crítica dos direitos humanos almeja possibilitar a superação de uma pensamento unívoco e simplificador da realidade, rejeitando-se o modelo simplista de consenso que não inclui a pluralidade

e

o

reconhecimento

das

diferenças

como

elementos

fundamentais para a concretização dos direitos humanos. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A despeito do significado e influência que possuem os documentos internacionais sobre direitos humanos, tanto no seu reconhecimento como na busca pela sua efetivação, percebe-se que tais direitos não se resumem a eles. Os direitos humanos não são, e não podem ser compreendidos, como produto cultural de um único contexto específico, de uma única cultura, de uma única percepção, logo, tem-se a necessidade de transcendermos algumas percepções históricas que foram continuamente reproduzidas e que, em verdade, não correspondem à realidade plural na qual os direitos humanos precisam ser compreendidos. Uma compreensão mais ampla e complexa, que não mantenha a ineficácia dogmática frente a permanentes violações aos direitos humanos, bem como a concepção de um conceito enquanto delimitação utópica e não uma verdade absoluta são perspectivas inseridas pela teoria crítica dos direitos humanos, que se demonstra mais adequada e coerente com a compreensão plural e emancipadora que tais direitos carecem. Assim, incluem-se as contribuições do giro decolonial para a perspectiva crítica, já que com tal movimento intenciona-se a ruptura de ideias universalizantes no sentido de impor uma única percepção sobre os 645

direitos humanos, almeja-se uma mirada conectada com as realidades locais acolhendo-se o que se constrói e o que se coaduna com as culturas e localidades não ocidentais/europeias. Não obstante, rejeita-se o senso comum, demonstrando-se que os direitos humanos só serão efetivados se construídos cotidianamente com respeito e de acordo com as singularidades de cada cultura, considerando sempre o respeito ao próximo e a dignidade humana, primando-se pelo caráter emancipador de tais direitos. É desta forma que a união da perspectiva decolonial com a teoria crítica dos direitos humanos possibilita a superação de um pensamento unívoco e simplificador da realidade, refutando-se o modelo simplista de consenso

que

não

inclui

a

pluralidade

e

o

reconhecimento

das

dissemelhanças como elementos primordiais para o respeito e concretização dos direitos humanos, encarando o mundo nas suas diferenças e reconhecendo-as para respeitá-las. REFERÊNCIAS ALFARO, Norman José Solórzano. Derecho moderno e inversión ideológica: una mirada desde los derechos humanos. In: RUBIO, David Sánchez; FLORES, Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de. Direitos humanos e globalização: fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista brasileira de ciência política. Brasília, n.11, mai/ago 2013, p. 89-117. BRAGATO, Fernando Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos direitos humanos: contribuições da descolonialidade. Revista novos estudos jurídicos, Itajaí, v. 19, n. 1, jan/abr 2014, p. 201-230. CARVALHO, Júlio Marino de. Os direitos humanos no tempo e no espaço. Brasília: Brasília Jurídica, 1998. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. DIAS, Felipe da Veiga. COSTA, Marli Marlene Moraes da. Sistema punitivo e gênero: uma abordagem alternativa a partir dos direitos humanos. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. GALLARDO, Helio. Teoría crítica: matriz y posibilidad de derechos 646

humanos. Murcia: s.e., 2008. FLORES, Joaquín Herrera. Hacia una visión compleja de los derechos humanos. In: FLORES, Joaquín Herrera (ed.). El vuelo de anteo – derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée, 2000. ______. Teoria crítica dos direitos humanos. Os direitos humanos como produtos culturais. Versão ebook. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. MIGNOLO, Walter D. The Idea of America Latina. Malden: Blackwell publishing, 2005. MORIN, Edgar. Introducción al pensamiento complejo. Madrid: Gedisa, 1994. _____; LE MOIGNE, Jean-Louis. L’Harmattan: Montreal, 1999.

L’intelligence

de

la

complexité.

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648

DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA CRÍTICA: AFINAL, ONDE SE SITUAM? Iuri Bolesina1 Tássia A. Gervasoni2 1.INTRODUÇÃO Entre mitos e verdades que compõem o pensamento jurídico, há uma ideia razoavelmente coerente e relativamente aceita de que alguns preceitos são tão genéricos, em um sentido positivo, que é praticamente impossível contraditá-los. Por exemplo, ninguém pode negar, ou melhor, ninguém conseguiria racional e cientificamente negar a importância da dignidade da pessoa humana enquanto vetor das Constituições e Estados de Direito democráticos. Ou então, grite “liberdade” em qualquer arremedo de multidão e o apoio virá maciçamente, pois não há quem se oponha a ideia de “liberdade”. Isso significa que alguns conceitos foram de tal forma absorvidos pelo ideário jurídico e, também, social, que a sua invocação praticamente deixa de reclamar justificação. O lado sombrio dessa adesão acrítica é que referidos

preceitos

e

discursos,

a

despeito

de

sua

vasta

e

sólida

fundamentação, caem na banalização, são corroídos pelos equívocos cotidianos que se dissipam irrefreavelmente, são manipulados e distorcidos, vão se consolidando pelo lado avesso. É o fiel retrato do que ocorre com o discurso dos direitos humanos ao longo dos últimos anos: de revolucionário, emancipador e universal a conservador, preconceituoso e maniqueísta. Não que os direitos humanos e seus fundamentos tenham se convertido naquilo que combatiam, mas essa tem sido a sua destinação enquanto discurso (assujeitador), sobretudo,

Doutorando e Mestre em Direito pela UNISC. Especialista em Direito Civil pela Faculdade Meridional – IMED. Integrante do Grupo de Pesquisa “Intersecções jurídicas entre o público e o privado”, vinculado ao CNPq. Professor da faculdade de direito da IMED. Advogado. Email: [email protected]. 2 Doutoranda em Direito pela UNISINOS/Universidad de Sevilla (Espanha). Bolsista CAPES (PDSE – Proc. nº 12673-13-7). Mestre e Graduada em Direito pela UNISC. Professora na FAMES. Integrante de Grupos de Pesquisa vinculados ao CNPq. Advogada. Email: [email protected]. 1

649

popular. A pergunta que motiva o presente esforço de reversão desse quadro, portanto, “onde estão os direitos humanos?”, é repetida acusatoriamente todos os dias na televisão, nas redes sociais, nas conversas informais de bares e esquinas, na consciência de muitas pessoas e, não raro, em bancos acadêmicos (nos quais humanos estão sentados). Como se os direitos humanos fossem algo separado e separável do próprio ser humano, de cada um que (se) questiona a sua validade e importância. Em uma tentativa de resposta a essa angustiante pergunta que empurra os direitos humanos a uma armadilha perversa, este trabalho objetiva

refletir

sobre

o

lugar

desses

direitos

e

seu

discurso

de

fundamentação ao longo do desenvolvimento da civilização, resgatando de fatos históricos suas raízes e relatando ocorrências das mais atuais para demonstrar que sempre estiveram aptos a cumprir o seu papel, contra todas as adversidades impostas por elementos estatais ou privados, em nome de interesses os mais diversos (políticos, econômicos, religiosos...). Para tanto, valer-se-á das contribuições da teoria crítica dos direitos humanos, na lógica da hermenêutica-fenomenológica, a fim de trazer à luz aquilo que se oculta naquilo que se mostra nos discursos sobre direitos humanos. Logo, a linguagem deixa de ser uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, passando a ser condição de possibilidade. O processo interpretativo deixa de ser reprodutivo e passa a ser produtivo, coadunando-se, assim, com as balizas obrigatórias de toda análise através de uma teoria crítica. Em assim sendo, afasta-se, por exigência e coerência lógica, qualquer método(logia) dogmático de construção textual. Ao lado disso, destaca-se que a escolha dos referenciais teóricos não significa exaustão; há, ao lado dos autores utilizados, outros de contribuição destacada, mas que, por limitações formais do texto e opção digressiva, acabaram não sendo inseridos. O que são os direitos humanos, qual a sua importância e verdadeiro sentido

e,

principalmente,

concretização,

são

as

quem

respostas

sãos que

os

aqui

responsáveis seguem



pela

sua

direcionadas,

notadamente, aqueles que questionam “onde estão os direitos humanos?”. 650

2. A TÍTULO DE PRÓLOGO: a controvérsia sobre o que são direitos humanos – (desa)fixando um sentido O que são direitos humanos? Há, em máximo resumo (pois a teoria é muito mais profunda e complexa do que se sintetiza neste parágrafo), ao menos dois grandes eixos que tentam responder a tal pergunta de modo mais técnico e construído. No primeiro eixo, reside uma ideia mais “racionalizada e rígida” do que são direitos humanos, sendo eles aqueles direitos que estão positivados nos tratados (pactos, declarações, etc) internacionais e que podem ser trazidos para as Constituições dos países na forma de direitos fundamentais (SARLET, 2010, p. 29). É nesta área que também reside o entendimento de que direitos humanos não são direitos propriamente ditos, mas, sim, aspirações, valores, ideais de uma dada sociedade, em um determinado tempo. Direitos seriam apenas àquelas aspirações que, positivadas, são exigíveis de uma autoridade política, integrantes, portanto, da ordem jurídica de um determinado Estado (MACHADO, 2013, p. 254). No segundo eixo, defende-se a ideia de que direitos humanos são direitos (e deveres) imanentes à condição humana independentemente de qualquer legislação que os liste ou autoridade que os tutele; existem, portanto, sem a necessidade de estarem escritos em quaisquer documentos, pois são, assim, anteriores a eles, sendo considerados direitos humanos, justamente pelo fato de pertencerem à condição humana e não por estarem positivados. Mais modernamente advoga-se no sentido de que os direitos advindos da condição humana não são estanques (imutáveis, atemporais, absolutos, anespaciais), pois seriam eles dinâmicos no espaço e no tempo (BEUCHOT, 1999, p. 45-46), uma vez que se reconhece que a história não tem fim quando se fala em direitos humanos, pois ao mesmo tempo em que sempre haverá riscos à pessoa humana, em igual medida existirão direitos inerentes a esses riscos (QUEIROZ, 2002, p. 49). Existe, contudo, uma terceira via que, de certo modo, costura os dois eixos e apresenta uma perspectiva bastante adequada para se (re)pensar 651

direitos humanos para além da insuficiente dicotomia direito positivo versus direito natural. Tal perspectiva, a teor do que propunha Roosevelt (1958), sinaliza que direitos humanos residem em práticas concretas (pessoais, sociais, simbólicas, culturais, institucionais) que se opõem a algum tipo de opressão, plasmadas no respeito integral ao próximo e no exercício pleno da alteridade, tudo em uma perspectiva de valorização pré-violatória (RUBIO, 2007, p. 14-30), de sorte que direitos humanos repousariam em pequenas ações, como ajudar alguém a atravessar a rua, e em grandes ações, como a luta por água potável. Direitos humanos, desta forma, seriam aqueles direitos reconhecidos (em nível internacional ou nacional) em prol da dignidade humana, e seriam também aquelas condutas que valorizassem a condição de seres humanos, praticadas por qualquer um, em suas relações humanas diárias. Desta forma, direitos humanos sintetizam-se em situações reais (pois, direitos humanos não existem em “abstrato”) de respeito à condição humana do próximo, que são realizadas/desfrutadas no cotidiano e não dependem, necessariamente, de um ente maior e mais poderoso para sua concretização (RUBIO, 2007, p. 30). Por certo que os Estados guardam um importante papel nesta tarefa de tutela (pré/pós violatória), mas não são os únicos sujeitos a terem a oportunidade de agir. Tal postura, aliás, transforma a anestesia em sinestesia e sinergia na proteção e promoção dos direitos humanos, rejeita a ideia de um “rol engessado e dado de direitos humanos” e abranda o abismo existente entre o violado e o assegurado, entre o dito e o realizado (RUBIO, 2007, p. 13). E, perceba-se que, longe de querer “banalizar” a ideia de direitos humanos, sob a errônea visão de que “tudo é direito humano”, essa perspectiva visa e atinge o revés, que é uma revisão do “pensar direitos humanos” que, infelizmente, segue amarrada à uma cultura passiva, limitada, de impotência e que teimosamente divide direitos humanos em “teoria” e “prática” sem se dar conta dos prejuízos que tal distinção acarreta (BARRETO, 2010, p. 19). Se em um lado está o risco da “banalização”, no outro extremo está o risco do engessamento (standardização) simplista dos direitos humanos (só são direitos humanos aquilo que nós dizemos para eles 652

que são direitos humanos) (RUBIO, 2010, p. 11). Mas, afinal, onde estão os direitos humanos? 3. OS DIREITOS HUMANOS ESTÃO NOS “DEFENSORES” DIÁRIOS E COMUNS E NOS PEQUENOS/GRANDES ATOS DO DIA-A-DIA Recentemente (2013) Felix Kjellberg propôs (em parceria com o projeto Charity: Water) uma iniciativa que angariou mais de 15 mil seguidores e arrecadou U$ 446.462,00 em uma campanha em favor da entrega de bombas de água potável, sustentáveis e comunitárias para comunidades carentes de países subdesenvolvidos. Isso possibilitou que – inicialmente – 6.868 pessoas obtivessem acesso a este bem tão caro aos humanos e à própria vida condigna (CHARITY WATER, 2013). Mas quem é Felix Kjellberg e o que ele possui de especial para ter registrado este feito? Felix, cansado de uma espécie de “bulling da sociedade” , resolveu usar seu carisma e criatividade para fazer o que gostava: jogar videogame. Inaugurou um canal no Youtube onde faz gameplays, epitetou-se de “PewDiePie” e, anos depois, é reconhecido como o “Rei do Youtube” (o canal com o maior número de inscritos e visualizações). Basicamente: nada de especial. Apenas carisma e criatividade. Felix não é um grande empresário (tampouco uma grande empresa/corporação); não é um Estado/Comunidade Internacional; não é uma organização nacional ou internacional; Felix é um ser humano comum (atualmente mais famoso que a maioria, é preciso reconhecer) que resolveu promover direitos humanos. Algo semelhante ocorre no Brasil com o grupo “Doutores da Alegria” (2013). Trata-se de uma organização civil sem fins lucrativos, que há duas décadas visita crianças hospitalizadas visando alegrá-las e confortá-las. Fantasiados de palhaços, brincam de médicos com instrumentos nada convencionais (cornetas, línguas de sogra, narizes vermelhos, flores de lapela gigantes, enfim, todo o aparato de um palhaço circense que se preze) transformando o ambiente hospitalar, florescendo risos nas crianças e entregando-lhes dignidade através da alegria. Falando-se em hospitais, é preciso fazer menção ao programa “Médicos sem Fronteiras” (2013), que 653

desde 1971 atua para levar apoio e saúde aos que dela carecem. Hoje são mais de 34 mil profissionais, de diferentes áreas e nacionalidades, que compõem a organização que se espalha por mais de 70 países. No mesmo sentido estão os movimentos sociais populares que (realmente) aspiram opor-se a algum tipo de opressão – normalmente reveladas em alguma discriminação e/ou preconceito e em excessos de poder (econômico, social, sexual, dentro outros). Ditos movimentos (que representam manifestações sociais/culturais e, em geral, começam nãoviolentos, porém pelo descaso da outra parte envolvida tendem a demonstrar focos de violência) espelham processos de lutas e de ação social que visam alargar e consolidar espaços de direitos humanos que, para aquele grupo, em tese, vêm sendo negligenciados em alguma medida. Manifestações desta monta costumam questionar standards (padrões) oficiais, habituais e/ou insuficientemente

institucionalizados

de

direitos

humanos

em

uma

sociedade (RUBIO, 2010, p. 17). São exemplos contemporâneos os “fazendeiros de Larzac”, na França, em 1971 (LIU, 2011), a “luta pela água” em Cochabamba, na Bolívia, em 2000 (CONSTANCE, 2005), a “queda do ditador Mubarak”, no Egito, em 2011 (BACHEGA, 2014). Todavia, existe igualmente algo semelhante a uma “cifra oculta” dos direitos humanos, composta por todas aquelas pessoas que nas suas relações humanas rotineiras adotam posturas de (des)concretização de direitos humanos ou, como quer Rubio (2010, p. 12): seres humanos que fazem e desfazem direitos humanos a todo momento, em toda relação humana social. Aquele que ajuda o deficiente visual a caminhar numa calçada danificada; aquele que auxilia a criança a atravessar a rua; aquele que corre estender o seu guarda-chuva ao outro que se molha na chuva; aquele que é generoso ou tolerante com o colega de trabalho; são pessoas que fazem direitos humanos em pequenos atos que tendem a não ser noticiados e conhecidos pelos demais. Tratam-se de verdadeiros pequenosgrandes atos de direitos humanos do cotidiano realizados por pessoas comuns, em relações recíprocas e solidárias. Representam, em certa medida, o reconhecer dos direitos do “outro” (BARRETO, 2010, p. 14). É interessante, em todos esses casos mencionados (reais e hipotéticos), 654

que o primeiro sentimento que se sobressalta no intérprete é que essas pessoas estavam “ajudando” outras e, de fato, estavam, porém, muito mais que uma ajuda, essas pessoas comuns estavam concretizando direitos humanos (pois ninguém há de negar que naqueles casos é perceptível o direito à liberdade, à igualdade, à saúde, à democracia, enfim, à dignidade humana) e certamente não porque se sentiram compelidos a cumprir a Declaração Universal de Direitos Humanos. Não significa dizer, entretanto, que essas pessoas sempre fazem direitos humanos; significa, sem embargo, que essas pessoas, naquelas relações humanas concretas, fizeram direitos humanos. Em outras relações, em sentido inverso e equivocadamente, poderiam desfazer direitos humanos. É esse movimento (fazer/desfazer) que revela a dinâmica aberta e ativa dos direitos humanos nas relações humanas e vice-versa (das relações humanas nos direitos humanos): uma lógica constante e recíproca. Essa dinâmica se opõe, em distinta medida, ao senso comum e a uma cultura simplista acerca de direitos humanos, na medida em que valoriza (e aclara) que: (1) muito embora os estudiosos e filósofos que trataram da temática direitos humanos sejam referências privilegiadas no assunto, não são eles, apenas por teorizarem, que criam os direitos humanos, pois como se viu direitos humanos se constroem e desconstroem no dia-a-dia, por todos; (2) não são apenas os eventos históricos e os reconhecimentos oficiais que fazem e desfazem direitos humanos. Pensar assim seria minimalista e desconsideraria as pequenas-grandes lutas do cotidiano que nem sempre são vistas, tampouco tuteladas; e (3) direitos humanos não existem apenas quando violados e tutelados (ou não) pelo Estado ou pela Comunidade Internacional (visão pós-violatória). É preciso se pensar direitos humanos em um duplo sentido: num sentido pós-violatório e num sentido pré-violatório, com amplo e incisivo destaque para o segundo. Ao lado da dimensão formal (teórica, normativa, institucional) dos direitos humanos reside uma dimensão que se realiza corriqueiramente, a todo o momento, nas relações humanas sociais. Então, sim, direitos humanos também residem nos “defensores” diários, nas pessoas comuns que agem concretizando direitos humanos nos pequenos/grandes atos do 655

dia-a-dia. 4. OS DIREITOS HUMANOS TAMBÉM ESTÃO NOS ATOS HISTÓRICOS E NOS EMBLEMÁTICOS “DEFENSORES” DOS DIREITOS HUMANOS No ano de 1963, na Cidade de Birmingham, no estado americano do Alabama, um homem liderou expressivas manifestações pacíficas em prol da liberdade, dos direitos civis para os negros e da não discriminação e segregação racial. Era ele Martin Luther King (1929-1968). Todas as manifestações – notadamente as ocorridas a partir de 1963 – foram enfrentadas por forças policiais que faziam uso de cães e jatos d´água de mangueiras de incêndio. Em agosto 1964, King, aos pés do Lincon Memorial, discursou o seu famoso “I have a dream” para mais de 250 mil pessoas, advogando a necessidade da tolerância e da coexistência harmoniosa e pacífica

entre

brancos

e

negros,

assim

como

a

necessidade

do

reconhecimento dos direitos civis aos negros (WHITMAN, 2013). Ironicamente, 100 anos antes, Abraham Lincoln havia assinado a Proclamação da Emancipação, abolindo a escravidão; 16 anos antes, os Estados Unidos havia ratificado a Declaração Universal dos Direitos do Homem – que nos artigos 1º e 2º preveem a igual dignidade, liberdade e direitos para qualquer “raça” –; e 10 anos antes, a Suprema Corte americana havia declarado inconstitucional a política do “Separate but equal” (Brown vs. Board of Education), que previa que brancos e negros eram iguais, mas deviam ficar separados. Então, com todos estes antecedentes em prol da igualdade racial e dos direitos civis, por que Martin Luther King precisou sair em defesa dos direitos humanos? Tal como King, outro nome de grande relevância histórica e simbólica para os direitos humanos foi Gandhi (1869-1948). Reconhecido pelo epiteto de Mahatma (“grande espírito”), Gandhi foi um emblemático defensor dos direitos humanos, tendo militado em prol da tolerância religiosa, da harmonia étnica e da liberdade e da igualdade das mulheres em relação aos homens. Não obstante tenha se valido da tática da desobediência civil não violenta (satyagraha) (quiçá justamente por isso), Gandhi foi inúmeras vezes 656

aprisionado. É reconhecidamente uma inspiração iluminada no assunto direitos humanos (LELYVELD, 2012). Há também na história contemporânea o homem que, ao todo, ficou 27 anos da sua vida preso (cerca de uma década em uma cela de 4m²): Nelson Mandela (1918-2013). Mandela foi o grande nome da luta contra a segregação racial na África do Sul e em prol dos direitos civis e políticos da comunidade negra. Em geral adepto das ações não-violentas, após um episódio trágico resolveu valer-se da violência para fazer frente ao regime sul africano: foi preso e condenado à prisão perpétua. Durante a sua reclusão, reviu conceitos e voltou a apoiar ações não-violentas. Por forças civis e políticas internacionais e locais, Mandela foi solto no ano de 1990, recebendo o Nobel da Paz em 1993 e tornando-se Presidente em 1994 e o principal nome responsável pelo fim do regime segregacionista daquele país (MANDELA, 2012, p. 361-477/523-580). Por fim, mas não por último, Eleanor Roosvelt (1884-1962) que, sem embargo de todos os seus esforços em prol dos direitos das mulheres, é reconhecida pelos seus efetivos esforços para a aprovação da Declaração Universal dos Direito Humanos (BEASLEY; SHULMAN; BEASLEY, 2001, 535-540). Pode-se dizer que esses são alguns dos “paladinos dos direitos humanos” (YOUTH FOR HUMAN RIGHTS, 2014), representando alguns dos marcos personificados na história dos direitos humanos que não só fizeram a diferença como se tornaram gigantescas referências públicas na temática “luta contra algum tipo de opressão e defesa dos direitos humanos”. Por certo que se valeram de referenciais teóricos proporcionados por outros grandes nomes (os “paladinos teóricos dos direitos humanos”), como Locke, Hobbes, Rousseau e Kant – para ficar apenas nesses – que teorizaram as bases do pensamento de valorização e respeito aos direitos humanos. A história, em termos de direitos humanos, parece ser espiralada, intervalando momentos de tensão, crise e bonança, num ciclo contínuo que justifica o aparecimento de tantos nomes simbólicos nesta luta. Foram e são essas pessoas que demonstram que o sucesso dos direitos humanos não depende exclusivamente da vontade política dos Estados – apesar do 657

secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, asseverar o contrário (ONU 2013). A propósito, cumpre o registro do fato notório de que não raro é “contra” o próprio Estado que se trava a luta pela conquista de tais direitos; mesmo se defendendo a sua natureza inata ao ser humano, os direitos humanos dificilmente foram e são reconhecidos sem um processo de luta, merecendose destacar que, apesar de não serem “concessões” estatais, pois o ato que os institucionaliza opera justo “reconhecimento”, isso não afasta o seu caráter de conquistas. A história é a prova definitiva de que os direitos têm sido praticamente arrancados do poder estatal; os deveres a que lhes correspondem foram, neste sentido, efetivamente impostos ao Estado. E é preciso assinalar a coragem e a determinação daqueles que lutaram no passado para a formalização de tais direitos, pois para garantir o direito de greve, por exemplo, as pessoas tiveram primeiro que realizar greves (greves as quais não tinham direito). Ou seja, as pessoas tiveram que reunir poder social e político para alterar a relação de forças condicionante e pré-existente (CAPELLA, 1993, p. 148). Então, sim, é possível dizer que nessas emblemáticas figuras, ou pelo menos nos seus ideais e nas suas lutas, residem direitos humanos. 5. IGUALMENTE, OS DIREITOS HUMANOS ESTÃO NOS DOCUMENTOS E INSTITUIÇÕES OFICIAIS No Brasil, entre os anos de 1983 e 1984, Maria da Penha Maia Fernandes sofreu dois ataques do seu companheiro que intentava matá-la. No primeiro, Maria foi alvejada enquanto dormia. Sobreviveu, mas ficou paraplégica. Na ausência de “leis” que lhe alcançassem alguma proteção, Maria se viu obrigada a voltar para a casa de seu companheiro. Tempos depois do primeiro ataque ocorre o segundo: o companheiro de Maria tenta eletrocutá-la enquanto a mulher paraplégica tomava banho. Sobreviveu. Tão-só em setembro de 1984 o companheiro de Maria é denunciado pelo Ministério Público por tentativa de homicídio. Inicia-se um processo judicial que, entre prazos, recursos, anulações de atos e julgamentos, somente encontra seu termo em 2002. Antes disso, contudo, Maria, em agosto de 658

