As dobras da imagem

September 12, 2017 | Autor: Yaska Antunes | Categoria: Theatre Studies, Cinema, Cinema Studies, IMAGEM, Teorias Da Imagem
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AS DOBRAS DA IMAGEM

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Um velho lago silencioso Salta uma rã na água Um chape quebra o silêncio. Haicai de Bashô

A imagem tem papel central nas artes e, nelas, revela-se em distintos modos de produção. Poder-se-ia falar de imagem visual nas artes plásticas, de imagem verbal, ou de imagem mental na música2, de imagem audiovisual no cinema, e ainda do que se considera imagem “total” no teatro. É 1

2

Trata-se do capítulo III de minha tese de doutorado, intitulada “ A imagem poética do Nuevo Teatro Latino Americano, orientada pelo Prof. Dr. Sedi Hirano, defendida em agosto de 2007, no Curso de Ciencias Sociais da Universidade de São Paulo. Sobre a imagem mental provocada pela música ou por qualquer outro tipo de paisagem sonora não será tratada nesse trabalho, em virtude de o acento se recair nessa abordagem sobre a questão da visualidade cênica a partir da sugestão de objetos e composições cênicas “concretas”, relacionado ao sentido da visão. A imagem que a paisagem sonora da cena pode também incitar leva a outras questões que extrapolam o escopo deste trabalho. De qualquer forma, é importante ressaltar que a música também foi objeto de um conjunto de reflexões decisivas para a sua criação e inovação no período das vanguardas artísticas do início do século XX, quando “[...] o movimento musical erudito europeu passava por um momento de intensas inovações e questionamentos, alavancados principalmente pela influência do jazz norte-americano que acabava de aportar no outro lado do atlântico [Foi Ernest Ansermet (1883-1969) quem trouxera da América em 1917 as primeiras peças de jazz, cuja influência seria “abertamente admitida” por Igor Stravinski (1882-1971) em seu Ragtime, de 1918). Outra vertente da inovação musical foi a música dodecafônica ou atonal, cridada por Arnold Schönberg (1874 -1951) e seguida por Alban Berg (1885-1935) e Anton Von Webern (1883-1945). No teatro, Bertolt Brecht também estava metido nessa questão como comprova a intensa discussão e pesquisa que promoveu: Kurt Weill (1900-1950), Paul Hindemith(1895-1963), Hanns Eisler (1898-1962), Paul Dessau (1894-1979) Rudolf Wagner-Regeny foram alguns dos compositores com os quais Brecht trabalhou. Todos eles ficaram associados ao movimento musical do período, cuja música, “socialmente orientada”, era executada nos festivais de Donaueschingen e Baden-Baden. A idéia de música funcional ou “Gebrauchsmusik”, segundo Willett (1967, p.164), está relacionada à idéia de música como “mobiliário musical para ser ouvido distraidamente”; ou, “para acompanhamento de textos mais ou menos ocasionais, transcritos dos manuais de agricultura e dos catálogos de sementes”, como acontece nos Machines Agricoles de Milhaud. Para finalizar, convém lembrar como o efeito de estranhamento pode ser conseguido na música, de acordo com o proposto por Brecht: 1.no nível do arranjo musical pode ser conseguido por meio de uma orquestração reduzida, composta por

nesta gama de possibilidades de produção e de realização, tanto no domínio dos objetos no mundo quando no domínio mental de apreensão dessa realidade objetiva do mundo exterior é que se pode falar das “dobras” da imagem. Essa dobradura se revela nos percursos que ela faz na vida contemporânea pelos, entre e para os homens. Esta investigação ocupa-se do sintagma conceitual imagem poética como instrumento de análise da produção artística de grupos teatrais vinculados ao Nuevo Teatro colombiano. Nesses termos, a abordagem de nosso objeto de estudo pressupõe delinear, definir e compreender tal sintagma. A problematização conceitual dessa noção pode se beneficiar de reflexões da semiótica, filosofia, teoria da arte e da literatura e também da análise cinematográfica, levadas a efeito por autores como Alfredo Bosi, Andrei Tarkovski, Henry Suhamy, Gaston Bachelard, Lucia Santaella, Octavio Paz, Sergei Eisenstein, Tzvetan Todorov, Winfried Nöth e outros. Tome-se, então, o primeiro termo desse sintagma: imagem. Afinal, o que se entende por imagem?

4.1 SOBRE IMAGEM Como ponto de partida, a etimologia da palavra imagem pode subsidiar uma compreensão primária – porque geral – do termo. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o radical imag- aceita as seguintes associações e acepções: Antepositivo, do lat. imágo,ìnis “semelhança, parecença, representação, retrato (pictórico, escultórico, plástico, verbal); fantasma (em poesia); imagem, comparação (em retórica)”, conexo com o gr. eikôn – ver icon(i/o); donde, em lat. imp., o v. imagìnor,áris,átus sum,ári (depoente) “imaginar, representar na imaginação; sonhar, devanear em sonho” (na voz ativa em Aulo Gélio, s II : imagìno,as,ávi,átum,áre “apresentar uma imagem [com relação a um espelho]”), imaginabìlis,e “imaginável”, imaginális,e “que é em imagem”, imaginarìus,a,um “que faz retratos (em pintura ou escultura); imaginário, fingido, falso, simulado, fictício”, imaginatìo,ónis “imaginação, imagem, representação, visão; pensamento, idéia, meditação; ilusão”, ademais de imaginósus,a,um (em Catulo, sI a. C.); imágo supõe talvez, referem Ernout e Meillet, um v. com rad. *im-, do qual teria derivado como vorágo de vóro, prov. com a intermediação de voráx; esse rad. está presente no freqüentativo imìtor,áris,átus sum,ári (imitáre em lat. arcaico) “procurar reproduzir a imagem, imitar, arremedar, modelar-se por, copiar, trasladar, assemelhar-se a; contrafazer, simular, fingir, falsificar”, com vários der.: imitátor,óris “o que imita, imitador: o que contrafaz, arremeda”, imitatìo,ónis “ação de imitar, imitação, cópia, traslado”, imitabìlis,e “que pode ser imitado, contrafeito; imitável”, inimitabìlis,e “inimitável”, lat. tar. imitatívus,a,um “imitativo, de imitação [...]” (HOUAISS, 2001, p.1573). poucos músicos. Isso leva a platéia a ter a sensação de que alguma coisa falta na música. 2. a “quebra” ou “ruptura” no âmbito da harmonia ou melodia produz uma sensação de “música dentro da música”. 3. E enfim no nível da letra da música propriamente dita, pode-se recorrer a recursos já usados no teatro épico. Contrapondo-se à ópera erudita, em que não era permitido tratar de determinados temas, a música de Brecht apropria-se da forma erudita da ópera para falar de assuntos negados por ela, assuntos tidos como comuns ou triviais (WILLET, 1967, pp.159-182).

A etimologia da palavra “imágo” remonta ao latim, com seu conexo grego “ícone” (eíkon), referente, de uma maneira geral, a representação e imagem, ou a faculdade de imaginar, sonhar e devanear; ou de imitar e copiar. Estas acepções gerais permancem no fundo das definições propostas por estudiosos de campos diferentes do conhecimento. Com base na obra de Lucia Santaella e Winfried Nöth, é possível fazer uma primeira distinção fundamental no universo das imagens dividindo-as em dois domínios: o primeiro é o domínio das imagens como representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas, televisivas, holo e infográficas [...]. O segundo é o domínio imaterial das imagens na nossa mente. Neste domínio, imagens aparecem como visões, fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como representações mentais (2005, p.15).

Como alertam os autores, esses dois “domínios da imagem não existem separados, pois estão inextricavelmente ligados já na sua gênese” (p.15). A cada domínio caberiam um conceito e um campo de estudo distintos: o estudo das representações (dos signos) visuais – o lado “perceptível” da imagem – caberia à semiótica; o estudo das representações mentais – o lado imaterial da imagem – caberia à ciência cognitiva. Quanto à imagem mental, existem diversos modelos de explicação de sua formação. Só para se referir a um deles, apresentar-se-á com base em Santaella, a teoria de Paivio (1986) 3, segundo o qual, a “codificação dual é uma teoria mediadora das duas posições da psicologia cognitiva” (2005, p.32) – a primeira defende “uma teoria da representação unitária, que aceita tudo, linguagem e imagens, como codificado abstrata e simbolicamente”; e a segunda defende “uma teoria da representação dualista, que postula, ao lado da representação simbólica, também um modo de representação icônico” (p.32). De acordo com essa teoria mediadora de Paivio, [...]existem dois sistemas mentais separados, nos quais informação verbal e visual é processada dominantemente. Entretanto, no processamento cognitivo de imagens, não somente o sistema visual, mas também o sistema verbal está envolvido. “Cópias” verbais da imagem se originam paralelamente à codificação imagética, que é, assim, codificada duplamente (2005, p.32).

Santaella coteja vários modelos de explicação do processo de construção mental das imagens, mas para o que nos interessa, o que foi exposto basta. Embora Peirce distinga imagem de ícone, a similaridade semântica desses dois termos tem sua força na irmandade que suas respectivas etimologias latina e grega parecem conter. Segundo Santaella, Peirce dividiu os ícones em ícones puros e signos icônicos ou hipoícones, que se subdividem em imagem, diagrama e metáfora. [...] Um exame detido dos diferentes aspectos do ícone [...] revela que há três níveis de iconicidade que se apresentam 3

PAIVIO, Allan. Mental representations: a dual coding approach. Oxford: Clarendon, 1986.

em seis subníveis, que vão do ícone puro à metáfora. Essa distribuição em níveis é substancial para a resolução de muitos impasses teóricos enfrentados pelas variadas modalidades das imagens: perspectivas, óticas, gráficas, mentais e também as verbais (2005, p.60).

Se essa distinção pode responder a uma estratégia de classificação “em princípios lógicos” – para construir um “mapa de orientação para leitura precisa e discriminatória das leis que comandam o funcionamento de todos os tipos possíveis de signo” (p.59) –, certa confusão se instaura na análise dessa autora ao serem os termos empregados como sinônimos, mesmo após ser evocada a distinção de Peirce. Neste trabalho não faz muito sentido evocar as várias “modalidades da imagem” que a semiótica de Peirce desenvolveu e Santaella atualiza em seu estudo. Aqui basta a compreensão da imagem, sobretudo inserida no contexto da produção artística. Sem entrar na discussão sobre o grau de validade e eficácia dos conceitos semióticos, a evocação do nível de complexidade obtido por essa disciplina denota a crescente importância do estatuto do “visível”, das imagens pictóricas ou visuais alcançadas no século

XX ,

ou melhor, da “interface” entre imagem e palavra – conforme as

conclusões a que Santaella chegou: “o código hegemônico deste século não está nem na imagem nem na palavra oral ou escrita, mas nas suas interfaces, sobreposições e intercursos, ou seja, naquilo que sempre foi do domínio da poesia” (SANTAELLA; NÖTH, 2005, p.69). Para uma classificação eficaz do processo evolutivo da produção de imagens, parece suficiente evocar a proposta dos três paradigmas4 apontados por Santaella e Nöth: o pré-fotográfico, o fotográfico e o pós-fotográfico: [1] O primeiro paradigma nomeia todas as imagens que são produzidas artesanalmente, quer dizer, imagens feitas à mão, dependendo, portanto, fundamentalmente da habilidade manual de um indivíduo para plasmar o visível, a imaginação visual e mesmo o invisível numa forma bi ou tridimensional. Entram nesse paradigma desde as imagens nas pedras, o desenho, a pintura e gravura até a escultura. [2] O segundo se refere a todas as imagens que são produzidas por conexão dinâmica e captação física de fragmentos do mundo visível, isto é, imagens que dependem de uma máquina de registro, implicando necessariamente a presença de objetos reais preexistentes. [3] [...] O terceiro paradigma diz respeito às imagens sintéticas ou infográficas, inteiramente calculadas por computação. Estas não são mais, como as imagens óticas, o traço de um raio luminoso emitido por um objeto preexistente — de um modelo — captado e fixado por um dispositivo fotosensível químico (fotografia, cinema) ou eletrônico (vídeo), mas são a transformação de uma matriz de números em pontos elementares (os pixels) visualizados sobre uma tela de vídeo ou uma impressora (SANTAELLA; NÖTH, 2005, p.157). 4

Segundo o sentido metafórico usado por Santaella, para quem, a despeito do “corte reducionista” deliberadamente praticado, o termo foi empregado para “demarcar os traços mais absolutamente gerais caracterizadores do processo evolutivo nos modos como a imagem é produzida, quer dizer, caracterizadores das transformações, ou melhor, rupturas fundamentais que foram se operando, através dos séculos, nos recursos, técnicas ou tipos de instrumentação para a produção de imagens” (2005, p.158). O termo foi difundido inicialmente por Thomas S. Kuhn, em 1962, na obra A estrutura das revoluções científicas.

