As escolas militares - o controle, a cultura do medo

June 9, 2017 | Autor: Dijaci Oliveira | Categoria: Sociology of Education, Sociology of the Military
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Muitos são, hoje, da opinião de que não existem duas coisas mais dissonantes e incongruentes que a vida civil e a militar. Pois, vemos diariamente que, quando um homem ingressa no exército, ele imediatamente muda não apenas sua indumentária, mas seu comportamento, suas companhias, sua tez, sua maneira de falar, e este se investe para despojar-se de tudo aquilo que possa parecer da vida ou das conversas comuns. Pois o homem almejando estar pronto para qualquer sorte de violência despreza a indumentária padrão do civil, e crê que nenhum traje serve ao seu propósito que não a farda-armadura. E quanto a civilidade e polidez, como se pode esperar encontrá-las em alguém que imagina que tais coisas o fariam parecer afeminado e que tais coisas seriam um obstáculo ao seu serviço, especialmente quando tal sujeito pensa que é seu dever, ao invés de conversar e comportar-se como os outros homens, ameaçar qualquer um que encontre com uma saraivada de pragas e um temível par de bigodes? Maquiavel – A arte da guerra

Caetano e Viegas (organizadores)

Uma Avaliação Crítica das Escolas Militarizadas

2016

Projeto editorial, Preparação dos originais e Revisão Ian Caetano de Oliveira & Victor Hugo Viegas de Freitas Silva Capa Ian Caetano de Oliveira (sobre desenho de Heitor Aquino Vilela) Diagramação Ian Caetano de Oliveira Coleção Piquete (coordenadores Ian Caetano & Victor Viegas) - Volume I Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP) Dados fornecidos pelos organizadores E79 Estado de Exceção Escolar: uma avaliação crítica das escolas militarizadas / Ian Caetano de Oliveira, Victor Hugo Viegas de Freitas Silva, organizadores. Aparecida de Goiânia: Escultura produções editoriais, 2016. -(Piquete) ISBN 978-85-5896-000-7 1. Escola pública. 2. Militarização. 3. Doutrina Militar. 4. Políticas Públicas para a Educação. 5. Polícia Militar. I. Oliveira, Ian Caetano de, org. II. Silva, Victor Hugo Viegas de Freitas, org. III. Título

CDU 37.01

Copyleft Esse livro é publicado em regime copyleft. Pode ser reproduzido para fins não comerciais no todo ou em parte, além de ser liberada sua distribuição, sendo mencionada a fonte Escultura produções editoriais Rua 13 de Maio, Quadra 148, Lote 10 - Setor Garavelo Aparecida de Goiânia - Goiás CEP: 74.930-570 / e-mail: [email protected]

2016

Sumário Agradecimentos …………………………………………….……..….. 9 Introdução

Ian Caetano de Oliveira & Victor Hugo Viegas de Freitas Silva….........… 11

Sobre o livro …………………………………………………….…..….. 17 Os dilemas de estudar no regime militar: relatos de uma estudante em uma escola militarizada .............. 21 As escolas militares: o controle, a cultura do medo e da violência Dijaci David de Oliveira ............................................................... 41 Quem quer manter a ordem? A ilegalidade da militarização das escolas em Goiás Francisco Mata Machado Tavares .................................................. 53 A exclusão dos alunos mais pobres nos Colégios Militares Rafael Saddi Teixeira .................................................................. 67 Nós perdemos a consciência?: apontamentos sobre a militarização de escola públicas estaduais de ensino médio no estado de Goiás Ellen Ribeiro Veloso & Natália Pereira de Oliveira ............................. 71 Militarização retrocessos?

de

escolas

públicas:

avanços

ou

Joab Júnio Dias Gregório da Silva .................................................. 87

Sobre os autores .............................................................. 99

Agradecimentos Agradecemos enormemente os autores, que gentilmente aceitaram o pedido de escrever os textos contidos nessa obra, todos de grande valia e que expõem grande conhecimento sobre o tema. Agradecemos especialmente também o artista e jornalista Heitor Vilela, que produziu todas as ilustrações contidas nesta obra, as de capa, 4ª capa e do interior do livro. Agradecemos ainda o Programa de Pesquisa sobre Ativismo em Perspectiva Comparada (PROLUTA) da UFG; e o Núcleo de Estudos sobre Violência e Criminalidade (NECRIVI), também da UFG, pelo apoio à produção e difusão da obra. Agradecimentos também, e principalmente, aos pais e mães, estudantes e trabalhadores da educação que resistiram e continuam resistindo bravamente contra a militarização e privatização das escolas públicas – e cuja luta urgiu para que terminássemos esse livro o mais rápido possível.

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Introdução Ian Caetano de Oliveira Victor Hugo Viegas de Freitas Silva

A educação pública – resguardadas algumas exceções que são tidas como instituições de “excelência educacional” – é marcada por uma patente má avaliação, tanto dos exames oficiais que periodicamente avaliam a qualidade desta educação, quanto, de maneira mais genérica, por familiares e estudantes que estão nestas mesmas escolas. Se pegarmos o IDEB, por exemplo, como indicador, perceberemos que a disparidade em relação à escola privada é acentuada. No IDEB de 2013, vejamos, a avaliação do 3º ano do ensino médio nas escolas públicas teve média de 3,8; enquanto as particulares fecharam com 5,5. São diversas as preocupações de estudantes e familiares quanto ao futuro, uma vez que, sem as adequadas melhorias na educação, estes estudantes terão dificuldade de ascender a boas instituições de ensino superior. Tendo dificuldades de ascender a carreiras profissionais tidas como “melhores”, o que, na grande gama dos casos, significa apenas “melhor remuneradas”. O critério dessa avaliação tem sua base nas notas do ENEM e do IDEB. Se o colégio vai bem nestes índices, isso implica que será preferido por pais e estudantes. De fato, o futuro a todos assombra e não é difícil se preocupar, quando as “boas oportunidades” parecem estar distantes. Muitas famílias não têm condição de arcar com os custos de uma educação em escolas privadas (que são, supostamente, melhores), então confiam na educação pública para que esta seja suficiente para encucar nas crianças e jovens bons valores sociais e éticos e, também, boa instrução que lhes capacite bons lugares 11

Estado de Exceção Escolar

e possibilidades no mercado de trabalho. Mesmo escolas particulares tremem ante o ENEM, já que esta nota consolidou-se como o índice definitivo de predileção. Então se os alunos de uma escola privada vão mal nessa prova, ocorre o risco de queda na procura. A escola, desta feita, arrisca reduzir seus lucros. Algumas, com trapaças, ainda tentam mascarar a nota com práticas diversas, como pedir a alunos tidos como “bons” que façam o cadastro na prova com um documento escolar e alunos tidos como “ruins” com outro. Este é só um exemplo, existem vários. Há ainda casos extremos em que o aluno é simplesmente expulso de escolas por não atingir os “padrões” exigidos. Quem vai se preocupar com “educação de qualidade” quando o que vale é o ENEM? Nas escolas públicas a situação devia ser um pouco diferente. O aluno não pode ser simplesmente excluído do processo, pois ali, como assegura a constituição, ele tem direito a educação. Então a situação tem de ser tratada com outras soluções. Compete ao governo do estado cuidar das escolas estaduais. Compete a ele, portanto, ouvir a população, entender as demandas e carências gerais e demandas particulares de cada colégio e região. Depois deste processo de estudo, cabe ao estado propor melhorias e debatê-las com a população interessada, para que estas medidas possam ser revisadas, melhoradas, e para que a população veja se condizem com suas demandas. No caso específico de Goiás, a resposta do governo para a questão da educação tem sido dividida em basicamente dois blocos: de um lado, o repasse da gestão escolar para as chamadas Organizações Sociais (OS), e, por outro, a Militarização Escolar, o repasse de escolas públicas para a Polícia Militar do Estado de Goiás. Notem que não falamos “o repasse da administração 12

Introdução

escolar” e sim “o repasse das escolas”. O governo pode nomear a medida da maneira que quiser, mas a verdade é que estas escolas não são apenas “administradas” por quadros da polícia militar, mas são, de fato, remodelas na imagem e semelhança de um quartel militar, com todas as imposições, doutrinações e abusos que tal regime implica. Não queremos apontar que o problema da escola pública é simplesmente o fato desta não poder mascarar, como as escolas particulares, sua nota no ENEM, há problemas de toda ordem, e graves: falta de investimento, desestímulo à capacitação de professores, problemas de estrutura física, problemas na relação entre a comunidade circundante e a escola… uma gama de problemas a serem resolvidos para que possamos avançar rumo a uma educação mais digna e igualitária. A pergunta que este livro tenta responder é se: “militarização seria de fato a escolha mais eficiente e viável”? Seria esse o caminho para reduzir a disparidade no ensino? Não iremos falar, neste livro, sobre as Organizações Sociais. Por quê? Falar das Organizações Sociais e da Militarização Escolar em um único livro seria algo demasiado extenso, esta é uma das razões; e a outra é que são temas que, embora tenham convergências, devem ser analisados e criticados por caminhos diferentes, de modo que pretendemos abordar as Organizações Sociais, eventualmente, em outro livro. Nesta obra trataremos apenas da militarização escolar. Em certas escolas, oficialmente, o governo tem apontado a militarização como uma saída viável para: I) a melhoria da qualidade do ensino; II) a melhoria da noção disciplinar de alunos e; III) também – em alguns colégios onde o convívio com a sensação de insegurança 13

Estado de Exceção Escolar

é mais alarmante – para a maior segurança de alunos em colégios de regiões mais “inseguras” e, também, para a maior segurança do bairro/região que abriga a escola, uma vez que esta região agora contaria com um “quartel” dentro de si. Porém, como temos visto, a coisa não corresponde, na realidade, ao discurso oficial. Em uma fala em um evento, quando da intervenção de alguns professores protestando por melhorias de suas condições de trabalho, o governador afirmou que onde houver baderneiros ele implantará militarização. É curioso ouvir um governador chamar de baderneiros não pessoas que estivessem a cometer qualquer tipo de delito, mas que estavam ali explicitando legitimamente sua indignação com a patente calamidade que é a atual situação da educação em Goiás. Mais espantoso ainda é que o governador passe a impressão que motivos tão circunstanciais motivam-no a implantar políticas públicas de tamanho impacto, com o agravante de serem postas em execução da noite para o dia, sem consulta com interessados (estudantes, familiares, professores, etc.) E nesta toada tem funcionado a implantação da militarização escolar em Goiás: I) sem consulta prévia com estudantes, professores, familiares e pessoas da região da escola; II) sem respeito (como demonstraremos com os artigos que compõem este livro) tanto às leis que dispõem sobre educação quanto às leis que dispõem sobre segurança pública e; III) sem qualquer avaliação dos impactos psicológicos e sociais de longo e médio prazo que a militarização pode imputar a crianças e jovens em estágios de formação. Embora seja possível pensar em algumas possibilidade e caminhos para a melhoria do ensino público, não o faremos neste livro. Mas também não 14

Introdução

consideramos que a crítica a um modelo com claras mostras de equívoco e de ineficiência – tal qual é o da Militarização Escolar – seja ilegítima pela falta da apresentação de um modelo pronto e acabado de melhoria. Como dissemos anteriormente, tal modelo, como fórmula última, inexiste, e um bom caminho para começar a melhoria da educação é a ampliação do debate democrático e aberto sobre o papel da escola, a estrutura escolar, os objetivos do ensino, etc.

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Sobre o Livro Discorrer mais sobre o tema seria repetir o que já está tão bem escrito nos artigos que compõem esta obra, de modo que vamos apenas resumir os temas que cada um dos artigos expõe. Pois, embora uma ordem tenha sido pensada para compor este livro, tentamos elaborá-lo de modo que os artigos possam ser lidos individualmente e na ordem que o leitor achar mais interessante, segundo os temas que mais o interessem. O livro conta com uma entrevista exclusiva os dilemas de estudar no regime militar, com uma exestudante de colégio militar, dando um panorama geral do expediente vivido por estudantes e docentes nos colégios militares, as questões hierárquicas, pedagógicas, as restrições com relação a aparência, além de diversas outras questões, muitas vezes desconhecidas por aqueles que nunca frequentaram um colégio militar. No artigo As escolas militares: o controle, a cultura do medo e da violência, as pessoas interessadas terão acesso a uma análise sobre os argumentos gerais que, supostamente, legitimam a militarização e uma réplica a estes argumentos. Tratando da visão social que paira sobre os jovens, da legitimação cultural da “sensação de insegurança”, e dos aspectos políticos implícitos na implantação da militarização escolar. No artigo Quem quer manter a ordem? A ilegalidade da militarização das escolas em Goiás, leitoras e leitores terão acesso a uma robusta, mas acessível, avaliação da ilegalidade jurídica ocorrente na Militarização Escolar, tanto no que se refere às leis que dispõem sobre educação, quanto no que se refere às leis sobre segurança pública e também leis fiscais (e ainda no que se refere a leis de direito internacional). 17

Estado de Exceção Escolar

No artigo A exclusão dos alunos mais pobres nos Colégios Militares, é feita uma avaliação dos aspectos de segregação socioeconômicos implícitos e imbrincados na Militarização Escolar, que ocorrem desde questões elementares, como a compra da farda escolar, até em vácuos jurídicos mais problemáticos, como as “contribuições voluntárias”. No artigo Nós perdemos a consciência?: apontamentos sobre a militarização de escolas públicas estaduais de ensino médio no estado de Goiás é feito um balanço geral do Estatuto da Criança e do Adolescente, sua incompatibilidade com a Militarização Escolar, além de um panorama amplo sobre os malefícios da implantação da doutrina militar a nível escolar. No artigo Militarização de escolas públicas: avanços ou retrocessos? destrincha-se a hierarquia militar, suas formas de consolidação, seu impacto a nível social e individual e sua relação problemática com a educação. Avaliando o papel da violência na corporação militar, bem como, em fluxo histórico, o papel da mesma na consolidação do corpo militar. Obviamente a obra abarca apenas uma parcela dos problemas, mas, obviamente, escarafunchá-los de modo último seria um trabalho que levaria não um único livro, mas uma obra de dimensões enciclopédicas. A obra que apresentamos tem o intuito de problematizar algumas questões mais urgentes e patentes, e também o de abrir o debate, apresentando argumentos principalmente à parcela que é mais frágil nessa disputa, que é a de estudantes, familiares e professores, que são os que sofrem os arbítrios de modo mais evidente.