1998, inconformada com a sua situação, com o descaso do Estado brasileiro (o qual voltaria a ser verificado na CIDH) e com a morosidade do Poder Judiciário, protocoliza uma denúncia na Comissão Internacional de Direitos Humanos, a qual engendra uma “recomendação” para o Estado Brasileiro, no ano de 2001. Diante disso, no ano de 2006, atendendo às recomendações da CIDH, às determinações Constitucionais e aos predicados de direitos humanos, o Brasil inaugura a Lei “Maria da Penha” (11.340/06), que dispõe sobre a tutela e a proteção nos casos de violência doméstica contra as mulheres (CAMPOS, 2008, p. 19-22). Para ficar neste território brasileiro, outro caso é o do trabalho infantil. O PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) mais atual realizado pelo IBGE, no ano de 2010 (e publicado em 2013 [IBGE, 2013]), revelou sobre a temática que existiam cerca de 3,7 milhões crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalhando. O número, apesar de uma melhora significativa em relação ao ano de 2002, quando havia cerca de 7,4 milhões de crianças e adolescentes trabalhando, continua longe do cumprimento das predisposições de direitos humanos sobre o assunto. Outro número negativamente

interessante

é

que

dessa

quantidade

de

crianças

e

adolescentes, cerca da metade possui jornada de trabalho de 40 horas ou mais. O que há de comum em ambos os casos? Que não obstante a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em ambos os relatos, a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (1979) , no caso da Maria da Penha, e a Convenção sobre os direitos da Criança (1989) , no caso do trabalho infantil, já reconhecerem direitos humanos a esses grupos e determinaram que os Estados emprenhem esforços na proteção e promoção deles; ainda assim as violações ocorreram (e ocorrem) e foram determinantes para que o Estado empenhasse-se para (tentar) resolver – não obstante os documentos normativos. E, infelizmente, a história é farta neste sentido. Muitos anos antes, a Carta Magna (1215), a Petição de Direito (1628), a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e, ainda, mais recentemente a própria 659

Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e algumas Constituições adjetivadas de democráticas, todos documentos que buscavam a proteção aos direitos humanos, acabaram por ter sua efetividade comprometida pela vontade política e jurídica, pelos limites econômicos, pelos labirintos normativos e das instituições dos Estados, pela cultura social de anestesia e visão estreita e limitada em relação dos direitos humanos . Douzinas (2009, p. 27) chega a afirmar que neste século obcecado por direitos humanos é onde se encontram o maior número de violações. De fato, efetivamente, os direitos humanos também se encontram em documentos internacionais (tratados, pactos, declarações e afins) e nas Constituições de alguns países, representando uma parte da dimensão formal dos direitos humanos (aspecto normativo). Igualmente, os direitos humanos estão nas ações das instituições e poderes dos Estados e da Comunidade Internacional (aspecto institucional). Para se ter como exemplo inicial, pode-se pensar que a Constituição brasileira em seu vasto rol de direitos

fundamentais

prevê

inúmeros

direitos

humanos.

A

própria

Declaração Universal dos Direitos Humanos é um ótimo exemplo de uma lista de direitos humanos que devem ser concretizados – não obstante seja comum referir o seu caráter meramente “declaratório”. Há, neste sentido, legislações – internacionais e nacionais – que preveem direitos humanos para as mais variadas carências humanas e que carecem ser tuteladas (por ações pontuais ou por políticas públicas) em grande medida pelo Estado e/ou pela Comunidade Internacional, dado a sua força, alcance e poder de organização. E, o que há de comum nestas esferas – internacional/nacional e normativa/institucional – é o fato de que tais direitos se aplicam a todos indistintamente (cada qual em suas esferas) e encontram dificuldade de materialização na prática para todos. Se foi difícil colocar os direitos humanos nos “papeis”, mais difícil está sendo tirá-los do papel para o nível da concretização, simploriamente porque as palavras e as letras não bastavam para a proteção e a promoção dos direitos humanos. Muito em razão disso se criou a falsa ideia de que “na teoria” é de um jeito, mas “na prática” a realidade é outra. Tal visão sobre direitos humanos 660

é minimalista e traz prejuízos incontáveis para todos. Assemelha-se a defesa sobre a programaticidade dos direitos fundamentais sociais que por muito tempo manteve a realização destes direitos num estado letárgico que impulsionava constantes descasos e violações a eles e culminava no prejuízo concreto a seres humanos. Os espaços normativos e institucionais dos direitos humanos são elementares para sua realização, mas ainda assim, se trabalharem com lógicas pós-violatórias, tendem a perpetuar essa cultura estreita e falaciosa e a serem insuficientes (ou deficientes). Veja-se “na prática” o que efetivamente ocorre: quantas demandas judiciais para a tutela dos direitos humanos são intentadas com uma perspectiva pré-violatória (antes que o dano ocorra)? E quantos e quantas vezes direitos humanos são violados todos os dias sem que se haja notícia para que sejam tutelados (RUBIO, 2010, p. 14-15)? Outro problema que daí advém é a ideia de “delegação” da concretização dos direitos humanos para os espaços normativos e institucionais que engendra, no mínimo, duas consequências preocupantes. A primeira delas é a criação de listas engessadas de direitos humanos por parte dessas figuras jurídicas em detrimento da pluralidade e mobilidade que os direitos humanos carecem e da visão unitária sobre a dignidade humana (DOUZINAS, 2009, p. 28-29/379). O que se tem em concreto é que só são direitos humanos aquilo que eles dizem para nós que são direitos humanos. Ou, como quer Barreto (2010, p. 2), ocorre a fetichização que aprisiona os direitos humanos. Surge uma barreira que divide o que “é” do que “não é” direito humano e que separa eles de nós (quando isso, efetivamente, não existe). A segunda, consequência da primeira, é que se esquece que direitos humanos se (des)constroem nas relações humanos sociais diárias em pequenos/simples e em grandes/complexas ações de pessoas comuns (ou não). A concretização de direitos humanos não é exclusividade das instâncias legisladas e das instituições (supra)estatais. Estes dois problemas alimentam a cultura simplista, limitada e anestésica sobre direitos humanos, aleijando sua plena potencialidade (RUBIO, 2010, p. 15-16). Muito embora se deva prestar atenção no alerta realizado, é preciso reconhecer que inúmeros Estados têm conseguido através da ação política e 661

judicial executar ações exitosas ou, pelo menos, parcialmente exitosas, que favorecem os direitos humanos. Exemplos bastante evidentes disso são as políticas públicas voltadas para a proteção e a promoção da diversidade, da saúde, do acesso à justiça, da cidadania, da igualdade – para ficar apenas nestas – e as decisões judiciais que são de modo democrático e substancialmente alinhadas com os direitos humanos e com os direitos fundamentais. De outro lado, porém, é preciso perceber que quanto maior for a consciência e a cultura sobre direitos humanos, menor será o número de denúncias e demandas judicias (RUBIO, 2007, p. 16), já que ou existirá a tutela pré-violatória ou existirá o respeito aos direitos humanos de modo espontâneo. 6.HÁ UMA CULTURA SENSO COMUM DOS DIREITOS HUMANOS (?) Onde estão os direitos humanos? Todos os dias uma nova razão para a velha e mesma pergunta: um cidadão, um trabalhador (desde que não tenham antecedentes criminais), um policial, um adolescente (desde que não seja um “menor infrator”) assassinados e lá vem a pergunta de algum incauto com a frase afiada: “e agora, onde estão os direitos humanos?”. Para aquele que ainda não percebeu: (1) Historicamente, os direitos humanos estavam mundo afora servindo como inspiração para muitos ativistas (alguns que inclusive sacrificaram suas vidas ou perderam boa parte em celas de 4m²) contra todo tipo de opressão de um poder dominador, para que todos pudessem ter liberdade, igualdade, democracia, afim de que a todos fossem reconhecidos algo tão básico como o direito à vida e a liberdade de expressão para que, por exemplo, todos pudessem usar suas sempre interessantes opiniões nas redes socais, inclusive para maldizer os direitos humanos. Enfim, toda a gama de direitos humanos (e fundamentais) já reconhecidos e conquistados à custa de muita luta e sofrimento e que, ironicamente, carecem ser ratificados cotidianamente. E aqui, aliás, reside uma das maiores construções teóricas em direitos humanos, qual seja, a de que todos os homens são dotados de inerente e 662

igual dignidade (SARLET, 2011, p. 52-53). Uma visão romântica que oculta sua verdadeira essência de que o que é ínsito e igual é o direito de ter reconhecida, respeitada, protegida e promovida a dignidade humana, ou seja, o direito de ter dignidade humana. Com isso, afirma-se que a dignidade humana realmente existe – não só no plano jurídico como adverte Sarlet (2011, p. 50-51) –, mas que é algo que se conquista, se defende e se mantém ao longo da existência humana. (2) Efetivamente, os direitos humanos estão por aí, em todos os lugares! Seguramente na sua cidade, plasmados em trabalhos voluntários, ações sociais, políticas públicas, protestos, em passeatas e paradas, e em boas ações. Outros, por sua vez, estão nas condutas de professores e alunos que, em sala de aula estão tentando transformar alunos e colegas em cidadãos responsáveis e conscientes em relação aos direitos humanos. Direitos humanos não se tornam mais ou menos importantes pelo fato de estarem escritos em qualquer lugar; isso faz com que eles se tornem mais conhecidos

apenas.

Direitos

humanos

se

tornam

mais

ou

menos

importantes quando se percebe que esse ou aquele é elementar para a dignidade de alguém. Daí porque realmente e no fundo, não importa se a pessoa “X” conhece ou não a Declaração Universal dos Direitos Humanos se ela for um sujeito predisposto aos direitos humanos. Se aquele rol exemplificativo de direitos humanos não é cumprido de modo espontâneo e natural, conhecê-lo não tornará a pessoa “X” mais humana e cumpri-lo, apenas por isso, se torna algo artificial que não se presta para um alteração da cultura senso comum de direitos humanos. Evidentemente que o cumprimento forçado (pelo Estado) é melhor que o descumprimento e, em alguma medida, auxilia a alteração cultural. Se humanos fazem direitos humanos a recíproca é também verdadeira: direitos humanos fazem humanos (DOUZINAS, 2009, p. 375). Aliás, os direitos humanos se não estão em você, certamente estão por você. Dita cultura senso comum apresenta como características mais marcantes: (a) a crença de que os direitos humanos só existem quando violados; (b) a crença de que os direitos humanos só existem e são tutelados para determinados grupos (como os apenados e os homoafetivos); (c) a 663

incoerência e o antagonismo de princípios e de discursos (para o filho do branco e rico é certo ser da “geração canguru”; para o filho do negro e pobre é errado, pois devia estar trabalhando para melhorar de vida; para o casal homoafetivo é errado (e feio) andar de mãos dadas no shopping; para o casal heterossexual é certo (e bonito) qualquer forma de amor); (d) o entendimento de que a discriminação velada não é discriminação; (e) a dificuldade de praticar a alteridade; (f) a crença em valores absolutos de certo e errado, e o uso de generalizações como fundamento (“todo mundo sabe...”; “ninguém faz isso...”); (g) a hipocrisia e o discurso de superioridade como nota recorrente nas manifestações; (h) a dificuldade de aceitar a pluralidade, a diversidade e a mudança; (i) a tendência de “sujeitar” os direitos humanos a consciência pessoal ou de um determinado grupo (“os direitos humanos são aquilo que eu (nós) acho que são e se aplicam para aqueles que eu (nós) acho que se aplicam” - esquema S-O, da hermenêutica filosófica); e (j) a dificuldade de considerar em suas reflexões eventos e heranças histórico-culturais-sociais (efetivados em discursos como “outro holocausto é impossível” ou “a mulher sofre preconceito de gênero, mas eu por ser homem também sofro” – lembrando que ser homem nunca foi tido como um demérito na história e na cultura ocidental). A questão é: e se tudo se invertesse? Se ser branco, rico, heterossexual, magro, enfim, aquele dentro dos “padrões” (de quem?) fosse errado e feio? Estariam essas mesmas pessoas sustentando o senso comum sobre direitos humanos? Talvez se dessem conta de que não existe eles e nós... sempre foi e é “nós”; de que é preciso ter medo de não ter direitos humanos; de que direitos humanos nunca foram exclusividade da lei ou do sistema jurídico; de que direitos humanos têm a ver com coisas pequenas e simples como fazer o bem, respeitar, tratar as pessoas dignamente e também com coisas grandes e complexas e tão importantes que passam desapercebidas no diaa-dia, como liberdade e igualdade; de que o fato de uma pessoa ser ateu ou gay não quer dizer que ela é má, doente ou menos humana. E o mesmo se pode dizer dos seus gostos, características físicas e preferências em geral; de que o problema não é a lei, mas sim o preconceito e as pessoas ignorantes e intolerantes; de que se pode perder mais do que se imagina em termos de 664

direitos humanos; e, finalmente, de que os direitos humanos sempre foram seus, meus e de qualquer outra pessoa, independentemente de qualquer coisa: não eram do bandido ou do pobre apenas (BOLESINA, 2014, p. 142143). Portanto, já não se trata apenas de aumentar a consciência e a cultura de promoção de direitos humanos, mas, sim, de perceber que somos todos seres humanos carecedores de direitos humanos, que demandam uma cultura onde esses direitos são percebidos a partir de uma lógica emancipadora, pré-violatória e que pretende contribuir com os níveis de humanização das práticas humanas sociais (RUBIO, 2007, p. 16/31). Daí porque se reafirme que direitos humanos sintetizam-se em situações reais (pois, direitos humanos não existem em “abstrato”), do cotidiano, práticas pequenas e grandes, simples e complexas, de respeito à condição humana, e que não dependem, necessariamente e exclusivamente, de um ente maior e mais poderoso para sua concretização, como o Estado, pois podem ser executados por pessoas comuns. Ou, como perspicazmente resume Barreto (2009, p. 268): “direitos humanos encontram-se presentes em todas as manifestações humanas”. Tal visão transforma a anestesia em sinestesia e sinergia na proteção e promoção dos direitos humanos; ataca a trivialização dos direitos humanos (FERRAZ JÚNIOR, 1990, p. 99); rejeita a ideia de um “rol engessado e dado de direitos humanos” e abranda o abismo existente entre o violado e o assegurado, entre o dito e o realizado. Então, onde estão os direitos humanos? Em todos os lugares, certamente. 7.CONSIDERAÇÕES FINAIS Conta-se que em Nova York, no bairro Bronx, há um zoológico com um grande pavilhão que abriga exclusivamente primatas, de diferentes e variadas espécies. Contudo, o que acaba chamando mais atenção é uma jaula que fica isolada, bem protegida e fechada com grades extremamente grossas. Neste local, há uma etiqueta que anuncia estar ali “o primata mais perigoso do planeta”. Ao olhar por entre as espessas barras de ferro, com 665

surpresa e espanto os visitantes veem sua própria imagem refletida em um espelho; em seguida um letreiro informa que aquela espécie matou mais do que qualquer outra espécie conhecida sobre o planeta (MATURANA; VARELA, 2007, p. 29). Diante disso e de tudo o que essas páginas reúnem, será mesmo que a grande questão é onde estão os direitos humanos? Como se viu, estão nos “defensores” diários e comuns e nos pequenos/grandes atos do dia-a-dia, estão nos atos históricos e nos emblemáticos ativistas, estão nas normas previstas nas constituições e nos tratados internacionais, bem como nas instituições do Estado, estão nas organizações como a ONU, a OEA e as ONGS, enfim, estão em todos aqueles que se dedicam a fazer de um discurso inspirador, uma realidade mais justa. A história se repete, pois em tempos de liberdade dos quais se vive o apogeu, estudos demonstram que nunca houve tanto trabalho escravo. Em tempos de igualdade (formal, ao menos) há intolerância, preconceito e ódio. Em tempos de globalização há exclusão social. Em tempos de progresso há desigualdade entre ricos e pobres em níveis nunca antes tão elevados, há fome e miséria. Onde estão os direitos humanos? O texto ajuda a responder, sinaliza; no entanto, há muito mais envolvido. Mas esses direitos, como toda a abstração jurídica, dependem de seres humanos, dependem da humanidade, pois como visto, não é de hoje que é preciso lutar para que a realidade sonhada aconteça. Recordando o quase desabafo de Capella (1993, p.140), as pessoas têm lutado por democratização política, contra a opressão e a desigualdade, e têm conseguido direitos. Porque não é exatamente por direitos que luta(va)m, assim como não é o mesmo ter direito ao trabalho e ter um posto de trabalho. Os problemas que aqui se põem derivam justamente do fato de que o primeiro não supõe necessariamente o segundo. O reconhecimento dos direitos humanos é, destarte, um primeiro passo, uma primeira e importante vitória. Não significa, contudo, que já seja hora de

a

humanidade

abandonar

seus

propósitos

de

justiça,

afinal,

diferentemente de um conto de fadas em que o enredo sempre acaba com o “final feliz”, a história da humanidade possui muitos finais – diários finais de 666

pessoas reais –, mas só um ponto final, que só aparece quando se acabar a humanidade. REFERÊNCIAS BACHEGA, Hugo. Três anos após queda de Mubarak, Egito segue dividido e imprevisível. 2014.Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2014. BARRETO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. BEASLEY, Maurine H.; SHULMAN, Holly C.; BEASLEY, Henry. The Eleanor Roosevelt encyclopedia. Westport:Greenwood Press, 2001. BEUCHOT, Maurício. Derechos Humanos: história y filosofia. Coyoacán: Fontamara, 1999. BOLESINA, Iuri. VOCÊ: (Destacando) a importância da alteridade no trato aos direitos humanos através de uma distopia. In: BOLESINA, Iuri; GERVASONI, Tamiris Alessandra. (Org.). DIPOP: o direito na cultura pop. Curitiba: Ithala, 2014, v. 1, p. 125-143. CAMPOS, Antonia Alessandra Sousa. A Lei Maria da Penha e a sua efetividade. Monografia (Especialização) – Universidade Estadual Vale do Acaraú, Escola Superior de Magistratura do Ceará, Curso de Especialização em Administração Judiciária, Fortaleza, 2008. CAPELLA, Juan Ramón. Los ciudadanos siervos. Madrid: Trotta, S.A., 1993. CHARITY WATER. Pewdiepie charity: water campaign. 2013. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2014. COSNTANCE, Paul. Quem ganhou a guerra da água. 2005. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2014. DOUTORES DA ALEGRIA. Doutores da alegria. 2013. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2014. DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. Trad. Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A trivialização dos direitos humanos. In: 667

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669

MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS COMO MECANISMO DE CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA E GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS Luana Nascimento Perin1 Eloísa Nair de Andrade Argerich2 1. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo propiciar aos leitores o entendimento sobre a democracia no Brasil e, principalmente, sobre a democracia participativa, a qual desencadeia os movimentos sociais, tanto urbanos quanto rurais, para a garantia dos direitos humanos. Entretanto, serão aprofundados somente os movimentos sociais urbanos, pois estes ganharam maior força no atual cenário devido aos novos meios de comunicação, tais como a Internet, que deu margem à criação do Facebook, do Twitter, e demais redes sociais. O estudo não destaca apenas os pontos favoráveis dessa nova era, mas também enfatiza os cuidados necessários com o sistema informacional na Internet, uma vez que as informações passam por diversos leitores e são transmitidas, muitas vezes, de maneira equivocada e contraditória aos reais acontecimentos. Na maioria das vezes os movimentos sociais contemporâneos são organizados nas redes sociais e, por esse motivo, é preciso ficar atento à realidade, pois para ser entendido como “movimento social” ele deve possuir um objetivo com uma causa comum, e reivindicar, por exemplo, reforma agrária, casas populares, pavimentação asfáltica, iluminação, garantia dos direitos humanos, etc. Um dos maiores exemplos a serem citados foi o caso das “Diretas Já”, movimento realizado em 1983/1984, e que possuía como objetivo a restauração da democracia no Brasil por meio das eleições presidenciais. Com o Golpe Militar de 1964 a Presidência da República passou a ser comandada por militares, e desde então não houve novas 1Egressa

do curso de Direito. E-mail: [email protected]. da disciplina Direito Constitucional II, Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais (DCJS) da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). E-mail: [email protected]. 2Docente

670

eleições presidenciais, bem como, o desrespeito aos direitos humanos, pois que aqueles que não aceitavam o modo em que os cidadãos eram tratados, e reivindicavam seus direitos, eram torturados, na maioria das vezes, até a morte. Este artigo pretende verificar a importância dos movimentos sociais urbanos para a consolidação da democracia e dos direitos humanos, cujo maior evento, ocorrido entre 1983/194, reuniu milhares de pessoas que reivindicavam um mesmo fim, com o objetivo de trazer benefícios para todos os cidadãos brasileiros. 2. DEMOCRACIA E MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS Para melhor entendimento acerca dessa temática faz-se necessária uma abordagem sobre os aspectos que sustentam a democracia para, posteriormente,

contextualizar

os

movimentos

sociais

urbanos.