Esses postulados deixam entrever que a fotografia revolucionou os paradigmas da produção de imagens visuais. Mas, além da classificação paradigmática de Santaella, há outra distinção básica – com base na leitura de Anne Ubersfeld da semiótica peirciana –, referente aos signos. Essa autora ressalta que, no campo da representação, os signos verbais ou não verbais são, em princípio, sinais, pois são, em tese, todos intencionais (2005, p.11). Na terminologia de Peirce, os signos são classificados como índices, ícones e símbolos. O índice está numa relação de contigüidade com o objeto (por exemplo, fumaça– fogo) ao qual remete; o ícone mantém uma relação de semelhança com o objeto denotado (semelhança em certos aspectos, como é o caso do retrato). [...] Quanto ao símbolo, segundo Peirce, trata-se de uma relação preexistente e submetida às condições socioculturais entre dois objetos; por exemplo, o lírio e a brancura ou a inocência (UBERSFELD, 2005, p.11).

Nesse ponto, outro problema se impõe: definir representação — também pertinente à criação teatral. Do ponto de vista da semiótica, Santaella e Nöth recuperam, na obra recorrentemente citada, variações e usos desse termo desde a escolástica medieval, cotejando e contrapondo as nuances em autores como Tomás de Aquino e outros mais recentes como Fred I. Dretske, Nelson Goodman, Mario Bunge, Charles S. Peirce e Jay Rosenberg, passando por Guilherme de Ockham e Ludwig Wittgenstein. “As tentativas da delimitação do conceito são variadas, mas, freqüentemente imprecisas” (SANTAELLA; NÖTH, 2005, p.20). Assim, encontram-se definições de representação como sinônimo de “signo”, de “relação sígnica”, de “referência”, de “função de apresentação”, enfim, de “signo icônico” (p.16). Outro nível da questão é a confusão relativa à dicotomia representação–apresentação, que suscitou na modernidade um aprofundamento em sua abordagem nos campos da filosofia e psicologia, principalmente, nas reflexões de autores como Edmund Husserl e Martin Heidegger (SANTAELLA; NÖTH, 2005, p.20). Eles propuseram definições que influenciariam, por sua vez, o estudo semiótico de Max Bense que traz noções como a de “diferença semiótico-ontológica”, que diferenciaria entre um objeto apresentado e outro representado: “objetos apresentados funcionam ontologicamente; objetos representados funcionam semioticamente” (p.20). Assim a representação seria um pressusposto da “qualidade sígnica”. Como já foi apontada antes, a imagem considerada do ponto de vista da semiótica, interessa apenas de forma marginal ao campo do teatro, apenas na medida em que uma representação teatral produz imagens continuamente. Se estas são distintas da imagem produzida na pintura ou no cinema, não se pode dizer porém que não sejam imagens. Por isso, essa retomada dos estudos semióticos serve para situar a dupla complexidade dos termos representação e imagem no campo da arte, partindo-se da definição semiológica. Da explanação de Santaella e Nöth, interessa o que parece ser uma definição mais acabada da idéia de representação – definida segundo a proposta “da

fase tardia” de Peirce5, que esses autores citam na seguinte passagem: Representação [...] é o processo da apresentação de um objeto a um intérprete de um signo ou a relação entre o signo e o objeto: “Eu restrinjo a palavra representação à operação do signo ou sua relação com o objeto para o intérprete da representação”. A fim de delimitar os conceitos de representação e signo, ele introduz o termo representamen para o veículo do signo: “Quando é desejável distinguir entre aquilo que representa e o ato ou relação de representar, o primeiro pode ser chamado de “representamen”, o último de “representação” (SANTAELLA; NÖTH, 2005, p.17).

Um ponto se impõe aqui: a importância de se reter da definição dada acima a referência ao “intérprete da representação”, o que corresponde no teatro e no cinema ao papel fundamental do espectador ou receptor da obra, que, a propósito, concentrará boa parte da pesquisa e da reflexão no curso do século XX por parte dos principais nomes dos encenadores e teatrólogos, sendo considerado já desde os primórdios, com Meyerhold em primeiro lugar, como o quarto criador da obra teatral e artística. Todavia, prosseguir nas implicações da idéia de imagem requer situar o sistema semiótico de Peirce – e a abordagem de Santaella – numa ordem de primeiro grau, como o é todo o sistema lingüístico no campo dos sinais verbais. Para além desse nível, situam-se as reflexões sobre imagem e representação no contexto da criação artística, no qual se trataria sempre de produção de sentido da ordem de segundo grau, a exemplo das teorias do teatro ou da arte cinematográfica de Eisenstein. Na teoria fílmica de Eisenstein, a ampliação dos conceitos de “imagem” e “representação” é proposta a partir da distinção de cada um dos termos, no contexto da definição de montagem – propriedade fundamental na criação cinematográfica eisensteiniana. No primeiro capítulo, “Palavra e imagem”, de O sentido do filme, encontra-se a definição de montagem do seguinte modo: A representação A e a representação B devem ser selecionadas entre todos os aspectos possíveis do tema em desenvolvimento, devem ser procuradas de tal modo que sua justaposição – isto é, a justaposição desses próprios elementos e não de outros, alternativos – suscite na percepção e nos sentimentos do espectador a mais completa imagem do próprio tema (EISENSTEIN, 2002, p.18, grifos do autor).

A referência às noções de representação e imagem nessa definição leva Eisenstein a demarcá-las, em seguida, com diversos exemplos de como se dá a criação de imagens na vida e na arte mediante representações diferentes da idéia de tempo: 1) tempo cronológico – o relógio; 2) hora determinada – imagem das 5h da tarde (ambas criações da vida prática); 3) tempo subjetivo na ficção – representação da sensação de meia-noite, das 12 badaladas (na criação literária). A precisão da demonstração eisensteiniana pode ser conferida nos exemplos transcritos a seguir: 5

PEIRCE, Charles. Collected papers. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1931–1958, vol. 1–6, ed. Hartshorne, Charles & Weiss, Paul; vol. 7 e 8, Burks, Arthur, W.

Tomemos um disco branco de tamanho médio e superfície lisa, dividido em 60 partes iguais. A cada cinco partes é colocado um número na ordem consecutiva de 1 a 12. No centro do disco são fixadas duas varas de metal, que se movimentam livremente sobre sua extremidade fixa, pontudas nas extremidades livres, uma do tamanho do raio do disco, a outra um pouco mais curta. Deixemos a extremidade livre da vara pontuda mais longa marcar o número 12, e a da mais curta, consecutivamente, apontar para os números 1, 2, 3 e assim por diante, até o número 12. Isto implicará uma série de representações geométricas de relações consecutivas das duas varas de metal, expressadas nas dimensões 30, 60, 90 graus, e assim por diante, até 360 graus. Porém, se o disco dispuser de um mecanismo que movimenta uniformemente as varasa metálicas, a figura geométrica formada em sua superfície adquire um significado especial. Agora não é simplesmente uma representação, é uma imagem do tempo (EISENSTEIN, 2002, p.18-19, grifos do autor).

Aqui, Eisenstein observa a fusão completa entre representação e imagem suscitada na percepção corrente, de modo que “apenas sob condições especiais distinguimos a figura geométrica, formada pelos ponteiros do relógio, do conceito de tempo” (2002, p.19). A fim de deslindar o processo pelo qual “algo tem de acontecer com a representação, algo mais tem de ser feito com ela” para que se torne uma imagem perceptível (p.19), Eisenstein recorre à eficácia do exemplo da imagem das 5h da tarde, suscitada por meio de um grupo de representações associadas com determinada hora: Suponhamos, por exemplo, que o número seja cinco. Nossa imaginação está treinada para responder a este número recordando cenas de todos os tipos de acontecimentos que ocorrem nesta hora. Talvez o chá, o fim de uma jornada de trabalho, o começo da hora do rush no metrô, talvez lojas fechando as portas, ou a peculiar luminosidade do final da tarde... Em qualquer dos casos, automaticamente nos lembraremos de uma série de cenas (representações) do que acontece às cinco horas. A imagem das cinco horas é composta de todas essas representações particulares (EISENSTEIN, 2002, p.19).

Nesse exemplo, a formação de imagens fica clara. Quanto à participação do universo psíquico humano nesse processo, Eisenstein observa: entram em funcionamento as “leis de economia da energia psíquica” por meio das quais “ocorre uma ‘condensação’”, isto é, a cadeia de representações de múltiplos fragmentos da realidade desaparece e uma conexão entre o número e a percepção do tempo ao qual corresponde é estabelecida instantaneamente. O interesse de Eisenstein (2002, p.20) no deslindamento dessa “‘mecânica’ da formação de uma imagem (a partir de representações)” é justificado por ele em razão de “[...] os mecanismos de sua formação na realidade [servirem] de protótipo do método de criação de imagens pela arte. [...] Entre a representação de uma hora no mostrador do relógio e nossa percepção da imagem dessa hora há uma cadeia de representações vinculadas aos aspectos característicos distintos dessa hora”, que é, por sua vez, reduzida a um mínimo, para que só o início e o fim do processo sejam percebidos.

O que distinguiria essa formação de imagens na “prática da vida” da formação na “prática da arte” seria o que Eisenstein identifica como “deslocamento da ênfase”. Na vida, a ênfase recairia no resultado, passando rapidamente pelo primeiro estágio de reunião de fragmentos de imagens; na arte, para se conseguir um resultado, seria preciso “dirigir toda a sutileza de seus métodos para o processo”. Assim, “no método real de criação de imagens, uma obra de arte deve reproduzir o processo pelo qual, na própria vida, novas imagens são formadas na consciência e nos sentimentos humanos”. Essa condição da criação na arte valeria, na concepção de Eisenstein, “sempre e em qualquer parte, não [importando] [...] a forma artística em discussão”.6 O terceiro exemplo de Eisenstein para ilustrar uma imagem do tempo criada agora no âmbito da arte vem da literatura: trata-se de uma passagem de Bel ami de Maupassant. “É a cena em que George Duroy [...] está esperando no fiacre por Suzanne, que concordou em fugir com ele à meianoite” (p.22). Não há necessidade de reproduzir toda a citação que Eisenstein faz dessa passagem de Maupassant; basta um pequeno trecho, o que concentra sua análise: Um relógio distante deu doze badaladas, depois um outro mais perto, depois dois juntos, depois um último, muito longe. Quando este acabou de tocar, pensou: “Acabou-se. Deu tudo errado. Ela não virá”. Estava entretanto resolvido a ficar, até de manhã. Nestes casos é preciso ser paciente. 7

De acordo com Eisenstein, nessa passagem, “doze horas da noite só é a hora cronométrica num grau mínimo, e é, num grau máximo, a hora na qual tudo (ou de qualquer modo, muito) está em jogo (‘Acabou-se [...] Ela não virá.’)”. Em outras palavras: Nesse exemplo, [...] quando Maupassant quis gravar na consciência e nas sensações do leitor a qualidade emocional da meia-noite, não se limitou a mencionar que primeiro bateu a meia-noite e depois uma hora. Ele nos obrigou a experimentar a sensação da meia-noite, fazendo com que as doze horas batessem em vários lugares e em vários relógios. Combinados em nossa percepção, estes grupos individuais de doze badaladas se transformam numa sensação geral da meia-noite. As representações separadas se transformaram em uma imagem (EISENSTEIN, 2002, p.23, grifos do autor).

Nesse momento, Eisenstein volta à origem da reflexão sobre a demarcação de sentido entre representação e imagem: “isto foi inteiramente feito por meio de montagem”. É o tal princípio de montagem que, na arte, reúne e organiza as representações de fragmentos da realidade de modo a transformá-las numa determinada imagem. No exemplo de Maupassant, Eisenstein identifica, em sua estrutura textual, o que ele diz ser [...] o mais requintado estilo de roteiro de montagem: este badalar de relógios, registrados a várias distâncias, é como a filmagem de um objeto a partir de 6

7

Todas as citações deste período referem-se à mesma obra de Eisenstein, p. 20-22. Nesse ponto, o autor recorre ao trabalho do ator como exemplo para ilustrar sua concepção. Guy de Maupassant, Bel Ami. [Tradução brasileira de Clovis Ramalhete. São Paulo, Livraria Martins, 1953.] apud Eisenstein, op. cit., p. 23.

diferentes posições da câmera e repetida numa série de três diferentes enquadramentos: “plano geral”, “plano médio”, “plano de conjunto” (EISENSTEIN, 2002, p.23).