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Os dilemas de estudar no regime militar: relatos de uma estudante em uma escola militarizada Sobre a entrevista

A entrevista foi realizada oralmente e depois transcrita. A entrevistada estava ciente do interesse de publicação da entrevista e com ele concordou. A ordem das perguntas na transcrição foi ligeiramente alterada em relação à gravação original para fins de melhor organização das ideias. A transcrição foi apresentada à entrevistada antes de sua publicação. Por razão de a entrevistada almejar a carreira militar e temer complicações em virtude da publicação deste texto, sua identidade foi preservada. Vamos começar pela entrada então:

A entrada é o seguinte, você tem um horário cronometrado para entrar no colégio. No caso, na parte da manhã você tem até 06:45 para entrar, 06:46 você não entra mais. Aí, nesses quinze minutos até as 07:00 você fica “em forma” (se não tiver feito algo de errado). Por exemplo, pra você entrar no colégio você tem que estar com a sua agenda, sua agenda tem que estar em dia. O que é uma agenda em dia, ela tem que estar com a sua foto, preenchida completamente (se ela não estiver completamente preenchida você não entra no colégio. Isso acontece muito no começo do ano, muitos alunos ficam do lado de fora porque não conseguiram terminar de preencher a agenda a tempo). E não se pode entrar no colégio depois da hora, nem no segundo horário. Só permitem entrar na segunda aula no noturno e, de vez em quando, no vespertino. Mas isso é raro. 21

Estado de Exceção Escolar

Eu acho que o horário mais rigoroso é o matutino. Eu não sei, poderiam deixar os estudantes entrarem na segunda aula, mas é muito difícil eles deixarem. De vez em quando eles veem que têm muitos alunos que chegaram atrasados, eles deixam entrar no colégio, mas só no segundo horário. Até chegar o segundo horário você terá de ficar “em forma”. Isso é feito da seguinte maneira: são feitas filas, o padrão são quatro ou cinco filas, e em formato militar mesmo. Rigorosamente militar. Tem que ficar em posição de “sentido”, só quando o militar manda você “descansar” que você vai estar autorizado a descansar. Descansar é ficar com as mãos para trás em “postura”. E isso é feito desde o 6º ano do ensino fundamental, crianças de dez anos têm de fazer isso. Como eu falava, para entrar no colégio você ter de estar com a agenda corretamente preenchida. Se houver alguma coisa, por exemplo, uma anotação de algum militar mandando você cortar o cabelo e você não cortou, você não entra no colégio, você leva advertência. Se você estiver com a xuxinha errada, estiver com a meia errada, estiver sem o bibico, se você estiver de farda, mas estiver com o sapato errado, você não entra. O tênis tem que ser 100% preto, se tiver algum destaque de outra cor, eles te mandam embora trocar. Se o tênis estiver sujo, se a roupa estiver suja, eles também te mandam embora, para você lavar. E se, depois disso, você chegar a tempo você entra, se não… é um aviso, uma aula. E a questão da rotina dentro do colégio militar?

É a mesma coisa de um quartel, é um quartel escrito. Quem entra no colégio militar por vontade própria é porque quer seguir a carreira militar. Igual, no meu caso, eu entrei porque eu quero seguir a carreira militar. Porque lá você tem o militarismo como se tem 22

Os dilemas de estudar no regime militar

em um quartel, é uma formação como a que se tem em um quartel. A formação dos militares é a mesma coisa. O que eles falam é “nós vamos educar vocês pra vida”, mas eu não acho certa essa forma. O Colégio é estruturado como se fosse um quartel. Logo de entrada você vê o pátio, o pátio que deveria ser para as crianças brincarem, correrem… ali nesse pátio você tem as marcações, elas estão ali pra você entrar em “forma”. Tem também a marcação da marcha. Se na hora da “formação” tiver algum aluno que esteja sendo punido, ele sempre fica na frente, nas primeiras fileiras. Se ele está ali na frente, é porque está sendo punido. Na região mais central do colégio tem outro espaço, onde é feito o hasteamento da bandeira. Ai termina o hasteamento da bandeira, os que estavam lá na frente sendo punidos, vão pra essa área marchar. No meu colégio, que era em prédio, os menores ficam nos andares de baixo, em cima ficam os alunos maiores, os que dão mais trabalho. Nesse tempo de “formação” as pessoas ficam em silêncio… como é?

Tem que ficar em silêncio. Se você falar você sai de “forma” e você vai para uma outra “formação”. Quando todo mundo for pra sala, você vai ficar lá, porque você estava conversando. Você vai ficar durante uma aula lá, 45 minutos, em pé. Em “formação” ou “marchando”. A pior punição pra um aluno no colégio militar é marchar. A gente, alunos do colégio militar, a gente não gostava de marchar. Você fica em pé muito tempo, tem que marchar com “postura”, e com isso você vai pra sala de aula cansado, com os pés doendo, com as pernas doendo. E ser moça não importa, não adianta falar que está com cólica, com as pernas doendo, “não estou nos melhores dias”, mesmo assim você tem que marchar. Você não tem 23

Estado de Exceção Escolar

essa opção do “não”. E tem alguma diferença entre o tempo de “formação” de quem entra com advertência e de quem não tem?

Tem. Quem entra no horário certo fica só quinze minutos em pé, que é o tempo de formação para hastear a bandeira. Que é aquela coisa, você vai ficar em “sentido”, vai bater continência para a bandeira. Tem que esperar hastearem a bandeira. Quando ela chegar lá em cima você bate continência. Eu fiz isso cinco anos da minha vida e nem sei por que. A bandeira vai abaixando conforme os militares vão mandando os alunos para as salas. Você vai para a sala em formação, em fila, uma fila por vez. Aí os militares passam em sala, antes de começar a aula. Eles passam de sala em sala antes dos professores entrarem, para ver se está tudo certo, se está todo mundo sentado. Se você não estiver sentado, você leva advertência, não pode ficar em pé não. Depois os professores entram. A maioria das punições é de tipo físico, como colocar a pessoa para ficar de pé?

A maioria delas são assim. Além de você levar a punição na agenda, que seu pai tem que assinar. Também tem essa punição física, onde você tem que ficar em pé, em “forma”, mais que os outros. Se você for com o fardamento errado, você vai ter que ficar em formação. A formação dura em torno de 45 minutos, ou o restante da aula. Tem também a questão da marcha. Na marcha dos alunos a sincronização tem que estar perfeita, a parada tem que estar sincronizada. Se ela não ficar sincronizada os alunos vão ficar fazendo ali até ela estar. E se você passar mal dentro do colégio?

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Os dilemas de estudar no regime militar

Por exemplo, tem muito aluno que passa mal por ficar muito tempo em “forma”, quando o sol está muito quente. Quando eu era aluna padrão tive que ajudar muitos estudantes que desmaiaram ficando em “forma”. Nesses caso você tem um apoio, tem o corpo de bombeiros dentro do colégio, eles te dão assistência e, quando preciso, te levam para o hospital, ligam pros seus pais. Se os pais não puderem comparecer, um militar vai te acompanhar. Eu já passei mal, tive que ir pro hospital e meu pai não podia ir, porque estava no trabalho. Um militar me levou em casa. Passando agora pra sala de aula, na organização e nas práticas em sala, existe diferença entre os alunos?

Sim. Isso varia em cada colégio, mas no que eu estudava, todo mês você vai mudando de chefe de turma. Esse chefe de turma tem que fazer as chamadas da sala, o chefe de turma é responsável por toda a sala, como se fosse um militar. E, antes do professor começar a aula, ele vai fazer os outros alunos entrarem em formação. Ele vai apresentar a turma para o professor. Ele vai ficar na frente da sala, vai bater continência para o professor, ficar em posição de “sentido”, vai mandar a sala “descansar” e alternar entre “sentido” e “descansar” até a sala inteira estar sincronizada, quando a sala inteira estiver sincronizada neste movimento, depois disso o chefe de turma bate continência novamente para o professor, fala ao professor quantos alunos tem na sala, quantos alunos faltaram e quantos alunos deveria haver no total em sala. Esta é a última fala dele. Então ele senta e a aula prossegue. Isso toma em torno de uns dez minutos de aula para acontecer. E

o

chefe

de

turma

tem

alguma

outra 25

Estado de Exceção Escolar

responsabilidade, ou é só a de apresentar a turma? Tem. Se acontecer alguma coisa dentro de sala, por exemplo, a sala estiver desorganizada, a sala não estiver limpa, o professor não conseguir dar a aula por causa de barulho ou alguma outra coisa, quem vai ser o responsável vai ser o chefe de turma. Quem vai levar advertência vai ser o aluno que estava bagunçando e o chefe de turma. E a punição do chefe de turma é a pior de todas. E como é a relação entre o chefe de turma e o restante da sala?

O chefe de turma manda na sala, você não pode fazer nada de errado perto do chefe de turma. Por que o chefe de turma é como se fosse um militar. E isso começa desde o 6º ano do ensino fundamental. O Chefe de turma gosta de ocupar essa posição?

Em geral gosta. Porque se você está em um colégio militar, você aprende a querer mandar. Você não quer ser mandado, você quer mandar. Porque você ser mandado é pior. O chefe de turma é visto como maioral entre os alunos militares, porque ele está com a formação geral de um militar. Por exemplo, se ele quiser (algo que acontece muito), você não fez nada, mas o chefe de turma não gosta de você, ele vai lá e fala alguma coisa de você para o militar e o militar vai e te dá uma advertência. É simples assim que funciona. O militar não vai chegar em você e perguntar “você fez isso?”, não, ele vai te dar uma punição e vai ligar para os seus pais e falar o que o chefe de turma falou de você. 26

Os dilemas de estudar no regime militar

E algum aluno pode recusar-se a ser chefe de turma?

Ele não pode recusar. Não existe essa opção. E como funciona essa coisa do “aluno padrão”?

Aluno padrão só existe no 3º ano do ensino médio. Tem também uma coisa parecida no 9º ano do ensino fundamental, mas “aluno padrão” mesmo, que é o “maior”, que manda em todos como um militar, é só no 3º ano. Para ser aluno padrão você não precisa ter uma nota “excelente”, basta o militar gostar de você e ele vai te premiar como aluno padrão. É simples. Eu fui premiada como aluno padrão, mas eu fui desclassificada porque eu não ficava fiscalizando rigidamente os alunos. Passava uma aluna do meu lado e estava com a franja solta, o militar brigava comigo, não brigava com a aluna, porque eu era a aluna padrão e eu tinha que mandar essa aluna prender a franja que estava solta. Eu tinha que chegar no aluno e falar pra ele fazer a barba. Como aluno padrão você tem que punir os outros alunos. Um aluno que está com algo “irregular”, você tem que falar pra ele que ele não pode entrar na escola. “Você volta pra sua casa, pra cortar o cabelo, pra fazer a barba, pra trocar sua meia...”. O aluno padrão tem que fazer isso, se ele não fizer ele é punido. O aluno padrão também tem essa punição, ele é “maior” entre os alunos, mas ele é punido pelos militares. É como se fosse um serviço sem estarem te pagando nada. Você é obrigado a comparecer a todos os eventos do colégio. Em eventos em que tem marcha, o aluno padrão marcha na frente, porque ele é “maior” que os outros. Existe algum privilégio em ser aluno padrão?

Privilégio mesmo é só o de você poder mandar 27

Estado de Exceção Escolar

nos outros. Você sai de sala na hora que você quer… tem essa vantagem. Eu fui e não vi muita vantagem. Você tem mais responsabilidades. Apesar disso, todo aluno, o sonho de todo aluno, desde o 9º ano, é ser aluno padrão. Pra você não ter essa “pressão” tão grande. Você pode chegar mais atrasado, se dar uma justificativa o militar deixa você entrar. Aconteceu alguma coisa com o seu uniforme, você vai ter um diálogo com o militar, você sendo aluno padrão ele vai te escutar. Você tendo uma “cordinha” preta no ombro, que o aluno padrão usa, ele vai te escutar. Também, por exemplo, na “formação”, quem manda nos alunos quando eles estão em “forma”, na entrada do colégio, ou quando acontece algo no recreio (quando os alunos estão correndo de mais no recreio os militares mandam todos ficarem em “forma” também.), são os alunos militares (os alunos padrão) que mandam em tudo. Eles são como militares no colégio. E os outros alunos têm que bater continência para o aluno padrão?

Tem que bater continência. É como se fosse um militar, tem que bater continência, tem que respeitar como se fosse um militar mesmo. Sobre os militares, eles andam armados dentro dos colégios?

Andam armados. Faz diferença pra muitos alunos, porque tem estudante que tem medo de militar, e eles andam todos armados. Eu acho que não havia necessidade deles portarem armas. Mesmo tendo 3º anos, acho que não tinha necessidade deles estarem armados. Alguns não andam armados, mas muitos, a maioria, andam armados. No meu colégio ficavam sempre dois policiais na portaria; em cada corredor, ficam, no mínimo, dois 28

Os dilemas de estudar no regime militar

policiais. Nos corredores das turmas com alunos mais velhos ficam dois ou três militares. Nesses corredores os militares ficam entrando nas salas, quando viam um aluno conversando, ou algo assim. E como é a relação dos alunos com os militares?

É uma relação de medo. Tipo, ficar correndo de militar. Eu, até hoje, quando eu vejo um militar na rua eu já desvio. Porque se um militar vê alguma coisa “errada” em você, se seu cabelo não está preso ou algo assim, ele vai te punir, vai te dar uma advertência. Aí os alunos começam a ter esse medo. O militar está em um corredor, a gente passa por outro corredor, pra não ter esse contato direto com o militar. Apesar de que, dentro do colégio militar, você é obrigado a ter esse contato com o militar. Toda vez que você passa perto de um militar tem que bater continência. Se você não bater continência… igual criança, isso acontece demais, elas não batem continência, a criança não sabe por que ela tem que bater continência, ela não sabe qual é o motivo. Elas não batem. Aí o militar adverte elas. Muitas vezes, quando eu era “aluna padrão”, uma criança passava correndo por mim, eu tinha que chamar e dizer “menino, você não me deu continência, agora vou ter que te punir por isso. Você tem que passar por mim e tem que me dar continência”, aí eles respondiam: “uae, mas por que eu tenho que te dar continência?”, ué, eu não sei, só sei que tem que dar continência. E isso era preciso só dentro do colégio?