É

fundamental compreender a origem e o conceito dos movimentos sociais, suas

características

e

fundamentos,

haja

vista

que

as

lutas

pela

redemocratização do país são originárias de movimentos sociais, divulgados pelos meios de comunicação em redes ou por grupos sociais, pelos excluídos ou por aqueles que têm suas demandas não atendidas pelo governo. Os movimentos sociais, segundo Gohn (2013, p. 40), “constituem-se como um dos sujeitos sociopolíticos presentes no associativismo no Brasil, porque eles foram, e ainda são as bases de muitas ações coletivas no país a partir de 1970.” Tais movimentos sociais transitam pelos espaços não consolidados pelo poder político, que não consegue efetivar o atendimento das demandas dos atores sociais na luta por seus pleitos, e se encontram desejosos de expressar sua desconformidade com a ação política e/ou social. Estes atores sociais surgiram na sociedade civil brasileira após os anos 1970, sem a autorização do Estado e, num primeiro momento, contra o próprio Estado. Constituíram, assim, uma participação à revelia dos interesses estatais, e se consolidaram como um novo espaço de participação democrática e das relações sociopolíticas e sociais. Sobre esse tema Gohn (2011, p. 303) assevera que: 671

[...] os novos atores sociais que emergiram na sociedade civil brasileira, após 1970, à revelia do Estado, e contra ele num primeiro momento, configuraram novos espaços e formatos de participação e de relações públicas. Estes novos espaços foram construídos basicamente pelos movimentos sociais, populares ou não, nos anos 70-80 (Gohn, 1991); e nos anos 90 por um tipo especial de ONGs que denominamos anteriormente de cidadãs, ou seja, entidades sem fins lucrativos que se orientam para a promoção e para o desenvolvimento de comunidades carentes a partir das relações baseadas em direitos e deveres da cidadania (Gohn, 1994).

Os movimentos sociais podem ser definidos como fenômenos históricos, decorrentes das lutas de classes. Com enfoque nas suas necessidades, os atores sociais buscam com suas ações diretas e discursos, organizados ou não, obter visibilidade e chamar a atenção para as dificuldades que estão condicionadas aos problemas do cotidiano, na busca por melhores condições de vida e de trabalho. Apesar das variadas teorias sobre os movimentos sociais, Gohn (2004, p. 343, grifo da autora) sustenta que "[...] Nunca haverá uma teoria completamente pronta e acabada sobre eles (movimentos sociais).Os movimentos são fluídos, fragmentados, perpassados por outros processos sociais.” Paulo Silvino Ribeiro ([s.d.], [s.p.]) conceitua os movimentos sociais como a ação coletiva de um grupo organizado “[...] que objetiva alcançar mudanças sociais por meio do embate político, conforme seus valores e ideologias dentro de uma determinada sociedade e dentro de contextos específicos, permeados por tensões sociais.” É possível considerar, então, que os movimentos sociais lutam por melhorias das condições de vida e de trabalho do cidadão, mas, principalmente, buscam a realização de seus anseios, a construção de uma identidade que visa, também, à transformação da sociedade. A abordagem deste estudo pretende considerar apenas a história dos movimentos sociais urbanos dos últimos 20 anos, o que significa que do universo dos estudos sobre os movimentos a preocupação está em mapear apenas uma faceta dessas mobilizações. Ao demarcar as diferenças entre os movimentos sociais, a fim de lhes 672

conferir

identidade

própria,

destaca-se

que

“O

repertório

de

lutas

construídas por eles demarcam interesses, identidades, subjetividades e projetos de grupos sociais que não só mobilizam as pessoas, mas mobilizam ideias e valores que contribuem para impulsionar mudanças sociais.” (GOHN, 2013, p.40-41). Cumpre registrar que no final dos anos 70, segundo Gohn (2011, p. 281): [...] no Brasil, quando se falava em novos movimentos sociais, em encontros, seminários e colóquios acadêmicos, tinha-se bem claro de que fenômeno se estava tratando. Era sobre os movimentos sociais populares urbanos, particularmente aqueles que se vinculavam às práticas da Igreja Católica, na ala articulada à Teologia da Libertação. A denominação buscava contrapor os novos movimentos sociais aos ditos já velhos, expressos no modelo clássico das sociedades amigos de bairros ou associações de moradores. O que estava no cerne da diferenciação eram práticas sociais e um estilo de organizar a comunidade local de maneira totalmente distinta.

Embora seja um equívoco, a relação dos movimentos sociais urbanos com o Estado era vista como uma rebelião ou oposição. Na realidade esses movimentos buscavam mudanças sociais nos projetos políticos, sociais e econômicos apresentados pelo governo. Analistas e consultores de organizações internacionais consideram os movimentos sociais como elementos e fontes de inovações e mudanças sociais. Não se pode olvidar, contudo, que estes movimentos “[...] detêm um saber

decorrente

de

suas

práticas

cotidianas,

passíveis

de

serem

apropriadas e transformadas em força produtiva.” (GOHN, 2013, p. 41). Os movimentos sociais populares urbanos sempre ocuparam um papel de destaque na sociedade. Nesse sentido, Gohn (2011, p. 282) assevera que" [...]os movimentos sociais populares urbanos tinham papel de destaque. Eles eram vistos como fontes de poder social. A relação dos movimentos com o Estado era vista em termos de antagonismo e oposição". O papel exercido pela Igreja na estruturação dos movimentos sociais urbanos consistia, principalmente, em ser formadora de opinião, pois “a relação da Igreja era usualmente tratada apenas em termos de apoio ou de matriz formadora/constituidora das novas forças sociais” (SADER apud 673

GOHN, 2011, p. 283), o que se modificou a partir dos anos 80. Progressivamente, os movimentos sociais passaram a ter outro referencial e a serem fortemente influenciados pela política estatal. Destacase que a história e a sociedade não mostram que é pela articulação dos grupos que se pode perceber as mudanças no cenário sociopolítico, econômico e cultural. Com efeito, é notável o que Gohn (2011, p. 283) apresenta sobre essas mudanças ao observar que: As mudanças na conjuntura política no início dos anos 80 vieram a alterar o cenário. No campo popular começou-se a indagar e a questionar o caráter novo dos movimentos populares. No campo das práticas não exclusivamente populares, iniciou-se o interesse, por parte dos pesquisadores, por outros tipos de movimentos sociais, tais como o das mulheres, os ecológicos, os dos negros, índios, etc. Foram movimentos que ganharam expressão naquela década, embora fossem lutas já antigas que ressurgiram no Brasil no final dos anos 70. Em alguns casos estiveram articulados à luta popular, como no caso das creches e de algumas alas do movimento feminista.

As mudanças na conjuntura política e social brasileira e as políticas participativas possibilitam a compreensão de que os movimentos sociais urbanos no Brasil sempre estiveram presentes e atuantes, mas ganharam força neste período, quando uma grande parcela de desempregados do setor produtivo privado saíram às ruas para reivindicar que a agenda pública e governamental contemplasse políticas públicas de desenvolvimento. Também contribuíram para o avanço quantitativo das mobilizações da década de 80 o surgimento de grandes centrais sindicais e o aparecimento de entidades qualificadas como movimentos sociais, os quais realizam articulações para implementar seus objetivos. O Estado nem sempre foi adversário dos movimentos sociais, mas seu principal interlocutor, notadamente quando, nos anos 90, ocorreu “o aprofundamento do processo de transição democrática, com a ascensão de líderes da oposição, de vários matizes, a cargos no parlamento e na administração de postos governamentais [...]” (GOHN, 2011, p. 288), enfatizando a cidadania e a exclusão social como categorias básicas para a sustentação dos movimentos sociais. 674

Os elementos básicos que sustentaram os movimentos sociais urbanos na década de 90 foram direcionados às ações que envolvem a cidadania coletiva e a exclusão social. Desta forma, é imprescindível verificar a análise efetuada por Gohn (2011, p. 288) sobre o tema, ao observar que no plano das análises, os anos 90 enfatizarão duas categorias básicas: a cidadania coletiva e a exclusão social. A primeira, já presente na década anterior, apresentará como novidade pensar o exercício da cidadania em termos coletivos, de grupos e instituições que se legitimaram juridicamente a partir de 88, e que têm de desenvolver um novo aprendizado, pois não se trata apenas de reivindicar, pressionar ou demandar. Ao dar ênfase às categorias dos excluídos da cidadania coletiva, cientistas políticos, dentre eles Touraine, Marshall e Dahrendorf, afirmam que a qualidade do conflito existente nos movimentos sociais se modificou, não ocorrendo mais em torno das diferenças e desigualdade sociais. Elas passam, sim, a se restringir à participação cívica nas decisões políticas, econômicas ou sociais, tomada pelos governantes, quando envolvem direitos e obrigações e a precariedade de serviços essenciais prestados à população (apud GOHN, 2011, p. 289). Neste cenário, Dahrendorf (apud GOHN, 2011, p. 289) destaca que: [...] a luta para se ter direitos de cidadania para todos os seres humanos implica a construção da sociedade civil geral sob o governo da lei. Atualmente as barreiras de privilégios continuam a ser a questão fundamental, e os “cidadãos” meramente ganharam uma nova posição, mais vantajosa, na luta por maiores chances na vida.

Diante das lutas realizadas pelos movimentos sociais urbanos visando à construção de uma sociedade mais justa e solidária é inegável que o Estado passa a ser o elemento responsável pela coesão social. Segundo Castells (apud GOHN, 2011, p. 295), “Ele tem a capacidade de regular as relações políticas de classe, desempenhando um papel de árbitro [...]”, o que confirma que os movimentos sociais organizam-se com a finalidade de lutar pelos seus ideais e exigir o cumprimento das políticas governamentais relativas aos direitos fundamentais. Os

movimentos

sociais

apresentam

características

gerais

e 675

fundamentos que variam de tempos em tempos, como se observou na análise dos anos 70 a 90. Ademais, apresentam uma trajetória que ultrapassa as questões sociais e envolve questões políticas e econômicas. É interessante observar que a trajetória dos movimentos sociais no Brasil nos últimos 20 anos tem como paradigma as teorias não só norteamericana

e

europeia,

mas

também

latino-americana.

Concentra-se,

principalmente, nos movimentos sociais libertários ou emancipatórios, nas lutas populares, nas lutas pela terra, dando atenção às possibilidades de conscientização, mobilização e organização de grupos e movimentos. No entendimento de Gohn (2011, p. 14)"[...] o paradigma norteamericano possui, em suas diferentes versões, explicações centradas mais nas estruturas das organizações dos chamados sistemas sociopolítico e econômico

[...]"

e,

analisa

a

ação

coletiva,

os

comportamentos

organizacionais e integração social, diferentemente do paradigma europeu. Não resta dúvida de que na Europa os movimentos sociais apresentavam como paradigma uma abordagem teórica bem diferenciada, e que a abordagem marxista e a dos Novos Movimentos Sociais são consideradas como um espelho para explicar a identidade dos atores sociais. Sobre as teorias evolucionistas Gohn (2011, p. 14-15) ressalta que "A marxista centra-se no estudo dos processos históricos globais, nas contradições existentes e nas lutas entre as diferentes classes sociais." Destaca-se que o paradigma latino-americano, mais próximo da realidade brasileira, apresenta em seus estudos aspectos fundamentais relacionados aos movimentos sociais libertários ou emancipatórios. Ou seja, movimentos nos quais índios, negros e mulheres lutam para a sua libertação e emancipação social com o intuito de obterem maior espaço na sociedade, consolidando a cidadania participativa. Nota-se que esse paradigma leva à reflexão de que em países como Bolívia, Venezuela, Argentina e Paraguai, os novos sujeitos históricos que lutam por uma cidadania coletiva ainda não conseguiram

manter

uma

estratégia

de

mobilização,

organização

e

conscientização para a obtenção de um mínimo para sobreviver com dignidade (GOHN, 2011, p. 15). É fundamental adentrar no paradigma dos movimentos sociais no 676

Brasil em virtude da evolução que esses têm apresentado nos últimos 20 anos, e as consequências que têm acarretado no cenário da organização popular em geral. O que se observa com os movimentos sociais urbanos no Brasil é que esses têm se transformado em um forte fenômeno sociopolítico, pois nunca se viu na história brasileira tantas manifestações coletivas com cidadãos de todas as classes sociais engajados na luta pela transformação social em direção a uma sociedade mais justa e livre. Grupos sociais se unem não para reivindicar direitos, mas para demonstrar sua inconformidade com a corrupção e com o desvio de verbas públicas. Como ponto decisivo para essa transformação pode-se citar o engajamento de trabalhadores informais, formais, intelectuais, professores, caminhoneiros, comerciários, agricultores, indígenas, etc., em movimentos sociais urbanos ou rurais. Destaca-se, também, a intermediação dos meios de comunicação, considerando principalmente as redes sociais, que em poucos minutos conseguem articular milhares de pessoas em torno de uma causa comum, promovendo uma mobilização veloz e ilimitada. É inevitável que, na atualidade, os meios de comunicação de massa têm se apresentado como um dos instrumentos mais eficazes para mobilizar pessoas e articular movimentos. Na visão de Teresa Costa Alves (2013, p. 124), “O século XX caracterizou-se por uma transformação acelerada do paradigma

da

comunicação,

que

deixou

de

evoluir

ao

ritmo

do

desenvolvimento humano, biológico, para se aproximar do ritmo dos acontecimentos e sua mediatização.” Ademais,

o

desenvolvimento

de

uma

sociedade

em

rede

e

informacional tem provocado profundas transformações nas comunicações e na troca de informações, acelerando o processo de divulgação, bem como de chamamento aos movimentos sociais para agirem em favor de uma causa comum. Se, por um lado, é possível afirmar que a liberdade de expressão, garantida pela democracia na Constituição Federal, tem se mostrado transparente

e

global,

tanto

que

proporciona

aos

indivíduos

o

compartilhamento de ideias e conhecimentos, por outro lado a relação dos 677

movimentos sociais urbanos com as redes sociais não tem sido isenta de polemização, principalmente ao se observar que o poder institucionalizado se lhes opõe com a força pública (policial). Observa-se, assim, que “Neste contexto a mídia possui um papel relevante

como

fonte

de

interpretação

da

realidade,

modificando

e

expandindo áreas de experiência individual, intervindo na formação da opinião pública e contribuindo para a definição de identidades individuais e coletivas.” (DELLA PORTA apud PEREIRA, 2011, p. 3). Destaca Pereira (2011, p. 3) que os meios de comunicação de massa fazem parte do dia a dia do brasileiro, e constituem-se em formadores de opinião. Contribuem, assim, como elementos fundamentais na “disputa pela definição de identidades individuais e coletivas, que perpassam tanto a esfera privada quanto pública. Isto porque a esfera privada tornou-se também um espaço de disputa e mobilização de conflitos”, traduzindo os anseios da sociedade civil e possibilitando ao cidadão a sua participação democrática na vida política do Estado brasileiro. Na verdade, a mídia exerce um papel de destaque na era informacional e contribui para a intermediação das relações sociais entre grupos distintos, bem como para a organização de interesses, mesmo quando se percebe uma crise no sistema representativo e nas organizações governamentais e não governamentais. É nessa questão que trabalham Valéria Ribas do Nascimento e Márcio Schorn Rodrigues (2014, p. 163) quando ressaltam que "a sociedade informacional é fruto, portanto, da referida inteligência coletiva, que proporciona ao indivíduo a reflexão e o compartilhamento de seus conhecimentos com os seus semelhantes [...],"e se utilizam da Internet para gerar seus conteúdos mediante a interatividade como website. O desenvolvimento dessa sociedade ocasiona um novo espaço para a comunicação, de forma que ela se torna cada vez mais transparente e universalizada, redefinindo a atuação das instituições públicas, aumentando cada vez mais a sua responsabilidade social. Isso engendra rapidez inédita em campos de ação como a Internet, modificando sobremaneira a atuação e o poder de alcance das mídias tradicionais (LEVY, 2011, p. 55). 678

Nesse sentido, cumpre destacar que influenciados pela sociedade em rede as pessoas têm modificado o seu modo de pensar, agir e sentir, difundindo, assim, outros meios de expressão e manifestação social, cultural, política, entre outras. Cita-se, por exemplo, a Internet, que tem sido usada de forma muito acentuada e o “[...] uso cada vez mais desenfreado das tecnologias de informação, entendidas como todas as atividades e soluções providas

por

recursos

de

computação

que

visam

permitir

o

seu

armazenamento, acesso e o utilização”, as quais provocam uma revolução nas relações sociais (CASTELLS apud NASCIMENTO; RODRIGUES, 2014, p. 160). Sabe-se que, na atualidade, “A internet tem sido o grande meio/veículo articulador de ações coletivas e movimentos sociais. Ela possibilitou a criação de redes virtuais que viabilizam conexões de grupos que nunca se encontraram fisicamente de fato.” (GOHN, 2013, p. 150).Reconhece-se, portanto, que é por meio da Internet que os eventos são organizados e divulgados e se consegue mobilizar milhares de seguidores. É importante referir que os mecanismos de comunicação entre os sujeitos na era informacional não se reduzem apenas à imprensa, mas vão do Jornal à Internet/Facebook, sem desmerecer os demais sites de divulgação e informação, como o Twitter, Blog, etc. Dessa forma, o mundo contemporâneos e caracteriza cada vez mais com a intensa participação de todos e em tempos recordes. Nesse diapasão asseveram Nascimento e Rodrigues (2014, p. 169) que: As novas tecnologias da informação, propulsoras da sociedade em rede, constituem o fio condutor para que os meios de comunicação se aprimorem e consigam atender às demandas sociais. Ocorre que, na mesma medida em que cresce o número de usuários e de informações lançadas na Internet, por exemplo, aparecem os conflitos gerados por esse manancial de dados que, em última análise, poder servir de instrumento de invasão na privacidade das pessoas.

A

utilização

da

Internet

ao

longo

dos

anos

vem

crescendo

assustadoramente e os meios de comunicação impressos, a exemplo de 679

jornais e revistas, considerados tradicionais, embora ainda persistam, estão perdendo espaço para os meios virtuais, como Twitter, Blogs, website e Facebook. Para melhor compreensão do assunto abordam-se neste estudo apenas aspectos relativos ao Facebook, que é considerado um dos “[...] meios das novas tecnologias de informação que possibilitam não apenas a conexão e estruturação das ações, mas têm sido grandes divulgadores das informações e alimentadores das ações e reações em cadeia” (GOHN, 2013, p. 150). Em tempos recordes, eles têm mobilizado milhões de seguidores pelo mundo todo. A Internet surge como um mecanismo apto a reviver e a revigorar a cidadania que habita nos cidadãos, na vontade de melhorar a qualidade de suas vidas, organizar as comunidades locais e facilitar a troca de informações. Desse modo, os indivíduos, conectados em rede, podem discutir

e

apresentar

aos

governantes

as

soluções

para

problemas

cotidianamente vividos e esquecidos pelos parlamentares que, em muitos momentos, tratam apenas de interesses e vantagens particulares (OLIVEIRA; RODEGHERI, [s.d.], p. 2). A fim de alterar a lógica de comunicação entre as pessoas, a Internet as aproximou e possibilitou discussões e debates dos mais variados temas, principalmente em relação à cidadania e democracia, e não apenas com relação aos direitos e garantias fundamentais. Pode-se afirmar, inclusive, que as informações que circulam de forma livre nas redes sociais revolucionaram a liberdade de expressão e de manifestação, alicerces da democracia, principalmente se for considerada a dimensão de igualdade dos meios de comunicação. Isso comprova que a conexão em rede facilita a ação e a interação entre as pessoas, bem como a participação cidadã no espaço público. Ao longo dos anosos meios de comunicação têm contribuído para alterar as formas de expressão da opinião pública, haja vista que as novas tecnologias são grandes facilitadores dos processos de distribuição de informação em prol de uma democracia mais participativa. Necessário

explicitar,

portanto,

a

importância

dos

meios

de 680

comunicação, partindo-se da ideia de que existe liberdade de expressão quando há a publicação de notícias, informações e entretenimento que vão desde os jornais até o Facebook. Não se pode deixar de mencionar ainda que “os fóruns de discussão online utilizadas pelos membros dos movimentos sociais para comunicarem entre si propiciam a discussão sobre os mais variados temas sociais.” (ALVES, 2013, p.3). Ao observar essas formas de manifestação e informação é importante analisar a função que o jornal exerce na atualidade, já que ele concorre com o meio virtual que tem custo zero, enquanto o impresso exige um pagamento muitas vezes superior àquilo que a pessoa pode dispor. Nesse contexto, o Facebook também é uma empresa e se faz valer da publicidade para cobrir os custos que, de certa forma, estão embutidos na publicidade/markentig e nos patrocinadores. Ao usar as informações do Facebook, tanto as enviadas quanto as recebidas, o cidadão faz uso das redes de telecomunicações, realizando via privada ou pública, o pagamento de mensalidades contratadas com operadoras de serviços, tais como a Oi, Net, Vivo, Claro, aparelhos utilizados para recebimento do sinal, outros equipamentos, etc. Mesmo que os meios virtuais sejam utilizados por mais de 89.000 milhões de brasileiros, conforme dados divulgados pelo site Facebook, para Ana Paula de Araújo (2015, [s.p.]): A função do jornal é basicamente a comunicação. É um dos meios mais rápidos de ficarmos informados a respeito do que acontece no mundo. Dentro do jornal há várias sessões que, por sua vez, abrigam vários tipos de textos. Há algumas características que são comuns a todos estes textos, enquanto há outras que servem para individualizá-los. (grifo da autora).

Os jornais costumam apresentar um editorial com a relação das matérias veiculadas, que são apresentadas por ordem de relevância e de importância. Ademais, trazem em seu texto, além de notícias sobre fatos ocorridos no mundo e na sociedade, a opinião do editor que, muitas vezes, contraria o que o leitor pensa sobre a matéria. Para tanto, é imperioso que se diga que os veículos de comunicação impressos são tão importantes quanto os meios virtuais (ARAÚJO, 2015). Observa-se que no momento em que o cidadão, sem pertencer a 681

partidos políticos ou mesmo grupos ativistas, participa de passeatas ou se engaja em movimentos sociais para reivindicar seus direitos, ouapenas para demonstrar sua inconformidade com acontecimentos sociais ou políticos de seu Estado, está exercendo seu direito de cidadania. Por isso, "quanto mais se democratiza um país, mais haverá cidadãos falando de seus problemas em locais não tradicionais da política." (PINTO apud ALVES, 2013, p. 126). No que diz respeito à comunicação pelos meios virtuais destaca-se o Facebook, pela velocidade instantânea das informações e pelo grande número de acessos. Esta rede social vem inaugurando uma nova forma de liberdade de expressão, pois se assiste diariamente a propagação de registros, os quais se convertem em movimentos sociais. Assim, Adriana de Araujo Guzzi (2014, p. 228-229) assevera que: Na mesma medida em que as redes sociais e de compartilhamento de altíssima densidade – como Orkut, Facebook, Twitter, You Tube, Flickr, entre outras – propiciaram a abertura para encontros, conversações e comentários por meio de suas comunidades, além dos sites e blogs pessoais com interatividade, vemos o quanto essa mídia vem assumindo uma importante função educativa para os jovens. Ainda que a grande maioria use as redes apenas para se expor e encontrar amigos, são muitos os que já sabem usá-las para compartilhar interesses comuns e encontrar informações que vão além do que a escola ou a comunidade dos quais fazem parte podem oferecer.