A conclusão de Eisenstein na análise dessa passagem é que a reprodução das diversas badaladas reais de relógio à meia-noite se vincula não com uma tentativa de descrição “naturalista de Paris à noite [...] [nem] com a mera informação: ‘zero hora’ [mas sim com a] ênfase insistente na imagem emocional da ‘meia-noite’ fatal” (p.23). Eisenstein identifica exemplos de aplicação do princípio de montagem, também, na interpretação do ator, tanto na construção externa dos gestos e movimentos quanto na construção do universo interior, daquilo que motiva a atitude ou o gesto exterior do ator: “Mesmo se sua interpretação for tomada de um único ângulo (ou mesmo de uma única poltrona da platéia de um teatro), apesar disso – num caso bem-sucedido – a interpretação terá a qualidade de ‘montagem’”(p.25). Outro exemplo de aplicação do princípio de montagem dado por Eisenstein encontra-se no âmbito das artes plásticas: “nas notas de Leonardo da Vinci para a pintura (de um quadro não realizado) – um verdadeiro “roteiro de filmagem, com ‘cenas audiovisuais incomuns’” (p.25) – além do da literatura com uma infinidade de poemas retirados da lírica clássica, fonte inesgotável de imagens poéticas para Eisenstein. Eis por que ele afirma a existência de um princípio da montagem em geral válido para todas as modalidades de arte e cuja expressão no cinema seria só uma forma particular de sua manifestação. Embora Eisenstein não se refira em nenhum momento ao sintagma imagem verbal em seu texto, é essa a categoria de imagem fornecida por ele ao analisar a estrutura de poemas para ilustrar a aplicação do princípio de montagem como método de construção de imagens empregado pelos poetas. Logo, ele confirma a tendência dominante de se considerar a imagem poética como imagem construída pela linguagem verbal, pela relação entre as palavras, enfim, pela articulação das palavras, como diz Bosi. Feitas essas considerações sobre a imagem em geral, é hora de considerar a idéia de imagem poética como conceito operativo na análise da imagem teatral do Nuevo Teatro. Para isso é pertinente distinguir entre o substantivo poética do adjetivo poética. 4.1.1 Poética e poética Poética como substantivo se vincula mais aos estudos literários, mais precisamente ao estudo do poema.8 É assim que o tratam Alfredo Bosi (1997), Henry Suhamy (1988), Roman Jakobson, Tzvetan Todorov (1973), Vladimir Maiakovski (1984) e outros. Em Suhamy, a definição de poética – que esse autor chama de “provisória” – é “designativa, 8

A maioria dos livros sobre “Poética” refere-se ao universo da literatura.

ao mesmo tempo, da arte e da ciência da poesia”. A certa altura, ele faz referência à confusão entre os termos em suas acepções substantiva e adjetiva: [...] será útil distinguir entre a Poética e o poético, indicando que há forçosamente zonas comuns aos campos semânticos que cobrem essas duas noções, e laços orgânicos, ainda mais porque no masculino o adjetivo utilizado como substantivo designa uma qualidade geral, elevada à altura de um conceito, o que acentua a semelhança. A Poética trata, pelo menos em parte, do poético, isto é, explora um veio, ou produz um corpus, que a consciência intelectual ou mesmo a percepção imediata caracterizam como relacionados com o poético (SUHAMY, 1988, p.11).

Para Suhamy, “a Poética criou o poético”. Noutros termos, “a criação literária é anterior à noção de qualidade poética” (1988, p.12-13). Para Todorov, poética é a análise “das condições gerais do nascimento do sentido” ou – como afirma noutro lugar – “[...] Poética se define como uma ciência da literatura: [...] são os aspectos especificamente literários da literatura, aspectos que só ela possui” (1973, p. 32; 127). Para Jakobson, esses aspectos seriam o objeto da ciência literária: em vez da literatura, a literariedade, “isto é, o que faz de determinada obra uma obra literária”. 9 Nesse sentido, A finalidade de semelhante estudo não é mais a de articular uma paráfrase, um resumo racional da obra concreta, mas propor uma teoria da estrutura e do funcionamento do discurso literário, uma teoria que apresente um quadro tal dos possíveis literários, que as obras literárias existentes apareçam como casos particulares realizados (TODOROV, 1973, p.15).

Nessa tradição de estudos, a obra fundadora da poética como teoria da literatura é a Poética de Aristóteles, cuja descrição das propriedades do discurso das tragédias e comédias gregas influenciou o teatro ocidental. O termo tem origem, também, no verbo grego poieu e no substantivo poiêsis: criar e “criação”, respectivamente. Franklin Rodríguez (1989), cujo artigo traz no título esse conceito, resume o termo com base nas proposições da teoria literária de Todorov e Ducrot. Para esses teóricos: O termo “poética” pode ser entendido em três níveis distintos: a) o que designa a tradição como toda teoria interna da Literatura; b) o que designa a poética do autor que se baseia na seleção pessoal dentro de todas as possibilidades literárias (temática, composição, estilo etc.); c) o que se refere ao código normativo que constrói uma escola literária sobre a base de um complexo de regras práticas, cuja utilização se torna obrigatória (FRANKLIN ROFRÍGUEZ, 1989, p. ).

No final de sua obra Estruturalismo e poética, aqui citada, Todorov aponta uma ampliação do conceito de poética como ciência do texto, e não apenas os textos verbais. Segundo sua proposição, “ [...] hoje não há mais nenhuma razão para reservar somente à literatura o tipo de estudos que se cristalizou na Poética: é preciso conhecer “como tais” não apenas os textos literários, 9

JAKO BSO N ,

Roman. Questions de poétique (1973) apud TODOROV, 1973, p.127.

mas todos os textos; não apenas a produção verbal, mas todo simbolismo (1973, p.129-130). No âmbito da arte teatral, esse aspecto normativo da poética e “seus pressupostos metodológicos” parecem ter se tornado “bastante fora de moda, anacrônicos”. Só no século

XX

essa

poética deixou de ser menos normativa para ser mais descritiva, até estrutural; na análise poética, peças e cenas passaram a ser examinadas como sistemas artísticos autônomos (PAVIS, 2005, p.296). Pavis se refere aqui ao campo de estudo da semiologia teatral, surgida nos anos 60 sob influência da semiótica e do estruturalismo francês. Contudo, a poética que interessa a este trabalho é aquela suposta em sua acepção adjetiva, de difícil apreensão, dentre outras razões, por causa de sua condição algo subjetiva. Mesmo assim, esse dado poético – relativo à criação da poesia em cena – é que importa desemaranhar. Georg Lukács, do ponto de vista da teoria literária, questiona: “o que é que torna poéticas as coisas na poesia épica?”. Eis sua resposta: O palco e a orquestra, os camarins e os bastidores são em si mesmos, objetos inanimados, sem interesse e sem poesia. Continuam a sê-lo ainda quando se enchem de seres humanos e só com os acontecimentos nos quais se realizam as experiências da evolução destes homens é que eles adquirem a capacidade de provocar em nós emoções poéticas (1968, p.71).

Assim, “as coisas só têm vida poética” – continua Lukács – “enquanto relacionadas com acontecimentos de destinos humanos. Por isso, o verdadeiro narrador épico não as descreve e, sim, conta a função que elas assumem nas vidas humanas” (1968, p.73). Essa idéia é aplicável ao teatro em geral e ao latino-americano em particular. Assim, caberia perguntar: o que torna poéticas as coisas no teatro latino-americano? Uma resposta agora seria prematura. Antes, é preciso deslindar o sentido do termo poético. Diretamente associado a poesia em seu sentido mais comum e geral, convem entender o que é poesia. Poesia pode significar, além de “arte de compor ou escrever em versos”, “poder criativo, [...] [aquilo] que desperta o sentimento do belo ou aquilo que há de elevado ou comovente nas pessoas ou coisas”,10 dentre outras acepções. A definição de poesia como “aquilo que há de comovente nas pessoas ou coisas” é instigante. Não se trata aí de entender poesia como gênero literário, mas de aproximá-la do sentido observado pelo cineasta russo Andrei Tarkovski (1932-1986) em sua meditação sobre o cinema, Esculpir o tempo: “[...] quando falo de poesia, não penso nela como gênero. A poesia é uma consciência do mundo, uma forma específica de relacionamento com a realidade. Assim, a poesia torna-se uma filosofia que conduz o homem ao longo de toda a sua vida” (2002, p.18). O artista afinado com essa filosofia “é capaz

de perceber as características que regem a organização poética da existência. Ele é capaz de ir além dos limites da lógica linear, para poder exprimir a verdade e a complexidade profundas das ligações imponderáveis e dos fenômenos ocultos da vida” (TARKOVSKI, 2002, p.19). 10

De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Pode-se compreender melhor agora o sentido dado por Lukács em suas definições. A seu modo, ele se refere a esse mundo humano ao dizer que “a essência corpórea do homem também só adquire vitalidade poética na relação com outros homens, na influência que exerce sobre eles” (1968, p.75). Fica claro nessa referência o aspecto concreto e físico de como essa “vitalidade poética” pode transpassar o mundo dos homens e suas mútuas relações. Ao ser aplicada a poesia ao teatro, pode-se começar perguntando de que forma ela se dá. O que pode tornar o teatro– supõe-se – uma obra de arte poética pode ser abordado em dois níveis: no nível do texto verbal, o que torna o teatro uma obra artística é a palavra poética; no nível do texto espetacular, são os gestos e as atitudes dos personagens em cena, suas relações com outros personagens, ou seja, a trajetória e, sobretudo, a transformação que o passar do tempo imporá aos personagens ou, ainda, o que o evolver da ação fará emergir do comportamento deles. Numa palavra, trata-se da matéria humana com que se constrói conforme o mundo vivido. A situação exposta no início da peça será diferente no fim, e certa combinação desses elementos em cena poderá suscitar uma imagem, na apreensão do espectador, comovente ou poética, isto é, uma poesia concreta. Nesse sentido, Lukács aconselha: O grande escritor deve observar a vida com uma compreensão que não se limite à descrição da superfície exterior dela e nem se limite à colocação em relêvo, feita abstratamente, dos fenômenos sociais (ainda que tal colocação seja justa): cumprelhe captar a relação íntima entre a necessidade social e os acontecimentos da superfície, construindo um entrecho que seja a síntese poética dessa relação, a sua expressão concentrada (1968, p.90).

Lukács nessa passagem parece descrever uma cena de um filme de Tarkovski 11, dada a capacidade do cineasta de, num difícil equilíbrio alquímico, imprimir em suas obras a relação dialética entre fora e dentro, externo e interno, entre a necessidade social e a necessidade interna, em outras palavras, detectar o vínculo entre o que está na superfície com aquilo que está no fundo e por isso oculto. O cineasta parece reiterar essa idéia, quando afirma que: Um artista pode alcançar a ilusão de uma realidade exterior, e obter efeitos cuja naturalidade os faça em tudo semelhantes à vida, mas isto será ainda muito diferente de examinar a vida que está sob a sua superfície. [...] Há alguns aspectos da vida humana que só podem ser reproduzidos fielmente pela poesia (2002, p.19,31).

Todavia, para o artista “examinar a vida que está sob a sua superfície” ou “construir um entrecho que seja a síntese poética” do que está sob a superfície e do que está na superfície, ele há de se entregar à imaginação poética: operação que Bachelard identifica como geradora dessa síntese ou imagem poética. Esse autor considera “a imaginação como uma potência maior da natureza humana”: Com sua atividade viva, a imaginação desprende-nos ao mesmo tempo do passado 11

Assistir por exemplo ao filme O espelho do cineasta, de 1974.

e da realidade. Abre-se para o futuro. À função do real, orientada pelo passado tal como mostra a psicologia clássica, é preciso acrescentar uma função do irreal igualmente positiva, como procuramos estabelecer em obras anteriores. Uma enfermidade por parte da função do irreal entrava o psiquismo produtor. Como prever sem imaginar? (BACHELARD, 2005, p.18).