Não. Fora também. Você estando uniformizado, você tem que bater continência para todos os militares. Mas é meio que um cumprimento, até. Vai chegando no 29

Estado de Exceção Escolar

8º ano, no 9º ano, você já vai criando esse costume, esse hábito. Você vê outro aluno… no colégio militar você não pode ter essa “proximidade”, essa “aproximação”, não pode beijar no rosto para cumprimentar, não pode ter contato. Como se fossem militares mesmo. Esse contato não pode acontecer nem dentro da escola, nem fora se você estiver uniformizado. Eles não te dão essa liberdade de ter contato com as pessoas. Aí a gente começa a ter esse cumprimento, de dar continência. Com o tempo, até para aluno normal, que não é “aluno padrão”. E com relação a abuso de autoridade, acontece?

Abuso de autoridade acontece até entre os alunos, com os próprios alunos. Acontece de aluno padrão se exaltar com outros alunos, isso acontece muitas vezes. Militares também. Daí, quando isso acontece a gente tem que recorrer ao “capitão”. Chegar nele e dizer “houve um abuso de autoridade, acontecei isso e aquilo…”, porque existem muitos militares que, do meu ponto de vista, não estão preparados pra estar lidando com crianças e adolescentes. Como que você vai se alterar com uma criança? Quando alguém interfere nessas ocasiões eles já não gostam, aí acontecem uns “cala a boca”, uns xingamentos… Você já teve aula com um militar?

Já. Em todo colégio militar isso acontece, quando falta um professor ou algo assim. Quando isso acontece, normalmente ele dá aula de hierarquia, ou coisas sobre o militarismo. E a questão da aparência, o aluno, ou aluna, pode, por exemplo, pintar o cabelo, usar maquiagem?

Tem o padrão do colégio. Seu cabelo tem que 30

Os dilemas de estudar no regime militar

estar na cor natural. Antes meninas não podiam usar maquiagem, agora parece que o artigo foi atualizado, você só pode usar maquiagem clara e leve. Esmalte nas unhas tem que ser claro, não se pode usar esmalte escuro. E o cabelo não pode ter corte “extravagante”. Pro menino o corte de cabelo é o corte padrão, na lateral corte de máquina Nº 1 e em cima Nº 2.E não pode usar barba, nem quando ela está começando a crescer. O militar verifica o tamanho do cabelo colocando a mão na cabeça do estudante, se o cabelo passar da altura do dedo o corte está fora do padrão, então o aluno não entra no colégio. Tem que estar indo de duas em duas semanas no salão cortar o cabelo, é um gasto grande pros pais. Você falou da questão do contato entre estudantes, tem mais regras sobre isso?

No colégio você não pode ter contato físico com outros estudantes, você não pode namorar, não pode ter contato como beijo no rosto, abraço, essas coisas. O militar pode te punir. E com relação a manifestações e atos políticos? O aluno é livre para participar deles se quiser?

Aluno de colégio militar não pode ir em manifestação, mesmo sem uniforme. Com uniforme você é punido, você vai levar advertência direta, pode até ser expulso do colégio. Se não estiver fardado, você será repreendido oralmente. Se você fizer “asneira na rua”, eles chamam de “asneira”, você é punido. Se você não estiver uniformizado, mas eles souberem que você é do militar, você é punido. Porque no colégio militar você tem que manter um “padrão” independente da roupa, independente de estar no colégio. Pra você ver, entrou aluno do colégio militar no ônibus, você pode 31

Estado de Exceção Escolar

descer, porque eles são os mais “atentados”. Eles fazem “asneiras” no ônibus pra ver se alguém vai lá e denuncia. E tem muita gente que vai no colégio e denuncia. E a relação com os professores, como é?

Com os professores é uma relação normal. Você só observa que você perde muito tempo de aula, com as coisas militares. Por exemplo, no terceiro ano, quando os alunos são vestibulandos e é uma matéria que você precisa, você tem que ficar perdendo tempo batendo continência, fazendo “formação” de turma… e você perde bastante tempo com isso. Os professores também têm que seguir regras?

Os professores também têm os artigos que têm que ser seguidos. A gente vê muito de fora, a gente não tem oportunidade de ter esse contato direto com essas regras que os professores seguem, porque o professor tem uma agenda diferente da nossa. Na nossa agenda tem os artigos que a gente tem que cumprir e na do professor também. Professor não pode dar aula de cabelo solto, não pode mostrar tatuagem, tem que estar com a roupa bem limpa, unhas bem cortadas. O cabelo dos professores homens eles nem exigem tanto, mas com as mulheres esses padrões são mais rígidos. É isso, têm as regras que eles têm que cumprir também. Questão de atraso: os professores são punidos quando atrasam. Pra mudar de uma sala para a outra o professor não pode atrasar também. O professor não tem uma liberdade direta pra dar uma aula. Um professor de artes, por exemplo, pra realizar alguma atividade diferente, se ele precisar mudar a configuração da sala, fazer um círculo com as carteiras, ele tem que pedir autorização a um militar. Ele não tem essa liberdade com a aula, como ele quiser. 32

Os dilemas de estudar no regime militar

Você entende que as aulas nos colégios militares são diferentes das dos demais colégios?

Se você pega, por exemplo, o 3º ano, tem a questão da ordem, já que tem os alunos padrões, o chefe de turma e o professor. O professor está ali para dar a aula, ele não está ali para dar ordem à turma, quem põe ordem na turma é o chefe de turma. E tem também a regra de silêncio durante a aula. Essas são as diferenças. Porque os alunos, eles são crianças da mesma forma que em outro lugar, estudantes também da mesma forma. O que muda é o militar. Porque o objetivo deles, pra colocar ordem na turma, é colocar o chefe de turma como um militar dentro da sala. Só que o chefe de turma é um aluno como os outros. No início, ele quer ser aluno, ele quer brincar como os outros, ele quer interagir com os outros. Existe, entre os alunos, algum tipo de diferenciação por nota?

Sim. Essa diferenciação ela acontece em todas as séries. Funciona assim, juntam a cada bimestre todas as suas notas, se você tiver, em um bimestre, o boletim com todas as notas 10 você ganha um “cordão” amarelo, chamado alamar (eu já ganhei o alamar, no 7º ano). Ai você usa esse alamar. E também têm as premiações, as medalhinhas. Muitos alunos se esforçam pra ganhar as medalhinhas, porque você fica “mais que os outros”, os militares te tratam melhor, “olha, esse aqui tem medalhinha, o outro ali não tem. Esse aqui tem um alamar, o outro não tem”. Entende, aí existe essa desigualdade. Se você não tem um alamar, o professor, o militar, já te desconsideram em relação a quem tem. E com esse alamar o aluno tem algum privilégio dentro da escola, ou algo parecido?

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Estado de Exceção Escolar

Não. Quando você ganha o alamar você tem que pagar por ele. E você fica sendo “mais que os outros”, só. A única coisa que é de graça são as medalhinhas. Esse é outro ponto interessante. Igual, por exemplo, no 7 de Setembro. Vocês já perceberam que no 7 de Setembro todos os alunos têm alamar? Não tem um aluno que está sem a “cordinha” na farda, ou sem medalha. Como funciona, não é a maioria ali que tem alamar, não é a maioria que tem as medalhinhas também. Eles te emprestam um dia antes o alamar e as medalhinhas e você devolve no outro dia. Acabou a formação, você vai devolver. Porque é o ideal para apresentar pros coronéis, pros policiais, pros “chefões”, porque eles querem mostrar que têm muitos alunos com alamar. “Todos os alunos têm alamar”. Mas, na realidade, o que acontece é que, em cada sala, no máximo dois alunos têm alamar, porque é muito difícil você chegar nessa premiação. Porque no padrão de nota 2,0 pontos são de “disciplina”, esses são os mais difíceis de tirar, porque quem vai te dar essa nota é um militar. E nem todo militar vai te dar 2,0. Como você consegue essa nota de disciplina?

O principal é você não ter nenhuma anotação na agenda. E isso é muito difícil, chegar em algum aluno no colégio militar e perguntar “você tem alguma anotação na agenda?” e ele falar que “não tem nenhuma”. Porque se você ficar em pé dentro de sala e um militar chegar na sala, ele vai ter dar uma punição. Se você ir com o cabelo grande, ele vai te dar uma punição. Se você estiver com um piercing, ele vai te dar uma punição. Teve uma vez que eu achei um absurdo. Uma menina estava no 2º ano do ensino médio e cortou o cabelo, e na época não podia, ela meio que raspou a cabeça na lateral, e ela levou punição por isso. Então é difícil conseguir os 2,0 pontos. 34

Os dilemas de estudar no regime militar

Agora, como que funciona a questão das “contribuições voluntárias”? Elas são voluntárias mesmo? Como é isso?

Não. Não é voluntário. Se você não pagar… eu tive um problema no 3º ano do ensino médio. Se eu não pagasse essa taxa (na época essa taxa era R$50,00 no mês, eu já devia R$400,00) eu não ia receber meu diploma. É isso que acontece em todos os colégios militares. Se você não pagar… você pode esperar acumular, não junta juros, você pode deixar pra pagar no final do ano, só que se você não pagar, sua matrícula não é atualizada quando você passa de ano. Se você não pagar no último ano, você não tem seu diploma. Então você é obrigado a pagar essa taxa. Essa taxa aumenta anualmente. Quando eu comecei a estudar eu pagava R$15,00 ao mês. No final já estava R$50,00. Como se fosse em um colégio particular. Eles não sujam seu nome, só que você não continua estudando, porque sua matrícula não é atualizada. Pra atualizar a taxa tem que estar paga. Você conhece estudantes que tiveram de sair do colégio por não conseguirem bancar estas “contribuições voluntárias”?

Sim. Tem alunos que tiveram que sair por causa disso. Se você estiver no 3º ano do ensino médio, você terminou. Você pode entrar na justiça para pedir seu diploma. Mas se você estiver no 8º ano, não tem jeito, você tem que pagar. Ou você paga, ou sai do colégio. Você conhece alguém que abandonou os estudos, porque não conseguiu entrar em outro colégio?

Sim. Teve um amigo meu que saiu. Daí não voltou a estudar mais. 35

Estado de Exceção Escolar

Existe algum tipo de controle, ou fiscalização, sobre como é gasto esse dinheiro das “contribuições”?

Os alunos não ficam sabendo. Por exemplo, formatura dos 3º anos, o colégio não ajuda a financiar a formatura, os alunos têm que bancar tudo. Porque a escola não gasta verba com essas coisas. Eles falam que esse dinheiro é gasto com despesas do colégio, mas a gente não sabe ao certo. Existe alguma prestação de contas sobre esse dinheiro?

Não. Existe algum tipo de consulta, por parte da administração do colégio, com a comunidade escolar para a tomada de algumas decisões?

Não. Não tem essa opção de argumentar “eu acho que isso está errado”, “eu acho que o aluno podia vir com tênis de outra cor”, eles não dão essa opção de diálogo. Você vê um colégio militar como um colégio público?

Não. Eu vejo como um colégio conveniado. Eu não considero como um colégio público. A estrutura dele não é a de um colégio público. Em colégio público você não paga. Ali você tem que pagar. Eu acho que isso deveria ser mudado, acho que não deveria ter que pagar. E a evasão é grande?

Tem muita gente que sai porque não passa, muita gente que sai porque não aguenta o militarismo. Eu até conheço menina que começou a entrar em depressão, aí por conta disso os pais resolvem tirar. Tem pai que tá vendo que a escola está fazendo mal pra criança, mas 36

Os dilemas de estudar no regime militar

não tira, até que chega em consequências piores. Porque tem uns estudantes que querem, outros não. Eu entrei porque eu quis, mas tem muitos que entram porque são obrigados, porque não tem outro lugar pra estudar, ou porque os pais obrigam. Tem pessoas que sofrem psicologicamente com esse treinamento militar?

Tem. Tem muitos que começam desde criança (porque tem colégios que começam desde o 6º ano do ensino fundamental), eles já começam a adquirir um medo do militarismo. Daí começa a ter essa paranoia de “eu tenho que respeitar”, “eu não posso me vestir como eu quero”, “eu não posso cortar o meu cabelo como eu quero”, desde cedo colocam isso na cabeça das crianças e elas vão crescer, elas não vão ter uma vida plena, elas vão ter só parte dela. Porque não ensinaram ele a desenvolver esse arbítrio, essa tomada de decisão. E você entende que o colégio militar te formou como cidadã?

Ele me formou como militar, na verdade. E você entende que há diferença entre um “cidadão” e um “militar”?

Tem diferença. Você vê a diferença entre uma pessoa que é formada em um colégio militar e uma pessoa que é formada em um colégio normal. No colégio militar você é treinado para ter disciplina, em todos os aspectos. O problema é que eu acho que eles estão ensinando essa disciplina em uma hierarquia muito forte, eles estão jogando muito para o lado do militarismo. Eu acho que eles deveriam jogar mais para o lado da educação mesmo. Porque o que eu aprendi lá, se eu não for militar, não vai 37

Estado de Exceção Escolar

me servir pra nada. Não vai me servir pra nada as horas que eu fiquei em pé marchando. Não vai me servir pra nada as continências que eu dei.