Em relação ao Facebook não é de espantar que cada vez mais a prática está disseminada, aumentando progressivamente o número de pessoas que o acessam e utilizam este meio virtual para formação de opiniões. “As pesquisas também mostram que cerca de 75% dos(as)jovens de 16 a 24 anos e 90% das pessoas com escolaridade acima de superior completo se conectam à Internet.” Mas é fundamental que o usuário das redes sociais tenha cautela em relação à utilização desses sites, pois se reconhece que nem todas as fontes de referência são confiáveis (GOHN, 2013, p. 151). Ressalta Guzzi (2014, p. 230-231) que o Facebook e as redes sociais“[...]tornam-se parte importante das mídias sociais e funcionam como uma autêntica pesquisa de mercado, bem segmentada e a custo baixíssimo." É possível afirmar, inclusive, que hoje as redes sociais, notadamente 682

o Facebook, é o mecanismo mais utilizado na articulação dos movimentos sociais urbanos, e que legitima as ações empreendidas pelos manifestantes, seja na área política, social ou econômica, contrapondo-se, muitas vezes, às necessidades geradas pelo Estado. A Internet assume um papel fundamental na articulação dos movimentos sociais. No Brasil, o número de acessos ao Facebook cresce de forma assustadora, cujos dados relativos aos usuários da plataforma revelam que: [...] a rede social possui 89 milhões de brasileiros que acessam o site todos os meses. O número corresponde a oito de cada dez internautas, sendo que o número total no país chega a 107,7 milhões.Isso significa que os internautas que acessam o Facebook diariamente totalizam cerca de 59 milhões. Os dados são referentes ao segundo trimestre de 2014. (MEIO & MENSAGEM, 2015).

Destaca-se que as articulações dos manifestantes em movimentos sociais urbanos ocorrem por meio do Facebook porque é, como já salientado anteriormente, um dos meios mais velozes para mobilizar, articular e engajar pessoas, difundindo ideias que envolvem a luta pela democracia e a liberdade de expressão. “O número de acessos de dispositivos móveis cresceu 55%, o que representa 68 milhões de pessoas. No último ano, a base de pessoas ativas na rede aumentou 105%, atingindo 41 milhões de pessoas.” (BORJA apud GOHN, 2011, p. 196). Constata-se que a Internet, ou seja, a utilização do Facebook possibilita ao cidadão participar ativamente da vida política e social do país, não havendo necessidade de gastos com materiais impressos. Basta um chamado pela rede e em poucos minutos milhares de pessoas em todos os cantos do país saem às ruas para protestar pelos seus direitos ou apenas para manifestar sua indignação com a classe política do país. Oliveira e Rodegheri ([s.d.], p. 2) afirmam que ''A grande vantagem decorrente da utilização da Internet é a possibilidade de diversificação das fontes de informação, porque permite a emissão de conteúdo por todo aquele que detém acesso à rede e deseja se expressar". Por isso, cabe referir que a luta pela redemocratização do país passa 683

necessariamente pelo mapeamento do cenário dos movimentos sociais no Brasil. Essa mobilização de pessoas de todos os Estados, e em torno de um objetivo

comum,

é

fundamental

para

a

compreensão

do

que

está

acontecendo atualmente com a mobilização dos movimentos sociais urbanos. Partindo da análise dos movimentos sociais no Brasil destaca-se que a breve abordagem se refere à Era da Participação, ou seja, de 1978 a 1989, que proporciona a compreensão sobre a temática. Observa-se que os movimentos ocorridos naquela época aconteceram de forma isolada, principalmente na zona rural, e tiveram pouco contato com a zona urbana. É inegável, contudo, que sempre houve um diálogo e debates acadêmicos que visavam acima de tudo compreender a importância da luta pela liberdade de expressão, manifestação e reunião, haja vista a ausência do Estado no cumprimento das demandas sociais. Gohn (2011, p. 275) enfatiza que “Assim, ao chamar a atenção para o papel do Estado na dinâmica dos movimentos sociais” não se está apenas apontando para a ausência de um dado importante nos estudos, mas também fazendo uma leitura dos fatos segundo uma matriz teórica de abordagem. Os movimentos sociais urbanos surgiram em vários segmentos da sociedade, mas sua culminância, nos anos 80, se deu em torno das questões urbanas, as quais se acentuaram com o aumento populacional e com o deslocamento de grandes contingentes de pessoas da área rural para as cidades. Sujeitas a várias formas de exclusão social, essas pessoas passaram a se organizarem torno de um objetivo comum, ou seja, à luta pela moradia (GOHN, 2011, p. 276-277). É interessante observar que a realização desta análise se constitui num esboço da trajetória dos movimentos sociais urbanos no Brasil, que sempre atuaram em prol da democratização do país, mais acentuadamente na área dos movimentos sociais urbanos. A exclusão que se origina do padrão de desenvolvimento econômico adotado pelo país gera a emergência de novos atores, que passam a exigir não apenas mudanças dos rumos da política, mas também o cumprimento 684

das políticas públicas divulgadas nas campanhas políticas e nos planos governamentais dos políticos. É necessário ressaltar que o padrão de desenvolvimento que gera a exclusão não pode persistir e a sociedade civil precisa se mobilizar para reverter este cenário. Admite Gohn (2011, p. 296) que "[...] o padrão de desenvolvimento que se instaura legitima a exclusão como forma de integração. Passa a ser exclusão integradora, modelo perverso de gestão da crise [...]", recuperando a legitimidade política e criando condições para um novo ciclo de crescimento econômico com a redefinição dos atores sociopolíticos em cena. A tendência atual é a estruturação de grupos sociais que, com a emergência de novos atores, tais como cidadãos articulados em redes que participam de associações, entidades do Terceiro Setor, Organizações Não Governamentais (ONGs), podem modificar o cenário das relações sociais, trabalhistas e políticas e, assim, exigir um projeto social voltado à inclusão social. A emergência de novos atores ganha força neste século e mostra que podem se mobilizarem torno de temas que dizem respeito a todos, tais como saúde, educação, moradia, enfim, direitos de cidadania. Vários foram os movimentos nacionais pela redemocratização do país e acesso aos serviços públicos. O marco histórico, porém, foi o movimento nacional pelas “‘Diretas Já’”, que reivindicou as eleições diretas para presidente da República, em 1984 (GOHN, 2011). O papel dos movimentos sociais nesta época são fenômenos que transformaram

as

relações

sociais,

sendo

agentes

do

processo

de

transformação. Entre os movimentos sociais populares urbanos se destaca o “Custo de Vida – Carestia” que, em 1980, lutou contra os altos preços dos alimentos. Além desse destacam-se ainda os movimentos pelos transportes públicos e pela saúde, em 1982, demonstrando que o povo brasileiro já estava atento aos problemas referentes à falta de políticas públicas e sociais do governo para o atendimento das demandas da sociedade. É imprescindível observar que além dos movimentos nacionais populares urbanos, outros movimentos, tais como sindicais, estudantis, 685

rurais, ecológicos, dentre outros, a partir de 1984 até a presente data, apresentam a emergência de novos atores sociais que lutam por melhoria de condições de vida, bem como pela manutenção da democracia. Destacam-se, ainda, os movimentos nacionais intitulados “Ética na Política”, os quais lutam contra a corrupção (responsável pela articulação que depôs o ex-presidente Collor de Mello, em 1992), bem como os “CarasPintadas”, movimento estudantil de 1992, que surgiu após as “Diretas Já”. Verifica-se, portanto, que há uma nova prática de organização, interlocução e articulação para a concretização da democracia e liberdade de expressão. Os referidos movimentos urbanos e nacionais deixaram a militância como herança para a nova geração, abrindo-lhe a possibilidade de participação “[...] com um controle social mais efetivo, menos cooptada e menos caudatária às redes de clientelismo.” (GOHN, 2013, p. 171). Caracterizando novas formas de organização social, articuladas pelos meios de comunicação e através de fóruns específicos, os movimentos sociais urbanos reconhecem no plano dos valores ou da moral que tais processos de mobilização giram em torno de projetos sociais mais amplos do que apenas a reivindicação sem objetivos, apenas para tumultuar o processo democrático. Com as mudanças sociais e políticas ocorridas no século XXI emergem novos atores sociais, mobilizando-se em movimentos sociais urbanos como um mecanismo de inclusão social e oposição aos obstáculos à construção da democracia, segundo os princípios da cidadania. Registra-se, ainda, que a mobilização das massas no cenário político nacional é uma forma de pressão ou de manifestação para fazer o chamamento da sociedade, apresentando uma nova agenda, com novos atores, que querem ser partícipes do projeto de consolidação do espaço democrático. É evidente que os movimentos sociais urbanos ganharam novos contornos nesse século e não podem ser pensados de forma isolada do contexto

histórico

e

conjuntural

do

momento,

no

qual

os

novos

interlocutores – não apenas aqueles representados pelas ONGs, associações, Terceiro Setor, mas cidadãos que mesmo não pertencendo a um ou outro – mobilizam-se e têm uma identidade modelada a partir das novas agendas de ideias e demandas (GOHN, 2013, p. 173), quais sejam, tornarem-se 686

protagonistas da história em curso. Há um processo de reformulação de novas políticas que vai alterando a identidade dos movimentos sociais populares, e não envolve apenas os cidadãos de uma determinada categoria socioeconômica e cultural. Assim, novas categorias passam a integrar e participar dos movimentos sociais, seja por meio de passeatas e fóruns, ou por debates nas redes sociais. Partindo da constatação de que novos interlocutores estão surgindo e se mobilizando, Gohn (2011, p. 301) acredita que "A construção de uma nova

concepção

empreendidas

de

por

sociedade

movimentos

civil e

é

resultado

organizações

das

sociais

lutas nas

sociais décadas

anteriores, que reivindicaram direitos e espaços de participação social." Nesta

perspectiva,

alguns

elementos

são

necessários

para

a

participação de sujeitos que antes eram meros espectadores e agora se inserem nos movimentos sociais como protagonistas. Suas ações devem ser permeadas pela ética e solidariedade, pois conforme Gohn (2013, p. 173), elas precisam aprender a “[...] identificar projetos diferentes ou convergentes, gerados como respostas às pressões e demandas socioeconômicas que elas fazem.” De tudo isso se abstrai que “Este espaço é trabalhado segundo princípios da ética e da solidariedade, enquanto valores motores de suas ações, resgatando as relações pessoais, diretas e as estruturas comunitárias da sociedade [...].” (GOHN, 2011, p. 301). Ao mesmo tempo, Resgatam-se regras de civilidade e de reciprocidade ao se reconhecer como detentores de diretos legítimos os novos interlocutores: grupos de favelados, de mulheres discriminadas, de crianças maltratadas, de ecologistas militantes, de sem-terra e/ou sem-teto, entre outros. [...] assiste-se, na sociedade brasileira, à recriação da esfera pública – que leva alguns analistas a falarem em reinvenção da república. (GOHN, 2011, p. 301).

Diante dessas considerações pode-se afirmar que com a emergência de novos atores há uma (des) mobilização dos movimentos populares urbanos, haja vista que as demandas deslocaram-se da agenda dos excluídos de uma determinada classe social e passaram a fazer parte da agenda de todos os brasileiros que vivem uma nova – mas não desconhecida 687

– democracia participativa. O que se modifica com esses deslocamentos de pautas são as identidades múltiplas dos sujeitos e dos interlocutores que agem em redes, com demandas e problemas sociais diferentes dos grupos sociais que lutam para ter um mínimo existencial para uma sobrevivência com a dignidade. Por isso, se reconhece “[...] que nem todas as ações coletivas desenvolvem laços de pertencimento, assim como não desenvolvem a consciência de resistência ou o desejo de emancipação social.” (GOHN, 2013, p. 169). Faz-se necessário, portanto, a presença de novos atores para demonstrar

que

a

articulação

desses

movimentos

não

se



por

contraposição ao Estado e à ideologia vigente, mas a favor de um Brasil menos corrupto, com políticas públicas voltadas ao cidadão hipossuficiente. Ademais, acredita-se na necessidade de redefinição do papel do Estado, “restaurando a esperança e a crença que vale a pena lutar por uma sociedade mais justa e igualitária” (GOHN, 2011, p. 342), pois o que se observa é que não mais atende às necessidades e demandas da população. Em síntese, os novos atores sociais que emergiram na sociedade brasileira configuram novos espaços e formatos de participação e de relações sociais e, inevitavelmente vão se integrando por meio das redes sociais e comunidades e ocupando um espaço que antes não lhes interessava. A tendência é aumentar a participação em questões políticas e sociais, evidenciando que “[...] a capilarização do acesso às redes eletrônicas, incluindo os celulares e os dispositivos móveis [...]” (GUZZI, 2014, p. 240),está possibilitando que esses novos atores reconheçam que podem contribuir para o fortalecimento da democracia e da cidadania. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A pretensão deste artigo não foi esgotar o assunto, e sim analisar a importância dos movimentos sociais urbanos em relação aos atuais meios de comunicação para a consolidação da democracia e liberdade de expressão, cujas garantias são previstas constitucionalmente. Os movimentos sociais, tanto urbanos quanto rurais, em suas 688

diversas formas e objetivos, possuem uma finalidade em comum, qual seja, a manutenção da democracia e da liberdade de expressão. Assim, é perceptível que os movimentos sociais existem há anos, e que até hoje são utilizados para que a democracia só “caminhe para frente”, pois é uma das formas de controlar e ajudar o governo a gerir o Brasil. Quando o povo não é ouvido por seus representantes políticos, ele sai às ruas para lutarem por seus direitos. Observa-se, contudo, um ponto crítico: nem toda movimentação da sociedade é um movimento social reconhecido. Não basta, portanto, o intento de sair às ruas, de forma descontrolada, sem ao menos possuir um objetivo/finalidade em comum. Ademais, não se pode reconhecer o movimento se as pessoas saem de maneira desordenada para batalhar por direitos que sequer reconhecem como seus, apenas pela participação e popularidade. Movimentos dessa espécie possibilitam a infiltração de sujeitos com objetivos diversos daqueles por ventura defendidos, com a marginalização de condutas e o cometimento de crimes. Quando se trata de movimentos criados em redes sociais é preciso saber do que se trata, e se realmente está de acordo com o que a sociedade necessita. Muitos movimentos são organizados com o fito de legalizar a participação

de

“baderneiros”,

incitando

confusões

e

violência,

sem

aproveitar o momento para a consecução de roubos, furtos, depredação de patrimônios, etc. O principal foco deste artigo foi demonstrar aos leitores que os movimentos sociais precisam estar presentes na sociedade a fim de consolidar a democracia, em especial porque exteriorizam o direito à liberdade de expressão. Não se pode deixar de mencionar também, que a consolidação da democracia e a exteriorização da liberdade de expressão surgem com a emergência de novos atores sociais que fazem parte de várias classes sociais. As manifestações passaram a fazer parte da agenda de todos os brasileiros que vivem uma nova – mas não desconhecida– democracia participativa. Em síntese, os novos atores sociais que emergiram na sociedade brasileira configuram novos espaços e formatos de participação e de relações 689

sociais e, inevitavelmente, estes vão se integrando por meio das redes sociais e comunidades e ocupando um espaço que antes não lhes interessava. A tendência é aumentar a participação em questões políticas e sociais, evidenciando a necessidade da presença de novos atores para demonstrar que a articulação desses movimentos não se dá por contraposição ao Estado e à ideologia vigente, mas a favor de um Brasil menos corrupto, com políticas públicas voltadas não só ao cidadão hipossuficiente, mas a todos que lutam por um país melhor. Acredita-se, portanto, na necessidade de redefinição do papel do Estado, ou seja, um Estado comprometido com a justiça social e o bem-estar de todos e não de apenas uma determinada classe social. REFERÊNCIAS ALVES, Teresa Costa. Média, movimentos sociais e democracia participativa: as mensagens políticas nos cartazes da manifestação de 15 de setembro de 2012. Estudos em Comunicação. Portugal: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), Universidade do Minho, nº 14, dez., 2013. ARAÚJO, Ana Paula de. Textos jornalísticos. Disponível em: http://www.infoescola. com/redacao/textos-jornalisticos/. Acesso em: 13 mar. 2015. GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e redes de mobilizações civis no Brasil contemporâneo. 7.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. ______. Teorias dos movimentos sociais. 9.ed. São Paulo: Loyola, 2011. ______. (Org.). Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e novos atores sociais. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. GUZZI, Adriana de Araújo. Web e Participação: a democracia no século XXI. São Paulo: Senac, 2014. LEVY, Pierre. Inteligência Coletiva. São Paulo, SP: Ed. Loyola, 2011. MEIO & MENSAGEM. Facebook tem 89 milhões de usuários no Brasil. Disponível em:http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/noticias/2014/08/ 22/Facebook-tem-89-milhoes-de-usuarios-no-Brasil.html#ixzz3VARqpOxl. Acesso em: 22 mar. 2015. NASCIMENTO, Valéria Ribas de;RODRIGUES, Marcio Schorn. A sociedade 690

informacional em xeque: princípio da publicidade versus direito à intimidade e a Lei nº 12.527/11. In: OLIVEIRA, Rafael de; BUDÓ, Marília de Nardin (Orgs.). Mídias da sociedade em rede(Orgs.) Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2014. OLIVEIRA, Rafael Santos de; RODEGHERI, Letícia Bodanese. As potencialidades de participação popular na internet:análise do Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=67ff32d40fb51f1a. Acesso em:10 mar. 2015. PEREIRA, Marcus Abílio. Internet e mobilização política – os movimentos sociais na era digital. Disponível em: http://www.compolitica.org/home/wp-content/uploads/2011/03/MarcusAbilio.pdf. Acesso em: 10 mar. 2015. RIBEIRO, Paulo Silvino. Movimentos Sociais: Breve definição. Brasil Escola. Disponível em: http://www.brasilescola.com/sociologia/movimentos-sociais-brevedefinicao.htm. Acesso em: 20 mai. 2014.

691

A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS (DIR) EM ÁREAS ESPECÍFICAS Ana Cristina Mendes1 Valéria Mendes Pinheiro2 1. INTRODUÇÃO A temática “direitos humanos dos imigrantes refugiados no Brasil e no mundo” é tema atual e constante nos diversos meios de mídia que cercam a todos diariamente. A relevância desse assunto é tão imensa que para abordá-lo necessário se faz voltarem-se os olhos a tutela dos direitos humanos e, assim, a um dos pontos de maior relevância quando se fala em tutela de direitos, que é o marco inicial da internacionalização dos direitos humanos, a Carta das Nações Unidas, a qual foi criada logo após o final do segundo grande conflito, em 1945, a qual demarca um novo cenário, uma nova ordem internacional e, logo sucedida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Foi a partir desta nova ordem internacional que sobreveio da necessidade de prevenir, a nível internacional, que novas barbáries fossem cometidas com os seres humanos, que houve uma conscientização dos Estados da necessidade de uma ordem além-fronteiras que fosse capaz de tutelar os direitos do homem de forma universal. Foi assim que surgiram as mais importantes cartas de direitos humanos, o que trouxe a universalização dos direitos do homem. Nesta esfera o Brasil, signatário de vários Tratados Internacionais de Direitos Humanos, deu início à adequação do ordenamento jurídico aos novos direitos, o que foi marcado pela promulgação da Constituição federal de 1988, com a institucionalização dos direitos humanos e adesão a importantes instrumentos internacionais de direitos humanos. A partir deste histórico o presente estudo busca analisar o histórico da Advogada, Pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil pela UNICRUZ - Universidade de Cruz Alta. Possui curso de formação com carga horária de 530h pela Fundação Escola Superior do Ministério Público. 2 Graduanda em Direito pela UFPEL – Universidade Federal de Pelotas. 1

692

internacionalização dos direitos humanos, bem como criação e a adequação do Direito Internacional dos refugiados, bem como os avanços ocorridos no âmbito nacional no que se refere à efetivação da tutela dos direitos humanos, especialmente no que diz respeito ao Direito Internacional dos Refugiados, abrindo espaço para novos e mais aprofundados estudos sobre esta temática frente à relevância e perfil desafiador e urgente da matéria. 2. O SURGIMENTO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS O Direito Internacional dos Direitos Humanos surge em um cenário pós-guerra, tendo como objetivo permitir o advento dos direitos humanos como questão de interesse internacional. Como leciona Piovesan (2007, p. 108) “O Direito Internacional dos Direitos Humanos ergue-se no sentido de resguardar o valor da dignidade humana, concebida como fundamento dos direitos humanos”. Muito embora os direitos humanos já fossem tutelados por leis e tratados em várias Nações, a efetividade e aplicabilidade dos referidos direitos ficavam adstritos à positivação e efetivação destes por meio de cada Estado/País. Foi somente após a efetiva implementação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que ocorreu a universalização destes direitos. Destarte, a partir de uma análise dos fatos horrendos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, observa-se que o regime totalitário produziu violações aos direitos humanos numa dimensão nunca antes vivenciada, expondo a fragilidade dos mecanismos de proteção ao indivíduo, até então existente. A vulnerabilidade, aliada a necessidade de recomeço, bem como de união entre as Nações a fim de conceber instrumento forte o bastante para trazer ao mundo a necessidade de proteção internacional dos Direitos Humanos e, via de consequência, a tutela dos mesmos. (CASADO FILHO, 2012) Com o final de Segunda Grande Guerra, o mundo precisava, com urgência, se reestruturar. Várias ações foram tomadas, do ponto de

693

vista econômico e político, como a criação de organismos internacionais planejados antes mesmo do fim do conflito, na Conferência de Bretton Woods, em 1944. O mundo havia vivenciado a ascensão dos nacionalismos, e, conforme leciona Hobsbawm, em sua clássica obra Nações e nacionalismo, esse fenômeno foi um dos principais motores dos conflitos e das perseguições aos indivíduos. E, entre tais perseguições, a empreendida pelos alemães nazistas aos povos de origem judaica foi a que mais se notabilizou, ficando conhecida como Holocausto. Entretanto, não apenas judeus foram perseguidos e assassinados no período. As perseguições também atingiram militantes comunistas, homossexuais, ciganos, eslavos, deficientes motores, deficientes mentais e pacientes psiquiátricos. Enfim, todos os que não se encaixassem no ideal de perfeição nazista poderiam ser vítimas. E esse receio de que, amanhã, qualquer um poderia ser a próxima vítima fez com que os líderes dos principais países pensassem em soluções institucionais para evitar novas perseguições (CASADO FILHO, 2012. p.64).

Neste ideário surge a premência de garantia dos direitos essenciais do homem, não somente no âmbito interno de cada país, mas em âmbito internacional, onde houvesse a responsabilização e comprometimento dos Estados como forma de não mais permitir que as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial se repetissem. Segundo

Bobbio

(1992)

diante

deste

quadro

evidenciou-se

a

necessidade de tutelar os direitos essenciais do ser humano, com o diferencial de que, nesta etapa deveria ocorrer a tutela dos direitos a nível internacional, com o compromisso e responsabilização dos Estados em âmbito internacional e não mais apenas no recinto interno, por meio da positivação das Constituições nacionais. Entende que, desta forma, seria possível “uma proteção universal dos direitos humanos, no sentido de que os destinatários não são mais apenas os cidadãos de um determinado Estado, mas todos os homens” (BOBBIO, 1992, p. 30). Nesta órbita relevante buscar a evolução histórica do surgimento desta internacionalização dos direitos humanos, bem como os desafios superados a fim de que o indivíduo fosse reconhecido como verdadeiro sujeito

de

direito

internacional.