Essa forma de encarar a imaginação humana como forma de conhecimento parece ser revolucionária. Não é mais considerada aqui como mero engano dos sentidos; é, antes, uma forma de despertar múltiplos automatismos que recalcam o homem moderno e contemporâneo. “Com a poesia a imaginação coloca-se na margem em que precisamente a função do irreal vem arrebatar ou inquietar – sempre despertar – o ser adormecido nos seus automatismos” (BACHELARD, 2005, p.18). As duas funções do psiquismo humano – a do real e a do irreal – trabalhariam em conjunto para alargar a percepção e assimilação do mundo e, talvez, desembocar nessa capacidade de ir além dos limites da lógica linear para entender características que regem a organização poética da existência. Essa tese da fenomenologia bachelardiana converge para descobertas mais recentes do campo da neurociência, segundo a qual os lados esquerdo e direito do cérebro, embora atuem dominantemente em áreas distintas, não podem operar isoladamente. Com base no apoio mútuo de informações entre eles, cada um encontra sua resposta para inumeráveis estímulos e afetações advindos do mundo exterior. Esses breves apontamentos sobre a natureza do elemento poético, aplicável em todos os campos da arte, criam o contexto necessário para se apurar a idéia de imagem poética. 4.1.2 Imagem poética Como definir e captar a imagem poética? Que operação o artista deve fazer para alcançá-la em sua obra? Octavio Paz e Alfredo Bosi a entendem como algo relacionado ao universo da feitura de poemas. Eisenstein e Bachelard recorrem à poesia (como gênero literário) para ilustrar sua exposição sobre os princípios da criação de uma poesia da imagem. Todorov, embora se refira à poética em sua acepção substantiva como ciência da literatura, dá no final abertura para a poética como modelo de explicação de quaisquer sistemas simbólicos. Nos passos de Todorov, o termo poética, em seu sentido adjetivo, pode ser aplicável, então, a sistemas simbólicos diversos do sistema da poesia. Para além da narrativa e da lírica, a poesia – como diz Tarkovski – é uma consciência do mundo; e detectar como ela se origina e que operação o artista faz para erigi-la é o tema deste tópico. As reflexões de Bachelard, Bosi e Paz são as referências para isso. Embora todos se remetam ao universo do poema, é perceptível sua validade para outras modalidades artísticas. Se se trata de uma idéia arredia à explicação, ao ser vivenciada pelo “leitor” na experiência da fruição estética não há quem não a compreenda: seu ser manifesto se dá por inteiro.

No estado poético, como em toda percepção, estamos presentes ao real: alguma coisa age sobre nós e alguma coisa nos é comunicada. Mas nesse ponto de receptividade onde a poesia nos leva, não é uma emoção que nos é infligida e que nós projetaríamos de volta sobre o objeto. Certamente somos tocados pelo poema, mas não somos reenviados a nós mesmos. Somos comovidos ao descobrir um mundo (DUFRENNE, 1969, p.106).

Tarkovski informa que “a imagem artística é sempre uma metonímia em que uma coisa é substituída por outra”, o menor no lugar do maior: “para referir-se ao que está vivo, o artista lança mão de algo morto; para falar do infinito, mostra o finito. Substituição [...] não se pode materializar o infinito, mas é possível criar dele uma ilusão: a imagem” (2002, p.42). Substituição que ressoa e repercute nas profundezas do ser, a imagem poética surge “na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade”, segundo a abordagem de Bachelard (2005). Esse autor propôs identificar o início da imagem numa consciência individual, analisando a obra de vários poetas para “reconstituir a subjetividade das imagens e medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem”. Como “o aparecimento de uma imagem poética singular pode reagir – sem nenhuma preparação – em outras almas, em outros corações, apesar de todas as barreiras do senso comum, de todos os pensamentos sensatos?”. Ao tentar responder a essa questão da “transubjetividade” da imagem, Bachelard descobre o caráter variacional da imagem poética: “não é, como o conceito, constitutiva”; no “nível da imagem poética, a dualidade do sujeito e do objeto é irisada, reverberante, incessantemente ativa em suas inversões”. É na criação de uma imagem poética que a alma afirma a sua presença. “A imagem poética está sob o signo de um novo ser” (BACHELARD, 2005, p.4-42). Nesse sentido último, pode-se perceber com clareza a convergência entre as considerações sobre a imagem poética de Bachelard e Paz. Quando este distingue linguagem de poema, pode-se ler o seguinte: “a linguagem indica, representa; o poema não explica nem representa, apresenta. Não alude à realidade; pretende – e às vezes o consegue – recriá-la. Portanto, a poesia é um penetrar, um estar ou ser na realidade” (PAZ, 2006, p.50). No dizer de Paz, “o poeta faz algo mais do que dizer a verdade; cria realidades que possuem uma verdade: a de sua própria existência. As imagens poéticas têm a sua própria lógica” (2006, p.45). Se Eisenstein mostrou que a criação de imagens na arte se assemelha à formação de imagens na vida prática, Paz tenta mostrar a diferença entre a linguagem comum e a pura visibilidade do objeto, e de como a partir disso, a criação na poesia está relacionada com essa capacidade de a Língua de transcender sua própria vulgaridade, fazendo emergir uma imagem inteira de algum objeto por meio do recurso lingüístico. Diz ele: “quando percebemos um objeto qualquer, este se nos apresenta como uma pluralidade de qualidades, sensações e significados. Esta pluralidade se unifica, instantaneamente, no momento da percepção”, cujo “elemento unificador” é o sentido. “As

coisas possuem um sentido”. Logo, a intencionalidade está presente “mesmo no caso da mais simples, casual e distraída percepção”, de modo que o sentido é o fundamento da linguagem e “também de toda apreensão da realidade”. Aqui, uma idéia similar à de Eisenstein: “à semelhança da percepção ordinária, a imagem poética reproduz a pluralidade da realidade e, ao mesmo tempo, outorga-lhe unidade”. Paz tenta ilustrar o que vai distinguir o ofício do artista da prática comum dos homens: “todas as nossas versões do real – silogismos, descrições, fórmulas científicas, comentários de ordem prática, etc. – não recriam aquilo que pretendem exprimir. Limitam-se a representá-lo ou descrevê-lo” (PAZ, 2006, p.46). Todavia, Se vemos uma cadeira, por exemplo, percebemos instantaneamente sua cor, sua forma, os materiais com que foi construída, etc. A apreensão de todas estas notas dispersas não é obstáculo para que, no mesmo ato, nos seja dado o significado da cadeira: o de ser um móvel, um utensílio. Mas se queremos descrever nossa percepção da cadeira, teremos que ir aos poucos e por partes: primeiro sua forma, depois sua cor e assim sucessivamente até chegar ao significado. No curso do processo descritivo foi-se perdendo pouco a pouco a totalidade do objeto. A princípio a cadeira foi apenas forma, mais tarde uma certa espécie de madeira, e finalmente puro significado abstrato: a cadeira é um objeto que serve para sentarse. No poema a cadeira é uma presença instantânea e total, que fere de um golpe a nossa atenção. O poeta não descreve a cadeira: coloca-a diante de nós. Como no momento da percepção, a cadeira nos é dada com todas as suas qualidades contrárias e, no ápice, o significado. Assim, a imagem reproduz o momento de percepção e força o leitor a suscitar dentro de si o objeto um dia percebido (PAZ, 2006, p.46).

Esse exemplo mostra com clareza o ofício e a sensibilidade do artista, pois “muitas coisas, afinal, ficam em nossos corações e pensamentos como sugestões não concretizadas” (TARKOVSKI, 2002, p.22) ou percepções esmaecidas, não conscienti-zadas, que o poeta vivificará na sua imagem. A poesia encontra nessa fronteira entre percepções claras e impressões indefinidas algo de sua matéria poética. A reflexão de Tarkovski sobre o cinema deixa entrever uma idéia similar: Impressões isoladas do dia geraram em nós impulsos interiores, evocaram associações; objetos e circunstâncias permaneceram em nossa memória, sem, no entanto, apresentarem contornos claramente definidos, mostrando-se incompletos, aparentemente fortuitos. [...] Será possível transmitir, através de um filme, essas impressões da vida? É evidente que sim; na verdade, a virtude específica do cinema, na condição de mais realista das artes, é ser o veículo de tal comunicação (2002, p.21-22).

Desnecessário dizer que tal afirmação também vale para o teatro. O teatro, a partir do corpo vivo do ator, é tão apto quanto o cinema para tocar nessas zonas fronteiriças, indefinidas, escorregadias que povoam o cotidiano das pessoas, e transmiti-las ao espectador. Em outros termos, o teatro veicula “tal comunicação”. Posto isso, pode-se voltar a Paz que conclui: “o poema nos faz recordar o que esquecemos: o

que somos realmente [...] Por obra da imagem produz-se a instantânea reconciliação entre o nome e o objeto, entre a representação e a realidade” (2006, p.47). Quando tropeçamos numa sentença obscura, dizemos: “O que estas palavras querem dizer é isto ou aquilo”. E para dizer “isto ou aquilo” recorremos a outras palavras. Toda frase quer dizer algo que pode ser dito ou explicado por outra frase. Em conseqüência, o sentido ou significado é um querer dizer. Ou seja: um dizer que pode dizer-se de outra maneira. O sentido da imagem, pelo contrário, é a própria imagem: não se pode dizer com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que quer dizer. Sentido e imagem são a mesma coisa. Um poema não tem mais sentido que as suas imagens. Ao ver a cadeira, apreendemos instantaneamente seu sentido: sem necessidade de recorrer à palavra, sentamos-nos (PAZ, 2006, p.47).

O mesmo ocorreria no poema: o poeta não quer dizer, o poeta diz. Segundo Paz, “há muitas maneiras de dizer a mesma coisa em prosa; só existe uma em poesia. [...] O dizer poético diz o indizível” (2006, p.48,49). Mas ainda não se chegou à formulação capital da imagem poética na concepção de Paz. Ele identifica a ambivalência do poema em sua própria natureza dual resultante do movimento duplo da operação poética: “transmutação do tempo histórico em arquetípico e encarnação desse arquétipo em um agora determinado e histórico”. Noutras palavras: “[...] o poeta não escapa à história, inclusive quando a nega ou ignora. Suas experiências mais secretas ou pessoais se transformam em palavras sociais, históricas. Ao mesmo tempo, e com essas mesmas palavras, o poeta diz outra coisa: revela o homem (PAZ, 2006, p.55). Assim, poesia é antes de mais nada palavra carregada de sentido para o homem. A reflexão de Paz o leva afirmar que: A condição dual da palavra poética não é diversa da natureza do homem, ser temporal e relativo mas sempre lançado ao absoluto [...]. A experiência poética não é outra coisa que a revelação da condição humana, isto é, desse transcender-se sem cessar no qual reside precisamente a sua liberdade essencial. Se a liberdade é movimento do ser, transcender-se contínuo do homem, esse movimento deverá estar referido a algo. E assim é: um apontar para um valor ou uma experiência determinada. [...] aquilo de que o poeta fala efetivamente [...] pode ser pessoal, social ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Mas ao falar-nos de todos esses sucessos, sentimentos, experiências e pessoas, o poeta nos fala de outra coisa: do que está fazendo, do que está sendo diante de nós e em nós. E mais ainda: leva-nos a repetir, a recriar seu poema, a nomear aquilo que nomeia; e ao fazê-lo, revela-nos o que somos (2006, p.57).

Dito isso, a compreensão da natureza da imagem poética à luz das idéias de Paz mostra que entre o princípio e o fim – no centro – está o homem: encasquetado com seu próprio enigma. 4.1.3 Imagem verbal No dizer de Santaella, as imagens verbais podem ser tratadas segundo dois pontos de vista: como linguagem figurada, metafórica e como “retrato”, “figuração” (picture) da realidade, “modelo

da realidade” que tem em comum com essa realidade (o afigurado) “a forma lógica da afiguração”, conforme definição proposta por Wittgenstein, em seu Tratactus (1971). Ainda segundo Santaella, foi no campo da Literatura “que o conceito de imagem verbal disseminou-se [...] substituindo pouco a pouco as figuras de linguagem” (2005, p.66). No Romantismo, todas as variações de imagem, tanto pictóricas quanto verbais e mentais, foram sublimadas nas brumas mais misteriosas e refinadas da imaginação, até que, no Modernismo, a sublimação progressiva da imagem alcançou sua culminação lógica quando o poema inteiro ou texto passou a ser considerado como uma imagem ou “ícone verbal”. Esta imagem não mais concebida como impressão ou semelhança pictórica, mas como estrutura sincrônica num espaço metafórico, apresenta, segundo Pound, um complexo intelectual e emocional num instante de tempo (SANTAELLA; NÖTH, 2005, p.67).

Em contraposição “ao caráter metafórico” da imagem no “reino da poesia”, Santaella aponta “um sentido” ainda mais literal nesse campo: o “da qualidade imagética da palavra escrita”, que, de qualquer maneira, leva ao universo da poesia (2005, p.69). Sobre essa qualidade imagética do verbo, Alfredo Bosi (1999, p.23) alerta: “não é lícito, epistemologicamente, saltar da imagem [...] ao texto sem atravessar o curso das palavras, o seu discurso” ; e Octavio Paz declara que: [Seja] épica, dramática ou lírica, condensada em uma frase ou desenvolvida em mil páginas, toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si. [...] A imagem reproduz o momento de percepção e força o leitor a suscitar dentro de si o objeto um dia percebido (2006, p.38, 46).