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ARTIGOS

As escolas militares: o controle, a cultura do medo e da violência Dijaci David de Oliveira

Uma pergunta que muitas pessoas têm feito é “qual o sentido da presença das escolas militares na educação pública no Estado de Goiás?”. Essa questão se distingue daquela outra que busca saber sobre quais as razões que levaram o governador do Estado a implementar novas unidades de escolas militares. Em relação à primeira, as respostas têm sido díspares. Para uns, a partir da experiência das escolas já instaladas, trata-se de um investimento na qualidade da educação, mas para outros, a partir da leitura do cenário político e social, trata-se de mais uma ação nos moldes da agenda conservadora em busca de consolidar sua hegemonia política. Se tomarmos a leitura da reação social sobre o processo de implementação das escolas militares, observaremos que sua emergência tem se metamorfoseado em uma moeda eleitoral. Elas emergem como objeto de desejo para prefeitos que têm muito pouco para oferecer no campo da educação (ou talvez não saibam ou ainda, não desejam), mas, ao mesmo tempo as escolas militares se tornaram uma concessão do Governo em benefício de aliados, apoiadores (é também como uma forma de acomodação do excesso de oficiais militares e de política de fortalecimento de uma instituição desacreditada como a Polícia Militar, todavia, ainda vista como uma forte aliada no jogo político) e, por fim, como o Governador deixou público, uma política de contra-ataque aos movimentos sociais. As mais recentes notícias sobre as razões da militarização das escolas demonstram ambiguidade 41

Estado de Exceção Escolar

(aparentemente) do próprio Governo sobre quais rumos tomar no cenário da educação e em relação à política de implementação de novas escolas militares. Isto é, se elas supostamente se destacam como “boas escolas” isso não significa que serão generalizadas pela simples razão de que o que realmente interessa ao Governo é se “desfazer” da obrigação do gerenciamento das escolas. Noutras palavras, as escolas militares são parte de uma estratégia de pequenas trocas e ações políticas, já que o objeto da política educacional no Estado de Goiás tende a ser a política de terceirização no modelo clássico ou no modelo das chamadas Organizações Sociais (OS). Ainda assim, devemos perguntar “o que fundamenta a implementação de escolas militares?”. A despeito da fala pública do Governador, a militarização é também uma resposta a uma demanda política, mas, evidentemente, não despontam como uma meta de médio e longo prazo (pois isso implicaria mais custos e mais investimentos), ainda que eleitoralmente o Governo possa se beneficiar com tal política. Como se fortalece o ideal das escolas militares? Existem várias razões que favorecem o discurso em favor das escolas militares. Vou trabalhar aqui com dois que creio sejam os mais proeminentes. O primeiro deles está no discurso do medo e da violência, o segundo, está na visão negativa e preconceituosa de que os adolescentes são ameaçadores e perigosos. O resultado disso é que para ampliar ou simplesmente instalar uma política de controle, na ótica do Estado e de boa parte da sociedade, nada melhor e mais eficiente que transformar a escola em um quartel. O discurso da segurança pública tem se tornado 42

As escolas militares: o controle, a cultura do medo e da violência

um instrumento importante para muitos governantes. Por meio dele tem sido possível criar mecanismos que permitem um maior controle dos movimentos sociais, a ampliação da capacidade de monitoramento dos grupos de oposição, assim como de acompanhamento de setores apontados como socialmente incômodos como, por exemplo, as pessoas em situação de rua, migrantes estrangeiros de países considerados pobres ou arrasados, além dos movimentos sociais de contestação. A consolidação de um projeto de controle social com ampla aceitação social demanda, contudo, a configuração de alguns cenários. Entre eles, podemos destacar o enfraquecimento dos procedimentos democráticos (ainda que se fale em seu fortalecimento e aperfeiçoamento), na criminalização dos movimentos sociais, assim como na construção de uma cultura do medo por meio da mídia. Todas essas práticas já estão em pleno curso. As evidências podem ser percebidas na unicidade dos discursos dos gestores, nas ações da elite e na difusão das agências midiáticas de que a única forma de garantir a segurança está na ampliação dos mecanismos de controle. Esses setores afirmam ainda que sem essas condições (mais aparatos tecnológicos, mais uso da força, legislação mais duras e maior flexibilidade para as ações de controle e punição), o cenário da insegurança prevalecerá. Este tipo de discurso ocorre tanto em cenários em que a violência efetivamente cresce, mas também surge em panoramas em que se observa a queda nos índices de criminalidade (isso evidentemente ocorre no Brasil e nos EUA). Todavia, o que deve prevalecer, ao final, é a cultura do medo, e é isso que tem ocorrido. O discurso do medo não tem compromisso 43

Estado de Exceção Escolar

com a verdade, mas apenas com o medo e com todos os mecanismos que supostamente serão necessários para que possamos enfrentá-lo. Uma observação mais atenta evidencia que o discurso do medo sobrevive mais por meio de falácias do que por meio dos fatos. Quando acompanhamos os noticiários da grande mídia podemos extrair um repertório significativo que tem sido utilizado por muitos governantes que desejam ampliar o controle social e, para além disso, desejam ampliar a submissão dos cidadãos. a) Os mitos da sociedade insegura Todos, hoje em dia, compartilham de uma certeza, a de que vivemos em uma sociedade insegura. Essa percepção é tão forte, tão evidente que muitos a tomam como real, concreta. O mundo é inseguro, logo devemos nos defender e, para além disso, contra-atacar ou desejar que alguém faça algo contra todos aqueles que representam uma ameaça. Mas, como disse o antropólogo indiano, Arjan Appadurai, o ódio e o medo sempre recai sobre os mais fracos, contra todos os que são diferentes, não importa que sejam poucos e vulneráveis (no caso das minorias), a própria diferença já será o suficiente para representar uma ameaça.

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As escolas militares: o controle, a cultura do medo e da violência Narrativas do Mito

Cultura do medo

Uma resposta contra-hegemônica

Estamos em guerra

Precisamos preparar as polícias para enfrentar o “inimigo”

Não estamos em guerra. Tal discurso fragiliza e vulnerabiliza a pessoa que deixa de ser tratada como cidadã para ser apontada como “inimiga”.

Eles estão mais organizados e bem mais armados

Os bandidos não são mais perigosos que em épocas anteriores. As próprias investigações policiais demonstram que o crime organizado é “desorganizado” e onde prevalece o domínio do grupo organizado, em geral, conta com informantes privilegiados dentro da própria polícia.

A sociedade atual é mais insegurança

Todos nós corremos risco iminente de morrer

Na verdade, na sociedade atual, estamos mais seguros que em todas as épocas anteriores. Contudo, a forte e desproporcional exposição de fatos violentos nos faz supor que a sociedade atual é mais violenta.

A ampliação das penas reduz a violência

Precisamos de leis mais duras e mais encarceramento

As políticas de encarceramento apresentam um efeito irrisório sobre a redução da criminalidade. Em muitos lugares tem servido apenas como mais uma forma de exploração pelo capital e mecanismo de controle social.

Jovens estão mais violentos

Os jovens estão cada vez mais perigosos

Os jovens de hoje não são mais perigosos, nem a violência produzida por alguns pode ser apontada como mais letal.

Os movimentos sociais são perigosos e violentos

Precisamos criar leis que impeçam a ação violenta de grupos radicais

O Estado atua de forma violenta contra todos os grupos que são vistos como oposição aos seus interesses particulares.

Direitos humanos devem ser apenas para “humanos direitos”

Busca assegurar o acesso aos direitos apenas aos grupos historicamente privilegiados.

Todos os seres humanos devem ter acesso pleno aos direitos humanos.

Bandido bom é bandido morto

A sociedade está cheia de bandidos que se aproveitam da fragilidade das leis e das pessoas.

Todos têm direito ao acesso à justiça, a julgamento justo e direito a comprovar sua inocência.

Temos que defender o homem de bem

Os homens de bem são as pessoas que precisam ser defendidas.

As leis e todo o sistema de justiça sempre privilegiaram as pessoas que possuem bens em detrimento das pessoas em geral. O que existe não são “pessoas de bem”, mas pessoas com bens.

Bandidos estão cada vez mais perigosos

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Estado de Exceção Escolar

Como pudemos observar são vários os mitos. Poderíamos facilmente ampliar e incluir inúmeros outros discursos, mas nosso objetivo aqui é indicar alguns exemplos de mitos que compõem a chamada cultura do medo e o cenário de violência como fontes no processo de fortalecimento da ideia de que temos que preparar nossas instituições para agirem de forma dura contra as “ameaças”. Mais importante ainda é percebermos o quanto esse discurso serve de pilar para suprimir setores vulneráveis, mas nunca para realmente construir uma política de segurança com base na justiça social. b) O medo dos adolescentes Quando observamos aqueles mitos percebemos que um personagem importante no discurso do medo está centrado na figura do adolescente. O medo e o ódio uniram boa parte da sociedade contra os adolescentes. Não há uma única pesquisa de opinião sobre a proposta de redução da maioridade penal em que a sociedade reconheça que os adolescentes não são os responsáveis pelos dramas da violência brasileira. Isso, mesmo contra todos os dados em que se demonstra claramente que os adolescentes são vítimas. Mas como isso ocorre? O Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) realizou a Pesquisa Brasileira de Mídia (PBM 2015) para o Governo Federal. Foram entrevistados mais de 18 mil pessoas em todo o Brasil. Um dos objetivos foi saber como os brasileiros se informam e acessam as fontes midiáticas disponíveis. Os dados são significativos, “95% dos entrevistados afirmaram ver TV, sendo que 73% tem o hábito de assistir diariamente. Em média, os brasileiros passam 4h31 por dia expostos ao televisor, de 2ª a 6ª-feira, e 4h14 nos finais de semana... 46

As escolas militares: o controle, a cultura do medo e da violência

(IBOPE, 2015, pág. 7). Isto nos dá uma dimensão do poder de persuasão da TV. Somado a isso temos o fato de que boa parte dos brasileiros não leem. Apenas 7% leem diariamente jornais (que em geral são dos mesmos donos dos canais de TV). Logo temos um problema, como se informa a maior parte dos brasileiros? Os brasileiros se informam por meio da grande mídia. O que vão discutir com você amanhã é o que viram hoje na TV. O problema é que a grande mídia não tem compromisso com a verdade, mas apenas com o mercado. Se somando ao discurso dos gestores por mais investimento em aparatos de segurança, observamos ostensivamente um “bombardeio” por meio da mídia televisiva (principalmente) de que vivenciamos uma “insustentável realidade social no campo da segurança”. Evidentemente temos uma conjunção de interesses entre mídia televisiva e gestores focados nas políticas de mercado. Para o mercado, a cultura do medo mobiliza recursos (econômicos) e investimentos fundamentais para estruturar a cadeia do mercado de segurança (organizações sociais, terceirização, construção de presídios, fortalecimento das industrias de armamentos, compras do Estado, prestação de serviços de segurança, aparatos de controle social e de punição). Onde entra o adolescente? Em todo discurso do medo é fundamental que se tenha um “inimigo”. Durante muito tempo se teve o “morro” carioca como um emblema de domínio do tráfico de drogas e do perigo. Contudo, como o modelo servia apenas para alguns Estados, aos poucos foi se estruturando um discurso anti-jovem no âmbito nacional. Hoje, em qualquer lugar do Brasil o jovem é visto como um perigo. Mesmo quando as estatísticas demonstram claramente que o adulto 47

Estado de Exceção Escolar

representa a maior parcela dos crimes, a adolescentes aparecem com a principal ameaça na mídia. Na narrativa cristã o “bode expiatório” representava a figura de alguém escolhido para curar os pecados da sociedade, o jovem é o “bode expiatório” em nossa sociedade. Da cultura do medo nasce o apoio às propostas pedagógicas de mais controle e mais repressão. Os riscos da pedagogia militarista A história grega nos oferece um exemplo clássico de dois modelos educacionais, duas formas de pensar um modelo de sociedade. Falamos dos modelos educacionais espartanos e atenienses. A vitória de Esparta sobre Atenas permitiu a reprodução, ao longo da historia, de que o processo disciplinar e a rigidez educacional prevalecem sobre a formação humanista. Contudo, a derrota de Atenas não foi por sua opção de manter uma educação humanista, mas por inúmeros outros fatores que podem ser facilmente destacados por qualquer um que saiba recorrer aos livros. Independente das reais causas da queda de Atenas, o militarismo tem se sobressaído ao longo da história como uma forma de prática educativa supostamente eficiente e que se baseia em treinamentos duros e violentos como forma de preparação para uma vida. A cultura do medo e a prática militarista tendem a vender a ideia de que a militarização é uma solução para ampliar a segurança, além de servir de combate à violência. Essa foi uma das teses espalhadas pelo Estado. Não é verdade. Política de segurança se faz com justiça social. O processo de militarização das escolas é parte do processo de ampliação do controle social, e segue a prática já denunciada pelo pensador Michel Foucault, 48

As escolas militares: o controle, a cultura do medo e da violência

das formas de docilização do corpo e controle da mente. Por fim, embora a rigor o modelo das escolas militares não seja uma meta, a presença delas possui um forte sentido emblemático, a ideia do poder do Estado como ameaça permanente. Finalmente, cabe reconhecer que o modelo das escolas militares se torna um ideal para uma parcela da comunidade também pela ausência de um modelo consistente de escola que se contraponha aos modelos atuais e, ao mesmo tempo, sejam acessíveis a todos. Se queremos uma outra escola, devemos construíla.

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Quem quer manter a ordem? A ilegalidade da militarização das escolas em Goiás Francisco Mata Machado Tavares

Trataremos de uma questão que eu já estudo há algum tempo, que é: o regime jurídico da educação pública no Brasil. O que me parecia é que abstratamente poderíamos pensar que, ainda que a escola militar fosse adequada do ponto de vista didático-pedagógico; ainda que a escola militar fosse uma boa saída, digamos, para – e essa é a fórmula coringa para se justificar qualquer política pública que não obedeça a Constituição – acabar com a criminalidade; ainda que a escola militar fosse adequada para alcançar-se o “santo graal” da elevação da nota do ENEM… parece-me que se é uma política de Estado e, notadamente, se é uma política de forças de segurança pública, a primeira indagação que se deve fazer, já que não estamos falando de uma política de força revolucionária, não estamos falando de uma política de forças golpistas, não estamos falando de uma política de fato, mas em uma política de direito, implementada pelo estado e pelas forças do estado que manu militari defendem a lei, a primeira pergunta que se deve colocar é: a escola sob gestão militarizada é constitucional? Porque se isso não for lícito, quem gostar de escola militar que proponha uma PEC, que proponha um golpe de estado, que faça uma revolução. Eu, por exemplo, sou contra – por razões pessoais, políticas, sociais – o direito da propriedade privada, mas isso não significa que eu entenda que a partir de amanhã eu possa andar pelas ruas como quem não o reconhece. Eu sei, inclusive, que eu vou suportar consequências 53