A

veia

inicial

para

a

referida

internacionalização destes direitos teve como marco histórico o Direito Humanitário, que para Celso Lafer, é um direito que trata de tema clássico de Direito Internacional Público – a paz e a guerra. Ainda, como marco histórico vem a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho, 694

ambas criadas no período pós Primeira Guerra Mundial. Com o surgimento do Direito Humanitário pode-se relativizar o alcance e o âmbito do poder estatal. Para Piovesan (2007, p. 110) “o Direito Humanitário foi a primeira expressão de que, no plano internacional, há limites à liberdade e à autonomia dos Estados, ainda que na hipótese de conflito armado”. Quanto a Liga das Nações acrescenta a mesma autora que “veio para reforçar essa mesma concepção, apontando para a necessidade de relativizar a soberania dos Estados”. Na sequência aduz que “... tinha como finalidade promover a cooperação, paz e segurança internacional e a independência política de seus membros”. Organismo concebido ao final da Primeira Guerra Mundial, com objetivo de manter a paz e a segurança no planeta e estimular a cooperação internacional. Ocorre que, a Segunda Guerra Mundial mostrou o fracasso da Liga das Nações, o que ensejou a busca por alternativas mais eficazes (SIMON, 2008). Por sua vez a Organização Internacional do Trabalho trouxe como premissa a preocupação com as condições de trabalho, promovendo parâmetros básicos de trabalho e bem estar social, ou seja, seu objetivo era regular a condições dos trabalhadores no âmbito mundial. Considerando as premissas individuais de cada um dos três institutos acima citados, pode-se dizer que estes foram a base para o processo de internacionalização dos direitos humanos. A partir desta nova concepção, o direito internacional deixa de ser entendido como aquele que regula as relações governamentais entre Estados, para passar a ter como premissa básica a salvaguarda dos direitos do ser humano (PIOVESAN, 2007, p. ). A corroborar o entendimento acima declinado, Lucas (2009) afirma que os direitos humanos compõem um sistema ético e jurídico transnacional, cujas responsabilidades vão além das soberanias, que tem como objetivo principal o reconhecimento dos problemas humanos, ao lado da criação de cultura política, jurídica e institucional de comprometimento com a humanidade. Com supedâneo em tais ideários, mister trazer a lume as ponderações de Bedin (2009. p. 24) quando refere que o idealismo político, embasado em 695

seus pressupostos estabelecem novas possibilidades e viabilizam um novo olhar sobre as relações internacionais, o que possibilita a “afirmação de que é possível delinear um sistema internacional articulado, não a partir da noção de poder, mas do predomínio do Estado de Direito”. Muito embora o marco inicial e primeiros delineamentos tenham ocorrido no período pós Primeira Guerra Mundial, com a Liga das Nações, foi depois da Segunda Guerra Mundial e, provavelmente pelas horrendas violações dos direitos humanos que a internacionalização dos direitos humanos veio a se consolidar. Referidas constatações reclamam concluir que a internacionalização dos direitos humanos é, na verdade, um movimento novo a nível histórico. Segundo se depreende dos ensinamentos de Piovesan (2007) a internacionalização

dos

direitos

humanos

trata-se

de

um

fenômeno

historicamente novo, eis que surgiu após o período de violências atrozes e violações sem precedentes dos direitos humanos pelo nazismo. Destaca que a Era Hitler marcou a atuação do estado como sendo o transgressor dos direitos humanos, na qual o extermínio de vários milhões de seres humanos marcou a redução da pessoa humana a “algo” descartável e destrutível. “O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça – a raça pura ariana” (PIOVESAN, 2007, p. 116). Ao lado disso, há que se citar a análise das barbáries cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, pelo nazismo, ao que é chamado de “máquina de matar nazista”: “O principal alvo eram os judeus e seus descendentes, mas a máquina de matar nazista também perseguiu ciganos, homossexuais e deficientes mentais” (CASADO FILHO, 2012, p. 42). Casado Filho (2012) refere que os fatos ocorridos durante o nazismo eram até aquele período inimaginável, pois o Estado simplesmente determinou o extermínio das pessoas que para Hitler, eram indesejadas. Frente às atrocidades imensuráveis ocorridas durante o período da Segunda Guerra Mundial em nome de um idealismo atroz impactaram de tal forma o mundo, que necessário foi repensar o sistema a fim de evitar que tamanhos desrespeitos aos direitos fundamentais voltassem a ocorrer. 696

Neste viés, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado por Casado Filho (2012, p. 43), quando refere que após o fim da Segunda Guerra Mundial quando o “mundo” teve o real conhecimento das atrocidades cometidas pelo Estado, houve muita pressão para a criação de institutos, ou mecanismos que pudessem evitar que novas barbáries ocorressem. Destaca que após a destruição causada pelas bombas atômicas que devassaram Hiroshima e Nagazaki, o mundo teve ciência de que o homem poderia acabar com o Planeta. Para Casado Filho, tais fatos mudaram o pensamento das pessoas, o que, de certa forma, facilitou a aceitação de acordos e tratados internacionais sobre direitos humanos. Tal ideário foi simbolizado e colocado em prática pela Carta das Nações Unidas, criada logo após o final do segundo grande conflito, em 1945, a qual demarca um novo cenário, uma nova ordem internacional. Surge em um contexto em que as Nações clamam por paz. Seu objetivo principal, segundo Casado Filho (2012, p.) “é o de ‘preservar as gerações futuras do flagelo da guerra’. E sua forma de atuar foi, sobretudo, declarar os direitos que considerava fundamentais e que precisavam ser respeitados por todos os Estados”. Além da preocupação com a paz, ainda a Carta das Nações Unidas tutela:

a “segurança internacional, o desenvolvimento de relações amistosas entre os Estados, a adoção da cooperação internacional no plano econômico, social e cultural, a adoção de um padrão internacional de saúde, a proteção ao meio ambiente, a criação de uma nova ordem econômica internacional e a proteção internacional dos direitos humanos” (PIOVESAN, 2007. p. 124).

Na explicação de José Augusto Lindgren Alves (apud Piovesan, 2007, p. 129) após a assinatura da Carta das Nações Unidas houve o comprometimento da comunidade internacional de promover e fortalecer o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais de todo ser humano indistintamente. Com este objetivo, o órgão das Nações Unidas responsável pelos direitos humanos, - CDH Comissão de Direitos Humanos, foi responsável pela elaboração de um documento internacional de direitos 697

humanos, o que teve início pela criação da Declaração. Desta forma, embasada no teor de todos os artigos da Carta das Nações Unidas, com ênfase especial ao seu primeiro artigo fica consolidado o movimento de internacionalização dos direitos humanos. Artigo 1. Os propósitos das Nações unidas são: 1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns.

Em que pese os direitos humanos estarem repetidamente tutelados na Carta das Nações Unidas, a qual determina sejam aqueles defendidos e promovidos entre os povos em caráter internacional e universal, lacunas ficaram presentes eis que não havia a definição do que significava a expressão “direitos humanos e liberdades fundamentais” a qual vem positivada no artigo 1.3. da referida Carta: “Conseguir uma cooperação internacional [...]

para promover e estimular o respeito aos direitos

humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Assim, imperioso se faz lançar mão dos estudos apresentados por Piovesan (2007), em sua tese de Doutorado intitulada Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional quando aduz que, embora a Carta das Nações Unidas traga a necessidade e o dever de promover e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais , ela não define o conteúdo destas expressões, deixando-as em aberto. Daí o desafio de desvendar o alcance

e

significado

da

expressão

“direitos

humanos

e

liberdades

fundamentais”, não definida pela Carta. 698

A lacuna existente na Carta das Nações Unidas quanto à significação da expressão “Direitos humanos e liberdades fundamentais” trouxe muita discussão para o meio jurídico e político mundial, eis que nesta expressão está o ponto nodal dos direitos humanos. Foi com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que foi definido, com precisão o elenco dos “direitos humanos e liberdades fundamentais”. Logo em seu artigo primeiro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos aduz que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (PIOVESAN, 2007). Neste diapasão, trazendo a lume as palavras de Ramos (2013, p. 18), as quais sinteticamente traduzem a significação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, descrevendo os direitos políticos e civis e os direitos econômicos, sociais e culturais: No preâmbulo da Declaração é mencionada a necessidade de respeito aos “direitos do homem” e logo após a “fé nos direitos fundamentais do homem” e ainda o respeito “aos direitos e liberdades fundamentais do homem”. Nos seus trinta artigos, são enumerados os chamados direitos políticos e liberdades civis (arts. I-XXI), assim como direitos econômicos, sociais e culturais (arts. XXII-XXVII). Entre os direitos civis e políticos constam o direito à vida e à integridade física, o direito à igualdade, o direito de propriedade, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, o direito à liberdade de opinião e de expressão e à liberdade de reunião. Entre os direitos sociais em sentido amplo constam o direito à segurança social, ao trabalho, o direito à livre escolha da profissão e o direito à educação, bem como o “direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis” (direito ao mínimo existencial – art. XXV).

Embasado nas ponderações estruturadas até o momento, importante destacar que, apesar de todo o lento processo de internacionalização dos direitos humanos, o qual perpassou por diversos Tratados e Organismos Internacionais, a efetiva Universalização, internacionalização e inerência dos Direitos Humanos, ocorreu com a edição da Declaração Universal de Direitos Humanos. A partir deste marco, basta a condição humana para ser titular dos direitos essenciais. Nas palavras de Casado Filho (2012, p. 69) “A partir da Declaração, pode-se dizer que o ser humano começou a ter voz no plano internacional...”. Aprovada a Declaração Universal dos Direitos do Homem e, via de 699

consequência, a internacionalização, a universalização dos direitos humanos na sua concepção contemporânea, necessário se faz analisar o valor jurídico desta

Declaração.

Nos

ensinamentos

de

Piovesan

(2007,

p.

137)

encontramos como resposta acerca desta indagação que, partindo da premissa de que a Declaração Universal dos Direitos do Homem possui força vinculante, ficam os Estados membros das Nações Unidas obrigados a promover o respeito e a observância universal dos Direitos positivados na Declaração. 3. O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIR – DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS Em época de eclosão de migrações de pessoas vindas de vários lugares do mundo, as quais vem buscar refúgio no Brasil, necessário se faz analisar se os Direitos Humanos dos refugiados que buscam refúgio no Brasil

estão

sendo

respeitados;

se

a

legislação

brasileira

está

em

consonância com os Tratados Internacionais dos quais é signatário. Neste diapasão calha referir que refugiado é todo indivíduo que, ameaçado e perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, precisam deixar seu local de origem ou residência habitual para encontrarem abrigo e morada em outros países do Globo. (ALMEIDA, 2012) A análise da situação dos refugiados no Brasil reclama uma interpretação alicerçada em múltiplas divisões que passaram a tutelar a proteção da pessoa humana em qualquer circunstância. As tutelas internacionais dos Direitos Humanos são divididas em duas grandes esferas, uma em âmbito universal e outra em âmbito regional. Em âmbito universal compreende o DIDH – Direito Internacional dos Direitos Humanos, o DIH – Direito Internacional Humanitário e o DIR – Direito Internacional dos Refugiados, os quais, apesar de se constituírem como ramos distintos e autônomos, são considerados, na verdade vertentes complementares e convergentes do DIP – Direito Internacional Público (PEREIRA, 2009, p ). Cumpre aqui destacar as diferenças existentes entre os institutos do 700

asilo e do refúgio, pois o asilo remonta ao final do Século XIX, ao passo que o refúgio foi tutelado somente após o final da I Guerra Mundial, ou seja, no Século XX. Ainda, o asilo, tanto o territorial quanto o diplomático, encontrase ligado apenas ao fato de existir, em si, perseguição política que enseje o direito de proteção a algum indivíduo e é praticado, sobretudo, em perspectiva regional, no âmbito latino-americano. O direito de refúgio, por sua vez, é assegurado universalmente e aplicado, então, em âmbito universal, a partir de cinco motivos geradores do bem fundado temor de perseguição, seu elemento essencial, quais sejam: raça, religião, opinião política, pertencimento a um determinado grupo social e nacionalidade precípua de proteção da pessoa humana em toda e qualquer circunstância, tendo-a, consequentemente, como destinatário final de suas normas processuais e substantivas, são considerados vertentes complementares e convergentes do DIP (ALMEIDA, 2012). No âmbito regional a tutela dos direitos humanos é dividida em três sistemas: Sistema Europeu de Proteção dos direitos Humanos, Sistema Americano de Proteção dos Direitos Humanos e Sistema Africano de proteção dos Direitos Humanos (FROEHLICH; VIEIRA, 2009). No âmbito da proteção internacional dos Direitos Humanos acima mencionados será efetuado estudo sistemático de cada um dos três eixos individualmente, com maior ênfase no DIDH – Direito Internacional dos Direitos Humanos e no DIR – Direito Internacional dos Refugiados, que é aquele que, muito embora seja parte integrante dos demais, a saber: DIR - Direito Internacional dos Refugiados é o eixo que detém a finalidade precípua de, no cenário internacional, proteger os indivíduos que por motivos de raça, nacionalidade, opinião política, religião ou pertencimento a determinado grupo social, foram forçados a abandonar seus lares para irem viver em uma região do globo que não a sua de costume ou origem. (ALMEIDA, 2012)

Observa-se pelo teor do artigo acima mencionado que o DIR - Direito Internacional dos Refugiados é responsável pela proteção dos refugiados, devendo salvaguardar a pessoa humana de qualquer tipo de violação de direitos, sejam eles civis, políticos, sociais, econômicos etc, estando 701

alicerçado no princípio internacional de proteção a pessoa humana. Nas palavras de Almeida (2012, p. 45) temos que o Direito Internacional dos Refugiados (DRI) é um dos pilares máximos do Direito Internacional dos Direitos Humanos (lato sensu) e seu objetivo principal é proteger pessoas que, por perseguição em função da raça, da opinião política, da nacionalidade, da religião ou da pertença a determinado grupo social, foram forçadas a abandonar seus lares e a viver em áreas territoriais que não as suas de origem. Na mesma linha do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Internacional dos Refugiados tem como objetivo principal a proteção do ser humano. Neste, a proteção ocorre em casos específicos, ou seja, “... o DIR age na proteção do refugiado, desde a saída do seu local de residência, trânsito de um país a outro, concessão do refúgio no país de acolhimento e seu eventual término” (RAMOS, p. 22). O Direito Internacional dos refugiados, bem como o

Direito

Internacional Humanitário não excluem o Direito Internacional dos Direitos Humanos, eis que este é mais abrangente que aqueles, pois se trata de leis especiais e aquele lei genérica, que é aplicada subsidiariamente a todas as situações quando da ausência de previsão específica. Entre os eixos há uma relação de complementaridade, eis que nas lacunas dos específicos, aplica-se o genérico, no caso, o Direito Internacional dos Direitos Humanos. (RAMOS, p. 22) Insta referir que o Direito Internacional dos Refugiados é anterior a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos, eis que remonta ao de 1921 com a criação do Alto Comissariado para os refugiados Russos, o qual foi seguido de outros organismos e comitês com objetivo de proteção aos refugiados. Mas foi no período pós Segunda Guerra Mundial que o mesmo se fortaleceu, juntamente

com

a

Declaração

dos

Direitos

do

Homem

e

da

internacionalização dos Direitos Humanos (ALMEIDA, 2012). Cabe assinalar que foi em meados do mês de julho de 1951 que foi aprovado, pela Conferência das Nações Unidas, o Estatuto dos Refugiados e Apátridas, ao qual o Brasil aderiu. A Convenção relativa ao Estatuto dos 702

Refugiados de 1951, nos moldes do entendimento de Saadeh; Eguchi (2009) “... é considerada a Carta Magna do instituto ao estabelecer, em caráter universal, o conceito de refugiado bem como seus direitos e deveres; entretanto, definiu o termo "refugiado" de forma limitada temporal e geograficamente. Frente à limitação temporal e geográfica da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados – CRER, de 1951; em 1967 foi aprovado o Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados - PRER o qual suprimiu a limitação antes referida quanto a questão temporal, ficando facultativo a cada EstadoParte regulamentar as limitações ou não (ONU, 1967). 4.

O

DIR



DIREITO

INTERNACIONAL

DOS

REFUGIADOS

NO

ORDENAMENTO BRASILEIRO Com o objetivo de regulamentar sua adesão ao Estatuto dos Refugiados, na data de 28 de janeiro de 1961, o Brasil promulgou o Decreto 50.215, por meio do qual foi dado ciência aos brasileiros de todos os termos do Tratado que o Brasil era signatário. A adesão do Brasil foi efetuada, mas com reservas geográfica e temporal, além de limitações dos direitos de associação e de labor remunerado. Foi em 1972 que, de fato, o Brasil aderiu ao Estatuto dos Refugiados, quando foi derrubada a reserva temporal. Na sequencia, em 1989 e 1990, por meio de Decretos Presidenciais, forma derrubadas as restrições da reserva geográfica e de limitações dos direitos de associação e de labor remunerado (SAADEH; EGUCHI, 2009, p. ). Posteriormente foi promulgada a Lei n. 9.474, de 22.7.1997, a qual constitui em verdadeiro Estatuto pessoal do refugiado no Brasil. (SAADEH; EGUCHI, 2009, p.) Consoante entendimento de Ramos (2014, p. 157) em sua obra intitulada Curso de Direitos Humanos, pode-se definir “refugiado” com a combinação do artigo 1º do Protocolo com o artigo primeiro da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, a saber: Combinando-se o que determina o art. 1º do Protocolo com o art. 1º

703

da Convenção, pode-se definir “refugiado” como: • pessoa que é perseguida ou tem fundado temor de perseguição; • por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas e encontra-se fora do país de sua nacionalidade ou residência; • e que não pode ou não quer voltar a tal país em virtude da perseguição ou fundado temor de perseguição.

A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados traz em seu bojo os direitos e deveres dos refugiados, sendo que dentre estes o dever em respeitar as leis do país de acolhida. Quanto aos direitos, os signatários assumem o compromisso, conforme teor do art. 3º, de aplicar as disposições da Convenção aos refugiados “sem discriminação quanto à raça, à religião ou ao país de origem” (ONU, 1951). Importante trazer a baila, ainda, os direitos tutelados no Capítulo III da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, o qual cuida do exercício de empregos remunerados pelos refugiados (art.17) determinando a aplicação do mesmo tratamento dispensado ao estrangeiro, ou ao nacional quanto às regras trabalhistas e previdenciárias (ONU, 1951). Necessário evidenciar que, com o advento da Constituição Federal de 1988, vários dispositivos reproduzem fielmente enunciados constantes dos tratados internacionais de direitos humanos (PIOVESAN, 2007, p. 92). E, ainda, cabe destacar a força hierárquica dos Tratados Internacionais no ordenamento brasileiro que, por força das alterações trazidas pela emenda 45/2004, da Emenda Constitucional n. 45, que introduziu na Constituição de 1988 o § 3º do art. 5º, dispõe: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (BRASIL, 1988). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste cenário de tutela e respeito universal aos direitos do homem, ou seja, a internacionalização dos direitos humanos, onde os indivíduos passaram a ser sujeitos de direito internacional, o Brasil passou a 704

implementar políticas públicas baseadas na tutela destes direitos. Evidenciase que esta mudança de paradigma político teve por base a democratização que teve seu ponto inicial em 1985 e culminou com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Foi com estas alterações no âmbito da política interna que o Brasil voltou a ter respeito em âmbito internacional quanto a questão da proteção dos direitos humanos, o que era e ainda é de interesse da comunidade internacional. A

partir

da

Emenda

Constitucional

45

de

2004, os

Tratados

Internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário passam a ter hierarquia de norma constitucional, passando assim, a fazer parte integrante do Texto da Constituição. Quanto a importante questão sobre o Direito Internacional dos Refugiados e sua adequação e incorporação ao ordenamento Jurídico Brasileiro, tratada na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados podese destacar que muitos avanços houve, mas muitos ainda estão por vir a fim de efetivar os direitos dos refugiados, os quais são garantidos por Tratados Internacionais dos quais o Brasil

é signatário. Dentre as lacunas

evidenciadas quanto aos direitos dos refugiados, tanto no Brasil quanto no âmbito internacional, mister se faz destacar a necessária evolução jurídica quanto aos direitos do refugiado ambiental, eis que novos conceitos surgiram e outros tantos vão surgir. Assim premente que novos institutos sejam criados, ou que os atuais sejam devidamente adequados à nova realidade, novos conceitos de refugiados fazem parte da realidade atual. Portanto, este viés dos “Direitos Humanos é assunto instigante, desafiador e emergencial, na medida em que busca romper com conceitos clássicos e vigentes, e necessário para a eliminação ou amenização das inseguranças e dos riscos hodiernos a que a sociedade está exposta” (ALMEIDA, 2015). Neste diapasão ficou evidente a constante alteração das necessidades dos seres humanos, as quais deve o Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como seus Estados Signatários, estar em consonância, o que exige constante adequação e evolução jurídica, bem como o pleno e total comprometimento do Estado Brasileiro à causa dos direitos humanos. 705

REFERÊNCIAS ALMEIDA, Martasus Gonçalves. Desafios e perspectivas da tutela jurídica dos refugiados ambientais da proteção internacional dos direitos humanos à contituição federal de 1988. Dissertação ((Especialização em Direito Constitucional) Escola da Magistratura do Estado do Ceará- ESMEC. Fortaleza, Ceará, 2012. Disponível em http://portais.tjce.jus.br/esmec/wpcontent/uploads/2014/12/PDF105.pdf. Acesso em : 30 ago 2015. BEDIN, Gilmar Antônio. Estado de direito e relações: É possível o Direito Substituir as Relações de Poder na sociedade Internacional? In: ESTADO DE DIREITO, JURISDIÇÃO UNIVERSAL E TERRORISMO - (Coleção relações internacionais e globalização;24) BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado. htm . Acesso em: 30 ago 2015. BRASIL. DECRETO Nº 70.946, DE 7 DE AGOSTO DE 1972. Estatuto dos Refugiados. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=96932&n orma=121310. Acesso em: 30 ago 2015. BRASIL. DECRETO Nº 19.841, DE 22 DE OUTUBRO DE 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm . Acesso em 29 de agosto de 2015. CASADO FILHO, Napoleão. Direitos humanos e fundamentais – São Paulo : Saraiva, 2012. – (Coleção saberes do direito ; 57) 1. Direitos fundamentais. 2. Direitos humanos – Brasil. I. Título. II. Série. FROEHLICH, Charles Andrade; VIEIRA, Gustavo Oliveira. Ética global e proteção internacional da pessoa humana: dilemas da transnacionalização. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito RECHTD, São Leopoldo, v.1, n. 1, p. 16-27, jan. / jun., 2009, p. 23. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados – CRER (1954). ACNUR. Disponível em: http://www.cidadevirtual.pt/acnur/refworld/refworld/legal/instrume/asylu m/conv-0.html. Acesso em : 28 ago 2015. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados – PRER (1967). ACNUR. Disponível em: . .Acesso em: 28 ago 2015. PEREIRA, Luciana Diniz Durães. O Direito Internacional Dos Refugiados: 706

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707

A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO COMPORTAMENTO SOCIAL: O JORNALISMO JUSTICEIRO E A OFENSA AOS DIREITOS HUMANOS. Danielli Zanini1 Vinícius Bindé Arbo de Araujo2 1. INTRODUÇÃO Vivenciam-se tempos em que, na maioria dos casos, a impunidade é uma certeza. Por isso, cada vez mais, a população está sedenta por justiça. Oportunamente, a mídia tendenciosa e o jornalismo justiceiro ultrapassam os limites legais, do respeito ao próximo e dos direitos humanos, atuando como se fossem instituições inalcançáveis pela lei, e, por vezes, até mesmo como se fossem a lei, para não só denunciar, como julgar e condenar um ou mais indivíduos. A execução fica por conta do povo. É assim que a imprensa tendenciosa e majoritária, irresponsavelmente dá

respostas

à

sociedade,

respostas

construídas,

manipuladas.