Portanto, a linguagem verbal é matéria-prima na elaboração de uma imagem poética no âmbito da literatura. Sobre essa elaboração verbal, reflexões consistentes têm sido feitas, como mostram os trabalhos de Bosi e Paz, ainda que partam de pontos de vista inconciliáveis.12 Entretanto, antes de desenvolver esse tema, convém salientar de que modo a idéia de imagem é apreendida por eles. Paz faz uma primeira distinção: A palavra imagem possui, como todos os vocábulos, diversas significações. Por exemplo: vulto, representação, como quando falamos de uma imagem ou escultura de Apolo ou da Virgem. [...] Ou figura real ou irreal que evocamos e produzimos com a imaginação. Neste sentido, o vocábulo possui um valor psicológico: as imagens são produtos imaginários. Não são estes seus únicos significados, nem os que aqui nos interessam. Convém advertir, pois, que designamos com a palavra imagem toda forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que unidas compõem o poema (PAZ, 2006, p.37).

Bosi recua um pouco mais para ver a imagem encarnada, primeiramente, no corpo do ser humano: “a experiência da imagem, anterior à da palavra, vem enraizar-se no corpo. A imagem é 12

Uma das principais distinções entre os dois intelectuais refere-se ao modo de considerar a linguagem: Paz crê que os objetos estão mais adiante das palavras; enquanto Bosi vê o sistema lingüístico como um modelo da realidade, conforme o concebe Wittegenstein no seu Tractatus; isso traz implicações para o modo de considerar a criação poética: para Bosi, o poema revela a verdade; para Paz, o poema jamais poderia revelar a verdade, mas o que poderia ser.

afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor”. Nesse sentido, “a imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós” (1999, p.13). O ato de ver apanha não só a aparência da coisa, mas alguma relação entre nós e essa aparência: primeiro e fatal intervalo. Pascal: “Figure porte absence et présence”. [...] Formada, a imagem busca aprisionar a alteridade estranha das coisas e dos homens. O desenho mental já é um modo incipiente de apreender o mundo. [...] A imagem, mental ou inscrita, entretém com o visível uma dupla relação que os verbos aparecer e parecer ilustram cabalmente. [...] O objeto dá-se, aparece, abre-se à visão, entrega-se a nós enquanto aparência: esta é a imago primordial que temos dele. Em seguida, com a reprodução da aparência, esta se parece com o que nos apareceu. Da aparência à parecença: momentos contíguos que a linguagem mantém próximos (BOSI, 1999, p.13-14, grifos do autor).

Bosi dá continuidade ao seu deslindamento da idéia de imagem até detectar o engano a que ela pode induzir o sujeito: “cremos ‘fixar’ o imaginário de um quadro, de um poema, de um romance [...] como se objeto e imagem fossem entes dotados de propriedades homólogas”. Pura veleidade, suave ilusão: eis que essa identificação supõe. “A imagem não decalca o modo de ser do objeto, ainda que de alguma forma o apreenda. Porque o imaginado é, a um só tempo, dado e construído. Dado, enquanto matéria. Mas construído, enquanto forma-para o sujeito” (p.15). Enfim, Bosi se pergunta: “o que é uma imagem-no-poema?”. Como Paz, que a identifica em toda forma verbal, Bosi declara: “já não é, evidentemente, um ícone do objeto que se fixou na retina; nem um fantasma produzido na hora do devaneio: é uma palavra articulada” (PAZ, 1999, p.21, grifo nosso). Seja no poema como um todo, seja como resultado do poder de evocação de uma única palavra, a imagem é detectada por Eisenstein no contexto de sua análise dos modos como aparece o princípio de montagem nos poemas. Sua análise identifica imagens construídas por um, dois ou mais versos, por um sintagma nominal ou verbal, às vezes por uma única palavra. Por meio da montagem, pode-se criar imagens de uma obra de arte, mas também criar imagens de um personagem. Para ilustrar, tome-se o exemplo dado pelo cineasta a partir do poema Poltava, de Puchkin, onde se encontra a descrição de Pedro, o Grande. Antes, porém, convem chamar a atenção para a “habilidade do poeta” em fazer emergir o homem completo das páginas dos poemas, por meio da combinação superlativa de vários aspectos e de diferentes elementos. O tratamento do ritmo, por exemplo, “[...]o ritmo, construído com sucessivas frases longas e frases tão curtas que constam de uma única palavra, introduz uma característica dinâmica na imagem da estrutura da montagem, [...] [também] serve para estabelecer o verdadeiro temperamento do personagem descrito” (EISENSTEIN, 2002, p.38), oferecendo-nos uma caracterização “dinâmica de seu comportamento”. Detectando no poema o ritmo e os fragmentos de representação, Eisenstein revela o princípio de montagem e a imagem resultante dele. Para acompanhar essa análise de perto, transcrever-se-á a seguir esse trecho do poema Poltava de Puchkin com a descrição de Pedro:

I. II. III. IV. V. VI. VII. VIII. IX. X. XI. XII. XIII. XIV.

...E então, com a maior veemência, ...Soou, vibrante,a voz de Pedro: “Às armas, Deus esteja conosco!” Da tenda, Por inúmeros favoritos rodeado, Pedro surge. Seus olhos Faíscam. Seu olhar é terrível. Seus movimentos ágeis. Magnífico, Todo o seu aspecto, fúria divina. Avança. Seu corcel lhe é entregue. Fogoso e dócil, fiel cavalo de batalha. Pressentindo o fogo fatal, Treme. Enviesa os olhos. E se lança na poeira da luta. Orgulhoso de seu poderoso cavaleiro13.

Eisenstein propõe, após essa numeração dos versos do poeta, uma outra numeração, identificando os “planos”, como se fosse um roteiro de filme, “tal como montados por Púchkin: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14.

E então, com a maior veemência, soou, vibrante, a voz de Pedro: “Às armas, Deus esteja conosco!” Da tenda, por inúmeros favoritos rodeado. Pedro surge. Seus olhos faíscam. Seu olhar é terrível. Seus movimentos ágeis. Magnífico. Todo o seu aspecto, fúria divina. Avança. Seu corcel lhe é entregue. Fogoso e dócil, fiel cavalo de batalha. Pressentindo o fogo fatal, treme. Enviesa os olhos. E se lança na poeira da luta, orgulhoso de seu poderoso cavaleiro.

A partir do confronto entre versos e planos, Eisenstein vai ilustrando de que modo Puchkin vai construindo a imagem do cavaleiro, herói da Rússia. Como ele ordena a sucessão da “apresentação e revelação das características e da personalidade de um homem” de forma a “aumentar o valor total da imagem” (EISENSTEIN, 2002, p.38). Embora sejam idênticos o número de versos e o número de planos, não há coincidência entre “o esquema do verso” e o “esquema do plano”. Tomando apenas o exemplo de um dos versos, lê-se no verso movimentos ágeis. Magnífico”; já no plano

VII

VII

do poema: “Seus

do roteiro de Eisenstein, lê-se apenas uma palavra:

“Magnífico”. Na enumeração das imagens, Eisenstein divide o verso

VII

em dois planos: o plano 6

– “Seus movimentos ágeis” – e plano 7 – “Magnífico”. Naquele se tem, então, uma imagem formada por um sintagma; neste, por uma só palavra. E é apenas com essa palavra, que se dá “a apresentação total de toda a figura” de Pedro: “Magnífico”, evoca uma imagem total. 13

PUCHKIN, A. S. Polnoye Sobraniye Sochinenil. Leningrado, 1936, apud Eisenstein, 2002, p.38.

Noutro exemplo, Einsenstein mostra como o poeta constrói a imagem de uma “fuga noturna” mediante “três representações objetivamente expressadas”. Trata-se outra cena de “Poltava”, onde se lê estes versos: i. ii. iii. iv.

Mas ninguém sabia como ou quando Ela sumira. Um pescador solitário Ouviu naquela noite o galope de cavalos, Vozes de cossacos e o sussurro de uma mulher14.

Eis os planos de Eisenstein: 1. Galope de cavalos; 2. Vozes de cossacos; 3. O sussurro de uma mulher

Ele observa que o método da montagem é usado para “[...] suscitar a necessária experiência emocional do leitor”, porque “a informação de que Marya desaparecera já fora dada no verso anterior”. Para dar a sensação de fuga, o poeta usa a montagem: “Com três detalhes selecionados entre todos os elementos da fuga, sua imagem de fuga noturna surge na forma de montagem, comunicando a experiência da ação aos sentidos” (EISENSTEIN, 2002, p.37). Para ilustrar mais o princípio de montagem empregado (ainda que inconscientemente) na experiência de criação de outros poetas, rememore-se aqui o relato de Maiakovski (1984, p.30) sobre como conseguiu encontrar a imagem que sintetizava para ele a idéia de “ternura”: Durante dois dias meditei nas palavras de ternura que um solitário dirige à sua única bem amada. Como vai ele olhar por ela, amá-la? Na terceira noite fui deitarme com dores de cabeça, sem nada ter descoberto. Por fim achei a definição: O teu corpo, Hei de cuidá-lo e amá-lo, Como um soldado mutilado na guerra, Inútil, sem ninguém, Cuida De sua única perna.

Nesse caso, trata-se de imagem metafórica, que Maiakovski explorou muito no início de sua carreira de poeta. Eisenstein, ao se referir a Maiakovski, diz: “ele corta seu verso exatamente como um experiente montador o faria ao construir uma seqüência típica de ‘impacto’” (2002, p.47). O choque que os versos de Maiakovski provoca no leitor tem a ver com a força que uma metáfora única e incomum podem suscitar, mas também com aquilo que Paz disse: “As imagens no poema não levam a outras coisas, como ocorre com a prosa, mas nos colocam diante de uma realidade concreta” (PAZ, 2006, p.47). Em seu esforço para ilustrar a aplicação do princípio de montagem em várias modalidades 14

(PUCHKIN, 1936).

de arte, Eisenstein não se restringiu a versos poéticos para demonstrar a criação de imagens. Mais que isso, ele reconhece que se trata de princípio usado há muito e, para seguir em sua demonstração, ele recorre a outras formas literárias como o romance (inclusive o de prosa poética) e às artes plásticas (pinturas de Bosh, Da Vinci e outros). Mas a substância, se se pode dizer assim, aquilo que distingue o modo de construção da imagem verbal, encontra-se, na formulação de Alfredo Bosi, no modo como “a matéria verbal se enlaça com a matéria significada”, o que se dá por meio de uma série de articulações fônicas que compõem um código novo, a linguagem” (1999, p.21). Evoque-se aqui o raciocício de Bosi: A seqüência fônica articulada não tem a natureza de um simulacro, mas a de um substituto. [...] Formando-se com o apoio exclusivo da corrente de ar em contato com os órgãos da fala, a linguagem se vale de uma tática toda sua para recortar, transpor e socializar as percepções e os sentimentos que o homem é capaz de experimentar. Dizer como faz o poeta, Qualquer que seja a chuva desses campos Devemos esperar pelos estios; E ao chegar os serões e os fiéis enganos Amar os sonhos que restarem frios, 15 nunca será o mesmo que transmitir a outrem, por meio de ícones aglomerados, a mensagem da situação global vivida e das relações internas pensadas pelo falante ao significar o período dado. O modo encadeado de dizer a experiência renunciou, por certo, àquela fixidez, àquela simultaneidade, àquela forma-dada imediatamente do modo figural de concebê-la. A frase desdobra-se e rejunta-se, cadeia que é de antes e depois, de ainda e já não mais. Existe no tempo, no tempo subsiste. [...] A oração não se dá toda, de vez: o morfema segue o morfema; o sintagma, o sintagma. E entre a cadeia das frases e a cadeia dos eventos, vai-se urdindo a teia dos significados, a realidade paciente do conceito. Mediação e temporalidade supõem-se e necessitam-se (BOSI, 1999, p.21-22).

Essa formulação de Bosi explicita a diferença profunda entre a imagem verbal e a imagem visual. A iamgem visual que se impõe, que “arrebata”. Comparado com ela, “o discurso é frágil”, “pede a quem o profere, e a quem o escuta, alguma paciência”. Já o ícone seduz com sua pura presença, dá-se sem demora à fruição do olho (1999, p.25).