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coercitivas muito graves se eu fizer isso. Portanto, se eu quero acabar com o direito da propriedade privada, o que eu posso fazer é: tentar mexer na Constituição, ou tentar derrubar essa ordem jurídica, mas nessa ordem jurídica a propriedade privada está assegurada. E se eu fosse, antes de tudo, um defensor dessa ordem jurídica, eu não iria, sem modificá-la, violá-la. Portanto, a primeira pergunta que se deve fazer é: a militarização de uma escola encontra amparo no nosso ordenamento jurídico? Pode uma escola ser militar? É lícita ou não? Essa é a pergunta que pretendo responder. Para responder essa questão é preciso enquadrar a escola no âmbito das modalidades de ensino previstas no artigo 206 da Constituição da República. Isso é uma escola pública? É uma escola confessional? É uma escola privada? O que é, afinal, uma escola sob gestão militar? Bom, isso foi objeto de uma consulta ao órgão que dispõe sobre estas questões, qual seja: o Conselho Nacional de Educação. E no âmbito dessa consulta o estado de Goiás e a sua polícia militar defenderam a seguinte tese jurídica: a escola militar é uma escola pública. Pública tout court. Não é pública com um predicado específico. Eles defenderam, junto ao Conselho Nacional de Educação, a tese de que ela era uma escola pública. Portanto, como outra qualquer. Porque a Constituição prevê apenas “escola pública”, ela não predica isso. O Conselho Nacional de Educação acatou a tese do estado de Goiás e de sua polícia militar. E entendeu que, para todos os efeitos jurídicos, a escola de ensino médio no estado de Goiás sob gestão militar é uma escola pública. Bom, se assim é, agora temos de fazer uma outra pergunta: o que prevê a Constituição quanto às escolas públicas? Para o que nos interessa, começaremos pelo artigo 206, inciso VI. Ela prevê a chamada “gestão 54

Quem quer manter a ordem?

democrática do ensino público”. Escola pública deve ser gerida democraticamente. Caso contrário, não há licitude. É verdade que o Supremo Tribunal Federal entendeu, de um modo diferente daquele que eu, pelo menos, entendo o direito à educação no Brasil – mas como bem dizem os mais conservadores no mundo jurídico, e lamentavelmente é a tese deles que se aplica, ainda que não seja a mais acertada: as decisões do Supremo Tribunal Federal não são definitivas por serem as mais corretas, mas são as mais corretas por serem definitivas. Retomando, o Supremo Tribunal Federal entendeu que uma escola pública não é obrigada a fazer eleição para diretor. Certo, o Supremo Tribunal Federal disse isso, mas disse mais. Ela não é obrigada a fazer eleição para diretor, mas ainda assim ela deve ser gerida democraticamente. Pergunta-se: como? O Supremo Tribunal reponde: as políticas didáticopedagógicas, a relação com a comunidade, as normas internas, os padrões disciplinares, as escolhas em termos de conteúdos disciplinares – claro, tudo na moldura das normas jurídicas gerais para cada disciplina e para a educação no país – devem ser objeto de participação (e veja que essa palavra é importante e diferente de presença. É participação, tomar decisão) de toda a comunidade. Estudantes, pais, docentes e a comunidade que circunda a escola. Então, do ponto de vista abstrato, a questão que devemos pontuar é: se as polícias militares querem gerir escolas, elas não podem gerir de qualquer maneira, elas têm que gerir na forma da lei. E na forma da lei pode, por exemplo, um conselho de pais e estudantes se reunir e dizer “ninguém vai usar farda”, e dizer “o aluno vai ter o cabelo do comprimento, da cor e do jeito que ele quiser”, 55

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e dizer “o nosso projeto disciplinar aqui não prevê chefe de turma”. E cabe à figura que ocupa a direção da escola, seja um oficial, seja quem for, cumprir as decisões da comunidade. Quem conhece tão bem de hierarquia como um/a policial militar poderia aproveitar para cumprir bem a decisão daquele que hierarquicamente, segundo a Constituição da República, dispõe sobre as decisões didático-pedagógicas, administrativo-gerenciais, de uma escola. Que são: pais, estudantes e comunidade. De um modo bem simples: quem decide sobre o regimento disciplinar, as opções pedagógicas, o vestuário dos estudantes e todos os detalhes de uma escola pública é a respectiva comunidade, constituída de pais/mães, mestres e estudantes. O/a militar que se comportar em descompasso com esta premissa estará a malferir a Constituição da República e, portanto, cometerá falta grave. Isso é o que diz a constituição, e qualquer forma de gestão de uma escola pública que não obedeça a isso é ilícita, antes de qualquer outra coisa. Mas a Constituição diz mais. Ela prevê o princípio da gratuidade do ensino em todos os níveis. Ensino em escola pública é gratuito, e quem diz isso é a Constituição. Mesmo que se aprove uma lei modificando isso, ela será inconstitucional. “E se eu pedir uma contribuição voluntária, pode”? Não. Existe uma disciplina no Brasil chamada direito financeiro, que cuida justamente dos processos de arrecadação (tributação, direito tributário) e dispêndio (direito financeiro stricto sensu) do poder público nesse país. Essa é a disciplina mais rigidamente burocratizada do nosso país (essa é a disciplina que toca questões como responsabilidade fiscal, sistema tributário nacional, etc.). E você não pode, como Estado, simplesmente pedir 56

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“contribuições” por aí. O dinheiro do poder público não funciona assim. Este é um Estado liberal-democrático, estado liberal-democrático tem “receita originária”, quando o Estado aluga um terreno, presta um serviço e isso gera dinheiro, etc. e “receita derivada”, quando o estado multa alguém, ou arrecada tributos. A grande receita do Estado vem de tributos. O modo como esse dinheiro será gasto dinheiro será discutido pelo Parlamento, e o Poder Executivo irá executar o que o parlamento decidir, podendo fazer contingenciamentos. Isso é norma cogente. Para quem não está familiarizado com esse chatíssimo vocabulário: isso é obrigatório, isso não tem discussão. O Estado não vive, portanto, de contribuições voluntárias. Não existe isso na nossa ordem jurídica. E se ele está, portanto, recebendo contribuição voluntária, isso é uma ilegalidade, porque, por via transversa, você está malferindo o princípio da gratuidade do ensino público. Em matéria de direito público, não importa o nome que uma prática possui, mas a sua substância última. Se uma família, ainda que sob suposta espontaneidade, repassa valores mensais, por menores que sejam, para a escola onde suas crianças estudam, então não se trata de ensino gratuito e, portanto, está violada a Constituição da República. O Militar que aceita receber valores informais de particulares, sem que esse dinheiro integre a contabilidade pública, está a contribuir para o vilipêndio do princípio da gratuidade do ensino público e, destarte, comete falta grave. Ademais, deve-se indagar sobre como se dá a escrituração e a fiscalização, por órgãos como o TCE e o MP, do dinheiro que segue para um serviço estatal, como escolas. Então, do ponto de vista constitucional, se quisermos uma escola militar, ela terá que dar um 57

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jeito de atender a estas duas possibilidades: gestão democrática e absoluta gratuidade. Isso é ensino público. Vai ter, igualmente, que respeitar a legislação ordinária do Brasil. Por exemplo, a lei 7398/85, a “lei do grêmio livre”, aqui em Goiás comumente chamada de “lei Aldo Arantes”, por ter sido quem lutou por sua aprovação no Parlamento. A “lei do grêmio livre” prevê que o grêmio estudantil é autônomo. Se o Grêmio, por exemplo, quiser fazer um ato público em favor do Incidente de Deslocamento de Competência dos crimes apurados na Operação Sexto Mandamento, ou se quiser organizar um jornal para arrecadar fundos para uma campanha em favor da desmilitarização da PM, é uma prerrogativa que lhe assiste. Ademais, é ilícita a manutenção de bancos de dados ou controles, por parte de gestores escolares, sobre quem são os/as estudantes ativistas ou aderentes ao Grêmio Estudantil. Em resumo: obstruir, por qualquer meio, os direitos associativos de estudantes implica estar fora da lei, implica desprezar a ordem vigente no país. Assim, temos um debate: quem está ao lado da legalidade e quem está contra a legalidade? quem está ao lado da ordem e quem está contra a ordem? quem está ao lado do direito e quem está contra o direito? Quem quer cumprir a lei e quem quer fazer “bagunça”, para utilizar um termo recorrente? Quem são “as pessoas de bem” e quem são aqueles que desrespeitam as nossas normas jurídico-sociais? Quem descumpre, de uma só vez, o artigo 206 inciso IV, artigo 206 inciso VI, e a lei 7398/85 é “bagunceiro”, não respeita o direito. Esta é uma primeira parte da explicação. Mas tem um problema maior. A emenda constitucional de número 59 modificou a Constituição da República. Ela dispôs que o ensino até os dezessete 58

Quem quer manter a ordem?

anos de idade, não mais até os quatorze como outrora, é obrigatório. Aqui surge um problema mais grave. Se uma escola era civil, não há tantas escolas assim na mesma região, ou o estudante já está nessa escola e ela se transforma em militar, se o ensino é obrigatório, está-se, na verdade, por via transversa, criando um serviço militar obrigatório para pessoas de quinze anos de idade. Pode-se fazer isso? Sim, modificando primeiro a constituição. Em segundo lugar, modifique normas de direito internacional ou se submeta a sanções da ONU. Porque existe uma convenção da ONU – e, mais do que isso, existe o artigo 38 da Convenção dos Direitos da Criança – que proscreve (ou seja, não permite) o chamado “soldado criança”. Isso não pode, e o mundo inteiro se mobiliza contra essa forma. Para que as forças armadas se adaptassem a essa convenção da ONU foi um suplício. A primeira cláusula da convenção da ONU é: se a pessoa com quinze anos for para alguma organização militar, ela tem que ir voluntariamente. A lógica é simples: um adolescente de 14 anos frequenta o ensino médio em determinada escola pública localizada em seu bairro. Digamos que a escola, sub-repticiamente, seja convertida em instituição militar. Ocorre que, como não haverá outra opção viável de matrícula para esse adolescente em sua vizinhança e, como o ensino médio é obrigatório, está-se, por via oblíqua, submetendo-se crianças ou adolescentes à inserção em uma instituição militar. Inobstante o nome que se atribua a uma prática desta natureza, sua substância jurídica é, indubitavelmente, a do Soldado Criança. Cabe, portanto, uma representação contra a República Federativa do Brasil no âmbito da ONU. Nós já não estamos mais falando apenas da ordem jurídica interna, mais de um estado que não respeita normas 59

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fundamentais de direito internacional público. Isso é grave. Então temos aqui um descumprimento do artigo 206 inciso VI, gestão democrática do ensino; descumprimento do artigo 206 inciso IV, gratuidade; descumprimento da “lei do grêmio livre” e ainda o problema do “soldado criança”, que não é um problema menor, essa é uma das grandes questões de direitos humanos e de direito internacional público na contemporaneidade. Digamos que a gestão militar das escolas consiga adequar o seu comportamento a todas essas normas. Abstratamente é possível. Suponhamos que a gestão, por algum mecanismo, seja democrática e os militares passem a obedecer às determinações da Associação de Pais e Mestres e do Grêmio Estudantil; os estudantes estejam lá voluntariamente; o grêmio seja respeitado e a gratuidade esteja assegurada. Digamos, então, que esta primeira pergunta, depois de muitos ajustes, seja respondida afirmativamente: pode a escola ser militar. Só que, constitucionalmente, devemos fazer uma segunda pergunta: pode militar ser escola? Essa é uma outra pergunta. Então, saímos do artigo 206 da Constituição, que dispõe sobre educação, e vamos para o artigo 144, que dispõe sobre segurança pública. E o artigo 144 da Constituição é cristalino. No parágrafo quinto o artigo 144 fala sobre a polícia militar, e ele fala o que ela pode e o que ela não pode fazer. E o que ela pode fazer? Duas coisas: I) manutenção da lei e da ordem e; II) policiamento ostensivo. Mais nada. E investigação? Polícia Civil e Polícia Federal. E Rodovia Federal? Polícia Rodoviária Federal. E Ferrovia? Polícia Ferroviária. A polícia militar só pode fazer estas duas coisas no nosso ordenamento jurídico. 60

Quem quer manter a ordem?

Pensando na Constituição tal como ela está posta, o que pode a polícia militar fazer? Manutenção da lei e da ordem e o chamado policiamento ostensivo. De modo bem claro, veja-se o que dispõe o parágrafo quinto do artigo 144 da Constituição: “às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”. A única função adicional – e de caráter excepcional – prevista para as PMs no direito brasileiro é aquela que a própria Constituição, agora no parágrafo 6o do artigo 144, dispõe. O texto é o seguinte: “As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército....”. Fica claro, portanto, que a PM, licitamente, só pode exercer três tipos de atividade: 1) Policiamento ostensivo; 2) Manutenção de lei e ordem e; 3) compor as forças auxiliares e a reserva do Exército. Não cabe à Polícia Militar, portanto, sob nenhuma hipótese, ministrar, gerir, organizar, fornecer ou lidar, direta ou obliquamente, com o serviço de educação pública. Ora, quando uma instituição armada atua sem respaldo constitucional para exercer uma atividade que não de sua esfera jurídica de competências, está-se em uma situação de séria ruptura com a ordem democrática, a ensejar uma representação contra a República Federativa do Brasil no âmbito das instituições internacionais de defesa e proteção dos direitos humanos. Não cabe à PM gerir escolas públicas e o militar que o faz trai, diariamente, o seu juramento de cumprir a Constituição. Ora, como vamos ensinar à nossa juventude que devemos cumprir as leis e respeitar o nosso direito, se os próprios dirigentes de suas escolas desprezam a Constituição e exercem funções, como PMs, que o artigo 144 não lhes entrega? O exemplo de que a lei deve ser cumprida apenas por cidadãos desarmados, de modo que os militares não precisam se preocupar em respeitar as nossas normas, é 61

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o melhor modo de educar as gerações futuras? Insisto: qual é o artigo da Constituição que permite à PM gerir escolas? Como qualquer cidadão bem informado sabe, se a Constituição não autoriza uma instituição a fazer algo, mas esgota suas atribuições taxativamente ( como faz no art. 144, parágrafos quarto e quinto), qualquer conduta excedente ou alheia às determinações constitucionais se revela abusiva. Finalmente, é preciso lembrar que, ainda que uma escola pública de ensino médio regular pudesse ser militar e; ainda que policiais militares pudessem ser desviados da sua função para se converterem em gestores escolares, o que eu admito apenas para fins de argumentação; restaria imperiosa a motivação do ato legislativo concernente à militarização das escolas em Goiás. Como se sabe, no âmbito do direito administrativo brasileiro a finalidade e o motivo se revelam como requisitos vinculados, ou seja, alheios à margem de decisão discricionária da administração pública. Ocorre que, com o escopo de justificar o ato de militarização das escolas em Goiás, o atual Governador se referiu a um “remedinho” contra supostos sindicalistas de extrema esquerda que o teriam vaiado em uma cerimônia pública. O caso, aliás, ensejou a aprovação de uma nota crítica por parte do Conselho Universitário da Universidade Federal de Goiás. Ora, ao fundamentar uma medida administrativa sobre o escopo de dirimir conflitos sindicais ou de disciplinar o comportamento de ativistas, o governador malferiu o dever de vincular o motivo de uma medida (“remedinho” para sindicalistas) à sua finalidade jurídica (prestação do serviço público de educação em grau de eficiência, gestão democrática, universalidade etc). Este elemento, por si só, desencadeia duas fundamentais consequências: i) nulidade das militarizações, em função de vilipêndio 62

Quem quer manter a ordem?

aos requisitos da motivação e da finalidade dos atos emanados da administração pública e; ii) eventual responsabilização do Estado de Goiás por conduta antissindical, a ser apurada na forma da lei e no âmbito da Organização Internacional do Trabalho, em consonância com os tratados devidamente ratificados pela República Federativa do Brasil. Em suma, repito que não sou educador e nada posso dizer sobre a qualidade do serviço prestado por escolas militares. O que, com certeza, como bacharel em direito e cientista político, eu posso assegurar, é que este debate sobre a militarização em Goiás só possui dois lados: o da lei e o da ilegalidade. A lei não permite a militarização e, muito menos, a chancela nos termos em que tem ocorrido. Nesta contenda, em respeito ao juramento que fiz no dia em que recebi o meu diploma, posto-me ao lado do respeito à Constituição e contrariamente à militarização.