As

consequências são as piores possíveis. A população, cega, faz justiça com as próprias mãos. Uma justiça criminosa. O jornalista que jurou assumir o compromisso com a verdade e a informação, jurou buscar o aprimoramento das relações humanas e sociais, jurou visar um futuro mais digno e mais justo para todos os cidadãos brasileiros, não vem cumprindo com seu juramento quando atua de forma sensacionalista, agindo como senhor da vida e da dignidade do ser humano, dispondo desses bens e manipulando a consciência da massa a seu belprazer, para atender, assim, a objetivos e interesses próprios, tendenciosos e mercadológicos. É um jogo de poder. Nesse ínterim, observa-se que o Direito Penal atua somente para pequena parcela da população, como os criminosos de colarinho branco, inacessíveis ao julgamento e execução pelo povo, enquanto este, por sua vez, descarrega todo o sentimento de inconformidade com a justiça atual promovendo linchamentos de pessoas acusadas pela comoção social e pela Graduada em Direito pela UNIJUÍ-TP e Pós-Graduanda em Relações Internacionais pela Clio Internacional e Damásio Educacional. 2 Graduado em Direito pela UNIJUÍ-TP. 1

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mídia. A partir dessa perspectiva, questiona-se qual é o grau de influência que o jornalismo justiceiro tem na vida das pessoas? Mais do que isso, qual é o impacto da notícia veiculada de forma errônea, com caráter manipulador e sob o falso exercício da liberdade de expressão na vida das pessoas, bem como quais direitos fundamentais lhes são feridos e quais as consequências que isso pode representar na vida de um ser humano? Ainda há preocupação com a reparação do dano causado e, havendo, seria possível restaurar o bem maculado? Essas são questões relevantes, uma vez que interferem nos direitos humanos, direitos fundamentais do indivíduo e, portanto, tão importantes, haja vista que se relacionam com o íntimo de cada ser. Questões que merecem ser pensadas e debatidas, a fim de que as pessoas desenvolvam a habilidade de discernir o que é sensacionalismo do que é jornalismo correto e informativo, que em vez de ferir direitos, zela pela garantia destes. 2. DESENVOLVIMENTO 2.1 A influência da mídia no comportamento humano ou social A crescente busca por audiência a qualquer custo, medida através de pontos percentuais entre os principais canais de televisão aberta no Brasil, ou seja, veículos de mídia que se utilizam de concessões públicas para apenas e, tão somente, lucrarem desenfreadamente, fez com que se ampliassem os programas sensacionalistas que possuem foco no dia a dia da polícia, em uma cruzada contra os bandidos que, segundo esta própria mídia, estão cada vez mais a solta pelo país. São programas que abusam de frases de efeito, em uma tentativa sórdida de influenciar a opinião pública, explorando o descontrole do crime e expondo de forma nua e crua as ações policiais em subúrbios e áreas periféricas de grandes cidades. A partir dessa introdução, Llosa apresenta uma possível causa dessa “sensacionalização” do jornalismo, uma vez que, visando agradar ao público 709

para assim atingir maiores índices de audiência, a mídia promove a espetacularização da notícia, aos moldes do que a cultura do espetáculo exige, vejamos: A fronteira que tradicionalmente separava o jornalismo sério do sensacionalista e marrom foi perdendo a nitidez, enchendo-se de buracos, até se evaporar em muitos casos, a tal ponto que em nossos dias é difícil estabelecer diferença nos vários meios de informação. Porque uma das consequências de transformar o entretenimento e a diversão em valor supremo de uma época é que, no campo da informação, isso também vai produzindo, imperceptivelmente, uma perturbação subliminar das prioridades: as notícias passam a ser importantes ou secundárias sobretudo, e às vezes exclusivamente, não tanto por sua significação econômica, política, cultural e social, quanto por seu caráter novidadeiro, surpreendente, insólito, escandaloso e espetacular. Sem que isso tenha sido proposto, o jornalismo de nossos dias, acompanhando o preceito cultural e imperante, procura entreter e divertir informando; assim, graças a essa sutil deformação de seus objetivos tradicionais, o resultado inevitável é fomentar uma imprensa também light, leve, amena, superficial e divertida que, nos casos extremos, se não tiver à mão informações dessa índole para passar, as fabricará por conta própria (LLOSA, Mario Vargas, 2013, p. 47-48).

Ao simplesmente noticiar ações policiais, clamando por leis e penas mais duras e mais e mais detenções, a fim de que se dê o exemplo que a “bandidagem” merece, programas televisivos como Cidade Alerta, na Rede Record, e Brasil Urgente, na TV Bandeirantes, expõe ao público de classe média ou baixa, uma visão deturpada e simplista dos fatos. A partir deste cenário, qual reação podemos esperar por parte de trabalhadores que, após um cansativo dia de trabalho, chegam em seus lares e acabam por encarar programas com esse grau de intransigência? A televisão aberta no Brasil padece de um mal que tomou conta de praticamente todas as mídias tradicionais, incluindo jornais, revistas e rádios. Nesse viés, pode-se constatar a falta do contraditório, da reportagem de campo e investigativa, da busca pelas causas e não somente das consequências, sobretudo, da carência de um debate mais aprofundado e qualificado. Há que se ressaltar que, não são apenas os programas que apresentam em sua íntegra a busca por justiça a qualquer custo, não importando a truculência policial, a falta de uma investigação mais 710

avançada ou a busca por respostas vindas também das comunidades que deixam a desejar. Os telejornais também pecam em suas coberturas superficiais, ávidos por furos de reportagem que se confundem com abordagens de pouca credibilidade. Poucos são os programas inclusivos, preocupados em levar ao público informações embasadas e qualificadas, a partir do depoimento de especialistas e pesquisadores, principalmente em se tratando de temas sensíveis como, por exemplo, a segurança pública. Nesse sentido, a perspectiva de Wolf, citado por Marília Denardin Budó (2006), encaixa-se com a interpretação que este estudo pretende apresentar acerca do tema proposto: [...] o caráter comercial da informação é preponderante no que se refere aos veículos de comunicação brasileiros. Ao optar entre os valores-notícia interesse (do público) e importância, aquele se sobrepõe, abrindo espaço na divulgação da informação para interesses individuais, e, conseqüentemente, para o sensacionalismo. Opta-se, então, pela confusão entre informação e entretenimento, ressaltando-se os aspectos engraçados, dramáticos e de aparente conflito, para então divertir. Na prática, percebe-se que “quanto mais negativo, nas suas conseqüências é um acontecimento, mais probabilidades tem de se transformar em notícia”.

Quando falamos em telejornais, devemos lembrar que alguns dos principais

noticiários

da

grande

mídia

brasileira

são

notórios

em

manipulações de pautas, sem qualquer pudor ou ética jornalística, abordando apenas aquilo que é de interesse dos grupos proprietários dos canais televisivos. Até mesmo o telespectador nem tão crítico é capaz de notar a diferença abissal de cobertura jornalística quando se trata de crimes envolvendo a classe média alta ou a classe mais desfavorecida. Não é à toa, que o massacre vivenciado nos últimos anos pela população jovem e negra no Brasil, vem sendo dramaticamente omitido dos principais meios de comunicação de massa em nosso país. Para reforçar esse entendimento, vale destacar o ponto de vista de Budó (2006) no que diz respeito à seletividade editorial da mídia nativa: Assim, mais do que divulgar acontecimentos, o jornalismo possui um papel de definir quais são os fatos que repercutirão na mídia, e quais não serão conhecidos. Além desse quadro de abordagem da realidade, ainda o jornalista define qual o ângulo será privilegiado na

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notícia, mesmo que isto ocorra inconscientemente. Quando se trata de notícias sobre crimes, o senso comum jornalístico é preponderante ao definir a forma de abordagem do fato. Apesar de defenderem a objetividade, na sua maioria os jornais são absolutamente sensacionalistas nesse tipo de caso. Como percebe Lage (1979, p. 24) o sensacionalismo permite que se mantenha um elevado índice de interesse popular (o que é conveniente para o veículo, na época de competição por leitores e de maximalização publicitária), refletindo, na divulgação de crimes e grandes passionalismos, uma realidade violenta muito próxima de imprecisos sentimentos do leitor; oferece-lhe, em lugar da consciência, uma representação de consciência (...). Quanto aos problemas, eles se esvaziam no sentimentalismo ou se disfarçam na manipulação da simplificação e do inimigo único.

Um ponto importante a ser observado é o do oportunismo da mídia, que além de promover uma sensação de insegurança na população, se aproveita desse sentimento para incentivar uma reação do povo no sentido de buscar eliminar a sua ansiedade e insegurança a partir do extermínio do que lhe causa mal, exorcizando o “monstro da vez”, normalmente indicado também pela própria mídia. Cabe destacar aqui, que após a justiça feita pelas próprias mãos, a sensação de segurança e alívio é momentânea. Nesse sentido, vale destacar trecho do sociólogo Bauman, sobre os sentimentos de insegurança da população e a tendência a expurgar um monstro simbólico na tentativa de eliminar as ansiedades acumuladas, vejamos: As cidades contemporâneas são campos de batalha em que os poderes globais e os significados e identidades obstinadamente locais se encontram, se chocam, lutam e buscam um acordo que se mostre satisfatório ou pelo menos tolerável – um modo de coabitação que encerre a esperança de uma paz duradoura, mas que, em geral, se revela um simples armistício, um intervalo para reparar as defesas avariadas e redistribuir as unidades de combate. [...] Sendo um componente permanente da vida urbana, a presença perpétua e ubíqua de estranhos visíveis e próximos aumenta em grande medida a eterna incerteza das buscas existenciais de todos os habitantes. Essa presença, impossível de se evitar senão por breves momentos, é uma fonte de ansiedade inesgotável, assim como de uma agressividade geralmente adormecida, mas que volta e meia pode emergir. O medo do desconhecido, mesmo se subliminar, busca desesperadamente escoadouros confiáveis. As ansiedades acumuladas tendem a ser descarregadas sobre os “forasteiros” [...]. O fantasma atemorizante da incerteza é exorcizado por algum tempo – queima-se simbolicamente o monstro assustador da insegurança. [...] Mas a líquida vida moderna tende a permanecer inconsistente e caprichosa, sejam quais forem os apuros infligidos aos “forasteiros indesejáveis”, e portanto o alívio é momentâneo, e as esperanças

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investidas nas “medidas duras e decisivas” se esvanecem tão logo se apresentam (BAUMAN, Zygmunt, 2004).

A partir do trecho exposto, pode-se analisar que muitos são os eleitos para figurar no papel de monstros que ameaçam os “cidadãos de bem”, gerando insegurança na população. Cotidianamente, vemos a opinião pública se voltar contra os negros, os pobres, os moradores de comunidades, e um tipo mais recente nos noticiários, os imigrantes. Esses são apresentados como ameaças à população, que, manipulada por manchetes e notícias tendenciosas, reúne suas forças no combate ao que lhe causa medo e promove assim mais injustiças e violências. Nesse sentido, cabe transcrever novamente o que Bauman assevera acerca do tratamento preconceituoso sofrido por alguns segmentos da sociedade em tempos de consumismo, uma vez que não são úteis para a economia consumista, acabam por se tornar alvo da exclusão social e, nesse sentido, fazendo uma ligação com a análise do presente artigo, podem, facilmente, ser acusados pela mídia sensacionalista, Quase fisicamente liquidados (a pressão por tal “solução” manifestase mais patentemente nos lemas populistas que exigem a deportação de estrangeiros, esse “sorvedouro dos nossos recursos”, e o fechamento das fronteiras aos migrantes, definidos a priori como parasitas e aproveitadores, não produtores de riqueza), eles precisam ser isolados, neutralizados e destituídos de poder, de tal modo que a possibilidade de seus infortúnios e humilhações maciços, porém individualmente experimentados, se condensar em protesto coletivo (quanto mais eficaz) seja mais diminuída, idealmente reduzida a zero. Esses resultados são buscados mediante a estratégia bifurcada da incriminação da pobreza e brutalização dos pobres (BAUMAN, Zygmunt, 1998).

Ainda, outra forma de interferência da mídia é por meio da promoção do clamor público, que por sua vez pressiona os órgãos do legislativo a dar uma resposta imediata à criminalidade, e como consequência disso, vemos cada dia mais um número maior de leis sendo propostas, ocorrendo assim uma inflação legislativa a partir do clamor da população. Nesse aspecto, Baratta, citado por Budó (2006) fala sobre a mídia espetacular, Baratta (1994) também levanta a questão do espetáculo e da

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influência da opinião pública no exercício crescente da função simbólica do sistema penal. Ele acaba servindo como resposta à demanda por segurança, mesmo que na prática não realize as funções instrumentais prometidas. “Na verdade, na ‘política como espetáculo’ as decisões são tomadas não tanto visando modificar a realidade dos espectadores: não procuram tanto satisfazer as necessidades reais e a vontade política dos cidadãos, senão vir ao encontro da denominada ‘opinião pública”.

A partir dessa realidade, percebe-se que muitos direitos e garantias individuais têm sido frequentemente violados. Nesse sentido, dentre outros, destaca-se a violação da imagem, da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa, direitos previstos constitucionalmente e até mesmo na Declaração Universal dos Direitos do Homem e Pacto de San José da Costa Rica, que preveem que “ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Neste cenário, verifica-se que, mais do que acusar um indivíduo, expondo sua imagem e ferindo seus direitos e sua dignidade, a imprensa, em sua maior força, televisionada, também condena o indivíduo. Por sua vez, a população executa a pena, valendo a analogia com os espetáculos da idade média, feita por Fábio de Andrade, citado por Lorena Corrêa Braga (2014), “(...) voltamos aos linchamentos em praça pública, quando populares gritavam e enxovalhavam os réus (...)”. Neste sentido, Budó destaca com clareza ao que se resume a atuação da população influenciada pela mídia mal intencionada, vejamos: É assim que se percebe nos dias atuais uma forma não institucionalizada de executar penas sem processo. O fato de haver um sujeito passivo em um processo criminal passa a ser considerado pelos meios de comunicação como uma sentença condenatória transitada em julgado. A pena instituída por estes órgãos é a execração pública do suspeito ou acusado, a violação de sua imagem, honra, estado de inocência, sua estigmatização, de forma que jamais se recuperará, mesmo após a sua absolvição (BUDÓ, Marília Denardin, 2006).

Assim, é evidente que a mídia, através do jornalismo, exerce grande poder de influência na população, que insegura diante do sentimento de impunidade, deposita todo o seu medo na execração de um inimigo, muitas 714

vezes construído pela própria mídia sensacionalista. Um jornalismo egoísta e mal intencionado, que busca atingir os seus objetivos mercadológicos, sem se importar com o prejuízo causado a seres humanos que veem a sua vida exposta e disposta como se vivessem em uma terra sem leis. 2.2 A tragédia de Castelo no Piauí Para que seja exemplificada a gravidade da falta de ética jornalística na cobertura de crimes no Brasil, aliada ao despreparo policial e da Justiça, é necessário dar destaque a um fato recente e chocante, ocorrido na cidade de Castelo do Piauí, localizada a 180 quilômetros de Teresina, capital piauiense. Trata-se de um crime de estupro coletivo, que vitimou quatro meninas e que apresentou como suspeitos a priori, quatro adolescentes e um adulto. Um verdadeiro prato cheio para os defensores da redução da maioridade penal e para jornalistas ávidos por condenações rápidas, sem qualquer compromisso com uma investigação mais detalhada e profunda. Uma das mais tradicionais e conservadoras publicações nacionais, a revista Veja estampou na capa de uma de suas edições, fotos com as faces dos quatro adolescentes, afirmando que a condenação seria certa, pela comprovação da autoria das agressões. Ao fazer isso, Veja não observou uma regra constitucional básica, explicitada no artigo 50 da Carta Magna, onde está ratificado que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Impera frisar que, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 143, parágrafo único, que diz que “Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência”. Acerca do fato, a jornalista Maria Carolina Trevisan, em matéria especial para o coletivo de mídia Jornalistas Livres (2015), fez um relato independente e demonstrou, em reportagem veiculada em seu sítio, os equívocos e a tragédia social que se manifesta a partir do descompromisso de autoridades e da mídia selvagem: 715

A apressada punição dos supostos autores do crime seria um desfecho aceitável caso os procedimentos de investigação e justiça tivessem sido observados, especialmente no que se refere aos direitos humanos. Não foi o que aconteceu. Trinta e três dias após as agressões, o adolescente G., de 17 anos, morreu espancado —  enquanto se encontrava sob tutela do Estado -, no Centro Educacional Masculino (CEM), em Teresina. Não se sabe se o adolescente foi morto à noite ou na hora do banho — conhecido momento de vulnerabilidade em que os abusos costumam acontecer nas unidades de internação de adolescentes. Alega-se que a unidade estaria superlotada e por isso G., apesar das ameaças de outros jovens, foi colocado na cela que abriga internos que cometeram atos infracionais graves como homicídio e estupro. G. era o delator do crime de estupro do qual teria feito parte. “A sede pela descoberta do autor pode prejudicar a busca daquilo que chamamos de Justiça”, afirma Riccardo Cappi, doutor em Criminologia e professor de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA). Com o crime “solucionado”, todos poderiam dormir sossegados. “Nos interessa achar um culpado que esteja distante de nós. O castigo desempenha assim a função de afastamento da responsabilidade coletiva”, alerta Cappi. Nesta segunda-feira, 10 de agosto, o programa de exibição local “Bancada do Piauí”, da TV Antena 10, afiliada da Rede Record, revelou a participação do PM Elias Júnior como mandante do estupro coletivo, conforme informações do subcomandante da Polícia Militar Lindomar Castilho. Em conversa gravada com funcionários do CEM, G. afirmou que o PM o contratou por 2 mil reais para executar atos infracionais na cidade. Elias Junior foi afastado da corporação e está à disposição da Corregedoria.

Com as novas revelações, restou à Defensoria Pública pedir a absolvição dos quatro adolescentes envolvidos no caso e do adulto, até então apontado como mandante do crime. Entretanto, vários direitos já haviam sido feridos, e tampouco houve a preocupação da mídia com a (tentativa de) reparação do dano sofrido, conforme constata a reportagem de TREVISAN (2015): Não houve qualquer repercussão na mídia nacional comparável à cobertura na época dos fatos. Como se nós, jornalistas, não fôssemos mais responsáveis pela história que ajudamos a montar —  e que agora entra numa reviravolta ainda mais cruel. Se o papel principal do Jornalismo é fiscalizar o Poder e acompanhar as políticas públicas, neste caso, falhamos muito. Deixamos que a ponta mais frágil do enredo ficasse exposta a qualquer violação. Teria sido bom jornalismo, comprometido com o respeito à dignidade da pessoa, procurar entender de que maneira se deram os depoimentos; compreender quem eram as partes interessadas em que o crime fosse assumido por meninos e por um “traficante”; questionar a rápida conclusão do caso; identificar as políticas sociais e as falhas da rede de proteção de crianças e adolescentes; contextualizar a situação social de um município que tem Índice de

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Desenvolvimento Humano baixo (IDHM 0,587, o que coloca Castelo do Piauí em 4.467ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros) e com cerca de 20% da população em situação de extrema pobreza (renda per capita mensal abaixo de 70 reais).

Este episódio exemplifica o potencial nefasto que muitos crimes estão tendo, principalmente em regiões periféricas, tanto em grandes cidades como nos rincões mais longínquos do Brasil. Está escancarado, para autoridades, estudiosos e a população em geral, ver e encarar a total afronta aos direitos humanos em setores minoritários e historicamente oprimidos da sociedade brasileira. Um índice inédito, lançado pela ONU (Organização das Nações Unidas), denominado como Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ), concluiu, através de indicadores sociais, que a cor da pele dos jovens está diretamente relacionada ao risco de exposição à violência a que estão submetidos. De acordo com o estudo, Alagoas, no Nordeste brasileiro, é o estado com maior IVJ – Violência e Desigualdade Racial: 0,608, na escala de 0 a 1. Isso significa que Alagoas é o estado onde os jovens negros de 12 a 29 anos estão mais vulneráveis à violência. No extremo oposto, São Paulo é o estado em melhor situação, isto é, com o menor índice entre as 27 unidades da federação: 0,200. Ao analisar especificamente as taxas de homicídios de brancos e negros, o levantamento mostra que a Paraíba é o estado com maior risco relativo por raça/cor. Assim, um jovem negro corre risco 13,4 vezes maior que um jovem branco de ser assassinado na Paraíba. Pernambuco tem a segunda maior taxa de risco relativo de homicídios de jovens negros em relação a jovens brancos (11,57), seguido por Alagoas (8,75). Os dados de homicídios foram obtidos no Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Segundo o levantamento, o Nordeste é a região com maior distância entre a taxa de homicídios de jovens negros e brancos. Em 2012, foram assassinados 87 jovens negros para cada grupo de 100 mil jovens negros na região, ante 17,4 jovens brancos para cada grupo de 100 mil jovens brancos. Em outras palavras, o risco de um jovem negro nordestino ser assassinado era quase quatro vezes maior que 717

um jovem branco nordestino. O estudo fez uma simulação, excluindo a desigualdade racial no cálculo das taxas de assassinatos de jovens no Brasil. O objetivo foi aferir o impacto da desigualdade racial na vulnerabilidade juvenil à violência. Assim, na hipótese de que a taxa de homicídios de jovens negros igualasse a de jovens brancos, o IVJ – Violência e Desigualdade Racial diminuiria até 9,8%, como ficou demonstrado na simulação realizada no Distrito Federal. Em Alagoas, o impacto seria uma redução de 9,2% do índice. O estudo calculou ainda o IVJ – Violência e Desigualdade Racial referente ao ano de 2007, o que permitiu comparar a realidade de 2007 com a de 2012. O Piauí foi o estado em que o índice mais cresceu, isto é, onde houve uma piora de 25,9% no tocante à maior vulnerabilidade de negros. O índice piauiense passou de 0,379 (em 2007) para 0,477 (em 2012). Realidade bem diferente viveu o Rio de Janeiro, cujo índice teve a maior queda do país: – 43,3% (de 0,545, em 2007, para 0,309, em 2012). Apesar desse retrato nítido de que ainda resta uma carência grande de políticas públicas que evitem ou minimizem estes impactos, a grande mídia pouco interpretou ou divulgou estes números em horário nobre. Não há espaço para questionamentos sérios e necessários como esses, que deveriam estar mais presentes na vida cotidiana do público. O jornalista, escritor e professor Juremir Machado da Silva (2012), crítico dos meios de comunicação, com fina ironia, nos apresenta alguns argumentos referentes à imprensa e à televisão: Para Balzac, autor realista, se a imprensa não existisse seria preciso não inventá-la. Na sociedade mídiocre, hiper-realista, a imprensa não existe mais, a não ser como entretenimento ou reality show em tempo real. A realidade é hiperespetacular. O sonho do escritor foi, enfim, realizado como ficção deslocada dos personagens. [...] Na televisão, como se sabe, embora nem sempre se conte isso ao telespectador, tudo está a serviço da sagrada imagem, inclusive o imaginário e o fato. Não conta o que se diz, nem mesmo necessariamente quem o diz, mas, antes de tudo, o efeito de embalagem e a embalagem do efeito. Não se trata de em que circunstâncias se diz algo e sim em qual cenário e com quais recursos se diz esse algo elementar.