Tanto o cinema quanto o teatro,

guardada a distância que os separa, realizam-se pela combinação de imagens verbais e visuais, que resultam num grau de complexidade maior, em vista dos inúmeros códigos que podem funcionar em suas representações. Elas também podem ser lidas a partir dos eixos paradigmático e sintagmático. Como na linguagem verbal, estes se realizam pela mediação e pela temporalidade, num encadeamento específico de imagens e discursos. 4.1.4 Imagem visual Falar em imagem visual é pensar de imediato em qualquer objeto ou superfície do mundo. 15

Jorge de Lima. Invenção de Orfeu, XXVI.

De tão óbvia, sua apreensão se torna difícil. A primeira idéia que vem à mente é a pintura, embora se saiba que qualquer sinal ou signo não-verbal possa ser designado como imagem: o cartaz, o diagrama, o desenho, o cinema a fotografia, as peças publicitárias etc. E para dar conta da multiplicidade de signos e sinais característicos da vida contemporânea surge a semiótica, na segunda metade do século XX , como uma nova disciplina do conhecimento. Das várias classificações e subclassificações das imagens visuais indicadas por Santaella (2005) como instrumento para abarcar essa multiplicidade dos signos não-verbais, há uma que se distingue por considerar “a relação da imagem com o referente”. Ela inclui três tipos de imagem: não-representativa, figurativa e simbólica. As imagens

não-representativas são “abstratas”,

reduzidas a “elementos puros: tons, cores, manchas, brilhos, contornos, movimentos, ritmos, etc”; as figurativas são aquelas que “[...] transpõem para o plano bidimensional ou criam no espaço tridimensional réplicas de objetos preexistentes” ou visíveis no mundo exterior; as simbólicas são “imagens que, mesmo sendo figurativas, representam algo de caráter abstrato e geral” (SANTAELLA; NÖTH, 2005, p.82). A proposta deste estudo de apreender a imagem poética do Nuevo Teatro – ou seja, detectar como essa poesia se realiza na cena – exige que sejam demonstrados seus possíveis correlatos em outras modalidades artísticas. Como se trata de algo um tanto subjetivo, mesmo tendo-se em conta a universalidade estética kantiana16, recorre-se a exemplos da pintura e do cinema, a quadros ou cenas, considerados por alguma razão poéticos, a fim de que pistas possam ser lançadas à percepção daquilo que nestas obras concretas pode ser afirmado tratar-se de poesia. Nas artes visuais, podem servir a esse fim as obras do pintor surrealista Renné Magritte, tido como um dos pintores mais racionais e transgressores da “ordem” do mundo. Segundo comentário de Ades Dawn (2000), as telas de Salvador Dalí eram perturbadoras, “mas não tão verdadeiramente transgressoras quanto as de Magritte”. Estas “[...] são controvertidas; questionam os nossos pressupostos acerca do mundo, acerca das relações entre um objeto pintado e um objeto real, e estabelecem analogias imprevistas ou justapõem coisas completamente desconexas num estilo deliberadamente inexpressivo”. O efeito disso seria como “um lento estopim”. Corroborando esta linha de apreciação da obra de Magritte, Marcel Paquet escreve em seu livro dedicado ao pintor: “A sua intenção era apenas minar o alicerce das coisas, questionar muito seriamente o que é sério por si, tão simplesmente quanto possível, sem grande confusão, de forma inofensiva e quase anônima” (2000, p.71). A pintura de Magritte “é sempre a imagem de um pensamento e, como tal, o pintor exige que reflita a sua condição inerente, como imagem. Nunca é 16

Ernest Cassirer ao meditar sobre a arte, assevera: “kant faz uma distinção nítida entre o que chama de ‘universalidade estética’ e a ‘validade objetiva’, que faz parte de nossos juízos lógicos e científicos. Em nossos juízos estéticos, sustenta ele, não nos preocupamos com o objeto como tal, mas com a pura contemplação do objeto. A universalidade estética significa que o predicado de beleza não se restringe a um indivíduo especial, mas se estende por sobre todo o campo dos sujeitos julgantes” (2005, p.238-239).

uma simples reprodução das aparências, no sentido de ilusão visual, destinada a representar a realidade nem procura levar o espectador a um mundo distante, antes “espalha luz sobre a incoerência que é comum às nossas formas de pensamento, sejam elas imaginárias ou inconscientes [...]” (PAQUET, 2000, p.67, 75). Na produção de Magritte, “a imagem pintada não é uma mera reprodução, visto que também retrata a pessoa do pintor, o seu corpo, obtido pela sua forma de ver e a técnica de pintar coisas, o seu olhar e a sua mão”. Nesse sentido, “a pintura não oferece um meio de identificação, como uma fotografia de passaporte; a sua intenção é chamar a atenção, não para a realidade exterior como tal, mas para o insondável mistério por trás desta realidade”, o que pode ser verificado, por exemplo, num de seus mais famosos quadros: A Condição Humana. Nele, vê-se um cavalete colocado diante da janela, sustentando o que parece ser uma lâmina de vidro, pois nela está uma continuação exata da paisagem vista através da janela. Entretanto, o “vidro” sobressai ao lado da cortina e mostra ser sólido, de fato, uma pintura numa tela. Assim, trata-se de um quadro dentro de um quadro e embora o ilusionismo seja realmente muito tosco, estabelece-se uma violenta tensão entre o nosso conhecimento da fidelidade da paisagem na tela e a paisagem real, por um lado, e o conhecimento de que ambas são meramente pintadas, por outro (PAQUET, 2000, p.75).

Também significativo nesse sentido é O império da luzes, onde se encontra a seguinte cena: a imagem central da pintura revela uma casa, ou melhor, uma grande mansão de amplas janelas. No nível da casa, a paisagem é noturna. As árvores, enegrecidas pela noite, são manchas sinistras, e o único ponto de luz é uma luminária na frente da porta de entrada, cujos reflexos morrem na água de uma fonte de jardim em frente à casa. Pode-se ver ainda, sob uma grande árvore do lado esquerdo da tela, restos de luz que vêm de duas janelas. No mais, tudo é breu. Mas, ao se olhar o céu de um azul muito claro e nuvens brancas, a estranheza se impõe: na altura do céu, é ainda dia. Nesses termos, para Magritte, a poesia se encontra nesse poder de surpreender e encantar que a simultaneidade das imagens carrega. Observe-se nesse caso que não é difícil detectar o princípio de montagem como operação da criação do quadro.

“Magritte, com Vincy e Duchamp, crêem que todas as imagens têm um sentido, um significado”. Assim como uma obra não pode ser reduzida a um efeito imaterial, ela não pode ser reduzida a uma questão de técnicas, pois a obra é uma

amálgama

desses

dois

aspectos.

“O

significado da obra, o seu efeito estético, leva consigo o traço do ‘como se’; ou seja, o seu significado emerge através do seu efeito sobre o corpo e o intelecto do observador” (PAQUET, 2000, p.77). Para Magritte, a arte de pintar integra o invisível por meio do visível, pensamentos por meio de imagens; o que parece convergir para as palavras de Pierre Francastel: Pensar ou figurar não é transcrever ou exprimir. É sempre integrar dentro de um sistema, ao mesmo tempo material e imaterial, elementos cuja justaposição cria novos objetos suscetíveis de reconhecimento, de conexão e de interpretação. [...] A obra de arte, especialmente a imagem, não é o reflexo de um real recortado antes de qualquer intervenção do espírito humano em objetos conformes às nossas nomenclaturas. [...] A obra de arte não constitui um sinal de uma realidade localizável por outras vias e exprimível por outras técnicas. Ela não remete a um universo de formas imutavelmente talhadas, ela inicia um processus de representação dialética entre o percebido, o real e o imaginário; ela não é analógica mas sempre constelada por numerosos elementos que associam lugares e tempos não-homogêneos. Ela não remete a um absoluto mas aos devires humanos (1993, p.16-17).

Magritte foi “classificado” como surrealista, mesmo que nunca tenha se afirmado como tal. “Último instantâneo da inteligência européia”, o surrealismo foi um dos movimentos de vanguarda histórica que “brotou na França, em 1919, entre alguns intelectuais (citemos de imediato os mais importantes: André Breton, Louis Arago, Phillippe Soupault, Robert Desnos, Paul Éluard)” (BENJAMIN, 1994, p.21). “Nasceu de um desejo de ação positiva, de começar a reconstruir a partir das ruínas de Dada” (DAWN, 2000, p.89). Essa referência à imagem poética surrealista se justifica por elos de fundo comum: um dado curioso desse movimento é a influência do pensamento de Freud, que influenciou também a estética naturalista russa e o método da improvisação teatral de Enrique Buenaventura no TEC. O enlace desses três eventos revela o modo como a circularidade de pensamentos e idéias se dá em temporalidades diferentes, atingindo indiretas.

espaços distintos, sob as formas as mais subterrâneas e

Ades Dawn chama a atenção para a “imagem surrealista” tal como aparece na “colcha de retalhos” do primeiro Manifesto. A definição de surrealismo enfatiza o automatismo, “mas uma extensa parte é dedicada aos sonhos, que Freud tinha revelado serem uma expressão direta da mente inconsciente, quando a mente consciente diminuía seu controle durante o sono” (2000, p.92). A imagem surrealista nasce da justaposição fortuita de duas realidades diferentes, e é da centelha gerada por esse encontro que depende a beleza da imagem; quanto mais diferentes forem os dois termos da imagem, mais brilhante será a centelha. [...] Muitas telas surrealistas têm características do que Freud chamou “labor do sonho”, como, por exemplo, a existência de elementos contrários lado a lado, a condensação de dois ou mais objetos ou imagens, o uso de objetos que têm um valor simbólico (DAWN, 2000, 92-96).

No âmbito das artes visuais, os principais criadores no movimento surrealista foram pintores como Picasso, Braque, De Chirico, Max Ernest, Man Ray, Masson, Salvador Dalí, Arp, Miró, Tanguy e Magritte. Essas considerações sobre o trabalho de Magritte abrem caminho para o estudo da imagem poética no teatro, um dos focos centrais desta investigação. 4.1.5 Imagem teatral “O espetáculo serve-se tanto da palavra como de sistemas de significação não-lingüística. Utiliza-se tanto de signos auditivos como visuais” (KOWSAN, 1988). A complexidade da arte teatral envolve essa dupla produção de imagem: pela palavra articulada; pela composição da corporalidade do ator, dos objetos e dos adereços de cena. Todo teatro produz imagens o tempo todo, assim como toda modalidade artística – nada mais elementar, afinal “o homem vive imagens” (BACHELARD, 2005, p.121). Esteja a serviço do texto, ilustrando-o ou não, a cena projeta imagens tridimensionais que se transformam continuamente por meio do movimento. Tanto no cinema quanto no teatro, essas imagens podem representar a vida humana de forma figurativa ou metafórica. Embora sejam abissais as distinções entre cinema e teatro, ambos são artes que se realizam no espaço e no tempo. Mas o teatro é menos capaz que o cinema de representar com realismo a totalidade da vida. Em razão dessa incapacidade, o teatro foi forçado, tal como as artes plásticas em relação à fotografia, a refletir sobre sua própria especificidade no século XX . O movimento das imagens no teatro é produzido pela presença e pela corporalidade do ator sem mediações tecnológicas. No cinema, ainda que sua força de representação no que se refere à reprodução fidedigna da realidade seja irrefutável, tem-se uma ilusão do movimento sem a presença viva do ator. A reprodução do movimento resulta de um mecanismo alta e tecnicamente elaborado: associação de certa velocidade dos fotogramas àquilo que Eisenstein chamou de “persistência de visão”: “[...] a persistência de visão de um fotograma sobre o fotograma seguinte da tira do filme é que cria a ilusão do movimento cinematográfico” (2002, p.57). Além disso, “ao contrário do cinema

e da pintura”, a imagem cênica “não necessita de um ‘suporte material’ como a tela ou a película; mas se assim [se pode] dizer, o suporte material é o próprio objeto, o próprio espaço” (UBERSFELD, 2005, p.98). Mesmo com essas diferenças, o teatro influenciou a película nos primórdios do cinema – fase que ficou conhecida como produção de “teatro filmado”. 17 Ao descobrirem o grande poder de atração que a tela exercia sobre as classes populares – sem condições de custear uma ida ao teatro, reservado aos mais abastados –, os produtores começaram a filmar obras teatrais. Às vezes, usavam a própria montagem em cartaz no teatro, obtendo grande êxito com custos relativamente baixos. Ao mesmo tempo, também se pode falar da influência do cinema sobre a cena teatral. Conquistados seu rigor e seu método, após explorações amplas de suas possibilidades estéticas mediante as tentativas de um David W. Griffith , de um Dziga Vertov ou do próprio Sergei Eisenstein, detecta-se um movimento contrário: a influência do cinema sobre o teatro, como aponta Pavis (2003): A estética teatral de Meyerhold foi influenciada pelo cinema russo e soviético, sobretudo por aquele de seu antigo ator Eisenstein, mas seus empréstimos à estética do filme nunca foram diretos. Como escreve muito bem Uwe Richterich: “Meyerhold não estava interessado na simples utilização do cinema como alargamento técnico das possibilidades do teatro, mas na incorporação das implicações estéticas do olhar fílmico”. Se não encontramos no teatro de Meyerhold tela e projeções em cena, por outro lado a encenação e a representação do ator utilizam técnicas de montagem cinematográficas, sobretudo a “montagem das atrações” (p.47). 18