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A exclusão dos alunos mais pobres nos Colégios Militares Rafael Saddi Teixeira

“Eu ganho 01 salário mínimo e tenho três filhos nesta escola. Se o colégio for militarizado, aonde os meus filhos vão estudar?”. Não sei as palavras exatas. Não estava lá. Mas, foi assim que uma amiga me descreveu a pergunta dolorosa feita por uma mãe de alunos do Colégio Estadual Waldemar Mundim (Colégio localizado na Vila Itatiaia, de Goiânia, que passou desde terça-feira (04-08) a ser administrado pela Polícia Militar). Um professor desta escola, o professor Marcelo Souza, bastante preocupado com a expulsão em massa das famílias mais pobres, resolveu investigar como é a situação sócio econômica dos alunos que estudam em colégios da polícia militar. Não existem muitas pesquisas a respeito, mas é possível traçar algumas considerações com base em dados coletados e disponibilizados pelo INEP. Trata-se do INSE (Índice Sócio Econômico Escolar), que é medido a partir de questionários contextuais aplicados a alunos durante o ENEM. Segundo estes dados, em 2013, a maioria esmagadora das escolas de Goiânia apresentava  índice socioeconômico escolar MÉDIO, enquanto todos os 06 colégios militares do estado de Goiás que participaram do ENEM da época apresentavam índices MÉDIO ALTO ou ALTO (o caso do COLEGIO DA POLICIA MILITAR DE GOIAS UNIDADE CARLOS CUNHA FILHO, da cidade de Rio Verde). Fica mais fácil compreender o que isso significa, se 67

Estado de Exceção Escolar

compararmos a maioria das escolas estaduais de Goiânia com as escolas militares. Veremos que a porcentagem de alunos cuja renda familiar é entre 5 e7 salários mínimos aumenta em mais de 100%. De 6% na maioria das escolas estaduais para 14% nas escolas militares. Há também uma diminuição em mais de 100% dos alunos cujas famílias possuem renda de até 1 salário mínimo. O número de alunos nesta condição é praticamente insignificante: 5% nestes colégios militares contra 16% nas demais escolas. A propósito, qual é a porcentagem de alunos cujas famílias ganham menos de 01 salário mínimo? Nos colégios militares, 0%. Pode não parecer tão grave, pois na maioria das outras escolas estaduais o índice é de 1%. Porém, se traduzirmos isso em números absolutos, com todo o risco que isso possui, estaríamos dizendo que dos 1607 alunos dos 06 colégios militares de Goiás que prestaram Enem em 2013, nenhum aluno afirmou ter família com renda menor que 01 salário mínimo. Com a publicação, ontem, dos dados do ENEM 2014, a situação de exclusão das famílias mais pobres ficou ainda mais evidente. Dos 05 Colégios Militares que apresentavam, em 2013, o índice sócio econômico Médio Alto, 04 subiram este índice para Alto, se igualando ao Colégio da Polícia Militar Carlos Cunha Filho, da cidade de Rio Verde. Isso quer dizer que, de um ano para o outro, ocorreu nestes colégios da polícia militar um aumento de mais de 100% no índice de alunos oriundos de famílias que ganham entre 05 e 07 salários mínimos (De 14%, em 2013, para 29%, em 2014) e um aumento ainda maior, em termos percentuais, no índice de famílias de renda maior de 07 salários mínimos (De 2%, em 2013, para 5%, em 2014). Isso sem falar na redução do índice de famílias 68

A exclusão dos alunos mais probres nos colégios militares

que ganham até 2 salários mínimos. No estado inteiro, somente 06 colégios estaduais apresentam índice sócio-econômico ALTO. 05 deles são colégios da polícia militar. A situação de militarização do Colégio Waldemar Mundim é, deste modo, bastante preocupante. Mais ainda se pensarmos que, na região, o outro único colégio público que atende a comunidade (no ensino médio) apresentou, na mesma pesquisa, também índice sócio econômico escolar ALTO. Trata-se do CEPAE (Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação) da UFG. Aqui, a crítica também deve ser feita à UFG e ao modo pelo qual seu colégio termina por excluir uma grande parte da comunidade mais necessitada da região em que atua. Mas, isso, longe de diminuir, faz ecoar de modo ainda mais forte a pergunta entoada de modo doloroso pela senhora mãe naquela reunião: “Se o Colégio Waldemar Mundim for militarizado, aonde os meus filhos vão estudar?”.

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Nós perdemos a consciência?: apontamentos sobre a militarização de escolas públicas estaduais de ensino médio no estado de Goiás Ellen Ribeiro Veloso Nathália Pereira de Oliveira

Em Goiás, a existência de escolas dirigidas pela polícia militar remonta ao final dos anos 1990 e é modelo que apresenta alucinante expansão. Atualmente, são mais de trinta os colégios militares – o estado é o que apresenta o maior número de colégios dirigidos por policiais no país –, tendo nove delas sido militarizadas recentemente, no segundo semestre de 2015. A reorientação do ensino à lógica militar, em que a punição e o castigo são respostas por excelência à desobediência, revela-se diametralmente oposta ao sentido emancipatório projetado para a educação. Em acepção adorniana, é papel da educação evitar a barbárie e promover a emancipação, em oposição ao retorno do totalitarismo, do autoritarismo, ou seja, às formas de dominação que mitigam a identidade e o potencial de resistência dos indivíduos. O olhar foucaultiano para a dominação decorrente da disciplina, por sua vez, aponta nesta uma forma de aumentar as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminuir essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). A disciplina, para Foucault, fabrica “corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’” e requer, para o seu exercício, a distribuição dos indivíduos no espaço – destacadamente colégios e quartéis. Partindo do pressuposto de que uma educação 71

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militarizada pode representar distorções à formação identitária de crianças e adolescentes, este artigo pretende analisar de que maneira a doutrina militar imposta dentro dos colégios públicos contraria os preceitos gerais do Estatuto da Criança e do Adolescente e do artigo 206 da Constituição Federal/1988. Destacaremos, em especial, o princípio geral que reconhece a criança e o adolescente como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. Buscaremos analisar se o avanço teórico e prático que caracterizou a transição do antigo Código de Menores ao atual Estatuto – a respeito dessa condição peculiar e os direitos que dela derivam – sustenta-se na esteira da progressiva militarização de escolas públicas estaduais em Goiás, efetivada sob o pretexto de maior segurança e melhoria na qualidade do ensino. Além disso, o artigo pretende questionar, em bases teoréticas e empíricas, esses dois principais argumentos que fundamentam a militarização do ensino: a redução da violência e a melhoria do ensino e estrutura da escola. Neste ponto, iremos analisar a plausibilidade dos argumentos e, em caso afirmativo, se é a militarização da escola que é a verdadeira responsável por esses alegados resultados positivos. Aspectos da doutrina militar e o papel da disciplina Considerando que os policiais militares são os responsáveis pela estrutura e organização do Colégio Militar, faz-se imprescindível analisarmos quem são esses policiais, com o objetivo de compreender se eles são formados de modo a lidar harmonicamente com os desafios do contato com crianças e adolescentes. Para tanto, abordaremos alguns aspectos dos princípios da hierarquia e disciplina que informam a doutrina militar. 72

Nós perdemos a consciência?

Silva (2012) é autor de uma etnografia realizada durante o curso de formação da Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO), na qual o processo de socialização por que passa os policiais militares é relacionado com suas práticas e representações. O autor entende socialização como o “processo de interiorização de determinados valores e formas específicas de pensar e agir partilhados por um grupo humano” (p.11). Fundamentando-se nos conceitos de Peter Berger e Brigitte Berger, o autor explica dois tipos de socialização: a primária e a secundária. A socialização primária refere-se à formação da identidade do indivíduo, é o processo pelo qual uma criança deve passar para ser considerada um membro da sociedade. A secundária são “todos os processo posteriores, por meio dos quais o individuo é introduzido num mundo social específico” (p. 12). A socialização secundária pode ser superficial ou conter a mesma natureza e conteúdo da primária. No caso da PM-GO, a socialização é secundária, mas é tão profunda quanto à primária, pois não apenas implanta um novo código de conduta e de valores como também faz esquecer os hábitos e costumes da vida civil. A hierarquia militar é tão importante nessa instituição que, por exemplo, diante de um conflito entre um superior e um policial de hierarquia inferior, ainda que este esteja defendo o que consta em regulamento, caso insista em sua posição, correrá o risco de ser acusado de insubordinação pelo superior (SILVA, 2012, p. 19). A prerrogativa de interpretar as regras internas fica a cargo dos superiores. Além disso, vale ressaltar que, segundo a observação desse autor, entre superiores e subordinados existe um visível descaso: “a visão hierárquica predominante no seio militar não enxerga o outro como 73

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semelhante, muito menos como igual” (p. 32). No tocante ao segundo princípio que abordaremos, Michel Foucault define disciplinas como “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade” (2011, p. 133). A disciplina tem o objetivo de fabricar corpos submissos, isto é, corpos dóceis. Ressalta o autor que a disciplina, na medida em que aumenta a utilidade e a submissão do corpo, também reduz a sua força política. Na formação militar são utilizadas técnicas disciplinares que, para além de homogeneizar comportamentos, visam à anulação acelerada da individualidade do aluno soldado. Silva (2012) salienta que é necessário um tempo para que a socialização e absorção de valores ocorram ou, nas palavras do sargento, para que os alunos sejam ‘forjados’. “Na PM, como em qualquer outra instituição total, este processo é acelerado pela mortificação do eu (...) principalmente na fase de adaptação” (SILVA, 2012, p. 20). Importante destacar também a etnografia de Claudia Vicentini (2014) junto aos policiais militares de Goiás submetidos à junta médica. A autora estudou a relação entre o adoecimento mental de policiais militares e o contexto microssocial no qual estão inseridos, com destaque para as relações intersubjetivas baseadas na hierarquia e disciplina entre praças e oficiais. Afirma a autora que é no processo de supressão da individualidade em favor de uma coletividade que reside o caráter totalizador das instituições militares (p. 61). Hierarquia e disciplina somadas resultam em uma pronta e quase ilimitada obediência dos subordinados. A submissão é a principal característica buscada pela junção desses dois pilares, de modo que os policiais se 74

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acostumam a apenas obedecer e, em inúmeras vezes, a passar por humilhações verbais e físicas. Um indivíduo socializado dentro de uma instituição dessa espécie tende a perder a sua capacidade crítica, tornando-se um mero cumpridor de ordens. Diante do que foi exposto e considerando que a doutrina militar inculcada na formação policial não difere, na essência, daquela aplicada nos colégios militares, não nos parece ser esta doutrina adequada ao desenvolvimento de uma criança ou de um adolescente, podendo advir da formação militarizada efeitos como o adoecimento mental e comportamentos violentos em suas relações sociais. Ainda que se desconsidere a possibilidade desses efeitos negativos sobre as crianças e adolescentes, veremos no desenvolver do artigo que as regras disciplinares desses colégios – baseadas na doutrina militar – vão de encontro à doutrina escolhida para fundamentar todo o arcabouço jurídico de proteção e de garantia de direitos das crianças e dos adolescentes. Do Código de Menores ao Estatuto da Criança e do Adolescente: breve retrospectiva dos avanços na legislação O primeiro documento legal que tratava sobre direitos de crianças e adolescentes foi promulgado em 1927, conhecido como Código de Menores. As suas regras não eram dirigidas a todas as crianças e adolescentes, mas apenas àquelas que eram consideradas delinquentes ou que estivessem em situação de abandono. No ano de 1979, durante a ditadura militar, o Código foi revisado pela lei 6.697/79, mas não foi alterado o seu caráter autoritário e repressivo. Esta revisão teve como doutrina informadora a do “menor 75

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em situação irregular”, isso porque foram normatizadas situações em que a infância era considerada perigosa, por exemplo, quando: o menor não tinha condições para a sua subsistência, saúde e educação, era vítima de maus tratos, encontrava-se em perigo moral, privado de pais ou responsáveis, estava em desvio de conduta de conduta por inadaptação familiar ou comunitária e quando era autor de infração penal (artigo 2º). O Código de Menores tratava a criança e o adolescente como objeto de proteção, mas não como sujeitos de direitos, isto é, não havia na lei a previsão de nenhum direito em favor dos menores de 18 anos. Apenas trazia as situações em que a infância era considerada como uma situação de risco. A abordagem foi consideravelmente alterada com a promulgação da Constituição de 1988. O artigo 227 estabelece, a nosso ver, os pilares do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): a responsabilidade de todos – família, sociedade e Estado – na garantia dos direitos ali previstos; a universalidade dos direitos, isto é, todas as crianças e adolescentes estão englobadas independentemente da condição social; a proteção integral e a prioridade absoluta dos seus interesses. A doutrina informadora desse artigo, assim como a do ECA, é a chamada doutrina da proteção integral. No âmbito internacional, essa doutrina já embasava a Carta de Direitos das Crianças e Adolescentes de 1959 e a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes de 1989. Essa doutrina defende a ideia de que a criança e o adolescente devem ser entendidos como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, de modo que tanto a família, o Estado e a sociedade devem trabalhar para propiciar o desenvolvimento integral dos atributos de sua personalidade (desenvolvimento físico, 76