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2.3 As mídias independentes e a atenção aos direitos humanos As mídias independentes, reforçadas pelo crescimento exponencial das mídias sociais e da interatividade, estão cumprindo um papel preponderante para as garantias aos mais elementares direitos fundamentais e humanos. Aprofundam a investigação sobre temas que são tratados superficialmente nos veículos tradicionais, questionam e apresentam o lado pouco ou nunca explorado pelos meios de comunicação de maior poderio econômico. Esse trabalho é feito de forma colaborativa, a grande marca do meio virtual nos últimos anos. Nesse sentido, as mídias independentes possuem um componente cidadão de grande relevância, garantindo o contraponto necessário àquilo que é massificado pela mídia tradicional, vinculada historicamente aos seus compromissos corporativos e empresariais, restando ser guiada por uma pauta pouco afeita a conquistas populares, mas muito mais voltada ao sensacionalismo e à não reflexão. Uma opinião que reforça a crítica aos meios tradicionais de comunicação e aponta o advento das mídias independentes é explicitada por Carmélio Reynaldo Ferreira (s/d): A impossibilidade de dispor da tecnologia da comunicação de massa manteve as pessoas à mercê dos que controlavam a mídia. Porém, desde o final do século passado, as ferramentas desenvolvidas para a informática e a internet disponibilizaram recursos que permitem um papel ativo dos seus usuários no complexo de comunicação de massa. Essas novas tecnologias estão impondo maior responsabilidade da mídia, pois a internet faz de cada usuário um potencial emissor, seja através de blogs, gratuitos ou pagos, sites, etc.; seja como interlocutor em grupos de discussão, comunidades virtuais ou sites de relacionamento. Já prolifera na internet uma modalidade saudável para a cidadania, que é a de crítica/análise dos meios de comunicação de massa, atividade que está recebendo o nome de observador de mídia. Em reação pouco inteligente, pois não têm condições de mudar essa nova realidade, os grandes veículos criam blogs em seus sites, através dos quais as estrelas da publicação tentam se humanizar e se aproximar do público e, através da confiança conquistada, desacreditar os críticos.

Um exemplo de mídia independente que começou a ter destaque, principalmente após a ebulição dos protestos populares, em meados de 719

2013, é a Agência Pública. Entre suas pautas estão temas que ocupam pouco espaço e valorização nas mídias tradicionais, como a questão indígena, a construção de hidrelétricas e barragens, a luta por moradia e contra o desalojamento de famílias, em benefício de grandes grupos imobiliários ou de eventos esportivos milionários. Romper com a hegemonia de alguns grupos empresariais jornalísticos no Brasil é uma maneira de oportunizar à sociedade visões completamente diferenciadas de uma série de questões, mas, principalmente, abrir oportunidade para a obtenção de novos olhares sobre os direitos humanos, em uma luta que vem sendo reforçada de forma universal. É um meio inovador de cidadania e de debate sobre direitos. A opinião de FERREIRA (s/d) novamente deve ser destacada: Controlando a mídia e o entretenimento, os grupos hegemônicos controlam com eficiência o pensamento, os meios para legitimarem-se no poder e mantém o status quo, pois, através dos conteúdos veiculados, obtêm a adesão da maioria. Mas, nesses conteúdos, também circulam as idéias com que se constrói a resistência à hegemonia, como frisa Douglas Kellner: “[...] a cultura veiculada pela mídia induz os indivíduos a conformar-se à organização vigente da sociedade, mas também lhes oferece recursos que podem fortalecê-los na oposição a essa mesma sociedade.”

O conteúdo engessado e pouco criativo das principais mídias no Brasil acaba por fortalecer os canais independentes. Afastar-se do senso-comum, apresentando um panorama diferenciado e aprofundado sobre temas importantes para o presente e o futuro, está na pauta atual. O material produzido, entretanto, deve ser organizado e projetado de forma responsável e ética, apostando na inteligência do público que absorverá as informações. Neste sentido, Jesús Martín-Barbero (1998) faz uma análise importante: Mas também é verdade, como escreveu Baudrillard, que quanto “maior é a quantidade de informação, menos sentido”. Cada dia estamos informados sobre mais coisas, porém cada dia sabemos menos o que significam. Quanto da enorme quantidade de informação que recebemos sobre o país e o mundo se traduzem em maior conhecimento dos outros, em possibilidade de comunicação e em capacidade de atuar de modo transformador sobre nossa sociedade?

720

Hoje, o volume de informações é vasto e sem limite, o que acaba prejudicando, de certa forma, a interpretação e seleção daquilo que realmente faz sentido ou tem importância. Além de receber a informação, o cidadão deve situar onde pode ter participação efetiva, não apenas ilusória. A partir disso, MARTÍN-BARBERO (1998) novamente deve ser destacado: De outro lado, a informação tem passado a simular o social, a participação. Ao sentir-me informado do que acontece, tenho a ilusória sensação de estar participando, atuando na sociedade, de ser protagonista, quando “sabemos” que os protagonistas são outros e bem poucos. Pois se é verdade que as novas tecnologias descentralizam, é certo que não estão fazendo nada contra a concentração de poder e capital, que é cada vez maior.

Se hoje há uma necessidade por novos olhares frente a determinados temas, ainda mais se for sensível e em construção permanente, como no caso dos direitos humanos e direitos fundamentais, isso é resultado da saturação de uma mídia pouco preocupada em realmente buscar ajudar a transformar positivamente uma parte da realidade social, uma tarefa que também lhe cabe. A Mídia Ninja, com um formato completamente diferente de tudo aquilo que a sociedade brasileira estava acostumada a enxergar como veículo de comunicação, assumiu uma posição de destaque e de ativismo social, através de uma rede de contatos e colaboradores, que mantém ininterrupto este canal de comunicação, com uma independência que deve ser entendida e exaltada. O texto que apresenta o perfil do site da MÍDIA NINJA (2014) dá a exata noção do grau de transformação e de novidade que representa: “Uma rede de comunicadores que produzem e distribuem informação em movimento, agindo e comunicando. Apostamos na lógica colaborativa de criação e compartilhamento de conteúdos, característica da sociedade em rede, para realizar reportagens, documentários e investigações no Brasil e no mundo. Nossa pauta está onde a luta social e a articulação das transformações culturais, políticas, econômicas e ambientais se expressa. A Internet mudou o jornalismo e nós fazemos parte dessa transformação. Vivemos uma cultura peertopeer (P2P), que permite a troca de informações diretas entre as pessoas, sem a presença dos velhos intermediários. Novas tecnologias e novas aplicações têm permitido o surgimento de novos espaços para trocas, nos quais as pessoas não só recebem mas

721

também produzem informações.”

No entanto, é importante frisar que nem tudo está perdido. Nesse sentido, Bauman destaca que a justiça só será efetiva quando os direitos humanos forem assegurados, e isso poderá ser alcançado por meio da tolerância, vejamos: Não é preciso mencionar que o problema da justiça não pode ser sequer postulado a menos que já haja um regime democrático de tolerância que assegure, em sua constituição e prática política, os “direitos humanos” – ou seja, o direito a conservar a própria identidade e singularidade sem risco de perseguição. Essa tolerância é uma condição necessária a toda justiça (BAUMAN, Zygmunt, 1998).

Ademais, é importante que a tolerância seja compreendida da forma correta, nas palavras de Bauman, é preciso que haja “a transformação da tolerância em solidariedade [...]. No entanto, na maioria das vezes, dada a atual

configuração

do

mecanismo

político,

os

regimes

democráticos

interpretam tolerância como empedernimento e indiferença”, o que precisa ser mudado e pode ser, com o esforço de todos, modificado. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O debate sempre necessário sobre a temática dos direitos humanos, com enfoque no direito penal e a interpretação que se dá pelos meios de comunicação,

é

um

compromisso

pesquisadores

educacionais,

através

que

deve

de

eventos

ser

assumido

que

pelos

estabeleçam

a

possibilidade de apresentação de trabalhos que fortaleçam essa temática. Este trabalho teve a intenção de demonstrar como os meios de comunicação

preponderantes

provocam

posições

preocupantes

na

construção de um imaginário popular, que baseado naquilo que lhes é apresentado, não reflete a importância dos direitos humanos como construção coletiva de uma sociedade que precisa agir e enxergar um caminho cidadão, que respeite o estado democrático de direito, sob pena de regredir em conquistas sensíveis e alcançadas com muito esforço ao longo 722

dos séculos, como forma de estabelecer limites e garantias individuais e coletivas. Conquistas essas que são universais. Nesse sentido, o debate proporcionado pelas questões apresentadas no presente trabalho é de suma importância, pois uma vez que evidente a influência exercida pela mídia e, em especial, pelo jornalismo, na formação da opinião pública e, como consequência, em seus atos, faz-se necessária a luta pela mudança de paradigmas e pela conscientização da população, visando uma sociedade e um direito penal que respeite o ser humano enquanto indivíduo dotado de direitos, fundamentais e humanos. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos lações humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. BRAGA, Lorena Corrêa. O poder da mídia e seus reflexos na ordem jurídica penal. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, n. 121, fev 2014. Disponível em: . Acesso em ago 2015. BUDÓ, Marília Denardin. Mídia e crime: a contribuição do jornalismo para a legitimação do sistema penal. In. UNIrevista - Vol. 1, n° 3, 2006. Disponível em: . Acesso em jul 2015. FERREIRA, Carmélio Reynaldo. Mídia e direitos humanos. Disponível em: . Acesso em ago 2015. LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Comunicação e Cidade: entre Meios e Medos. In: Grupo de Estudos sobre Práticas de Recepção a Produtos Mediáticos, I, n. 01, 1998. Disponível em: . Acesso em nov 2014. MÍDIA NINJA. Quem somos. Disponível em: Acesso em ago 2015. 723

ONU. Declaração universal dos direitos humanos. 1948. SILVA, Juremir Machado da. A sociedade midíocre – passagem ao hiperespetacular (o fim do direito autoral, do livro e da escrita). 1 ed. Porto Alegre: Sulina, 2012. TREVISAN, Maria Carolina. O jornalismo justiceiro faz mais vítimas. Disponível em: . Acesso em ago 2015.

724

A BUSCA POR RECONHECIMENTO DAS IDENTIDADES E O EMPODERAMENTO DA SUBJETIVIDADE: O “CLUBE DA LUTA” E A REBELIÃO DOS DESAJUSTADOS Tiago Meyer Mendes1 1. INTRODUÇÃO Atualmente, no atual mundo globalizado, onde os meios de vida detêm uma liquidez jamais vista antes. As formas de relação interpessoais se alteram com o passar dos anos e cada vez mais os indivíduos buscam significado para suas existências, crendo que formas pré-moldadas poderão satisfazer subjetividades complexas, desejos viscerais e projetos de vida que sonham em não serem estereotipados. Neste sentido, a sociedade tornou-se uma sociedade de consumo, a qual o mercado, a mídia e o Estado prometeram grandeza a todos. Entretanto, com o passar dos anos, os indivíduos presos à trabalhos pouco ou nada satisfatórios e em vidas comuns, começam a perceber que a promessa da grandeza não será cumprida, neste momento a maioria apenas se resigna e prossegue vivendo conforme as banalidades permitem, ainda com o sonho adormecido, que só os faz frustrarem-se. Todavia, com a banalização da repressão dos desejos e com a passividade dos indivíduos (um mal-estar de modernidade), as pessoas afundam-se em seus sofás e continuam replicando a forma “confortável” de dominação, o sentimento de rejeição os leva a não buscarem soluções para seus sonhos, somente remédios paliativos como o consumismo, televisão, pequenos prazeres (como comida e o sexo), dentre outros. Percebem-se estes sujeitos como “desajustados”, pois não são integralmente parte da sociedade, em que pese são as engrenagens que promovem o movimento dela. Desta forma surge o Clube da Luta. Mestrando em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Bolsista da Fundação de Amparo àPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul –FAPERGS. Bacharel em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo –IESA. Email: [email protected]. 1

725

O clube é um local de promoção de liberdades e, principalmente, de libertação através da violência, sendo a violência é uma forma primitiva de (re)estabelecer o domínio, bem como, uma forma de empoderamento social, moral e de construção de uma identidade em meio a uma modernidade complexa, onde luta-se por individualidade, com pouco espaço para o diferente, o subversivo e o destoante. Através da libertação promovida pelo Clube da Luta, o sujeito passa a reconhecer-se naquele meio onde é visto como igual. A subversão trazida pela violência e pela profanação da integridade física, sua e de outros, o faz existir, sentir um novo tipo de prazer que lhe sacia os desejos. Não mais o sujeito está desamparado, pois passa a fazer parte de algo maior que uma vida fútil de perseguição de inatingíveis ideais utópicos. O Projeto Desordem e Destruição constitui um terrorismo sem rosto, de indivíduos que em comunidade buscam sua unidade individual e sua representação

na

comunidade.

A

falta

de

abertura

da

sociedade

contemporânea leva os desajustados a cometerem crimes e buscarem através da subversão o reconhecimento, e, algum lugar, podendo ser qualquer um, na sociedade. O livro Clube da Luta de Chuck Palahniuk interpela diversos enfoques de temas do Direito, Sociologia e da Filosofia, que vão desde a identidade, reconhecimento, alteridade, ao sentimento de sentir-se completo (mesmo em uma vida vazia), por intermédio do consumismo, o terrorismo sem face em uma ordem de guerrilha urbana e a violência, que vai além da física tornando-se visceral, até que o sujeito torna-se somente a violência. Através da revisão bibliográfica, e, valendo-se das lições da obra literária “O Clube da Luta” como base para a análise de mazelas inerentes ao cotidiano e sua economia baseada nos moldes do capitalismo exacerbado, propõe-se um debate acerca das promessas não cumpridas e vidas frustradas. Com o presente artigo, busca-se expor a conceitualização de um reconhecimento não ortodoxo, o reconhecimento subversivo, persegue-se também apresentar a construção simbólica da identidade e do sentimento de pertençado indivíduo e respeitando sua alteridade, incluindo-o em uma 726

comunidade que o protege. Nem que os vínculos que precisam ser estabelecidos para esta conexão sejam a violência, o crime e o terrorismo. 2. RECONHECIMENTO, SUBJETIVIDADES E EMPODERAMENTO O mundo globalizado dotado de uma liquidez de valores, de relações, de exemplos e, pode-se dizer, de sentido, aponta para o horizonte de uma falsa promessa de sonhos enlatados, onde o indivíduo se torna, se comporta e age crendo que está escolhendo entre as inúmeras opções de vidas, entretanto apenas é uma pequena engrenagem da máquina, individualmente irrelevante, porém coletivamente preponderante. No mundo contemporâneo, fruto de uma globalização e todos os seus efeitos - como a comunicação em tempo real, o comércio mundial, as organizações e empresas transnacionais com atuação em praticamente todo o planeta - a criação de uma identidade somente atribuída ao Estado, seus conceitos de nação ou a conexão do sujeito a um local específico do seu país não são mais o suficiente para representar àquilo que as pessoas são, tampouco, a forma como elas anseiam ser representadas (BAUMAN, 1999). A complexidade da identidade atual é relacionada diretamente pela dificuldade da aceitação do outro e seu eventual reconhecimento, as relações por vezes passam a ser conflitantes, pela fragilidade de identidades fixas e previsíveis, vez que, a conexão do sujeito não se vincula mais a uma forma tradicional e linear de modo de vida, cultura, relações, dando espaço para indivíduos cada vez mais multifacetados, próximos em alguns sentidos e díspares em outros (HONNETH, 2003). Neste viés, pode-se afirmar que o sentimento de pertença configura a identidade, como uma de suas tantas peças de construção e, sendo uma das principais desde sua gênese (CAMPILONGO, 2000). O pertencimento não possui somente vínculos com a cidadania e o Estado, pois é relacionado intrinsecamente com a religião, questões de identificação cultural, bem como, orientações e definições políticas, sexuais, dentre outras, que compõe o sujeito. O sentimento de pertença, desta forma, pode ser logo relacionado a 727

questões jurídicas e de soberania, como o Estado e sua constituição, metafísicas, como a religião, políticas, como orientação de participação efetiva e ligações com determinados ideais de formatação social, bem como sociológicas

e

filosóficas,

vinculadas

as

suas

relações

culturais

e

preferências diversas. De acordo com o pensamento de Andrew Linklater (2000) e Seyla Benhabib (2004), o sentido de pertencimento como cidadania é essencial à proposta do cosmopolitismo ideológico, neste sentido ele se conecta intrinsecamente com a máxima de considerar a todos como humanos detentores dos mesmos direitos mínimos de coexistência, mesmo em uma esfera econômica. O pertencimento político, logo definido como participação cidadã, trata-se,

essencialmente, da emancipação do ser humano como uma

ferramenta do cosmopolitismo, não somente como uma engrenagem sem poder de decisão àquilo que lhe permeia (BENHABIB, 2004). Este sentimento de participar advém, inclusive, do direito, quando este legisla para uma camada dominante, logo, minoritária, da sociedade, criando uma barreira, a qual é uma espécie de luta de classes cosmopolita que não se restringe somente a riquezas. O pertencimento e o respeito à alteridade precisam ser revistos no próprio sistema jurídico, para coexistir alguma forma pacífica de vinculação kantiana do ser (MENDES, 2015). As comunidades criam conceitos como “nós” e “outros” entre vários “eus” diferentes, algumas vezes promove, mesmo que de forma velada, dificuldades de aproximações entre indivíduos e culturas, desrespeitando a alteridade e por vezes encerrando os “seus” da convivência com os demais (DOUZINAS, 2009). Ao passo que o mundo buscou uma revolução iluminista de sentido e individualidade, com o homem sendo o seu próprio “deus” que devesse prestar contas a relações terrenas, e não metafísicas, em algum momento desta mudança as rédeas trocaram de mãos e o “sacro-homem”, objeto de sua própria veneração, passou a amar uma nova e difusa divindade: o mercado. A partir deste momento a necessidade de consumo passou a inverter 728

os papéis, de um momento inicial onde o homem realizava escambos por necessidade, ele passa a ter a necessidade de comprar. Torna-se escravo do que os objetos significam para os outros (e para ele), transformando a si mesmo em mercadoria “você fica preso em seu belo ninho e as coisas que costumavam ser suas agora mandam em você” (PALAHNIUK, p. 50, 2012). A retroalimentação provocada pelo consumo é uma estratégia eficaz, pois cria uma relação perfeita entre o “ser alguém para ter tal objeto” e “ter tal objeto exclusivo para ser alguém” (LACAN, 1995). Prisões de status e cifras agrilhoam as liberdades de escolhas dos produtos, em uma infinidade deles, o sujeito precisa aceitar que um ou outro “o define como quem ele é” e sonha em passar a ser que aquilo que lhe é prometido, ao menos por um tempo acredita-se nesta ilusão, até precisar de algo novo para se definir melhor, ou definir-se o novo eu. “Nossa cultura nos fez sermos todos iguais. Ninguém mais é verdadeiramente branco, preto ou rico. Todos queremos a mesma coisa. Individualmente não somos nada” (PALAHNIUK, p. 167, 2012). Neste sentido, passa-se a buscar sua posição no mundo através de bens, desde roupas até a bebida que consome, do sofá ao aparelho de jantar, todo o consumismo passa a ser voltado para a auto-composição da subjetividade preenchendo o vazio singular que a liquidez da vida moderna deixou na vida, afetando a questão psicológica (BEDIN; MENDES, 2015). E consumir passa a ser o meio de ser reconhecido como cidadão, para subjetivamente empoderar-se de direitos. Abandona-se o conceito que a cidadania “tem a ver fundamentalmente com a participação na comunidade política na qual o cidadão é inserido pelo vínculo jurídico” (CORRÊA, 2010, p. 25), apesar dos avanços dos conceitos de direitos humanos e de Estado. Desta forma a cidadania, bem de grande valia do ser humano, cada vez mais relaciona-se ao consumo, nas palavras de Nestor García Canclini (2008, p. 29), Estas [formas de exercer a cidadania] sempre estiveram associadas àcapacidade de apropriação de bens de consumo e àmaneira de usálos, mas supunha-se que essas diferenças eram compensadas pela igualdade em direitos abstratos que se concretizava ao votar, ao sentir-se representado por um partido político ou um sindicato. Junto com a degradação da política e a descrença em suas

729

instituições, outros modos de participação se fortalecem. Homens e mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos –a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como me informar, quem representa meus interesses –recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que pelas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos.