Na tradução feita por Arlete Cavaliere de parte dos vários escritos de Meyerhold, encontrase o artigo “De uma conversa com os atores”, de 15 de março de 1926, onde se lê comentários do próprio encenador sobre a repercussão de uma de suas obras primas, O inspetor geral. Neste texto, há referências sobre este aspecto cinematográfico de suas peças. A título de curiosidade, vale lembrar que esta encenação embora tenha provocado a indignação da crítica especializada 17

18

Com relação a este teatro filmado dos anos 20-30 do século XX, uma pequena digressão, baseada em parte na palestra da Prof. Dra. Iná Camargo Costa, realizado no dia 05/10/2006, como parte do evento “Retrospectiva Bertolt Brecht no cinema”, promovido pela sala Cinemateca de São Paulo, de 04 a 08 de outuro de 2006. As possibilidades de bons negócios na produção de diversão de baixo custo para as massas logo se confirmaram com o grande êxito desses teatros filmados. Em seguida, produtores norte-americanos e franceses interessados em atrair a classe média européia para dentro da sala de cinemas forjaram a idéia de “cinema de arte” que não passava, nessa época, da produção de teatro filmado do repertório clássico da literatura dramática universal. Nesse contexto, ocorre, por exemplo, a disputa entre Bertolt Brecht e os produtores cinematográficos em torno dos direitos de filmagem da peça de Brecht, “Ópera dos Três Vinténs”, em razão da quebra de contrato praticada pela produtora que não tinha interesse algum em explorar a linguagem do cinema, mas simplesmente produzir mais um teatro filmado de suposto sucesso na tela, como já o era no palco; gerando assim um conflito direto com Brecht, que tinha liberado os direitos autorais sob condições bem específicas, voltadas justamente para sua participação na adaptação do roteiro, tendo em vista se tratar de arte nova, que exigia pesquisa estética também específica. Essa disputa deixa clara a atração que o cinema exercia sobre Bertolt Brecht tanto no sentido de que poderia ampliar os horizontes da cena teatral quanto no da especulação sobre as ilimitadas possibilidades da própria linguagem cinematográfica. Sobre as relações de Brecht com a indústria cinematográfica, que resultou num processo judicial e uso disso por Brecht como modelo exemplar para mostrar o poder do capitalismo, conferir análise de Trabalho de Brecht: breve introdução ao estudo de uma classicidade contemporânea, de José Antonio Pasta Júnior (São Paulo, Ática, 1986). A citação que Pavis faz no interior deste trecho refere-se à obra de Uwe Reichterich, Die Sehnsucht zu sehen. Der filmische Blick, Frankfurt, Peter Lang, 1993, p.43.

(“profanação” da obra de Gógol), foi muito apreciada pelo espectador comum conforme indicação do próprio Meyerhold, como pode ser conferida no trecho abaixo: O que me anima em nosso Inspetor é que nele existe esta verdade que tem legitimidade nas massas. E quase todos os críticos moscovitas, como que concordes, começaram a gritar que nosso Inspetor é uma verdadeira profanação, que O Inspetor é um Gógol deformado, que o Inspetor de Meyehold só o diabo sabe o que é, que por causa deste Inspetor é preciso exilar Meyerhold da Rússia, que é preciso mandá-lo para o inferno, onde quer que esteja! Escreveram as coisas mais inverossímeis. Enquanto isso, dia após dias, nosso teatro que comporta, se não me engano, 1200 pessoas continua lotado, lota dia após dia, apesar das opiniões pessoais dos críticos que as expressam sem qualquer argumentação. Mas os soldados do Exército Vermelho interrogados pelo komsomólskaia Pravda e os espectadores tirados da massa, em oposição aos críticos, afirmam que é um espetáculo muito alegre, muito dinâmico, muito cinematográfico. Isso me deixa muito contente (MEYERHOLD, 1927 apud CAVALIERE, 1996, p.77, grifo nosso)19.

A relação entre teatro e cinema é discutida, também, por Béatrice Picon-Vallin em sua obra dedicada a Meyerhold. Segundo ela, “o cinema [...] funciona como um reservatório de imagens para os criadores de teatro que completam assim as fontes visuais pictóricas (quadros, desenhos), e sobretudo fotográficas (cartões-postais, fotos, negativos), as fotos difundindo também a pintura (livros de arte, reproduções)” (2006, p.98). Além disso, prossegue a autora, [...] teatro e cinema, nos grandes países europeus na área teatral – Rússia, Alemanha – andaram de par: o cinema e suas técnicas se desenvolvem nos palcos no momento em que a indústria cinematográfica está em franca desorganização. É, aliás, aí que André Malraux situa a diferença fundamental entre a encenação russoalemã, antes de tudo plástica, e o teatro francês, de Vilar, para quem “pôr em cena” era antes de mais nada “pôr no ponto certo”. Vilar, respondendo a Malraux que lhe descreve o funcionamento de um espetáculo de Meyerhold: “Eu falo de teatro e o senhor me responde com cinema” (PICON-VALLIN, 2006, p.98).

É instigante verificar, conforme relata Picon-Vallin, que “já em 1910 Meyerhold tinha apontado isto: o espectador exige ‘que Maeterlinck20 lhe seja apresentado com os aperfeiçoamentos adquiridos pelo cinema’”. Essas falas corroboram a ocorrência do intercâmbio entre esses dois campos artísticos nos primórdios do desenvolvimento do cinema na Rússia e na Alemanha. “A integração do cinema ao ato teatral se fez pelo modo [...] [como] suas técnicas e imagens alimentaram e ainda alimentam a arte da encenação.” Refere-se aqui à apropriação pela encenação dos princípios “de montagem, de enquadramento e, mais recentemente pela noção de movimentos de aparelhos” (PICON-VALLIN, 2006, p.98). Para além de todas as trocas mútuas entre teatro e cinema, evocar Meyerhold no contexto de uma tentativa de apurar a natureza da imagem teatral se deve ao fato de ele ser considerado, por 19

20

O texto de Meyerhold “Informe sobre o Inspetor Geral” foi lido em Leningrado, após o qual foi feito um debate, de acordo com dados de Arlete Cavalieri (1996, p.62). Maurice Maeterlinck (1862-1949), poeta simbolista. Escreveu obras para teatro, denominando-as de “drama estático”, uma vez que “essas obras não [tinham] o seu essencial na ação, ou seja, já não são mais ‘dramas’, na acepção original do termo grego [...] [mas, na] situação”, construída sob o influxo do desejo de “representar dramaticamente o homem em sua impotência existencial” (SZONDI, 2001, p.70)

muitos estudiosos21, um grande revolucionário da cena teatral do século

XX

e pioneiro na reflexão

sobre a cena como imagem, ou seja, como “configuração composicional e imagética”. Sobre isso, Picon-Vallin menciona o texto de um crítico russo que vale a pena reproduzir aqui: trata-se de um artigo de Nicolai Tarabukin (1899-1956), historiador da arte e autor de várias obras sobre as vanguardas plásticas e de análises “pertinentes” sobre a composição visual dos espetáculos meyerholdianos. Nesse artigo, o crítico apresenta ao público estrangeiro a originalidade e a essência das criações de Meyerhold: Uma peça, dita por atores mesmo maquiados e com figurinos sobre um palco, não se torna necessariamente um espetáculo. Essas pretensas “encenações” devem ser relacionadas à arte da declamação, não à do espetáculo. Um espetáculo é, antes de tudo, algo para ser olhado. E o teatro é, antes de mais nada, uma arte figurativa. A própria palavra espetáculo vem do latim spectare, que significa olhar. E, embora o vocabulário teatral possua um certo número de termos que caracterizam a especificidade da arte cênica, é raro que a idéia que o sustenta encontre uma encarnação concreta. A começar pela expressão pôr em cena. Monta-se uma peça. O cartaz exibe o nome do autor da encenação. Entretanto, na maior parte das vezes, sobre o palco, nós ouvimos uma peça, mas a encenação dela, quer dizer, sua configuração composicional e imagética, nós não vemos (TARABUKIN, 1998, p.93 apud PICON-VALLIN, 2006, p.84).22

Afinado com as teorizações de Gordon Craig sobre as visões cênicas e o teatro como obra de arte que se dirige, antes de tudo, ao ato de ver, Meyerhold, em 1930, “encarna no mais alto grau”, segundo Louis Jouvet, “a idéia que é lícito formar a respeito do encenador”. Ele era o “criador de formas, um poeta da cena [que] escreve com gestos, ritmos, com toda uma língua teatral [...] que fala aos olhos na mesma medida em que o texto se dirige aos ouvidos”. 23 E não se tratava de imagem ilustrativa do texto: Meyerhold não se cansava de afirmar que, “para se tornar um encenador, é necessário deixar de ser um ilustrador”(PICON-VALLIN, 2006, p.88-89). Essas referências, esquematicamente evocadas, sugerem que a figura de Meyerhold esteve na origem de parte das inovações revolucionárias da cena teatral contemporânea, especialmente aquelas relacionadas à composição imagética da cena. Mas só recentemente têm aparecido publicações sobre suas teorizações, após o longo silêncio de que foi vítima, e surgido o impulso para se reconhecer o valor de seu legado artístico e seu lugar na história do teatro moderno mundial. Quanto à imagem cênica – presente nos dois extremos de um amplo arco de escolas estéticas e estilos, além da gama de criações híbridas e mistas – pode-se verificar a confirmação de uma tendência mais contemporânea que se propõe a apagar de forma mais radical a nitidez das fronteiras entres as modalidades artísticas, resultando disso, uma infinidade ainda maior de formas artísticas 21

22 23

A descoberta paulatina da importância da contribuição de Meyerhold para a cena contemporânea só começou na segunda metade do século XX . É sabido de todos os longos anos de silêncio após a execução do encenador imposta pela ditadura de Stalin, desde 1940. TARABUKIN, Nikolaj. “Zritel’noe oformlenie v GosTIMe”, in Mejerhold’de. Moskva: O.G.I., 1998. DULLIN, Charles.“Recontres avec Meyerhold, in Souvenir set notes de travail d’um acteur. Paris: Lieutier, 1946, p.45 apud Picon-Vallin, B. A arte do teatro..., op. cit., p.88-89.

híbridas. Uma dessas propostas é o chamado “teatro de imagens”, cuja preocupação central é a criação da imagem cênica. Com relação a essa vertente, assim se refere Pavis: A imagem desempenha um papel cada vez maior na prática teatral contemporânea, pois tornou-se a expressão e a noção que se opõe àquelas de texto, fábula, ou ação. Havendo reconquistado completamente sua natureza visual de representação, o teatro de imagens chega mesmo a recorrer a uma seqüência de imagens e a tratar os materiais lingüísticos e actanciais como imagens ou quadros (2005, p.204).