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mental, moral, espiritual e social), sempre com respeito à liberdade e dignidade pessoal. Este é um resumo da doutrina, assim como é a essência do artigo 227 da CF/88 e do ECA. O ECA estabelece dois princípios fundamentais: o que reconhece a criança e o adolescente como indivíduos em condição peculiar de desenvolvimento e a garantia da prioridade absoluta. Afirmar a condição peculiar é reconhecer que estamos tratando de pessoas em formação e, por esse motivo, reconhecemos também a necessidade de um sistema jurídico e uma tutela especial dos seus direitos. Esses dois princípios acarretaram na consolidação de uma regra hermenêutica aplicada a todo o sistema relativo à infância e ao adolescente, que consiste no respeito ao melhor interesse da criança e do adolescente. Este é considerado um dos grandes princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança, juntamente com os de não discriminação, direito à sobrevivência e ao desenvolvimento e respeito à opinião da criança (ARANTES, 2012). Os direitos fundamentais previstos no ECA estão distribuídos em 5 eixos: i) direito à vida e à saúde (artigos 7º ao 14); ii) direito à liberdade, ao respeito e à dignidade (artigos 15 ao 18); iii) direito à convivência familiar e comunitária (artigos 19 ao 52); iv) direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer (artigos 53 ao 59); v) direito à profissão e à proteção no trabalho (artigos 60 ao 69). Para o objetivo desse artigo, interessa-nos salientar apenas alguns aspectos do segundo e do quarto eixo. O direito à liberdade compreende dentre outros aspectos, o direito de opinião e de participação política. O respeito abrange a preservação da identidade, da autonomia, dos valores, ideais e crenças da criança e do adolescente. 77

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O direito à dignidade salvaguarda esses sujeitos de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. O direito à educação visa o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente e contempla a garantia de condições de acesso e permanência na escola, o direito de contestar critérios avaliativos, o direito de organização e participação em entidades estudantis e o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. No que tange ao direito à educação, cabe ainda salientar que o parágrafo segundo do artigo 54 do ECA prescreve a responsabilidade da autoridade competente no caso de não oferecimento do ensino obrigatório ou da sua oferta irregular. Nesse particular, entendemos que um sistema educacional que viole qualquer uma das garantias prescritas no capítulo referente ao direito à educação deve ser considerado irregular e passível de responsabilização. Um caso concreto para se verificar o efetivo cumprimento das normas asseguradas a crianças e a adolescentes é o retratado no modelo de escolas objeto deste artigo. Os colégios militares possuem regulamentos disciplinares bastante semelhantes aos regulamentos das polícias militares. Por exemplo, existem 13 regras no que tange às transgressões disciplinares do Colégio da Polícia Militar, unidade Hugo de Carvalho Ramos, semelhantes ao Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Goiás. As transgressões disciplinares também são graduadas da mesma forma em leve, média e grave. No colégio, as transgressões leves têm como sanção advertência, as médias ou a reincidência nas leves acarretam repreensão e tanto as médias como as graves terão como sanção a suspensão de sala de aula, segundo critério do Comandante e diretor estabelecimento de ensino. Existe 78

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ainda a punição que acarreta a transferência do aluno para outro Colégio. Essa sanção pode ser aplicada para qualquer tipo de transgressão, das leves às graves. Militarização do ensino: passando em revista os argumentos A militarização do ensino no estado de Goiás, seja pela criação de novas unidades ou pela transformação de escolas estaduais em colégios militares, desponta como uma política de vertiginosa expansão e tem sido uma constante nos últimos três anos. Em 2013, foram criadas 18 unidades; em 2014, 3 unidades; e, em 2015, foi criada uma unidade e nove escolas estaduais foram transformadas em colégios militares. Um levantamento sobre o tema a partir de notícias de jornais e publicações na internet e dos projetos de lei recentes que culminaram no aumento do número de colégios da Polícia Militar aponta para duas motivações a subsidiar a progressiva militarização do ensino na rede pública estadual em Goiás: o combate à violência e a melhoria da qualidade do ensino. O argumento do combate à violência é recorrente em notícias jornalísticas e publicações na internet e associa a opção pela administração de escolas pela Polícia Militar ao incremento da sensação de segurança, à redução da violência em áreas com elevado tráfico de drogas e prostituição, ao recurso à repressão e ao autoritarismo como medidas a coibir a violência no ambiente escolar, tendo em vista os elevados índices de criminalidade nos territórios onde as escolas estão inseridas. Tal argumento não chega a ser oficialmente sustentado pelas secretarias estaduais de Segurança 79

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Pública e de Educação, que compartilham a gestão do modelo. Pelo contrário, a Secretaria de Segurança Pública esquiva-se desta justificativa e atribui a troca de comando das escolas ao clamor da maioria da população, “pela qualidade de ensino dos colégios militares e as aprovações em vestibulares. Não para conter a violência, como foi divulgado”, consoante fala do coronel Raimundo Nonato, porta-voz da SSP. Há que se registrar, contudo, que a instalação de colégios militares como medida de segurança foi sustentada pelo chefe do Executivo estadual quando encaminhou projeto de lei ao Legislativo, em 2013, propondo a criação das unidades de ensino militar para os municípios de Goianésia, Anápolis, Valparaíso de Goiás, Aparecida de Goiânia, Goiás, Jataí e Novo Gama. No Ofício Mensagem n. 83/2013 da Secretaria de Estado da Casa Civil, que acompanhou a proposição encaminhada, consta a seguinte justificativa: A instalação de colégios militares nas cidades do interior do Estado, do mesmo modo que na Capital, constitui medida de segurança preventiva da mais alta eficácia, tendo em vista que, a par da educação de boa qualidade ministrada, não se podem desconhecer os valores da disciplina e da ordem, cultivados no seio dessas unidades escolares, na formação da juventude, especialmente, nos tempos atuais, em que a ausência de limites nesse segmento social responde em grande parte, como se sabe, por seu lamentável extravio para as hordas do crime, daí, que essa medida vem sendo reclamada pela própria população, por meios formais de participação, inclusive, mediante listas de assinatura1.

1

O documento está disponível para consulta na página eletrônica da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás e pode ser visualizado no seguinte elo: http://al.go.leg.br/arquivos/processos/2013002330.pdf. Cabe registrar que os “meios formais de participação, inclusive, mediante listas de assinaturas”

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Ainda que o argumento do combate à violência decorrente da militarização das escolas apareça timidamente nas falas e posicionamento dos atores políticos, os dados sobre índices de criminalidade em Goiás parecem apontar para esta associação. De acordo com a publicação Mapa da Violência 2015, entre os cem municípios brasileiros com as maiores taxas de homicídios de adolescentes de 16 e 17 anos de idade, considerados os 243 municípios com mais de quatro mil adolescentes nessa faixa etária, dentre os anos de 2011 e 2013, despontam os seguintes municípios goianos (com as respectivas posições): Valparaíso de Goiás (17ª), Luziânia (20ª), Águas Lindas de Goiás (44ª), Goiânia (59ª), Rio Verde (61ª) e Aparecida de Goiânia (74ª). Em todos eles foram criados e/ou implantados colégios militares nos últimos três anos. Parece evidente, portanto, que, explicitamente assumido ou não, o argumento do combate à violência compõe a motivação para a militarização de escolas públicas no estado de Goiás. Já o que não se sustenta é que tal medida impacte positivamente na redução de práticas violentas atribuídas a jovens. Inexistem dados e estudos que demonstrem a relação entre presença da polícia militar em escolas e redução da violência nas comunidades em que foi implementado tal modelo de gestão nas respectivas escolas. A mudança de comportamento dos alunos no âmbito escolar em decorrência da imposição da disciplina militar em nada assegura que a mesma repercuta em decréscimo na produção da violência, a menos que um rigoroso levantamento da problemática – inexistente, até o momento – aponte para tal conclusão. O segundo argumento para a militarização de alegados não são explicitados e não há qualquer documentação destes no projeto de lei encaminhado.

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escolas – o da melhoria na qualidade do ensino – é o mais reiteradamente sustentado por atores políticos, tendo embasado formalmente as recentes proposições legais de transformação de unidades de ensino em colégio militares. Na ocasião em que a Governadoria do Estado encaminhou à Assembleia Legislativa o projeto de lei para a militarização de escolas em Goiânia, Aparecida de Goiânia e Senador Canedo, foram apresentadas como justificativas “os bons resultados apresentados pelos colégios militares, que proporcionam rigoroso padrão de qualidade, primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de Goiás e destaque no Enem” e que “os colégios militares têm sua eficácia e credibilidade atestadas pela comunidade, que ressalta, inclusive, os ensinamentos de cidadania que são ministrados, com destaque para o respeito ao cidadão”, o que acarretaria na “ampliação do padrão de qualidade”. O argumento apresentado também é falacioso e propõe generalizações que não se sustentam empiricamente. Primeiro, há que se destacar que o estado de Goiás alcançou resultados positivos no tocante ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do ano 2013 em decorrência da pontuação obtida pela totalidade das escolas do estado, consideradas na avaliação. Assim, não só se destacaram colégios da polícia militar, cujo quantitativo é ínfimo se comparado ao universo das unidades de ensino públicas, mas se sobressaiu o conjunto das escolas estaduais avaliadas. Ademais, ainda que colégios militares tenham atingido o primeiro lugar no Ideb do ano de 2013, é pouco contundente e em nada traduz a ideia de educação, na amplitude que o conceito encerra, atrelar a qualidade do ensino a um índice que se limita a sintetizar dados sobre a “aprovação e média de desempenho dos estudantes em 82

Nós perdemos a consciência?

língua portuguesa e matemática”. Outro ponto a se considerar em se tratando de qualidade do ensino são as condições de funcionamento das escolas consideradas de “rigoroso padrão” comparativamente às demais unidades da rede pública. Diferentemente da totalidade das escolas estaduais de ensino básico, os colégios militares, além de serem custeados com verba pública, contam com recursos extras arrecadados por meio de “contribuições voluntárias” estipuladas no âmbito destas, usualmente revertidos para a melhoria da estrutura física das escolas e investimentos nas mesmas, de forma geral. O perfil dos alunos de colégios militares também é ponto a merecer atenção. É previsão dos editais de ingresso de novos alunos nos referidos colégios a reserva de 50% das vagas a dependentes legais de militares – o que restringe a integralização das vagas por crianças e adolescentes oriundos das comunidades em que se situam tais escolas e impacta no perfil sócio-econômico dos alunos que as integram –, bem como o preenchimento de 20% das vagas mediante avaliação de conhecimento, em relação às unidades da Capital. Portanto, avaliar comparativamente escolas públicas não militares com colégios militares sem que tais distinções sejam levadas em consideração não constitui indicador confiável e efetivo para a mensuração do grau de qualidade das escolas. Mais ainda, não autoriza afirmarmos que é a militarização que corrobora para a melhoria do ensino nos colégios, enquanto o que se verifica é uma elevação dos investimentos nos mesmos e ampliação e valorização do quadro de pessoal – o que decorreria da simples tomada de decisões políticas sobre o orçamento com este fim, sem qualquer necessidade da transformação de escolas públicas em colégios militares 83

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(e, consequentemente, semi-privados, porquanto impelem os alunos ao pagamento de “contribuições voluntárias”). Referências bibliográficas ARANTES, Esther Maria de Magalhães. Direitos da criança e do adolescente: um debate necessário. Psicol. clin., Rio de Janeiro , v. 24, n. 1, p. 45-56, 2012. FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 39 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. SILVA, Agnaldo. Praça Velho. Socialização, representações e práticas policiais militares. Goiânia: PUC-GO, 2012. VICENTINI, Claudia. Corpo fardado: adoecimento mental e hierarquia na Polícia Militar goiana. Goiânia: UFG, 2014.

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Militarização de escolas públicas: avanços ou retrocessos? Joab Júnio Dias Gregório da Silva

O Estado de Goiás vivencia uma conjuntura delicada no que concerne a educação. Já no início do ano de 2015, o Governador Marconi Perilo anunciou a realização de estudos sentido a consolidação de parcerias público-privadas na pasta educacional, através de Organizações Sociais (O.S.’s),1 que consistem em “pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos”.2 O presente modelo é baseado nas Charter School americanas, na qual determinada fração da rede de ensino é gerida por organizações sociais com repasse de dinheiro público. Alega-se uma gestão mais dinâmica do ensino, sem burocracias licitatórias, estando o profissional de educação sujeito às regras do mercado, caso “não atinja as metas ou cumpra os anseios da sociedade civil na prestação de serviços.” Conforme apontado por professores/as, alunos/as e ativistas ligados à área da educação, o repasse da rede de ensino à organizações sociais não foi transparente. A Secretaria de Educação e Cultura (SEDUCE) não chegou a pronunciar-se sobre os critérios para a implantação das O.S’s e nem tampouco, quais escolas escolas vigorariam em 2016 com o presente modelo, qual seria o montante 1

VITOR, Frederico. Estado deve implantar OSs na área da Educação aos moldes das charter schools americanas. Jornal Opção. Jan. 2015 (ed. 2062). Disponível em: . Acesso: 26 de nov. de 2015.

2

BRASIL. Casa Civil – Subchefia para assuntos jurídicos. Decretolei nº 9.637, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais e outros dispositivos. . Acesso em: 26 de nov. de 2015.

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e a forma de repasse do dinheiro público. Considerando a dinâmica mercadológica, os/as professores/as não mais seriam contratados com concursos públicos, o que poderia proporcionar a desvalorização da carreira docente. Em caráter experimental cerca de 30% da rede de ensino trabalhariam com O.S’s, sendo que 7, no ano de 2015 sofreram o processo de militarização, com previsão de mais 16 escolas, no ano de 2016, sob controle da polícia militar.3 Conforme pode ser observado, a atual conjuntura é extremamente rica no que tange a discussão sobre os rumos da educação pública em esfera local e nacional, considerando produções que observam o caráter neoliberalizante de política públicas educacionais hodiernas, até trabalhos que buscam melhor elucidar os impactos psicopedagógicos de gestões privadas em uma área assegurada pela Constituição enquanto dever do Estado. O presente artigo busca discutir determinado espectro da presente conjuntura: a militarização das escolas. Conhecendo organização

a

polícia

militar:

hierarquia

e

Uma discussão sobre a militarização das escolas públicas perpassa um debate mais aprofundado sobre o aparelho do Estado responsável pela gestão das mesmas: a Polícia Militar. Historicamente, o corpo policial do Estado de Goiás foi criado em 28 de julho de 1858, através da resolução nº 13, enviada pelo então Presidente de Estado, Dr. Francisco Cerqueira, passando por diversas

3

SANTANA, Vitor; BORGES, Fernanda. Grupo abraça Lyceu em protesto contra O.S.’s na educação. G1 GO. Nov. 2015. Disponível em: . Acesso em: 26 de nov. de 2015.