Na sociedade de consumo que se convive, cada vez mais o indivíduo espelha-se em seus bens, nos grupos aos quais pertence, na busca pela identificação da pertença. (BAUDRILLARD, 2012). Desta forma, passam a ser os bens que pertencem o indivíduo, tornando-o indissociável da manutenção do consumo para continuar pertencendo a um grupo e aos seus próprios bens. Reconhecer-se foi transformado em algo problemático, não se aceita estereotipações para si, busca-se e necessita-se a singularidade, sentir-se ímpar, único e exclusivo, entretanto não se quer enfrentar a adversidade de ser o diferente, aquele que no subconsciente da coletividade é o “outro”, que não pertence ao grupo do “nós”. Desta forma entrega-se a liberdade e a singularidade em prol da coletividade e do reconhecimento (RESTA, 2014). A relação do ser humano com o outro sempre nasce de um conflito, toda relação interpessoal nasce de um conflito. As relações explicam a própria existência humana. Inicialmente o outro é aquele que vem ameaçar a “zona de conforto” do indivíduo, que pode desejar o que lhe é desejado e usurpar-lhe estes objetos, triunfando desta forma na conquista por algo (MULLER, 1995). Entretanto, “banir um estranho é banir a comunidade, e bane-se a si mesmo da comunidade desse modo” (Lyotard apud Douzinas 2009, pg. 155). O encerramento de uma cultura às demais, bloqueia o intercâmbio, inclusive, de benefícios culturais oriundos de outras formas de pensamento. O outro, mesmo não se portando de forma agressiva, causa o conflito para a aceitação da diferença, o reconhecimento e para a alteridade. Paradoxalmente somente na presença do outro que pode-se pensar uma relação de “nós”, pois o grupo só consegue se definir mediante o diferente, só a partir da observação de algo “não igual” que chega-se ao conceito de “igual”, somente com a existência do “externo” que nasce o reconhecimento 730

ao “interno” (HABERMAS, 2007). O consumismo cria esta noção de “nós” e “eles” através da capacidade econômica de aquisição de bens, do que se consome e onde se consome, dando gênese a grupos fechados de compradores que ao adquirir passam a hibridizarem-se com o que adquiriram. Subjetivamente torna-se o objeto, neste momento a relação lógica de “ser” e “ter” transformam-se em “ter” e “ser” (BEDIN; MENDES, 2015). Os indivíduos “desajustados” que apesar de serem consumidores, pagarem tributos, possuírem empregos no mercado de trabalho, são renegados de serem alguém e é onde o Clube da Luta acolhe a todos. Transforma-se em uma comunidade fechada, onde estes passam a serem reconhecidos, criam laços de solidariedade, fraternidade e alteridade entre eles. Os ferimentos os fazem serem reconhecidos nas ruas, começam a perceber futuros membros por características sociais, culturais, sexuais, físicas, étnicas e econômicas que eles mesmo possuem. Desta forma, a violência os une. A subversão os faz tornarem-se alguém no meio da multidão. Mesmo que considerados inimigos públicos. “Enquanto permanecer no clube da luta você não é definido por quanto dinheiro tem no banco. Você não é o seu trabalho. Não é a sua família nem é quem acha que é” (PALAHNIUK, p. 178, 2012). No instante em que as identidades perdem o cunho moral estabelecido pelas éticas sociais, que a transformavam em algo inerente do ser humano, a relação de sentimento de pertença, a algum lugar, religião, comunidade, determinada cultura ou grupo, torna-se essencial, para o estabelecimento do conceito de “nós” e a garantia de que esse grupo fornece ao “eu” (LUCAS, 2010). No livro Clube da Luta os modelos de vida do American way of life não controlam os membros do grupo, ao integrarem o Clube da Luta estes sentem-se dentro de algo que os transforma em uma unidade, têm a sensação de “nós” e podem sentir que estão incluídos em algo, não sendo assim os excluídos. No mundo contemporâneo, onde formas fragilizadas dos conceitos de lealdade e de vínculos mais profundos há uma transitoriedade permanente, 731

onde tudo escorre por entre os dedos, nada mais é certo e sim vazio, mutante e líquido (BAUMAN, 1999). Com essas mudanças constantes os sujeitos passam a buscar formas de garantia da segurança e nisso, retornam à ideias de comunidade, pois estas estabelecem uma segurança nas constantes dicotomias que levam as incertezas. E ao perceberem-se como “rejeitados” e entenderem-se desta forma, os membros o clube da luta passam a reagir de forma distinta da padronizada, a desconstruir as promessas do governo e da mídia que o consumo os faria heróis e decidem assumir uma posição de participação na sociedade (PALAHNIUK, 2012) As pessoas em que vocêquer pisar, nós, somos as pessoas das quais vocêdepende. Somos nós que lavamos suas roupas, preparamos sua comida e servimos seu jantar. Arrumamos sua cama. Cuidamos de vocêenquanto dorme. Dirigimos as ambulâncias. Passamos as suas ligações. Somos cozinheiros e motoristas de táxi e sabemos tudo sobre você. Processamos seus pedidos de seguro e gastos do cartão de crédito. Controlamos todas as partes da sua vida. Somos os filhos do meio da história, criados pela televisão para acreditar que algum dia seremos milionários, astros de filmes ou da música, mas não seremos. E estamos entendendo isso agora (p. 206)

Na mesma vereda, o empoderamento das classes economicamente desprivilegiadas éuma forma de conquista do direito da multidão. “Apesar da infinidade de mecanismo de hierarquia e subordinação, os pobres estão constantemente expressando uma enorme força de vida e produção”(HARDT; NEGRI, 2005, p. 175). Entretanto, a busca de mudança de perspectiva énecessária para o avanço

da

sociedade

e

para

o

reconhecimento

das

relações,

logo,

“precisamos reconhecer que os pobres não são apenas vítimas, mas também agentes poderosos”(HARDT; NEGRI, p. 186, 2005). Tanto que háuma crítica quanto a colocação dos membros do clube, “vejo os homens mais fortes e inteligentes que jáviveram (...) esses homens estão enchendo tanques de carros e servindo mesas”(PALAHNIUK, p. 186, 2012). Ainda, deste sentimento de abandono, pode-se observar o abandono pelo sagrado, a profanação dos humanos para que possam reassumir o controle de suas vidas “Tyler achava que conseguir chamara a atenção de 732

Deus sendo mau era melhor do que não conseguir atenção nenhuma. Talvez porque seja melhor o ódio de Deus do que a indiferença Dele”(PALAHNIUK, p. 176, 2012). O sentimento de desamparo amplia-se, causando uma tristeza psicológica que precisa ser suprida. Somos os filhos do meio de Deus, de acordo com Tyler Durden, e não temos lugar especial na história nem atenção. A menos que consigamos chamar a atenção de Deus, não teremos a menor chance de danação ou redenção”(p. 176).

Neste caminho, os membros do clube da luta passam a agir em condutas criminosas, criando o Projeto Desordem e Destruição, para serem reconhecidos pela sociedade, adentrarem no sistema de leis, mesmo que como infratores. Atingir o “o desastre é uma parte natural da minha evolução – Tyler sussurrou – rumo à tragédia e a dissolução” (PALAHNIUK, p. 136, 2012). Por meio da profanação do sagrado e da cultura contemporânea, os membros do clube estavam chamando atenção de Deus e receberiam a danação, que parece substancialmente mais importante que a indiferença. 3. VIOLÊNCIAS, TERRORISMO E ESTADO DE EXCEÇÃO A violência é uma forma primitiva de conquista ou reconquista de dominação. Quando outros meios de empoderamento falham ou não são conhecidos pelo agente, ele vale-se da violência para assumir uma posição e dominar aqueles que consegue. “A meta era ensinar cada homem no projeto que ele tinha poder para controlar a história. Nós, cada um de nós, pode controlar o mundo” (PALAHNIUK, p.152, 2012). Neste sentido, a violência gera uma espiral crescente, no sentido que agir violentamente provocará outras formas de violência. No momento em que a violência é legitimada como direito do homem, não mais se poderá desobrigar alguém de recorrer a este direito, ampliando a crescente da violência (MULLER, 1995). Acaba que a ideologia da violência permite com que indivíduo justifique a sua agressividade, deste modo, esta se transforma em uma fatalidade banalizada como o método mais 733

simplificado de resolução de conflitos. O conflito é a gênese das relações interpessoais. As relações humanas constituem a subjetividade e a personalidade, explicando a própria existência humana, sendo que esta não é apenas viver (ou sobreviver), mas, viver com os outros. O ser humano essencialmente é um ser coletivo (ZIZEK 2014). Ademais, necessário ressaltar que existem diversas formas de violência: violência física (aquela que atenta contra a integridade física e a vida do sujeito), violência psicológica (aquela que agride o indivíduo de maneira subjetiva e psicossocial), violência moral (a qual abusa do sujeito em seus princípios éticos e de conduta ou o coage hierarquicamente), dentre outras. Logo, o ato de violentar é sempre um ato complexo, o qual parte do ser humano, revestido de vontade ou não. Ressalta-se que a agressividade pode ser benéfica ou maléfica, destruidora ou criadora, pois se trata de um poder de combatividade e de afirmação da própria personalidade humana. A agressividade interage com o medo, levando em conta que o medo não é uma vergonha, sendo ele uma técnica de sobrevivência. Todavia, dominar o medo, assim como as emoções e paixões que ele suscita, permite exprimir a agressividade de uma forma benéfica e criadora (MULLER, 1995). A violência é uma pronta satisfação do desejo advindo do ódio. Viver é uma luta pela existência. A existência complexa tem a ver com defender os direitos básicos próprios, bem como, daquela comunidade à qual se é solidário (ZIZEK, 2012). Por vezes a violência e a subversão estão interligadas, nos momentos em que o indivíduo vale-se da violência destrutiva para buscar desconstruir um modo de convivência estipulado no cotidiano, pelos principais agentes norteadores do mundo globalizado, como o mercado, a mídia, o Estado, uma cultura dominante, dentre outros. “Conflitos, como diferentes de outras formas de interação, sempre envolvem poder, e é difícil avaliar o poder relativo dos contedores antes do conflito ter estabelecido o item”2 (LEWIS, p.

2

Tradução livre do inglês

734

134, 1965). Precisa-se notar que mesmo formas sutis representam violências, muitas vezes simbólicas, cita-se o mercado como uma forma tradicional de violência, já que este imputa desejos inalcançáveis e, se todo conflito nasce de um desejo, e a deformação do conflito transforma-se em violência, podese perceber que esta afirmação está correta. Ainda, como violência simbólica do mundo globalizado, nota-se as características

de

moda

e

beleza

estipuladas

por

indústrias

do

entretenimento, cosméticas e pornográficas, as quais criam um patamar praticamente inatingível pelo ser humano comum, que não possui capacidade econômica, tampouco tempo para dedicar à alcançar esse padrão. Ademais, a violência é uma forma de extravasar frustrações. Trata-se de uma forma simplória de conquistar um espaço em meio à multidão. Toda vez que se violenta alguém, isto representa, segundo Kant (2008), uma forma de desumanizar ao indivíduo, estabelecendo uma nova relação de poder, onde um percebe-se mais “humano” que o outro. Já na violência promovida pelos crimes de roubo, não se subtrai do outro apenas o objeto, entretanto subtrai-se o que aquele objeto representa. Em meio a um grupo, a violência precisa ser aceita para ser replicada. A violência precisa ser uma característica daquela “comunidade” para que esta seja utilizada dentro e fora do grupo, conquanto aquele que promover a violência em um grupo no qual não a aceita como resolução de conflitos tende a ser excluído do deste convívio, entretanto, ao ser aceita a violência por um grupo, este irá potencializar a violência por um “efeito manada”, Algumas das perspectivas do homem sobre a violência são psicoculturais em origem, o resultado de padrões de socialização que encorajam ou desencorajam os cartazes exteriores de agressão e de tradições culturais que sancionam respostas coletivas violentas e várias espécies de carências. Estas perspectivas são atitudes recalcadas sobre, ou predisposições normativas para a violência. (MACKENZIE, pg.156, 1978).

Nesta lógica, em um grupo violento, o membro do grupo que não replica a violência acaba por ser excluído do grupo, logo, a violência torna-se 735

a medida de conexão com esta coletividade. Gerando por seus membros cada vez mais abusos, que explicitam normalmente à relação daquele membro e sua fidelidade ao grupo. Assim, “hordas” de indivíduos acabam buscando a aceitação através da imposição agressiva (ENRIQUEZ, 1995). Em pouco tempo, a única coisa que o grupo representa e a única forma que se faz representar é através da violência. Cria-se, desta forma, a sensação que quanto mais primitivo o grupo, mais violento ele será, abandonando o status de grupo para assumir um de horda. Migrando de uma vida complexa, considerada avançada, uma bios, a vida em sociedade que tenta proteger-se do caos, zoe, sendo esta uma vida caótica, primitiva, subversiva, onde impera um animalismo e a vida nua, permanecendo-se em constante estado de exceção (AGAMBEN, 2002). Há um prazer nefasto em profanar, subverter a sociedade e disseminar o caos entre aqueles que veneram e promovem os sentimentos de segurança. Quando um grupo apropria-se deste caráter subversivo, ao causar intranquilidade e medo na sociedade, este atinge seu objetivo (BECK, 1992). “Temos que mostrar a esses homens e mulheres a liberdade, e faremos isso escravizando-os. Mostraremos a eles coragem ao assustá-los.” (PALAHNIUK p.187). Esta é uma forma de protesto político, por vezes anárquico, contra os moldes promovidos pelas violências simbólicas da contemporaneidade. Quando Tyler inventou O Projeto Desordem e Destruição, ele disse que a meta não tinha nada a ver com outras pessoas. Tyler não se importava se outras pessoas se ferissem ou não. A meta era ensinar cada homem no projeto que ele tinha poder para controlar a história. Cada um de nós pode controlar o mundo (PALAHNIUK, 2012, p. 152).

Com sua evolução o clube da luta transforma-se em Projeto Desordem e Destruição, onde une diversos indivíduos como um exército de guerrilha. Este grupo busca destruir as matizes da sociedade contemporânea, corrompendo seu sistema econômico e sua história, os quais representam violências simbólicas contra a maior parte da população, já que esta parte, em que pese seja a que mantém, nunca conseguem alcançar o objetivo do American Dream, tornando-se escravos de um sistema que eles próprios 736

sustentam, todavia, os destrói, Há uma categoria de homens e mulheres jovens e fortes que querem dar a própria vida por algo. A propaganda faz essas pessoas irem atrás de carros e roupas de que elas não precisam. Gerações têm trabalhado em empregos que odeiam para poder comprar coisas de que realmente não precisam. –Não temos uma grande guerra em nossa geração ou uma grande depressão, mas na verdade temos, sim, éuma grande guerra de espírito. Temos uma grande revolução contra a cultura. A grande depressão éa nossa vida. Temos uma depressão espiritual (PALAHNIUK, p. 186, 2012).

Ao assumir este caráter de arauto do caos, o Projeto Desordem e Destruição acaba se tornando uma espécie de terrorismo. O terrorismo éum inimigo líquido da ideologia de segurança e tranquilidade que o Estado promete aos seus cidadãos. Líquido, pois age de forma surpreendente, simbolizado por signos, marcas, nomes, entretanto, não éum inimigo com face e o qual segue um padrão, representando uma maior insegurança perante a incerteza do que ocorreráa seguir. “Do mesmo jeito que o clube da luta faz com escriturários e bilheteiros, o Projeto Desordem e Destruição quebraráa civilização para que possamos fazer do mundo um lugar melhor”(PALAHNIUK, p. 155, 2012). Quando uma determinada quantidade de pessoas age de forma desorganizada, elas não passam de uma multidão, conquanto que quando passam a organizarem-se, tornam-se um grupo, neste momento passam a ter força de alterar e manipular a organização estatal e deteriorar as relações institucionalizadas pela sociedade (HARDT; NEGRI, p. 175, 2005). No momento em que buscam subverter a ordem por meio de atos violentos contra símbolos de status e poder, pouco se importando com os efeitos colaterais e se atingirão outras pessoas, este grupo passa a agir de forma terrorista. O terrorismo pressupõe a busca da quebra de uma hegemonia de convivência harmônica de um grupo de pessoas de uma sociedade, de uma cultura ou de um Estado. Utiliza-se da violência em diversos sentidos, desde a agressão para imputar o medo, como também para se fazer ser visto e reconhecido. O terrorismo persegue estipular um estado e exceção no seu adversário, tornando-lhe as relações caóticas e inseguras (ZIZEK, 2014). 737

Ademais, faz-se por intermédio de terrorismo a profanação daquilo que épercebido por certa sociedade como sacro. De forma subversiva, tenta-se corromper o viés de divino e eterno. Neste sentido, os alvos do terrorismo são os objetos, locais ou construções, os quais representam os símbolos daquilo que se busca destruir. Colocar a cultura em choque sempre éo objetivo maior. Com a profanação destes espaços através da violência, espera-se que estas saiam da posse pelo “divino” e retornem àposse dos humanos. Ao retornar àposse dos humanos, eles poderão repensar a sua relação com estes objetos. Somente ao sacrificar-se algo, que isto pode novamente ser compreendido como pertencente ao homem, desta forma o homem pode destituir o poder, outrora divino, de instituições, objetos e locais (AGAMBEN, 2008). A reconquista do sagrado por meio da subversão éuma forma de demonstrar que não hápreceitos imortais e indestrutíveis. Desde as matizes do iluminismo, o homem colocou-se na posição de Deus, entretanto, busca de forma constante justificar relações, atitudes, ações, os quais necessitam de um poder dominante. Desta forma, a maior parte da sociedade entende confortável a manutenção de poderes superiores, sacros, que lhe trazem conforto e justificativa em suas atitudes. Com símbolos de poder que parecem ser eternos sendo destruídos, instaura-se o medo e, em um nível maior de medo, instaura-se o estado de exceção (ZIZEK, 2014). Paradoxalmente, o estado de exceção causa mais medo, visto que quebra as garantias tão fundamentais para uma vida fora do caos. Compreende-se que no mundo atual diversas culturas coexistem, entretanto, quando uma cultura apresenta-se subversiva, retira as demais de sua zona de conforto, pois ameaça-lhes a manutenção do modo de vida secularizado e esta mudança causa agonia aos seres humanos (ZIZEK, 2003). O indivíduo que compõe este mundo da contínua exceção échamado por Agamben (2008) de Homo Sacer e vive em um estado de não-lei, ou de força de lei opressora, 738

o Homo sacer de hoje éo objeto privilegiado da biopolítica humanitária: o que éprivado da humanidade completa por ser sustentado com desprezo. Devemos assim reconhecer o paradoxo de serem os campos de concentração e os de refugiados que recém ajuda humanitária as duas faces, “humana”e “desumana”, da mesma matriz formal sociológica (ZIZEK, p.111, 2002).

O direito éuma busca por garantias de relações interpessoais. A positivação do direito representa a ideologia de que todos são revestidos de direitos garantidos, efetivos, válidos e conhecidos, e se usurpados destes direitos, aquele que atentou contra o seu direito sofreráas sanções decorrentes de seus atos. Cria-se a ilusão que não haverácrime impune e que a responsabilidade nortearáos atos. O próprio direito estipula relações de poder e éuma forma de manutenção do poder secularizado em instituições. De acordo com Locke, a liberdade para lutar pelo equilíbrio de poder, utilizando-se as forças em busca de uma justiça social, passa a ser direito constitutivo

de

ter

direitos

constituintes

a

uma

sociedade

menos

fragmentada e violenta (MULLER, 1995). O Estado vive em uma relação de poder, garantido e efetivado por uma violência legitimada. Assim, a violência passa a ser um coerente meio de dominação. A missão específica do estado éestabelecer, manter e, se necessário, restabelecer a “paz”, garantindo segurança para os cidadãos, custe o que custar. O Estado necessita de “garras e dentes”e a violência torna-se a forma de manter este “Leviatã”no poder, confundindo a vontade do estado com a vontade do Povo por meio da coação. Isto pode ser realizado por meio de diversas formas de violência que são exercidas, entre elas pode-se citar o contrato social e a democracia. O direito sótem sua gênese, mediante a existência de uma força reguladora que pode lhe implementar, seja através de uma sanção ou por meio de um “poder”de tornar justa uma relação injusta anteriormente. Neste viés, a força não éa violência, e sópode-se pensar em convivência harmônica em um cenário de reconhecimento, efetividade e legitimidade da força como promovedora de justiça (MULLER, 1995). Jáem um estado de exceção, nem mesmo o direito éuma garantia. 739

Quando corrompe-se o próprio mantenedor e instituidor de garantias das formas de poder, rompem-se de forma fundamental as relações e limites das forças de poder que regem a sociedade, ampliando um desequilíbrio que geraráinjustiças. Nessa perspectiva tem-se que a justiça éo equilíbrio dos poderes. O estado de exceção busca a continuidade de existência de uma sociedade, devendo fazer todo o possível para que isto ocorra (AGAMBEN, 2008). Nesta vereda não hámais uma preocupação com a justiça e, da mesma forma que o terrorismo, o estado de exceção por meio da coerção e força, age de forma a negligenciar os danos colaterais em prol de um objetivo central. Reproduzindo a máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios. Torna-se dessa forma uma dicotomia de como o próprio direito prevêum estado de “não-direito”(AGAMBEN, 2008). E como o estado de exceção, que busca a manutenção da sociedade, vale-se de alguns meios de conquista e reconquista do poder, os mesmos do próprio terrorismo, como a violência e uma relação de medo com a sociedade, medo tanto por meio da agressividade, quanto por meio da falta de garantias e de relações duradouras. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O mundo atual baseia-se em uma promessa de liberdade que não se cumpre. Além de sonhos que não serão realizados, porém promovidos a exaustão pelos meios de manipulação de massas. Mesmo o mais desajustado acaba promovendo e aceitando o discurso da sociedade atual, entretanto, pode-se perguntar atéque ponto esses desejos não cumpridos são benéficos àsociedade? E se são destrutivos, por que replicá-los incessantemente? Estas são questões trazidas no livro Clube da Luta e que tentam ser desconstruídas por Tyler Durden em uma jornada de autoconhecimento em uma complexa e visceral relação intrapessoal. O consumismo éuma primeira forma de reconhecer-se e se fazer reconhecer. Uma forma institucionalizada, aceita e replicada pela sociedade, 740

a qual mantém o cidadão na zona de conforto, pois por uma relação de mimetismo em pouco tempo todos estão agindo iguais e desejando as mesmas coisas. Entretanto, o consumismo éum prazer momentâneo, o que o faz ser tão eficaz, pois se retroalimenta, conquanto, como uma espécie de “remédio paliativo”acaba sempre permitindo que a “doença”volte. A busca por reconhecimento éuma forma de fazer-se existir em um mundo, por vezes a necessidade de abandonar o sentimento de desamparo obriga os indivíduos a utilizarem a única maneira que se apresenta àsua escolha, a violência. A violência representa uma subversividade subjetiva do ser humano, uma busca de empoderamento e reconhecimento através de um modo primitivo, que instintivamente apresenta-se aos desajustados como uma saída, principalmente quando ela éfruto de um “efeito manada”e éaceita por uma comunidade. O sujeito vive àbusca de aceitação que sóse dápela existência e reconhecimento promovido pelo outro, logo, subjetivamente, o ser humano sempre busca a sua própria existência e o sentido da mesma no outro, que ele reconhece como diferente, porém, não inferior. Sófaz sentido criar o conceito de “nós”perante a existência do conceito “eles”e, da mesma forma, “eles”tampouco existiriam, como grupo social assim percebido, sem a presença de “nós”. O terrorismo promovido pelo Projeto Desordem e Destruição acaba sendo uma forma de destruir os signos opressores da sociedade, busca uma profanação ao que esta carrega por sagrado, como sua história a ser venerada, o dinheiro a ser ganho e o conforto a ser mantido, tudo para explicar o motivo pelo qual todos aceitam abrir mão de suas liberdades em prol de uma promessa que não écumprida. Ademais, por meio do terrorismo, os

sujeitos

sentem-se

adentrando

o

direito,

mesmo

que

para

a

“danação”estipulada por eles. Apesar dos esforços reconhece-se a complexidade do tema, observando que não foram esgotadas as discussões inerentes ao mesmo, tampouco as lições sociais, filosóficas e jurídicas que podem ser promovidas através do livro O Clube da Luta, o qual foi utilizado como base literária para a análise proposta do cotidiano. 741

Neste sentido, o presente artigo busca expor a complexidade dos desejos como promovedores da perseguição por ideais. A necessidade dos indivíduos de fazerem-se reconhecer e não mais sentirem-se desamparados, não serem “uma geração perdida na história”, mesmo que o reconhecimento venha com cunho negativo ele apresenta-se necessário, e, por vezes, a violência éa única forma de atingir o objetivo de sentir-se parte de algo e da mesma forma parte do todo. A subversão acaba por ser a forma possível de liberdade. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008. _____. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. BAUDRILLARD, Jean. La sociedad de consumo: Sus mitos, sus estructuras; tradução Alcira Bixio. Madrid: Siglo XXI de España Editores, S.A., 2012. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual. Trad. Plínio Dentzein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. _____. Globalização. As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. _____. Vida a crédito: conversas com Citlali Reviroza-Madrazo; tradução Alexandre Wernek. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010. BECK, Ulrich. Risk society. Towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992. BEDIN, Gilmar Antonio; MENDES, Tiago Meyer. Consumo e cidadania: os Direitos Fundamentais e o cerceamento de direito no consumismo ocidental. In: ANDRIGHETTO, Aline; STURZA, Janaína Machado; GRANDO, Juliana Bedin (Orgs.). Direitos Fundamentais e garantias sociais: contributos à luz dos Direitos Humanos. Bento Gonçalves: Associação Refletindo o Direito, 2015, p. 58-74. BENHABIB, Seyla. The Rights of Others: Aliens, Residents, and Citizens. The Seeley Lectures Series, Book V, CambridgeUniversity Press, Cambridge, CBS, UK, 2004. 742

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