De qualquer maneira, “a encenação é sempre uma colocação em imagens, porém ela é mais ou menos ‘imaginada’ e ‘imaginante’: no lugar de uma figuração mimética ou de uma abstração simbólica, [...] uma cena feita de uma seqüência de imagens de grande beleza” (PAVIS, 2005, p.204). Essa imagem é construída pelo espaço que o teatro precisa para existir. “Como o teatro representa atividades humanas, o espaço teatral será o lugar dessas atividades, lugar que terá, obrigatoriamente, uma relação (de fidelidade ou distância) com o espaço referencial dos seres humanos” (UBERSFELD, 2005, p.91). Em outras palavras, o espaço teatral é a imagem e a contraprova de um espaço real. Com base nas proposições de Ubersfeld, pode-se definir agora o signo espacial do teatro – a imagem –, analisando-o não como signo textual, mas como signo da representação. Desse modo, “o signo cênico (o espaço cênico como conjunto de signos espacializados) é de natureza icônica e não arbitrária”, daí sua distinção da linguagem verbal. Para elucidar em que consiste a natureza do signo teatral, essa autora recorre ao pensamento de Peirce, Charles Morris e Umberto Eco. Em suas considerações, a precisão de Eco a leva a encerrar esse ponto referente ao signo com a sua transcrição, de modo que só se pode atribuir sentido à noção de iconicidade: a) através do processo da percepção, b) auxiliado pela noção de código, e conclui: 1) os signos icônicos “não possuem as propriedades do objeto representado; 2) reproduzem algumas condições da percepção comum, com base nos códigos perceptivos normais”. E acrescenta ainda com mais precisão: “os signos icônicos reproduzem certas condições da percepção do objeto, somente após tê-las selecionado com base em códigos de reconhecimento e anotado com base em convenções gráficas” (ECO, 1972, apud UBERSFELD, 2005, p.98).24

Ubersfeld adapta ao campo teatral, certas definições como essa última acima, por não se aplicarem ao signo cênico. No teatro, não se tratam mais de “convenções gráficas”, mas de outros tipos de convenções que inclui um outro tratamento do objeto cênico. Assim, “[...] o objeto teatral é um objeto no mundo, em princípio idêntico (ou funcionalmente semelhante) ao objeto do ‘real’ não teatral, do qual é ícone. Trata-se de um objeto situado em um espaço concreto, que é o espaço da cena.” Além disso, se: [...] todo signo icônico é não arbitrário, mas motivado, o signo cênico é duplamente motivado, se podemos dizer, na medida em que é ao mesmo tempo a 24

ECO, U. La structure absente. Paris, Mercure de France, 1972; apud Ubersfeld, 2005.

mímesis de alguma coisa (o ícone de um elemento espacializado) e um elemento em uma realidade autônoma, concreta. (UBERSFELD, 2005, p.98, grifos da autora).

Como já aludido no início deste tópico: O texto (diálogo) figura na representação como sistema de signos lingüísticos cuja matéria é fônica. O texto do diálogo é ouvido como fala (com duplo destinatário) e ao mesmo tempo como poema (objeto poético). Mas a representação é também a imagem visual plástica e dinâmica das redes textuais, e esse aspecto, embora menos visível, não deixa de ser capital (UBERSFELD, 2005, p.104).

Como produtor de imagens verbais e imagens visuais, o espetáculo teatral quer comunicar algo à platéia por meio delas. Assim, o processo de comunicação que permeia a representação teatral a torna sensível à operação de conceitos lingüísticos, tais como as funções da linguagem desenvolvidas por Jakobson. 25 Eles são “[...] pertinentes tanto para os signos do texto, como para os da representação” (UBERSFELD, 2005, p.19). Quadro 1

Logo, estão presentes numa representação teatral as funções

emotiva,

conativa,

referencial,

fática,

metalingüística e poética. Não parece necessário abordar cada uma delas aqui, dada a evidência do quão pertinente é sua aplicação à análise do discurso teatral ou do texto do espetáculo. A referência a essas funções se deve mais ao Quadro 2

interesse na elucidação de uma única função: a poética. Embora o uso desse conceito neste trabalho tenha sido assumido em sua acepção qualificativa, é irrefutável a imbricação da “poética” com o “poético”, como foi sucintamente demonstrado no tópico 4.1.1 desse capáitulo. A aplicação dos pressupostos da lingüística ao teatro torna

Quadro 3

mais clara a compreensão da própria “natureza poética” do “funcionamento teatral”, como Ubersfeld indica abaixo:

Quadro 4 Ilustração 3 - Tarkovski Nostalgia 1983.

25

Jakobson, Roman. Ensaios de Lingüística Geral.

A função poética, que remete à mensagem propriamente dita, pode aclarar as relações entre as redes sêmicas textuais e as da representação. O funcionamento teatral é, mais que qualquer outro, de natureza poética, se o trabalho poético é, como quer Jakobson, projeção do paradigma sobre o sintagma, dos signos textuais

representados sobre a totalidade diacrônica da representação. Longe de ser apenas um modo de análise do discurso teatral (e particularmente do texto dialogado), o processo de comunicação como um todo pode esclarecer a representação como prática concreta (2005, p.20, grifo da autora).

Além da própria natureza poética da representação teatral, a imagem cênica, ou seja, a imagem visual construída no espaço cênico de uma representação teatral, pode ser considerada como poética ou não; como poética de mais ou de menos. Esse grau de “poesia” da cena pode ser detectado na imagem visual e na imagem verbal do discurso textual da cena.

4.2 A IMAGEM POÉTICA É lícito afirmar que o princípio poético que orientou as montagens de Meyerhold, as pinturas de René Magritte ou os filmes de Eisenstein e Tarkovski está presente nas montagens e na teoria de Enrique Buenaventura e Santiago García. O princípio do grotesco, da contradição ou o jogo de oposição dos opostos, mais o princípio de montagem e da poesia como uma forma de se relacionar com o mundo são alguns dos princípios comuns que perpassam todas essas obras e se desdobram para atender a especificidade de cada uma dessas diferentes modalidades artísticas. O elemento unificador de todas elas é o vínculo profundo com a visualidade, isto é, com a imagem cuja plasticidade foi rigorosamente composta. Algumas cenas de A morte de Tintagales, o quadro O império das luzes ou cenas dos fimes Nostalgia e O espelho podem ilustrar melhor em que consiste esse princípio poético do que uma tentativa de explicação verbal. Sobre a montagem de Meyerhold, só é possível fazer deduções com base em seus escritos ou dos escritos sobre ele feitos por seus contemporâneos e por estudiosos. Essa produção escrita informa sobre os efeitos cênicos obtidos pela experimentação no âmbito da composição da cena, do movimento plástico e musical, dos silêncios e das pausas, cujos resultados Meyerhold chamaria de “teatro da convenção”. Eram os primórdios do que viria a ser conceituado de grotesco e estilização. Na montagem de A morte de Tintagales, por exemplo, o encenador no começo de sua pesquisa que desembocaria na biomecânica, concebe uma cena em que predominavam o cuidado com os aspectos plásticos do jogo dos atores, a harmonia do movimento, as linhas, o gesto, a música, a cor, e enfim, uma atmosfera que fosse resultado da fusão de todos esses elementos. “A expressividade plástica, atribuída a Meyerhold, não se limita a uma harmonização ‘lógica’ com as palavras proferidas ou a ação expressa no palco. Meyerhold parece buscar durante toda a sua trajetória uma plástica que não corresponde às palavras” (CAVALIERE, 1996, p. 107). Meyerhold, citado pela autora, faz a seguinte enunciação: O encenador [...] deve dar aos movimentos e às posturas um desenho que auxilie que auxilie o espectador não apenas a escutar as palavras proferidas, mas também a penetrar o diálogo interior oculto [...] Gestos, posturas, olhares, silêncios determinam a essência das relações entre os homens. As palavras não dizem tudo. Isso significa que é preciso também no palco um desenho de movimentos que

possa atingir o espectador em situação de observador perspicaz [...] As palavras se dirigem aos ouvidos, a plástica aos olhos (MEYERHOLD, citado por CAVALIERE, 1996, p.106-107).

Nessa transcrição da fala de Meyerhold fica explícita a sua preocupação com a composição visual da cena, cuja plasticidade é trabalhada com rigor. E esse é um dos mecanismos para se alcançar a idéia de imagem poética. O quadro O império das luzes, de Magritte, exibe “uma cena noturna sob um céu diurno”. O próprio artista – racional que era – dá sua explicação: “a paisagem leva-nos a pensar na noite, o céu no dia. Na minha opinião, esta simultaneidade de dia e noite tem o poder de surpreender e de encantar. Chamo a este poder poesia” (PAQUET, 2000). Na cenal final do filme Nostalgia, de Tarkovski, surge na tela a casa russa dentro de uma catedral italiana. A imagem da casa remete ao ambiente doméstico, familiar e, por isto, profano; a imagem da catedral é símbolo de todos os valores sagrados e da elevação espiritual do homem. A fusão das duas imagens pode ser interpretada em diversos Ilustração 4 – Cenal final de Nostalgia de Tarkovsky.

planos. Num primeiro plano, pode se remeter a um estado de esquizofrenia ou doença que tenha acometido ao protagonista (não se sabe se ele morre ou não no final). Outra possibilidade pode se referir à fusão entre o sagrado e o profano, num tipo de insight proporcionado pelo estado nostálgico em que se encontra o personagem, que o leva a perceber o sagrado na vida profana e o profano no ambiente

Ilustração 5 - Andrei Tarkovski O Espelho 1974

sagrado. E noutro nível, a fusão das duas paisagens numa imagem única (Ilustração 13) parece também conter o poder de que fala Magritte: esse poder poético que gera no espectador, primeiramente, um encantamento, depois, certa reflexão sobre a condição humana no mundo moderno e contemporâneo que faz do homem um estrangeiro em seu próprio lar e, ao mesmo tempo, o faz se sentir em casa em

Ilustração 6 - Figura Sergei Eisenstein Alexander Nevsky 1938

qualquer lugar do mundo. A cena se liga conceitual e racionalmente ao próprio nome do filme Nostalgia. O

personagem do louco, contraponto do protagonista, parece representar mais nitidamente a crítica à vida moderna. Seu discurso, proferido pouco antes de por fogo no próprio corpo – num ato de desespero e de resistência – parece muito mais lúcido do que o discurso do “homem de bem”, integrado e assimilado um mundo em que caminha para a sua própria destruição, resultante de todas

as agressões e explorações, que em nome do progresso, submeteram a natureza e o planeta. Em outro filme de Tarkovski, O espelho, a tessitura poética da imagem é um convite à meditação e contemplação (Ilustração 14). Trata-se do sonho da criança (Ignat, narrador do filme) com a mãe. Apesar de ser profundamente pessoal, esse filme fala com a autoridade da terceira pessoa da arte narrativa. A autobiografia no filme é tecida dentro de uma história que empresta a ela uma grandeza e dignidade. Essa crônica da família do cineasta é também a história de outras vidas, daquela geração inteira que agüentou um fato coletivo sob o Stalinismo. Tarkovski abre seu livro, Esculpindo o tempo, mostrando as reclamações das autoridades sobre seus filmes: “são obscuros exercícios em simbolismo”. Ao contrário, diz ele, muitas pessoas, de todo lugar da União Soviética, escreveram para ele sobre a verdade de O Espelho; muitas pessoas então viram suas vidas espelhadas na vida de sua família – um fato típico: não necessariamente grande ou importante mas completamente vivido, sofrido e suportado, e lealmente registrado na memória (LE FANU, 1987, p.76). E, no entanto, a despeito desse realismo histórico, Le Fanu, em sua análise magistral, mostra que “uma das forças centrais do filme subjaz em seu poder simples de evocação: sua habilidade em fazer aparecer por mágicas, em invocar epifanias penetrantes o mundo de maravilha e prodígio submerso no capital imaginativo do adulto” (1987, p.78). Seu modo de evocação é o modo da arte, que é o modo da alusão. A recorrência da presença do espelho e de superfícies refletoras remete a uma conexão entre o passado e o presente, fazendo surgir no filme uma crença vital: a de que nada de realmente importante jamais muda: “a mesa é a mesma mesa para o avô e para o neto. Não só é a mesma [mesa], mas tem de ser. [Not only is the same, but must be] (LE FANU, 1987, p.73). A grande função da imagem poética ou artística é ser uma espécie de “detector do infinito” (TARKOVSKI, 2002, p.128). A contemplação da imagem poética pelo cineasta russo pode ser apreciada nas transcrições que vem a seguir. Tarkovski, ao apontar a dificuldade de definir um conceito como o de imagem artística, posiciona-se francamente contra a possibilidade de se conseguir colocá-la em palavras. A imagem poética se expressa por meio da arte. A imagem é indivisível e inapreensível e depende da nossa consciência e do mundo real que tenta corporificar. Se o mundo for impenetrável, a imagem também o será. É uma espécie de equação, que indica a correlação existente entre a verdade e a consciência humana, limitada como esta última pelo espaço euclidiano. Não podemos perceber o universo em sua totalidade, mas a imagem poética é capaz de exprimir essa totalidade (2002, 123).

A imagem poética “é um vislumbre da verdade que nos é permitido em nossa cegueira” (2002, p.123). De acordo com Tarkovski, “uma verdadeira imagem artística oferece ao espectador uma experiência simultânea dos sentimentos mais complexos, contraditórios, por vezes, mutuamente exclusivos” (2002, p.128). E enfim, a imagem “não é certo significado expressado pelo diretor, mas um mundo inteiro refletido como que numa gota d’água” (1998, p.130).

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