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Militarização de escolas públicas: avanços ou retrocessos?

reorganizações internas ao longo da história. Cabe destacar que o Estatuto da Polícia Militar do Estado de Goiás (lei nº 8.033 ) foi sancionado somente em 18 de dezembro de 1975, sob o governo do interventor Irapuan Júnior. O presente texto define a “Polícia Militar é uma instituição permanente e regular destinada à manutenção da ordem pública do Estado, sendo considerada Força Auxiliar do Exército”.4 No que refere-se ao efetivo policial para o Estado de Goiás, o projeto Lei nº 17.866, de 19 de dezembro de 2012, prevê cerca 30.741 policiais militares distribuídos dentre praças e oficiais. A classe de praças segundo o levantamento de Cláudia Vicentini correspondia, no presente ano, a cerca de 92% da corporação, ao passo que a classe de oficiais correspondia a 8% do total.5 Esquematicamente, a polícia militar organiza-se em duas classes: a de praças e a de oficiais. A classe de praças, que encontra-se na base da pirâmide, encontra-se dividida em 8 graduações (praças, soldados, subtenentes, 1º, 2º e 3º sargentos, aspirantes a oficiais e alunos especiais); a classe de oficiais, por sua vez, ao invés de graduações, possui postos, sendo 6 ao todo (1º e 2º tenentes; major, capitão, coronel e tenente-coronel). A fim de melhor elucidar as relações de poder estruturais intra e interclasses no aparelho militar, cabe discutir, inicialmente, sob uma perspectiva antropológica, micro estruturas que conformam a polícia militar enquanto tal, em outras palavras, o que faz a polícia militar ser a polícia militar. 4

GOIÁS. Gabinete Civil da Governadoria. Decreto Lei nº 8.033, de 02 de dezembro de 1975. Estatuto da Polícia Militar. . Acesso em: 26 de nov. de 2015.

5

VICENTINI, Claudia. Corpo fardado: adoecimento mental e psíquico na Polícia Militar goiana. Goiânia: Editora UFG, 2014.

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“O espírito militar” e o “espírito de corpo” da PM

Em seu estudo junto a cadetes da Academia Militar da Agulhas Negras – AMAN, no município de Resende – RJ, Celso Castro nota que a Academia Militar é um caso típico no qual ocorre uma segunda socialização dos sujeitos. O isolamento do mundo civil proporciona a interiorização de um universo simbólico próprio da instituição militar, proporcionando a superação da condição na qual o cadete encontrava-se anteriormente inserido. Subsiste um mecanismo denominado “vitória cultural” no qual o indivíduo passa de um “status civil” a um “status militar”, através do habitus, um conjunto de estruturas estruturadas e estruturantes interiorizadas, adquirindo aquilo denominado por Castro de “espírito militar”66. O espírito militar, no entanto, só pode ser elucidado a partir de pares diferenciais entre aqueles que encontram-se dentro e aqueles que encontram-se fora da corporação militar, em outras palavras, a partir das diferenças entre militares e civis. Em sua obra, Castro montou três séries que demonstram, no imaginário dos cadetes, as diferenças postas entre os de dentro e os de fora. No que refere-se a atributos físicos e comportamentais, os militares são marcados por uma entonação de voz clara e firme, densidade corporal equilibrada (peso x altura), rígida higiene corporal e linguajar próprio; a série dos atributos morais ressaltam o senso de retidão e honestidade, preocupação com causas nobres, respeito à ordem, à disciplina e à hierarquia; a série denominada de ambiental/ecológica é marcada pela vida ao ar livre, saudável e natural, o convívio em comunidade e o constante deslocamento pelo interior brasileiro. 6 CASTRO, Celso. O espírito militar: um antropólogo na caserna. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

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Militarização de escolas públicas: avanços ou retrocessos?

De forma similar ao Exército, Cláudia Vicentini, que etnografou policiais militares (cabos e soldados) goianos atendidos pelo serviço de psiquiatria do Hospital da PM, notou a existência de um “espírito de corpo” dentre os policiais militares, que permite diferenciá-los não só em relação aos paisanos (termo pejorativo dado aos civis, sendo similar a milico, pejorativo de militar), como também ao Exército e à Polícia Civil. As diferenças postas em relação ao Exército podem ser abstraídas sob a tríade: legalidade; intensidade de treinamento/estética militar e atribuições. Legalmente, as polícias militares estaduais, junto ao Corpo de Bombeiros são consideradas forças auxiliares do Exército. Qualquer civil ou policial militar podem ser convocados para as Forças Armadas, constituindo-se, portanto, enquanto militares em potencial, não militares propriamente ditos. No que refere-se a treinamento/estética, observase que o padrão do Exército é mais rígido que o da PM. Esta por sua vez, é compreendida enquanto um batalhão de “segunda categoria”. Quanto às suas atribuições, a PM é vista enquanto uma instituição não pura em relação ao Exército, tendo em vista o contato direto junto a civis, compreendidos enquanto “impuros”. O contraste em relação a Polícia Civil, por sua vez, se dá geracionalmente pelo caráter disjuntivo da polícia brasileira. À PM é reservada com exclusividade o policiamento extensivo fardado com o objetivo de preservar a ordem pública, ao passo que a Polícia Civil cabe o registro de ocorrências e investigação do crime. Distinguem-se em relação à estrutura, normas administrativas e operacionais, disciplina e salário. No entanto, é importante notar os mecanismos estruturais subjacentes à formação do espírito de corpo da Polícia Militar. A hierarquia e a disciplina são dois 91

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princípios-chave para entender os signos estruturantes da PM. A hierarquia possui um caráter segmentador e organizador, ou seja, estrutura as condutas e relações sociais dos indivíduos; a disciplina, por sua vez, garante a manutenção da hierarquia, bem como o sentimento de pertencimento a uma totalidade com o consequente aviltamento da esfera individual. A internalização dos princípios da disciplina e hierarquia dá-se através das relações estabelecidas entre oficiais e soldados-alunos. Conforme ressalta Celso Castro, no Exército brasileiro, a hierarquia é quantitativa, tendo em vista o fato da igualdade formal de condições ser preconizada durante todo o treinamento dos cadetes na AMAN, de forma que todos tenham a oportunidade de chegar ao oficialato. Na hierarquia da Polícia Militar, além de haver a variável quantificável (tempo de serviço), subsiste ainda uma variável qualitativa, considerando a dupla forma de entrada no corpo militar (é possível prestar concurso para a graduação de praças ou para o posto de oficiais, sendo que para este último, é necessário um curso de Direito). A hierarquia do policiamento brasileiro possui impactos profundos sobre a vida dos sujeitos, considerando o fato do “universo simbólico militar” perpassar todas as esferas da vida dos militares, desde a esfera profissional enquanto policial, até a esfera pessoal, fora da corporação. Segundo Vicentini, é possível reconhecer o policial militar através de sua coporalidade, ou seja, através da fala, gestos e comportamentos. O papel da violência na consolidação da disciplina e da hierarquia

É interessante notar, a partir das linhas anteriormente expostas, o modo com que a disciplina é 92

Militarização de escolas públicas: avanços ou retrocessos?

consolidada na polícia militar, culminando na submissão dos indivíduos à hierarquia. Conforme anteriormente elucidado subsiste uma desigualdade legítima/ simbólica no corpo militar, considerando as variáveis quantitativas e qualitativas presentes na instituição. A presente estrutura é estruturada através de dois signos: a hierarquia e a disciplina. A disciplina é o dispositivo que permite a manutenção do princípio hierarquizador na corpo militar. Subsiste, no entanto, um outro dispositivo que orienta a disciplina e a hierarquia na Polícia Militar: a violência físico-psicológica imprimida sobre os sujeitos através de relações desiguais de poder no bojo institucional entre praças e oficiais. Em seu trabalho, Cláudia notou que os policiais militares entrevistados percebem nos Regulamentos Disciplinares (aplicados por oficiais e responsáveis por prescrever mecanismos de punição-recompensa) uma forma de humilhação, rebaixamento e uso desmedido do poder. Torna-se claro, a partir do elucidado, que a violência institucional/legítima (porque executada por uma instituição específica possuindo lastro no plano jurídico) aplicada sobre os policiais militares no bojo hierárquico da corporação tende a reproduzirse em esfera social de maneira diversa, considerando os marcadores sociais da diferença que balizam a ação policial, a exemplo de classe, raça/etnia e gênero. A violência, historicamente atualizada no Brasil não atinge as grupalidades da mesma forma. Considerando as assimetrias de poder em esfera social, a defesa da ordem preconizada pela polícia militar transfigura-se na defesa de uma ordem social marcada por desigualdades. Em perspectiva histórica, os corpos policiais nasceram mediante a manutenção de interesses de oligarquias locais, reprimindo qualquer foco 93

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contestatório que colocasse a hegemonia de determinada classe ou grupo em xeque. Frente ao exposto, cabe problematizar o impacto em esfera educacional da gestão do ensino por parte de uma instituição balizada por assimetrias de poder fundamentadas na violência. Qual modelo educacional será preconizado no bojo das instituições de ensino? Quais serão os impactos psicopedagógicos sobre os adolescente em formação? Haverá liberdade de contestação por parte de alunos/as e professores/as frente a qualquer arbitrariedade posta? A defesa de uma educação pública voltada ao anseios dos/as filhos/as da classe trabalhadora

Subsiste um discurso romanesco sobre os Colégios Militares: “tem bons índices no IDEB”; “proporcionam ordem e segurança nas escolas”; etc. No entanto, existe uma faceta pouco discutida sobre a gestão de Colégios Militares que possui íntima relação com a forma com que os policiais militares são socializados na corporação: abusos e perseguições políticas de estudantes e funcionários/as. Segundo relatos de estudantes e professores/ as moradores/as do município de Montes Claros (GO), docentes e funcionários do Colégio Militar Tiradentes abusavam sexualmente das alunas, e considerando a estrutura rígida e hierárquica do Colégio, grande parte dos funcionários ignoravam o que ocorria dentre os muros da Instituição. As denúncias de abuso e assédio sexual tendem a ocorrer em diversos Estado do país como Rio Grande do Sul e São Paulo, acontecendo inclusive no bojo das corporações militares junto às policiais 94

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femininas, frente a figuras de alto posto ou graduação.7 O caráter público das instituições de ensino militarizadas também podem ser problematizadas na medida em que “taxas simbólicas” podem ser cobradas dos/as alunos/as, a exemplo de matrícula e fardamento militar, impossibilitando que a população em vulnerabilidade sócio-econômica da região possa manter seus filhos e filhas na escola. É de suma importância que a sociedade civil discuta a situação da educação pública em Goiás, considerando o fato de que a terceirização/privatização posta através de O.S.’s e escolas militarizadas podem trazer impactos profundos sobre a educação de jovens e crianças, tendo em vista assédios moral e sexual, além da nebulosidade na celebração de contratos e usos de verbas públicas. A luta por uma educação pública, de qualidade e voltada aos anseios da classe trabalhadora deve estar na linha de frente das mobilizações contra a terceirização da educação em Goiás e nos demais estados do país. A ocupação de escolas em São Paulo e em mais de 20 escolas no Estado de Goiás tem mostrado o caminho para a consolidação de uma gestão realmente democrática da escola pela comunidade escolar, contrapondo-se a políticas neoliberalizantes e antidemocráticas. Por fim, cabe transcrever alguns trechos da música “Trono de Estudar”, que reúne vários artistas, dentre eles Chico Buarque, Dani Black, Dado Villa-Lobos, Maria Gadú, Paulo Miklos e Arnaldo Antunes, em apoio às ocupações de escolas em São Paulo:

7

SADDI, Rafael. Assédio e abuso sexual em colégios militares. Diário da Manhã. Julho de 2015. Disponível em: . Acesso em: 27 de nov. de 2015.

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“[…] A vida deu os muitos anos de estrutura do humano À procura do que Deus não respondeu Deu a história, a ciência, a arquitetura Deu a arte e deu a cura e a cultura pra quem leu Depois de tudo até chegar neste momento me negar conhecimento é me negar o que é meu Não venha agora fazer furo em meu futuro, me trancar num quarto escuro e fingir que me esqueceu Vocês vão ter que acostumar porque Ninguém tira o trono do estudar E nem me colocando numa jaula Porque sala de aula Essa jaula vai virar” (Trono de Estudar – Dani Black)

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Sobre os autores Dijaci David de Oliveira é doutor em sociologia e professor da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), Universidade Federal de Goiás (UFG). É também coordenador do Núcleo de Estudos Sobre Violência e Criminalidade (NECRIVI). Ellen Ribeiro Veloso é bacharel em direito, especialista em políticas públicas, mestranda no programa de Pós-graduação em Ciência Política da UFG e pesquisadora do Programa de Pesquisa sobre Ativismo em Perspectiva Comparada (PROLUTA). Francisco Mata Machado Tavares é bacharel em Direito, doutor em Ciência Política e professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG. É também coordenador do Programa de Pesquisa sobre Ativismo em Perspectiva Comparada (PROLUTA). Heitor Aquino Vilela, que ilustrou este livro, é cartunista, jornalista, graduando da Faculdade de Informação e Comunicação da UFG e pesquisador do PROLUTA. Ian Caetano de Oliveira é graduando em ciências sociais pela UFG e pesquisador do PROLUTA. Joab Júnio Dias Gregório da Silva é graduando em ciências sociais pela UFG e pesquisador do PROLUTA Natália Pereira de Oliveira é advogada e mestranda do programa interdisciplinar de pós-graduação em direitos humanos da UFG. Rafael Saddi Teixeira é doutor em história e professor da Faculdade de História da UFG. Tem ênfase nos estudos de didática da história. Victor Hugo Viegas de Freitas Silva é graduando em ciências sociais pela UFG e pesquisador do PROLUTA.

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Esse livro foi impresso em fonte Georgia. E foi impresso em homenagem a todos aqueles que não desistem ante a truculência e a opressão exercidas, autoritárias, neste estado em que vivemos.

Tiragem de 200 exemplares

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